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Espaço Rural:
transformações, cultura
e memória

Os fatos, as lembranças e o sentimento comunitário


quanto à ocupação do espaço local.

Carina Copatti

Passo Fundo – 2010

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DIRETOR GERAL DIRETOR DE PÓS-GRADUAÇÃO,
Prof. Ms. Eduardo Capellari PESQUISA E EXTENSÃO
Prof. Ms. Henrique Aniceto Kujawa
DIRETOR DE GRADUAÇÃO
Prof. Ms. Marcelino Pedrinho Pies DIRETORA DE ADMINISTRAÇÃO
Marilú Benincá de David

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

C 781 Copatti, Carina


Espaço rural: transformações, cultura e memória – os fatos, as lembranças e
o sentimento comunitário quanto à ocupação do espaço local / Copatti, Carina.
– Passo Fundo : IMED, 2010.

136 p. ; 15cm x 21cm

ISBN 978-85-99924-47-1

1.Geografia : povoamento. 2.Geografia humana. 3. Ocupação territorial. 4.


Memória oral. 5.Demografia. I. Título.
CDU: 911.37

Catalogação: Maria Cristina de Siqueira Santos – Bibliotecária CRB 10/1811

[2010]
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA IMED - Faculdade Meridional
Rua Senador Pinheiro, 304 - Vila Rodrigues - CEP 99070-220 - Passo Fundo (RS)
Fone/ Fax: (54) 3045.6100 - www.imed.edu.br editora@imed.edu.br

Grafia Atualizada Segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Copyright © 2010 by, Carina Copatti. Projeto gráfico: Gráfica Berthier Ltda.
Todos os direitos reservados e protegidos pela lei Foto de capa: Moradores da comunidade de
9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, Araçá Baixo por ocasião das Missões, em 1977.
sem autorização prévia por escrito da EDITORA
Revisão de linguagem: Vanusa Rossetto de Assis
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Preparação / Originais: Carina Copatti
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Preto/ SP Wilson Steimetz ULBRA

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Dedicatória
Para minha família:
Fonte de minhas forças...
E, em especial, à minha grande saudade:
Meu Pai!

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Agradecimentos
Ao redigir estas palavras, recordo cada gesto, cada demonstração de
carinho e cada contribuição recebida ao longo da realização deste trabalho,
que foi, para mim, durante muito tempo, um objetivo a ser alcançado.
Recordo cada momento dedicado à sua conclusão, não somente por
mim, mas por meus familiares e amigos que me auxiliaram com palavras de
incentivo e que dedicaram a mim parte de seu tempo.
Sendo assim, agradeço inicialmente à minha família: minha mãe
Marizete, pela dedicação, disposição e zelo... Meu pai Geraldo, minha eter-
na saudade, minha contínua motivação...
À minha irmã Elizandra, pela presença constante, pela segurança e
pelo carinho que me transmite.
Ao meu irmão Ismael, por nunca ter deixado de acreditar em minha
capacidade e pelo incentivo desde o início da graduação...
Ao Cleber Castelli, que está ao meu lado em todos os momentos,
motivando-me na contínua busca pelo conhecimento.
À professora Ms. Zélia Guareschi Fioreze, que despertou em mim o
gosto pela pesquisa e fez nascer em mim o desejo pela busca das raízes do
meu povo.
À professora Ms. Luciane Rodrigues de Bitencourt, que me orientou
na elaboração do trabalho, dispondo de seu tempo em meu auxílio e também
por suas palavras, que me apoiaram e incentivaram a transformar o estudo
inicial em livro, concretizando este sonho.
À professora Ms. Juçara Spinelli, que avaliou este trabalho ao final da
graduação e incentivou o aprimoramento do texto e sua publicação.
Ao Rafael Cerezoli, amigo de longa data, que se dedicou na elabora-
ção do croqui.

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Às grandes amigas e colegas professoras de Geografia, Andressa Kort
e Franciele Embaraque, pela compreensão e contínua amizade.
A todos os amigos que, de alguma forma, estiveram comigo, que me
ouviram, dispondo de seus ombros confortantes quando deles necessitei...
Cabe registrar o agradecimento especial aos apoiadores, que acredi-
taram na importância deste trabalho. Dessa forma, com muita satisfação, cito
cada uma dessas empresas que apoiaram esta obra.
À Pietrobon & Cia LTDA, pelo carinho e incentivo para a publicação
deste livro.
À Cooperativa de Crédito Sicredi Altos da Serra – Unidade Ibiaçá,
pelo apoio e pelo carinho com que trataram este trabalho.
À Pró-Campo de Ibiaçá, que acolheu esta ideia e partilhou de sua
realização.
À Cooperativa Nova Fiúme de Ibiaçá, pelo incentivo e pela
receptividade com que nos recebeu.
À D’Rossi, que motivou ainda mais o desejo de publicação deste li-
vro.
À Agropecuária Tapejarense, que acreditou neste sonho e fortaleceu o
desejo de tornar este livro realidade.
À Agrícola Cacique, que, com dedicação e carinho, incentivou este
projeto.
Agradeço à Prefeitura Municipal de Ibiaçá, por valorizar este trabalho
e acreditar na sua importância para a comunidade ibiaçaense.
Não poderia deixar de agradecer e de enaltecer o trabalho da Editora
Imed, que não mediu esforços para esta publicação.
Cumpre ressaltar, de maneira especial, o agradecimento a todos os
moradores da comunidade de Araçá Baixo que contribuíram para que esta
obra se tornasse realidade. Eles que me receberam sempre tão dispostos.
Agradeço pela atenção a mim dedicada, pela alegria de compartilhar suas
vidas e suas memórias.
Da mesma forma agradeço a você, querido leitor, e convido-o a en-
volver-se nesta leitura e a conhecer este espaço rural...
A todos vocês, que acreditaram nesta publicação e contribuíram para
que ela se tornasse realidade, muito obrigada!

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Sumário

Apresentação ..................................................................................... 13

Considerações Iniciais ........................................................................ 17

1 Imigração Italiana no Rio Grande do Sul: o processo de ocupação


da região nordeste do estado e a formação territorial do município
de Ibiaçá ....................................................................................... 21
1.1 A imigração italiana no Rio Grande do Sul: o acesso à terra e
a adaptação ao novo lugar............................................................ 22
1.2 A ocupação do território do atual município de Ibiaçá/RS ............. 32

2 A Constituição da Comunidade de Araçá Baixo e sua Importância


Integradora .................................................................................... 39
2.1 O espaço geográfico e a importância da comunidade de
Araçá Baixo................................................................................. 40
2.2 As relações comunitárias e a identificação com o lugar .................. 50

3 A Comunidade e as Transformações no Decorrer de sua História .... 65


3.1 A manutenção da cultura dos primeiros moradores........................ 67
3.2 As transformações socioculturais e o abandono da
Comunidade ................................................................................ 78

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3.3 A diminuição do número de pessoas na comunidade de
Araçá Baixo................................................................................. 86
3.4 A memória como manutenção da cultura dos antepassados
italianos........................................................................................ 97
3.5 Um olhar sobre a comunidade atual ............................................ 121

Considerações Finais ........................................................................ 125

Referências ....................................................................................... 131

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Apresentação

O livro “Espaço Rural: transformações, cultura e memória”, de Carina


Copatti, é o resultado de seu trabalho de conclusão do curso de graduação,
realizado junto ao Curso de Geografia da Universidade de Passo Fundo, e
constitui-se em um trabalho de destaque. Seja pelo tema abordado, seja pela
forma com que articula as fontes, os dados e as informações, resultando em
uma obra geográfica de leitura instigante.
Estudar o lugar é sem dúvida compreender as relações sociais que se
estabelecem em diferentes escalas mundiais. É compreender a construção de
uma sociedade e de um território que nada mais é do que uma porção do
espaço num processo de apropriação e construção social.
Através desta obra, Carina realiza uma reflexão a partir do resgate da
memória dos fatos vividos e repassados pelos moradores daquele lugar aos
mais novos (sendo a autora uma desses). Ela tece suas reflexões sobre o
espaço próximo, sobre o lugar onde se estabelecem relações, sobre o senti-
mento de pertencimento, de vivências cotidianas, de identidade própria, re-
sultado de uma organização espacial que parece ter se formado tão distante
de tudo, mas que, ao longo destas páginas, cria forma e importância, permi-
tindo compreender que Araçá Baixo não está isolado do mundo.
A autora tem como objetivo compreender o processo de transforma-
ções sociais, espaciais e culturais que ocorrem na comunidade de Araçá Baixo,
no município de Ibiaçá, no nordeste gaúcho. Para tanto, utiliza de forma co-
esa, conceitos e tendências teóricas, procedimentos metodológicos, coleta,
organização e análise de dados e a memória oral dos moradores que permi-

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tiram uma análise sobre a forma como o espaço se organiza e se expressa
nas relações socioculturais da comunidade.
No primeiro capítulo, trata do processo de migração italiana, desde a
chegada dos imigrantes ao estado do Rio Grande do Sul, destacando a re-
gião nordeste, em especial o município de Ibiaçá, onde está localizada a
comunidade de Araçá Baixo, evidenciando a cultura e os costumes trazidos,
a adaptação ao lugar, o acesso à terra e a ocupação do território. Destaca,
também, o desejo do imigrante pelo progresso e pela melhoria de suas con-
dições de vida, desbravando terras até então inabitadas, promovendo uma
verdadeira transformação espacial.
No segundo capítulo, descreve e analisa a concepção da comunidade
de Araçá Baixo, referindo-se ao espaço geográfico local e à sua importância
integradora regional. Sendo assim, destaca as atuais características geográfi-
cas de Araçá Baixo, relata as relações comunitárias e a identificação existen-
te entre as pessoas que ainda se mantêm naquele lugar, as quais continuam
escrevendo a história e desenhando a geografia da localidade mencionada.
No terceiro capítulo, aborda e discute as principais transformações
que ocorreram ao longo da história da comunidade de Araçá Baixo, através
da memória dos moradores que ainda vivem no lugar e daqueles que hoje
habitam outros lugares, mas que foram e continuam sendo importantes atores
na construção desse espaço geográfico. A manutenção da cultura, as trans-
formações socioculturais, a dinâmica populacional, a valorização do lugar ao
longo de sua trajetória são alguns dos aspectos abordados neste capítulo,
além de trazer por fim um olhar sobre a atual comunidade, identificando as
perspectivas dos moradores, bem como a dinâmica atual da comunidade.
Esta obra já se constitui de grande valor para a comunidade de Araçá
Baixo por resgatar e reconstituir a evolução espacial do lugar que fora ocu-
pado por seus descendentes, mas, principalmente, por expressar de forma
tão bucólica e ao mesmo tempo sublime a organização do espaço, a consti-
tuição de um território e a busca pela continuidade das relações estabelecidas,

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o esforço por manter vivos os costumes e as tradições, a necessidade de
compreender as transformações socioculturais do local de vivência.
Carina Copatti, ao apresentar o resultado de seu trabalho, cumpre seu
papel de professora de Geografia, presenteando-nos com uma memorável
reflexão sobre um lugar chamado Araçá Baixo; sobre a interferência do ho-
mem neste local; sobre as possibilidades de transformação, de reprodução e
de adaptação às mudanças ao longo do tempo; estimula novos estudos e
contribuições sobre o lugar na perspectiva da construção da identidade e do
pertencimento. Sem dúvida, é uma contribuição de suma importância para os
estudos geográficos regionais.

Boa leitura!

Luciane Rodrigues de Bitencourt


Professora do Curso de Geografia – UPF
Passo Fundo, agosto de 2010.

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Considerações Iniciais

Compreender a importância da memória oral no processo de transfor-


mação de um determinado espaço é desafiador, entretanto, fazer este estudo
na comunidade de Araçá Baixo, local onde nasci, no município de Ibiaçá/RS,
é um fato importantíssimo porque representa o retomar do passado e o
envolvimento pessoal e emocional com este lugar.
A busca pela reconstrução do passado, há muito tempo, vem se de-
senvolvendo em mim. Por isso, procurei empenhar esforços na construção
do resgate da memória, aliada ao processo de ocupação do município de
Ibiaçá e desta Comunidade. É um tanto desafiador este estudo, pois trata do
“refazer” a história da ocupação local para compreender a forma pela qual
ocorreu a transformação do espaço e que, consequentemente, originou uma
nova cultura.
À medida que as informações foram sendo organizadas, surgiram no-
vos rumos para a pesquisa. Sendo assim, foram levados em conta diversos
aspectos das transformações locais e da dinâmica populacional ocorrida no
decorrer dos anos.
Para chegar ao estudo do espaço local, procurou-se inicialmente co-
nhecer o processo de ocupação do Rio Grande do Sul e do município de
Ibiaçá, a partir da imigração italiana. A pesquisa realizada com a Comunida-
de objetiva a valorização da memória como meio de resgate da cultura local,
identificando as mudanças que ocasionaram a diminuição do número de ha-
bitantes do lugar. O estudo da forma de vida desses moradores tem a finali-
dade de conhecer suas experiências e como eles veem a construção da Co-
munidade, assim como suas vidas inseridas nela.

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Os relatos têm sentido através da memória de fatos vividos, recorda-
dos e repassados para os mais novos. A reconstrução da cultura efetiva-se
através da memória dos moradores da Comunidade devido à busca por com-
preender como eles vivem hoje e como foi o processo de fixação e adapta-
ção deles desde o surgimento da Comunidade, em 1927.
O resgate da memória origina-se através de relatos das pessoas que
vivem neste local e, também, de relatos de muitos daqueles que partiram
para outros lugares, fazendo com que a Comunidade, no decorrer dos anos,
tivesse redução no número de moradores.
Mesmo revelando um processo dinâmico de redimensionamento
populacional, observa-se, em Araçá Baixo, a manutenção dos elementos
próprios da cultura dos seus antepassados, o que faz permanecerem vivos os
costumes e a memória herdados e conservados ao longo do tempo.
A presente obra se justifica por permitir esse resgate e um
(re)conhecimento da Comunidade ao longo do tempo de sua existência.
Sendo assim, tem como objetivo analisar o processo de desenvolvimento
socioespacial e cultural deste lugar, compreendendo as transformações ocor-
ridas através da memória oral dos descendentes dos seus primeiros mora-
dores.
Para tanto, buscou-se explorar os diversos aspectos da cultura, iden-
tificando o que se mantém; analisar e comprovar a diminuição do número de
moradores na Comunidade e identificar os fatores que promovem mudanças
locais por incentivarem a saída da população, ocasionando uma nova dinâ-
mica local.
Os processos de transformação socioespacial e cultural se tornaram
mais intensos com o passar do tempo. As constatações evidenciam que a
Comunidade está diminuindo em relação ao número de pessoas que ali vivi-
am em anos anteriores.
Dessa forma, percebe-se que a maior parte das famílias possuía pe-
quenas propriedades de terras. Entretanto, muitas as venderam e migraram

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para outros lugares, adquirindo, assim, áreas maiores. Ocorreram ainda al-
gumas mudanças na estrutura fundiária, pois, a partir da saída de moradores
da Comunidade, suas terras foram agregadas a outras propriedades.
Nota-se também que, com o crescimento dos municípios vizinhos,
muitas famílias partem em busca de trabalho nas cidades, abandonando o
campo. Portanto, percebe-se ainda que diminuiu também a importância da
Comunidade devido à redução da população local e ao fechamento da
escola.
Para tais constatações, partiu-se das transformações regionais a partir
da fixação dos imigrantes de origem italiana em solo gaúcho, mais precisa-
mente no interior do município de Ibiaçá. Por causa dessa fixação dos italia-
nos, ocorreram expressivas modificações tanto no espaço ocupado quanto
na cultura local que se originou, fato de grande importância no processo de
formação e socioespacialização da população desta Comunidade.
Quanto à organização, esta obra apresenta três partes. O primeiro
capítulo trata da contextualização da imigração italiana no Rio Grande do
Sul, destacando o processo de ocupação da região nordeste do Estado e a
formação territorial do município de Ibiaçá. Esse capítulo está composto por
dois subcapítulos: o primeiro refere-se ao acesso à terra pelos imigrantes e à
adaptação dos colonos ao novo lugar e o segundo relata a ocupação do
território do atual município de Ibiaçá.
A partir do segundo capítulo, trata-se da constituição da comunidade
de Araçá Baixo e de sua importância integradora. Esse capítulo possui dois
subcapítulos: o primeiro refere-se ao espaço geográfico local e à importância
da Comunidade, utilizando dados coletados através de conversas com os
moradores; o segundo refere-se às relações comunitárias e à identificação
das pessoas com o lugar. Foram utilizadas também as memórias de pessoas
que continuam residindo na Comunidade.
O terceiro capítulo aborda as transformações no decorrer da história
de Araçá Baixo, considerando as memórias dos moradores mais antigos e
relatos de pessoas que partiram para outros lugares e que deram origem a

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uma nova dinâmica espacial. Esse capítulo traz cinco subcapítulos: o primeiro
mostra a manutenção da cultura dos primeiros moradores; o segundo relata
as transformações socioculturais e o abandono da Comunidade, demons-
trando, neste momento, as memórias colhidas em diálogos com algumas pes-
soas que deixaram este lugar; o terceiro subcapítulo revela a diminuição do
número de pessoas, contando com dados obtidos a partir do ano de 1938;
memória como manutenção da cultura dos antepassados italianos é tema do
quarto subcapítulo, que aborda as memórias relatadas pelos moradores, va-
lorizando o passado; por fim, o quinto subcapítulo apresenta um olhar sobre
a comunidade atual, as perspectivas dos moradores e a dinâmica que vem se
moldando na atualidade.

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1-
Imigração Italiana no Rio Grande no Sul:
o processo de ocupação da região nordeste do estado
e a formação territorial do município de Ibiaçá

A vinda de imigrantes de origem italiana ao Brasil, em especial ao Rio


Grande do Sul, transformou o espaço geográfico das regiões ocupadas, dando
novos significados e nova identidade cultural ao estado.
Abordar a imigração italiana da região nordeste do estado, com enfoque
na organização do espaço rural da comunidade de Araçá Baixo é uma im-
portante busca pela identidade local. Essa busca abrange intimamente as
vivências e memórias dos descendentes de imigrantes desbravadores da re-
gião, que constitui hoje o território do município de Ibiaçá. Segundo Haesbaert
e Moreira (1986, p. 60):
A imigração, produto da tensão social gerada pelo excedente populacional
sem terra e sem trabalho, decorrente do processo de desenvolvimento
da economia européia, também foi um fator importante nas alterações
espaciais, ainda hoje presentes na geografia do Rio Grande do Sul.

As transformações geográficas, observadas em diversos aspectos da


vida dos descendentes dos primeiros moradores, são fatores de destaque
nas formas de ocupação e interrelação dos membros da Comunidade.

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1.1 A imigração italiana no Rio Grande do Sul: o acesso à terra e a
adaptação ao novo lugar
O processo de imigração italiana para o Rio Grande do Sul fez parte
do projeto do governo imperial brasileiro, que utilizava a imigração para pre-
encher os vazios demográficos existentes no sul. Dessa forma, inicia-se um
novo momento de transformações no Estado, período no qual se alteram as
formas de ocupação, de trabalho e que acarreta, principalmente, em aumen-
to populacional no final do século XIX e início do século XX.
Com o projeto da imigração italiana para o Brasil, alteram-se diversos
fatores geográficos, políticos e sociais de relevância no estado. Dentre eles,
ocorre a substituição da mão-de-obra do escravo negro pelo trabalho livre,
baseado na pequena propriedade, utilizando mão-de-obra familiar.
Nos espaços de terras devolutas, não produtivas para o país, foi insta-
lado o projeto de colonização. Segundo Cenni (2003, p. 144), “[...] surgia,
nos últimos lotes de terras devolutas, um território áspero e impérvio, onde
índios e feras dominavam [...]. Eram os territórios que, pouco mais tarde,
seriam desbravados por colonos italianos”.
Sobre a ocupação do território brasileiro por imigrantes europeus,
Waibel (1949, p. 166) defende que:
O Brasil precisava de um novo tipo de colonos, pequenos proprietários
livres, que cultivassem as terras de mata com o auxílio de suas famílias e
que não estivessem interessados nem no trabalho escravo, nem na cria-
ção do gado. O novo colono deveria ser tanto um soldado, como um
agricultor, para poder defender tanto sua terra como cultivá-la [...].

Assim, ocorreu uma nova fase no Brasil, ou mais propriamente no sul


do país, quando os imigrantes italianos chegaram ao Rio Grande do Sul,
oriundos, segundo Hoffmann (1992, p. 72), “do norte da Itália, especialmen-
te das regiões do Veneto e do Milanes”, ocupando a região serrana do norte
rio-grandense. A região foi sendo ocupada por milhares de colonos que che-
gavam a Porto Alegre e, posteriormente, eram conduzidos às Colônias na
encosta do planalto. Corteze (2002, p. 38) corrobora o exposto:

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A partir de 1875, grandes levas de imigrantes italianos chegaram ao Rio
Grande do Sul. A situação da imigração começou a mudar. No sul, os
territórios tidos como vazios ocupados por ‘bugres’ e ‘caboclos’, come-
çavam a ser preenchidos. As colônias floresciam e as matas eram derru-
badas. O número de imigrantes crescia ano após ano, em geral, uns
atraídos pelos outros.

O início da imigração para o Rio Grande do Sul data a partir de 1875,


porém, alguns autores afirmam que a imigração de italianos para o Estado
antecede esta data por haver indícios de que algumas pessoas de origem
italiana haviam chegado ao estado em anos anteriores. Deve-se considerar
as palavras de Cenni (2003, p. 146) afirmando que, muito embora a data
oficial do início da colonização italiana no estado seja considerada 1875, já
em 1871 se referiam à presença de colônias formadas por imigrantes italia-
nos na região da serra. Na visão de Trento (1989, p. 18), no fim da década
de 1870, iniciava-se um movimento maior de imigração de italianos para o
Rio Grande do Sul. Segundo o autor:
Será a partir do fim dos anos 70 [década de 1870] que a emigração italia-
na para o Brasil começará a assumir um aspecto mais preciso e dimen-
sões apreciáveis, e, até, a transformar-se em fenômeno de massa entre
1887 e 1902, contribuindo, de modo decisivo, para o aumento demográfico
do país [...].

Independente da data exata em que chegaram os primeiros imigrantes


italianos ao Estado do Rio Grande do Sul, o que possui relevância, para o
presente estudo, é a forma de ocupação do estado a partir desse fato
geohistórico e as transformações causadas nos espaços observados.
A ocupação das novas terras se deu inicialmente na região conhecida
como Serra Gaúcha. De acordo com Hoffmann (1992, p. 71):
Os italianos foram localizados na região serrana da encosta do planalto,
pois os alemães já tinham ocupado os vales fluviais. [...] Logo após
Nova Milano, foram criadas as colônias Conde D’Eu (atual Farroupilha),
Dª. Isabel (atual Bento Gonçalves) e Caxias (Campo dos Bugres, que
originou o município de Caxias do Sul). Cumpre salientar que o governo
brasileiro, estimulando a imigração italiana, tinha em vista os mesmos
objetivos da imigração alemã.

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A ocupação dos espaços vazios no sul do Brasil também impediria o
ataque de outros povos. Dessa forma, a imigração teve apoio no país. Para
Santos (1988, p. 15), “a segunda metade do século XIX marca o começo
das migrações maciças dos países ‘velhos’ para as nações ‘novas’ onde se
instalam centenas de milhares de europeus”.
Os imigrantes de origem italiana foram atraídos ao Rio Grande do Sul
para trabalharem como pequenos agricultores e lhes foram reservadas terras
selvagens na encosta da Serra Gaúcha, onde foram criadas as primeiras co-
lônias. Segundo Bernardes (1997, p. 73), “a preocupação em utilizar os co-
lonos como elementos desbravadores que removessem, ao término de al-
guns anos, trechos da mata da Encosta para assegurar a comunicação com
os campos do Planalto, presidiu a fundação de algumas colônias [...]”.
Abordando aspectos da povoação da região nordeste do Estado, afir-
mam Haesbaert e Moreira (1986, p. 64):
Quando todas as áreas campestres estavam ocupadas, no final do sécu-
lo passado [séc. XIX], já havia iniciado a estratégia de colonização teuto-
-italiana nas áreas de mata. Tendo como fundamento a pequena propri-
edade, as primeiras “colônias” foram estabelecidas em pontos de tra-
vessia da floresta pelos caminhos do gado, ou próximo deles, a fim de
atuarem como elemento de apoio e de segurança no “vazio”’ até então
existente nas áreas florestais.

Essas colônias, criadas na encosta do planalto, representam, a partir


desta época, um novo período para a organização do espaço, transforman-
do a paisagem e a cultura regional, reconfigurando em vários aspectos o
estado gaúcho. Bernardes (1997, p. 74) ratifica o exposto:
Imprimindo os rumos iniciais da colonização, o governo deu ao colono a
tarefa de fazer recuar a mata virgem, e isto era uma razão importante.
Mas, acima de tudo, o que sucedeu com os imigrantes europeus é que
eles se fizeram herdeiros da tradição luso-brasileira, de que a agricultura
só seria proveitosa na mata, onde o solo humoso compensava o traba-
lho da semeadura [...].

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O processo de colonização marca uma nova forma de estruturação do
espaço rural brasileiro que consiste na pequena propriedade. Até então, os
portugueses haviam ocupado o Brasil no sistema de latifúndio e escravidão.
A partir do momento em que se criam condições para a colonização,
explora-se algumas formas de trabalho e de apropriação do espaço, de ma-
neira que se projeta a transformação do modo de vida nos lugares ocupados.
Essas novas formas de vida proporcionam embasamento para a implantação
de novas culturas agrícolas, valorizando as terras de mata e alterando as
condições físicas do lugar e, de certa forma, criando uma cultura distinta.
Como se sabe, as regiões da encosta do planalto e da chamada Serra
Gaúcha foram destinadas à ocupação italiana. Por isso, para elas, milhares
de imigrantes foram sendo conduzidos após o desembarque em solo brasileiro.
A ocupação das terras representa um momento de lutas e de determi-
nação porque o colono imigrante precisava localizar e “limpar” seu lote de
terras para finalmente fazê-lo produzir. A região ocupada pelos “novos brasi-
leiros” foi sendo moldada à cultura italiana, sendo que a adaptação impôs
muitas dificuldades aos novos moradores, dentre elas o acesso aos lotes que
lhes eram designados. O isolamento das colônias também era um desafio
para os imigrantes, que precisavam constituir as lavouras e manterem-se na
nova terra, produzindo para o sustento da família.
O governo imperial brasileiro procurou acelerar a ocupação do Esta-
do, porém não deu incentivos suficientemente favoráveis para a fixação dos
colonos. Dessa forma, eles precisaram contar com a própria sorte e apenas
com algumas ferramentas para iniciar o trabalho. Isolados, os imigrantes
mantinham a língua do país de origem, permanecendo unidos através da cul-
tura e da necessidade de auxílio no trabalho de desbravamento das terras e
preparação das roças para o plantio.
Com a derrubada da floresta nativa, os colonos passam a plantar a
terra e a desenvolvê-la de acordo com sua própria cultura, sobrevivendo
através do esforço conjunto dos membros das famílias. Bernardi (1988) re-
lata, na obra “Vita e Stória de Nanetto Pipetta”, a saga de um imigrante

25
chamado Nanetto Pipetta que migra para a América com a esperança de
mudar de vida. Ao conhecermos o percurso deste personagem, deparamo-
nos com diversos fatos que lembram as histórias contadas pelos “nonos” a
respeito da imigração de inúmeras pessoas da Itália para o Brasil.
Tal fato histórico, recordado pelos descendentes dessa trajetória aqui,
é visto com “outros olhos”, os olhos daqueles que partiram atrás de um so-
nho, que deixaram suas vidas e famílias para irem em busca de um novo
lugar, que não era conhecido, era apenas imaginado ou idealizado.
O imigrante italiano, na promessa da obtenção de terras no continente
americano, chega ao Brasil com o sonho de “fazer a América”. Essa “passa-
gem”, para os imigrantes, é vista como “construção”, sendo, dessa forma, a
construção de uma nova vida, de novos sonhos e, de certa maneira, de um
novo país.
Pode-se imaginar, assim, a expectativa gerada com a emigração para
o Brasil. Os sonhos, os desejos de crescer através do trabalho se tornam
metas a serem alcançadas na nova terra. Para tanto, os emigrantes deixavam
para trás o passado e partiam para novas descobertas, muitas dessas
inimagináveis no momento da saída de sua terra natal em busca do desco-
nhecido.
No Rio Grande do Sul, os imigrantes se agrupavam em colônias agrí-
colas, muitas vezes compostas exclusivamente por italianos. Sendo assim, o
doloroso fato de abandonarem sua terra natal se tornava mais ameno a partir
do momento em que tentavam recriar, em terras brasileiras, características
de seu país de origem.
A fixação do imigrante na nova terra se tratava de uma experiência
desafiadora, pois ele deixava para trás toda uma vida e recomeçava num
mundo totalmente novo, onde precisava reconstruir desde sua casa, sua comu-
nidade até sua cultura, a fim de mantê-la viva e adaptá-la à nova realidade.
Diante das dificuldades que os imigrantes vindos da Itália encontraram
na chegada ao Estado, houve a necessidade de trabalharem intensamente na
abertura da mata para construírem suas casas e começarem o plantio das

26
sementes. Hoffmann (1992, p. 71) comenta que aos recém-chegados era
oferecido um lote de 25 hectares e mais as sementes e instrumentos necessá-
rios para o início da plantação. Assim, as ofertas do governo e os preços
baixos incentivavam os colonos a abrirem suas roças nas matas virgens, inici-
ando as primeiras plantações neste território.
É importante, para a compreensão deste estudo, considerar o signifi-
cado de território que, segundo Rückert (1997, p. 34), “[...] seria, ao mesmo
tempo que chão/terra-matéria, lugar de atuação das diferentes classes so-
ciais e do Estado [...] o território é, assim, o espaço concreto das relações
sociais [...]”.
Haesbaert, apud Silva e Fioreze (2004, p. 14), reafirma a dimensão
do território para além da delimitação natural e de fronteiras bem definidas,
enfatizando o enraizamento dos indivíduos e dos grupos sociais no espaço
definido como região, marcado pela geograficidade ou territorialidade, que
vincula os homens ao meio, à terra, ao espaço.
O território, para o imigrante, não é somente o espaço em “si”, mas é
parte de sua própria vida, da cultura do seu povo, da luta cansativa para
possuí-lo. O território é, portanto, parte importante na construção de sua
própria identidade.
O espaço geográfico, na visão do colono imigrante, é o espaço do
crescimento através da utilização da natureza, da mata, da produção agríco-
la. Neste contexto, há adaptação e transformação do espaço habitado.
A adaptação do homem ao espaço natural é diferente em cada grupo
social, segundo Santos (1988, p. 14), “[...] a questão do espaço habitado
pode ser abordada segundo um ponto de vista biológico, pelo reconheci-
mento da adaptabilidade do homem, como indivíduo, às mais diversas altitu-
des e latitudes, aos climas mais diversos, às condições naturais mais extre-
mas”. Dessa forma, pode-se compreender que cada grupo ocupa de forma
singular o espaço e o transforma de acordo com seus conhecimentos e com
suas necessidades. O colono imigrante adaptou-se às condições naturais do
Estado, transformando o espaço a fim de organizar-se na nova terra.

27
No contexto da ocupação do espaço rio-grandense, há também que
se considerar os aspectos físicos do estado, em especial o clima, o qual, de
certa forma, parece-se com o clima do norte da Itália. Sendo assim, as áreas
de planalto, ocupadas pelos imigrantes, não diferem tão significativamente
das áreas ocupadas anteriormente na Europa, o que fez com que a adapta-
ção se tornasse menos difícil.

A região serrana do estado, localizada no planalto rio-grandense, apre-


senta características específicas às quais o imigrante foi se adaptando cotidi-
anamente. Ele se adaptou às condições climáticas e procurou triunfar em
terras brasileiras.

As áreas do norte e nordeste gaúchos, originalmente, apresentavam


grandes florestas de araucárias, características de terras de altitudes acentu-
adas e clima relativamente frio, porém, com a ocupação intensa do solo,
essas áreas perderam a maior parte de sua vegetação natural, principalmente
após a ocupação pelos imigrantes. Este dado é relevante, pois o imigrante,
ao lançar-se à nova vida, precisava de novas formas de trabalho e sustento.
Sendo assim, ele devasta a mata virgem e inicia a plantação das primeiras
lavouras.

As áreas florestais, no planalto rio-grandense, foram sendo desmatadas


durante a ocupação do estado, transformando-o de maneira significativa.
Moreira (2000, p. 22) afirma que:

Quando os primeiros europeus chegaram ao extremo sul do Brasil, cerca


de 40% do território era coberto por florestas. A partir do século XIX,
com o povoamento e a colonização, as matas começaram a ser derruba-
das para a produção de madeira e principalmente para a ocupação agrí-
cola [...].

A vegetação original do estado delimita dois grandes elementos


principais existentes em terras gaúchas, as áreas de campo e as áreas flores-
tais sob influência do relevo e do clima ameno. Segundo Marchiori (2004,
p.11 e 13):

28
A vegetação do Rio Grande do Sul, composta essencialmente de cam-
pos e florestas, encontra-se em permanente competição no espaço regi-
onal, sob forte influência de fatores ambientais, sobretudo os climáti-
cos, que sofreram transformações marcantes ao longo do tempo,
notadamente durante o Quaternário [...] Centrado em torno do paralelo
de 30º S, quase a meio caminho entre o Equador e o Círculo Polar Antár-
tico, o Rio Grande do Sul situa-se justamente na transição das zonas
climáticas tropical e subtropical, o que explica, pelo menos em parte, a
coexistência de campos e florestas em seu espaço geográfico.

Consideraremos neste estudo, mais precisamente, a região de con-


centração das Matas de Araucárias, do planalto rio-grandense, na porção
nordeste do estado. Nesta região serrana, a ocupação pelos descendentes
dos primeiros imigrantes ocasionou transformações, uma vez que eles ocu-
param todas as áreas, produzindo uma nova fronteira agrícola e provocando
também o desmatamento de muitas áreas de floresta nativa.
Inicialmente, faz-se necessário delimitar o que é planalto. Essa forma-
ção geológica de relevo pode ser definida como uma região alta, com topo
levemente ondulado, presente em diversos lugares do mundo. No estado,
constitui áreas de solo fértil e com a presença de florestas, abrangendo a
porção norte, estendendo-se de leste a oeste. Segundo Bernardes (1997,
p. 18):
O planalto é constituído pelos espessos lençóis de efusivas básicas
pertencentes ao conjunto de derrames da bacia do Paraná. Ao flanco e à
borda extremamente recortada deste planalto é que corresponde o
topônimo Serra Geral, que, nos livros de texto, acompanha toda a encos-
ta deste platô triásico até São Paulo. Para os rio-grandenses, ela é, sim-
plesmente, a ‘serra’. Por ‘cima da serra’ entende-se toda a ‘região serra-
na’ que se estende por quilômetros e quilômetros além da cornija recor-
tada até o rio Uruguai e seus formadores.

Como bem se sabe, a ocupação do estado iniciou-se pela encosta do


planalto. Primeiramente toda a região da Serra Gaúcha foi ocupada e,
posteriomente, as áreas ao norte e ao nordeste, regiões também constituintes
do planalto do Rio Grande do Sul.

29
Sobre a formação do solo na região do planalto, Moreira (2000, p.
11) afirma que “o planalto Norte-Rio-Grandense é formado por rochas
sedimentares relativamente antigas, principalmente o arenito, que estão co-
bertas por espessas camadas de rochas vulcânicas, sobretudo o basalto. Por
isso, dizemos que esse planalto é arenítico-basáltico”.
O planalto rio-grandense ocupa uma extensa área que apresenta alti-
tudes variadas em toda sua extensão e as maiores delas são encontradas na
porção leste do planalto meridional.
A ocupação da região nordeste do estado se fez através da vinda de
imigrantes italianos ou dos descendentes desses situados na região de Bento
Gonçalves, Antonio Prado, Caxias do Sul e outros municípios da região da
Serra Gaúcha. A intensa ocupação das áreas serranas obrigou a busca por
novas terras, sendo que muitos colonos migraram na expectativa de conquis-
tarem novas oportunidades nesta região. Sobre a ocupação das terras na
referida região, Rückert (1997, p. 102) afirma que:
No início do século, o território encontra-se mais densamente povoado,
estando a terra em acelerado processo de apropriação. Nela, já se prati-
cam a pequena agricultura e a extração de pinheirais, muito procurados
pelos proprietários de serrarias, dado o grande comércio de madeiras
nas primeiras décadas do século pela facilitação de seu transporte atra-
vés da ferrovia. O resultado dessa extração desenfreada é a precoce
devastação das matas originais.

Alterando-se as formas de ocupação da terra no planalto gaúcho, es-


pecialmente na região nordeste, nota-se a presença de áreas agrícolas e flo-
restais, as quais contrastam e, de certa forma, impõem-se como necessárias
quando ocorre a apropriação pelo colono italiano. Dessa forma, pode-se
afirmar que a região nordeste do estado caracteriza-se por possuir áreas de
agricultura e pela presença de florestas, algumas sofrendo desmatamento;
outras, porém, sendo preservadas.

30
Desde o início da ocupação, a devastação de áreas florestais nesta
região sempre foi contínua. Hoje, devido à incessante e intensa busca pela
produtividade, esse problema continua. Sendo assim, pode-se afirmar que a
procura pelo aumento das áreas produtivas faz com que o homem (todos os
homens que ocupam o espaço) torne-se alienado quanto às preocupações
ambientais.
Os colonos imigrantes, então, continuaram conquistando novos espa-
ços no território do estado. Dessa forma, com o crescimento e adensamento
populacional ocorrido nas áreas de ocupação primária, seus descendentes
se espalharam por diversos outros lugares do Rio Grande do Sul na procura
de novas terras para se instalar e fazer suas plantações. Segundo Freitas
(1987, p. 101):
A expansão rápida e espetacular da colonização italiana no Rio Grande
do Sul foi um fato incontestável e, de certa maneira, surpreendente. Em
poucos anos, as áreas destinadas a essa colonização estavam total-
mente ocupadas pelos seus descendentes, obrigando os novos imi-
grantes a procurar outras terras, longe das zonas previstas pelas auto-
ridades. A expansão efetuou-se, no início, da periferia das antigas
colônias, tomando direções as mais amplas e distantes. [...] A irradia-
ção italiana atingiu toda a margem meridional do Planalto; a leste al-
cançou os Aparados da Serra. Mas a maior conquista italiana foi a do
nordeste, região de difícil acesso, o que demonstrou a tenacidade e
vontade de vencer desta gente.

Em relação à necessidade de migrar para outros lugares, Hoffmann


(1992, p. 59) afirma que “ao passar do tempo, essas propriedades foram
sendo partilhadas entre os herdeiros. Uns ficavam e outros migravam em
sucessivas levas, seja para novas terras, alargando a ‘fronteira agrícola’ nou-
tros estados, seja em direção às cidades do RS”.
A ocupação pelos primeiros moradores, que migravam da região da
Serra para a região nordeste do Rio Grande do sul, pode ser atribuída às
necessidades das famílias de colonos, porém, refere-se ainda a aspectos físi-
cos, que impulsionaram a colonização da região.

31
A região apresenta aspectos intermediários entre mata e área de plan-
tio. Assim, também é caracterizado o território pertencente ao município de
Ibiaçá, que teve origem nas áreas de mata, no planalto rio-grandense, estan-
do numa região que, hoje, apresenta grandes plantações agrícolas, onde an-
teriormente havia a presença de mata virgem.

1.2 A ocupação do território do atual município de Ibiaçá/RS

Com a migração dos italianos (e posteriormente de seus descenden-


tes) para as regiões do estado, a localidade onde hoje é o município de
Ibiaçá, situada na região nordeste do Rio Grande do Sul, também recebeu
colonizadores.
De acordo com o relatório da comissão de municipalização de Gestão
Ambiental, Ibiaçá localiza-se no Planalto Rio-Grandense, na região nordeste
do estado, com altitude média de 620 metros, sendo que sua sede está nas
coordenadas 28º03’25" de latitude sul em relação a Linha do Equador e
51º50’17" de longitude oeste em relação ao Meridiano de Greenwich.
O município de Ibiaçá limita-se ao norte com os municípios de
Sananduva e Charrua, ao sul com os municípios de Caseiros e Santa Cecília
do Sul, a leste com os municípios de Lagoa Vermelha e Sananduva e a oeste
com o município de Tapejara, possuindo atualmente uma área territorial de
351,41 quilômetros quadrados.
O início da colonização italiana neste município, segundo o histórico
municipal, ocorreu em meados da década de 1920, quando chegaram algu-
mas famílias provenientes de Caxias do Sul, Antônio Prado, Bento Gonçal-
ves, Ana Rech e São Francisco de Paula, que vieram para a região comprar
terras, a fim de construir suas vidas neste lugar.
Na época em que chegaram, os imigrantes de origem italiana ou filhos
de italianos encontraram aqui, em algumas áreas do município, índios e cabo-
clos, sendo que a ocupação por esses era pequena se comparada à extensa
área territorial desabitada. Sendo assim, alguns colonos vieram para esta

32
região, construindo neste espaço uma nova vida, cercada de novas possibi-
lidades.
Da região da Serra, foram se expandindo núcleos coloniais para regi-
ões do norte e nordeste gaúcho, surgindo, assim, novas colônias. Uma delas,
segundo Cenni (2003, p. 151), é Nova Fiúme, que é hoje o município de
Ibiaçá. O nome “Nova Fiúme” foi escolhido para recordar o local semelhan-
te a este que existia na Itália, de onde eram originários os ancestrais de alguns
dos primeiros moradores do pequeno povoado.
Para os primeiros moradores, a ocupação da área representou algu-
mas dificuldades em relação ao deslocamento, acesso às terras e distância
em relação aos demais povoados e municípios.
Por muitos anos, a Vila “Nova Fiúme” foi distrito de Lagoa Vermelha.
Segundo o histórico do município, no dia 15 de maio de 1948, pelo Decreto
59/48, “Nova Fiúme” foi elevada à categoria de vila, passando a ser o 12º
distrito do município de Lagoa Vermelha, com o nome de Ibiaçá, que signifi-
ca, em língua indígena, “fonte de água cristalina”. Com a emancipação de
Sananduva, em 15 de dezembro de 1954, de acordo com a lei nº. 2521,
Ibiaçá passou a ser 2º distrito de Sananduva. Segundo Barbosa (1994, p. 11):
O povoado da Capela de Santa Filomena, que pertencia à paróquia de
Sananduva, recebeu, a princípio, o nome de Nova Fiúme. Em 04.07.1948,
com a criação do distrito, o 12º distrito de Lagoa Vermelha, o nome foi
mudado para IBIAÇÁ. Nome indígena, recorda a antiga Província de
Ibia dos Jesuítas das Missões, que povoaram os campos de gado e
cuidavam da catequese dos índios da região [...].

Em 22 de novembro de 1965, conforme lei nº. 5102, Ibiaçá conquis-


tou sua emancipação político-administrativa em relação ao município de
Sananduva, com o qual a comunidade de Araçá Baixo faz divisas. Ao com-
pletar 45 anos, Ibiaçá contempla um grande desenvolvimento agropecuário e
turístico, recebendo milhares de visitantes, especialmente no último fim de
semana do mês de fevereiro, quando se realiza a Romaria de Nossa Senhora
Consoladora. Na figura 1, observa-se a fotografia aérea, obtida em agosto
deste ano, da zona urbana do município de Ibiaçá, em franca expansão.

33
Figura 1: Imagem aérea da zona urbana de Ibiaçá / 2010.
Fonte: Roberto Nazaré Cavalli, 24/08/2010.

Segundo relatos obtidos do histórico municipal, as terras onde hoje


está constituído o município de Ibiaçá, no início da década de 1920, “eram
de propriedade de Constança Bueno. Um total de 440 colônias de terra
aproximadamente foi comprado por Filomeno Pereira Gomes”. Esse optou
por vender as terras, dividindo-as em pequenos lotes. Sendo assim, come-
çou a se formar uma pequena vila cujo nome passou a ser “Nova Fiúme”.
Posteriormente, foram sendo adquiridos outros lotes nesta região. Dessa
forma, aumentava a ocupação pelos imigrantes italianos e descendentes des-
ses no estado. Em 1921, chegaram 27 famílias oriundas de Caxias do Sul,
ampliando a povoação local e iniciando, assim, a transformação do território
ocupado.
Inicialmente, ao realizarem o reconhecimento da região, houve a ne-
cessidade de conhecerem os lugares em que se apresentavam as terras a
serem compradas. Dessa forma, os imigrantes se deslocavam pelas matas no
interior, utilizando trilhas, identificando a região até então desconhecida.
Na visão de Lacoste (1997, p. 223), “[...] deslocar-se num território
que não é balizado (sem indicação de itinerários) e que não se conhece, ou

34
que se conhece mal, exige se orientar e se informar para prever, antecipada-
mente as distâncias, as dificuldades e os obstáculos”.
Acredita-se que a orientação não era muito precisa neste período,
porém, ao se deslocarem no início da ocupação do estado, os imigrantes
começam a desenvolver habilidades para enfrentar as adversidades que pu-
dessem surgir por causa da adaptação ao novo lugar.
No processo de fixação, os primeiros colonos moradores desta região
procuraram adaptar-se às novas áreas. Para tanto, desenvolveram nelas ati-
vidades para o seu sustento conforme a capacidade do lugar, também pro-
duziram condições para se desenvolverem, ou seja, para trabalharem a terra
e para organizarem suas vidas.
A devastação causada pelo processo de ocupação das terras do atual
município de Ibiaçá trouxe transformações à paisagem local, modificando a
estrutura do lugar, alterando a vegetação, a cultura e as formas de plantio.
Quando os indivíduos partilham a história dos espaços, fazem parte,
diretamente, da transformação deles e, através disso, tornam-se sujeitos das
mudanças desse espaço, contribuindo para a sua continuidade.
Santos (1988, p. 21) define que “[...] tudo aquilo que nós vemos, o
que nossa visão alcança, é a paisagem. Esta pode ser definida como o domí-
nio do visível, aquilo que a vista abarca. Não é formada apenas de volumes,
mas também de cores, movimentos, odores, sons etc.”. A paisagem se trans-
forma de acordo com a utilização do espaço, pelos seres humanos e por
tudo o que eles possuem, criam ou modificam. As diferenciações criadas
numa mesma paisagem se originam das necessidades humanas, de sua atua-
ção e dos meios naturais que são transformados no decorrer do tempo. Para
Silva (2004, p. 16):
Nós somos a imagem ‘viva-materializada-pensante’ do espaço e do tem-
po porque somos seus símbolos dotados de razão e de emoção. Somos
unidades vivas e perceptivas de espaço/tempo em movimento. Passa-
mos com o tempo, enquanto guardamos sua marca cronológica no espa-
ço do nosso corpo e o amarramos em nossa memória.

35
As transformações do espaço regional tornaram-se notórias com o
decorrer do tempo, devido ao aumento da ocupação da região. Este aumen-
to populacional foi responsável por alterar gradativamente as formas de utili-
zação do solo.
Para Dollfus (1982, p. 29, citando P. George em sua obra “A ação do
Homem”) “[...] a ação humana tende a transformar o meio natural em meio
geográfico, isto é, em meio moldado pela intervenção do homem no decurso
da história”. Um fato que demonstra a ação humana é a construção social
produzida a partir da interação entre as pessoas que constituem um grupo.
Segundo Callai (1998, p. 73), uma forma que representa o processo de
sociabilidade com o grupo é o município, segundo ela “(...) o município se
constitui como o lugar, parcela do espaço em que é possível perceber o pro-
cesso de construção social e apropriação do espaço”.
O município de Ibiaçá retrata, em sua formação, a presença de diver-
sos elementos e significados de origem italiana, trazidos pelos primeiros imi-
grantes e adaptados à vida de seus moradores. A religiosidade expressa pe-
los habitantes de Ibiaçá revela a influência dos imigrantes no município. Eles
chegaram ao estado e, posteriormente, a este lugar, trazendo suas crenças,
sua cultura e seus costumes, adaptando-os às condições encontradas no lo-
cal onde anos mais tarde surgiria o município de Ibiaçá.
Segundo o histórico do município, data de 1921 a chegada dos pri-
meiros moradores e “em junho de 1924 ergueram a primeira capela atendida
pelo pároco de Sananduva, padre Geraldo de Gruffi, que a consagrou a
Santa Filomena, em homenagem a Filomeno Pereira Gomes, o primeiro pro-
prietário destas terras e que doou o terreno para a construção da capela”.
Em janeiro de 1948, “Nova Fiúme” foi elevada à categoria de paró-
quia, devido à dificuldade de atendimento à capela local pelo pároco de
Sananduva.
A fé, a religiosidade e a devoção são aspectos relevantes no município
que em 1952 iniciou, através da liderança do padre Narciso Zanatta, um
grande movimento religioso. A pequena igreja transformou-se em um local

36
muito conhecido e que atrai pessoas de inúmeros lugares para a Romaria em
honra a Nossa Senhora Consoladora, realizada todos os anos, no último final
de semana de fevereiro.
Esta festa religiosa constitui o maior evento anual do município, que é
conhecido nacionalmente por sua religiosidade. Por causa de sua Romaria,
Ibiaçá recebe milhares de devotos oriundos de todo o território nacional.
Nas figuras 2 e 3, observa-se a festa religiosa em devoção à Nossa Senhora
Consoladora, em épocas diferentes.

Figura 2: Fotografia de uma das Figura 3: Santuário de Nossa Senhora


primeiras Romarias. Consoladora.
Fonte: Acervo pessoal de Fonte: A autora.
Nédio Crestani.

Não somente as características expressas através da religiosidade do


povo, mas também os fatos do dia-a-dia podem melhor ser definidos e com-
preendidos nas comunidades rurais do município por manterem elementos
próprios da cultura italiana e cultivarem hábitos de seus antepassados de
forma mais intensa do que ocorre no espaço urbano.
O meio rural mantém os elementos da cultura e da ocupação que fa-
zem parte da forma com que os primeiros moradores se fixaram neste lugar,
desenvolvendo características singulares na região.
Esta região, onde está localizado Ibiaçá, era pouco habitada em mea-
dos do século XX, nas palavras de Barbosa (1994, p. 259):

37
Havia então sete capelas (no município de Ibiaçá): Nossa Senhora da
Conceição de Três Pinheiros, fundada em 1901; Capela São João Batista
no Araçá Baixo, fundada em 1927, com 36 famílias; Divino Espírito San-
to, na Fazenda dos Marques, fundada em 1930, com 36 famílias; Nossa
Senhora do Rosário, no Butiá, fundada em 1931, com 52 famílias; São
Sebastião do Mato Português, hoje Vila Vitória, fundada em 1937, com
68 famílias; São João Vianey na Várzea do Paiol, com 49 famílias, [...] e
Santa Libera, do Rio Telha, fundada em 1944, com 34 famílias. Posterior-
mente surgiram outras comunidades no município.

Nestas comunidades rurais, a cultura e a ocupação do espaço mantêm


traços singulares, absorvidos dos antepassados dos moradores e comparti-
lhados com os seus descendentes. Isso faz com que a cultura (ou pelo menos
parte dela) mantenha-se viva, enaltecendo, assim, a presença da figura do
imigrante neste lugar.

38
2-
A Constituição da Comunidade de Araçá Baixo
e sua Importância Integradora

Conhecer o espaço em que se vive é parte importante para o próprio


reconhecimento do ser humano. Reconhecer-se no espaço habitado significa
identificação com o lugar ocupado e necessidade direta dele.
O lugar no mundo de cada indivíduo é que define certas características
presentes em sua forma de vida, de construção, de conhecimento, de adap-
tação, de utilização e de apropriação de recursos.
Callai (2004, f. 1), em seu artigo “O estudo do lugar como possibilida-
de de construção da identidade e pertencimento”, afirma:
É um espaço construído como resultado da vida das pessoas, dos gru-
pos que nele vivem, das formas como trabalham, como produzem, como
se alimentam e como fazem/usufruem do lazer. É, portanto, cheio de
história, de marcas que trazem em si um pouco de cada um. É a vida de
determinados grupos sociais, ocupando um certo espaço num tempo
singularizado. Considerando que é no cotidiano da própria vivência que
as coisas vão acontecendo, vai se configurando o espaço, e dando
feição ao lugar. Um lugar que é um espaço vivido, de experiências sem-
pre renovadas, o que permite que se considere o passado e se vislumbre
o futuro. A compreensão disto necessariamente resgata os sentimentos
de identidade e de pertencimento.

O lugar se configura como espaço transformado e adaptado de acordo


com as necessidades dos descendentes de imigrantes que originaram a co-
munidade de Araçá Baixo, dando ao espaço geográfico um novo significado.

39
A pesquisa em torno desta comunidade rural tem um significado muito
pessoal para mim. Ao reconstruir a geohistória desta Comunidade, no de-
correr dos seus 83 anos, retorno à infância no reencontro com velhos conhe-
cidos, vizinhos, parentes e amigos... Pessoas que dividiram entre si partes de
suas vidas, formando histórias conjuntas, fraternas e dotadas de sentimento
pelo lugar.
Muito importante também é descobrir nossas raízes, nossos antepas-
sados, aqueles que iniciaram a transformação dos lugares para que se tor-
nassem o que são hoje, como os vemos e como neles vivemos. A redescoberta
do espaço antigo e sua adaptação à atualidade nos dão novas dimensões do
espaço geográfico, levando-nos à compreensão, de maneira clara, das mu-
danças que ocorreram, e que, de certa forma, fazem parte do que somos.
Dessa forma, o reconhecer o espaço ou o reconstruir, através de relatos,
fotografias e memórias, sua evolução torna-se uma experiência de
revalorização dos costumes e do passado vivido pelo ser humano, num es-
paço constituído pelo grupo.

2.1 O espaço geográfico e a importância da comunidade de Araçá


Baixo

Conhecer o lugar onde vivemos é importante e, neste caso, desafia-


dor. Desafiador, pois, dispondo de pouco material escrito, mas, contando
com as memórias e objetos dos moradores da Comunidade, reconstituí o
espaço social ocupado e transformado pela população local.
O resgate da Comunidade, neste caso, tem uma grande importância
geográfica e particular, pois, nascida neste lugar, procuro conhecê-lo e
compreendê-lo a partir da chegada dos descendentes de imigrantes italia-
nos, pois esses transformaram a região, gerando novas dinâmicas no espa-
ço local.

40
O lugar, no processo de evolução humana, transforma-se e se re-es-
trutura em diversas possibilidades, dependendo dos agentes causadores das
mudanças.
No processo de transformações e mudanças sociais ocorridas com as
populações descendentes de imigrantes, no Estado Gaúcho, destaco a co-
munidade de Araçá Baixo, que tem enfoque neste trabalho. A constituição de
Araçá Baixo assume grande importância na história do município de Ibiaçá e
na transformação desse com a chegada dos imigrantes italianos à região.
Em seu território, Ibiaçá apresenta diversas comunidades rurais que
foram sendo criadas antes mesmo de sua emancipação. Assim também ocorreu
com a comunidade de Araçá Baixo, que surgiu antes mesmo de Ibiaçá se
tornar município.
A comunidade de Araçá Baixo localiza-se nas divisas entre os municí-
pios de Ibiaçá, Tapejara, Charrua e Sananduva, fazendo divisa com Tapejara
e Charrua pelo rio Apuaê (Ligeiro) e com o município de Sananduva pelo rio
Araçá. Portanto, está localizada em terras de divisas entre quatro municípios
e liga-se a eles através de estradas secundárias, todas de chão batido. A
figura 4 mostra a localização da área em estudo.
A sede da Comunidade localiza-se nas coordenadas 28° 00’10.59"
de latitude ao sul da Linha do Equador e 51° 55’ 16.17" de longitude a oeste
do Meridiano de Greenwich, a uma distância de aproximadamente 13 quilô-
metros da sede do município. Apresenta distâncias entre 12 e 15 quilômetros
dos municípios vizinhos, com os quais faz divisas.

41
Figura 4: Mapa de localização da área em estudo.
Fonte: Claudionei L. Gengnagel.

42
Os limites municipais do estado são geralmente estabelecidos pela exis-
tência de rios. Os limites territoriais do município de Ibiaçá, nas áreas locali-
zadas na comunidade de Araçá Baixo, foram demarcados através do per-
curso exercido pelo rio Araçá e pelo rio Apuaê, também conhecido na região
por rio Ligeiro. O rio Apuaê faz parte da Bacia Hidrográfica Apuaê-Inhandava.
Segundo dados da Secretaria Estadual do Meio Ambiente - SEMA
(2009), a bacia hidrográfica Apuaê-Inhandava situa-se a norte-nordeste do
estado do Rio Grande do Sul, entre as coordenadas geográficas 27°14' a
28°45' de latitude sul e 50°42' a 52°26' de longitude oeste. Abrange a Pro-
víncia Geomorfológica Planalto Meridional. Os principais corpos de água
são os rios Apuaê, Inhandava, Cerquinha, Pelotas, Arroio Poatã e o Rio
Uruguai. O principal uso de água na bacia se destina ao abastecimento público.
Os rios situados no oeste do município de Ibiaçá deságuam no Rio
Apuaê (Ligeiro). Já os localizados no leste do município deságuam fora dos
limites municipais, em território sananduvense, no rio Inhandava, este que
limita os municípios de Sananduva e Lagoa Vermelha, esses, por sua vez,
limitam-se com o município de Ibiaçá.
O rio Apuaê possui um volume de águas relativamente grande se com-
parado a outros pequenos rios encontrados no município de Ibiaçá. Este rio
recebe águas de outros rios de menor extensão e volume, como é o caso do
rio Araçá, que deságua no rio Apuaê, nos limites da comunidade de Araçá
Baixo com os municípios de Tapejara, Charrua e Sananduva.
Estes rios, que definem os limites territoriais entre os municípios, re-
presentavam um problema no passado, pois, sem a existência de pontes e
estradas que ligassem os municípios, tornavam-se obstáculos para o deslo-
camento dos primeiros moradores.
Conforme relatos obtidos na Comunidade, as estradas da região fo-
ram abertas pelos primeiros moradores com ferramentas utilizadas nas pro-
priedades. O trabalho era feito por diversos colonos que, necessitando das
estradas para se deslocarem até Vila Nova Fiúme (atual Ibiaçá) e Vila Teixeira
(atual Tapejara), precisavam abrir a mata ou preparar o solo para a abertura
da estrada.

43
A Comunidade situa-se numa região caracterizada pela presença de
vários morros, com relevo ondulado, contendo algumas áreas mais elevadas,
que chegam a apresentar altitudes de aproximadamente 595 metros. Essas
áreas são encontradas principalmente na parte central da Comunidade e no
leste, contrastando com elevações menores em áreas próximas. As áreas de
menores elevações estão localizadas próximas aos rios Araçá e Apuaê (Li-
geiro), onde a altitude do terreno varia entre 505 e 520 metros de altitude.
No local, onde ocorre o deságue das águas do rio Araçá no rio Apuaê, o
relevo atinge altitudes de até 503 metros.
O rio Araçá apresenta pequena quantidade de vazão de águas. Sendo
assim, em épocas de seca, geralmente suas águas se reduzem consideravel-
mente. Porém, na época das cheias, com uma grande quantidade de chuvas,
suas águas podem inundar os lugares de relevo mais baixo, por esse apre-
sentar alguns trechos mais rasos.
Algumas partes destes rios tornam-se, com o passar do tempo, mais
rasas devido à utilização de técnicas de plantio, como o processo de arar o
terreno, que acabam por carregar parte do material para dentro dos rios,
causando assoreamento. Esse processo deixa-os mais rasos e altera algumas
de suas características naturais.
Ao ocupar um espaço na natureza, o homem passa a transformá-lo.
Segundo Dollfus (1973, p. 72), “a ação humana tende a modificar o solo.
Um mesmo solo não sofrerá uma evolução uniforme se for arado, ou se
sobre ele se estenderem campos ou uma floresta. A importância do meio
físico muda de significado, segundo as técnicas agrícolas [...]”.
No passado, no início da Comunidade, havia nela serrarias. As estra-
das eram abertas para escoar a produção de madeira das propriedades. A
existência de serrarias na Comunidade foi relatada por diversos moradores,
que afirmaram ter existido três dessas presentes neste local, nas épocas em
que a madeira era abundante na região. Segundo Bernardes (1997, p. 48),
“[...] é bem verdade que existe a extração de madeira de pinho. Mas, dadas
às características como ela é realizada, terminada a longa safra, nada mais
resta a explorar e, acabado o pinhal, mudam-se os madeireiros”.

44
O desaparecimento de diversas destas serrarias se deve justamente ao
fato da extinção da madeira que era retirada para o plantio de grãos, cons-
trução de casas, estradas e a para a realização de outras atividades. De
diversas formas, o homem transformou o espaço para atender às suas neces-
sidades, modificando a estrutura espacial do lugar.
O colono, utilizando-se dos recursos encontrados na natureza e fixan-
do-se no espaço rural, precisava limpar suas terras, plantar as sementes,
cuidar do crescimento para finalmente colher sua produção. Ao transformar
o seu espaço de vivência, o colono produz um novo espaço, sendo este fruto
das relações daquele com o mundo e com os demais seres. Na visão de
Moraes (2002, p. 15), o espaço produzido é um resultado da ação humana
sobre a superfície terrestre que expressa, a cada momento, as relações soci-
ais que lhe deram origem. Nesse sentido, a paisagem manifesta a historicidade
do desenvolvimento humano, associando objetos fixados ao solo e genetica-
mente datados.
Ao transformar o espaço para a utilização e apropriação de elementos
pelo homem, modificam-se diversos fatores que desencadeiam também no-
vas formas e dinâmicas populacionais e espaciais. Ao ocupar este espaço, os
colonos sentiram a necessidade não somente de produzir, mas também de
criar lugares destinados ao lazer e à integração social entre os membros da
Comunidade.
Assim, ao fixarem-se os primeiros moradores que compraram terras
neste lugar, houve a necessidade de criar uma capela, que posteriormente
deu origem à comunidade de Araçá Baixo.
Sobre a criação desta comunidade rural, temos relatos e documentos
que comprovam a compra de uma área de terras específicas para a constru-
ção da capela. Como ilustra a figura 5, a escritura de compra da sede da
Comunidade data de 1929, porém, segundo dados obtidos através da pes-
quisa, o surgimento da Capela data de 1927. A chegada dos primeiros mora-
dores de origem italiana ocorreu alguns anos antes da fundação da Comuni-
dade. Sobre o ano da ocupação, não se tem dados precisos devido à dificul-
dade de encontrar documentos da época.

45
A ocupação pelos descendentes de imigrantes italianos deste lugar traz
algumas consequências ao espaço, pois transforma ilimitadamente as paisa-
gens, redefinindo o lugar de atuação do homem. Hoje, as transformações na
vegetação e no relevo são vistas de forma clara na Comunidade. O
desmatamento foi intenso no passado e, atualmente, muito do que existia não
se vê mais.

Figura 5: Registro de aquisição das terras onde surgiu a comunidade de Araçá Baixo.
Fonte: Acervo dos moradores da comunidade de Araçá Baixo.

46
A ação transformadora dos descendentes de imigrantes italianos nesta
região é visivelmente definida nos aspectos comunitários, no sentido do
pertencimento, do auxílio entre as famílias, da religiosidade e do trabalho que
move os moradores deste lugar. Na figura 6, pode-se observar a organiza-
ção da Comunidade através da ação de seus moradores que, em conjunto,
moldam a paisagem local.

Figura 6: Imagem aérea da sede da comunidade de Araçá Baixo, 2010.


Fonte: Roberto Nazaré Cavalli, 24/08/2010.

O convívio entre as pessoas na Comunidade garante, além de laços de


vizinhança, laços de amizade que se estreitam à medida que o tempo passa.
Esses laços de afetividade estabelecem-se não somente entre parentes ou
vizinhos, mas também entre pessoas que compartilham de certas caracterís-
ticas que se assemelham.
As semelhanças encontradas ou os laços de pertencimento à mesma
comunidade fazem com que os moradores se unam em diversas situações,

47
desde na ajuda entre as famílias, na participação e no auxílio comunitário, até
mesmo no esforço contínuo pela manutenção do espaço local.
A diversas comunidades, não somente à de Araçá Baixo, integram-se
pessoas de territórios políticos distintos. Porém, por meio dos laços de vizi-
nhança, a proximidade entre os grupos humanos faz com que a comunidade
ultrapasse os limites territoriais demarcados nos mapas geográficos e se trans-
forme em um território único, abrangendo partes de dois ou mais municípios,
de acordo com a localização da comunidade.
Próximas à divisa entre Ibiaçá e Sananduva encontram-se algumas re-
sidências de moradores pertencentes ao território sananduvense. Porém, são
considerados membros da capela São João Batista do Araçá Baixo devido à
maior proximidade com esta comunidade.
Dessa forma, os vínculos de pertencimento destes indivíduos residen-
tes nestes locais se fazem necessários com os diversos municípios próximos
devido às condições de acesso a serviços públicos, como educação, saúde,
comércio, prestação de serviços, lazer, entre outros.
Atualmente, devido à diminuição do número de famílias na Comunida-
de, elas estão distribuídas pelo espaço geográfico de forma mais afastada.
Mesmo assim, as relações que se estabelecem entre as pessoas constituem
áreas de integração social envolvendo familiares e vizinhos. A comunidade,
por ter uma área de grande abrangência, torna algumas famílias mais próxi-
mas, geralmente este fato ocorre nas relações de vizinhança. A comunidade
pode abranger famílias que muitas vezes pouco se conhecem ou pode tam-
bém ser formada por “cachos” de vizinhanças, que constituem a integração
social comunitária.
Esses cachos de vizinhanças também são visíveis na comunidade de
Araçá Baixo. Na figura 7, observa-se a estrutura da Comunidade através da
distribuição das famílias no espaço rural. Porém, as áreas de terras cultivadas
podem se estender por regiões mais distantes das propriedades ou podem,
até mesmo, atingir áreas de outras comunidades.

48
Figura 7: Croqui da localização das famílias da comunidade de Araçá Baixo.
Arte: Rafael Cerezoli1, 2009.

Toda comunidade, para assim ser considerada, precisa ser composta


por uma população a qual tem de revelar organização social e ocupar uma
área geográfica. Para que estas características se evidenciem, faz-se neces-
sário o esforço conjunto dos seus membros. A extensão da comunidade per-
mite relações mais ou menos estreitas entre os moradores. Segundo Teixeira
(1966, p. 23), nas áreas menores, de modo geral, pode-se dizer que a co-
munidade é sinônimo de vizinhança, de comunicação.
Nair Crestani2, moradora da comunidade, referindo-se ao passado e
à distribuição das famílias, afirma que: “Daqui ‘debaixo’ eram 32 pessoas, de
1
Graduando do curso de Publicidade e Propaganda da Universidade de Passo Fundo.
Amigo de longa data, o qual se engajou neste trabalho.
2
Entrevista realizada em agosto/2009, na residência da entrevistada, que se localiza a
cerca de 3 km da sede da comunidade de Araçá Baixo, nas proximidades do Rio
Apuaê, limite territorial entre os municípios de Ibiaçá e Tapejara.

49
sete famílias. Quando ia no terço, no domingo, se reunia e ia todo mundo
junto. Se esperava todos chegarem na última casa, depois se ia”.
Como neste lugar existem morros, algumas famílias residem em luga-
res mais isolados da Comunidade, formando um núcleo que estabelece rela-
ções de vizinhança motivadas pela proximidade espacial.
Para Ronsini (2004, p. 79), “[...] a vizinhança [...] lhes dá um sentido
de pertencimento a uma comunidade que é ativada quando necessitam de
ajuda e é vista como um prolongamento da família [...]”.
A família constitui um espaço de conservação da memória. Neste caso,
a própria participação na Comunidade mantém os laços de recordação e a
própria “reconstrução” da memória através dos jogos, do dialeto italiano e
das atividades comunitárias.
O convívio social em comunidade também pode ser visto como um
prolongamento do grupo familiar, pois a participação ativa dos moradores na
Comunidade faz com que uns estabeleçam vínculos sociais com os outros,
através do auxílio em diversos tipos de trabalho, o que fortalece o grupo.
Esse processo permite ao grupo social a constituição de raízes sólidas.
O trabalho comunitário, dotado de sentimento e religiosidade, é ex-
presso pela dedicação e pela doação dos moradores à capela e à associação
do Araçá Baixo, sendo evidenciado nas promoções e festejos realizados
neste local.
A integração com as comunidades vizinhas e a relação de estímulo ao
desenvolvimento local faz com que os moradores tenham forças para conti-
nuarem na Comunidade, dedicando-se ao trabalho no campo e partilhando
do bem-estar social vivenciado neste lugar.

2.2 As relações comunitárias e a identificação com o lugar

A adaptação ao novo lugar e o pertencimento que nasce geram lem-


branças e fatos recordados incessantemente pelos moradores e que, por

50
isso, resistem ao tempo. Dessa forma, o lugar é parte da existência dos indi-
víduos e está diretamente ligado ao seu modo de vida, à sua identidade pes-
soal, segundo Font e Rufí (2006, p. 38-39):
[...] O lugar proporciona o meio fundamental através do qual damos
sentido ao mundo e através do qual atuamos. Quando criamos lugares,
quando ‘vivemos’ lugares, criamos identidades. Falar de lugar, portan-
to, é falar de identidade. [...] Entendemos que a identidade, não está
apenas associada a características tais como o sexo e a origem étnica,
mas também ao espaço geográfico e cultural; todos nascemos em um
âmbito cultural determinado e em um lugar específico. Os filhos de imi-
grantes e de refugiados recordam seu lugar de origem e suas raízes
familiares através da língua, da gastronomia, dos costumes, das foto-
grafias dos parentes, dos relatos, contos e lendas [...].

Ao resgatar-se a evolução socioespacial e cultural, através da memó-


ria oral dos primeiros moradores, é perceptível o importante papel que a
memória individual tem na cultura dos descendentes dos imigrantes italianos
na comunidade de Araçá Baixo. As lembranças vêm à tona nos diálogos com
os vizinhos, nas mesas de jogo e nas reuniões da Comunidade.
Enaltecer a memória dos colonos moradores deste lugar favorece não
somente o resgate cultural e geográfico, mas também a valorização do espa-
ço como apropriação de um grupo de pessoas, que, unidas por laços de
parentesco, amizade ou simplesmente vizinhança, criam uma identidade co-
letiva.
Ao criar uma identidade num espaço novo, o colono necessita de no-
vos esforços que envolvem novos paradigmas e reconstroem sua identidade.
Essa identidade transforma-se de acordo com as relações estabelecidas en-
tre os membros do grupo, parte dela, a cooperação entre os moradores, a
ajuda mútua, o compartilhamento de experiências e de tarefas, que desenca-
deiam a identidade coletiva, própria do grupo.
Sobre o espaço, Santos D. (2002, p. 23) afirma que “o que pensamos
de espaço jamais poderá ser compreendido sem que se reflita sobre o pró-
prio movimento que cria, recria, nega e, pela superação, redefine a

51
espacialidade dos próprios homens [...]”. Com a fixação dos primeiros mo-
radores neste espaço rural, houve a necessidade de edificar construções.
Para isso, as relações sociais eram fortalecidas através de cooperação entre
as famílias. Estas se uniam na construção das casas, no plantio das terras e na
construção das primeiras capelas. Dessa forma, mantinham desde a língua
originária da Itália até os costumes e a religiosidade do seu povo no novo
povoado que se formava.
Ao abordar a transformação do espaço local, em um primeiro mo-
mento, utilizam-se os relatos daqueles que contam o começo da ocupação,
da abertura dos primeiros roçados e das dificuldades iniciais. Sendo assim,
para conhecer a evolução da comunidade de Araçá Baixo, nada melhor do
que iniciar relatando uma conversa com o neto de um dos primeiros morado-
res, o senhor Eloi Crestani3, conhecido na Comunidade como “Titi” que, em
entrevista, relatou lembranças do passado guardadas desde a época em que
seu “nono”, João Crestani, adquiriu terras neste lugar. Assim conta Titi: “Meu
‘bisnono’ veio da Itália em 1889, e meu ‘nono’ nasceu durante a viagem da
Itália pra cá.” Seus avós se fixaram no município de Antônio Prado e de lá
migraram para São João do rio Forquilha, local onde é hoje a comunidade
de Santa Luzia, no município de Lagoa Vermelha.
Segundo Vianna (2007, p. 15), a fazenda São João do rio Forquilha
era de propriedade de José Bueno de Oliveira. No final do século XIX, o
território da fazenda abrangia uma parte de campos e outra de florestas.
Com o crescimento da demanda por terras para a imigração, os pro-
prietários de fazendas do nordeste do estado começaram a vender parte de
suas terras para famílias de imigrantes que desejavam adquirir áreas para
plantio na região.
Sobre esta migração dos bisavôs, Titi não se lembra de datas precisas,
porém recorda falas e contos do “nono”, que, jovem, comprou terras no
lugar onde logo surgiu a comunidade de Araçá Baixo.

3
Entrevistado em agosto/2009, em sua casa, na comunidade de Araçá Baixo, onde vive
com a esposa Nelsi e uma filha. Seus dois filhos já migraram para outras localidades.

52
Titi recorda os “causos do nono”. Segundo ele, “pra plantar, derruba-
ram os matos, vieram para trabalhar na lavoura. O nono vinha com um cabo-
clo, que vinha com ele roçar, era o companheiro dele pra derrubarem o mato
e fazerem as moradas. Aqui era coberto de pinheiro. O meio de transporte
era o cavalo, eles vinham a cavalo e faziam os roçados, engordavam os por-
cos para o sustento, porque não se comercializava ainda. Era tudo mato
aqui, um senhor lá dos Pinheiros [comunidade de Três Pinheiros] era dono
das terras aqui, ele tinha 252 colônias de terra. Depois que foram ocupando
essa região, foram abrindo as estradas onde eram os trilhos de passar a
cavalo.”
Clair Crestani4 saiu da comunidade em 1966, porém, recorda como
se fosse hoje o passado da comunidade: “Aqui tinha bastante mato, meu
Deus! Mato e taquara. Era puro mato, até que a gente descia no Itacir Crestani
[morador distante cerca de 3 km, que também já saiu da Comunidade] era
puro mato. Tinha um banhado grande que as rãs cantavam e ‘nós dizia’ que
era de onde que saíam os nenês”.
Os imigrantes utilizavam as terras para a extração de madeira e tam-
bém para o plantio, numa região onde a exploração da natureza e o cultivo
do solo ainda eram pouco desenvolvidos. O processo de ocupação das ter-
ras de matas ocorreu paralelamente à chegada de outros novos colonos à
Comunidade. Dessa forma, iniciaram-se as primeiras relações de vizinhança.
Ao aumentar o número de famílias na comunidade de Araçá Baixo,
surge a necessidade de criar um espaço para que as famílias possam cons-
truir a sua igreja. A religiosidade do povo imigrante era notória. Ao se insta-
larem na nova terra, formaram o grupo com o objetivo de construir a primei-
ra capela.
Na busca pela manutenção dos costumes e crenças, os moradores
organizaram-se a fim de criar a primeira capela, que foi erguida no ano de

4
Entrevista realizada em setembro/2009, na residência do colaborador, na cidade de
Tapejara/RS.

53
1927. A capela da comunidade São João Batista do Araçá Baixo teve como
padroeiro São João Batista, cuja imagem foi doada por um dos moradores,
o Sr. João Crestani. Devoto de São João Batista, ele doou a imagem para a
Comunidade que, desde aquela época, realiza festas, sempre no mês de ju-
nho, em louvor ao Santo.
Segundo relatos de Titi, a primeira igreja foi construída por Laurindo
Beé e Fioravante Menegotto, moradores da Comunidade; seu “nono”, João
Crestani, então doou a imagem de São João Batista para a capela. Conta ele
que a igreja era pequena, construída em madeira.
Anos mais tarde, construíram a nova igreja, também em madeira, po-
rém bem maior do que a igreja antiga.
Em mutirão, a população local construiu a primeira capela, seguindo
os modelos das capelas italianas. Maestri (2000, p. 97) destaca que as ca-
pelas eram construídas em mutirão pelos colonos, sempre edificadas em lo-
cais elevados, e eram dedicadas aos padroeiros das vilas natais italianas,
sendo que cada quarenta ou cinquenta colonos levantava sua capela. Suas
festas reavivavam periodicamente as relações de amizade, necessárias ao
desenvolvimento comunitário.
Com a construção da capela, a Comunidade se fortalecia pelas rela-
ções que eram geradas através do auxílio entre a população local e da
integração dela. O que se percebe nos relatos dos moradores é a alegria
pelos “primeiros” terem lutado e, mesmo que tenham sofrido, por terem con-
seguido vencer.
A vitória, para os moradores, significa a luta e a conquista, seja na
limpeza da roça, na aquisição de bens, na construção de galpões, de
benfeitorias, ou até mesmo na construção da própria casa, que era sempre
conquistada com muita determinação.
A construção da Capela, as reformas, as ampliações ou a construção
de novas obras na Comunidade fazem parte da conquista, da alegria de um
dia ter lutado para alcançar a vitória.

54
Em 1959, foi construída a segunda igreja da Comunidade, com tama-
nho maior e aspectos parecidos com as construções italianas. A manutenção
da cultura do povo imigrante era mantida não somente nas propriedades,
mas também na igreja, símbolo da identidade do grupo.
A igreja é uma instituição básica de organização social, atendendo às
necessidades religiosas dos habitantes. Segundo Teixeira (1966, p. 27), a
igreja solidifica os laços morais e espirituais, contribuindo, assim, para a ele-
vação cultural da comunidade.
O passo inicial para a constituição de uma comunidade rural é a cons-
trução da igreja, pois a religiosidade expressa os laços de fé e união presen-
tes nos espaços rurais e nas inter-relações que a religião pode manifestar. Na
figura 8, observa-se a antiga igreja da Comunidade e os moradores partici-
pando das Missões em 1977.

Figura 8: Segunda igreja, construída em 1959. Foto das Missões em 1977.


Fonte: Acervo dos moradores da comunidade de Araçá Baixo.

55
O respeito às tradições era rigidamente seguido pelas famílias de ori-
gem italiana e o medo do pecado estava sempre presente nelas. Segundo
Clair, “as crianças seguiam os costumes”. Ela conta ainda que “quando ia
passar a primeira comunhão, a gente podia tomar água só até a meia-noite,
depois não podia mais, tinha que ser em jejum pra comungar, não podia
colocar nada, nada na boca”.
A transformação dos costumes, das crenças e dos modos de vida co-
munitários, observada em áreas rurais de municípios de povoação italiana, é
percebida através do tempo. Muitos dos hábitos do passado foram sendo
perdidos ou “esquecidos” com o processo de modernização do campo. Dessa
forma, muitos valores se perdem e novos valores são acrescentados à cultura
local.
Uma maneira encontrada para recordar o passado é a utilização de
fotografias. Essas são guardadas pelos moradores como verdadeiras relí-
quias. As fotografias, assim como os objetos da família, são meios pelos
quais a história da Comunidade, e da própria família, pode ser contada,
relembrada. A fotografia serve como “espaço de memória” por manter ima-
gens, traços, “lugares” e recordações de tempos que já se foram.
A fé, a religiosidade, o respeito, o medo fazem com que alguns costu-
mes sejam mantidos ainda. Porém, os costumes foram sendo alterados e as
famílias também acabaram mudando pelo próprio processo evolutivo.
Acredita-se que, nos últimos anos, o número de filhos também tenha
se reduzido pelas transformações globais ocorridas nos últimos anos.
A maioria dos casais, hoje, tem em média 2 filhos enquanto, num pas-
sado não muito distante, as famílias tinham vários filhos. Considerando a co-
munidade de Araçá Baixo, o número de jovens e crianças também diminuiu,
principalmente nas últimas duas décadas, devido às migrações.
Sobre os aspectos evolutivos deste lugar, os moradores contam que,
aos domingos, fazia-se o culto. Assim, a igreja lotava de pessoas, diferente
dos dias atuais. Segundo Titi, “antigamente, desciam no terço os de Santa

56
Bárbara [comunidade vizinha que surgiu anos depois] porque lá não tinha
capela, dava umas trezentas pessoas aqui. Todos brincavam, jogavam bola,
tudo assim. Tinha umas trinta moças aqui na Comunidade, hoje tem poucas”.
A figura 9 retrata o momento do culto realizado na Capela da Comunidade.

Figura 9: Celebração festiva com a presença dos padres missionários, em 1977.


Fonte: Acervo dos moradores da comunidade de Araçá Baixo.

Com o passar do tempo, a evolução também transforma as comunida-


des rurais. Dessa forma, a comunidade de Araçá Baixo também sofreu mo-
dificações em diversos aspectos, dentre eles, a utilização de novas referênci-
as na arquitetura e na organização do espaço comunitário, como pode ser
visualizada na figura 10, quando foi inaugurada a atual igreja da Comunidade.
Na figura 11, percebe-se a imagem do salão comunitário e da igreja.
A terceira, última e atual igreja foi construída em 1986, quando se
utilizou a construção em alvenaria e padrões “brasileiros” de arquitetura.

57
Figura 10: Inauguração da capela atual, Figura 11: Vista aérea do salão e
em 1986. da capela.
Fonte: Acervo dos moradores da Fonte: Roberto Nazaré Cavalli,
Comunidade. 24/08/2010.

Para tal empreendimento, a população local buscou recursos, solicitou


patrocínios, fez doações, organizou eventos a fim de promover a arrecada-
ção do valor a ser utilizado na obra. A população, como em todas as épocas,
desde o surgimento da Comunidade, participou das transformações e foi
elemento fundamental nas alterações espaciais.
Ao participar das mudanças estruturais comunitárias, a população lo-
cal se une em torno de objetivos comuns, que dia a dia, pouco a pouco, vão
sendo alcançados pelo esforço conjunto.
Nas palavras de Teixeira (1966, p. 24), “a população é considerada o
elemento estrutural mais importante da comunidade: ela é o fator dinâmico,
modificador e transformador do meio e formador da organização social. O
homem é também, um fabricante da paisagem terrestre”.
A população local, além de organizar-se para a construção da capela,
integrou-se num esforço contínuo de busca por melhorias, mantendo costu-
mes e criando novas possibilidades de acordo com a organização social e
comunitária do espaço.
A organização da Comunidade segue critérios estabelecidos em reuni-
ões entre os seus membros para que todos, em esforço conjunto, estejam
dispostos a participar da construção e da manutenção da vida comunitária.

58
Um aspecto importante para a compreensão da organização do gru-
po, que pode ser citado, é a escolha da diretoria da Comunidade, realizada a
cada dois anos. Há ainda a escolha dos ministros da igreja. A comunidade
conta com uma organização social e religiosa que apresenta diversos fatores
estabelecidos pelo grupo, organizados através de regras, as quais devem ser
seguidas como aquelas estabelecidas pela família.
A cada dois anos, são realizadas eleições em que são eleitos os novos
membros da diretoria da Comunidade. Há também os “festeiros”, esses que
são responsáveis pela organização da festa. Os próprios festeiros indicam
seus sucessores, sendo essa uma forma simples de fazer a troca dos membros
que trabalharão na organização da próxima festa. Para Carlos (2007, p. 22):
O lugar contém uma multiplicidade de relações, discerne um isolar, ao
mesmo tempo em que apresenta-se como realidade sensível
correspondendo a um uso, a uma prática social vivida”. Ainda, para
Carlos (2007, p. 67) isso ocorre “porque o lugar é, em sua essência,
produção humana, visto que se reproduz na relação entre espaço e
sociedade, o que significa criação, estabelecimento de uma identidade
entre comunidade e lugar, identidade essa que se dá por meio de formas
de apropriação para a vida. O lugar é produto das relações humanas,
entre homem e natureza, tecido por relações sociais que se realizam no
plano de vivido, o que garante a construção de uma rede de significados
e sentidos que são tecidos pela história e cultura civilizadora produzin-
do a identidade.

Os vínculos sociais são expressos através da união observada na co-


munidade quando seus moradores trabalham juntos pelo crescimento dela.
As formas espaciais produzidas pela sociedade, segundo Moraes
(2002, p. 22), “manifestam projetos, interesses, necessidades, utopias. São
projeções dos homens (reais, seres históricos, sociais e culturais) na contínua
e cumulativa antropomorfização da superfície terrestre [...]”.
Uma comunidade é vigorosa quando seus membros se organizam e se
esforçam no funcionamento de projetos comunitários que favoreçam a satis-
fação de todos, mantendo a integração do grupo.

59
Um projeto de esforço contínuo e conjunto de todos os membros des-
ta comunidade foi a construção do salão comunitário, esse que foi inaugura-
do em 1978, fortalecendo ainda mais a Comunidade de Araçá Baixo e dan-
do condições para que realizassem eventos mais frequentes. Na figura 12,
observamos a diretoria em 1978, quando ocorreu a inauguração do salão
comunitário.

Figura 12: Inauguração do salão comunitário, em 1978.


Fonte: Acervo dos moradores da comunidade de Araçá Baixo.

Segundo relatos dos moradores, a inauguração do clube contou com


uma grande festa e teve a presença do prefeito da época, que participou da
cerimônia. Assim como os eventos festivos, os jogos representam caracterís-
ticas da Comunidade. Comenta Titi que “nas festas tinha o jogo de ‘Mora’ e
hoje nós vamos em volta e pedem pra nós jogarmos ‘Mora’ porque não
existe mais. E a quantia de gente que tinha nas comunidades!”. Ao relatar a
importância das comunidades rurais, Smith (1971, p. 113) afirma:
[...] Cada comunidade rural tem uma expressão científica; é uma peque-
na, porém definida, parte da terra. Embora seus limites não configurem
nos mapas geográficos ao lado dos cursos d’água, vertentes e outros

60
lamentavelmente chamados “fenômenos naturais”, seus limites estão
indelevelmente estampados na mente e na memória dos habitantes lo-
cais. São de fato os limites que determinam efetivamente a área de parti-
cipação social, de interesse e identificação mútuos e das atividades
coletivas de vários tipos [...].

Segundo Pozenato
(1990, p. 10) a identidade
não é buscada no “plano das
manifestações externas, mas
no uso que existe por trás
das manifestações”. A cul-
tura local é expressa atra-
vés de manifestações
exercidas pelos moradores,
tanto em relação à vida co-
munitária quanto no que tan-
ge à vivência familiar. Na fi-
gura 13, pode-se observar
a manifestação cultural atra-
vés da inauguração do sa-
lão comunitário, que se tor-
na um lugar próprio para a
expressão e manifestação
da cultura e dos costumes
locais.
A cultura, após ser Figura 13: Inauguração do salão, em 1978, com
benção do padre e a presença do prefeito da época
gerada e enraizada num de- e de sua esposa. Fonte: Acervo dos moradores da
terminado local, passa a fa- comunidade de Araçá Baixo.
zer parte do indivíduo, pas-
sa a habitar seu ser e a promover sua evolução comunitária de acordo com
seu envolvimento pessoal e social com esta Comunidade.
Devido à cultura de tradições italianas estabelecida neste lugar, os des-
cendentes dos imigrantes têm por costume a doação e a identidade igualitária

61
em Comunidade. Ao participar da vida social do lugar, envolvem-se na bus-
ca pelas melhorias para o grupo, gerando, assim, novos desafios a serem
alcançados.
A busca pela qualidade de vida e pelo bem-estar também são marcas
que perduram nas comunidades rurais. A criação do “Clube de Mães” ou
“Grupo de Mulheres”, conforme a figura 14, fortalece os laços de amizade e
comprometimento dessas com a comunidade local. A mulher sente necessi-
dade de manter hábitos e costumes. Dessa forma, o “Clube de Mães” serve
para manter laços afetivos entre as mulheres, para ensinar-lhes novas formas
de produção através de artesanato, de pintura, de receitas culinárias, de pa-
lestras entre outras atividades.

Figura 14: Inauguração do Clube de Mães, programa da Emater de Ibiaçá/RS.


Fonte: Acervo dos moradores da comunidade de Araçá Baixo.

As mulheres mantêm vivos alguns costumes herdados das mães e avós:


o bordado, o tricô, o crochê, a costura, o costume de fazer chimias, geléias,
doces em calda, que são formas de “embelezar” seu lar e enaltecer a sua
própria importância como parte essencial no grupo familiar. Entre as tradi-

62
ções importantes na propriedade rural, e porque não dizer “necessidades”,
que se fazem presentes no campo, destaca-se a produção de torresmo, ba-
nha suína e salame. Há ainda o tradicional cultivo da uva para consumo ou
com a finalidade de produzir o vinho.
Nas propriedades rurais, com tendência essencialmente à policultura,
há diversificação de culturas vegetais para o consumo familiar. São cultiva-
dos pomares e hortas com grande diversidade de verduras e legumes.
Há também a criação de animais, como porcos, galinhas e bovinos,
com ênfase no gado leiteiro que abastece o consumo familiar (leite e carne) e
principalmente para a comercialização do leite e do queijo produzidos nas
propriedades.
Os desafios desta Comunidade, desde sua origem, foram muitos. As
principais dificuldades no início da ocupação eram a distância e o difícil aces-
so às terras pelos acentuados declives de algumas áreas do relevo.
Hoje, grande parte das dificuldades foi sanada, porém, os moradores
sofrem com os baixos preços dos produtos, tanto da soja, quanto do leite,
que são os produtos com maior produtividade na Comunidade.
Outra dificuldade relatada é a preocupação com as épocas de chuva
intensa. Isso se justifica pelo excesso de chuva que aumenta consideravel-
mente o volume de água do rio Araçá, fazendo com que o Salão Comunitário
seja atingido pela água.
Por diversas vezes a comunidade de Araçá Baixo sofreu estragos pela
ação das águas do rio Araçá, como observamos na figura 15. Muitas vezes a
Comunidade perdeu móveis, utensílios e eletrodomésticos com a ação da
água. Este problema será solucionado em breve através da elevação do Sa-
lão Comunitário, evitando, assim, a ação destrutiva da água.
Sempre que ocorrem inundações na Comunidade, os moradores pre-
cisam se unir para analisar os danos e sanar as necessidades do lugar. Essa
também constitui uma forma de auxílio entre as famílias, pois, sem medir
esforços, os moradores se unem para reconstruir o que foi danificado.

63
Figura 15: A grande enchente em 1992, que destruiu parte do salão.
Fonte: Acervo dos moradores da comunidade de Araçá Baixo.

O processo de reconstruir ou recomeçar uma nova etapa é algo desafi-


ador e provoca uma série de mudanças que devem ser analisadas e viabilizadas
pelo grupo comunitário. Nestes problemas causados pela proximidade com os
rios Araçá e Apuaê (Ligeiro), além da Sede da Comunidade ser atingida pela
água, há também algumas residências que sofrem com as cheias as quais
interferem nas plantações, no acesso às estradas e no deslocamento dos
moradores. Assim, o problema mais frequente que ocorre é a dificuldade de
acesso a algumas residências com o aumento do volume de água.
As transformações causadas no espaço local também interferiram nos
rios. Segundo relatos dos moradores, o rio Araçá está cada vez mais raso.
Isso ocorre pelo processo de assoreamento dos rios, onde as terras de luga-
res mais altos, como é o caso de áreas de plantações, são levadas para o rio,
pela ação da chuva. Dessa forma, esse material se acumula no fundo do rio e,
com o tempo, ele se torna mais propenso a inundações nos locais próximos,
devido à ocorrência de chuvas fortes.

64
3-
A Comunidade e as Transformações
no Decorrer de sua História

As relações estabelecidas entre os próprios seres e deles com o meio


em que vivem fazem nascer a identidade própria. Segundo Font e Rufí (2006,
p. 39) “[...] a identidade é algo que, em parte, constrói-se.” Dessa forma, as
relações com o lugar vão se manifestando através do tempo. Ainda, para
Font e Rufí (2006, p. 39), “o lugar de origem imprime identidade ao indiví-
duo e ao grupo. Então, supondo que ele mude de lugar e que, portanto,
desenvolva a sua vida quotidiana em outro lugar, este também imbuirá nele
identidade em maior ou menor medida e em função de muitas e diversas
circunstâncias [...]”.
Resgatar a identidade local como forma de apropriação espacial e
cultural transforma lembranças em realidade comunitária, vivida e comparti-
lhada por diversas pessoas. Por elas experienciarem modificações pareci-
das, são dotadas de sentimento e de pertencimento.
Algumas indagações se tornam indispensáveis nesta pesquisa que pro-
cura conhecer e compreender a evolução socioespacial e cultural dos mora-
dores da comunidade de Araçá Baixo.
Para tanto, é necessário compreender quem eram aqueles imigrantes,
de onde eram originários e quais as transformações que causaram ao espaço
que ocuparam.

65
Abordar a chegada, os desafios e as transformações ocorridas no es-
paço até a atualidade é uma forma de manter vivos os traços imigrantes na
Comunidade e fortalecer a cultura local. Segundo Ferreira (2002, p. 23):
As organizações espaciais porque constituídas pela sociedade, caracte-
rizam-se por um processo de mudanças nas formas de combinar os ele-
mentos sociais e naturais. A indissociabilidade espaço/tempo é uma
característica importante da análise geográfica e passa pelo entendi-
mento de como o homem reagiu e vem reagindo às influências da natu-
reza ao longo do tempo [...]. Nesse sentido, a geografia se preocupa não
somente com o espaço, entendido como o local de atuação da socieda-
de, mas também com a conotação temporal, que imprime uma configura-
ção diferenciada, no decorrer do tempo, a cada evento geográfico, seja
ele um rio, uma fábrica, uma propriedade rural, uma cidade [...].

Para compreender melhor as transformações ocorridas neste espaço,


devemos analisar diversos aspectos, um deles, e de certa forma preocupante,
é a diminuição significativa do número de habitantes desta Comunidade. Po-
demos utilizar a expressão “diminuição do número de famílias”, visto que,
nos últimos anos, percebeu-se a migração de famílias inteiras deste lugar
para outras localidades.
Os primeiros registros feitos sobre a população local datam do ano de
1938, quando passou a ser utilizado o atual livro caixa, no qual há registros
de todos os sócios da Comunidade, bem como de suas contribuições finan-
ceiras para a capela de São João Batista.
Ao utilizar estes registros, retoma-se o passado não conhecido. As
datas, os textos e os relatos formam histórias que se encaixam perfeitamente,
fortalecendo a memória comunitária. Abordar fatos passados em comunida-
de e na comunidade propicia ao ser humano, além das lembranças, a capaci-
dade de autoavaliar suas atitudes e suas interações com o grupo, desenvol-
vendo, através do tempo, a memória reconstituída do passado.
Debruçar-se sobre a dinâmica local envolve a aproximação, a recor-
dação das pessoas, seus valores, suas conquistas, os conflitos. Isso ajuda a
redefinir a própria percepção de grupo como comunidade, os valores cons-
tituídos por meio da lembrança e a preservação cultural e espacial.

66
3.1 A manutenção da cultura dos primeiros moradores

Explorar a memória como fonte de informação sobre a cultura e a


ocupação pelos descendentes de imigrantes italianos na comunidade de Araçá
Baixo é um exercício que requer cuidado, pois mexe com as lembranças,
emoções e transformações ocorridas através do tempo. Segundo Tedesco
(2004, p. 28):
[...] Cada vez mais os elementos mediadores da memória, sejam objetais,
de consciência coletiva e individual, de políticas de lembrança e de
esquecimento, etc..., servem de suporte à cultura, à identidade social e
ética, à tradição, à possibilidade de materialização de formas simbólicas
da vida cotidiana, bem como os dramas e tramas históricos.

Com o propósito de esclarecer e, ao mesmo tempo, recordar fatos do


passado da Comunidade, este capítulo traz conversas com alguns de seus
membros, que se dispuseram a recordar fatos, histórias e a evolução de Araçá
Baixo. Sendo assim, foram dez as pessoas entrevistadas. Procurou-se con-
versar com algumas que moram no lugar há mais tempo. Dessa forma, a
transformação do espaço e a cultura local podem ser reconstruídas através
das memórias.
Inicialmente, para o estudo da comunidade rural, é necessário conhe-
cer as formas de ocupação do espaço. A maioria dos moradores comenta
que seus pais e avós ocuparam esta região, adquirindo terras e fixando-se
próximos uns dos outros. Os moradores entrevistados mencionaram que seus
familiares vinham das regiões de Bento Gonçalves, Antônio Prado e Caxias
do Sul.
Segundo Elói Crestani, o “Titi”, seu avô João Crestani, que foi um dos
primeiros moradores desta Comunidade, nasceu durante a viagem de traves-
sia do Oceano Atlântico, quando os pais saíram da Itália (no continente Eu-
ropeu) para vir ao Brasil. Inicialmente se fixaram em Antônio Prado e, anos
depois, vieram para a região onde se instalaram e, junto a outras famílias,
formaram a capela São João Batista do Araçá Baixo.

67
Valdecir Stefani5, morador da Comunidade, também recorda a chega-
da de sua família a este lugar. Segundo ele, o seu pai, Otacílio Stefani (faleci-
do), veio para Araçá Baixo com apenas oito anos, quando seus avós se
deslocaram de Antônio Prado para cá. Segundo ele, os avós foram conhecer
terras em outros lugares do município de Ibiaçá, porém, optaram por com-
prar terras no Araçá Baixo.
A ocupação das terras nesta região ocorreu principalmente por carac-
terizar-se, no início do século XX, por uma região pouco habitada. Dessa
forma, os primeiros colonos se instalaram neste lugar e iniciaram as planta-
ções e a adaptação à nova terra.
Segundo Celso Stefani6, irmão de Otacílio (falecido), a família era gran-
de e vieram todos para cá com os pais. Conta ele que “veio o pai, a mãe e
‘tuzzi’, una tropa meda granda!” [vieram o pai, a mãe e os filhos, um grupo
meio grande!].
A vinda de vários colonos para a região de Sananduva e Ibiaçá é rela-
tada por diversos moradores da Comunidade. O processo de compra de
terras e a instalação nesse lugar efetivaram-se por alguns anos e vieram mo-
radores de diversas famílias, principalmente da região de Bento Gonçalves,
Antônio Prado e Caxias do Sul, na Serra Gaúcha.
Genésio Beé7 também recorda fatos que seu pai contava da época em
que vieram para esta região. Seu pai, Laurindo Beé (falecido), veio com 7
anos de Antônio Prado com os familiares. Segundo Genésio, esse fato ocor-
reu no ano de 1928. Porém, inicialmente se instalaram em Linha Marchiori
(comunidade pertencente ao município de Tapejara), somente em 1942,

5
Concedeu a entrevista em agosto/2009, na comunidade de Araçá Baixo, onde vive
com a esposa Marinês, filho, nora e neto.
6
Entrevista realizada em agosto/2009, na Comunidade. Celso reside com a esposa
Leonice. Dois de seus filhos também vivem neste local, duas filhas migraram para
outros locais.
7
Foi entrevistado em agosto/2009. Reside com a esposa Olinda e um filho. A filha
migrou para o município de Tapejara.

68
Laurindo se mudou para a Comunidade onde adquiriu terras. De acordo
com Genésio, o início não foi fácil, “ainda por cima queimaram a casa e
tiveram que recomeçar tudo de novo”.
Para Raul Bernart8, o processo de imigração também se repete. Seu
pai partiu também de Antônio Prado em direção à Sananduva, terras que,
após a emancipação de Ibiaçá, tornaram-se de propriedade deste município.
Conta ele que seus pais vieram com o desejo de comprar terras e ficaram
aqui.
O morador Amarildo Crestani9 também comenta um pouco sobre a
adaptação ao lugar. Segundo ele, seu avô tinha origem italiana. Ao chegar ao
Brasil, fixou-se em Antônio Prado, de onde migrou para Sananduva. Seu pai,
Vitório Crestani (falecido), adquiriu terras na região onde pouco tempo de-
pois surgiu a comunidade de Araçá Baixo. “O falecido pai sempre contava
que, quando vinha pra cá trabalhar, colocava umas tábuas encostadas numa
árvore, ali era o acampamento dele. Quando chegaram aqui, as terras eram
quase 100% de mato. Aí eles começaram a abrir as lavouras. O falecido pai
contava que vinham a pé, a cavalo ou de carroça, porque não tinha outro
jeito”, afirma ele.
Os relatos dos moradores diversas vezes se cruzam, intercalam-se numa
simetria de informações. A ocupação deste lugar se fez por descendentes de
italianos que chegaram à região da Serra, no planalto gaúcho, e anos mais
tarde seus descendentes passam a migrar ocupando outras áreas do estado
do Rio Grande do Sul, principalmente a região nordeste.
A história da família Guindani na Comunidade, segundo Getúlio
Guindani10, iniciou quando seu pai Fiorelo Guindani e seu tio Ângelo partiram
8
Foi entrevistado em agosto/2009. Reside com sua esposa Terezinha. Os três filhos
migraram para outros lugares.
9
Concedeu a entrevista em novembro/2009. Vive com a esposa Rosmari e um dos
filhos, os outros dois filhos saíram da Comunidade.
10
Concedeu a entrevista em novembro/2009, em sua residência, onde vive com a espo-
sa Zilda, um dos filhos, a nora e três netos. Duas filhas também partiram para outros
lugares.

69
de Bento Gonçalves com a finalidade de comprar terras neste lugar. Ao che-
gar aqui, seu pai, que era solteiro precisou, juntamente com o irmão, abrir as
terras e preparar sua própria comida. Conta Getúlio que, ao chegarem neste
lugar, “eles fizeram uma casinha de taquara perto do rio (rio Araçá). Na
época, eram seis famílias que moravam aqui, tudo de italiano”.
A ocupação deste lugar marca também a história da família Copatti.
Segundo Idelvino Copatti11, vieram de Bento Gonçalves seus “nonos”, seu
pai e alguns tios. De acordo com dados obtidos através dos moradores, as
famílias eram grandes e, na maioria das vezes, vinham todos os filhos para a
região e fixavam-se todos próximos uns dos outros.
De acordo com Idelvino, vieram para a região seus tios Batista, Ernesto,
João, que era o mais novo, e seu pai Rinaldo. Dos outros irmãos não temos
informações sobre a localização, sabemos apenas o nome de dois deles,
Vitório e Albino Copatti. Este último, segundo informações, morava no muni-
cípio de São José do Ouro. Apenas um filho de Albino Copatti, Geraldo
Antônio Copatti12, morou na comunidade de Araçá Baixo até 1994, quando
migrou com a família para Lagoa Vermelha.
Sobre a aquisição das terras, Idelvino Copatti relata que seus avós
compraram uma colônia13 de terras na comunidade de Nossa Senhora do
Carmo, comunidade essa vizinha da comunidade de Araçá Baixo e perten-
cente ao município de Sananduva. Anos depois, seus filhos adquiriram terras
no Araçá Baixo, sendo que alguns ficaram próximos às terras dos pais e
outros se deslocaram para lugares um pouco mais distantes, porém sempre
localizados nestas duas comunidades.
A ocupação da Comunidade por diversos membros de uma mesma
família demonstra os laços que unem as famílias de origem italiana. Quando

11
A entrevista ocorreu em outubro/2009, na comunidade de Araçá Baixo. Reside com
sua esposa Lourdes. Na Comunidade também residem dois de seus filhos, uma filha
migrou.
12
Geraldo A. Copatti, a quem dedico esta obra. Meu pai, falecido em 1995.
13
Corresponde a 25 hectares de terras.

70
ocorrem migrações, os colonos geralmente não partem sozinhos. Com eles,
muitas vezes, seguem irmãos, tios ou os próprios pais.
Segundo Italino Copatti14, seus pais vieram para a Comunidade ainda
jovens. Segundo ele, “o pai veio com 17 anos, de Bento Gonçalves. Veio o
nono Felício Copatti, a nona e todos os filhos. Vieram de mudança de Bento
[Bento Gonçalves] de carroça. O pai fez cinco viagens a cavalo de Bento pra
cá e depois vieram todos com a mudança de carroça e pousavam no mato!
E, durante a viagem, onde escurecia, eles paravam pra dormir. No início, eles
compraram terra lá no Carmo, que pertence a Sananduva, depois é que o pai
(falecido Batista Copatti) comprou terras no Araçá, ele e o tio Ernesto (fale-
cido), e vieram pra cá”. Italino ainda comenta que a família de sua mãe tam-
bém partiu da região serrana, mais precisamente de Antônio Prado, para
comprar terras na Comunidade. Foi aqui que seus pais se conheceram e se
casaram, vivendo sempre neste lugar, onde trabalharam e criaram os filhos.
A migração entre comunidades é fato que ocorre há muito tempo. Isso
se deve principalmente à compra de terras ou aos casamentos. Esse fato é
percebido nas comunidades, em especial, em famílias com pequenas áreas
de terras. Assim, surge a necessidade de buscar novas oportunidades até
mesmo para os filhos que nascem com a união do casal. Nos relatos de
Orides Copatti15, seus pais [João Copatti e Angelina] casaram-se e vieram
para a comunidade de Araçá Baixo. “Assim, fizeram a roça”. Segundo ele,
“aqui não era muito habitado, então vieram comprar terra aqui. A falecida
mãe contava que era mato, aí roçaram e fizeram a morada. Vinham no início
por um pique no meio do mato, até chegar aqui e vinham a cavalo”.
Nair Crestani, também veio para a Comunidade após seu casamento,
em 1973, com Altair Crestani (falecido). Para ela “difícil não foi [a adapta-
ção] porque era troca de colônia pra colônia, e era pouca a distância [da
casa dos pais]. Desde que vim pra cá, a estrada sempre teve, mas tinha mato
14
A entrevista foi realizada em novembro/2009, em sua residência, onde vive com sua
esposa Lourdes. Suas duas filhas migraram para o município de Tapejara.
15
Foi entrevistado em setembro/2009, na comunidade de Araçá Baixo. Reside com a
esposa Soeli e duas filhas. Uma filha migrou para o município de Tapejara.

71
fechado. Só tinha mesmo a estrada, depois foi se desmatando. Aqui só se
plantava a ‘muque’, lavrava e plantava! Quem tinha um pé de soja era uma
relíquia”.
As plantações, a derrubada da mata, a limpeza e a construção das
casas são partes das lembranças dos descendentes dos primeiros moradores
da Comunidade, que recordam algumas dificuldades vivenciadas no trabalho
na roça e também os desafios encontrados pelos seus pais e avós até a adap-
tação a esse novo lugar.
Questionados sobre a adaptação, alguns moradores fizeram relatos
muito importantes para a compreensão do processo evolutivo pelo qual pas-
sou esta Comunidade. Uma das maiores dificuldades, segundo Getúlio
Guindani: “eu me lembro de lavrar com os bois, às vezes ia até a madrugada,
Santa Maria! Carro a gente não tinha, tinha que ir pra cidade a cavalo, de
carroça a gente ia. Não existia freezer na Comunidade como tem agora,
cerveja nós nem tomava aqui, não era que nem agora”.
Ao relatar sobre as dificuldades para organizar as propriedades e fa-
zer produzir o solo, Valdecir Stefani comenta as palavras de seu pai: “O pai
contava que abriram a estrada aqui perto de casa a picão e arado de boi, era
bem difícil porque era tudo mato fechado”. Titi também recorda esse fato
segundo relatos do seu pai: “Essa estrada, que se localiza do lado do rio
Araçá [entre o rio e o salão comunitário], foi aberta a picão pelo Ângelo
Stefani, aí subiam por ela para ir até a serraria. Haviam poucas estradas no
lugar, o resto era tudo mato”.
Segundo Raul Bernart, “as dificuldades eram muitas, uma delas era a
falta de estradas, então os moradores abriam os piquetes de mato pra ir na
cidade, iam pelo meio do mato no início”. Ainda recorda que “quando tinha
uns 10 anos de idade, aqui tinha bastante mato, muito mais do que tem hoje”.
De acordo com Genésio Beé, seu pai contava que “antigamente não
existia patrola por aqui, então se dizia ‘far jornade sole strade’ [fazer jorna-
da na estrada]”. Comenta ainda “que precisavam ajudar com as mulas e com
o arado na construção das estradas, assim quem trabalhava com o arado, um

72
dia inteiro, contava como dois, e quem trabalhava com a enxada contava um
dia de serviço, porque não cansava tanto no trabalho”.
As dificuldades encontradas neste lugar foram muitas. Nos relatos de
Idelvino Copatti, “pros primeiros aqui não era muito fácil, tinha que derrubar
mato, me lembro que o falecido pai ia na frente e nós atrás, de pé descalço”.
Segundo Nair Crestani, quando veio para cá, já existia a estrada, po-
rém, ao redor, era só mato fechado. Com o tempo, foi sendo desmatado.
Conta ela que havia pinheiros enormes. As famílias, ao abrirem as estradas
ou fazerem as plantações, contavam com a mão-de-obra familiar e com a
ajuda mútua dos vizinhos, de forma que o trabalho não se tornasse tão can-
sativo para as pessoas.
Segundo Tavares dos Santos (1978, p. 27), quem move o processo
de trabalho na unidade de produção familiar “é a força de trabalho familiar”,
estabelecida por meio da divisão do trabalho entre os membros da família,
sem o recebimento de salários.
Sobre este aspecto de transformação do espaço, Titi comenta que
“antigamente tinha um monte de pessoas e produziam milho, soja. Todas
famílias grandes, e com duas colônias de terra viviam, arrumavam os filhos,
davam terra pros filhos. Porque eram tudo famílias de 10 ou 12 e hoje a
gente produz dez vezes mais e não se sustenta. E se for ver não tem mais
ninguém na agricultura”.
Ao abordar a vida nas colônias, Waibel (1949, p. 182) destaca as-
pectos do processo produtivo nestes locais. Segundo ele:
[...] a fim de utilizar o excesso de suas safras, (o colono) cria porcos, e
vende a banha ou os porcos vivos, em troca de alguns artigos de que
necessita e não produz. Tem ligação com um mundo exterior apenas por
uma picada ou por estradas primitivas, e vive em grande isolamento [...].

Para Celso Stefani, uma lembrança marcante é a “tafona”16. Com ela,


seus familiares faziam farinha de mandioca e depois vendiam. Uma parte era
16
Instrumento construído em madeira usado para moer os grãos, transformando-os em
farinha.

73
usada para consumo próprio e outra parte eles utilizavam para alimentar os
porcos. Outro fato importante é que faziam também polvilho e trocavam na
cidade. Esses produtos eram feitos aqui mesmo na Comunidade, na propri-
edade de sua família.
Idelvino Copatti conta que “antigamente se ‘maiava’17 e guardava tri-
go e milho num caixão no porão, depois levava nos moinhos para fazer fari-
nha. Uma quarta de trigo (meia lata de trigo) dava farinha pra umas dez
pessoas”.
As transformações foram sendo observadas no decorrer do tempo. O
trabalho, através da mão-de-obra familiar, ainda é uma forma muito explora-
da nas comunidades rurais da região. O trabalho por meio de ajuda mútua
entre as famílias também merece destaque por ser de grande importância
para a manutenção dos laços de amizade e para a troca ou auxílio entre as
famílias.
Perguntados sobre as transformações ocorridas na Comunidade, os
moradores entrevistados relataram alguns fatos importantes. Dentre eles, e
de grande relevância, era a falta de infraestrutura da região. A travessia pelo
rio Ligeiro, na divisa entre os municípios de Ibiaçá e Tapejara, numa época
em que não havia pontes, era realizada utilizando balsa.
Segundo Titi, “aqui tinha uma balsa para transportar as pessoas e pro-
dutos para Tapejara, era no rio Ligeiro (Apuaê), uns vinte metros pra baixo
de onde é a ponte hoje. Uma vez caiu fora o carretel da ‘maromba’18. A
balsa ficou no meio do rio e o rio cresceu, e eu fui com os bois puxar. E dei
uma pegada com os bois e ela puxou, e quando ela veio, desceu. E, quando
subiu com água, quase puxou os bois no rio”.
Sobre os desafios existentes na travessia, Titi recorda com tristeza que
“ali morreram duas pessoas, uma moça e uma criança. A menina se assustou
do cavalo e foi pra trás e caiu, a moça caiu embaixo da balsa. Isso faz mais
ou menos uns 50 anos”.
17
Ato de separar o grão, limpá-lo, utilizando uma máquina “trilhadeira”.
18
Vara com que se equilibram nas cordas grossas os funâmbulos.

74
Segundo Celso Stefani, “para Sananduva também não tinha ponte, só
tinha uma pinguela no rio Araçá”. Sobre isso, também comenta Idelvino
Copatti: “No Araçá, não existia ponte. O falecido pai tinha uma mula, bem
boa, e uma vez tinha o rio cheio, cheio e nós passamos pra ir no meu casa-
mento. Aquela vez que eu casei o rio ‘tava’ cheio e eu fui cortar os cabelos
em Ibiaçá. Quando voltei, larguei a mula no rio. Ele [o rio] me levou pra
baixo uns 40 metros. Depois tive que puxar a mula pra fora”.
Sobre os fatos marcantes da época, Idelvino relembra ainda: “E a pri-
meira vez que eu fui namorar, voltei era umas 6 horas [da tarde], o rio Ligeiro
‘tava’ alto e não tinha como passar. Esperei até as 4 da manhã até que veio o
balseiro [para fazer a travessia]”.
O medo era uma sensação frequentemente presente na vida das pes-
soas. O medo da cheia dos rios durante as enchentes ou, também, a travessia
pela balsa ou pela pinguela eram desafios diários para as pessoas da Comu-
nidade.
Segundo relatos dos moradores, a enchente causada principalmente
pelo rio Araçá, que está mais próximo da sede da Comunidade, tornou-se
motivo de preocupação entre os moradores.
Comenta Idelvino Copatti que o clube da Comunidade cerca de três
vezes já foi ameaçado pelas enchentes de grande proporção. “O pai contava
que deu uma enxurrada uma vez e as pipas de vinho que tinha nos porões
[das casas] o rio levou tudo embora.”
Apesar de tamanhas dificuldades enfrentadas pelos moradores, os de-
safios foram sendo vencidos. Através da memória oral destes moradores,
procurou-se identificar também algumas de suas lembranças marcantes.
Segundo Idelvino Copatti, uma lembrança boa eram as festas, “dava
festa boa, vendia vinho a copo nas festas, bolacha também. Me lembro de
uma festa que venderam uma cerveja e quem comprou foi o tio Batista [Ba-
tista Copatti].” Outra lembrança marcante para ele eram os jogos, “tinha
jogo de ‘Mora ’, ‘66’, Bocha. É, passou aquele tempo e nunca mais!”.

75
Amarildo Crestani recorda que a inauguração do salão foi uma grande
festa: “Na inauguração do salão, teve o conjunto Grenal, que na época eram
bem famosos. E teve bastante gente, deu um baile bem grande, com certeza,
o maior da Comunidade até hoje, porque depois não teve mais nenhum tão
grande como aquele”.
Ainda sobre a construção do salão da Comunidade, Italino Copatti
comenta que “antigamente tinha o salãozinho de 8X12, de madeira, depois
foi feito um maior, de 16X20, construído em alvenaria”.
Segundo Genésio Beé “uma lembrança que me marcou, que eu senti
foi a morte do Idacir Stefani [morte por tétano], a primeira pessoa que mor-
reu eu estando na Comunidade. E outra coisa importante, quando eu tinha 14
anos, que teve as Missões. Era muito bonito. E quando tinha festa que se
tomava guaraná... Só se tomava guaraná em festa! [risos]”.
Percebe-se, através dos relatos, o sentimento expresso pelos mora-
dores dedicado ao lugar, às suas casas, às plantações, aos objetos da família
e também aos amigos, vizinhos e familiares que fazem parte da mesma Co-
munidade e que compartilham da mesma cultura e, de certa forma, dos mes-
mos objetivos.
Titi, morador da Comunidade, destaca uma lembrança importante: “As
noites que tinha a capelinha que girava nas comunidades. E as famílias iam e
rezavam o terço nas outras famílias. A gente ia, se reunia e cantava em italiano
nas casas e na estrada. Cantavam pelas estradas e era bonito de escutar”.
Nair Crestani complementa dizendo que “aquela vez era bem melhor,
a gente ia fazer ‘serrão19’ onde tinha a capelinha. Nas noites de inverno se
saía de casa de noite pra fazer ‘serrão’ e já tinha serração. Com a piazada
pequena, um feixe de “escándole” 20. Nos ‘serrão’ falavam tudo em italiano,
19
Significa vigília. Nas comunidades rurais, é um passeio noturno em que as famílias se
reúnem em uma casa para conversar, rezar ou desenvolver alguma outra atividade,
como jogos, celebrar os encontros de família, aniversários, etc...
20
Tábuas pequenas usadas para cobrir as residências antigamente. Posteriormente
eram amarradas em um feixe e acesas a fim de iluminar a estrada à noite.

76
todos! Depois se perdeu o costume. Agora só mesmo alguma palavra. Se
perdeu o costume de ir rezar o terço, agora só de vez em quando”.
O espaço é determinado pela sociedade local e pelas formas de pro-
dução. Segundo Santos (1988, p.19):
Todos os espaços são geográficos porque são determinados pelo movi-
mento da sociedade, da produção. Mas tanto a paisagem quanto o espa-
ço resultam de movimentos superficiais e de fundo da sociedade, uma
realidade de funcionamento unitário, um mosaico de relações, de for-
mas, funções e sentidos.

As funções encontradas no espaço rural comunitário são diversas e


sofrem transformações de acordo com o tempo.
Titi afirma terem existido duas lojas na Comunidade “loja de tecido,
comida, chamada bodegão. Uma era do Idalino de Azevedo e a outra do
Aurélio Spagnol. Depois foram morar em Sananduva. Tinha a loja na casa, a
casa era grande, então tinham um bodegão. Uma era ali onde tinha a escola
[anos depois foi feita a escola no mesmo lugar]. Depois foi comprado pra
virar o clube, antes de fazer o clube novo”.
Clair Crestani Bressan relata fatos importantes da loja na comunidade:
“A loja era do Aurélio Spagnol, tinha de tudo naquela loja. Era ali na frente da
igreja, onde depois foi feito a escola nova. Eu que me lembro, aquela loja já
tava lá, ficou anos, depois saíram os Spagnol e veio um outro que fez só
bodega ali”. Clair saiu da comunidade em 1966, quando se casou e foi morar
em Linha Três, comunidade vizinha, pertencente à Tapejara. Conta ainda que
“tinha tanta coisa bonita, nos dias de festa, fazia os arcos com as taquaras pra
enfeitar”.
Com a ocupação e transformação do espaço, muito foi modificado
neste lugar. Muitas vidas se envolveram na construção, na melhoria do espa-
ço local ocupado pelas casas e plantações; muitas famílias, com o passar do
tempo, acabaram saindo da Comunidade e buscando outras formas de vida,
de produção, geralmente desejando novas alternativas de trabalho. Nesse
contexto, percebem-se variações locais que mostram a alteração na dinâmi-

77
ca espacial produzida no decorrer dos seus 83 anos de fundação e que con-
tinuam sendo identificadas atualmente na comunidade de Araçá Baixo.
A percepção espacial é cercada de lembranças do passado que se
mesclam à atualidade, fazendo com que os colonos desta terra resignifiquem
a trajetória de suas famílias neste local, valorizando o êxito que tiveram os
primeiros moradores da Comunidade. Nas palavras de Cenni (2003, p. 30):
Quando se procura enaltecer a imigração, é comum lembrar quase unica-
mente daqueles que encontrando o caminho do êxito, acumularam gran-
des riquezas e se lançaram a empreendimentos que hoje constituem
patrimônio soberbo do país. No entanto, ao lado deles estão milhares
que foram aniquilados pela adversa fortuna e todas aquelas outras cen-
tenas de milhares que trouxeram, quase que anonimamente, não apenas
contribuição material de seus braços para substituir a perda do braço
escravo mas também, e sobretudo, a de suas virtudes milenárias, de seu
espírito de religiosidade, de seu amor pelo trabalho, por humilde que
fosse, inculcando à família seu espírito de poupança e a sobriedade
típica dos que, vivendo em terra estranha, se impõe os maiores sacrifí-
cios no presente, a fim de prover à segurança do futuro, constituindo-se
desta forma em fatores decisivos da mudança de ritmo e tipo de desen-
volvimento econômico nas terras brasileiras do sul, a partir da segunda
metade do século passado.

Reconhecer as modificações causadas através da ação do tempo so-


bre o espaço favorece a compreensão dos fatos transformados na socieda-
de. Nas comunidades rurais, apesar de acontecerem mais lentamente, as
transformações continuam ocorrendo e são de certa forma variações dos
acontecimentos sociais ocorridos em cada época e que se refletem também
nos recantos mais inóspitos do meio rural.

3.2 As transformações socioculturais e o abandono da Comunidade

Pertencer a um espaço social possibilita ao ser humano fazer parte de


uma sociedade, acredita-se que essa lhe dá condições de sociabilidade com
outros seres. Sendo assim, as relações comunitárias ganham destaque no
meio rural, gerando laços de identidade, produção e pertencimento. Para

78
Santos (1988, p. 21), “a produção do espaço é resultado da ação dos ho-
mens agindo sobre o próprio espaço”.
Ao agir sobre o espaço, o imigrante transformou-o de acordo com as
suas necessidades, condições financeiras e possibilidades do lugar. Nessa
apropriação, surgem valores, expectativas e sentimentos em torno do lugar
que passa a ser “seu”. Ele agrega ao lugar novos significados baseados na
sua cultura e no seu modo de produção.
Diante dessas possibilidades, o homem pode escolher as alternativas
que pretende seguir, pode permanecer nesse seu lugar ou pode também mi-
grar novamente em busca de novas oportunidades, as quais julgue necessá-
rias. Para Haesbaert (2006, p. 81), “[...] em síntese, no espaço estão os
signos da permanência e da mudança, e são vividos os ritos da ordem e do
caos, da disciplinarização e dos desagregamentos [...]”. Analisando Haesbaert,
as transformações partem da escolha do homem, que, segundo suas expec-
tativas, produz e causa mudanças no lugar em que está ou migra para outros
lugares.
Ao utilizar o espaço, o homem produz para a sua sobrevivência, de
acordo com as necessidades que se apresentam. A redefinição espacial é
encontrada nos relatos obtidos dos ex-moradores que, por algum motivo,
em certo momento, abandonaram a Comunidade. São contos, causos, histó-
rias, memórias relembradas e passadas adiante através da memória oral da-
queles que fizeram e fazem parte da evolução comunitária. As transforma-
ções do espaço foram realizadas de acordo com as necessidades do grupo,
e de modo particular também, pois muitos saíram por motivos próprios e se
desligaram da Comunidade, partindo para outros lugares.
Com a finalidade de conhecer as lembranças mais marcantes para aque-
les que viveram neste lugar, foram realizadas, como já mencionado, entrevis-
tas. A entrevistada, Mabília Crestani Girardi21, conta um pouco da história de
sua família na Comunidade. Segundo ela, “o ‘nono’ veio da Itália e depois

21
Mabília Crestani Girardi, hoje com 70 anos de idade, foi entrevistada no dia 03 de
outubro de 2009, em sua residência, na cidade de Tapejara/RS, onde vive atualmente.

79
veio pro Araçá. O pai era do interior de Sananduva e conheceu a mãe no
Araçá e casaram”. Questionada sobre a sua saída da comunidade, ela afirma
ter saído com 39 anos, quando se casou e mudou-se para a comunidade
vizinha de Santa Bárbara. A senhora Mabília recorda fatos que marcaram
sua vida na Comunidade. Sobre sua infância, ela recorda, com muita alegria,
“era bom de ir ao catecismo22, aquela que era coisa bonita, [passar a 1ª
Eucaristia] vestida de branco que nem uma noiva!”.
As recordações de Clair Crestani Bressan possibilitam-lhe relembrar,
com saudade, do passado “faziam as novenas as nove noites, pegava 5 ou 6
famílias, ou até mais e rezava. Seria bom, porque era melhor do que agora, a
amizade que se tinha era outra coisa. A gente ia fazer ‘serrão’ e preparava
as‘escándole’, que era feito de tabuinha lascada, fazia cavaco fino e acendia
pra clarear. Se passava o rio alto e nós era pequeno, ‘má gente’!!! Aquele
bendito rio passemo, passava de caíco23 e a cavalo, tinha o “passo das mu-
las” e o caíco passava pro lado debaixo, isso no rio Ligeiro”.
Assim também relata Idalina Martelo Bressan24 sobre as noites em
que se reuniam para rezar: “Se gostava de ir na roça também, se ia contente
e voltava contente. E ainda de noite ia fazer ‘serrão’, ia longe! Se eu pudesse
voltar a ‘esses anos’, na casa do pai... Era muito bom...”. A família, segundo
ela, sempre morou no Araçá Baixo, porém, quando tinha 16 anos, recorda
que os irmãos mais velhos compraram terras em Santa Catarina. Por isso, o
pai resolveu ir embora também, para ficar mais perto dos filhos. Assim, toda
a família partiu de mudança. Porém, Idalina voltou ao Araçá Baixo após seu
casamento. Ela e o esposo, então, voltaram a se associar na Comunidade.
Conta ela que as crianças iam à aula e à catequese no Araçá Baixo. Sobre a
vida na Comunidade, conta que era boa, “se trabalhava tudo a ‘muque’, não
tinha maquinário, era só a foice e a enxada. Não se plantava soja, era só
milho, trigo... Era tudo arado com os bois”.

22
Ensino dos dogmas e preceitos da religião.
23
Pequena embarcação feita de tábuas, utilizada para o transporte em pequenos rios.
24
Idalina Martelo Bressan foi entrevistada no dia 31 de outubro de 2009, em sua
residência, na cidade de Tapejara/RS.

80
Ao relatar as dificuldades encontradas naquela época, Mabília Girardi
conta como era a vida da família: “Tinha o fogão de terra, a casa de madeira
coberta de escándole. Eu era a mais velha, fazia queijo, ajudava a mãe.
Tinha bastante gente aqui, a minha ‘mama’ tinha doze ‘fradei’[irmãos], três
moças e o resto rapaz. Plantavam milho e feijão, trabalhava... ‘Cara de
dio!25’, com arado e boi. Eu sei, olhe minhas mãos, ‘tutti storti’26. Tinha um
par de ‘chinelete’27, cara! Um ‘vestidim’28... Não era que nem agora. A mãe
que costurava, pobrezinha. A mãe fazia polenta de noite, quando vinha pra
casa, depois de tirar leite e tinha o fogo no meio da cozinha, colocava a
‘calheira’29 e nós no banco atrás do fogão e ela dava polenta e leite. Meu
falecido pai ‘poreto’30! Ele ia trabalhar oito dia fazendo a estrada de picão.
Trabalhava, se juntava às famílias e se ajudavam, cavocavam com a pá....
Pobrezinho, o que que trabalhavam uns anos atrás!”.
Segundo Itacir Crestani31, seus avós vieram para a região trazendo os
filhos, vindos de Antônio Prado. Questionado sobre a saída da família desta
Comunidade, ele comenta que “umas filhas já tinham saído pra estudar, então
viemos pra cá [Tapejara], trocar de serviço. Lá era tudo longe, era uma
dificuldade, sempre a pé as piazadas”.
Assim também se fazem os relatos de Delanir Stefani Boff32. Segundo
ela, que nasceu na Comunidade, a decisão por sair do Araçá Baixo foi pelo
fato de a terra ser pouca e ter muito morro. Dessa forma, na época, ela, o
marido e os dois filhos mudaram-se para Coroado Alto (Comunidade do
interior de Charrua/RS) e, dois anos depois, mudaram-se para Tapejara.
Segundo ela, de todos os seus irmãos, somente dois ainda vivem na Comu-
nidade, ela e outros cinco saíram de lá. “Tinha bastante juventude lá, era
diferente do que é agora”, afirma a entrevistada.
25
Expressão em dialeto italiano que significa “pessoa de Deus”.
26
Referindo-se às suas “mãos tortas” pelo trabalho exercido na Colônia.
27
Par de chinelos.
28
Vestido.
29
Panela redonda, sem tampa, utilizada para fazer polenta.
30
Refere-se a “pobrezinho ou coitado”.
31
Entrevista realizada em setembro/2009, em sua residência, na cidade de Tapejara/RS.
32
Entrevista realizada em outubro/2009, em sua residência, na cidade de Tapejara/RS.

81
Para Marizete Perondi Copatti33, sair da comunidade de Araçá Baixo
foi um momento difícil, mas foi necessário. “Eu nasci no Paiol da Várzea,
interior de Ibiaçá, me mudei pra lá quando casei, em 1978. Quando nós
fomos morar lá, não tinha carro nem luz elétrica. A luz chegou em 1980, lá em
casa, que era mais longe da Comunidade, isso que era difícil... Lá no Araçá a
gente tinha pouca terra. Então, o Geraldo (falecido) quis ir pra Lagoa Verme-
lha, onde compramos um pedaço de terra maior”.
Haviam algumas dificuldades no passado segundo Delanir, “ir pra ci-
dade, não tinha ônibus que nem agora, ficava mais difícil sim. E tinha que
trabalhar na roça, eu não ia muito porque tinha cinco irmãos homens pra
ajudar o pai, então eu ficava em casa de manhã, ajudando a mãe pra lavar
tudo aquelas roupas”.
Indagada sobre as maiores dificuldades na Comunidade, Clair comen-
ta que “a dificuldade maior era pra ir na cidade, que tinha que ir a cavalo. O
pai, o nono se reuniam com o vizinho e enchiam a carroça de grão (milho,
arroz, trigo) pra levar a Tapejara no moinho, cada vez ia um de carroça. Às
vezes carregava os sacos nas mulas, caía o saco na estrada, tinha que ir até
no moinho chamar pra arrumar o saco de novo”.
Para Idalina, “era difícil porque só saía a cavalo. Nós tinha dois cava-
los, e ia na cidade assim. Nós era acostumado assim, não tinha porque recla-
mar, porque era tudo assim naquela época. E nas festas ia a pé e antes de
chegar a noite tinha que tá em casa. O primeiro carro que teve era um jipe,
era uma alegria ir na missa em Ibiaçá de jipe, senão era a pé que a gente ia”.
Apesar das dificuldades, os ex-moradores de Araçá Baixo sentem
saudade dele. As origens, as reuniões de famílias, os “serrões”... são mo-
mentos que não voltam atrás. As transformações que o homem causou ao
espaço que ocupa se refletiram também nas suas formas de vida, de adapta-
ção e nas necessidades quanto ao meio. Dessa forma, com a evolução cons-
tante, as famílias passam a sentir variadas necessidades até então ignoradas.
33
Marizete I. Perondi Copatti, minha mãe. Por diversas vezes participou da coleta de
dados, incentivando os depoimentos. Reside comigo atualmente, na cidade de
Tapejara/RS.

82
De acordo com Carlos (2007, p. 24), “A natureza social da identida-
de, do sentimento de pertencer ao lugar ou das formas de apropriação do
espaço que ela suscita, liga-se aos lugares habitados, marcados pela presen-
ça, criados pela história fragmentária feitas de resíduos e detritos, pela acu-
mulação dos tempos, marcados, remarcados, nomeados, natureza transfor-
mada pela prática social, produto de uma capacidade criadora, acumulação
cultural que se inscreve num espaço e tempo.” A autora defende ainda que
“[...]A análise do lugar envolve a idéia de uma construção, tecida por rela-
ções sociais que se realizam no plano do vivido o que garante a constituição
de uma rede de significados e sentidos que são tecidos pela história e cultura
civilizatória que produz a identidade homem-lugar, que no plano do vivido
vincula-se ao conhecido-reconhecido”.
Delanir lembra com saudades da primeira eucaristia “era um dia co-
memorativo. As meninas todas de vestido azul, todas nós de vestido. Os guri
tudo igual também. Ainda mais que eu já era grande”. As figuras 16 e 17
retratam duas épocas distintas, porém a expressão de religiosidade e o res-
peito às tradições continuam vivos na Comunidade.

Figura 16: Primeira Eucaristia na década Figura 17: Primeira Eucaristia na década
de 1970. de 1990.
Fonte: Acervo dos moradores da Fonte: Acervo dos moradores da
Comunidade. Comunidade.

Para Idalina, viver na comunidade de Araçá Baixo era bom, “que eu


me lembro eu gostava. No domingo, ia no terço e depois fazia uma roda e
ficava tudo lá junto. Era bom naquela época, como era bom! Todo mundo se

83
dava bem, todo mundo participava. Uma vez era diferente, se ganhava uma
roupa pra ir na festa... E a festa do padroeiro, nossa que festa! Fizeram fita
pra inauguração da igreja nova, então os padrinhos da igreja [Fidêncio Vedana
e Verônica Martelo Vedana] cortaram a fita. Era muito bonito”.
Marizete conta que “era bom, que a gente ia ao culto34. E como a
nossa casa era a última, antes de subir o morro, a gente se reunia lá pra
esperar todo mundo chegar e ia tudo junto. Depois voltava junto também”.
Sobre o convívio social na comunidade de Araçá Baixo, Itacir Crestani
afirma ainda que “na comunidade era bom, ir na bodega, jogar canastra, ia
nas casas fazer filó, aí depois começavam a jogar baralho. Tinha as piazada
pequena e ia tudo junto porque tinham medo. Iam jogar baralho junto né,
porque era longe. Se trabalhava a semana inteira e tinha que se divertir. Che-
gava em casa, tomava banho e saía pra jogar canastra. Era fim de semana,
dia de semana! As piazada dormiam... Ia tudo a pé, não tinha nada de carro,
ia tudo junto. Era sofrido, mas não era ruim, e a gente acostuma. Canastra, às
vezes era a semana inteira, o pai carregava um nas costas, a mãe carregava
um nos braços, não se poupava as pernas. Tinha que carregar as criança
porque era tudo pelo meio da lavoura”.
Ocorreram muitas mudanças neste local, alguns moradores acreditam
que, apesar das dificuldades do passado, a vida naquela época era mais fácil.
Na visão de Italino Copatti, “as coisas de antigamente eram mais fáceis,
agora é tudo mais difícil. Os bailes esses anos eram nos paiol, nas casas onde
tinha um lugarzinho saía os bailes. Eram convidadas as pessoas um dia antes,
se ia de casa em casa convidando”. Segundo ele, antigamente não existiam
festas como agora, o que ocorria “era a missa e o almoço era bolacha e
vinho. Não tinha geladeira, nem gelo, então se tomava bebida quente. O
padre a gente ia buscar em Sananduva, a cavalo, e ficava dois ou três dias na
Comunidade, depois se levava de volta”.
Segundo Mabília, “que divertimento, mia sorela [minha irmã], nós ia
nos paiol, os outros vinham com violão e gaita. Que baile! Se divertia, não é
34
A religião em suas manifestações externas.

84
que nem agora tudo barulho. ‘Me amigue lhe bailea’ [minhas amigas dança-
vam], nós ia com o mano, tudo junto”.
Atualmente, alguns eventos, como bailes e escolha da rainha da Co-
munidade, não ocorrem mais, justamente pela diminuição do número de pes-
soas neste local. Era difícil, segundo Mabília, para ir aos bailes, porque per-
guntava pra mãe e ela mandava perguntar pro pai. E ela dizia para os irmãos
“tozi, femo polito que nantra olta a mama deixa” [piazada, fazemos certo
que na próxima vez a mãe deixa].
O respeito ou o medo da reação dos pais, por muito tempo, fez com
que os filhos agissem com mais cuidado. Esta é uma das transformações
ocorridas na sociedade que diferencia a população, devido à sua evolução,
nos últimos anos.
À medida que o tempo passa, o espaço geográfico sofre algumas alte-
rações significativas, que por muitas vezes acabam por interferir na vida dos
moradores de forma indelével, impondo novos parâmetros à cultura local.
Em relação ao passado da Comunidade e suas transformações no
decorrer dos anos, Marizete comenta que “era uma Comunidade organiza-
da, saía bastante festa, baile, jogo de bocha de casal, que a gente gostava
bastante. Tinha encontro de grupo de família, que era os vizinhos mais perto
que se reuniam, rezavam, cantavam, tomavam chimarrão. Nos domingos,
tinha o terço na Capela, a gente ia, rezava, depois sentava na sombra, reuni-
dos. Às vezes as mulheres iam jogar bocha de tarde, ou fazia pipoca e chi-
marrão, fazia uma roda e ficava conversando. O clube de mães era organiza-
do, assim nós se reunia e a gente fazia manutenção da limpeza do cemitério,
da igreja, promoção do grupo de mães e saía pra visitar outros grupos que
convidavam a gente. Nos encontros, tinha gincana, brincadeiras e às vezes
matinê. A extencionista da Emater35 dava curso pro grupo de mães. Fez cur-
so de culinária, artesanato, pintura em vidro. Era bom, tinha bastante partici-
pação. Os encontros eram durante a semana com a Emater e do grupo de
mães no domingo”.
35
Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural.

85
A maneira pela qual os seres humanos transformam seu espaço social
ocasiona novas oportunidades de interpretação dos lugares no espaço rural.
Questionado sobre as transformações ocorridas na comunidade de Araçá
Baixo, Itacir Crestani comenta que “a gente caminhava, era puro barro, tinha
que caminhar nos barrancos. Se fosse bem pensar as coisas de hoje e de 50
anos atrás, era tudo diferente. As casas eram tudo de madeira, nenhuma casa
tinha banheiro, só tinha patente36 lá fora. Era tudo diferente, não tinha energia
[elétrica]. Então matava as galinhas e tinha que fazer na hora, antes de vim
energia tinha dois poços, aí com os baldes de madeira ia pegar água fresca.
Foi passado as tristezas...”.
Relembrar o que passou, desencadeia um sentimento de saudade que
reacende o passado na memória destas pessoas. Ao recordarem o passado,
percebe-se, nos olhos e nas palavras, que algo de bom do passado se per-
deu, sejam familiares, amigos, formas de convívio ou até mesmo costumes da
época.
A troca do campo pela cidade transforma não somente o modo de
vida destas pessoas, mas também desperta um sentimento de carinho e de
cuidado pelas lembranças da sua vida na Comunidade.

3.3 A diminuição do número de pessoas na Comunidade de Araçá


Baixo

As transformações ocorridas no mundo, especialmente a partir do


surgimento do capitalismo no século XVIII, causaram modificações em todo
o planeta, transformando também as regiões do nosso estado.
A partir da urbanização, em meados de 1960, no Brasil, o êxodo rural
aumentou, e não foi diferente no Rio Grande do Sul. Não somente essa foi a
causa, mas também o acelerado processo de modernização do campo nos
últimos anos vem transformando o espaço geográfico rural, reconfigurando

36
Fossa sanitária localizada fora da casa.

86
desde a cultura até as formas de produção agrícola. Dessa forma, alteram-se
também as formas de vida neste espaço. É isso que se procura constatar por
meio da realização deste trabalho, através da análise das famílias da comuni-
dade de Araçá Baixo, as quais testemunham o abandono do meio rural.
Os registros mais antigos encontrados sobre a ocupação do lugar onde
se localiza a Comunidade datam de 1938 e são escassos. Segundo informa-
ções, os registros não eram feitos sob o ponto de vista populacional e, sim,
eram registradas informações sobre o pagamento do dízimo para a capela.
Dessa forma, eram utilizados livros para o registro das informações.
Os primeiros registros encontrados na Comunidade foram feitos onze
anos após a inauguração da capela São João Batista do Araçá Baixo. Acre-
dita-se que as anotações referentes ao pagamento do dízimo à igreja eram
feitas anteriormente em cadernos ou folhas que, com o passar do tempo,
perderam-se. Após o início da utilização do livro de registros, a organização
comunitária se tornou mais fácil. Porém, os dados disponíveis são escassos
e, daquela época, estes foram os únicos documentos encontrados.
Como mostra a figura 18, o número de moradores já em 1938 se
tornou relevante, visto que, além do número de famílias ser maior, há que se
levar em conta também o número de pessoas em cada família. Sendo assim,
constatou-se, através das conversas com alguns moradores, que o número
de filhos por casal era em média de 9 a 10.

87
Continua na página 89.

88
Figura 18: Lista de sócios da capela em 1938.
Fonte: Livro de registros da comunidade de Araçá Baixo.

Dessa forma, também não foram encontrados registros fotográficos


da época. Segundo relatos de alguns moradores, no passado não se costu-
mava tirar fotografias por ser este recurso escasso na região, anos mais tarde
é que surgiram os primeiros fotógrafos que, ao serem solicitados, dirigiam-se
às comunidades rurais para fazer os registros. No ano de 1959, como mos-
tra a figura 19, pode-se constatar que aumentou ainda mais o número de
famílias. Acredita-se que isso se deva ao fato de que continuaram vindo mais
moradores para esta região, ou talvez, pelo casamento dos filhos de alguns
casais da Comunidade, constituindo novas famílias.

89
Continua na página 91.

90
Figura 19: Número de famílias em 1959.
Fonte: Livro de registros da comunidade de Araçá Baixo.

Dessa forma, ao se casarem, estes se associam à comunidade à qual


pertencem. Assim, associar-se significa fazer parte do grupo, ser membro da
Comunidade dispondo de direitos e de deveres, que devem ser obedecidos.
A Comunidade funciona como uma associação e essa, portanto, possui algu-
mas regras indispensáveis para a própria manutenção e organização.
Através destes documentos em análise, podemos constatar que havia
40 famílias sócias da Comunidade em 1959. Porém, não se obteve dados
concretos sobre o número exato de moradores, pois, cada família possuía
um número de membros diferente. Portanto, tornou-se difícil obter o número
exato de pessoas. Alguns moradores comentam ter existido neste lugar, nesta
época, aproximadamente 300 pessoas. Acredita-se também que o número
de famílias já tivesse passado de 50, porém, não existem dados que compro-
vem este fato.
Em 1986, foram registrados novamente os sócios da Comunidade. O
número era de 38 famílias nesta época, porém, devido à dispersão dos da-

91
dos no livro de registro do caixa, não foi possível colocá-las nesta obra para
análise.
Segundo relatos dos moradores, as famílias antigamente eram bem
maiores do que hoje. Dessa forma, acredita-se que o número de moradores
era muito maior se comparado ao número atual. Após a coleta de dados
através da pesquisa na Comunidade, constatou-se que atualmente existem
24 famílias neste lugar. Se for considerado somente o número de famílias,
pode-se dizer que houve diminuição, porém não tão significativa quanto à
redução do número de habitantes deste local.
Sobre a dinâmica populacional do campo, Teixeira (1966, p. 25) co-
menta que a população aumenta ou diminui em consequência de vários fato-
res, um dos mais importantes e de certa forma preocupante é o êxodo rural.
Assim, “o êxodo cada vez mais intenso da população rural para a urbana
deve-se, em grande parte, ao atraso, à falta de conforto e às necessidades
socioeconômicas das comunidades rurais”. Percebe-se na Comunidade que
o maior motivo que leva à migração é a necessidade de continuar perto dos
filhos, esses que migraram antes.
Ronsini (2004, p. 73) afirma que o esvaziamento do campo em um
município predominantemente minifundiário parece explicar-se pela constan-
te subdivisão das pequenas propriedades entre os filhos dos microproprietários
de terras até elas se tornarem insuficientes para a sobrevivência econômica
das famílias.
A redução no número de pessoas da Comunidade, no decorrer dos
últimos quinze anos, não se restringe apenas ao número de famílias que dei-
xou este lugar, mas remete-se também ao número de pessoas (especialmente
jovens) que saíram da casa de seus pais para trabalharem nas cidades próxi-
mas. Através da figura 20, percebe-se a redução no número de famílias na
Comunidade.

92
Figura 20: Gráfico do número de famílias de acordo com os períodos de tempo.
Fonte: A autora.

Clair afirma que “tinha bem mais gente lá no Araçá, ma!!! A gente que
pertencia na ‘área dos índios’37 vinham no Araçá, na catequese e na aula. Lá
na área tinha uma serraria e tinha gente [não indígenas] que trabalhavam e
vinham tudo na aula aqui as crianças. O primeiro professor também era quem
dava a catequese”.
Ao se realizar a análise do número atual de famílias, pode-se perceber
que parte delas é constituída atualmente por apenas duas pessoas, geralmen-
te marido e esposa ou, ainda, três pessoas, uma vez que um dos filhos conti-
nua na propriedade.
Nair comenta que “aqui tinha bastante gente, bem mais que agora.
Tinha 46 famílias, numa época, que recebiam a capelinha. E agora tem 24
famílias. Uns foram, uns vieram, uns casaram e ficaram aqui”.
Segundo Delanir, “tinha mais gente uma época sim. Agora tem bem
menos”. Para Idalina, a diminuição se deve ao fato de que diminuiu o número
37
Refere-se à área indígena do Ligeiro, que pertence ao município de Charrua, situada
nas proximidades do rio Apuaê, em divisa com a comunidade de Araçá Baixo.

93
de filhos nas famílias. Segundo ela, “na época que o pai morava lá tinha umas
50 famílias, tudo família grande. Agora as famílias são menores. Na casa do
pai, a gente era em 9 irmãos. E saíam de casa quando casavam, ninguém saía
pra estudar que nem agora”.
A percepção da diminuição do número de moradores é vista e sentida
pelos que ficam. Esses veem esvaziar-se o espaço local, entretanto, ficam as
marcas de um passado repleto de conquistas e memórias marcantes para
quem aqui viveu e também para quem ainda vive no local.
Os que partem também deixam parte de si mesmos, mas levam a es-
perança de dias melhores, assim como ocorreu quando seus familiares, des-
cendentes de italianos, vieram para este lugar com o mesmo sonho.
Com o passar do tempo, as transformações do mundo moderno fo-
ram tornando-se cada vez mais rápidas. Dentre as mudanças percebidas no
meio rural, está o êxodo, que vem ocorrendo incessantemente e que acaba
por transformar significativamente a cultura dos lugares.
Além do fenômeno do êxodo rural, que eclodiu no Brasil em meados
de 1960, outro motivo de diminuição da população na Comunidade foi a
venda de pequenas áreas de terras, pelos colonos, para aquisição de áreas
maiores em outros locais, onde as áreas de campo e mata começavam a ser
ocupadas.
Isso ocorreu principalmente pela modernização agrícola, que incenti-
vou o uso de máquinas nas propriedades, diminuiu a necessidade de mão-
-de-obra e, de certa forma, acabou excluindo aqueles que não se adaptaram
a essas condições. Assim, muitos moradores venderam suas terras para ou-
tros membros da Comunidade, sendo esses geralmente vizinhos ou seus pró-
prios irmãos. Após a venda da terra, partiram para a cidade ou em busca de
novas terras, em outros lugares.
Outro fator de destaque é a diminuição do número de filhos por casal.
Com o crescente processo de mecanização agrícola, as famílias não depen-
dem mais da mão-de-obra familiar para a produção. A figura 21 mostra o

94
número atual de moradores da comunidade de Araçá Baixo. Os dados se
referem a todos os moradores, distribuídos de acordo com faixa etária e
sexo. Segundo informações, atualmente vivem cerca de 70 pessoas na Co-
munidade.

Figura 21: Gráfico do número de moradores de acordo com idade e sexo.


Fonte: A autora.

Através dos dados analisados e também dos relatos dos moradores,


percebe-se que houve diminuição significativa de jovens na Comunidade,
porém, pode-se dizer também que a redução é clara nas mais diversas faixas
etárias, sendo esse um fator de destaque na transformação local.
Há que se registrar que as mudanças decorrem dos mais variados
motivos. Entre eles, pode-se citar: mortes, casamentos, migrações de jovens
para estudar ou trabalhar em outros lugares, migrações de famílias que saem,
compram terras em outras áreas rurais ou se deslocam para áreas urbanas,
migrações de pessoas que adquirem terras na Comunidade, etc. Não se tor-
na possível uma análise que se detenha a detalhes minuciosos sobre estes
fatos, porém, deve-se observar a dinâmica que ocorre no espaço,
tranformando-o com o passar do tempo.

95
Mudam as pessoas, transformam-se as formas de trabalho, de conví-
vio, os hábitos, porém, a memória local e a identidade com o lugar se man-
têm constantes, fazendo com que os moradores, colonos proprietários ru-
rais, continuem suas vidas neste lugar, dando novos significados a ele e con-
servando características adquiridas de seus antepassados.
Diante dos avanços tecnológicos e dos novos meios de produção nas
propriedades rurais da comunidade, formou-se uma nova cultura, moldada
às características deste lugar, envolvendo lembranças de tempos passados,
sentimentos de união e laços de amizade entre os seus membros. Sendo
assim, os moradores desenvolveram os costumes herdados dos antepassa-
dos, intercalando-os com as novas possibilidades.
A Comunidade mantém objetos e costumes dos primeiros imigrantes
que ocuparam a região: utensílios domésticos e agrícolas, expressões na
maneira de falar através do dialeto italiano, construções com traços da cultu-
ra herdada dos imigrantes e tradições que continuam vivas no espaço local.
O lugar mantém traços de momentos passados, mas que continuam
fortes na comunidade. Perguntado sobre as transformações no decorrer dos
anos, Titi afirma: “Houve muita mudança, bastante... Nossa do céu!”.
Ao se conhecer a comunidade rural, faz-se necessário observar as
pessoas que a constituem e conhecer como os moradores vivem. Desse modo,
a vida em comunidade pode ser compreendida através das relações
interpessoais do homem com o meio e das relações dos homens entre si.
As relações interpessoais são estabelecidas através de aspectos em
comum, que podem ser crenças, ideias, necessidades, etc. Dessa forma, na
comunidade, os moradores se unem em torno das necessidades do grupo,
constituindo, assim, a história da ocupação local.
A ocupação local resulta da ação humana sobre o território, segundo
Santos (2002, p. 82) “as ações resultam de necessidades, naturais ou cria-
das. Essas necessidades: materiais, imateriais, econômicas, sociais, culturais,
morais, afetivas é que conduzem os homens a agir e levam a funções [...]”.

96
Ao ocupar e transformar o meio onde vive, o homem cria condições
para desenvolver habilidades e certas atividades que lhe conferem determi-
nadas características individuais e grupais. Estas características são herdadas
e, muitas vezes, transformadas segundo as necessidades. Dessa forma, o
homem adapta-se às condições do meio e modifica este espaço em benefício
próprio, gerando, assim, a cultura.

3.4 A memória como manutenção da cultura dos antepassados


italianos
A memória dos moradores da Comunidade funciona como objeto de
conhecimento, visto que é talvez a única forma de relembrar o que foi vivido,
de reconstruir os fatos que já estavam sendo esquecidos e de dar-lhes um
significado.
Para Claval (1999, p. 142), “a cultura é o conjunto de representações
sobre as quais repousa a transmissão, de uma geração a outra ou entre par-
ceiros da mesma idade, das sensibilidades, idéias e normas [...]”.
Segundo relatos de Carboni e Maestri, (2000, p. 8):
Com o passar dos anos, a cultura singular criada pela emigração campone-
sa e urbana difundiu-se pelo Rio Grande do Sul [...]. Formas de falar, de
viver, de comer, de sentir, trazidas da Itália e aclimadas ao solo e à gente
gaúcha, ultrapassaram as fronteiras étnicas dos descendentes dos imi-
grantes tornando-se patrimônio cultural do gaúcho e brasileiro comum.
Os relatos fornecidos pelos membros da Comunidade mesclam-se,
formando narrativas individuais e coletivas. Segundo Clair, a vida antigamen-
te não era fácil como é hoje. “Nós ia na aula de pé no chão, no frio, na geada,
depois ganhei uma alpargata pra sair, era sofrido uma vez...” Ao constatar-se
o emprego da expressão “antigamente” pela entrevistada, pode-se perceber
a relação entre o espaço e o tempo, que andam juntos, ou seja, simultanea-
mente, na transformação socioespacial e cultural comunitária. Através do tem-
po, ocorreram diversas mudanças que originaram novas dinâmicas e que são
relatadas pelos moradores por estarem registradas em suas memórias. Esses
relatam com entusiasmo fatos de suas vidas neste lugar.

97
Conhecer ou reconhecer o que é considerado antigo pode re-acender
algumas formas de ver o espaço em sua constante evolução. Dessa forma,
pode-se observar aspectos importantes relatados através de imagens, como
na figura 22, que mostra a força da juventude na década de 1970, sua religi-
osidade e participação ativa no espaço rural.
Ao analisar a transformação do espaço, é necessário reconhecê-lo
através da observação de seus elementos diversos, esses que são decisivos
para a ação humana sobre ele.

Figura 22: Jovens em frente à igreja da comunidade de Araçá Baixo, em 1977.


Fonte: Acervo dos moradores da comunidade de Araçá Baixo.

O desenvolvimento do espaço social e local tem características singu-


lares que o diferem de outros. Assim, o desenvolvimento da ação do homem
sobre a natureza e os estudos geográficos são definidos, segundo Ferreira
(2002, p. 23), como se constata a seguir:

98
O estudo da relação homem-natureza acompanha o desenvolvimento da
geografia desde a sua origem. A análise das regularidades na localização
do homem e de suas atividades procurou desvendar sempre a lógica
dessa distribuição sobre a superfície terrestre. Se essa distribuição tem
implícita uma variação no espaço, objeto de estudo da Geografia, ela
apresenta também uma lógica temporal, ou seja, a relação homem-natu-
reza varia também no tempo.

Toda ação transformadora gerada pelo homem, seja ela em pequena


ou grande escala, ocasiona lembranças, situações que se tornam memórias
presentes nas mentes de quem as guarda. No processo de desenvolvimento
socioespacial e cultural da comunidade de Araçá Baixo, os moradores auto-
maticamente guardam consigo suas memórias desde a infância, posterior-
mente recebem informações dos pais, avós, vizinhos a respeito dos fatos
vividos diariamente, constituindo, dessa forma, a memória individual.
Zanini (2007, p. 522) afirma que “a junção dessas múltiplas faces
narrativas gera o que denomino de processo de construção das memórias,
que é sempre e ao mesmo tempo coletivo e individual. Individual, porque
quem refaz as memórias com sentido é o indivíduo; coletivo porque é o gru-
po que lhe dá legitimidade e partilha de significação”.
Um fato marcante da memória coletiva é observado na figura 23, que
mostra a festa de inauguração do salão comunitário, empreendimento reali-
zado pelo esforço conjunto dos moradores da comunidade de Araçá Baixo.

99
Figura 23: Baile de inauguração do salão, festa animada pelo conjunto Grenal, de
Erechim, em 1978.
Fonte: Acervo dos moradores da comunidade de Araçá Baixo.

A memória vista de forma coletiva traz diversas “visões” individuais,


que por vezes se completam e por vezes se chocam. Esse fato depende dos
indivíduos envolvidos na constituição da memória e de diversos outros fato-
res individuais que diferenciam suas formas de pensar, de agir, de relacionar-
se ou de perceber o espaço local de vivência. Para Oliveira (2006, p. 13):
A constituição da memória, coletiva ou individual, não importa, envolve
conhecer o passado por meio do testemunho de pessoas que nele vive-
ram. Recorre-se à memória do narrador. Lembrar é reconstruir o passado
com olhos e valores de hoje. O documento criado pela recuperação da
memória é um documento do presente e, ao mesmo tempo, uma recons-
trução de fatos passados. Memória é elemento constitutivo do senti-
mento de identidade (individual ou coletiva) relacionado ao sentimento
de continuidade e de coerência.

A memória possibilita sensações de vida, apreciação de uma história


que o tempo físico destruiu, mas que a lembrança jamais apaga.

100
Isso também ocorre em relação ao envelhecimento dos membros do
grupo familiar, em especial aos “nonos” que possuem lembranças de tempos
passados e de fatos que são transmitidos de forma oral, num contar e recontar
constante, relembrando momentos e situações próprias do passado. Para
Ricupero (2003), em artigo publicado, a valorização da memória mantém
viva a tradição, segundo ele:
A memória é nossa única arma para inverter o sentido do processo
natural e dar vida a nossos pais e avós, aos que ainda recordavam o
perfume dos frutos natais e falavam os estranhos dialetos que
desaprendemos. É o último e comovido tributo que podemos render aos
nossos velhos italianos, agarrando-os a essas queridas sombras pela
lembrança, impedindo pela memória que o esquecimento os condene a
morrer de novo.

Ao recordar as tradições da cultura italiana no meio rural, onde ela se


mantém mais viva, e muitas vezes inalterada, percebe-se que com o tempo
algumas coisas se perdem pelo fato de que a evolução social ultrapassa as
barreiras culturais.
A centralização do ensino em escolas das áreas urbanas é um dos
motivos que rompe a cultura característica de um povo, de uma comunidade
e a transforma em cultura homogênea, coletiva. Ao detalhar a escola do meio
rural, Clair conta que “a escola era de madeira, era bem pequeninha e tinha
bancos compridos, que sentava 4 ou 5. Só se escrevia com os quadros, uma
tabela preta. Não tinha caderno, nada, o tema que copiava, depois fazia e
apagava. Depois que veio papel, daí tinha a sabatina38, ganhava o papel pra
fazer a prova. Na escola, uma vez, o aluno que não obedecia e não fazia de
acordo com o professor apanhava, a ‘vime’39 pegava, e faziam ajoelhar no
milho. Castigo a gente tinha sempre, até se errava o tema. Botava na frente
da porta ajoelhado no milho, quando não dava com a ‘vime’ nos dedos. Não
é que nem agora”.

38
Prova ou recapitulação da matéria lecionada.
39
Planta de galhos finos e flexíveis, vimeiro.

101
A partir dos relatos das diferenças do antes e do agora, vivem-se no-
vas expectativas quanto aos acontecimentos da vida e quanto à memória que
será criada ou recriada. Torna-se espantoso olhar para o passado e perce-
ber que realmente ele passou e que, muitas vezes, dele só restam lembranças
e alguns vestígios.
A escola e os lugares outrora cercados por crianças brincando e estu-
dando, hoje são lugares que recebem crianças somente nos finais de semana.
O fechamento da Escola Municipal de Ensino Fundamental Duarte da Costa,
da comunidade de Araçá Baixo, ocorreu no ano de 2002 e obrigou algumas
crianças a estudarem na cidade. Essa mudança desencadeou diversas trans-
formações locais, dentre elas, o fascínio maior pelo mundo urbano e o
distanciamento da própria vida rural.
Na figura 24, observa-se a turma de alunos de 1995, juntamente com
o professor Tadeu Fiabane40, que iniciou suas atividades na Comunidade em
1985. Segundo ele, havia escolas em praticamente todas as comunidades do
interior de Ibiaçá e havia também muitas crianças nestes lugares. Relembrando
a época, afirma que “as escolas faziam piquenique perto do dia da criança,
cada ano numa escola. Era feito ‘piquenique’ também na área indígena. Foi
feito inclusive quando o presidente [da República] da época, o Fernando
Collor de Mello, esteve em visita à área dos Índios para assinar os papéis da
posse da terra indígena do Ligeiro”.
Muito do que se observava no passado hoje não é mais encontrado,
porém, no resgate através da memória, as lembranças continuam lá, intactas.
Transformam-se os lugares, mas nas mentes humanas a transformação de-
mora algum tempo para acontecer.

40
Tadeu Fiabane foi entrevistado no dia 21 de fevereiro de 2009, em sua residência, na
comunidade de Santa Bárbara, próxima à comunidade de Araçá Baixo.

102
Figura 24: Professor Tadeu Fiabane juntamente com os alunos em 1995.
Fonte: Acervo dos moradores da comunidade de Araçá Baixo.

Este processo de alterações espaciais e referenciais exerce grande in-


fluência sobre as pessoas da Comunidade, porque transforma, de forma sig-
nificativa, suas expectativas, seus ideais e sua maneira de viver.
O sentimento gerado pela mudança traz certas transformações ao es-
paço local, pois, menos habitado, acaba perdendo parte de sua função soci-
al. A memória é essencial para a família e para a comunidade, pois identifica
não somente sua cultura, mas a coletividade da lembrança e do sentimento.
Ao recordar os fatos de maior relevância para a comunidade de Araçá
Baixo, a incursão no tempo, automaticamente, resgata os tempos de escola.
Roseli Copatti foi a última professora na escola Duarte da Costa antes do seu
fechamento. Segundo ela, “as turmas eram multisseriadas e o professor era
responsável pela limpeza, pela merenda... Cada série tinha mais ou menos de
três a quatro alunos, algumas tinham mais, outras menos. A média eram quin-
ze alunos. As crianças tinham aula à tarde, tinham Educação Física, Educa-
ção Artística, enfim, todas as disciplinas. Se trabalhava com livro didático,
mimeógrafo, quadro e giz. O lanche era preparado pela professora, então os

103
alunos faziam o lanche e depois tinham quinze minutos de recreio. Geralmen-
te eles brincavam no campo de futebol, depende do dia, se era quente, eles
ficavam no parquinho porque tinha mais sombra. No final do dia, eles ajuda-
vam a varrer, às vezes juntavam as folhas do parquinho. Era sempre dividido
as tarefas”. Através da figura 25, observa-se a turma de alunos da Escola da
comunidade de Araçá Baixo, antes dos estudantes serem transferidos para a
sede do município.

Figura 25: Professora Roseli Copatti, à direita na fotografia, juntamente com os alunos,
foto de 1996. Fonte: Acervo dos moradores da comunidade de Araçá Baixo.

Roseli lembra com saudade e alegria os anos em que atuou na escola,


entre 1996 e 2002. Segundo ela, era muito diferente de hoje, as crianças
eram disciplinadas e com limites, não como na atualidade. “O trabalho exigia
bastante, quatro séries, tinha que se desdobrar. Pela disciplina era bem me-
lhor, hoje o maior problema é a falta de limites.”
Observar os valores que se perderam no convívio com a natureza e
juntamente com a população da comunidade de Araçá Baixo transmite di-
versas sensações. O questionamento quanto ao futuro do espaço rural ativo,

104
com população presente, atuante e de cultura própria parece perder-se em
meio ao abandono causado pela unificação no ensino.
Além de ocorrer a perda do convívio local, perde-se também com a
diminuição das relações estabelecidas e diferenciadas no espaço rural. O
convívio entre crianças com características parecidas faz com que essas te-
nham temas de debate comuns, assuntos que dizem respeito à Comunidade
local e que, de certa forma, manteriam sua atenção voltada ao espaço rural
onde vivem. Na figura 26, percebem-se as condições atuais do antigo prédio
da Escola Municipal Duarte da Costa.

Figura 26: A Escola Municipal Duarte da Costa, desativada em 2002.


Fonte: A autora, 2009.

Não somente referindo-se ao ensino, mas a diversos aspectos presen-


tes no meio rural, perdem-se valores com a intercalação de modos de vida,
especialmente a relevância do modo de vida urbano, que desponta soberano
sobre os modos de vida campesinos em nosso país.
Ao transferirem-se os alunos para o meio urbano, alteraram-se alguns
referenciais importantes para a cultura deles. Os educandos passam a adqui-
rir formas distintas de percepção do mundo, tornando-a diferente do que
costumam vivenciar no meio rural. Dessa forma, acabam por perder parte de

105
sua identidade local, deixando-se atrair pelo novo, o que, muitas vezes, leva-
os a perderem o interesse pelo campo e pela cultura rural.
A expressão do tempo vivido, de recordar os fatos resgata a identida-
de cultural do povo e lhe dá a oportunidade de análise dos acontecimentos.
Muitos descendentes dos primeiros imigrantes que chegaram a essa região já
não vivem mais na colônia. A recordação dos tempos passados se faz com
muita saudade, através de objetos da família, fotos e lembranças próprias
que ficaram na memória.
Sendo assim, observa-se a paisagem local vista no dia-a-dia dos mora-
dores, a convivência, as definições, as ações desenvolvidas que fazem com
que a Comunidade siga suas transformações socioespaciais e culturais no de-
correr do tempo, pela ação de seus membros, que ditam regras, criam novos
ideais e mantém a Comunidade em ação na localidade. A figura 27 aborda o
envolvimento dos moradores na construção da bodega e da cozinha.

Figura 27: Fotografia da construção da bodega.


Fonte: Acervo dos moradores da comunidade de Araçá Baixo.

106
Ao recordar os fatos e a transformação que ocorre no espaço no de-
correr do tempo, através da ação humana, dimensionam-se novas perspec-
tivas em relação ao lugar ocupado pelo homem, e que, de alguma maneira,
segue sendo transformado e utilizado por ele. Ao desenvolverem as relações
sociais comunitárias, os moradores juntam experiências e expectativas de
vida em torno do espaço local. Assim, os anseios individuais tornam-se tam-
bém anseios coletivos em relação à vida na Comunidade. Segundo Tedesco
(2001 a, p. 44):
O esforço em relação à família, à unidade familiar, ao vínculo comunitá-
rio, à presença do elemento religioso e do parentesco fez com que se
constituíssem fortes relações de solidariedade entre vizinhos e de con-
vívio, o que os leva a permanecer também mais tempo no lugar ou a se
redefinirem muito próximos, reproduzindo processos sociais dos espa-
ços originais.
A família, constituição social e parte de nossa cultura, é reverenciada
como parte importante na constituição da vida social e individual do ser hu-
mano neste lugar. A valorização dos laços familiares, bem como a manuten-
ção dos costumes da própria instituição familiar no espaço local é vista como
uma forma de manter a cultura herdada dos mais velhos. A constituição da
memória individual e familiar possibilita a continuidade, essa que só é de fato
conseguida pelo esforço e pela vontade dos mais jovens.
Referindo-se à memória, Tedesco (2001 b, p. 59) afirma:
Memória é sempre uma reconstrução psíquica e intelectual, porém, sele-
tiva do passado, de um indivíduo inserido num contexto familiar, social,
nacional. Portanto, toda memória é, por definição, “coletiva”. Seu atri-
buto mais imediato é garantir a continuidade do tempo e permitir à
alteridade, ao “tempo que muda”, às rupturas que são o destino de toda
vida humana [...].
A valorização da memória pelos jovens também enaltece a figura dos
mais velhos na contribuição deixada para a transformação do lugar, comuni-
tário e também individual. A participação ativa na Comunidade também exerce
forte influência na cultura e na manutenção dos costumes pelos mais novos,
possibilitando que esses tenham interesse pelas atividades desenvolvidas e
assim valorizem os laços que seus familiares criaram neste espaço rural.

107
É através da memória que se organizam os fatos, as crenças, a valori-
zação de determinados elementos essenciais para a continuidade da cultura
da população local. Segundo Dollfus (1973, p. 105), ao estudar uma popu-
lação responsável pela organização de um espaço, será sempre interessante
investigar quais são os limiares que forçam ou contribuem para as mudanças.

As mudanças desencadeadas pela ação do homem são originárias da


busca por algo novo, estas transformações podem ser forçadas através da
própria evolução humana no espaço em que habita ou também pode se dar
através da busca individual por novas formas de ocupação, adaptação, tra-
balho ou entretenimento. Para Corrêa (1993, p. 55):

A reprodução dos grupos sociais faz-se através de muitos meios. A


transmissão do saber, formalizada ou não, constitui um. Outro, e dos
mais importantes, é a organização espacial. Ao fixar no solo os seus
objetos, frutos do trabalho social e vinculados às suas necessidades,
um grupo possibilita que as atividades desempenhadas por estes alcan-
cem um período de tempo mais ou menos longo, repetindo, reproduzin-
do as mesmas. Nestas condições, o grupo social se reproduz [...].

As atividades desenvolvidas no espaço rural, tanto pelo grupo quanto


pelo indivíduo, repercutem no espaço em relação ao tempo que transcorre.
Dessa forma, as ações integradoras desenvolvidas em torno da Comunidade
produzem transformação no espaço e garantem novas dinâmicas no lugar,
desde as formas de ocupação do solo, do ponto de vista social e econômico.

Para Silva (2001, p. 61), “se ao mesmo tempo em que é um atributo da


natureza, a terra é componente social, uma categoria econômica, para entendê-
-la é indispensável abordá-la filosoficamente, com os significados e determi-
nações que estão nela e ao mesmo tempo vêm dela e ou vão a ela [...]”.

As formas de produção rural garantem, de certa forma, a manuten-


ção da cultura local, pois dão condições para que as famílias tirem da terra
o próprio sustento e tenham condições dignas de viver no espaço rural,
aproveitando-o de maneira eficaz e responsável. Silva (2001, p. 19) afirma
que “o espaço é produzido pelas relações sociais subordinadas ao modo

108
de produção que sustenta a sociedade – sua infra-estrutura econômica, a
partir da qual se erguem as superestruturas ideológicas, políticas, jurídicas,
culturais, etc”.

Ao agir sobre o espaço, o colono transforma também as formas de


produção, de acordo com as necessidades sociais, cada vez mais dinâmicas
e atuais. Através da utilização do modo de produção policultor, os morado-
res mantêm a cultura dos primeiros moradores deste lugar, que, plantavam
diversificados produtos gerando maior rentabilidade nas propriedades. Para
Moreira (2000, p. 33):

[...] Os colonos introduziram a policultura no estado, pois dedicavam-se


ao cultivo de vários produtos: trigo, milho, batata, frutas, verdura e
legumes. Juntamente com a agricultura, criavam animais: vacas leiteiras,
porcos e galinhas. Por serem donos das terras que ocupavam e por
ficarem com toda a produção obtida, os colonos sentiam-se estimulados
a trabalhar e a produzir cada vez mais. Dessa forma, as zonas coloniais
do estado progrediram bastante.

A diversificação no processo produtivo das propriedades rurais con-


fere novas forças de adaptação porque transforma a capacidade produtiva
das propriedades rurais, aumentando a rentabilidade. Por este motivo, tam-
bém ocorrem rápidas transformações na natureza e na cultura.

O processo de produção de grãos na comunidade de Araçá Baixo


tem na troca de serviços a sua fonte de força de trabalho. A mão-de-obra,
antigamente abundante nas famílias da Comunidade, hoje se depara com
poucos braços para a produção rural. A figura 28 demonstra bem esta reali-
dade, a troca de dias de trabalho entre as famílias é necessária devido ao
número reduzido de pessoas.

109
Figura 28: Colheita da uva em uma propriedade rural da Comunidade.
Fonte: Acervo dos moradores da comunidade de Araçá Baixo.

Hoffmann (1992, p. 59) afirma que nas colônias adotou-se o sistema


policultor de subsistência e intensivo em mão-de-obra. O colono precisava
cultivar os produtos para o seu sustento. Por imperiosa necessidade, cultiva-
va milho, mandioca, feijão e abóboras. Criava animais de pequeno porte
(suínos e aves), fonte indispensável de proteínas nas zonas pioneiras.
Nas relações exercidas através da produção, destaca-se também o
espaço. Segundo Haesbaert e Moreira (1986, p. 58), “no atual estágio do
pensamento geográfico, o ‘espaço’ é visto como produto do trabalho huma-
no sobre a natureza. É na relação homem-meio, portanto, que se desenvol-
vem os processos de transformação” [...].
As transformações socioespaciais e culturais observadas no decorrer
dos oitenta e três anos da Comunidade aconteceram especificamente nos
últimos anos, quando houve acelerado processo de transformação no país.
Os quinze últimos anos que se passaram foram decisivos para a comunidade
de Araçá Baixo; foi neste curto espaço de tempo que a cultura local mais
sofreu mudanças, ocasionando a saída de muitas famílias deste lugar, alteran-
do as formas de vida em Comunidade.

110
O modo de vida nas comunidades rurais vem se transformando signi-
ficativamente, desde a chegada dos imigrantes italianos a esta região. Suas
formas de apropriação e utilização do espaço são transmitidas de geração
em geração, seus costumes são também revividos e recontados de forma
oral aos mais novos. Para Zanini (2007, p. 522), “a memória grupal é
experienciada com sentido pelo descendente, que a atualiza conforme sua
própria trajetória de vida, sua classe social, seu gênero etc.”.
Na figura 29, torna-se claro o resgate da cultura dos antepassados
destes colonos italianos, que chegaram à região para transformar suas vidas
e a trajetória de suas famílias. Através da memória coletiva, estes moradores
da Comunidade levaram sua cultura até a cidade para mostrar os costumes
da colônia no desfile realizado anualmente no município de Ibiaçá.
Segundo Tedesco (2001b, p. 53), “não há dúvidas de que a pessoa
não recebe do passado apenas dados da história escrita. A história
(sobre)vivida das pessoas também se temporaliza”.

Figura 29: Desfile festivo na cidade de Ibiaçá/RS.


Fonte: Acervo dos moradores da comunidade de Araçá Baixo.

111
Relembrar fatos e momentos do passado exige dos moradores da
Comunidade uma reflexão sobre sua história e a localização espacial dos
acontecimentos. Assim, eles revivem momentos importantes, remetendo-se
ao passado e criando a possibilidade de reflexão. Esse movimento mental
oportuniza um conhecimento maior de sua própria história e da forma de
convivência e trabalho de seus antepassados.
Ricupero (2003) afirma, ainda, sobre os italianos do Rio Grande do
Sul: “Ficaram poucos e, antes que esses se apaguem, é preciso recolher-lhes
a memória”. Reviver a memória dos “mais antigos” é algo que aumenta a
percepção espacial das pessoas. Tal percepção faz com que conheçam os
passos evolutivos e construtivos de seus familiares e valorizem a cultura des-
ses que ocuparam o espaço com esforço, adaptaram-no para a sua utiliza-
ção e para dele tirarem seu sustento e garantirem o futuro das próximas gera-
ções.
Diante disso, as histórias e os costumes se mantêm vivos entre os mo-
radores das comunidades, fazendo com que eles valorizem os costumes de
seus antepassados e continuem a cultivar seus hábitos e tradições neste lugar.
Dessa forma, as pessoas da Comunidade redescobrem e mantêm, atra-
vés das lembranças de tempos passados, costumes e tradições cujas marcas
o tempo não apaga. A memória oral é o resgate das recordações, uma
contextualização de lembranças, fragmentos da vida de um tempo que foi
vivido, sentido e percebido.
Os costumes são vistos também nos dias festivos, quando a Comuni-
dade está unida em torno do mesmo ideal. Nestas datas comemorativas,
pode-se perceber a dedicação e o esforço expressos em cada tarefa desen-
volvida pelo grupo. Uma data transcorrida que merece destaque pela impor-
tância que tem na história das transformações socioespaciais e culturais da
Comunidade de Araçá Baixo é a comemoração dos 80 anos da Comunida-
de, ocorrida em outubro de 2007. A festa contou com a presença de inúme-
ros ex-moradores que abrilhantaram o evento, cujo objetivo maior foi o res-
gate das raízes locais.

112
A preparação antecede a festa. Ocorrem meses e meses de planeja-
mento, distribuição do trabalho, organização da Comunidade, limpeza, con-
servação etc. É um trabalho que culmina com a data da festa, quando a
população local recebe visitantes de toda a região e, muitas vezes, pessoas
de fora que gostam de participar destas festividades tradicionais no meio
rural.
As festas na Comunidade são tradicionais e constituem-se em uma das
formas de manutenção dos elementos tradicionais que dão suporte à conti-
nuidade local e à relação social entre as comunidades vizinhas.
Assim, a tradição precisa do relembrar dos fatos importantes para o
grupo, como as festas, a colheita da safra (seja ela de grãos, soja, milho,
feijão ou de frutos, como a uva), a criação de gado, especialmente gado
leiteiro, os jogos de bocha, de baralho, as músicas “de antigamente”, ele-
mentos que ganham enfoque na construção da memória e reconstrução das
lembranças do passado.
Sobre a memória presente no grupo, Tedesco (2001 b, p. 42) diz que
“no entanto, a memória é vida, sempre carregada de grupos vivos e, nesse
sentido, ela está em permanente evolução. Lembrança, esquecimento, usos e
manipulações, latências e revitalizações fazem parte da dialética da memó-
ria”.
Recordar a trajetória da Comunidade significa valorizar o passado e
dar continuidade aos projetos que impulsionaram e motivaram a vida comu-
nitária das famílias dos colonos descendentes de italianos deste lugar. Assim,
principalmente em dias festivos ou de atividades na Comunidade, percebe-
se o retorno de alguns ex-moradores para o lugar, com a finalidade de re-
-encontrar amigos e familiares que continuam na Comunidade. Tedesco (2001
b, p. 44) afirma que “o espaço dá vida à memória e vice-versa. Retornar ao
lugar de origem, a um lugar do tempo vivido alivia a memória e rompe o
esquecimento” [...].
A comunidade de Araçá Baixo, ao longo de seus já completados 83
anos, procurou sempre valorizar e manter os laços de memória com aqueles

113
que partiram para outros lugares ou com aqueles que fizeram parte da cons-
trução socioespacial e cultural da Comunidade e que faleceram.
A valorização do ser humano, do espaço por ele ocupado e dos ele-
mentos que o compõem é parte importante da tradição comunitária e deve
ter continuidade neste local. Assim, a capela da Comunidade também é valo-
rizada e constitui-se no símbolo maior do grupo local. Na figura 30, observa-
se o interior da capela cujo nome é “capela São João Batista”. A capela
representa a fé e a religiosidade do colono e, por ser muito presente na vida
dos moradores, contribuiu para a união deles na comunidade de Araçá Bai-
xo. As imagens de santos são encontradas, além de na Capela, nos lares de
cada família, como símbolos de crença e proteção.

Figura 30: Interior da igreja, à direita do altar, a imagem de São João Batista.
Fonte: A autora / 2009.

A valorização do espaço ocupado pelas famílias dos primeiros descen-


dentes de italianos na região possibilita o fortalecimento da cultura local e regi-
onal na tentativa de resgatar princípios que pouco a pouco são esquecidos.

114
A cozinha é parte importante da Comunidade, especialmente em dias
de festa (festa na Capela, encontro de mulheres, festividades de dia das mães,
dia dos pais, festa junina, dia das crianças, reuniões da própria Comunidade,
entre outros), em que as mulheres preparam os alimentos, e também no dia-
-a-dia, quando ocorrem encontros dos moradores.

Há também a utilização da cozinha nos finais de semana, quando as


mulheres se reúnem. É este o local onde ocorre a inter-relação pessoal e a
divisão de tarefas entre elas, onde cada qual, com suas habilidades, exerce
uma função em prol do bem comunitário.
Nos espaços comunitários, há também a tradição das festas, os
“serrões”, os jogos aprendidos desde a infância e que constituem alguns dos
valores culturais e sentimentais que podem ser encontrados ainda hoje na
Comunidade. Porém, a participação nestas atividades se reduziu considera-
velmente nos últimos anos.
Pode-se destacar vários motivos. O principal deles é a diminuição no
número de pessoas que residem na Comunidade; outro fator que se destaca
é a cultura dos jovens, que se diferencia da juventude “de antigamente”. Hoje,
os jovens têm outras formas de lazer, a utilização dos automóveis que facili-
tam a locomoção e o uso de televisores, celulares, internet também são con-
siderados fatores de transformação cultural, que acabam por diminuir a im-
portância da cultura local.
Ano após ano, ocorrem mudanças que são responsáveis pela diminui-
ção da importância da cultura “italiana-rural” para as novas gerações. Dessa
forma, ao se perderem os valores herdados dos antepassados, também se
perde a identidade comunitária, não somente pelos valores culturais, mas
também pelas transformações das formas de produção desta população. A
figura 31 ilustra o jogo de baralho, ainda presente neste lugar, porém, houve
diminuição considerável no número de jogadores com o decorrer do tempo.

115
Percebe-se que é na “bodega” que se mantém a maior diversidade de
aspectos de reprodução do passado. Mantém-se, neste espaço, o costume
de jogar baralho de acordo com diversas formas do jogo, como relatam os
moradores, “66”, “Canastra”, o jogo de “Mora”, entre outros, e também a
tradição de falar o dialeto italiano. É na “bodega” que a memória dos mais
velhos é mantida, pois, através da fala, conserva características importantís-
simas herdadas dos primeiros italianos que vieram para este local. É nela
também que os homens da Comunidade conversam sobre suas lavouras, as
plantações, as colheitas, a safra, os seus negócios e, dessa forma, continuam
os vínculos com os amigos e vizinhos.

Figura 31: Tradicional jogo de baralho na bodega da Comunidade.


Fonte: A autora /2009.

Sobre a manutenção dos valores culturais das comunidades rurais,


Tedesco (2001 b, p. 30) afirma que “é a memória de um grupo que conser-

116
va sua unidade, pois representa o tempo que passa como um presente que
dura [...]”.
Apesar das transformações visíveis, a identidade local continua forte
entre os que restam e destaca as diferenças e a cultura que só são encontra-
das em lugares distantes das grandes cidades, onde as transformações soci-
ais e culturais acabam por “homogeneizar” a cultura.

Estes lugares ocupados pelos imigrantes, no século XIX e início do


século XX, mantêm características próprias e, ao serem estudados, não se
comparam a nenhuma outra região. A diferença se dá pela forma como ocor-
re a interação entre o homem, a natureza e as relações sociais produzidas
neste espaço.

As formas de apropriação do espaço e convívio comunitário propor-


cionam sensação de bem-estar, garantindo, assim, que muitos daqueles que
vivem na Comunidade mantenham suas raízes nela (local onde nasceram).
Dessa forma, o sentido de pertencimento tem grande destaque neste lugar.

As raízes citadas no texto viabilizam a continuidade dos valores locais


através da expressão da memória e das lembranças que se mantêm constan-
tes. Elas se constituem na convivência diária com os familiares, amigos, vizi-
nhos e no trabalho com a terra.

Para Tedesco (2001 b, p. 39), “a seiva da memória é retirada dos


lugares. A comunidade é um lugar privilegiado na produção desse alimento,
é uma totalidade estruturada que ganha sentido, mesmo em meio a conflitos e
tensão, de uma identidade”.

A memória tem um sentido próprio em cada ser humano que a produz.


Dessa forma, muitas vezes, no convívio comunitário, ocorrem alguns confli-
tos relacionados a variados assuntos que dizem respeito à Comunidade. Po-
rém, a vitalidade comunitária se revela também nestes momentos, quando há
a argumentação em torno de alternativas que visam ao bem-estar de todos
os seus membros.

117
Vislumbrando o bem-estar individual e coletivo, a que se destacar as
formas como os moradores da Comunidade interagem com o grupo. Assim,
a figura 32 mostra a interação entre as mulheres da Comunidade, que procu-
ram manter as tradições das primeiras moradoras as quais, no passado, inici-
aram suas vidas neste lugar ou migraram para constituir suas famílias nestas
terras, transformando o espaço rural em parte de sua própria história.

Figura 32: Mulheres da Comunidade após a saída do culto.


Fonte: A autora / 2009.

Pertencer a um espaço e sentir-se parte dele é algo presenciado diari-


amente neste lugar. Ao ocupar um espaço e transformá-lo, os moradores
sentem-se não apenas donos de suas terras, mas também parte da sua evo-
lução, juntamente com outras pessoas que iniciaram aqui esse processo.

118
A memória, nesse sentido, encontra-se impregnada no grupo social,
sendo parte da própria transformação individual destes moradores no espa-
ço em que estão inseridos e, consequentemente, também sendo parte das
transformações socioespaciais e culturais da Comunidade. Ao agir sobre o
espaço com a percepção do cuidado e da afetividade, o morador comporta-
se como parte do grupo e integra-se a ele com a finalidade de mantê-lo em
harmonia. Assim, surgem as relações sociais no grupo, o qual as desenvolve
conforme suas necessidades.
As relações que se estabelecem são formas sociais adquiridas dos
antepassados e que continuam muito importantes pela necessidade que as
famílias sentem de relacionarem-se com outras que constituem a mesma
Comunidade. O sentido de pertencer a uma Comunidade faz com que os
indivíduos sintam-se parte viva, presente e atuante no meio social, através da
participação no grupo e da colaboração com seus integrantes.
Há diversas maneiras pelas quais o ser humano pode se sentir útil. De
certa forma, no meio rural, uma maneira que chama a atenção é a doação do
trabalho à Comunidade. Assim fazem muitos moradores do Araçá Baixo que
trabalham pelo bem-estar comum. Este trabalho pode ser percebido nas fes-
tas, na limpeza do pátio, na manutenção do cemitério local, na limpeza da
igreja, do parquinho infantil e também do salão. Este trabalho é feito pelas
mulheres, que se revezam na execução dessas atividades, fazendo com que
todos contribuam.
As relações de afetividade e de comprometimento com o local ex-
pressam a realização pessoal devido à participação na Comunidade, onde
um dia seus antepassados decidiram se fixar e recomeçar uma vida. A figura
33 mostra a alegria dos que “ficaram” e o entusiasmo por “permanecer” na
Comunidade.

119
Figura 33: Fotografia dos membros da comunidade de Araçá Baixo, reunidos em almo-
ço festivo.
Fonte: A autora / maio 2010.

Por meio da observação das transformações no local, é possível afir-


mar-se que: “se dá mais valor ao passado, porque ele já foi perdido”. O que
há no presente não é valorizado como no passado; há pouco apego aos
objetos, é raro que se guarde algo como lembrança.
O sentimento pelos objetos, pelas fotografias, pelos móveis, pela ter-
ra, pelos animais, pelo mato, pelas parreiras, pela comunidade parece, mui-
tas vezes, “demorar para despertar”. O que se percebe é que geralmente os
mais jovens têm “outros desejos”, muitas vezes, distanciados do próprio lu-
gar de origem.
Mesmo com a considerável diminuição no número de pessoas que
compõem a comunidade de Araçá Baixo, os moradores procuram, com muito
esforço, manter as características do lugar através da participação, do estí-
mulo à manutenção dos costumes ainda existentes e também por meio da
preservação ou da continuidade da cultura de seus antepassados, que, de
certa forma, é parte de sua própria identidade.

120
3.5 Um olhar sobre a Comunidade atual

Ao abordar a atualidade não se pode deixar de mencionar o termo


globalização. A partir de seu surgimento, a sociedade vem sendo transforma-
da rapidamente, fazendo com que muitos dos costumes locais se percam
num “piscar de olhos”. Na visão de Dallabrida (2000, p. 45), o termo
globalização atualmente tem sido concebido como uma mescla de ameaças e
oportunidades. São mais destacadas as ameaças, pelo aumento da instabili-
dade e da vulnerabilidade, causadas pela imposição do caráter sistêmico da
globalização. Para Santos (2008, p. 338), “a ordem global busca impor, a
todos os lugares, uma única racionalidade. E os lugares respondem ao mun-
do segundo os diversos modos de sua própria racionalidade”.
Dessa forma, as comunidades rurais são afetadas por essas imposi-
ções, de maneira que se mudam os costumes, as formas de produção, a
capitalização rural, obrigando muitos dos “filhos da terra” a migrarem para as
cidades, aumentando as massas de trabalhadores industriais. Na visão de
Carlos (2007, p. 20):
A produção espacial realiza-se no plano do cotidiano e aparece nas
formas de apropriação, utilização e ocupação de um determinado lugar,
num momento específico e, revela-se pelo uso como produto da divisão
social e técnica do trabalho que produz uma morfologia espacial frag-
mentada e hierarquizada. Uma vez que cada sujeito se situa num espaço,
o lugar permite pensar o viver, o habitar, o trabalho, o lazer enquanto
situações vividas, revelando, no nível do cotidiano, os conflitos do
mundo moderno[...].

Observam-se diversos fatos no espaço local em que se destacam alte-


rações nas formas de perceber o mundo. Muitas vezes essa percepção tor-
na-se equivocada, dando a impressão de que a globalização deve se efetivar
até mesmo nos lugares mais afastados deste processo.
No campo, essas transformações atuais tendem a demorar mais para
chegar, porém percebe-se que a modernidade alcançou os lugares mais re-
motos do país e invadiu também as comunidades rurais do estado. Essa
modernidade acaba por ocultar a verdadeira face do espaço rural policultor

121
de Araçá Baixo, transformando uma série de aspectos, desde a produção
(que seria algo mais aceitável), até mesmo as formas de relação entre as
famílias. Segundo Santos (2002, p. 339), “cada lugar é, ao mesmo tempo,
objeto de razão global e de uma razão local, convivendo dialeticamente”.
Sendo assim, as características locais são muito importantes, pois configu-
ram o espaço de convívio das pessoas que compõem o mesmo grupo,
compartilhando, assim, de diversas características. Segundo Haesbaert
(2006, p. 35):
[...] No senso comum ‘ser moderno’ geralmente tem um significado posi-
tivo: partilhar do novo, difundir uma inovação, estar aberto à mudança,
ou acompanhar as transformações; outras concepções, entretanto, po-
dem utilizar ‘moderno’ num sentido negativo, associado a uma condição
volúvel e desestabilizadora, sem raízes e alienado do passado [...].

As transformações são necessárias até mesmo pelo fato de que “parar


no tempo”, no mundo atual, significaria perder espaço. Essa perda estaria
interligada a diversos aspectos que acabariam por diferenciar o espaço local,
tornando-o atrasado em relação a outros lugares. Dessa forma, o que se
percebe nos últimos anos é o acirramento da competição global por espaços
produtivos, pela geração de lucro e pelo bem-estar para as populações mais
desenvolvidas.
A satisfação, nesse caso, parte da capitalização do campo e do poder
que confere ao homem mais condições de manter-se no espaço. No caso da
comunidade de Araçá Baixo, os moradores procuram a adequação ao mer-
cado global através da produção. Desse modo, ao receberem mais informa-
ções sobre a dinâmica do espaço mundial, acabam por assimilá-las e utilizá-
las no próprio meio em que vivem. Assim, Dallabrida (2000, p. 53) afirma
que:
A verdadeira riqueza parece, então, estar embasada na saúde física, no
bem-estar espiritual e no equilíbrio emocional. No entanto, na sociedade
atual, em função do padrão hegemônico de desenvolvimento, em que é
preciso ter para ser, o modo de vida usual cria constantemente situações
de instabilidade, pouco contribuindo para as pessoas atingirem o equi-
líbrio psicofísico, espiritual e emocional. A posse de bens materiais, no

122
nível de satisfação das necessidades básicas, é, portanto, um instru-
mento para a obtenção desse equilíbrio, não o fim a ser buscado.

O equilíbrio e o bem-estar em Comunidade devem estar em evidência,


garantindo que os laços entre os moradores sejam de fato mantidos. As pos-
ses, produções agrícolas ou agropecuárias não devem, em momento algum,
ocultar a dinamismo das relações entre os moradores. A manutenção das
relações sociais no lugar não deve ser administrada conforme a diminuição
da população local, pelo contrário, ao perceber-se o esvaziamento humano,
as relações de união devem ser estreitadas, garantindo a continuidade da
Comunidade como força local.
O desenvolvimento social e produtivo de forma alguma deve ser rejei-
tado, mas há de se repensar o desenvolvimento humano ligado à cultura her-
dada através da imigração italiana na região. Para tanto, é necessário agar-
rar-se às tradições e transformá-las em fatores de real importância para a
comunidade de Araçá Baixo. Na visão de Goulet, apud Dallabrida (2000,
p. 77-79):
Uma sociedade é mais desenvolvida, não quando seus cidadãos ‘têm
mais’, mas quando todos podem ‘ser mais’. O crescimento material e o
aumento quantitativo são necessários para o desenvolvimento humano
genuíno, mas que não seja crescimento de qualquer tipo, nem aumento
a qualquer preço... Sem saúde ambiental, o desenvolvimento sustentá-
vel é impossível, pois o imperativo ecológico é claro e cruel: a natureza
deve ser salva ou nós humanos morreremos.

As mudanças não devem destruir os valores naturais da Comunidade


e sim realçar suas características para que os jovens de Araçá Baixo sintam
amor pelo seu berço e forças para lutar pelas suas raízes e pelas memórias
do passado. Dessa forma, ao apresentar a obra de Bosi, Marilena de Souza
Chauí (1987, p. 19) defende que “destruindo os suportes materiais da me-
mória, a sociedade capitalista bloqueou os caminhos da lembrança, arrancou
seus marcos e apagou seus rastros”. A Geografia, aqui empregada, procura
valorizar a cultura e os traços socioespaciais e culturais italianos. Assim, pro-
põe-se a “reabrir os caminhos” e a refazer a trajetória que pouco a pouco
vem sendo esquecida. Segundo Santos (1997, p. 81):

123
Se a geografia deseja interpretar o espaço humano como fato histórico
que ele é, somente a história da sociedade mundial, aliada à sociedade
local, pode servir como fundamento e compreensão da realidade espacial
e permitir a sua transformação a serviço do homem. Pois a história não se
escreve fora do espaço, e não há sociedade a-espacial. O espaço, ele
mesmo é social.

Adaptar-se ao novo sem esquecer o velho, mantendo-o presente como


característica que distingue uma cultura, valoriza muito mais os espaços
rurais e os transforma em espaços de conservação cultural através da me-
mória.
Com o passar do tempo e com a transformação do espaço, espera-se
que não morra a identidade local, que não se apague a cultura, que os laços
de sangue sejam mais fortes do que os laços que ligam as pessoas à
modernidade das cidades, que os antepassados italianos sejam lembrados
pelos seus feitos, pela cultura que deixaram a nós, seus descendentes, como
presente, e que este legado esteja de fato presente em nós e em nossa me-
mória para que o repassemos aos filhos, aos netos, aos filhos dos nossos
netos.

124
Considerações Finais

Através deste trabalho, buscou-se analisar o processo de desenvolvi-


mento socioespacial e cultura da comunidade de Araçá Baixo, compreen-
dendo as transformações que ocorreram, utilizando elementos da memória
oral dos descendentes dos primeiros moradores da Comunidade.
Percebeu-se que a compreensão, a cerca das transformações do es-
paço onde está localizada esta comunidade, devia partir da chegada dos
italianos ao Rio Grande do Sul, no processo de colonização das áreas de
planalto. Para tanto, o primeiro capítulo apresentou a colonização italiana no
estado a partir da encosta da serra, onde os colonos imigrantes começam as
primeiras plantações. Sendo assim, o colono acaba por moldar o espaço à
sua cultura e vice-versa, desenvolvendo uma nova forma de apropriação
espacial, baseada na mão-de-obra familiar. Ao ocupar todos os espaços
disponíveis, começa o deslocamento de diversas famílias da região serrana
do estado para outras áreas do planalto, mais precisamente para as regiões
norte e nordeste do estado.
A ocupação e a transformação intensa destas novas regiões foram sendo
moldadas às formas de ocupação dos imigrantes oriundos da Itália. Nesse
contexto, as tradições trazidas do país de origem eram mantidas na nova
terra.
A região que hoje pertence ao município de Ibiaçá recebeu diversas
famílias de colonos que compraram terras da Fazenda São João do rio
Forquilha e que, ao se instalarem, criaram as primeiras comunidades rurais
deste município. Dentre elas, destaca-se a comunidade de Araçá Baixo por

125
ter sido uma das primeiras a se constituir no município de Ibiaçá, inaugurada
em 1927.
Dessa forma, o segundo capítulo situa a comunidade de Araçá Baixo
no contexto local, destacando suas singularidades no território regional. Ain-
da sobre a Comunidade, percebe-se a importância das relações estabelecidas
entre os membros do grupo social e a identificação destes com o lugar em
que vivem. Assim, chega-se à constatação de que ocorre uma dinâmica es-
pacial de certo distanciamento entre as famílias, porém, os laços comunitári-
os são mantidos e re-estruturados pela ação do grupo, que procura manter
as tradições e os costumes herdados dos primeiros moradores deste local.
Nesse sentido, por meio da dinâmica populacional e pelas transforma-
ções socioespaciais e culturais na Comunidade, o terceiro capítulo abordou
especificamente as mudanças ocorridas no espaço rural desta Comunidade,
que desencadeou significativas transformações na forma de vida dos mora-
dores.
Neste capítulo, foram desenvolvidos de fato os estudos propostos.
Para tanto, para alcançar os objetivos traçados, foram necessários alguns
procedimentos que viabilizaram esta pesquisa. Partiu-se, primeiramente, de
alguns problemas decorrentes do processo de transformação socioespacial
e cultural, esses que se tornaram mais intensos com o passar do tempo. Ao
estudar a Comunidade, pode-se indagar sobre a manutenção dos seus cos-
tumes. Quais as transformações ocorridas desde a sua origem? O que leva
os moradores a partirem para outros lugares? Como as pessoas veem essas
transformações locais?
Para tal compreensão, foram levantadas algumas hipóteses com o ob-
jetivo de esclarecer as questões mencionadas e, através da pesquisa, pude-
ram ser comprovadas ou redefinidas, levando a algumas conclusões.
Ao abordar as famílias da Comunidade, obtendo relatos para a com-
preensão das alterações locais, constatou-se que, apesar da busca pela ma-
nutenção da cultura dos primeiros moradores, neste caso, seus antepassa-

126
dos, ocorrem choques com o novo. Dessa forma, surgiram significativas trans-
formações socioespaciais no local. Porém, há uma tendência maior à manu-
tenção sociocultural. Sendo assim, observou-se que os processos sociais
comunitários têm ênfase neste sentido, pois buscam o resgate e a
sustentabilidade local.
Em relação ao abandono da Comunidade, nota-se que a maior parte
das famílias que saem de Araçá Baixo migra em busca de melhores condi-
ções de trabalho e de acesso, seja em áreas urbanas ou em áreas rurais.
Assim, os relatos obtidos nos contatos com os ex-moradores denunciam as
dificuldades encontradas na comunidade de Araçá Baixo. Dentre elas, des-
tacam-se as distâncias até a sede do município de Ibiaçá e também a distân-
cia em relação aos municípios vizinhos, as dificuldades em relação à produ-
ção agrícola devido às pequenas áreas de terras. A grande maioria das famí-
lias possuía pequenas áreas de terra e, pela necessidade de mudar a vida dos
filhos, fazendo com que esses estudassem e tivessem melhores condições de
vida, venderam-nas.
Assim, no ocorrer das mudanças locais, com a saída de moradores,
altera-se a estrutura fundiária, sendo que aqueles que ficam na Comunidade
acabam comprando as terras vizinhas, obtendo maiores áreas. Tendo, assim,
maiores possibilidades de permanecer no campo. Mesmo com o aumento da
área de diversas propriedades de terras na Comunidade, ainda há aqueles
que desejam partir, no futuro, para áreas urbanas da região. Este fato decor-
re da saída dos jovens da Comunidade, o que desencadeia o processo de
migração também pelos familiares.
De fato, ao reduzir o número de pessoas em cada família, ocorrem
novas tendências sociais. Assim, a tendência é que, ao envelhecer, o ser hu-
mano busque o bem-estar que lhe garanta melhores condições de vida. Pen-
sando nisso, muitos moradores já cogitam a possibilidade de abandonar o
campo, o que causa a continuidade das dinâmicas populacionais locais e
também as transformações culturais através da perda de identidade local.

127
Ao diminuir a população, altera-se a importância da Comunidade. Além
das transformações socioespaciais que vêm ocorrendo neste local, perce-
bem-se também mudanças na cultura dos moradores, esses que são filhos e
netos de italianos. Quando saem da Comunidade acabam por perder costu-
mes e tradições herdadas dos primeiros moradores que ocuparam este lugar
e, consequentemente, alteram-no. Desse modo, tornam-se preocupantes as
transformações deste espaço, pois, ao modificar-se, acaba por perder ele-
mentos próprios os quais diferenciam a cultura local destes moradores.
O elemento chave deste estudo, além do espaço rural e suas transfor-
mações, é a memória oral como resgate da cultura dos primeiros moradores
deste local, que, descendentes diretos de imigrantes italianos, possuem ca-
racterísticas importantes que diferenciam a ocupação da região. Dessa ma-
neira, acredita-se que a memória mantém-se constantemente ligada às lem-
branças vivas da identidade individual e social dos colonos deste lugar, po-
rém, as transformações impostas pelo mundo globalizado acabam diminuin-
do a importância destas memórias, dificultando sua manutenção.
Este estudo tem grande importância para a comunidade de Araçá Bai-
xo porque resgata sua evolução espacial. Inicialmente, este lugar foi ocupado
pelos filhos e netos de imigrantes italianos, e atualmente tem como população
seus descendentes. Abrange diversas formas socioespaciais e culturais que
se integram na busca pela continuidade das relações estabelecidas neste es-
paço e que lhe conferem características muito importantes.
Para mim, este trabalho tem um significado muito especial, pois, além
de tratar-se de um trabalho sobre estudos geográficos, trata-se do conheci-
mento e da análise, em diversos aspectos, do lugar onde nasci e de onde
migrei aos sete anos de idade, com a minha família, sendo também uma for-
ma de resgate das minhas raízes. Ao retornar a esta Comunidade para estudá-
la revivo minha infância e visualizo as transformações do espaço local através
do olhar geográfico e também com muita saudade e sentimentalismo.
Para a Geografia, este trabalho é importante pela análise que faz em
torno das transformações que o homem causa na natureza, transformando,

128
assim, suas possibilidades locais, sua capacidade produtiva e sua adaptação
às mudanças ocorridas através do tempo. Dessa forma, insere-se mais um
trabalho sobre as modificações espaciais contribuindo para os estudos geo-
gráficos em âmbito local e regional.
A comunidade de Araçá Baixo é mais um simples lugar nesse imenso
universo, importante, pois é parte de nossas vidas, do nosso passado e da
construção de nossas identidades.
Conclui-se, portanto, que, as características socioespaciais e culturais
deste local, enquanto houver esta geração, permanecerão presentes na cons-
tituição da Comunidade, nas memórias individuais e coletivas dos morado-
res, nas ações comunitárias e na busca pela manutenção e continuidade local.
Espera-se que as transformações que vêm ocorrendo nas relações
espaciais, locais e globais, não apaguem as características importantes desta
comunidade rural, que guarda importantes fatos, tradições, memórias e for-
mas de ocupação trazidas pelos descendentes de imigrantes ao estado e que
se destacam por sua importância para a caracterização da ocupação espaci-
al do Rio Grande do Sul.

129
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