Você está na página 1de 63

História e Memória

A trajetória do imigrante italiano na Região Sul do Espírito Santo

Mellina de Fátima Neres de Sousa Curty | Prisciliana Costa Ventura | Mateus Augusto Almeida Martins | Victor Silva Salaroli do Nascimento
A
história mora em cada um de nós e cada um de nós se encontra em determinado tempo e espaço
da História. De alguma forma, para o historiador, o passado sempre o orienta para o presente como
também para o nosso futuro. Certa vez, disse o sábio que “o presente é ínfimo momento em que o
futuro se torna passado”, mas é nesse passado-presente que cada pessoa se torna capaz de ser
sujeito de sua própria história. Dessa forma, é importante cultivar o hábito de se fazer memória! Este
hábito de buscar fatos e acontecimentos do passado é comum a muitos historiadores; porém, fazer
memória desta ou daquela comunidade é um algo que privilegia a poucos, o que não é comum entre
nós historiadores.

É importante mencionar a grande questão levantada por Michel De Certeau, na obra A escrita
da História, cuja obra faz referência à importância da responsabilidade daquele(a) que produz a
História com cientificidade, uma vez que não fazemos memórias para nós mesmos.

Aqui, no conteúdo que ora nos é facultado, é possível vislumbrar todo o processo de como se
deu, nas terras do Sul do Estado do Espírito Santo, a chegada dos imigrantes italianos, sobretudo
nas cidades de Guaçuí e Alegre, que dentre tantos objetivos, visou de modo particular, a substitui-
ção da mão de obra escrava - que mesmo antes do decreto da Lei Áurea de 13/05/1888 - alcançara
a liberdade com a alforria de centenas de escravos.

Então, para que serve a memória? Eis a grande questão levantada pelos autores deste livro
para se construir uma História Local, na qual se busca discutir aspectos sobre a escravidão, o con-
texto europeu e o processo de imigração, bem como importante relação entre História e Memória.
Entretanto, a resposta para a questão levantada se destina ao imaginário e ao entendimento de
cada leitor, cabendo a ele descobrir por si mesmo.

Esta obra – História e memória: a trajetória do imigrante italiano na região sul do Espírito San-
to – é, sem nenhuma sombra de dúvidas, um marco definitivo na arte de se escrever uma História
que muito enriquece o nosso intelecto e ao mesmo tempo, abre um leque de conhecimentos ainda
escondidos em um canto qualquer das prateleiras, das memórias dos descendentes daqueles que
um dia, empreenderam em novas perspectivas de vida, deixando sua terra natal para favorecer o
desenvolvimento do Sul Capixaba.

Professor Miguel Aparecido Teodoro

Graduado em História pela Faculdade Pós-Graduado em Ciências Sociais pela Universidade


de Filosofia, Ciências e Letras de Alegre Severino Sombra - Vassouras - RJ
Graduado em Teologia pela Faculdade Mestre em História Social do Trabalho pela Universidade
Católica de Anápolis - GO Severino Sombra - Vassouras - RJ
História e Memória
A trajetória do imigrante italiano
na região Sul do Espírito Santo

Vila Velha, 2020


Autores
Mellina de Fátima Neres de Sousa Curty
Prisciliana Costa Ventura
Mateus Augusto Almeida Martins
Victor Silva Salaroli do Nascimento

Pesquisa: Amanda Caetano de Oliveira, Ana Carolina Silva Vimercati, Ana Luiza Laurindo Campos, Davi Mariano Viana Corrêa, Helen Gomes do Nascimento,
Maínna Miranda de Azevedo, Mariana Carvalho Muniz, Mateus Augusto Almeida Martins, Mellina de Fátima Neres de Sousa Curty, Prisciliana Costa Ventura,
Rafaela Bernardes Moreira, Richard Prata de Oliveira, Thayla Oliveira Santos e Victor Silva Salaroli do Nascimento.

Entrevistas realizadas por: Helen Gomes do Nascimento, Maínna Miranda de Azevedo, Mellina de Fátima Neres de Sousa Curty e Prisciliana Costa Ventura.

Transcrições realizadas por: Amanda Caetano de Oliveira, Ana Carolina Silva Vimercati, Ana Luiza Laurindo Campos, Helen Gomes do Nascimento, Maínna
Miranda de Azevedo, Mariana Carvalho Muniz, Rafaela Bernardes Moreira, Thayla Oliveira Santos e Victor Silva Salaroli do Nascimento.

Participação de ex-alunas que contribuíram de forma significativa para o desenvolvimento do projeto: Bruna Gaspar da Silva,
Izabella Obolari Peixoto Seraphini, Jocimara de Oliveira Silva, Larissa Cazadine Bebber, Maria Eduarda Soares Ferreira e Rayane Braga Osto.

A todos vocês, nosso sincero agradecimento.

História e Memória
A trajetória do imigrante italiano
na região Sul do Espírito Santo

Vila Velha, 2020


Conselho Editorial

Gilberto Medeiros

Andressa Zoi Nathanailidis

Flávio Marcelo Pereira

Flávio Borgneth

Guilherme de Souza Medeiros Vieira

Tarso Brennand

Vitor Cei Santos

Comitê Científico

Coordenador

Vitor Cei Santos


Universidade Federal de Rondônia (UNIR)

Andressa Zoi Nathanailidis


Universidade Federal do Espírito Santo

André Tessaro Pelinser


Universidade de Caxias do Sul (UCS)

David G. Borges
Universidade Federal do Piauí (UFPI)

Sérgio da Fonseca Amaral


Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
© 2020

É livre a utilização, duplicação, reprodução e distribuição desta edição, no todo ou em parte,


por todo aquele que desejar, bastando citar a fonte. Comercialização proibida.

Diagramação: Placidino Márcio e Tarso Brennand

Capa: Placidino Márcio, Tarso Brennand e Giba

Fotografias: Acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Alegre

Edição: Gilberto Medeiros

Fale com a Praia Editora

facebook/praiaeditora

praiaeditora.blogspot.com.br

email: praiaeditora@gmail.com

twitter: @praiaeditora

2020.

6
Apresentação
Como fruto da pesquisa realizada pelos membros do Progra-
ma de Iniciação Científica Júnior História e memória coletiva nos muni-
cípios de Alegre e Guaçuí: o resgate da cultura italiana pela nova gera-
ção de estudantes alegrenses fomentado pela Fundação de Amparo à
Pesquisa e Inovação do Espírito Santo que apresentamos a você, caro
leitor capixaba, um pouco de nossa história local.

Por sabermos que em nosso Estado houve a criação de diversas


colônias de imigrantes italianos e que, devido a esse fato, o Estado do Es-
pírito Santo foi e continua sendo um lugar muito importante de preserva-
ção da cultura italiana é que, a partir desse projeto de pesquisa buscamos
trazer à luz aspectos sobre a imigração italiana na região sul capixaba,
tendo como enfoque de nosso estudo as cidades de Alegre e Guaçuí.

Na investigação acerca dos italianos que se instalaram em nos-


sa região, suas trajetórias e cultura, realizamos entrevistas com seus des-
centes para que, a partir de seus relatos pudéssemos preencher algumas
lacunas acerca da nossa história, bem como pudéssemos tentar recons-
truir a partir das memórias individuais, uma memória coletiva.

Desse modo, é com grande satisfação que nós, membros do


Programa de Iniciação Científica Júnior apresentamos como resultado
de nosso projeto aspectos da nossa história local, cujo interesse e va-
lorização pela cultura e pelo povo italiano foram nossos pilares ao longo
deste estudo.

Agradecimento
Nós, membros deste projeto, gostaríamos de agradecer pro-
fundamente aos nossos entrevistados que com toda gentileza, cari-
nho e boa vontade, buscaram resgatar suas histórias individuais ao
vasculharem seus “escaninhos” de memória, possibilitando assim, a
construção de uma história coletiva e local. A vocês, nossos agentes
históricos, nosso muito obrigado.
7
Introdução
Antes de começar a leitura deste livreto, lhes fazemos a se-
guinte pergunta, prezado leitor: Para que serve a memória?

Sabemos que foi uma pergunta retórica, pois não estare-


mos ao seu lado quando você estiver lendo. Mas de qualquer for-
ma, esperamos que ao se deparar com essa pergunta você, nosso
caro leitor, possa refletir um pouco sobre essa indagação. Falamos
isso, porque é muito comum ouvirmos e lermos a partir dos diversos
meios de comunicação que “o brasileiro não tem memória” ou “o
brasileiro tem memória curta”. E é com base nesse ponto que tenta-
remos explicar o porquê de fazermos sempre uso de nossa memória
de forma consciente e reflexiva.

No ano de 2015, ao conversar com um colega de trabalho


sobre história local, falamos a respeito da significativa presença de
descendentes de imigrantes italianos na região e foi, a partir des-
sa conversa que resolvi me inscrever para o Programa de Iniciação
Científica Jr. fomentado pela Fundação de Amparo à Pesquisa e
Inovação do Espírito Santo (FAPES), cuja valorização e incentivo à
pesquisa são extremamente significativos para o trabalho científico,
mas especialmente para que aquele aluno/a de ensino fundamental
e médio da rede pública possa exercer também sua cidadania ao
trabalhar em equipe, ao lidar com o diferente, com o desconhecido
e se solidarizar.

Desse modo, ao perceber que de fato, sempre temos


um conhecido ou amigo cujo sobrenome é italiano, pude iden-
tificar como nossa região é permeada por esses descendentes
e foi, a partir daí, que resolvi criar um projeto com intuito de
conhecer um pouco mais sobre esse povo cuja presença se
faz tão importante em nosso Estado e em nossa região. Um
outro aspecto interessante e que instigou nossa pesquisa ao
longo de nosso projeto, foi que, mesmo ao constatarmos que as
cidades de Alegre e Guaçuí não foram criadas com objetivo de
serem colônias para esses imigrantes italianos, entretanto, sua
presença se fez e faz notória, conferindo traços de seu povo em
nossa localidade.
8
Por tratarmos de um projeto de história é que se torna im-
prescindível o desenvolvimento da memória, visto que, nós, mem-
bros deste projeto acreditamos que história e memória devem andar
de mãos dadas e que, ambas são de suma relevância para com-
preendermos nosso passado, mas especialmente nosso presente.
Nesse sentido, ao investigarmos sobre um tema que tem como foco
o estudo referente ao imigrante italiano e seus descendentes (e que
estes podem ser meus vizinhos ou seus), que descortinamos uma
série de questões que nos sãos caras para o conhecimento da histó-
ria nacional, mas especialmente para a nossa história local, uma vez
que visamos o resgate da memória desses descendentes.

Dessa forma, ressaltamos que, a tentativa de construirmos


uma história local, especialmente dos Municípios de Alegre e Gua-
çuí, não foi uma tarefa fácil, mas que, a partir do levantamento de
fontes cartoriais, de jornais e especialmente através das entrevistas
feitas com esses descendentes é que podemos trazer à luz aspectos
interessantes de nossa história e para tanto, ao longo deste traba-
lho buscamos enfatizar alguns temas cuja compreensão se fazem
necessário. Assim, serão discutidos aspectos sobre: escravidão, o
contexto europeu e o processo de imigração, a imigração local e a
importância da relação entre história e memória

Dessa maneira, após dois anos de pesquisa no qual o traba-


lho em equipe foi fundamental, gostaríamos mais uma vez de agra-
decer o incentivo e parceria do Instituto Histórico e Geográfico de
Alegre, a boa vontade e gentileza de nossos entrevistados, pois para
nós, representam os agentes que nos possibilitaram a construção de
nossa história, bem como agradecemos imensamente as instituições
envolvidas na realização deste estudo: a Escola Estadual de Ensino
Fundamental e Médio Aristeu Aguiar (Instituição em que nossos alu-
nos cursam o ensino fundamental e médio), a Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de Alegre, ao Cartório Márcio Valory de Alegre, ao
Memorial Manoel Pedro Ferraz, à Fundação de Amparo à Pesquisa e
Inovação do Espírito Santo por incentivar e proporcionar a realização
deste trabalho e por fim, agradecemos aos membros deste projeto:
àqueles que participaram e não puderam continuar, mas especial-
mente agradecemos a cada um dos membros de nossa equipe que
permitiram a finalização desta pesquisa, pois sem vocês, sem a per-
severança, sem o trabalho em grupo nada disso seria possível.
9
Estudantes no local onde hoje é a Praça 6 de Janeiro. 1921 Cine Trianon, em Alegre. 1941

Primeiro vôo em Guaçuí. 1948 Chegada do Presidente da Província Bernardino Monteiro.


Acervo Elias Simão. 1919

10
Sumário
Apresentação........................................................................................................................... 7

Introdução.................................................................................................................................. 8

1. Cativeiro e liberdade:
A ESCRAVIDÃO E A SUBSTITUIÇÃO DA MÃO-DE-OBRA ESCRAVA PARA O TRABALHO LIVRE .........................
13

2. Do outro lado do Atlântico:


O CONTEXTO EUROPEU E A IMIGRAÇÃO ITALIANA PARA O BRASIL ............................................................
23

3. Imigração no Espírito Santo:


UM DESTAQUE PARA A REGIÃO SUL - ALEGRE E GUAÇUÍ ..........................................................................33

4. História e Memória:
CONSTRUÇÕES COTIDIANAS ................................................................................................................. 47

5. Referências.............................................................................................................................. 56
Largo Municipal. Praça Rui Barbosa. 1905

Rua 15 de Novembro. 1923

12
1. Cativeiro e Liberdade:
A ESCRAVIDÃO E A SUBSTITUIÇÃO DA MÃO-DE-OBRA
ESCRAVA PARA O TRABALHO LIVRE1

A
o tratarmos sobre o processo de imigração para o Brasil, es- Vicente de Paula Albani
pecialmente nas últimas décadas do século XIX, precisamos
compreender que, dificilmente podemos entender como o pro- Sobre a origem da família:
cedimento de substituição do trabalho escravo para o trabalho livre se
efetivou sem nos atentarmos para o complexo universo escravista e
suas questões políticas, sociais e econômicas. ‘‘ Eu nasci em Alegre. Pelo que eles contavam
(meus familiares), eles embarcaram em
Gênova, na Itália. Os navios eram a vapor e
Desse modo, a análise de Ricardo Salles acerca da es- as viagens eram complicadas. Foi uma viagem
cravidão torna-se bastante reveladora quando nos questionamos bem lenta e eles vieram para o Porto do Rio
sobre aquela instituição: “a escravidão era considerada como uma de Janeiro, outros pelo Porto de Santos em São
peça necessária, ao mesmo tempo, incômoda e isolada da socie- Paulo, e de lá tinham uns agentes que ficavam
dade imperial. Algo como uma caixa de gordura em uma casa: negociando a ida dessas famílias para o
até que apresente problemas, é ela parte da qual frequentemente interior do país para desenvolver a
nos esquecemos (SALLES, 2013, p. 115)”. Assim, tomamos como agricultura, mesmo porque era um período
ponto de partida a frase de Salles, pois de fato, a escravidão era que tinha acabado a escravidão no país,
algo tido como um “mal necessário”, mas que, devido às pressões quando aconteceu essa grande leva de
externas e a uma série de questões internas, a instituição escra- imigrantes, não só italianos, como de outros
vista viu seus pilares se desmoronando especialmente a partir da também, vieram para o Brasil justamente
segunda metade do século XIX. para suprir a mão de obra escrava.
Foi no ano de 1880, daí para frente, quando
Como já dito, o governo nacional sofreu diversas pressões estava acabando a escravidão em 1888, minha
externas, especialmente feitas por parte da Inglaterra desde o início família veio, mais ou menos 1892. Eles não
do século XIX, quando este país fez com que o Estado Brasileiro sabiam nem para onde estavam indo, alguns
assinasse diversos tratados que visavam gradativamente a abolição pegaram novos navios e vieram, foi o
da escravatura. Desse modo, devido às interferências externas, o que aconteceu com meus familiares, pegaram
monarca brasileiro negociou e aceitou realizar tais acordos que alme- um navio no Rio de Janeiro e vieram
javam o fim do tráfico negreiro entre as décadas de 1810 a 1820, não para o Porto de Benevente e outros para o
sem antes mostrar-se resistente (CONRAD, 1978, p. 31). Porto de Itapemirim, perto de Marataízes.
Havia um porto muito grande ali com muito
movimento, ali eles desembarcaram e foram
1 Este tópico referente à escravidão é um desdobramento da dissertação de Melli- obrigados a fazer quarentena, para saber se
na de Fátima Neres de Sousa Curty intitulada: O movimento emancipacionista na
perspectiva das elites políticas na Província do Espírito Santo, 1869-1888, apre-
não tinham nenhuma doença, porque naquela
sentada ao Programa de Pós-Graduação em História Política da Universidade do época não tinham vacinas e nem remédios,
Estado do Rio de Janeiro, 2014. então eles tinham que ficar lá por observação
13
História e memória: a trajetória do imigrante italiano na Região Sul do Espírito Santo | Praia Editora

durante 40 dias, para daí serem designados A evidência de que esses tratados não eram postos em prá-
para as fazendas. Enquanto ficava a tica por conta do governo brasileiro foi que em 1831 foi criada a Lei
negociação dos agentes com os Feijó, cujo propósito era que “todos escravos, que entrarem no territó-
fazendeiros. Naquela época já existia até rio ou portos do Brasil, vindos de fora, ficam livre”2 . Porém, apesar de
propina, os agentes recebiam para enviar os todo o controle, vigilância e da lei recém-criada, não houve a diminui-
escravos para outros lugares, inclusive, aqui ção do tráfico transatlântico. Pelo contrário, houve uma escravização
no Espírito Santo houve uma grande revolta de africanos em massa, especialmente entre os anos de 1835 a 1850,
na região de Aracruz, lugar que recebeu a cujo período acabou sendo denominado como uma “segunda escravi-
primeira vinda de imigrantes no estado. dão” (MARQUESE , 2013, p.56).
Um agente prometeu ‘mundos e fundos’ para
os italianos, e quando eles chegaram não era Em consequência dessa questão, ou seja, pelo não cumpri-
nada daquilo que eles haviam falado. mento efetivo da lei de 1831, o governo brasileiro continuou sofrendo
Os imigrantes se rebelaram contra o agente, diversas pressões que culminaram com mais uma elaboração de lei:
houve até intervenção do governo, acabaram a Eusébio de Queiroz que, pretendia a repressão do tráfico de africa-
levando os italianos revoltos para o sul do nos no Império, estabelecendo que:
Brasil. Eles se encontram hoje no Rio Grande
do Sul e são bem-sucedidos. A minha
família veio nessas levas. Saíram do As embarcações brasileiras encontradas
Porto do RJ, vieram para Cachoeiro de em qualquer parte, e as estrangeiras en-
Itapemirim, depois para região de Muqui e contradas nos portos, enseadas, ancora-
posteriormente Alegre e Guaçuí, e se douros, ou mares territoriais do Brasil, ten-
estabeleceram aqui nesta região. Os homens do a seu bordo escravos, cuja importação
foram trabalhar nas construções das estradas é proibida pela Lei de sete de Novembro
de ferro. Os túneis de Alegre, a maioria foi de mil oitocentos e trinta e um, ou haven-
feita por mão de obra de imigrantes, do-os desembarcado, serão apreendidas
inclusive, de italianos, e trabalharam pelas Autoridades, ou pelos Navios de
também nas lavouras de café. Neste meio guerra brasileiros, e consideradas importa-
tempo começaram a derrubar matas doras de escravos.3
para poder plantar o café e nisso foram
conseguindo dinheiro, e comprar as
terras que eles trabalharam. A aprovação dessa lei nos revela que, pelo menos um dos
Aqui então eles foram se expandindo com sustentáculos da instituição escravista, que era o tráfico negreiro,
muitas dificuldades, muitos morriam com
picadas de cobras, outros por decepção de não 2 Essa lei fazia algumas exceções como por exemplo em relação ao escravo
ser o Brasil que eles esperavam. Eu por que fugisse, dentre outras. Coleção Leis do Império do Brasil de 1871, Rio de
exemplo tenho uma bisavó que morreu Janeiro. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-
por tristeza, porque ela ficou totalmente -37659-7-novembro-1831-564776-publicacaooriginal-88704-pl.html. Acessado em
4 de outubro de 2017.
decepcionada com o que ela encontrou aqui, 3 Coleção Leis do Império do Brasil de 1871, Rio de Janeiro. Disponível em: http://
e não tinha dinheiro para voltar e sentia www.camara.leg.br/Internet/InfDoc/conteudo/colecoes/Legislacao/Legimp-36_23.
muita falta dos parentes que ficaram lá, pdf#page=6. Acessado em: 4 de outubro de 2017.

14
acabou por ruir. Mas, a abolição do tráfico não necessariamente além da vida na Itália ser melhor do
significava acabar de vez com a escravidão brasileira naquele mo- que aqui no Brasil. Ela veio atrás de um
mento. E como nos é sabido, o cativeiro teve vida por mais trinta e grande amor, que era meu bisavô, mas
oito anos após a lei Eusébio de Queiroz, para que assim, houvesse chegando aqui não se adaptou. Muitos vieram
a abolição total com a Lei Áurea. para o país sem passaportes, escondidos na
terceira classe, como clandestinos.”
Como consequência imediata da lei do fim do tráfico, polí-
ticos e fazendeiros se preocupavam cada vez mais com o proble- Sobre as tradições
ma da questão servil no Brasil. Ao buscarem remediar tal proble-
mática, algumas saídas para que se substituísse a mão-de-obra
escrava para o trabalho livre foram apontadas sem que houvesse
grandes prejuízos para a economia brasileira, embora, ao longo da
‘‘ A tradição maior que a gente preserva
é quanto a religião, o catolicismo,
principalmente a noite de natal, aquela
década de 1860, a grande lavoura já apresentava sinais de crise tradição de fazer a ceia, a semana santa,
no que tangia à mão-de-obra cativa. Nesse sentido, como forma são mais tradições religiosas.”
de se reparar esse problema, uma das propostas levantadas foi
a vinda de imigrantes cujo papel seria não apenas trabalhar na Sobre a infância
lavoura, mas colonizar e também embranquecer o país (no caso
dos europeus).

A vinda de imigrantes foi uma medida em que muitos lati-


‘‘ Minha infância foi aqui em Alegre e foi com
direito a tudo que uma criança de interior tem
direito. Todas aquelas brincadeiras do interior,
fundiários e políticos concordavam. Todavia, um dos grandes pro- uma casa com muita gente, muita criança, só
blemas a ser resolvido era: que tipo de imigrante trazer para o alegria. Conhecia apenas uma avó, os outros
Brasil? Nesse aspecto, também foram sugeridas diversas naciona- já haviam morrido quando eu nasci.
lidades, como: os estadunidenses, os chins (asiáticos) e indianos. Essa avó viveu até os 102 anos. Meus avós
Como já ressaltamos, o problema servil na grande lavoura apre- morreram novos para época. Tem uma dança
sentava sinais de crise na década de 1860 e foi, especialmente chamada Tarantela, é uma dança pulando, é
no ano de 1866 que o Governo Imperial e os Estados Unidos ce- como se eles estivessem matando as tarântulas.”
lebraram o transporte de imigrantes dos EUA para o Brasil (SILVA,
1986, p. 25) como possibilidade de solução para o trabalho livre. E, Sobre saudades
essa parceria entre o governo brasileiro com o governo norte ame-
ricano foi executada sob a chefia de Quintino Bocaiúva quando Tenho saudades das festas e desfiles escolares
este era agente de imigração do país. Porém, essa parceria não que tinha aqui em Alegre, dos bailes, dos
ocorreu sem que o governo estadunidense 4 tivesse as devidas passeios pelas ruas, das pessoas poderem
sentar nas praças e conversar. Do restaurante
4 Em 1867 foi enviado um manuscrito dos Estados Unidos da América aos Pre- Casa Velha até a Praça do Pico de Bandeira,
sidentes de província do Império Brasileiro pelo agente Quintino Bocaiúva. Nes- a rua ficava interditada para esses encontros,
se manuscrito, o governo dos Estados Unidos buscava esclarecer as condições todo sábado e todo domingo, era como se fosse
em que seus cidadãos seriam submetidos ao chegarem em terras brasileiras. Ver
esse documento em: SILVA, Eduardo (Org.). Ideias Políticas de Quintino Bocaiúva.
uma rua de lazer. A gente não pode ser muito
Cronologia, introdução, notas bibliográficas e textos selecionados. Rio de Janeiro: saudosista, mas os valores que preservamos
Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986.  antes fazem falta, como respeitos aos pais,
15
História e memória: a trajetória do imigrante italiano na Região Sul do Espírito Santo | Praia Editora

professores, hierarquia. Hoje os pais não respostas acerca das condições em que seus compatriotas seriam
colocam limites nos filhos. A minha educação submetidos em solo brasileiro e mesmo com essa colaboração en-
foi muito rígida e a dos meus pais deve tre ambos países, o problema de mão-de-obra permanecia eviden-
ter sido mais rígida ainda. te, o que fez com que o Império brasileiro deslocasse o olhar para
imigração europeia, especialmente.
Carolina Palumbo Faria
Nesse sentido, em relação a esse tipo de imigração, o
Sobre a chegada ao Brasil Governo Imperial Brasileiro almejava uma política de criação de
núcleos de coloniais cujo intento principal era o enriquecimento
O meu pai quando veio para o Rio de Janeiro, e civilização mediante à fundação de comunidades indepen-
veio a chamado de um tio dele, ele veio e ficou dentes, que tivessem acesso às terras e comércio, mas que, na
no Rio, fez diversas coisas, mas depois ele foi realidade, a criação dessas comunidades não atingiram o re-
chamado para trabalhar em Carangola para sultado esperado pois a estrutura econômica e social do Brasil
ser assim, chefe de uma concessionária suprimia esse desenvolvimento por ter como base o sistema de
chamada “Pistono”, então ele foi chamado para latifúndio (CONRAD, 1978, p. 48). Além disso, a vinda desses
ser chefia. Ele foi chefe dessa concessionária de imigrantes não modificaria apenas uma estrutura escravista já
fabricação de peças. Então ele trabalhava em enraizada na sociedade brasileira, mas também transformaria
vários fornos, para fabricar peças, essas coisas, algo profundamente complexo, como as relações entre traba-
e lá conheceu a mamãe, e se casaram lá em lhador e latifundiário. E, nesse sentido, o imigrante europeu não
Carangola. E para aqui para Guaçuí, eu vim se sujeitaria às relações de trabalho semelhantes às da escra-
quando eu tinha 5 anos. Não lembro vidão. Desse modo, como resultado dessa questão, “a imigra-
exatamente, mas sei que foi depois da guerra, ção também não constituiu uma solução para o problema da
a Primeira Guerra Mundial. Ele era mecânico, mão-de-obra até que a crise do final da década de 1880 forçou
então ele trabalhava lá em consertar os aviões os fazendeiros a tomarem medidas de emergência para aumen-
daquela época, era mecânico oficial de lá, eu tar o fluxo dos europeus para as fazendas produtoras de café
não sei se ele era tenente, não sei, não sei dizer. (CONRAD, 1978, p. 49)”.
Aí naquela época sem empregos... foi
chamado por um tio do Rio de Janeiro, e Como percebemos, a discussão em torno da escravidão
diz ele que trabalhou até em lavar pratos. e da substituição do trabalho escravo para o livre foi algo que
Até ser chamado por Italianos que trabalhavam permeou os ditames políticos e econômicos da época, o que pro-
lá em Carangola, e tinha essa oficina vocou intensos debates por políticos e por latifundiários. Além
‘Pistono’, de altos fornos, então ele veio disso, outro fator que contribuirá de forma decisiva para que de
para ser chefe dessa oficina. fato se encontrasse uma solução para tamanho problema foi a
E ele nasceu em 1894, meu pai é de 1894, promulgação da Lei do Ventre Livre em 1871. Esta lei efetivada
ele é do século XIX. E ele veio para o Brasil em 28 de setembro daquele ano tornava livre todos os filhos de
depois da Guerra. Ele deveria ter uns 22 anos. escravas nascidos a partir daquela data. Ou seja, esse foi o golpe
Anos após meu nascimento ficamos um ano e derradeiro apontando que, a partir de 1871, não nasceriam mais
pouco (na Itália), ele foi fazer tratamento lá, escravos no Brasil. Assim, a efetivação da lei do Ventre Livre pos-
então a doença estabilizou e teve um problema teriormente criada à lei Eusébio de Queiroz deixava claro que, o
na sétima vértebra, e ficou uma paralisia na fim da escravidão estaria próximo, dado que, já não era permitido
16
o tráfico transatlântico de escravos e que a partir de 1871, os perna esquerda. Então ele não
filhos de escrava nasceriam livres. Entretanto, apesar da lei de pode mais trabalhar em altos fornos,
1871, a instituição escravista não teve e não teria seus dias con- aí teve que aprender outra profissão, pois
tados de imediato, pois a lei do Ventre Livre, apesar de conferir não podia mais trabalhar em altos fornos,
a liberdade do recém-nascido, era permeada por ambiguidades. por isso que ele aprendeu com meu
Estas ficavam evidenciadas pois, a referida lei possibilitava que avô que morava lá em Carangola.
o escravo adquirisse uma reserva em dinheiro mediante suas Ficamos um ano lá na Itália, ou quase dois anos.
economias obtidas por seu trabalho, mas desde que houvesse Aí viemos para Carangola e depois ele veio
consentimento do senhor. Além dessa questão, a lei ainda permi- passear em Guaçuí, gostou daqui e ele resolveu
tia que, o senhor poderia optar por receber uma indenização do mudar para cá, com aquela coragem...
Estado quando essa criança completasse oito anos de idade, se
isentando de qualquer responsabilidade, ou poderia escolher fa- Sobre o casamento dos pais
zer uso do serviço dessa criança até que esta completasse vinte
e um anos de idade. 5 Então eu sou assim, nascida em
Carangola, mas de coração sou de Guaçuí.
Apesar da nova lei começar a minar o edifício da institui- - Então seu pai conheceu sua mãe
ção escravista libertando os filhos das escravas, esses senhores em Carangola mesmo?
poderiam se utilizar da mão-de-obra dessas crianças até os vinte Sim, e naquela época, ele passava e via ela na janela
e um anos, ou seja, em tese, o sistema escravista estaria asse- e aquele negócio todo, meu pai tinha um belo porte e
gurado pelo menos até o ano de 1892. Mas como já apontado, mamãe era muito bonita e assim acabaram se casando,
questões externas e especialmente internas fizeram com que a quem escreveu para a Itália, foi o pai de mamãe para
escravidão fosse extinta em 1888. E, apesar dos políticos da épo- saber a situação, isto é, se ele podia casar.
ca tentarem adiar o fim do cativeiro, ficava cada vez mais evidente - Oh! Mandou carta para lá para saber
a necessidade de se substituir o trabalho escravo para o trabalho sobre seu pai, olha que legal! (entrevistadora).
livre, tendo como solução mais eficaz a imigração. Porque o vovô, ele trabalhava no consulado,
tomando conta de pessoas estrangeiras,
No que tange a essa questão, foi realizado no ano de de cartas, documentos...
1878 o Congresso Agrícola no Rio de Janeiro cujo objetivo era
propor medidas que acalmassem a inquietação por parte dos po- Sobre o sustento da família
líticos e latifundiários frente à lavoura. Nesse sentido, o então
Ministro da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, senhor João - Ele (meu pai) não veio para trabalhar nas
Lins Vieira Cansansão de Sinimbu (chefe do partido Liberal e lavouras de café, veio para a profissão dele mesmo.
presidente do Clube da Reforma) convocou lavradores nacionais Ele já era engenheiro formado mecânico.
para compor o debate realizado pelo Congresso Agrícola do Rio
de Janeiro. Desse modo, a configuração dos latifundiários convo- Sobre religião
cados por província foi:
- O pai da senhora era católico?
5 Coleção Leis do Império do Brasil de 1871, Rio de Janeiro. Disponível em: http://
Sim, ele se dava muito bem com o Padre Miguel.
www.camara.leg.br/internet/infdoc/conteudo/colecoes/legislacao/legimpcd-06/ Ele que fez o anel do Padre, anel do Monsenhor.
leis1871/pdf17.pdf#page=6. Acessado em: 4 de outubro de 2017. - Olha só!
17
História e memória: a trajetória do imigrante italiano na Região Sul do Espírito Santo | Praia Editora

O labor como ourives Assinaram o livro de Inscreveram-se sem Total


presença do Congresso assinalar o livro
O anel que o Padre Miguel tem..., aliás, ES 5 2 7
tinha, porque está no museu... foi uma pedra MG 57 18 75
linda, e tem um outro também, o Padre SP 66 34 100
Macário, foi meu pai que fez o anel dele
RJ 141 59 200
também. Então ele fazia essas joias. Mas a
Município
especialização era fazer relógios, consertar Neutro
7 4 11
peças e depois que foi vindo as outras coisas, Sem
vai fazendo as misturas de ouro, porque informação
2 4 6
antigamente vendia-se muito, tipo coroa
de dente, mas fina que tem, misturava * Dados retirados da introdução José Murilo de Carvalho In: RIO DE
com prata, com cobre em determinadas JANEIRO, Anais do Congresso Agrícola, 1878. Edição fac-similar. Rio
quantidades para fazer um ouro mais de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1988.
baixo e fino para trabalhar com joias.
Dentre as diversas temáticas abordadas (crédito, instrução,
Sobre o acolhimento na cidade força de trabalho) a principal era referente à substituição do trabalho es-
cravo para o livre e como já dito, foi levantada a possibilidade de se fazer
- E sobre a cidade, Dona Carolina, seu pai era uso do trabalho asiático nas lavouras. Entretanto, a maneira de se pro-
bem acolhido na cidade? ceder a essa substituição, causava discordâncias entre os proprietários
Nossa senhora, éramos muito bem acolhidos, de terras. A maioria dos senhores de terra acreditava que a imigração
nunca fomos rejeitados por ninguém. de asiáticos poderia ser uma solução temporária para o problema da
- Que bom, né! escassez de braços para lavoura, entretanto, outra parte significativa dos
A gente sempre era convidado para as latifundiários condenava tal medida pois, estavam imbuídos por precon-
melhores festas da cidade, em carnavais, ceitos raciais contra os asiáticos até mais fortes quando comparados
em bailes, e tudo mais, o pessoal nos aos africanos, dado que, para aqueles latifundiários os asiáticos eram
tratava muito bem! cdegenerados pelo ópio (CARVALHO, 1988, p. vii).

Sobre a Segunda Guerra Mundial Acerca desse problema, ficava evidente que a maior urgên-
cia era adquirir um novo tipo de mão-de-obra para a lavoura que já
- Por que, se eu não me engano, quando eu sofria consequências devido à escassez de trabalhadores. Assim, o
era criança na casa da senhora não tinha a lavrador Sr. José Cesário de Miranda Monteiro de Barros (de Cacho-
plaquinha do relojoeiro Palumbo? eiro de Itapemirim) representando a Província do Espírito Santo, pe-
Não, nos nunca tivemos placa. diu a palavra alegando que:
- Nem uma pequenininha, uma
coisa para indicar?
Relógio, só um relógio. Só que depois que meu A primeira necessidade real é a de braços,
pai morreu minha mãe achou que tinha que porque o fornecimento de capitais, por si só,
tirar o relógio por que a meninada era muito não salvaria a lavoura da crise que ela atra-
sem vergonha, batia no relógio e ele era um vessa e que terá de perdurar nestes próxi-
18
Rua Dr. Wanderley. 1905 Rua Dr. Wanderley. 1922

Rua Dr. Wanderley. 1925 Rua Dr. Wanderley. 1928

19
História e memória: a trajetória do imigrante italiano na Região Sul do Espírito Santo | Praia Editora

relógio artesanal, aí a mamãe mandou tirar, mos anos. O fornecimento de capitais em


sabe, depois que o meu pai morreu. abundância, a juro barato e a largo prazo,
O pessoal sentiu muita falta do relógio, muita poderia dar lugar ao abuso do crédito e daí
falta mesmo, na época da Segunda Guerra provir ruína maior, senão total, da grande
Mundial eles quiseram quebrar o relógio. maioria dos lavradores do país.6
- Então teve, na época da Segunda Guerra,
uma certa implicância?
Teve uma certa implicância sabe, então Nesse sentido, aquele lavrador pediu novamente a palavra e
foi muito chato, foi chamado na delegacia apresentou um projeto almejando:
e tudo, mas não teve problema porque
não tinha nada a temer.
- E ele sempre foi muito bem quisto? Que a primeira necessidade da lavoura é a
Muito, tem pessoas que ainda lembram aquisição de trabalhadores livres mediante
dele, pessoas mais jovens, ele gostava salários módicos, e de trabalhadores que se
muito de ler esses livretos de detetives, a habituem ao nosso clima, e ao sistema de
garotada vinha trocar com ele direto, tem lá cultura extensiva, que em geral e por mui-
até hoje os livros guardados lá em tos anos [será] quase a única do Brasil; para
casa, sabe, cada conto bom. cujo fim de modo algum se poderá contar por
- Seu pai falava alguma coisa da guerra? enquanto com os europeus, devendo-se an-
Casos. Brincadeiras que faziam, diz ele que tes preferir, como um meio de transição entre
tinha tanto piolho que faziam corrida de o trabalho servil e o de todo livre, a aquisição
piolho de tanto piolho que tinha, uma vez o de trabalhadores de outros povos de raça ou
chefe lá falou que veio um avião com defeito, civilização inferior à nossa própria.7
mas o defeito tinha que subir no ar para ele
ver o defeito, ele disse assim: “não vou, não.
Eu conserto aqui na terra, mas voar não vou, Tal projeto nos aponta a urgência em se resolver a questão do
não”, então ele contava que o comandante lá braço trabalhador, não conferindo tanta importância para o tipo de nacio-
falava: “então você vai para o front, você vai nalidade, desde que os empregados recebessem baixo salário e se acos-
lutar no front”, ele dizia: “vou, mas não subo tumassem ao nosso clima. Para além disso, o citado lavrador do Espíri-
no avião”. Então quando foi depois o to Santo ainda advertia que infelizmente não poderíamos contar com os
comandante precisou dele, aí ele disse: “volta, imigrantes europeus naquele momento. Em contrapartida, outro lavrador
preciso de você aqui na terra mesmo”, essa representante de São Mateus, região norte da Província do Espírito Santo,
“bobajada” assim que ele contava. o senhor Francisco Antonio da Motta alegava que em relação a mão-de-o-
- Então ele não chegou ir para a frente? bra de chinesa, se fazia contrário à colonização de chins ao Brasil.8
Entrevistada: Não, por que ele era mais
necessário ficar mais para consertar, por que Como já ressaltado, o tipo de mão-de-obra a ser empregada
naquela época aqueles teco-tecos, você já deve
ter visto em televisão, inclusive em Guaçuí 6 Anais do Congresso Agrícola do Rio de Janeiro, 1878, p. 130. 
já teve, na época que inaugurou o campo de 7 Anais do Congresso Agrícola do Rio de Janeiro, 1878, p. 130.
aviação, ou você não lembra? 8 Anais do Congresso Agrícola do Rio de Janeiro, 1878, p. 192.

20
dividiu opiniões entre latifundiários e políticos. Todavia, o que se sabia Sobre o campo de aviação
era que deveria ser feita uma mudança do tipo de trabalhador utilizado
na grande lavoura e que tal medida deveria ser urgente, pois como já Agora tem muitas casas ali, porque ficava
exposto, as leis progressivas para o fim da escravidão evidenciavam que muito no meio das casas. Não sei o que, mas
o fim estava próximo e que a grande preocupação residia em fatores nós tivemos avião aqui até de duas hélices, foi
econômicos, para que assim, a lavoura não sofresse profundos abalos. um show. A primeira vez que veio aqui foi um
show, nossa gente assim lá no campo, Guaçuí
À vista disso, especialmente por questões internas, a escravi- não tinha nem isso aqui que tem hoje em dia.
dão estava perdendo sua força e particularmente ao longo da década Eu falo assim gente, cada um faz um
de 1870 o movimento imigrantista se fez presente não apenas a nível pouquinho e se não tivesse, não tinha esse
nacional, mas a nível local, como por exemplo, na Província do Espí- Guaçuí que tem hoje em dia, isso aqui não
rito Santo. Porém, esse movimento vai se fazer singularmente mais era nada. Hoje é esse progresso, temos de
forte ao longo da década de 1880 quando não apenas o movimento tudo. Hospital - bons supermercados, colégios,
abolicionista nacional e local ganhará mais força, mas também quando firmas comerciais, etc., eu só posso agradecer
associações de imigração se fizeram mais presentes no Brasil e no esses anos todos que moro e vivo aqui.
Espírito Santo. Desse modo, os deputados da citada Província parabe- Obrigada meu Deus!
nizaram no ano de 1884 a instauração da Sociedade Central de Imigra-
ção, congratulando-a pelos esforços que estavam sendo empregados Teresinha de Jesus Rosestolato Toalhar
para o estabelecimento de europeus no Brasil. Assim, declarou que a
“[...] Assembleia espera na atual sessão tomar medidas que auxiliem Sobre a vida na Itália
os elevados e patrióticos intuitos daquela benemérita associação, afim
de que sejam convenientemente recebidos os imigrantes[...].”9 Quando eles vieram da Itália, eles moravam
na Itália, e a vida lá estava muito difícil,
Paralelo ao incentivo à vinda de imigrantes europeus, o movi- pessoal estava quase passando fome, que era
mento abolicionista se fazia cada vez mais presente e mais forte. Não uma miséria. O meu pai morava em Verona...
apenas no âmbito nacional, mas em âmbito local. Diversos jornais da meu pai, não, os meus avós, que eu vou contar
capital da Província do Espírito Santo evidenciavam que a escravidão história, porque foram eles que vieram,
chegaria ao fim em breve, uma vez que, em 1884, a Província do Ceará e os avós paternos eram de Verona,
havia abolido a escravidão quatro anos antes da promulgação da Lei e os maternos eram em Sicília.
Áurea e além disso, mais uma lei foi assinada em 1885 cujo objetivo era
a libertação de escravos a partir de sessenta anos de idade. Nesse senti- Sobre a chegada ao Brasil
do, tal lei, embora possa ser considerada injusta, visto que, libertava uma
pessoa que já dispendeu praticamente toda sua força e vigor durante os Quando eles vieram no navio, pararam em
anos de cativeiro, sacramentou o fim da instituição escravista, pois essa Santos. Quando chegou em Santos, ali o que
nova norma fez parte de um corpo legal que minou as possíveis formas que eles fizeram... os fazendeiros aqui, na
de se manter a escravidão no Brasil por muito tempo. época, os cafeicultores estavam precisando
de mão-de-obra. Então, eles entraram em
Dessa forma, o contexto nacional a partir da criação dessas contato com os da Itália, né, pra trazer alguns
imigrantes pra cá. Foi quando eles vieram. Me
9 Anais da Assembleia Legislativa da Província do Espírito Santo, 1884. parece que o meu pai, quando veio, ele veio na
21
História e memória: a trajetória do imigrante italiano na Região Sul do Espírito Santo | Praia Editora

barriga da minha avó, quase que nasce no leis emancipacionistas graduais juntamente com o recrudescimento do
navio, ele quando chegou aqui... foi em 1890, movimento abolicionista e a partir da criação de sociedades de imigra-
foi quando meu pai nasceu. ção fizeram com que, ao longo da década de 1870, mais especialmente
durante a década de 1880, diversos grupos de libertação, inclusive os
Sobre a vida no Brasil próprios senhores de escravos contribuíssem para a alforria de escra-
vos. Tanto que, a partir do início de 1888, alguns senhores de escravos
Então, eles foram pra Sorocaba. De Sorocaba das localidades do sul do Espírito Santo, especialmente de São Miguel
começaram a dividir, então quando foi dividido, a do Veado (Guaçuí) buscaram se antecipar e alforriaram seus escravos
família da minha mãe foi pra uma fazenda cha- incondicionalmente (MARTINS, 2002, p. 219).
mada FAZENDA DO CAPIM, em Minas Gerais,
que eu visitei. Eu visitava porque eu sou curiosa, e Assim, o senhor Francisco Ourique de Aguiar, fazendeiro na
perto de Tombos, em Carangola, mas essa fazenda Freguesia de São Miguel do Veado “declarou libertos sem condição al-
ainda existe lá, e meu pai ficou por aqui, mas guma a todos os seus escravos em número muito superior a cem (100)
depois eles foram levados pra um lugar chamado tendo anteriormente conferido muitas cartas de liberdade a outros seus
FAZENDA DO OURO, no lado de Santa Clara. escravizados que não fazem parte deste grupo”.10 Ainda sobre a liberta-
Tudo naquele redor de Minas por ali, então foi ção de escravos na Freguesia do Veado, foi publicada uma matéria em
lá onde ele conheceu a minha mãe, aquela coisa abril de 1888 no jornal O Cachoeirano na qual foram congratulados “dois
toda... já estava rapazinho, mas dali eles levaram distintos cavalheiros”, os senhores Francisco Ourique de Aguiar, “que
eles, cada um levava sua turma pra trabalhar. só ele libertou perto de duzentos escravos” e o senhor José Domingos
Eles eram completamente analfabetos, conheciam Viana, ex-escrivão daquela freguesia por terem libertado seus cativos.
nada, não sabiam o A, eu que ensinei meu pai Desse modo, o autor da matéria parabenizou os referidos senhores da
e minha mãe pra poder votar, porque eles eram seguinte forma: “Louvores, mil louvores aos habitantes da freguesia do
doidos pra votar, aí eu ensinei pra eles poderem Veado. Vai pois a freguesia do Veado ser a primeira na Província do Es-
votar, sabe? pírito Santo a [cingirá] o diadema da redenção dos cativos”.11
E então, o que acontece: quando lá, eles põem ela
no galpão e os fazendeiros tinham essas vendinhas A partir de tal situação, ficava evidente que o término de uma
deles; era igual aquelas vendas que tinha na roça, instituição que perdurou no Brasil por quase quatro séculos chegaria ao
e ali eu não sabia ler, era uma burrada danada, fim em breve e que após um longo período de escravidão, permeado
né, que eles eram analfabetos, e sempre tinha por contradições e injustiças que em maio de 1888 o jugo do cativeiro
algum vivo que puxava o saco do fazendeiro, né. foi extirpado no Brasil mediante a assinatura da Lei Áurea e que, mais
Eles pegavam trabalhavam igual burro a semana uma vez, após mais de cem anos de sua promulgação nos questiona-
inteira, quando chegava o fim da semana, ia fazer mos em relação à sua eficácia devido aos resquícios da escravidão
aquela comprinha, eles compravam muita cachaça que infelizmente ainda se fazem presentes em nossa sociedade.
e fumo de rolo, que eu tenho uma caderneta do
meu avô, quando fazia compra quando chegava o
fim da semana não tinha quase dinheiro nenhum
pra comprar comida, porque já tinha gasto,
segundo os que vendiam, já tinha pegado tudo, foi
quase uma coisa de escravo, só não apanhavam. 10 O Cachoeirano, Abril de 1888, Edição 000015, p. 2.
Ficavam sempre devendo o patrão. 11 O Cachoeirano, Abril de 1888, Edição 00016, p. 2.

22
2. Do outro lado do Atlântico:
O CONTEXTO EUROPEU E A IMIGRAÇÃO
ITALIANA PARA O BRASIL

A
partir da segunda metade do século XIX, países como a Ale- Sobre a origem dos pais
manha, a França e a Áustria haviam se unido à Bélgica e a In-
glaterra no conjunto de nações industrializadas (HOBSBAWM, - Mas então, tanto o pai, tanto a mãe da
1988, pp. 7-8). Em consequência disso, a jovem Itália, finalmente unifi- senhora eram filhos de italianos, mas eles já
cada em 1860, passou por um processo de desestruturação socioeco- nasceram no Brasil? É, meu pai e minha mãe
nômica e tornou-se uma espécie de periferia destes países (RÉMOND, nasceram no Brasil e minha mãe nasceu em
1997, pp. 151-154). De acordo com o historiador inglês Eric Hobsbawm Minas; ela é mineira e o pai era paulista.
(1979, p. 203), movimentos populacionais e industrialização andam - E tanto a condição do seu pai e da
juntos, já que o desenvolvimento econômico moderno do mundo pede sua mãe eram a mesma, né? Era péssima,
mudanças substanciais junto aos povos e, por outro lado, facilita tais a gente era muito pobre e quando viemos
articulações tornando-os tecnicamente baratos e mais simples através aqui pra Guaçuí, eu vim com 2 anos.
de comunicações novas e melhores, assim como evidentemente per-
mite ao planeta manter uma população bem maior. Sobre a vida no Espírito Santo

A conjuntura de industrialização, o contingente de seres Aqui meu pai foi carroceiro; ele trabalhava pro
humanos que seguiram da Europa para outros continentes, entre os meu tio, depois ele foi lenhador, que eu peguei
séculos XIX e início do XX, foi responsável por uma das mudanças e escrevi a minha história, que aí, eu fui uma
mais drásticas de todos os tempos: aumento dos habitantes das que puxei nessa cidade o burrinho com lenha
Américas de cerca de 30 a quase 160 milhões entre 1800 e 1900 pra vender, porque não tinha gás, tinha tanta
(RÉMOND, 1997, p. 95). Na visão do historiador Sérgio P. de Paula gente que vendia lenha na época, e tinha um
(2013, p. 34), a emigração massiva aliviou a pressão social inter- senhor aí, que eu chegava e corria toda
na na Europa e, de certa forma, resolveu uma crise antes que ela pequeninha puxando o burrinho e voltava
se tornasse uma revolução. Nesse sentido, o impacto das transfor- falando: “Doutor Joarez, compra lenha nossa,
mações políticas e socioeconômicas deteriorou rapidamente a vida a gente precisa comprar comida”, ele dizia:
rural, levando à subnutrição e tornando uma grande parcela da po- “Minha filha, aqui tem tanta lenha”. Mas é
pulação mais susceptível as doenças. Dessa forma, Celso Furtado muito interessante minha história, mas aí
(2008, p. 187) afirma, por exemplo, que “(...) a pressão sobre à terra, meus pais vieram. Quando ele foi lenhador, ele
do excedente de população agrícola, fez crescer a intranquilidade trabalhou de varredor de rua, ele foi
social”. Assim, as ações do governo imperial brasileiro para alavan- jardineiro, mas foi uma família que, graças a
car a imigração e aliciar imigrantes, só obtiveram sucesso graças às Deus, quando saíram da Itália, os meus avós
transformações ocorridas no Velho Mundo. saíram de lá e vieram, porque nossos avós
paternos [moraram] junto conosco.
Nesse contexto, o centro capitalista europeu demandava Eu era pequenininha, né, e eu agarrava na
dos continentes americanos uma produção agrícola cada vez maior saia da minha avó para não apanhar, como eu
23
História e memória: a trajetória do imigrante italiano na Região Sul do Espírito Santo | Praia Editora

era muito levada, quando minha mãe ia me para saciar a fome das populações expulsas do processo de raciona-
bater, ela corria e me abraçava, mas depois... lização dos campos, e para fornecer matérias-primas a serem traba-
minha filha... era um problema, né. Mas foi uma lhadas em sua indústria (HOBSBAWM, 1988, p. 50). De acordo com o
vida assim que eles vieram, como papai e mamãe sociólogo italiano Renzo Grosselli (2008, pp. 41-42), demandava tam-
nunca deixou que nós não estudássemos, eu fiz bém a lógica capitalista, novos espaços para onde expedir a mão de
até o 4º ano primário, depois eu tive que obra excedente, que ameaçava tornar-se a origem de deflagrações
trabalhar pra ajudar minha família, com 16 anos revolucionárias, como acontecera em 1848, durante a Primavera dos
eu comecei a trabalhar, sabe, tive que largar tudo. Povos, e em 1870, na Comuna de Paris. E o círculo se fechava cada
Mas hoje eu queria ser uma psicóloga. vez mais: aquela mesma gente, expulsa da Europa, constituiria, mais
tarde, um mercado de escape para a exuberante produção industrial
Sobre alimentação europeia (HOBSBAWM, 1979, p. 150).

De comida o que mais fazia era massas, pão... Dentro do campo acadêmico, durante a primeira metade do
Ela tinha o costume de falar italiano século XX, operou-se uma teoria reducionista para tentar explicar o
quando era pequena. E gosta muito de fenômeno migratório maciço do século XIX e de parte do XX na Europa
dança italiana. A avó falava italiano. (BOURDÉ; MARTIN, 1990, p. 158). De modo geral, a emigração se ex-
Falo um pouquinho de italiano. plicaria, de acordo com esses estudos, a partir da relação entre popu-
lação e recursos, tanto na Europa como na Itália. Para René Rémond
Sobre as condições de vida (1997, pp. 152-153), realmente existe um nexo direto entre crescimen-
to demográfico e emigração: entre 1815 e 1914, por exemplo, a popu-
- Na visão da senhora, a senhora sente que as lação da Europa praticamente dobrou. Em 1800, ela era calculada em
coisas melhoraram? 187 milhões; em 1900, ultrapassa os 400 milhões, tendo aumentado
Melhorou sim, por que todos os seus filhos tem de 214 milhões numa centena de anos. No entanto, alerta o historiador
sua profissão, e eu fiz só até o 2º grau. francês, dados demográficos mais acurados indicam uma correlação e
não uma relação de causa e efeito entre os dois fenômenos. Em outras
Graciano Carlos Pirovani palavras, tais cifras não exprimem senão uma parte do fenômeno.

Sobre a origem dos pais Acerca dessa questão, geralmente as migrações produzem
importantes transformações na estrutura demográfica, social, eco-
Vieram da Itália. Meu pai veio com 11 anos nômica e cultural das regiões interligadas pelo movimento. Assim, o
e a minha mãe veio com 5 anos, 4 ou 5 anos, século XIX, sobretudo na sua segunda metade, caracterizou-se por
5 anos parece. A partida de lá eu não sei uma transferência de grandes contingentes populacionais entre regi-
não, mas a chegada foi em 1895. Foi o ões cujos contextos apresentavam muitas diferenças quanto ao está-
que eu fui informado. gio de desenvolvimento e à evolução demográfica. Destarte, por um
lado, a Europa passava por uma fase de excedente de mão de obra,
Sobre pesquisar as origens da família no de novas relações sobre a utilização da terra, dos serviços e das ofer-
Arquivo Público Estadual tas de emprego, principalmente daqueles pouco especializados. Por
outro lado, o continente americano buscava meios de atrair recursos
Quando eu fui [...], eu não descobri nem do humanos para povoar os imensos vazios demográficos e produzir ri-
meu avô materno e nem do meu avô paterno, quezas (DE PAULA, 2013, p. 34).
24
Rua Major Quintino. 1945
FOTOS DO ARQUIVO PESSOAL CEDIDAS GENTILMENTE

Casa da Família Palumbo Faria Família Palumbo Faria

25
História e memória: a trajetória do imigrante italiano na Região Sul do Espírito Santo | Praia Editora

nada; eu não descobri nada deles, a única A esta altura, insere-se uma nova questão, que distingue
coisa que eu descobri foi que eles vieram de este processo tanto no tempo quanto no espaço: o novo sistema de
navio e que eles desceram em Santos, depois produção capitalista, que simplesmente revolucionou as relações so-
meu pai foi para Ribeirão Preto, ficou uns ciais e econômicas consolidadas há séculos. Para Grosselli (2008, p.
meses só, lá descobriram que ele deveria 43), este sistema introduziu, no equilíbrio entre homem, sociedade e
chegar ao Espírito Santo, e minha mãe, território, germes que o desarticulavam. Desse modo, surgiam novas
engraçado, pelo o que me disseram minha mãe necessidades, novos ideais, um novo modo de viver e de relacionar-
não veio no mesmo navio que meu pai, porque -se com a sociedade, a natureza e a divindade.
ela disse que desceu em Itapemirim, que o
navio dela aportou em Itapemirim, dizem Nesse sentido, mutatis mutandis,12 o século XIX foi uma
que tá até abandonado lá, você já viu? gigantesca máquina para elevar os homens do campo. A maioria
deles foi para as cidades, ou, a qualquer preço, para fora do am-
Sobre a migração biente tradicional rural, em busca do melhor caminho que pudes-
sem encontrar em mundos estranhos, assustadores, mas sobre-
- Qual a motivação de seus pais terem tudo promissores, onde se dizia que o pavimento das cidades era
saído da Itália? feito de ouro, embora alguns emigrantes não encontrassem mais
Promessa de terras e doações, que eles não que algum cobre (HOBSBAWM, 1979, p. 205). Para Hobsbawm
tiveram. Na verdade, os italianos vieram para (1979, p. 212), o capitalismo industrial produziu duas novas for-
o Brasil para substituir os escravos, a verdade mas de viagens de prazer: “(...) turismo e viagens de verão para a
é essa. Foi prometido terra ao meu avô, meu burguesia, e pequenas excursões mecanizadas para as massas”.
pai era criança ainda. Também foi prometido Ambas eram os resultados diretos da aplicação do vapor no trans-
aos irmãos do meu pai, aos irmãos dos irmãos porte, já que pela primeira vez na história, viagens regulares e
dos meus avós, mas nada disso foi cumprido. seguras eram possíveis para grandes quantidades de pessoas e
- Existia então uma propaganda específica bagagem, e por qualquer terreno ou mar.
para a vinda deles?
Sim, pois, para eles deixarem suas terras, na
Itália, só assim. E vinham famílias inteiras e a O grosso da emigração europeia, portanto,
maioria se estabeleceu em Alegre. Na fazenda será constituído principalmente de campo-
da Feliz Lembrança, parece. neses sem terra, de operários sem traba-
lho, de burgueses arruinados. As grandes
Sobre preconceito levas de emigração coincidem com as cri-
ses econômicas que atingem a Europa: os
- O senhor ou a sua família sofreu algum tipo países que contribuem mais substancial-
de preconceito? mente para esse movimento de emigração
Com o povo não tivemos problemas, com essa são os mais atingidos pela falta de trabalho
parte, éramos muito bem vistos mesmo. Só o e pela miséria (RÉMOND, 1997, p. 153).
meu pai que sofreu uma humilhação, mas da
parte do governo não do povo. Na época do 12 Feitas as mudanças necessárias ou convenientes; mudando o que deve ser
Getúlio Vargas, uma diligência invadiu a casa mudado; com as substituições necessárias. Disponível em: www.definitions.com/
do meu pai e tal, chegou chutando a mutatis-mutandis. Acesso em: 22 de outubro de 2017.

26
Uma nova cultura avançava juntamente com um novo modo porta, chamando ele de 5ª coluna, reviraram a
de produção, e agonizavam a cultura camponesa e aquele mundo casa, os cômodos, gavetas, foi uma
feudal que havia sido definitivamente abatido pela revolução indus- humilhação. Depois meu pai foi à delegacia,
trial inglesa, no campo econômico, e pela Revolução Francesa, no houve um bate-boca entre ele e o delegado,
campo político-ideológico (HOBSBAWM, 1988, pp. 3-4). Em virtude eu estava presente. Esse delegado era um
disso, cerca de 8 milhões de pessoas, principalmente espanhóis, ita- monstro, forte mesmo. No entanto, foi um fato
lianos e alemães dirigiram-se para a América do Sul (GROSSELLI, isolado, no mais sempre fomos bem tratados.
2008, p. 43). Na Itália, por exemplo, mesmo na zona rural, penetra-
ram os germes do “novo”, e não poderia ser de outra forma: Sobre a origem da esposa

- Queria até perguntar da sua


Apesar de seu isolamento, também devido esposa, o senhor comentou, ela era
a uma conformação particular do território, descendente de italiano também?
e de seu rígido conservadorismo, a comuni-
dade camponesa italiana apercebeu-se do O pai e a mãe dela vieram da Itália.
que estava mudando. Iluminismo, progres-
sismo, liberalismo, socialismo: direitos do - Também vieram!
homem, igualdade, nação, indivíduo; con- Vieram da Itália, Agnelo Tulio
ceitos e teorias que os alcançaram através e Josefina Lameri.
de jornais, que o camponês naturalmente - Olha, e o nome da sua esposa era Lourdes?
não lia, mas que seus intelectuais, ou seja, É Lourdes Tulio, aí depois casou
seus sacerdotes, liam e em boa parte com- ficou Lourdes Tulio Pirovani.
batiam (GROSSELLI, 2008, pp. 42-43). - Ela nasceu aqui no Brasil?
Nasceu, nasceu, os filhos todos, meu sogro
casou-se aqui como meu pai e minha mãe.
Mesmo sem a violência de uma revolução, o impacto des-
tas novas ideias e tensões sobre aquele mundo, já cansado, era Sobre tradições
decisivo. A Igreja, portanto, que combatia com veemência o libera-
lismo e o socialismo, não podia ao mesmo tempo ignorar as novi- É, vamos dizer assim, eu não posso dizer
dades que se haviam inserido no mundo. Não podia fingir que não se eles continuam, se os meus parentes
existiam e, em sua reação, devia absorver alguns de seus conteú- continuam, mas a maioria, a maioria dos
dos, adaptando-os aos interesses da Igreja (MANTOUX, 1989, pp. meus parentes, posso falar até para você, 70%
62-65). Entretanto, não foram os intelectuais orgânicos13 da classe ou 80% deles continuam na igreja dos meus
camponesa italiana, isto é, os padres e os sacerdotes, os únicos a antepassados, católicos a maioria. Até hoje,
antes do café, eu faço uma oração
agradecendo a Deus por mais uma noite e,
13 Para Antonio Gramsci, “(...) os intelectuais orgânicos servem aos interesses das depois do café, eu me ponho no lugar que tem
classes subalternas de uma função central nos processos e lutas de formação de
uma contra hegemonia contrária aos interesses do capital e dos seus intelectuais
lá embaixo e rezo um rosário. Minha mãe me
tradicionais e orgânicos” (DURIGUETTO, Maria. A questão dos Intelectuais em ensinou as primeiras orações, o pai nosso, o
Gramsci. Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 118, p. 265-293, abr./jun. 2014. p. 267). credo, e depois fui para o colégio e no colégio
27
História e memória: a trajetória do imigrante italiano na Região Sul do Espírito Santo | Praia Editora

adquiri vários hábitos religiosos. A comida serem envolvidos neste processo de mutação. Os próprios campo-
italiana que, de vez enquanto, não neses entraram em contato com o novo mundo:
frequentemente, a gente prepara é a
macarronada.
Todos aqueles, que cada vez mais, tinham
Sobre as primeiras propriedades da família que emigrar, seguindo os trabalhos das fer-
rovias ou levando consigo o conhecimento
Foram todos [os familiares], se de sua profissão, entraram em contato com
localizaram na Pratinha de Santa Luzia um mundo no qual as hierarquias sociais
e ao redor da Pratinha de Santa Luzia. eram profundamente diferentes daquelas a
Todos nasceram nesta região, nós éramos que estavam habituados: a nobreza tornava-
14 irmãos e hoje somos só 2, mas éramos -se menos importante, os padres não eram
14 todos nascidos lá, só 1 que nasceu lá em mais senhores incontestes das consciên-
Alegre num lugar que se chama Córrego do cias, e o relacionamento entre o homem e a
Ouro, eu não conheço. Foi a primeira sociedade, e mesmo a divindade, era menos
propriedade que meu pai comprou, trocou fatalista (GROSSELLI, 2008, p. 44).
por um cavalo, ele tinha um cavalo e
trocou por essa propriedade [...] lá no
Córrego do Ouro e lá nasceu um dos meus As vidas da grande massa de homens e mulheres estavam
irmãos, o mais velho, depois vieram para cá. se transformando, tanto nas cidades quanto nos campos europeus. Por
meio do dinheiro, comprava-se e vendia-se de tudo, das mercadorias à
Sobre o sustento da família dignidade de seus semelhantes. A força de trabalho, sobretudo, podia
ser comprada e vendida, assim como a terra. Esta última, tornou-se uma
- A profissão, então, dos pais do senhor, mercadoria, enquanto para a sociedade camponesa era o fator produtivo
quando eles chegaram, eles foram colonos? que, juntamente com o trabalho, permitia a reprodução da espécie: no
Foram colonos. entanto, as relações capitalistas, invadiram os campos italianos, acres-
- A vida toda foram agricultores? centando-lhes numerosos vetores (GROSSELLI, 2008, pp. 44-45).
Graciano: Sim.
- O senhor e a sua família moraram nessa Por outro lado, o Brasil entrava em uma fase de acelerada
Pratinha de Santa Luzia que é mais para a mutação, que determinou variações substanciais de suas estruturas
região de Alegre, né? políticas, econômicas e sociais (PRADO JR., 2012, p. 160). Para a
É divisa do município de Alegre com o historiadora brasileira Ana Luiza Martins (1999, p. 20), é exatamente
município de Guaçuí. Na verdade o único a partir da segunda metade do século XIX que o Brasil conheceu uma
dos 14 irmãos que estudou fui eu e eu vim transformação de importância histórica, desta vez no campo econô-
para aqui, em 39, pra Guaçuí e meu pai mico: findava a hegemonia econômica do açúcar, que durara três
veio em 1945, deixou a propriedade com séculos e que fizera do Nordeste, sobretudo a Bahia, o coração eco-
os filhos e veio para a cidade em 1945. nômico do país. O preço do produto caiu vertiginosamente e, um dos
Eu fazia tiro de guerra, nessa época, fatores que nos possibilita a compreensão de tal situação foi que, na
meus pais já vieram mais tarde. Europa, se generalizou a produção do açúcar de beterraba, enquanto
Eu vim em 1939 e eles vieram em 1945, meu os Estados Unidos, aumentaram sua produção nos Estados do Sul.
28
Juntamente a esses fatores, sobretudo afirmou-se a economia açu- pai morreu com 80 anos. Vim, em 1939,
careira de Cuba, que substituiria o Brasil como principal produtora porque fui para o colégio. Meu pai estava
(PRADO JR., 2012, p.185). assim, bem cansado, já tinha os filhos
todos criados, casados, então ele deixou a
Na clássica interpretação do historiador Fernando Novais propriedade nas mãos dos filhos lá.
(1989, p. 106), o processo de desenvolvimento do capitalismo europeu
estabeleceu no decorrer dos séculos XVIII e início do XIX, rígidos espa- Sobre a chegada ao Brasil
ços de manobra para as economias periféricas que constituíam, na prá-
tica, parte integrante da economia reprodutiva europeia, cujas técnicas e - Os seus pais vieram muito pequenos para
capitais eram aplicados para nelas desenvolver, de modo permanente, o Brasil, eles vieram com os pais deles
um fluxo de bens destinados ao mercado europeu. Assim, e em conso- também? Seus avós vieram também?
nância com as ideias de Novais, Sérgio Buarque de Holanda (1985, p. Todo mundo, todos vieram.
195) assevera que, com a queda dos preços do açúcar, que teve início - Todos juntos, né!
já nas primeiras décadas do século XIX, a economia brasileira perdeu Na Itália eles eram agricultores também?
sua única possibilidade de acúmulo, que residia exatamente na expor- Olha eram pelo comentário, porque
tação deste produto. E, foi a esta altura, como bem argumentou Prado criança não tem muito interesse nessas
Jr. (2012, p.114), que surgiu a oportunidade de converter a agricultura do coisas, eles diziam que meu avô era
país em outra produção, que continuaria até os nossos dias como uma Cavouqueiro, que é a pessoa que mexe
das principais fontes de renda brasileira: o café. com pedra na Itália, é com o uso dessa
pedra de granito que fazem calçamento.
Dessa forma, a nova produção não representou apenas a sal- Meu avô materno era agricultor.
vação de uma economia que, já em meados do século XIX, parecia não Meu pai era de Milão.
ter possibilidades de desenvolvimento, mas permitiu o surgimento de um Meu pai é de um lugar chamado Verdero
novo processo de acúmulo de capital, o qual teria financiado a moderni- Inferiori. Conheci a casa onde meu pai
zação das estruturas econômicas mais elementares (PRADO JR., 2012, nasceu, na Itália, está lá em pé até hoje.
p. 185). Ao mesmo tempo, a produção cafeeira aliviou as penosas con- Eles chamam ela de Cascina, quando
dições financeiras do Estado desde o momento em que este determinou fala Cascina é a casa que pertenceu aos
um imposto fiscal sobre as exportações; permitiu ainda, povoar o terri- Pirovani lá, porque aqui, no Brasil devido,
tório com mão de obra europeia, que encontrou trabalho nas fazendas vamos dizer assim, a pouca instrução
e nas pequenas propriedades onde se cultivava o café, e financiou em do povo brasileiro, principalmente nossos
grande parte este processo de imigração que mudaria a face da socie- notários, aqui nós temos: Perovano,
dade brasileira (FRANCO, 2016, p. 52). Piróvano e Pirovani e tem também
Pirovane. Na Itália só tem duas
Com isso, no momento em que o país começava a romper os ramificações Pirovani e Piróvano [...].
mais estreitos e dolorosos vínculos coloniais, tendo alcançado sua in- Mas na Itália os Piróvano são a
dependência política e dado início à formação de uma classe dirigente grande maioria, sem dúvida.
ligada aos interesses nacionais, viu-se na contingência de resolver um
problema que, em parte, era consequência do fato de ser periferia do Sobre a infância
centro capitalista: o problema da abolição da escravatura, que em ter-
mos definitivos, ocorreu somente em 1888 (CARVALHO, 2002, p. 45). Eu nasci ali, no Taperão e da minha infância
29
FOTOS DO ARQUIVO PESSOAL CEDIDAS GENTILMENTE

Timbrado da Relojoaria e Ourivesaria Palumbo Título de Cidadão Guaçuiense para Salvador Palumbo

Declaração da Colombo Gamberini de prestador de serviços Documento do Consulado da Itália

Documento de Salvador Palumbo Documento de Salvador Palumbo

30
No entanto, não se objetiva aqui esclarecer se a abolição da escravatu- me lembro do seguinte: a gente era, todos
ra foi ou não o marco da separação da história do Brasil pré-capitalista menininhos pequeninhos, de uns 4, 5, 6 anos
completamente inserido no sistema de produção capitalista. e minha mãe tratava dos porcos, então todo lugar
que ela ia, nós íamos atrás e ela rezando e a gente
Enfim, o que realmente é de nosso interesse é: aonde en- rezando, repetia as orações que ela falava.
contrar a mão de obra a ser usada no cultivo do café, uma vez que Quando eu estava com 6 anos, aconteceu uma
os escravos, liberados pela lei, tendiam a fugir das fazendas e do história muito engraçada que fez com que eu
trabalho considerado sinônimo de escravidão? Este quesito também viesse estudar, esse fato fez com que eu viesse
é de difícil solução. Entre os historiadores, inclusive, há quem afirme estudar. Quando eu tinha 6 ou 7 anos, meu
que havia no Brasil uma enorme disponibilidade de mão de obra qua- pai tinha uma mula chamada Revolta, ela era
se desocupada, e que se não fosse a falta de visão dos governantes toda preta e a traseira era branca e eu cheguei
brasileiros, tal contingente poderia ter sido utilizado nas fazendas, ou por trás da mula e dei dois tapas e ela me deu
poderia ter sido transformado em classe de pequenos proprietários dois coices no meio do peito, aí meu pai disse
de terras (FAUSTO, 1995, p. 136-137). De qualquer maneira, para minha mãe que eu não tinha condição de
trabalhar na roça não e que teria que me
mandar para colégio. No começo, eu não
(...) o fenômeno da imigração completou um queria ir para o colégio, chorava muito,
ciclo iniciado na aurora do século XIX e que mas depois, fiquei encantado.
mudou radicalmente a fisionomia do Brasil.
Livre da escravatura, iniciara então um rápi- Rogério dos Santos Chiesa
do processo de mudança de suas estruturas
econômicas e sociais, começando a investir Sobre as origens da família
parte do capital acumulado para atrair mão de
obra europeia – fato que por si mudou radical- Meu avô que era italiano, nasceu na Itália
mente a face da sociedade civil e da cultura e logo após veio para o Brasil. Quando ele
brasileira (GROSSELLI, 2008, p. 108-109). completou 7 anos de idade retornou para a
Itália para estudar. Acabou fazendo o jardim
de infância e o primário na Itália, e na 8ª série
Não há números exatos da quantidade de imigrantes euro- retornou para o Brasil. E minha avó, Maria
peus no Brasil. As quantidades citadas pelos pesquisadores são apro- Chiesa, apesar da descendência francesa nasceu
ximadas ou se referem aos dados que se conseguiram levantar em tais no Brasil. Então, ficou uma mistura na minha
pesquisas, obviamente, inferiores aos reais (PAULA, 2013, p. 36). No família, italiano, brasileiro, africanos e
entanto, no que se refere aos imigrantes italianos, segundo a pesquisa- franceses. Inclusive, meu Bisavô, Pedro Chiesa,
dora Maria Thereza Schorer Petrone (1998, p. 51), estima-se o número era casado com a minha bisavó que havia sido
de imigrantes italianos no Brasil em torno de 1.485.000 e, no Espírito uma escrava. Meu bisavô era comprador de
Santo, estima-se em cerca de 35 mil. Fato curioso é que, examinando ouro, então numa visita em uma determinada
bem os fatos, a maior migração de povos da história produziu surpre- fazenda, ele viu minha futura bisavó
endentemente raras agitações contra estrangeiros entre os trabalha- trabalhando como escrava. Ele sai para dar
dores, mesmo nos Estados Unidos e, praticamente nenhuma, como na uma volta e pensar e quando retornou para a
Argentina e no Brasil (GROSSELLI, 2008, p. 356-358). fazenda ele comprou a escrava.
31
História e memória: a trajetória do imigrante italiano na Região Sul do Espírito Santo | Praia Editora

E fez a seguinte pergunta para ela: A partir da segunda metade do século XIX, muitos países
você quer só a sua carta de alforria ou americanos e da Oceania deram início a um bombardeio publicitário
que se casar comigo? E ela aceitou. na Europa, buscando atrair colonos para suas terras virgens e ar-
tesãos para suas cidades. No caso do Brasil a propaganda não foi
Sobre a chegada do avô, muito honesta, sobretudo em território italiano: “(...) formava a ideia
Hilário Chiesa, ao Brasil da facilidade de acesso à propriedade de terra e, assim, maior pos-
sibilidade de ascensão do trabalhador à condição de proprietário”
Em meados de 1889, mas como ele voltou para (PAULA, 2013, p. 41-42). De qualquer maneira, uma vez em território
a Itália e veio para o Brasil bem mais velho, brasileiro, a realidade era outra para o imigrante italiano,
creio que chegou aqui por volta de 1900, 1902
ou 1903, mais ou menos esse período aí.
Ele gostava muito de ler, lia o jornal de frente É impossível definir o sentimento de uma
para trás e de trás para frente. Quando não pessoa que, acostumada à vida na cidade
tinha jornal ele lia a bíblia. Tem outra história ou nos campos, ou simplesmente a terre-
interessante também, quando meu avô rouba a nos cultivados onde os olhos passeiam por
minha avó. Ela tinha 14 anos ou 15 anos, então longos trechos, vê-se sepultada por árvores
meu avô rouba ela e os dois se casam. Ele fugiu gigantescas, sem uma casa, sem um trecho
com ela, tanto que na época ele casou com ela de terreno que mostre vestígios de cultura
na delegacia, na presença do delegado. humana. Por toda parte a mesma monotonia
Meu avô era muito namorador; bom, ele de selva, que impede que se veja um pouco
roubou a moça, né. Ela tinha muitas posses, a configuração do lugar em que se encontra,
tinha um certo capital e meu avô não era causa tristeza, acrescida de gritos estranhos
muito chegado a trabalha. Meu avô era só jamais ouvidos, e que não se sabe se são
estudar, ler e estudar mais. E ele sempre de animais pacíficos ou ferozes; tudo con-
gostou de ser inteligente de saber das coisas, tribui para abater um espírito que não seja
saber discutir e debater com os outros. dos mais corajosos (GANARINI, 1880, p. 27,
Segundo ele, na Itália, se estudava muito. apud GROSSELLI, 2008, p. 309).

Sobre a infância com o avô


É neste quadro que se insere a história da emigração italiana
Tenho pouca lembrança dele, lembro dele para o Brasil. A partir do terceiro quarto do século XIX, os termos do pro-
sempre lendo bastante; ele fazia um intercambio blema econômico brasileiro haviam mudado substancialmente. Surgira
cultural com a gente. Ele não se importava se o produto que permitiria ao país reintegrar-se nas correntes de expansão
o outro era letrado ou não; ele fazia questão de do comércio mundial: concluída sua fase de gestação, a economia ca-
saber a cultura da pessoa, a história da vida de feeira achava-se em condições de autofinanciar a sua extraordinária ex-
cada um. Inclusive, papai contou uma vez que, pansão sucessiva. Além disso, haviam se formado os quadros da nova
quando da inauguração do Cristo Redentor, um classe dirigente que iria orquestrar a grande expansão da cultura do ca-
amigo dele, seu Antônio, falou assim: não feeira: a classe dos grandes barões do café. Restava resolver, porém, o
consigo imaginar o tamanho dessa construção, problema da mão de obra: e uma das possíveis soluções para se tentar
e meu avô prontamente respondeu: multiplica resolver foi o imigrante europeu – e entre eles, principalmente, o italiano.
32
3. Imigração no Espírito Santo:
UM DESTAQUE PARA A REGIÃO SUL - ALEGRE E GUAÇUÍ

O
s primeiros imigrantes italianos começaram a chegar ao Bra- por tanto, depois divide por tanto e você terá
sil ainda na década de 1840. No entanto, foi entre os anos de o tamanho real do Cristo. Era um homem
1870 e 1910 que houve o maior fluxo de italianos para o terri- muito inteligente. Então a lembrança que
tório brasileiro, principalmente para as regiões sul e sudeste do país. tenho do meu avô é essa lembrança de
cultura, estudo, conhecimento, essas coisas.
O Brasil era visto como uma terra nova, repleta de oportu-
nidades. E que, devido aos problemas referentes à mão-de-obra en- Sobre a migração
frentados pelos italianos, que especialmente dessa forma o governo
brasileiro fez diversas campanhas na Itália com intuito de atrair esses Naquela época havia muita guerra naquela
italianos para o trabalho na lavoura brasileira. Dessa forma, chega- região, entre italianos e austríacos
ram ao Brasil imigrantes de todas as regiões da Itália, cuja preponde- principalmente, então eles fugiam para não
rância se referem às regiões do Norte e que juntas forneceram 92% terem de lutar. Então, como no Brasil estava
dos imigrantes, enquanto as regiões do centro contribuíram com 6% havendo “doações” de terras acho que é por
e as do Sul, com 2% dos italianos (LAZZARI, 2014, p. 67). E assim, isso que decidiram ir para o Brasil.
mediante àquele contexto histórico juntamente com os dados citados, No entanto, meu bisavô sempre retornava
podemos dizer que o Espírito Santo, por exemplo, abriga ainda hoje para Itália, tanto que mandou o filho
uma das maiores colônias italianas no Brasil (PAULA, 2013, p. 43). estudar lá. Era uma família nobre, havia
até condessas na nossa família, teve inclusive
No que tange à vinda dos italianos, esses imigrantes fo- um Papa, Giacomo della Chiesa, que depois
ram atraídos para terras capixabas afim de ocuparem inicialmente seria denominado Bento XV, ele ficou
a região das serras e ao chegarem em solo espírito-santense de- conhecido como o Papa da 1º Guerra
pararam-se com outra realidade muito diferente da anunciada, cuja Mundial, apesar de odiar a guerra.
infraestrutura econômica e governamental eram significativamente
precárias e incapazes de assegurar-lhes condições básicas de vida e Sobre as condições de vida no Brasil
trabalho. Entretanto, apesar dessa realidade hostil, grande parte des-
ses imigrantes conseguiram adquirir lotes nas áreas de colonização Na minha visão houve, os netos
(PAULA, 2013, p. 63). deles que não estudaram foi porque
não quiseram, a maioria dos descendentes
Como já dito, a partir da metade do século XIX o Brasil rece- conseguiram estudar e conquistar uma vida
beu significativa quantidade de imigrantes italianos, o que contribuiu tranquila, se formaram como professores,
para que houvesse expressivas mudanças sociais e econômicas em advogados, etc. Apesar dos apertos,
terras capixabas. Sendo assim, o início dessa nova “colonização” se não sofremos como outras famílias,
deu a partir do contexto delicado em que a Europa estava vivendo que foram exploradas. Na minha família
naquele período e, devido a tais circunstâncias, esses italianos bus- não foi bem assim. Eles tinham
cavam reconstruir ou muitas vezes construir uma vida nova numa propriedade, mas eram próprias, né.
33
História e memória: a trajetória do imigrante italiano na Região Sul do Espírito Santo | Praia Editora

Victor Fazollo Pimentel Torres Oliveira possível “Canaã” (CAVATI, 1973, p. 24). Desse modo, sabemos que
essa política imigrantista se deu a partir de duas vias: as iniciativas
Sobre a saída da Itália particulares, bem como as iniciativas organizadas pelo governo bra-
sileiro cuja propaganda em solo italiano se fez vigorosa, pois, ao bus-
Moro em Alegre desde que nasci. Meus bisavós car-se tentar solucionar o problema da mão-de-obra, paralelamente a
vieram da Itália, no período entre 1889 a essa questão, o governo também almejava o embranquecimento da
1895, fugindo do período de Crise população. Nesse sentido, de acordo com Cellin:
econômica na Itália, que causava a falta de
trabalho que causa dificuldade no sustento
da família. Mediante ao incentivo do governo a Política de imigração, implantada como
brasileiro, eles aceitaram a proposta de vir solução ao colapso do trabalho escravo re-
para o Brasil como imigrante para colonizar. sultou para determinadas províncias do país,
uma larga oferta de trabalho capaz de aten-
Sobre a chegada ao Brasil der a expansão da cafeicultura [...] além dos
empreendimentos oficiais, houve iniciativas
Eles chegaram no porto do Rio, foram particulares, na contratação de mão-de-obra
enviados para hospedaria Horta Barbosa, estrangeira (CELLIN, 2000, p.72).
em Minas Gerais, e de lá eles seriam
encaminhados para as fazendas de produção
de café e trabalhariam como colonos Em relação à possibilidade de se adquirir um lote, depois
e receberiam o apoio do governo, eles de dois anos em posse da terra, o colono poderia considerar-se
descobriram que aqui no Espírito Santo havia quase proprietário do terreno e útil produtor. Desse modo, o go-
terras mais em conta, que no estado de Minas, verno enviava ainda uma designação do lote da terra, mas, para
eles se mudaram pra cá, adquiriram aqui e se obter a terra, o dono só poderia cultivar se submetesse às obri-
passaram a explorar a agricultura, eu não gações relativas à compra do terreno. Por conseguinte, a possi-
sei te precisar o ano exato em que eles bilidade de acesso à propriedade fundiária foi um dos principais
vieram para o Espírito Santo, mas sei que aspectos das migrações transoceânicas no século XIX, uma vez
na década de 20, eles já estavam aqui. que, no imigrante havia certo fascínio pela possibilidade de vir a
ser proprietário. Nesse sentido, a propaganda de migração para o
Sobre tradições Brasil na Europa, sobretudo na Itália na segunda metade do Oito-
centos, firmava a ideia da facilidade de acesso à propriedade de
Nós temos muito esse estereótipo de terra e, assim, maior possibilidade de ascensão do trabalhador à
família Italiana, temos o hábito de falar alto, condição de proprietário (PAULA, 2013, p. 41).
a questão da culinária, todos os membros da
nossa família gostam de cozinhar, ou se Em virtude dessa questão, no ano de 1875 o fluxo de imi-
sentem bem com isso, não é nenhum fardo. grantes em direção ao Espírito Santo aumentou cada vez mais.
A questão da religiosidade também, os Dessa forma, grande parte desses italianos ao saírem de Gênova
Italianos de modo geral são todos católicos. dirigiam-se diretamente ao porto de Vitória ou ao do Rio de Janeiro
Não consigo enxergar nada mais que possa e nesses pontos, os imigrantes tomavam os navios brasileiros que
ser considerado herança italiana. conduziam aos vários portos do Espírito Santo ou seguiam de trem
34
FOTOS DO ARQUIVO PESSOAL CEDIDAS GENTILMENTE

Álbum de família (Palumbo Faria)

35
História e memória: a trajetória do imigrante italiano na Região Sul do Espírito Santo | Praia Editora

Sobre as origens do sobrenome da família para as colônias do sul do Espírito Santo (CELLIN, 2000, p. 56).

Eu não achei nada que explicasse a origem Acerca da chegada desses imigrantes, de acordo com Ro-
do nome, mas talvez por influência familiar, cha (1984) o grande fluxo da entrada de italianos no estado do Es-
da importância do bom nome que quase pírito Santo entre o período de 1847 a 1891, soma-se um montante
sempre se sobrepõe em questões financeiras de 38.700 italianos. Todavia, mesmo com esse número significativo,
e em outro tipo de questões no caso. acredita-se que tenham entrado bem mais imigrantes no Estado, pois
Então desde pequeno eu aprendi a muitos eram casos de clandestinidade e também havia os que aporta-
valorizar o meu nome. Um adendo vam enganados em terras capixabas, sendo que estariam destinados
interessante nesse ponto é que quando a outras regiões (GROSSELLI, 2013, p. 98).
eu nasci, não recebi dos meus pais esse
sobrenome de origem Italiana, achavam Em relação ao aspecto quantitativo, o número de estrangei-
que caso fosse acrescentado o Fazollo, ros em 1900 era oito vezes maior que em 1872 e no Espírito Santo
meu nome ficaria muito grande. os italianos dividiam o espaço com portugueses e alemães. Em 1920,
Acontece que por identidade, por gostar os italianos compreendiam 67% dos estrangeiros e eram 2,25% no
do nome, quando fui alfabetizado eu conjunto da população italiana no Brasil. Para um Estado que ainda
sempre assinei o sobrenome. Então meus hoje está entre os menores do Brasil, tudo isso é bastante significati-
pais entraram na justiça para retificar vo (PAULA, 2013, p. 46).
o registro de nascimento, tanto meu quanto
do meu irmão. Eu não sei te explicar em Segundo Nagar:
que momento foi que despertou a minha
curiosidade pela busca das minhas origens, [...] os imigrantes italianos que chegavam a
mas o que provavelmente aguçou essa busca, Vitória em meados do século XIX, se “hos-
é o desejo de obter o reconhecimento da pedavam” em uma espécie de Galpão, onde
cidadania Italiana e os benefícios que podiam requerer um lote de terreno para co-
ela me traria. Inicialmente a gente começou lonizar, optar por ser meeiros ou ser diaris-
a busca pela família Fazollo, como não tas. Ao desembarcarem em terras capixabas
obtive sucesso nesse lado, partimos pro e passarem meses abrigados nesses “alber-
lado da família Menegueli, também gues”, os imigrantes italianos, devido à pés-
do lado da minha mãe, só que por questões sima qualidade dos alimentos, desenvolvem
legais na Itália, não conseguimos obter a febre gástrica e outras doenças. Isso, no
sucesso novamente. Então partimos para entanto, era só o começo, e à medida que
nossa terceira opção, que é família do meu adentravam o território capixaba rumo ao in-
avô, também de origem Italiana, e aí nós terior, a situação do imigrante e de seus de-
conseguimos o reconhecimento da nossa sentendes só pioraria (NAGAR, 1995, p.45).
cidadania. Ainda não obtive nenhuma
dessas “facilidades”, mas ainda estou no
meu período de consolidação no Brasil, Como já exposto anteriormente, além das Colônias Oficiais,
aí a partir disso eu passo a avaliar a que eram colônias patrocinadas pelo governo para que pudessem
possibilidade de um mestrado no exterior. trabalhar, - cujos locais onde se concentravam o maior número de
36
italianos-, havia também as colônias particulares que foram criadas a Florinette Pinto Ridolphi
partir de iniciativas de grandes fazendeiros qual intuito era a obtenção
de mão-de-obra barata e eficiente. E por fim, havia as colônias que Sobre as origens da família
eram de iniciativa dos próprios imigrantes que compravam terras para
se fixarem e se desenvolverem. Na família do meu pai, tanto a minha avó
quanto meu avô são italianos, ambos
Segundo o governo do Estado, entre os anos que findam inclusive nasceram na Itália. Meu avô
o século XIX e dão início ao século XX, em cada divisão territorial é Florindo Ridolfi e minha avô Rosália
dedicada aos imigrantes devia existir uma comissão formada por um Marteline, minha avó veio até mais
engenheiro diretor, um médico, ajudantes, escrivão e um número velha da Itália que meu avô, porque ele
suficiente de agrimensores (GROSSELLI, 2013, p. 235). Tudo isso era uma criança de colo ainda. No entanto,
seria para assessorar adequadamente os recém-chegados. Mas, de sei muito pouco da família dela, sei muito
acordo com o sociólogo italiano Grosselli (2013), a realidade se apre- mais da família do meu pai, no entanto, ele
sentou amarga para os imigrantes: na verdade, nessas comissões, se nunca ensinou para nenhum filho a língua
muito, havia apenas uma ou duas pessoas. A alimentação era quase italiana. Ela [minha avó], nasceu em Astori,
sempre de má qualidade e a indicação de terrenos eram desenvolvi- em 1895; já o meu avô, nasceu em 1897, na
dos com muita lentidão. freguesia de Grafinhano, região do Lazio.
O sobrenome dela era Marteline, filha de
Apesar dessas condições em que os italianos eram expos- Vicente Marteline (inclusive Vicente é o nome
tos, ainda assim, somente no ano de 1895 ingressaram no Espírito do meu pai) e de Domingas D’alexandra, não
Santo cerca de 4.575 imigrantes. Nesse mesmo ano, no entanto, a sei precisamente se este era um sobrenome
imigração italiana para o Espírito Santo fora proibida, devido ao re- ou parte do nome dela. Inclusive não sei
latório do cônsul Carlo Nagar, o qual apontava vários problemas en- quando ela veio para o Brasil, não sei
frentados pelos imigrantes nesse Estado, tais como: deficiência dos praticamente nada, mas eles se conheceram
meios de transporte entre a capital e os núcleos coloniais; condições em Varre-Sai. Então a família dela também
precárias de alojamento nos barracões existentes nas sedes dos nú- foi para a mesma região.
cleos; demora na obtenção do lote e imprecisão nas demarcações;
isolamento dos migrantes; escassez, carestia e má qualidade dos Sobre a mudança para o Espírito Santo
gêneros alimentícios no interior do Estado; deficiência na assistência
médica, escolar e religiosa: demora nos pagamentos e substituição O que eu sei é que, depois de sair de Varre-Sai,
do dinheiro por bônus (NAGAR, 1895, p. 35). meu avó comprou um terreno em Guaçuí, aí
meu pai e meus tios nasceram. No entanto,
Apesar dessas questões, como bem sintetiza a historiadora apesar do alto número de italianos na região,
Petrone (1982): não existia um núcleo deles, estavam dispersos
na região, ao contrário do que ocorreu em
Uma das maiores contribuições do imi- Venda Nova do Imigrante e Domingos
grante para a sociedade capixaba foi ter Martins. Agora, tem um pessoal lá em
demonstrado a viabilidade da pequena Varre-Sai, inclusive fabricam vinho de
propriedade, o que lhe deu um papel signi- jabuticaba, são Ridolfi, participam de desfiles
ficativo nesta mesma sociedade. No sul do que tem lá, na festa do vinho.
37
FOTOS DO ARQUIVO PESSOAL CEDIDAS GENTILMENTE

Rosália Martelini e Florindo Ridolphi. Avós de Florinette Ridolphi Árvore genealógica da família Ridolphi

Certidão de óbito de Carlos Ridolphi Certidão de nascimento Aniceti Pacífica Documento de batismo de Aniceti Pacífica

38
Espírito Santo, graças ao retalhamento de Além disso, lá teve um grande encontro
fazendas ou terras devolutas, a pequena da família Ridolfi, um seminário nativo, veio
propriedade de imigrantes mudou comple- Ridolfi do Brasil inteiro. Meu avô tinha dez
tamente (PETRONE, 1982, p. 53). irmãos, meu avô era o mais velho. Desses
irmãos, cada um foi para um lado, né. Mas a
família Ridolfi é muito grande, estão
Além do relato de Nagar, para compreendermos melhor espalhados pelo Brasil inteiro.
a vinda do imigrante italiano para o Espírito Santo, especialmente
para a região sul da Província, analisamos o jornal O Cachoeirano. Sobre um amor não vivido
Este jornal teve sua primeira edição no ano de 1877 e foi fundado
por um comerciante chamado Luiz de Loyola e Silva, que morava Minha bisavó paterna chamava-se Pacífica
na região do Itapemirim, filho de um capitão chamado Ignácio de Anicetti e casou com meu bisavô, tem uma
Loyola e Silva, foi um dos primeiros habitantes de Cachoeiro (SAN- história linda. Um primo meu esteve na Itália
TOS, 2013). e pesquisou. Na época, era uma tradição o
filho mais velho casar primeiro, nas famílias
Sobre a vinda desses imigrantes e sobre as difíceis con- italianos; então o meu bisavô, Carlo, tinha um
dições em que muitos deles enfrentaram, podemos perceber que o irmão mais novo que se Chamava Florindo.
jornal O Cachoeirano, no ano de 1888 em uma matéria com título A minha bisavó, eles moravam na mesma
Interesses da Imigração diz o seguinte: província, dizem que ela era uma moça muito
culta, cantava na Igreja central de Roma.
Depois ela ficou um pouco doente
O governo deve mirar-se em semelhante psicologicamente, e sempre se lembrava do
espelho e verá o esplendor da proteção irmão do marido que ela era apaixonada, o
que costuma prestar quando a promessa Florindo, mas como eu disse, a tradição
deveria ser cumprida. Os imigrantes ulti- exigia que o filho mais velho se casasse
mamente chegados ficariam sem agasalho primeiro, então ela foi prometida para o Carlo,
e alimento se não fosse a dedicação do e a gente não sabe, sabemos que o Florindo
cidadão B. Andréa. No nosso último núme- morreu afogado, a gente não sabe se foi um
ro nenhuma intenção tivemos de censurar acidente ou outra coisa, né. Mas ela nunca
a comissão nomeada pela Sociedade de esqueceu o Florindo. Se casou com o
Imigração Espírito-Santense para agir aqui Carlo, mas a primeira filha que tiveram na
no município, visto como esta comissão Itália foi uma mulher e ela colocou o nome
nunca recebeu instruções [...] (O CACHO- de Florinda (risos), mas a criança faleceu
EIRANO, 1888, p.2).14 e aí ela teve um segundo filho, também
na Itália, que se chamou Florindo
novamente, que era o meu avô.
Percebemos que a notícia acima confirma as dificuldades E por conta da guerra e eles vieram com a
promessa de que eles viriam em um transporte
14 Trecho retirado do jornal O Cachoeirano, do dia 24 de Junho de 1888 na página descente. De acordo com as cartas dela, ao
2, edição número 26. desembarcar no Brasil ela chorou muito, ela
39
História e memória: a trajetória do imigrante italiano na Região Sul do Espírito Santo | Praia Editora

não sabe se foi a luz do sol, pois ela tinha vivenciadas pelos imigrantes que chegavam na Província, assim
ficado muito tempo no porão do navio, ou se como também vemos que, da mesma forma que há uma denúncia
já era saudade dos familiares ou se já era as sobre a forma como os imigrantes estavam sendo tratados, o jornal
angústias da vida nova que ela ia ter que diz que é uma atitude digna trazer os imigrantes para as freguesias
enfrentar, porque durante a viagem ela do sul da Província do Espírito Santo. E no que tange ao perfil desse
percebeu que não era aquilo que tinha sido imigrante, a maior parte dos que vieram para a região sul do estado
prometido. Para uma moça culta, que era agricultor, em sua maioria analfabetos, mas também a maior
cantava, que de repente teve que ir para a parte dos imigrantes que vieram para o sul do Estado eram agricul-
lavoura foi um peso muito grande, fico até tores, em sua maioria analfabetos, mas também, existiam famílias
emocionada, porque é uma história que eu de classe operária, revolucionários anarquista e profissionais espe-
queria entender melhor, queria conhecer. cializados (BISSOLI, 1979, p.48).
Quem sabe não vou na Itália um dia, a casa
onde eles moraram lá, tenho primos que Como exposto acima, o Cachoeirano no dia 24 de junho,
foram e fotografaram, a casa mesmo parabenizava os senhores Francisco Gomes de Azevedo, Manoel
e tal, mas a história dela me intriga porque, Olegario de Carvalho e Luiz Geraldo de Carvalho, residentes em
talvez até aí a minha paixão pela psicologia, fazendas na freguesia do Veado e do Alegre, por agasalhar esses
porque o fato é que quando ela ficava meio imigrantes da forma devida e na mesma página em que a referi-
perturbada depois que ela teve o último filho da matéria foi publicada, podemos identificar outra publicação sob
(ela teve 10 filhos), ela conversava com o o título Imigrantes, na qual relata: “É digno de ser imitado esse
Florindo, aí fico pesando como o Carlo, né, procedimento” (O CACHOEIRANO, 1888, p.2). Dessa forma, os
como foi para ele ter que conviver com isso e italianos se fixaram na região e se desenvolveram de modo tão
pra ela, porque ela não era agressiva, mas sua expressivo ao passo que, ainda hoje temos pessoas que são des-
mente estava no passado, na mocidade dela, centes desses primeiros imigrantes na região.
uma história bonita e triste ao mesmo tempo.
Desse modo, as matérias acima nos revelam alguns as-
Sobre a infância pectos referentes à imigração italiana no sul do Espírito Santo e,
por se tratar de uma região interiorana e distante da capital e do
Comecei a me interessar por essa questão das porto, a vinda desses imigrantes para Alegre deu-se particular-
origens porque na verdade minha relação mente pelo transporte ferroviário, uma vez que, especialmente no
afetiva sempre foi mais próxima com os meus início do século XX havia trilhos de importantes acessos, sendo
avós maternos, apesar da minha avó Rosária, este o principal meio para que esses italianos chegassem ao mu-
que era italiana, ter passado a vida inteira lá nicípio de Alegre.
em casa, e era uma pessoa, hoje a gente
compreende que era a doença dela, Apesar de algumas dificuldades e certos desenganos, os
Parkinson, ela morreu com 84 anos, mas jornais noticiavam que o Brasil era o Novo Canaã, e se limitaram
lembro dela sempre brava, rabugenta, não a apreciar somente aspectos positivos sem dar importância aos
era uma pessoa extrovertida, comunicativa; fatos reais desta denominação, segundo Cavati (1973). Ainda de
e como o meu avô já tinha falecido, então não acordo com o autor, as cidades do sul do estado tiveram significa-
tive essa relação tão próxima. Depois que virei tivo fluxo de imigração, na qual há menção de Alegre e cidades ao
adolescente e tive contato com os meus primos, redor (CAVATI, 1973, p. 126).
40
No que se refere à essa colonização italiana, em Alegre e que começamos a pesquisar e tal, é que fiquei
não houve Colônias Oficiais. Dessa forma, foi a partir da iniciativa de mais interessada na minha história, na minha
proprietários de terra local que parte expressiva desses imigrantes descendência. Meu avô, inclusive, era uma
se instalaram nas fazendas de café, ou seja, esses imigrantes foram pessoa muito interessante. Minha mãe conta
destinados a trabalhar na agricultura cafeeira, especialmente. Nes- que, sozinho, ele aprendeu a ler e escrever,
se sentido, esses italianos que almejavam um emprego e se fixar gostava de escrever discursos e ele escrevia
na terra buscaram se aperfeiçoar em sua formação, demonstrando muito bem, inclusive, tinha uma letra bonita,
assim, interesse e preocupação pelo aperfeiçoamento profissional ele gostava de discutir trechos bíblicos com o
(MORAES, 1981, p.72). padre Monsenhor Miguel. Minha mãe fala
(risos) que ele escrevia para depois debater com
Por outro lado, apesar dessa busca por melhores condi- o padre sobre trechos bíblicos.
ções de trabalho, as condições de vida em linhas gerais eram pe-
nosas. Tal situação pode ser comprovada devido à baixa qualidade Sobre preconceito
do saneamento básico e a escassez de médicos em Alegre, haja
vista que, cerca de vinte imigrantes morreram devido às febres Olha, nunca ouvi falar, sei que enfrentaram
que atacaram todo o Estado, naquela conjuntura. Isso pode ser muitas dificuldades, mas só as minhas bisavós.
constatado através de alguns dados estatísticos que elaboramos Por histórias que eles foram contando, que
tendo como base uma amostra de 19 certidões de óbito (de 10 estavam nessas cartas que eu dizia, de quando
imigrantes italianos e 9 descendentes diretos), no período entre o vieram para morar em Varre-Sai, eles
final do século XIX e as primeiras décadas do século XX.15 A pés- contavam que venderam farinha de mandioca
sima situação social, como comprova a tabela abaixo, nos revela para eles dizendo que era queijo, passaram
inclusive que grande parte dessas mortes era classificada apenas alguns perrengues aqui no Brasil, mas
como “morte natural”, devido muitas vezes à incapacidade de diag- preconceito mesmo, não. Eles moravam muito
nosticar a causa do óbito: afastados, né... era o dia todo trabalhando
com café, até tiveram a chance de ir para o
Tabela 1 – Causas de morte de imigrantes italianos Paraná, mas preferiram ficar aqui na região
mesmo. E meu pai reproduziu aquilo que
CAUSA DA MORTE % aprendeu com o pai dele, né, mexer com café,
MORTE NATURAL 49% gado, uma vida rural mesmo, produção de
CÓLERA 23% queijo para subsistência própria da família.
FEBRE 18%
VARÍOLA 10%
Nemrod Emerick

Fonte: Cartório Márcio Valory. Certidões de Óbito. Sobre o sobrenome da família

O Meneghelli, que eu não tenho, é italiano.


15 As certidões de óbito encontradas ultrapassam o número de cem amostragens E o Emerick é alemão. O meu nome é o
para o período analisado. Entretanto, para corroborarmos com a situação precária
evidenciada por Carlo Nagar em seu relatório sobre a imigração para o Espírito San-
mesmo que de meu avô. Já sobre o
to, buscamos escolher as certidões de óbito cujas mortes são especialmente acarre- sobrenome Meneghelli da minha família
tadas pela ausência de condições sanitárias básicas à uma população. vem da região Gazzo Veronese, região do
41
Certidão de casamento de Florindo Ridolfi Certidão de óbito de Noracy Rosa

Certidão de nascimento italiana de Certidão negativa de naturalização


Florindo Ridolfi de Florindo Ridolfi

42
Tal situação também foi denunciada no relatório de Nagar Vêneto, província de Verona. E quando
(1995), quando este revelou que no Sul do Estado as febres perni- eles vieram para cá, desembarcaram no Rio
ciosas nos meses quentes, bem como a febre amarela dizimavam e vieram para região de Juiz de fora,
populações de uma forma assustadora: inicialmente. E o que despertou minha
curiosidade a respeito da minha
descendência foi o fato do núcleo da minha
Além disto tudo sobressaem, infelizmente, família ser extremamente unido, e
o clima e as febres endémicas. Mais abai- também ocorreram dois encontros da
xo da região do Rio Doce, predominam as família nos anos 80 e esses encontros de
febres de impaludismo; em Vitória, a febre família morreram, e eu reativei esse
amarela e o beribéri; e no Sul as febres per- encontro em 2014, 2016 e ano que vem
niciosas, e nos meses quentes, também a temos um outro encontro. Temos também a
febre amarela (NAGAR, 1995, p. 56). nossa associação da família Meneghelli,
registrada no cartório.

Não à toa, por conta dessa denúncia que nesse mesmo Sobre a chegada ao Espírito Santo
ano de 1895 a imigração italiana para o Espírito Santo fora proibida,
devido a relatos como este registrados pelo cônsul italiano. Desse Em 31 de outubro de 1895, desembarcaram no
modo, no Sul do Espírito Santo, a situação não fugiu do geral: a re- Brasil o meu bisavô Giovanni Meneghelli e sua
gião não possuía saneamento básico, sistema de saúde adequado, esposa Lavínia Zaffani, com 6 filhos (...).
nem segurança e educação. Os imigrantes tiveram de lutar e se
unir ao povo da região para superar as adversidades impostas pelo Sobre tradição
meio e, assim, sobreviver nesses tempos hostis, de dificuldades e
superação. Mas, apesar das dificuldades, depois de 30 anos no sul Minha vó que faleceu recentemente e a minha
do Estado, encontrava-se imigrantes que já gozavam de proprie- tia, irmã da minha vó trouxeram o costume
dades. Mas também muitos imigrantes que perderam suas vidas. de fazer o macarrão em casa.
Nesse sentido, o impacto demográfico no Espírito Santo é notável
entre 1872 e 1920, uma vez que quintuplicou o número de mortes José Cirilo Sana
por doenças (PAULA, 2013, p. 45).
Sobre as origens da família
Apesar das difíceis condições sociais enfrentadas por es-
ses imigrantes, podemos perceber como eles foram sendo integrados Italiana. Minha família veio de Sardenha.
pela sociedade em Alegre. Assim, no jornal O Alegrense pudemos Nessa época vieram muitos Italianos que
encontrar informações que caracterizava o período entre 1915 até ficaram na fazenda de Castelo, vários
meados de 1936 e dessa maneira, a partir de publicações no jornal seguimentos da família Italiana. A vinda dos
observamos que os imigrantes italianos algumas vezes eram noticia- italianos deve-se a abolição da escravidão, ela
dos no referido periódico, tendo seus nomes publicados especialmen- vai ocorrer também em consequência da
te no que se referia ao pagamento e arrecadações de impostos ao guerra do Paraguai. Minha mãe é filha de
governo, bem como eram ofertados empregos para esses imigrantes, italiano nascida no Espírito Santo.
além de noticiarem ações do dia a dia da população. Meu tio João Sana veio com 14 anos da Itália.
43
Certidão de nascimento italiana de Aniceti Certidão de casamento italiana de
Pacifica Carlo Ridolfi

Documento da família Ridolphi Correspondência de Florinette Ridolfi

44
O Alegrense como dito, fazia publicações referentes ao Sobre a chegada ao Brasil
cotidiano daquela sociedade. Tanto que, no ano de 1935, na edi-
ção de número 573 é listado diversos italianos, sobre o lançamen- Eu não posso precisar ao certo, mas foi em torno
to de impostos de veículos, cujos sobrenomes eram: Fetti, Ogioni, do século 19. Eu nasci em 1935 e minha mãe é
Seraphim, Provetti, dentre outros; assim como em listas de reco- filha de italiano, nascida no Brasil, no estado do
lhimento de taxas sanitárias e domiciliares. Dessa forma, podemos Espírito Santo. Eu não cheguei a conviver com
afirmar que tais indivíduos eram italianos ou seus descendentes, meus avós, mas foi passado para mim que
uma vez que ao utilizarmos o livro a Base de Dados da Imigração todos vieram nesta época para o Brasil no
podemos identificar suas origens. mesmo navio. Eles vieram no navio chamado
Las Palmas e foram para Castelo,
No que tange a chegada dos italianos em Guaçuí, em onde se estabeleceram. Eles vieram direto
virtude desse processo de imigração, percebemos que houve um para o Espírito Santo, no Porto de Vitória
grande avanço urbano na região, iniciando-se dessa forma o as- e foram vindo para o Sul do Estado.
sentamento das primeiras casas comerciais. Desse modo, naquele Eu fiquei na roça até os 14 anos, quando
momento, a Freguesia de São Miguel acolheu muitos trabalhado- vim para cidade ainda sem estudos. Em 1943
res e, com eles, muitos italianos, imigrantes que chegaram e se es- eu vim para estudar, mas tive que voltar
tabeleceram. Na oportunidade, muitos deles se fixaram na cidade, para roça para trabalhar. Somente
pois, de acordo com Teodoro (2014): após 15 anos, fui terminar o
primário e dar continuidade aos meus
estudos com uma faculdade, uma extensão
As primeiras familias italianas, que fo- em Belo Horizonte. Minha intenção
ram para Guaçuí, chegaram em 1896 nunca foi lecionar, que queria estudar
procedentes de Minas Gerais e São mais um pouco. Eu trabalhei no comércio
Paulo, um vez que não houve imigração em meio de tanta gente analfabeta, que
organizada para o município. Dentre es- isso me fez querer continuar estudando.
sas famílias, podemos citar: Achucatti, Minha família trabalhou muito tempo
Albani, Albertini, Bazani, Bollari, Bolleli, na roça e não fui criado por minha mãe
Cabalini, Campgnolle, Capucho, Caroni, e sim pelos meus tios, que já faleceram.
Cassago, Cazati, dentre outros (TEO- Então eu assumi o compromisso
DORO, 2014, p.102). de cuidar da minha mãe, padrasto e
dos meus 4 irmãos e o meu casamento
ficou à “sete” por ter que cuidar de toda
Desta forma, vieram com estes imigrantes, tradições e hábi- minha família e mais minha esposa.
tos que ainda nos influenciam atualmente, uma vez que, os italianos
que aqui chegaram contribuíram com o processo de construção da Sobre a infância
nossa sociedade, formando famílias e disseminando seus costumes,
história e sua cultura. Nesse sentido, importa ressaltar o resgate des- Eu tive uma infância muito difícil.
sas trajetórias e deixar vívido em nossas memórias a nossa própria Eu trabalhei com plantação, capinei,
história e que esta foi construída conjuntamente com a história do depois fui morar perto de uma pedreira e
povo italiano e de seus descendentes em nossa região. comecei a vender verdura na rua.
45
História e memória: a trajetória do imigrante italiano na Região Sul do Espírito Santo | Praia Editora

Trabalhei na Roça “Zezinho Candô” e depois Assim, após todas as pesquisas em institutos e entrevistas,
larguei tudo isso e fui viver a ilusão de pudemos perceber que houve influência da imigração italiana na re-
trabalhar na cidade. Trabalhei em três gião de Alegre e Guaçuí, e, portanto, ainda hoje vemos algumas fa-
padarias e depois quando estava cursando o mílias que deixam presente no seu dia a dia as marcas da cultura ita-
2º grau, abri minha própria padaria. liana. Pois, através de seus relatos, algumas famílias mantem alguns
O negócio durou três anos, o suficiente para costumes e tradições que foram passados de geração e geração. E,
terminar o 2º grau. Depois fui trabalhar portanto, mantem viva a história do seu povo que vieram para o sul
como servente de um senhor cuja esposa da Província do Espírito Santo.
conversava muito comigo sobre religião.
A primeira padaria que trabalhei,
os patrões me levavam para rezar com eles.
Daí surgiu a ideia de dar aulas sobre
Religião nas séries elementares e depois
comecei a dar aula de História. Trabalhei
por 30 anos em São Geraldo, depois
fui fazer faculdade e trabalhei um ano
em Carangola, MG e depois vim em
Alegre, fazer uma substituição
e fiquei por 21 anos.

Sobre as condições
de vida ao longo do tempo

A gente saiu do nada. Passamos


por muitas dificuldades, morávamos
em uma casa muito pequena.
Eu trabalhava de padeiro, minhas
irmãs catavam café. Quando me casei,
mudamos para uma casa um pouco
maior, continuamos passando por
muitas dificuldades. Logo depois nos
mudamos para o centro, demoramos
15 anos para reformar a nossa casa,
porque não tínhamos dinheiro.
Eu trabalhava muito, eu e me esposa.
Depois as coisas foram dando certo,
as portas foram se abrindo. Fiz minha
faculdade. Minha esposa, depois dos
nossos 6 filhos terem nascidos, ela
terminou o 2º grau.
46
4. História e Memória:
CONSTRUÇÕES COTIDIANAS

Quem construiu a Tebas de sete portas? Marcelino Tulli de Souza


Nos livros estão nomes de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedra? Sobre as origens da família
E a Babilônia várias vezes destruída. Quem a
reconstruiu tantas vezes? É parte Italiana, e parte portuguesa. Sendo
Em que casas da Lima dourada moravam os construtores? [a ascendência] a Italiana do meu pai e a
Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha Portuguesa da minha mãe. Com relação
da China ficou pronta? a origem Italiana herdada do meu avô,
A grande Roma está cheia de arcos do triunfo. sei que ele chegou ao Brasil por volta de
Quem os ergueu? Sobre quem triunfaram os césares? 1903, quando tinha uns sete anos de
idade acompanhado apenas de seus seis
BRECHT 1898 - 1956 irmãos. Aos 17 anos voltou para
Itália, retornando ao Brasil com sua

O
que é História? Quem são seus agentes? De quantas ma- noiva, onde casou-se na cidade de
neiras diferentes ela pode ser redigida? E afinal, quem Espera Feliz, estado de Minas Gerais.
pode escrever a História? Questões como essas podem
permear o raciocínio do leitor mais atento e criar alguma descon- Sobre a vida em Alegre
fiança quando se tem em mãos uma obra que valorize a oralidade
através da memória local. Nasci em Alegre, onde morei ate os dez anos
de idade, depois morei sete anos fora, e
Para começo de conversa torna-se necessário ser elucidado retornei à cidade onde vivo desde então.
o sentido do termo História, elaborado e aprimorado com os constru- Com relação à vinda dos meus avós, sei que
tores do projeto intitulado “História e Memória coletiva nos Municípios eles casaram em Espera Feliz, moraram um
de Alegre e Guaçuí: o resgate da cultura italiana pela nova geração de tempo em Carangola e depois se mudaram
estudantes alegrenses” afim de maior aproximação entre nosso objeto para o Rio de Janeiro. Já o meu pai veio
de estudo e o método utilizado na construção do presente trabalho. para o distrito de Alegre, zona rural, onde se
casou, depois devido aos estudos ele
Na obra Apologia da História ou Ofício do Historiador es- mudou-se para a sede de Alegre.
crita por Marc Bloch durante a Segunda Guerra Mundial e publica-
da posteriormente por Lucien Febvre, o autor defende ser a His- Sobre as origens do sobrenome
tória uma busca e, logo, escolha. Nega que seu objeto de estudo
seja unicamente o passado documentado afirmando, para tanto, Sei pouco sobre a história do sobrenome
que tal noção é absurda. Diz-nos ser a Ciência dos Homens no Tulli, não temos registros sobre a nossa
tempo. É este homem em seu tempo que nosso estudo procurou descendência. Sei apenas que o nome Tulli
escavar e contemplar por meio da oralidade devidamente embasa- se concentra sua maior parte em Valori,
da em argumentação teórica (BLOCH, 2012, p. 165). local onde meu avô nasceu. Estima-se que
47
História e memória: a trajetória do imigrante italiano na Região Sul do Espírito Santo | Praia Editora

há cerca de 400 famílias Tulli nessa região, Fundada por Marc Bloch e Lucien Febvre na década de
enquanto nas demais regiões da Itália 1920 do século XX, a Escola dos Annales apresentou ao Ocidente
existam aproximadamente 30 famílias Tulli. uma nova forma de se compreender e se escrever a História. Nova
porque contrariou aos ditames do positivismo, às suas regras rígi-
Sobre a infância das na investigação de documentos e possibilitou uma outra abor-
dagem acerca da escrita da História: colocar o homem como centro
Convivi pouco com meus avós na infância, do estudo, suas relações sociais, suas interações com o meio, sua
os vi apenas duas vezes, por isso não me recordo forma de agir e de pensar de acordo com a era a qual pertence
deles. Lembro-me apenas de quando eles (BOURDÉ; MARTIN,1990, p. 121-123).
vinham do Rio de Janeiro nos visitar e minha
vó trazia Brevidade, que era muito bom. Ferrenho crítico ao historicismo vigente à época, em sua
obra Bloch (2012, p.49) defendia “(...) uma história mais ampliada
José Geraldo Passos Laurindo e mais aprofundada” e, portanto, não enxergava na mera trans-
posição de documentos a única alternativa para se chegar à Ci-
Sobre a vida em Alegre ência da História que fosse acessível tanto a doutos quanto aos
estudantes. Além disso, considerava que o verdadeiro historiador
Eu nasci aqui. Meus avós vieram pra cá já seria aquele capaz de dialogar de forma clara tanto com o primeiro
no final da vida, apenas para morar com os quanto com o segundo grupo. Não à toa, no capítulo introdutório
filhos. Os meus pais e meus tios vieram por da obra citada, é relatado o diálogo de Bloch com o seu filho, que
oportunidades de emprego, são de cidades lhe indaga: “(...) papai, então para que serve a história?” (BLOCH,
menores que Alegre, não o meu pai, que já 2012, p. 43). Indagação esta que serve de suporte ao pensamento
estava morando no Rio com minha mãe. desenvolvido pelos Annales.
E eles vieram pra cá, a família toda já
estava instalada aqui e já tinha esse laço Ao criticar a mera narrativa documental, também Le
do comércio onde todos eles designaram Goff, no prefácio da obra em discussão (BLOCH, 2012, p. 43-44)
a mesma função durante os anos que afirma que o historiador não pode ser um ser ocioso, um buro-
estiveram aqui. Mas vieram simplesmente crata da história, mas deve ser um andarilho fiel a seu dever de
por questões econômicas. exploração e aventura. Trazendo isso para o presente projeto: foi
o desejo de exploração a principal peça motivacional do traba-
Sobre tradições lho que levou adolescentes estudantes dos anos finais do ensino
fundamental e primeiro ano do ensino médio à investigação do
A famosa benção, pedir a benção do pai processo de imigração de europeus no estado do Espírito Santo,
e da mãe. E isso é uma coisa que as pessoas particularmente no interior deste.
acreditam muito ter cunho religioso, mas ele
não tá ligado nem tão cem por cento assim. Nesse sentido, Le Goff (1990, p. 180) argumenta que a
Eu por exemplo não tenho denominação “História consiste na escolha e construção de um objeto. Operação
religiosa, porém minha sobrinha me pede que pode se dar a partir da evocação de lembranças (...)”, e dessa
“benção” e eu respondo, e eu peço benção forma, ao invocar a importância do trabalho com história local atra-
para minha mãe, para meus avós e meus tios, vés da oralidade, a historiadora Circe Maria Fernandes Bittencourt
porque isso é um costume da família italiana, em consonância com as ideias de Le Goff, acrescenta:
48
Rua Dr. Chacon. 1937

49
História e memória: a trajetória do imigrante italiano na Região Sul do Espírito Santo | Praia Editora

você pede benção ao membro mais velho A história local geralmente se liga à histó-
que está presente no momento, ria do cotidiano ao fazer das pessoas co-
simplesmente por respeito a ele, a história muns participantes de uma história apa-
e a respeito das crenças de família. rentemente desprovida de importância e
estabelecer relações entre os grupos so-
Sobre as origens do sobrenome da família ciais de condições diversas que partici-
param de entrecruzamento de histórias,
Conheço o laço a partir da chegada ao tanto no presente quanto no passado
Brasil. Existe alguns relatos que essa questão (BITTENCOURT, 2008, p. 168)
do nome da família Cazzadore que aqui
recebeu o nome atual, ela se origina da
cidade de Gênova, na Itália foi onde teve Estudos acerca da oralidade começaram a ser utiliza-
os primeiros registros que a gente dos no Brasil a partir da década de 1970 e sobre seu significado
conseguiu nos portos pra cá. a historiadora Regiane Silva Penna, em sua obra Fontes Orais
e Historiografia: avanços e perspectivas (2005), esclarece ser a
Sobre a chegada ao Brasil história oral um tipo de metodologia utilizada na pesquisa que
consiste na realização de entrevistas gravadas com pessoas de
A família veio pra cá através dos portos de uma comunidade local que podem dar testemunho a respeito de
Itapemirim e Vitória e uma ramificação do acontecimentos, culturas, modos de vida ou quaisquer outros as-
porto de Itapemirim veio pra cidade vizinha, pectos que envolvam a história contemporânea. Não por acaso,
que foi Muniz Freire. Cazzadore não é um este tipo de técnica passou a ser utilizada a partir da década de
nome muito incomum nas famílias Italianas 1950, com a invenção do gravador nos Estados Unidos, Europa
é como se fosse um Silva da nossa origem e México, alcançando proporções significativas desde então. É
aqui. Então tem muita história por trás, tem bastante utilizada, sobretudo na área de Ciências Humanas, en-
mais sobre a história de como eles chegaram tre historiadores, antropólogos, sociólogos, pedagogos, teóricos
aqui, são refugiados de guerra e vieram para da literatura, psicólogos e outros.
o Brasil em busca de dias melhores, atrás
do que o país deles não oferecia, mas é a O trabalho com Memórias, respeitando o método à sua uti-
história de todo imigrante, na verdade de lização, que no caso do presente estudo contou também com docu-
todo refugiado que nós temos hoje não tem mentação específica, é de suma importância pois permite conhecer
muita diferença, o motivo é o mesmo, a e reconhecer outros agentes construtores da história: o homem co-
pobreza e a fome, que já não tinha mais mum. Assim, a memória é capaz não somente de recordar, mas de
alimentos. Eram de 6 a 7 meses em navios refazer e unir, abrindo possibilidades de se entrelaçar o passado ao
pra poder chegar aqui e ainda chegar pra presente (LE GOFF, 1990, p. 188).
trabalhar no lugar dos escravos, afinal já
tinha acabado a escravatura no Brasil e eles Ao levantarmos as infinitas memórias dos municípios de
vieram pra ocupar o lugar deles nas lavouras Alegre e Guaçuí, Espírito Santo, foram investigadas quais as histó-
de café, porque era o que eles sabiam fazer rias a respeito do processo imigratório iniciado no Brasil do século
de melhor, era o plantio de café e as XIX que se escondiam ali e que não se encontravam em livros ou
mercearias que eram as bodegas na época. materiais oficiais utilizados no cotidiano da comunidade, sobretu-
50
do no dia a dia dos estudantes. Afinal, como bem destaca Le Goff Muitos da minha família se meteram
(1990, p. 398-400), a lembrança é uma considerável fonte histórica nesses laços depois que chegaram
e buscamos utilizá-la para envolver e familiarizar os estudantes ao Espírito Santo, foram plantar café
dos anos finais do ensino fundamental de escolas públicas da rede e trabalhar como comerciantes, e
estadual do estado do Espírito Santo com a construção da História também pelo mesmo motivo que minha
expressa pela oralidade. família veio pra: cá fatores econômicos.

À vista disso, a valorização da história local através do Sobre a infância


processo de investigação das inúmeras memórias permite a re-
formulação na leitura e compreensão dos processos históricos já Foi ótima. Eu tive, inclusive, um contato
que através dela é possível verificar transformações ocorridas no não pela minha família, mas pelos laços
meio, realizadas por gente comum e assim ultrapassa-se os limites dos italianos em Alegre. Eu participei de
da ideia de que o cotidiano é repleto e permeado pela alienação um projeto durante 5 anos na escola em
(BITTENCOURT, 2006, p. 168). que estudava que era voltado apenas pra
descendentes Italianos. Essa escola era o
Ainda de acordo com Bittencourt (2008, p. 136) a história CEA, não existe mais, era uma escola
local normalmente se liga à do cotidiano por fazer das pessoas particular e tinha um convênio com o que
comuns participantes de uma história supostamente destituída de hoje é a escola de música, que o pessoal de
importância, podendo estabelecer assim relações entre grupos so- lá é descendente de libaneses e italianos
ciais de condições diversas que participaram de entrecruzamento e uma deles, a Mônica, desenvolve um
de histórias, tanto no presente quanto no passado. projeto aqui. A gente estudava Italiano...
tinha coral, italiano e dança. A gente fazia
No que tange à utilização da memória à escrita da his- parte de todos esses segmentos, então a
tória, Benjamin (1987, p. 227) esclarece não ser aquela um ins- gente aprendeu um pouco de italiano, teve
trumento para a exploração do passado: mas sim, o meio. Nesse contato direto com a língua. Eu tenho
sentido, é onde se deu a vivência, tal como o solo é o meio sutil um certificado, inclusive, emitido pelo
no qual as antigas cidades estão soterradas. Dessa forma o autor consulado italiano no Brasil, e você acha
conclui que, para se aproximar do próprio passado, o homem deve um gato pingado na cidade que teve um
agir como escavador desta memória. contado maior com o movimento, mas foi
última vez que teve algo voltado
Desse modo, para Le Goff (1990, p. 368), “(...) o estudo da para os descendentes na cidade.
memória social é um dos meios fundamentais de abordar os proble-
mas do tempo e da história, relativamente aos quais a memória está Sobre as condições de vida
ora em retraimento, ora em transbordamento”. Sinaliza assim o autor, ao longo do tempo
para o importante papel da memoração nas comunidades sem escrita
e afirma que ela está inserida nas grandes questões das sociedades, Acho que tempo em tempo tudo melhora
desenvolvidas ou não, sendo elemento constitutivo da identidade so- um pouco, têm momentos tenebrosos no
cial ou coletiva: à utilização das memórias ao mesmo tempo em que meio das coisas, mas tudo se melhora um
estabelece a divisão destas entre individual e coletiva, sinalizando pouquinho. Mais mazelas do que coisas
para a importância da última no trato das Ciências Humanas. boas, infelizmente. Alegre, até os anos 90,
51
História e memória: a trajetória do imigrante italiano na Região Sul do Espírito Santo | Praia Editora

era um sitio histórico interessantíssimo, Na visão da historiadora Olga Rodrigues de Moraes von
a gente tinha diversos prédios, ainda Simson (2003, p. 14), as diversificadas memórias avivam a existência
da época da colonização da cidade, por da memória individual, que guardada pelo indivíduo, se refere às suas
volta de 1800. Muita coisa estava de pé, próprias vivências e experiências, mas que contém também aspectos
a partir dos anos 90, as pessoas foram da memória do grupo social onde ele se formou, isto é, onde esse
comprando esses terrenos, não tinham indivíduo foi socializado. Ou seja, memória é a capacidade humana
nenhum projeto pra que se restaurassem de reter fatos e experiências do passado e retransmiti-los às novas
esses prédios e praticamente tudo foi gerações através de diferentes suportes empíricos (voz, música, ima-
perdido, 90% da cidade eram prédios antigos, gem, textos etc.). Nesse sentido a autora esclarece que:
até aqui em frente à nossa casa era tudo
prédios de mais longe possível de data...
1920... e o que a gente tinha de mais Existe uma memória individual que é aque-
bonito eram o prédios, por essa volta de la guardada por um indivíduo e se refere
data também, que era o nosso cinema ali na às suas próprias vivências e experiências,
praça do pico. Era um prédio muito bonito, mas que contém também aspectos da me-
se vocês forem lá hoje onde era pra construir mória do grupo social onde ele se formou,
um prédio ali, do lado da Igreja Batista, só isto é, no qual esse indivíduo foi socializa-
tem tapume de ferro ali hoje, no chão, se do. Há também aquilo que denominamos
você olhar ali, ainda tem as pastilhas de memória coletiva, que é aquela formada
originais do prédio. O que a gente viu aqui pelos fatos e aspectos julgados relevantes
foi isso, muitas coisas que nos serviriam de pelos grupos dominantes e que são guar-
base pra gente hoje entender melhor nosso dados como memória oficial da sociedade
município, se perderem. Quando minha mais ampla (SIMSON, 2003, p. 14).
sobrinha me falou do projeto de vocês,
achei interessantíssimo, porque isso é uma
coisa que tive na minha adolescência, Também Maurice Halbwachs (1990, p. 23-25), estipula dife-
peguei gosto por isso, fui estudar sobre a renças entre conceitos de memória individual e memória coletiva, que
nossa cidade, hoje não têm muitas podem ser estabelecidas como a primeira, compreendida como um
informações sobre Alegre. processo psicológico básico, e a segunda como a memória social, ou,
A nossa cidade era cidade de passantes, e em outras palavras, como um processo de construção grupal. De certa
por isso a história daqui ter sido preservada forma, de acordo com o autor, nossas lembranças permanecem cole-
mais. Mas isso acontece, cabe a nós que tivas, e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo que se trate de
estamos estudando, que gostamos de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com objetos
história não deixar esquecer, sempre tá que só nós vimos: “(...) é porque, em realidade, nunca estamos sós. Não
documentando, escrevendo sobre isso. é necessário que outros homens estejam lá, que se distinguam material-
mente de nós: porque temos sempre conosco e em nós uma quantidade
de pessoas que não se confundem (HALBWACHS, 1990, p. 26).

Quanto à utilização da memória coletiva na didática, na com-


preensão e na construção historiográfica, a obra intitulada Ensino de
52
História: Fundamentos e Métodos, de Circe Maria Fernandes Bitten-
court (2006, p. 170), reafirma a importância do uso das recordações
coletivas quanto à valorização da história local, oferece caminhos para
esta atividade e estipula diferenças entre memória coletiva e história.
Aclara ser a primeira uma relação gregária da comunidade com seu
passado, e, portanto, carregada de seleções, eliminações e omissões,
permeada por variações de acordo com a idade, sexo, ocupação, ori-
gem, etc., de seus agentes. Em contrapartida, afirma que o papel da
História, em seu relacionamento simbiótico com a memória, se volta
ao trabalho com a acumulação das memórias, reordenação do tempo,
metodologias para recomposição de seus dados, além de confrontar
memórias individuais e coletivas com outros documentos.

Por outro lado, Jacques Le Goff (1990, pp. 90-91) alerta-nos


para o perigo da utilização da memória coletiva na manutenção do
poder de grupos dominantes em detrimento de grupos dominados.
As estruturas do poder de uma sociedade compreendem o poder das
categorias sociais e dos grupos dominantes ao deixarem, voluntaria-
mente ou não, testemunhos suscetíveis de orientar a história num ou
noutro sentido; o poder sobre a memória futura, o poder de perpetua-
ção deve ser reconhecido e desmontado pelo historiador.

Nenhum documento é inocente. Deve ser


analisado. Todo o documento é um mo-
numento que deve ser desestruturado,
desmontado. O historiador não deve ser
apenas capaz de discernir o que é “falso”,
avaliar a credibilidade do documento, mas
também saber desmistificá-lo. Os docu-
mentos só passam a ser fontes históricas
depois de estarem sujeitos a tratamentos
destinados a transformar a sua função
de mentira em confissão de verdade (LE
GOFF, 1990, p. 91-92).

Nesse sentido, para se evitar interpretações errôneas ou


que privilegiassem determinados grupos em detrimento de outros, a
metodologia utilizada na elaboração deste trabalho contou ao longo
53
História e memória: a trajetória do imigrante italiano na Região Sul do Espírito Santo | Praia Editora

do processo com análises documental e bibliográfica e, principalmen-


te, com o cuidado na utilização das memórias recolhidas para que
não fossem analisados temas da vida cotidiana de forma isolada dos
contextos históricos.

Sobre a utilização de documentos com crianças e adoles-


centes em fase escolar, Bittencourt enfatiza o cuidado do profissional
de história quanto ao trato entre documentos e estudantes:

Os documentos tornam-se importantes


como um investimento ao mesmo tempo afe-
tivo e intelectual no processo de aprendiza-
gem, mas seu uso será equivocado caso se
pretenda que o aluno se torne um pequeno
historiador, uma vez que para o historiador,
os documentos têm outra finalidade que não
pode ser confundida com a situação de en-
sino de História. Para eles, os documentos
são a fonte principal de seu ofício, a maté-
ria-prima por intermédio da qual escrevem a
história (BITTENCOURT, 2006, p. 329).

Após processo de seleção, definido referencial teórico


a ser esmerado com os estudantes da Escola de Ensino Fun-
damental Médio Aristeu Aguiar do município de Alegre, estes
ingressaram no processo de releitura da imigração de italianos
nos municípios escolhidos para a realização do projeto. Não se
pretendeu durante o percurso, que contou com aulas expositi-
vas, análise documental, principalmente de jornais de época,
discussões e entrevistas; a criação de pequenos historiadores,
mas buscou-se o contato do estudante com sua própria história
através da valorização das lembranças dos moradores locais co-
lhidas em conversas com estes. Sendo assim, o objeto de estudo
contemplou a memória e a suas construções cotidianas dando
relevo à oralidade dos cidadãos alegrenses e guaçuíenses.

A partir das memórias recolhidas e sua análise conclui-se


este estudo onde é possível a percepção acerca da significativa in-
54
fluência da cultura italiana ainda presente nos municípios de Alegre e
Guaçuí, ambos no Sul do estado capixaba. Tal influxo pode ser obser-
vado nos costumes religiosos, na culinária marcada pelas lembran-
ças de quitutes e almoços de domingo, no saudosismo dos membros
mais velhos, e de certo, também nos mais jovens, quanto aos sempre
numerosos encontros de família, na forma de viver e agir marcadas
normalmente por princípios morais bastante rígidos.

A relevância do trabalho, entretanto, não se encontra ape-


nas na transposição de entrevistas e relatos colhidos em campo, mas
principalmente nos elos formados a partir da memória entre passado
e presente vividos. Ao concluir este projeto e suas discussões, reto-
ma-se ao questionamento do parágrafo introdutório do capítulo que
fecha todo o processo de construção dessas histórias, podendo-se
afirmar que sendo a História a Ciência dos Homens no Tempo, são
eles seus reais construtores.

55
Referências

BENJAMIN, W. Obras Escolhidas, Vol. 1: rua de mão única. São


Paulo: Brasiliense, 1987.

BISSOLI, O. Memórias de Um Imigrante Italiano. Vitória: Fundação


Ceciliano Abel de Almeida, 1979.

BITTENCOURT, C. M. F. Ensino de História: Fundamentos e Méto-


dos. 2 Ed. São Paulo, Cortez, 2008.

_____________. Identidade nacional e ensino de história do Brasil. In:


KARNAL, Leandro (Org.). História na Sala de Aula: conceitos, práti-
cas e propostas. 5 Ed. São Paulo: Contexto, 2008, pp. 185-204.

BLOCH, M. O Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

BRECHT. B. Perguntas de um trabalhador que lê. Disponível em:


https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2201742/mod_resource/
content/1/POEMA%20DE%20BRECHT%20%28PERGUNTAS%20
DE%20UM%20TRABALHADOR%20QUE%20L%C3%8A%29.pdf.
Acesso em: 09/10/2017.

BOURDÉ, G.; MARTIN, H. As Escolas Históricas. Mem Martins: Eu-


ropa-América, 1990.

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo Caminho.


3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

________________. Introdução. In: CONGRESSO AGRÍCOLA DO


RIO DE JANEIRO, 1878. Anais do... Edição fac-similar. Rio de Janei-
ro: Fundação Casa de Rui Barbosa.

CAVATI, J. B. História da imigração italiana no Espírito Santo. Belo


Horizonte: São Vicente, 1973.

56
CELLIN, J. Piemonteses em Castelo aspectos culturais. Vitória:
ArtPrint, 2000.

CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil. 1850-


1888. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

CURTY, Mellina de Fátima Neres de Sousa. O movimento


emancipacionista na perspectiva das elites políticas na Pro-
víncia do Espírito Santo, 1869-1888. 2014. 170 f. Dissertação
(Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em His-
tória Política, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2014.

FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Fundação do Desen-


volvimento da Educação, 1995.

FERRAZ, M. P. Alegre, a Terra e o Povo. Alegre: Jornal Mensagem


Editora, 1986.

FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. 34. ed. São Pau-


lo: Cia das Letras, 2007.

FRANCO, Sebastião Pimentel. História do Espírito Santo. Vitória:


UFES, 2015.

GROSSELLI, Renzo. Colônias Imperiais na Terra do Café: campo-


neses trentinos (vênetos e lombardos) nas florestas brasileiras. Vitória:
APEES, 2008.

________________. Colônias Imperiais na Terra do Café. Vitória:


APEES, 2013.

HOBSBAWM, Eric. A Era do Capital: 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz


e Terra, 1979.

________________. A Era dos Impérios: 1875-1914. Rio de Janeiro:


Paz e Terra, 1988.

HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26. Ed. São Paulo:


Companhia das Letras, 1995.

57
História e memória: a trajetória do imigrante italiano na Região Sul do Espírito Santo | Praia Editora

HALBWACHS, M. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

LAZZARI, A. Italianos: base de dados da imigração italiana no


Espírito Santo nos séculos XIX e XX. Arquivo Público do Estado
do Espírito Santo.

LORENZINI, V. Espírito Santo berço da colonização italiana. Vila


Velha: GSA, 2007.

LE GOFF, J. História e Memória. Campinas: UNICAMP, 1990.

MANTOUX, Paul. A Revolução Industrial. São Paulo: Edunesp/Hu-


citec, 1989.

MARQUESE, Rafael Bivar. Estados Unidos, segunda escravidão e


a economia cafeeira do Império do Brasil. Almanack, Guarulhos,
n.5, 2013.

MARTINS, Ana Luiza. Império do Café: a grande lavoura no Brasil:


1850-1890. 7 Ed. São Paulo: Histórias em Documentos, 1999.

MARTINS, Robson L. M. Atos dignos de louvor: imprensa, al-


forrias e abolição no sul do Espírito Santo, 1885-1888. Afro-Á-
sia, 27, 2002.

MORAES, O. Da Itália ao Brasil história de uma família. Vitória:


FCAA,1981.

NAGAR, C. O Estado do Espírito Santo e a Imigração Italiana. Vitó-


ria: Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, 1995.

NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema


Colonial. 4. Ed. São Paulo: Hucitec, 1989.

PAULA, Sérgio Peres de. Fazendo do Centro: imigração e co-


lonização italiana no Sul do Estado do Espírito Santo. Vitória:
APEES, 2013.

PETRONE, M. T. S. O Imigrante e a Pequena Propriedade. São Pau-


lo: Brasiliense, 1982.

58
________________. Italianos no Brasil: o que dizem os censos? In:
CASTIGLIONI, Aurélia H. (Org.). Imigração italiana no Espírito
Santo: uma aventura colonizadora. Vitória: UFES, 1998.

PENNA, R. S. Fontes orais e historiografia: avanços e perspectivas.


Porto Alegre: Edipucrs, 2005.

PRADO JR., Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo, 2012.

RÉMOND, René. O Século XIX: 1815-1914. São Paulo: Cultrix, 1997.

ROCHA, G. Imigração estrangeira no Espírito Santo: 1847-1896.


1984. 182 f. Dissertação (Mestre em História) – Universidade Federal
Fluminense, Niterói.

SALLES, Ricardo. Nostalgia Imperial: escravidão e formação da


identidade nacional no Brasil do Segundo Reinado. 2.ed. Rio de Ja-
neiro: Ponteio, 2013.

SIMSON, O. R. de M. Memória, cultura e poder na sociedade do es-


quecimento. Arquivos Fontes e Novas Tecnologias. Campinas, 2000.

SILVA, Eduardo (Org.) Ideias Políticas de Quintino Bocaiúva. Cro-


nologia, introdução, notas bibliográficas e textos selecionados, vol. I.
Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986.

TEODORO, M. A. Guaçuí, ensaio e história: colonização, história e


cultura. Guaçuí: agBook, 2014.

FONTES HISTÓRICAS

Fontes manuscritas e impressas

Fundação Casa de Rui Barbosa

RIO DE JANEIRO. Anais do Congresso Agrícola. 1878.

CARTÓRIO MÁRCIO VALORY. Certidões de Óbito Entre os Anos


de 1875 e 1945. Endereço: Av. Jerônimo Monteiro, 97 - Centro, Alegre
- ES, 29500-000. Telefone: (28) 3552-2350.

59
Jornal O Alegrense- Acervo do Instituto Histórico e Geográfico de
Alegre, ES.

ACESSO ON LINE

Leis do Império

CÂMARA DOS DEPUTADOS (Brasil). Coleções Leis do Império. Rio


de Janeiro. 1871-1888.

O CACHOEIRANO. Cachoeiro de Itapemirim, 1877-1923. Disponível


em: <http://www.bndigital.bn.br>. Acesso em 6 setembro de 2017.

Coleções Legislativas

Acervo de Memória da Assembleia Provincial

ESPÍRITO SANTO. Assembleia Legislativa. Anais da Assembleia


Legislativa Provincial do Espírito Santo. 1869-1887.

60
Estação Ferroviária. 1940

61
Vista de Guaçuí em 1950

62
Texto redigido por

Mellina de Fátima Neres de Sousa Curty


Prisciliana Costa Ventura
Mateus Augusto Almeida Martins
Victor Silva Salaroli do Nascimento

GOVERNO DO ESTADO
DO ESPÍRITO SANTO
Secretaria de Ciência, Tecnologia,
FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA E INOVAÇÃO DO ESPÍRITO SANTO Inovação e Educação Profissional

Você também pode gostar