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questões raciais I
“As punições no Calabouço são tão assustadoramente severas, que nenhum senhor humano mandaria para lá um escravo que
não fosse irremediável”, escreveu o inglês John Luccock, que viveu na cidade do Rio de Janeiro no começo do século XIX
AUGUSTUS EARLE_PUNISHING NEGROS AT CATHABOUCO_1822_NATIONAL LIBRARY OF AUSTRALIA_NLA.OBJ-
134509360
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O
primeiro ponto turístico que visitei no Rio de Janeiro, tão logo
cheguei à cidade, foi o Cemitério São João Batista. O que mais me
surpreendeu, quando eu voltei do meu passeio, foi a surpresa das
outras pessoas. Fazia todo o sentido para mim. Afinal de contas, as
minhas pessoas preferidas estavam ali. Eu me apaixonei pelo Brasil a
distância, ouvindo gravações dos anos 20 e 30 e me perdendo em
fotografias e gravuras de uma paisagem urbana extinta. Estava ciente de
que o lugar pelo qual havia me apaixonado já não existia mais, e que eu
estaria condenada a uma constante contraposição entre passado e
presente, uma espécie de visão dupla da cidade.
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U
ma nota, no entanto, vem me perseguindo desde que me deparei
com ela, em novembro do ano passado. Foi motivada por um termo
escondido no capítulo “O verdadeiro Cotrim”, em que Machado
coloca na boca de Brás uma crítica mordaz a seu cunhado, disfarçada de
elogio.
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Era preciso corrigir essa falha. Pesquisa séria não faltava. Mergulhei nos
excelentes A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808-1850), de Mary
Karasch, Polícia no Rio de Janeiro: Repressão e Resistência Numa Cidade
do Século XIX, de Thomas Holloway, O “Povo de Cam” na Capital do
Brasil, de Luiz Carlos Soares, “O duplo cativeiro” e “Cárceres imperiais”,
respectivamente dissertação e tese de Carlos Eduardo Araújo, entre
outros artigos e referências.
Pelo que consegui coletar nessa breve pesquisa, cartas régias do final do
século XVII haviam decretado a construção de uma casa pública ou
calabouço onde escravos podiam ser punidos – “porém com reserva e
humanidade”. A estrutura fazia parte do complexo do Forte de São
Tiago, num cantinho de terra que viria a ser conhecido como a Ponta do
Calabouço. Esse foi o primeiro Calabouço; outros viriam, ou acabariam
por adotar o mesmo nome.
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A
s reflexões de Brás sobre o seu cunhado podem ser datadas do fim
dos anos 1840, que é quando ele está às voltas com a possibilidade
de se casar com a sobrinha de Cotrim, Nhã-loló. Sabemos disso
porque ela morre na primeira epidemia de febre amarela, em 1849-50.
Naquela altura, o primeiro Calabouço tinha sido finalmente desativado.
A construção da primeira penitenciária do Brasil, a Casa de Correção de
Matacavalos, havia começado nos anos 1830, e o Calabouço renasceu na
forma de uma ala batizada com o nome da velha prisão para os escravos.
No processo da desativação do Calabouço do Morro do Castelo, escravos
detidos lá chegaram a ser transferidos para o canteiro de obras para que
trabalhassem na construção de seu próprio cativeiro futuro. O novo
Calabouço serviu não apenas para abrigar os escravos à espera de
julgamento e os condenados por crimes, mas também permitia que os
senhores os prendessem preventivamente antes de vendê-los, para que
eles não fossem roubados ou fugissem. A prática do açoite continuou. Em
O Povo de Cam, Luiz Carlos Soares escreve que, entre 1856 e 1858, 4 479
escravos foram mandados ao Calabouço, dos quais 3 220 por seus
próprios senhores.
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escravo que atendia pelo nome de Antonio Crioulo, e que havia sido
remetido para lá pelo dono, Francisco Dias de Castro, treze anos e seis
meses antes. Fosse Memórias Póstumas uma obra de não ficção, Antonio
Crioulo poderia ter dividido a cela com os escravos de Cotrim.
C
onforme eu lia sobre o Calabouço, me perguntava por que eu não
conseguia me lembrar de ter ouvido falar de qualquer órgão similar
nos Estados Unidos. O Calabouço carioca me levou à Sugar House,
uma câmara de tortura em Charleston para onde escravos eram
mandados a fim de serem açoitados – tanto os urbanos quanto os que
trabalhavam em fazendas da vizinhança. James Matthews, que foi
escravizado em Charleston e escapou para o Maine nos anos 1830,
escreveu sobre a experiência de entrar no quarto de castigo e avistar um
sinistro arranjo de instrumentos: palmatórias, açoites, azorragues, “gatos
de nove caudas”. O “bluejay”, que levava o nome de um pássaro, o gaio-
azul, era “um açoite de duas correias, muito pesado e cheio de nós. É o
pior dos instrumentos de tortura que eles têm. Ele abre uma chaga onde
bate, e deixa o corpo todo ensanguentado”. Tanto em Charleston quanto
em Nova Orleans há registros de tentativas de limitar o número de
chibatadas pagas a vinte ou 25: uma diferença dramática em relação às
centenas desferidas regularmente no Calabouço carioca. Não que isso
desmerecesse a brutalidade dos que tinham a carne dilacerada por vinte
açoites de “bluejay”.
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É
estranho pensar que o nome Calabouço continue entre nós,
dissociado de sua história. Mais estranho ainda é perceber que o
sistema penitenciário contemporâneo mantém algumas das suas
piores características, ainda que com outros nomes e estruturas. Em O
Povo de Cam, li esse relato de 1837 sobre o Calabouço do Castelo: “Com
efeito só quem viu 109 escravos (homens todavia) metidos em uma
caverna de 61 palmos de comprido sobre 21 de altura, e 37 de largura,
pode crer que isto tenha lugar.” Como não pensar nas dolorosamente
familiares imagens das prisões brasileiras superlotadas?
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E
u já estava bem longe do parágrafo das Memórias Póstumas que
havia me colocado diante do Calabouço, mas não conseguia me
conter. Fiquei obcecada em descobrir exatamente o lugar para onde
Cotrim tinha mandado os seus escravos a fim de serem torturados. Passei
um bom tempo olhando plantas e mapas, tentando enxergar o Morro do
Castelo – posto abaixo em 1922 numa reforma urbanística e higienista – e
imaginando um pedaço de inferno cravado ao seu lado. As referências
indicavam que o Calabouço ficava perto da Santa Casa (ainda em pé, na
rua Santa Luzia) e do atual prédio do Museu Histórico Nacional. Eu já
tinha passado inúmeras vezes por aquelas bandas, mais recentemente sob
o impiedoso sol carnavalesco, vestindo uma cartola no meio do bloco
Cordão do Boi Tolo, bem ao lado da Ladeira da Misericórdia.
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[1]Na hora de tentar traduzir essa frase do inglês para o português, caí
em mais um buraco etimológico ao abrir o meu Michaelis de 1908.
Procurava alguma definição contemporânea da expressão coloquial give
someone hell – infernizar a vida de alguém – e achei o seguinte: “Hell, s.
inferno m.; os espíritos infernaes; o lugar onde os alfaiates deitam os
retalhos; vulg. calabouço m. prisão; casa de jogo f.”
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