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30/10/2020 Nota sobre o calabouço

EDIÇÃO 140 | MAIO_2018

questões raciais I

NOTA SOBRE O CALABOUÇO


Brás Cubas e os castigos aos escravos no Rio
FLORA THOMSON-DEVEAUX

“As punições no Calabouço são tão assustadoramente severas, que nenhum senhor humano mandaria para lá um escravo que
não fosse irremediável”, escreveu o inglês John Luccock, que viveu na cidade do Rio de Janeiro no começo do século XIX
AUGUSTUS EARLE_PUNISHING NEGROS AT CATHABOUCO_1822_NATIONAL LIBRARY OF AUSTRALIA_NLA.OBJ-
134509360

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30/10/2020 Nota sobre o calabouço

Há meio século, os escravos fugiam com frequência.


Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão.
“Pai contra mãe”, Machado de Assis

O
primeiro ponto turístico que visitei no Rio de Janeiro, tão logo
cheguei à cidade, foi o Cemitério São João Batista. O que mais me
surpreendeu, quando eu voltei do meu passeio, foi a surpresa das
outras pessoas. Fazia todo o sentido para mim. Afinal de contas, as
minhas pessoas preferidas estavam ali. Eu me apaixonei pelo Brasil a
distância, ouvindo gravações dos anos 20 e 30 e me perdendo em
fotografias e gravuras de uma paisagem urbana extinta. Estava ciente de
que o lugar pelo qual havia me apaixonado já não existia mais, e que eu
estaria condenada a uma constante contraposição entre passado e
presente, uma espécie de visão dupla da cidade.

Depois de seis anos de idas e vindas, me mudei para o Rio. Era de se


esperar que me instalando de mala e cuia na antiga capital do país, eu
seria finalmente puxada para o século XXI, mas a minha tese – uma nova
tradução de Memórias Póstumas de Brás Cubas para o inglês – só
agravou a minha desconexão temporal. Por mais que meu objetivo oficial
seja entregar uma obra literária à altura do romance de Machado de
Assis, uso com frequência a tese como desculpa para me render à
curiosidade sobre as minúcias da história, e me afundar ainda mais no
passado.

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No meio do texto, uma palavra ou um pedaço de frase me obriga a fazer


uma pausa. Eu abro um dicionário antigo, pesquiso jornais da época na
hemeroteca online da Biblioteca Nacional, chego a um artigo, que me leva
a outro, descubro um manual especializado – e, antes que me dê conta,
estou atolada num campo que não é o meu, no encalço de algo que me
leva a um universo vagamente relacionado à minha pesquisa. Já passei
dias lendo sobre a história da pirotecnia, a oscilação das taxas de câmbio,
a categorização de doenças psíquicas, a moda no século XIX, cerâmicas
ou expressões coloquiais envolvendo pés e orelhas – para citar apenas
alguns dos tópicos que apareceram durante a tradução. Quando eu volto
finalmente às Memórias Póstumas, o que me resta é prestar contas dos
meus esforços e desvios numa nota que será infiltrada discretamente no
fim do livro. Na maioria dos casos, o textinho me sossega, e consigo
esquecer o assunto. Às vezes vira uma piada quase particular, que com
sorte eu consigo compartilhar com a minha mulher, se ela estiver com
tempo.

U
ma nota, no entanto, vem me perseguindo desde que me deparei
com ela, em novembro do ano passado. Foi motivada por um termo
escondido no capítulo “O verdadeiro Cotrim”, em que Machado
coloca na boca de Brás uma crítica mordaz a seu cunhado, disfarçada de
elogio.

“Reconheço que era um modelo. Arguiam-no de avareza, e cuido que


tinham razão; mas a avareza é apenas a exageração de uma virtude, e as
virtudes devem ser como os orçamentos: melhor é o saldo que o déficit.
Como era muito seco de maneiras, tinha inimigos, que chegavam a acusá-
lo de bárbaro. O único fato alegado neste particular era o de mandar com
frequência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue;
mas, além de que ele só mandava os perversos e os fujões, ocorre que,
tendo longamente contrabandeado em escravos, habituara-se de certo
modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio requeria,
e não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o
que é puro efeito de relações sociais.”

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Além da malícia perfeitamente calibrada dessas linhas, que eu ainda


estou revisando na tradução, uma palavra em particular do parágrafo me
prendeu: calabouço. Que calabouço seria esse para onde Cotrim mandava
os escravos? O termo me parecia estranhamente arcaico, medieval. Eu
não conseguia imaginar como seria esse lugar. Me perguntei se era só
uma maneira de dizer, mas a construção da frase me sugeria algo mais.

A edição surrada de Memórias Póstumas em que eu li o romance pela


primeira vez não trazia nenhuma nota de rodapé explicando o que era
esse “calabouço” (embora tivesse uma definindo o verbo “arguir”).
Também não encontrei maiores detalhes na edição hipertextualizada no
site machadodeassis.net, cujas anotações cuidadosas das obras não
costumam me deixar na mão. Minha primeira busca online pelo termo
vinculado a “Rio de Janeiro” topava com um bar de heavy metal na
Tijuca. Descartada essa referência, encontrei ainda muitas menções ao
restaurante Calabouço, que dificilmente teria entrado para a história não
fosse o cenário da morte de Edson Luís. O assassinato do estudante por
policiais militares foi muito lembrado nas últimas semanas – menos pela
efeméride do aniversário de seus 50 anos do que pelo paralelo entre as
manifestações posteriores à sua morte e a comoção pela execução da
vereadora Marielle Franco. No artigo da Wikipédia sobre o restaurante
Calabouço, li que ele havia sido batizado com esse nome porque
“circulava uma história de que” o local “havia abrigado uma prisão de
escravos”. Sem se estender sobre o termo, o texto não citava fontes e
sugeria se tratar de lenda urbana.

Recorri então ao Dicionário da Escravidão Negra no Brasil, de Clóvis


Moura, e encontrei no verbete: “Em cumprimento ao alvará régio de 16
de novembro de 1693, mandou-se construir, no Rio de Janeiro, junto ao
Arsenal do Exército, no morro do Castelo, um calabouço ou casa pública
para castigo dos escravos. O alvará proibia que os senhores de escravos
usassem instrumentos de ferro nos castigos e que condenassem os
escravos a cárcere privado. Debret, referindo-se à aplicação de tais
castigos pelo poder público, informa que todos os dias, pela manhã,
numerosas filas de negros escravizados eram conduzidas ao Calabouço.
Por 100 chibatadas o chicoteador recebia ‘o direito da pataca’.”

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Os senhores de escravos delegavam o castigo de seus cativos ao Estado?


Como isso poderia ter me fugido em anos de estudos de história e cultura
brasileira? Por mais que a minha graduação em Princeton e o meu
doutorado na Brown fossem mais direcionados para a literatura, os
cursos tinham uma sólida base de história do Brasil, com professores
brasileiros e estrangeiros e uma extensa carga de leitura. Vasculhei a
memória daquelas aulas e daqueles textos à procura de qualquer
lembrança dessa prática, e voltei de mãos abanando. Será que eu cochilei
durante algum seminário, ou deixei de ler algum parágrafo crucial?
Pensei ainda na hipótese de que, ao me debruçar sobre as minúcias
daquele sistema perverso pela primeira vez, o mecanismo hediondo do
calabouço tivesse me passado batido, como mais uma barbaridade entre
tantas.

Era preciso corrigir essa falha. Pesquisa séria não faltava. Mergulhei nos
excelentes A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808-1850), de Mary
Karasch, Polícia no Rio de Janeiro: Repressão e Resistência Numa Cidade
do Século XIX, de Thomas Holloway, O “Povo de Cam” na Capital do
Brasil, de Luiz Carlos Soares, “O duplo cativeiro” e “Cárceres imperiais”,
respectivamente dissertação e tese de Carlos Eduardo Araújo, entre
outros artigos e referências.

Pelo que consegui coletar nessa breve pesquisa, cartas régias do final do
século XVII haviam decretado a construção de uma casa pública ou
calabouço onde escravos podiam ser punidos – “porém com reserva e
humanidade”. A estrutura fazia parte do complexo do Forte de São
Tiago, num cantinho de terra que viria a ser conhecido como a Ponta do
Calabouço. Esse foi o primeiro Calabouço; outros viriam, ou acabariam
por adotar o mesmo nome.

Ao contrário de outras prisões, em que tanto escravos quanto cidadãos


comuns eram detidos depois de terem cometido um crime previsto pelo
Código Penal da época, o Calabouço recebia sobretudo escravos fugidos,
ou ainda – como os infelizes cativos do cunhado de Brás Cubas –
enviados por seus senhores para serem castigados. Havia duas
motivações para isso, ao que parece. Primeiro, era tecnicamente ilegal os
senhores açoitarem seus escravos. Consigo antever o ceticismo dos
leitores, mas, de fato, não faltaram medidas que tentassem limitar a

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violência de cidadãos comuns a seus cativos. “Que muitos senhores não


obedeciam à lei fica óbvio a partir dos registros policiais”, escreveu
Karasch, “mas outros se ajustavam e pagavam à cidade para castigar seus
escravos.” Há registros de que muitos chegavam à prisão já cobertos de
feridas.

Além da ilegalidade da tortura doméstica, havia outro motivo para que


os senhores delegassem os castigos à máquina do Estado. Karasch cita o
caso de uma mulher no Rio que punia seus escravos a cada noite tão
brutalmente que os gritos começaram a incomodar os vizinhos. Um deles
chegou a publicar uma nota irônica no Diário do Rio de Janeiro
elogiando-a como um “belo exemplo de corretivo doméstico”. No dia
seguinte, uma multidão se reuniu à sua porta; ela se intimidou e não
repetiu a prática.

Pensei em Cotrim, o cidadão modelo, “tesoureiro de uma confraria, e


irmão de várias irmandades”, disposto a pagar uma taxa ao Estado para
fazer sangrar os seus escravos. “Não se pode honestamente atribuir à
índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais”, diz
Brás. Claro, é muito mais fácil dizer isso de um homem que terceiriza os
açoites, mantendo suas mãos limpas e poupando os ouvidos dos
vizinhos. Eram muitos os Cotrins. Só no ano de 1826, 1 786 escravos
foram castigados no Calabouço a mando dos senhores. Thomas
Holloway, o historiador da polícia do Rio, fez o cálculo macabro – quase
cinco davam entrada por dia. A maioria recebeu 200 açoites; alguns, até
300. Com isso, os funcionários da prisão deviam passar horas por dia,
todos os dias, no emprego da chibata. “O serviço de açoite significava a
manutenção do sistema”, escreveu Holloway. “Ele põe claramente em
relevo o papel do Estado como instrumento da classe dominante,
atendendo a sua necessidade de controlar, por meio da violência física, os
que forneciam a força muscular de que dependia toda a economia.”

Havia dois sistemas de punição separados: o pelourinho público, para


aqueles que de fato haviam sido julgados e condenados, e o calabouço,
que cumpria especificamente a função de substituto do castigo ilegal,
delegando o abuso ao Estado. Só muito mais tarde, por volta de 1832, foi
instituída a norma de que os senhores deveriam especificar qual delito o
escravo teria cometido: não precisavam fornecer provas do crime, bastava

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relatar a suposta infração. Os senhores tinham que pagar pelo serviço –


não apenas pelos açoites e pelo tratamento médico subsequente, mas
também por acomodação e alimentação. No começo, eles podiam
requisitar muitas centenas de chibatadas, e há registros de que alguns
oficiais tentavam limitar a carga de açoites ou distribuir o castigo ao
longo de dias, com um máximo de chibatadas por dia. Não eram poucos
os escravos que morriam ainda na prisão em decorrência dos ferimentos,
e muitos provavelmente morreram depois de sair do Calabouço. Alguns
senhores usavam a prisão como um recurso para se livrar de escravos
indesejados, difíceis de vender: eles os entregavam à instituição, e
simplesmente paravam de pagar. Depois de repetidas ameaças, o Estado
tentava dar um jeito de vendê-los por sua própria conta.

Os relatos do Calabouço na primeira metade do século XIX eram


aterrorizantes. “As punições ali são tão assustadoramente severas, que
nenhum senhor humano mandaria para lá um escravo que não fosse
irremediável”, escreveu o inglês John Luccock, que viveu no Rio no
começo daquele século. Até um viajante alemão convicto da necessidade
dos castigos aos escravos para manter a ordem via o Calabouço do Morro
do Castelo como um buraco mais apto para receber animais selvagens.
Era um espaço escuro e abafado, sem iluminação nem ventilação, onde
escravos podiam morrer sufocados no calor. Há registros de reiteradas
recomendações de seu fechamento pela fiscalização.

Num livro pesado que consultei na biblioteca do Museu Histórico


Nacional – a História da Casa do Trem, de Antonio Pimentel Winz –, vi a
prisão pela primeira vez. Trata-se de um quadro de autoria de Augustus
Earle, um pintor inglês. A imagem não retrata a caverna sufocante, mas a
entrada da prisão, onde os castigos aos escravos passaram a ser
executados depois de 1829, com a exceção dos capoeiras e dos criminosos
condenados. É uma aquarela pequena, onde vemos um homem negro nu,
amarrado no pelourinho, sendo açoitado por outro enquanto um
pequeno grupo os observa. A maior parte dos rostos carrega uma
expressão indiferente. Há um homem branco, em pé, bem próximo à cena
– talvez seja o dono do escravo, que desejava conferir com os próprios
olhos se o seu dinheiro estava sendo bem empregado. À esquerda, outro
escravo, preso por um guarda, traz nos olhos o pavor do que o espera. O
açoitador, com uma cruz pendurada no pescoço, parece resignado; seus

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pés descalços sugerem que também ele é um escravo. Outro homem


negro no canto direito parece aflito, mas quando observamos com mais
cuidado entendemos que o semblante é de exaustão – um chicote
ensanguentado pende do pulso cansado. Ainda que esteja
geometricamente no centro da tela, uma figura próxima ao algoz e à
vítima pode facilmente passar despercebida; o homem branco cobre seu
rosto com uma das mãos enquanto espalma a outra em direção à cena
principal, como numa tentativa de borrá-la ou fazê-la parar. “É um gesto
de não olhar – ou talvez de não dever olhar”, escreveu o historiador da
arte Leonard Bell, entendendo que essa figura seria um autorretrato, uma
imagem do próprio Earle.

A
s reflexões de Brás sobre o seu cunhado podem ser datadas do fim
dos anos 1840, que é quando ele está às voltas com a possibilidade
de se casar com a sobrinha de Cotrim, Nhã-loló. Sabemos disso
porque ela morre na primeira epidemia de febre amarela, em 1849-50.
Naquela altura, o primeiro Calabouço tinha sido finalmente desativado.
A construção da primeira penitenciária do Brasil, a Casa de Correção de
Matacavalos, havia começado nos anos 1830, e o Calabouço renasceu na
forma de uma ala batizada com o nome da velha prisão para os escravos.
No processo da desativação do Calabouço do Morro do Castelo, escravos
detidos lá chegaram a ser transferidos para o canteiro de obras para que
trabalhassem na construção de seu próprio cativeiro futuro. O novo
Calabouço serviu não apenas para abrigar os escravos à espera de
julgamento e os condenados por crimes, mas também permitia que os
senhores os prendessem preventivamente antes de vendê-los, para que
eles não fossem roubados ou fugissem. A prática do açoite continuou. Em
O Povo de Cam, Luiz Carlos Soares escreve que, entre 1856 e 1858, 4 479
escravos foram mandados ao Calabouço, dos quais 3 220 por seus
próprios senhores.

As autoridades se queixavam com frequência do hábito dos senhores de


abandonarem seus escravos no Calabouço por tempo indeterminado, e
chegaram a tentar impor um limite de seis meses, aparentemente sem
sucesso. Em sua tese “Cárceres imperiais”, Carlos Eduardo Araújo cita
um ofício de setembro de 1849 da Casa de Correção, a respeito de um

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escravo que atendia pelo nome de Antonio Crioulo, e que havia sido
remetido para lá pelo dono, Francisco Dias de Castro, treze anos e seis
meses antes. Fosse Memórias Póstumas uma obra de não ficção, Antonio
Crioulo poderia ter dividido a cela com os escravos de Cotrim.

O Calabouço da Casa de Correção só foi desativado em 1874. Os que lá


estavam foram transferidos para a Casa de Detenção – destino para o
qual os senhores continuaram a enviar escravos para o castigo oficial até
a véspera da abolição.

C
onforme eu lia sobre o Calabouço, me perguntava por que eu não
conseguia me lembrar de ter ouvido falar de qualquer órgão similar
nos Estados Unidos. O Calabouço carioca me levou à Sugar House,
uma câmara de tortura em Charleston para onde escravos eram
mandados a fim de serem açoitados – tanto os urbanos quanto os que
trabalhavam em fazendas da vizinhança. James Matthews, que foi
escravizado em Charleston e escapou para o Maine nos anos 1830,
escreveu sobre a experiência de entrar no quarto de castigo e avistar um
sinistro arranjo de instrumentos: palmatórias, açoites, azorragues, “gatos
de nove caudas”. O “bluejay”, que levava o nome de um pássaro, o gaio-
azul, era “um açoite de duas correias, muito pesado e cheio de nós. É o
pior dos instrumentos de tortura que eles têm. Ele abre uma chaga onde
bate, e deixa o corpo todo ensanguentado”. Tanto em Charleston quanto
em Nova Orleans há registros de tentativas de limitar o número de
chibatadas pagas a vinte ou 25: uma diferença dramática em relação às
centenas desferidas regularmente no Calabouço carioca. Não que isso
desmerecesse a brutalidade dos que tinham a carne dilacerada por vinte
açoites de “bluejay”.

Procurando mais detalhes sobre os calabouços americanos, me deparei


com um trecho das memórias de William Wells Brown, o abolicionista,
romancista e dramaturgo que escapou da escravidão no Kentucky em
1834. Um dia, quando servia vinho para os convidados de seu senhor, ele
encheu demais as taças, e “os cavalheiros derramaram vinho em suas
roupas ao beber”. Na manhã seguinte, o dono de Brown o mandou à
prisão da cidade com um bilhete e 1 dólar. Suspeitando que havia algo de

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errado com a missão, Brown pediu a um marinheiro que encontrou pelo


caminho que lesse o bilhete para ele. They are going to give you hell,[1]
disse o marinheiro, explicando que o bilhete era uma ordem para que o
escravo fosse açoitado, e o dólar era o pagamento pelo serviço. “Na maior
parte das cidades escravocratas, quando um cavalheiro quer ter seus
serviçais castigados, ele pode mandá-los à cadeia e pagar pelo serviço”,
escreveu Brown.

O Calabouço se tornou uma pequena obsessão. Descobri que não apenas


o Aeroporto Santos Dumont foi construído sobre a região que leva o seu
nome, mas que o próprio aeroporto já foi chamado de Aeródromo do
Calabouço. Um dia, quando precisei alugar um carro no Santos Dumont
e tentava descobrir a localização exata da agência, o Google Maps – que
insiste em traduzir os nomes dos lugares no Rio para mim, de forma
irregular e algo aleatória, produzindo monstruosidades como “Balance
but not Cai”– definia a região como “Calabouço Airport”. Ainda assim,
ninguém com quem eu comentava parecia ter ouvido falar da prisão.
Dela, só sobrou o nome que batizou a região, dissociado do imaginário
público. Quem pensa em escravos ao ouvir Tim Maia cantar: “Sem contar
com Calabouço, Flamengo, Botafogo, Urca, Praia Vermelha…”, na canção
Do Leme ao Pontal?

É
estranho pensar que o nome Calabouço continue entre nós,
dissociado de sua história. Mais estranho ainda é perceber que o
sistema penitenciário contemporâneo mantém algumas das suas
piores características, ainda que com outros nomes e estruturas. Em O
Povo de Cam, li esse relato de 1837 sobre o Calabouço do Castelo: “Com
efeito só quem viu 109 escravos (homens todavia) metidos em uma
caverna de 61 palmos de comprido sobre 21 de altura, e 37 de largura,
pode crer que isto tenha lugar.” Como não pensar nas dolorosamente
familiares imagens das prisões brasileiras superlotadas?

A descrição da cadeia comum da época do Calabouço, o Aljube, remete a


um dos pontos centrais da crise penitenciária atual: o abuso do recurso às
prisões provisórias, sem julgamento e estendidas indefinidamente, que
correspondem a mais de um terço da população carcerária do Brasil. Na

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30/10/2020 Nota sobre o calabouço

sua história da polícia do Rio, Thomas Holloway cita um relatório de


1833 em que “o chefe de polícia encontrou 340 prisioneiros no Aljube, dos
quais 43 não tinham registros. Ninguém soube dizer por que estavam ali,
qual a sua sentença ou quanto dela já tinham cumprido”. Assim como o
Calabouço, a instituição da prisão provisória parece um recurso legal
para driblar a ilegalidade da punição sem julgamento.

Me deparo com essa mesma lei paralela e subentendida na leitura diária


dos jornais. Com frequência, quando alguém foi morto pela polícia, esse
alguém é definido – às vezes na manchete, às vezes no meio do texto –
como um bandido. Nem o jornal, nem a polícia especificam o que essa
palavra significa, mas fica como que subentendida a justificativa para sua
morte. Em que artigo do Código Penal brasileiro está prevista a pena de
morte, sem investigação e sem julgamento, desde que o indivíduo
pertença a essa classe especial de cidadão, o bandido? William Wells
Brown foi mandado à prisão com um bilhete. Algumas pessoas são
mandadas à prisão ou à cova, e depois recebem um título: bandido.
Quando Marielle Franco foi acusada, por seus opositores políticos, de
defender bandidos, alargou-se o fosso ideológico entre os que acreditam
que ela lutava pela legalidade no tratamento desses cidadãos, para que
não fossem mandados diretamente ao calabouço ou ao cemitério; e os que
acham que, ao defender os seus direitos, ela se igualava a eles, e merecia
o mesmo fim de um bandido.

E
u já estava bem longe do parágrafo das Memórias Póstumas que
havia me colocado diante do Calabouço, mas não conseguia me
conter. Fiquei obcecada em descobrir exatamente o lugar para onde
Cotrim tinha mandado os seus escravos a fim de serem torturados. Passei
um bom tempo olhando plantas e mapas, tentando enxergar o Morro do
Castelo – posto abaixo em 1922 numa reforma urbanística e higienista – e
imaginando um pedaço de inferno cravado ao seu lado. As referências
indicavam que o Calabouço ficava perto da Santa Casa (ainda em pé, na
rua Santa Luzia) e do atual prédio do Museu Histórico Nacional. Eu já
tinha passado inúmeras vezes por aquelas bandas, mais recentemente sob
o impiedoso sol carnavalesco, vestindo uma cartola no meio do bloco
Cordão do Boi Tolo, bem ao lado da Ladeira da Misericórdia.

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30/10/2020 Nota sobre o calabouço

Já falei do meu hábito de comparar mentalmente a paisagem à minha


frente à paisagem da minha pesquisa, na ficção ou na não ficção. Nos
meus passeios matinais pelo Aterro, me pego apagando a terra sob os
meus pés e me afundando nas ondas que levaram a vida de Escobar em
Dom Casmurro. A caminho de uma consulta médica no Centro, apago as
fachadas dos prédios da Cinelândia e insiro as marquises dos cinemas
extintos que deram nome à praça. Na passagem do bloco pela vizinhança
do Museu Histórico Nacional, imaginei a multidão entoando marchinhas
por um túnel que atravessava o morro fantasma, passando alegremente
por dentro do Calabouço.

Como eu poderia condensar tudo isso numa simples palavra? O primeiro


e terceiro tradutores de Memórias Póstumas verteram “o calabouço”
como the dungeon; o segundo como prison. Mas nenhuma das opções
me parecia suficiente. No fim, optei por uma mudança sutil. Machado
não grafou a palavra com letra maiúscula, mas, na minha tradução,
Cotrim manda seus escravos para the Dungeon. A diferença pode parecer
insignificante. Mas com essa letra maiúscula, eu queria assinalar que o
Calabouço não era só um calabouço, mas uma instituição, um lugar
específico, algo tão incorporado à vida carioca que Machado – na voz de
Brás – julgou que poderia simplesmente jogar o termo e dispensar
maiores explicações. Claro que, ao colocar a maiúscula em Calabouço na
minha tradução, eu pretendo incluir uma robusta nota de fim de livro.
Mas, como as pessoas que leem notas em teses de doutorado são uma
espécie rara (ainda que maravilhosa), quis deixar essa história registrada
aqui também.

[1]Na hora de tentar traduzir essa frase do inglês para o português, caí
em mais um buraco etimológico ao abrir o meu Michaelis de 1908.
Procurava alguma definição contemporânea da expressão coloquial give
someone hell – infernizar a vida de alguém – e achei o seguinte: “Hell, s.
inferno m.; os espíritos infernaes; o lugar onde os alfaiates deitam os
retalhos; vulg. calabouço m. prisão; casa de jogo f.”

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