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Fabio Scorsolini-Comin
Laura Vilela e Souza
Sabrina Martins Barroso
Organizadores

Práticas em
Psicologia:
Saúde, Família e
Comunidade

Editora da UFTM
Uberaba, MG
2014

Copyright © 2014 by Fabio Scorsolini-Comin


Laura Vilela e Souza
Página |3

Sabrina Martins Barroso

Todos os direitos reservados aos Organizadores

Impresso no Brasil
Printed in Brazil

Capa
Paula Vilela e Souza

Foto da capa
Rodrigo Otávio Neri de Mattos

Diagramação
Andreza de Souza

Revisão
Organizadores

Apoio
Universidade Federal do Triângulo Mineiro

Catalogação na fonte: Biblioteca da Universidade Federal


do Triângulo Mineiro

Práticas em Psicologia: Saúde, Família e Comunidade / Fabio Scorsolini-Comin,


Laura Vilela e Souza, Sabrina Martins Barroso, organizadores.
D52 – Uberaba: UFTM, 2014.
296p.
ISBN 978-85-62599-34-7
1. Psicologia. 2. Atuação (Psicologia). 3. Prática profissional. 4. Pesquisa-
Psicologia. I. Scorsolini-Comin, Fabio. II. Vilela e Sousa, Laura. III. Barroso, Sabrina
Martins. IV. Título.
CDU 1.59.9

Editora da UFTM
Universidade Federal do Triângulo Mineiro
Rua Capitão Domingos, 50 – Abadia
38.025-010 – Uberaba, MG.
Conselho Editorial
Profa. Dra. Adriana Wagner
Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universi-
dade Federal do Rio Grande do Sul

Profa. Dra. Lilia Iêda Chaves Cavalcante


Programa de Pós-graduação em Psicologia (Teoria e
Pesquisa do Comportamento) da Universidade Federal do Pará

Prof. Dr. Murilo dos Santos Moscheta


Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universi-
dade Estadual de Maringá

Prof. Dr. Rodrigo Sanches Peres


Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universi-
dade Federal de Uberlândia
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Sumário
Prefácio 10
Perambulações por um mundo de fronteiras fluidas,
habitado por identidades plurais: Diálogos possíveis
entre teoria e prática psicológicas
Manoel Antônio dos Santos

Apresentação 13
Práticas em Psicologia: Compromisso com os
movimentos de abertura, criação e compartilhamento
de saberes e experiências
Fabio Scorsolini-Comin

A vida das palavras: Discursividade, poder e 17


subjetividade
Rafael De Tilio, Laura Vilela e Souza

Contribuições da teoria do amadurecimento para o 33


estudo das famílias homoparentais
Conceição Aparecida Serralha

Pedofilia, pedófilos e pedofilização social: 51


Apagamentos ideológicos e novas perspectivas de
compreensão
Rafael De Tilio

Humanização e cuidado em saúde: Contribuições da 77


Psicologia para esta parceria no contexto do
adoecimento grave
Karin A. Casarini, Carmen Lúcia Cardoso
Os segredos familiares no processo clínico: A escuta 101
a partir do psicodiagnóstico interventivo
Deise Coelho de Souza, Martha Franco Diniz Hueb, Fabio
Scorsolini-Comin

Práticas de saúde: Atendimento clínico cognitivo- 127


comportamental de um caso de Síndrome de Tourette
Adriana da Silva Sena, Luciana Maria da Silva, Sabrina
Martins Barroso

Histórias de vida e vivências familiares de jovens 153


travestis
Roberta Noronha Azevedo, Giancarlo Spizzirri, Fabio
Scorsolini-Comin

Estágio em NASF: Interlocuções entre psicoterapia 177


breve, plantão psicológico e grupos operativos
Tamara Rodrigues Lima Zanuzzi, Tales Vilela Santei-
ro, Fabio Scorsolini-Comin

O processo de construção de um espaço grupal 205


para equipes de profissionais da Estratégia Saúde da
Família
Marianna Ramos e Oliveira, Carolina Martins Pereira Al-
ves, Joana Borges Ferreira, Neftali Beatriz Centurion,
Roberta Rodrigues de Almeida, Laura Vilela e Souza

Grupos com agentes comunitários de saúde de 225


Uberaba (MG): Dando voz aos cuidadores
Sabrina Martins Barroso, Helena de Ornelas Sivieri-
Pereira, Izabella Lenza Crema, Juliana D’André Montan-
don, Mariana Tolêdo Fuzaro, Nathalia Beatriz Fontes Silva,
Renata Lemos Crisóstomo, Wanderlei Abadio de Oliveira
Página |7

A experiência do Grupo Interinstitucional Pró- 247


Adoção na cidade de Uberaba (MG): Comparti-
lhando saberes e práticas
Martha Franco Diniz Hueb, Marta Regina Farinelli, Ana
Mafalda Guedes C. C. Vassalo Azôr, Eliane Gonçalves
Cordeiro, André Tuma Delbim Ferreira

As famílias que encontramos na atenção básica: Desa- 273


fios e reflexões para a prática em Psicologia
Conceição Aparecida Serralha, Cibele Alves Chapadeiro

Sobre os autores 293


P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 10

PREFÁCIO
Perambulações por um mundo de fronteiras
fluidas, habitado por identidades plurais:
Diálogos possíveis entre teoria e prática
psicológicas
Manoel Antônio dos Santos1

"Há um tempo em que é preciso abandonar


as roupas usadas, que já têm a forma
de nosso corpo e esquecer os nossos
caminhos que nos levam sempre aos
mesmos lugares. É o tempo da travessia; e
se não ousarmos fazê-la, teremos ficado,
para sempre, à margem de nós mesmos".
Fernando Teixeira de Andrade

O livro Práticas em Psicologia: Saúde, Família e Comuni-


dade, organizado por Fabio Scorsolini-Comin, Laura Vilela e
Souza e Sabrina Martins Barroso, reúne 12 capítulos que
recobrem um amplo arco de temas candentes da Psicologia
contemporânea.

1Psicólogo, Mestre e Doutor em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia


da Universidade de São Paulo. Livre Docente em Psicoterapia Psicanalítica
pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universii-
dade de São Paulo. Professor Associado 3 do Departamento de Psicologia da
FFCLRP-USP, atuando no curso de graduação em Psicologia e no Programa
de Pós-graduação em Psicologia. Bolsista de Produtividade do CNPq, nível 1B.
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 11

Os capítulos reunidos repercutem as inquietações de


autores-pensadores que se movem no universo em expansão da
contemporaneidade. Os temas abordados, com escrita refinada e
densidade conceitual, refletem o vivo interesse por questões
cruciais que movimentam e tensionam os debates sobre
problemas de investigação atuais. São temas visitados por profis-
sionais de distintas abordagens, que testemunham o quanto
vivemos em uma era de profundas incertezas, marcada pela
instabilidade de um mundo delimitado por fronteiras fluidas,
habitado por identidades plurais. O futuro, que antes parecia
radioso e seguro, agora muitas vezes é pintado com cores
sombrias e previsões pessimistas, o que evidencia a necessidade
premente de produção de um conhecimento abalizado.
Nesse cenário, ganha corpo a discussão em torno das
construções de si e de alteridade em um mundo em constante
mutação. O(a) psicólogo(a) que se insere no atual contexto de
impermanência entende a vulnerabilidade das pessoas com quem
interage porque, ele(a) próprio(a), sabe que é frágil em tantos
sentidos, e por isso é um(a) interlocutor(a) privilegiado e atento(a)
à tentativa humana de ordenar o caos e controlar o imprevisível no
mundo à sua volta.
Ao buscarem difundir o conhecimento psicológico para
amplas audiências, os autores oferecem generosamente seu
empenho para a construção de uma Psicologia comprometida
com seu tempo e com os desafios que cercam a subjetividade
contemporânea. Sabemos que no mundo atual a informação é um
bem público. Deve, portanto, circular, ser socializada e estar dis-
ponível para livre acesso em uma sociedade democrática. Uma
obra que se disponha a discutir saberes e práticas em Psicologia,
nos campos da saúde, família e comunidade, tem de provocar
reflexões, e é precisamente esse mote que os textos deste livro
cumprem à risca, ao beberem de tantas fontes e vertentes.
Nota-se, na organização da obra, o respeito à pluralidade
temática e à diversidade de abordagens teórico-metodológicas
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 12

que caracterizam o campo da Psicologia. Os textos colocam em


destaque a discursividade na ciência psicológica, seja como estra-
tégia de delinear os fenômenos e objetos variados de que se
ocupam os(as) autores(as), seja considerando que as práticas
discursivas involucram relações de poder e, portanto, estabelecem
hierarquias, zonas de inclusão e exclusão, limites e possibilidades.
Os capítulos trazem contribuições generosas para a cons-
trução de uma Psicologia que não teme levantar a voz contra a
opressão e as situações de exclusão social. Sabemos que sem
respeito às diferenças e aos direitos humanos não se constrói
uma sociedade democrática e pluralista, na qual a cidadania
possa realmente vicejar como valor supremo. Afinal, toda pes-
soa tem direito a uma vida digna e a ter oportunidade de realizar
seus projetos de acordo com seus modos de subjetivação.
Percebemos nesta obra o investimento na divulgação do
conhecimento científico de alta qualidade, o que dignifica o
compromisso com uma ciência imbricada nas subjetividades,
afetos e modos de perceber o outro. Esperamos que os leitores
possam sair enriquecidos da aventura da leitura e que, ao final
dessa empreitada, sintam-se também estimulados a
empreenderem suas próprias reflexões e contribuições à ciência
psicológica.
Por meio desses textos, tão estimulantes quanto provo-
cativos, a Universidade, com sua experiência e autonomia
intelectual, reafirma seu papel relevante na sociedade. Ao con-
siderarmos o relevo da produção científica enfeixada nesse livro,
podemos ter esperança de que é possível criar uma cultura que
tenha na produção de conhecimento seu maior valor. Ao con-
cluirmos a leitura dessa obra, saímos com a sensação de que
estamos em plena travessia.
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 13

Apresentação
Práticas em Psicologia:
Compromisso com os movimentos de
abertura, criação e compartilhamento de saberes
e experiências
Fabio Scorsolini-Comin

Só nos olhos das pessoas é que eu procurava


o macio interno delas; só nos onde os olhos.
Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas,
1974, p. 322.

Este livro nasceu a partir de um grupo de docentes envol-


vidos com a redação de um projeto para a abertura do mestrado
acadêmico em Psicologia na Universidade Federal do Triângulo
Mineiro (UFTM). Na ocasião da composição desse grupo havia
um convite para que todos pudessem conversar, apresentar seus
projetos, enfim, que cada um pudesse estabelecer parcerias a
partir de suas pesquisas, interesses e práticas em andamento.
Ao discutirmos as linhas de pesquisa dessa proposta a partir
de nossa experiência como grupo, a questão da prática (e
das práticas) emergiu como um diferencial de todos os pro-
fessores que se juntavam para pensar a Pós-graduação nesta
instituição. Queríamos sim nos aventurar na pesquisa sobre as
práticas em Psicologia.
Nossas práticas, orientadas especialmente para os
campos da saúde e da comunidade e dos estudos na área de
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 14

família, não apenas formalizavam a característica de um grupo de


professores e pesquisadores, mas já apresentava um desejo de
compartilhar, promover e desenvolver formas de escuta, de
encontro com o outro e de atenção nos diferentes contextos de
atuação profissional. As práticas em Psicologia, como uma marca
do grupo, tornaram-se um mote para a construção deste livro, que
reúne não apenas os docentes diretamente envolvidos nesse
processo, como também outros profissionais e pesquisadores
interessados nesse debate, parceiros de pesquisas e interven-
ções ao longo desses anos. A ideia de reunir a produção do grupo
a partir dos contornos do projeto permitiu que muitos diálogos
fossem iniciados e dessem origem a propostas de trabalho e à
organização e sistematização de experiências profissionais sob a
forma de capítulos.
Nesta obra, organizada com o intuito de veicular práticas
em saúde, família e comunidade desenvolvidas na UFTM e em
instituições parceiras, possibilitamos o contato dos leitores e
leitoras com diferentes temáticas: gênero, homoparentalidade,
pedofilia, humanização e cuidado no contexto do adoecimento
grave, psicodiagnóstico interventivo, psicoterapia breve, plantão
psicológico, formação de agentes comunitários, grupos no contex-
to da saúde e na preparação de pais para a adoção, entre outras.
Tais temas mostram práticas que se sustentam, principalmente,
na possibilidade de diálogo com as diversidades de conteúdos,
formações, cenários, desafios e demandas encontradas no conta-
to extra-muros. Essa diversidade revela uma Psicologia em
movimento, em acontecimento, de modo que os capítulos não se
pretendem contribuições cristalizadas e fechadas, mas deflagra-
doras de necessidades que ainda devem ser preenchidas por
meio de reflexões, novas intervenções e uma atenção constante
às mudanças sociais, culturais e históricas. Os relatos contidos
nessa obra não são modelos prontos, mas propostas que
tomaram forma a partir de cenários e necessidades concretas.
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 15

São, para além de comunicações, convites à reflexão, à crítica, à


reformulação, à atuação em parceria, compartilhada, vivida.
Agradecemos a todos os envolvidos neste livro, desde o
seleto conselho editorial, passando por cada autor(a) que se
manteve disposto(a) a dialogar tendo como norteador do processo
o formato de um livro voltado à comunidadade acadêmica. Sabe-
mos que não é uma tarefa fácil compartilhar experiências tendo
em mente a proposta de um livro com uma estrutura pré-definida,
mas sabíamos, desde o início, que a concretização dessa propos-
ta poderia acenar para importantes horizontes em nosso campo
de atuação. Assim, agradecemos aos profissionais ligados a
diferentes instituições que participaram direta ou indiretamente
deste projeto, entre elas: Universidade Federal do Triângulo
Mineiro, Universidade de São Paulo, Universidade Federal de
Goiás, Universidade de Uberaba, Faculdade de Tecnologia e
Ciências de Jequié (BA), Unidades Básicas de Saúde das
cidades de Uberaba (MG) e Jataí (GO), Promotoria de Defesa
da Infância e Juventude da Comarca de Uberaba, Centro de
Referência Especializado da Assistência Social do município de
Orlândia (SP), Núcleo de Apoio à Saúde da Família de Jataí,
Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto
e Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo. Agradecemos, ainda, aos graduandos
e profissionais recém-formados que compartilharam conosco a
escrita de alguns capítulos e que se dispuseram a refletir sobre
suas práticas, aprendizados e formação profissional. Nossa
gratidão também a Rodrigo Neri de Mattos por nos ceder a foto
que ilustra a capa do livro e a Paula Vilela e Souza pela arte da
capa.
Esperamos que esta obra possa incentivar docentes,
pesquisadores e alunos em suas pesquisas e intervenções no
campo da Psicologia e em áreas multidisciplinares, tendo sempre
o compromisso da escuta atenta e da abertura para o novo, para a
criação e re-criação de práticas, saberes e formas de com-
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preender o humano em suas nuanças e potencialidades, em seu


“macio interno” para além dos olhos. Desejamos a todos e todas
uma boa e inspirada leitura do material!
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A vida das palavras:


Discursividade, poder e subjetividade
Rafael De Tilio
Laura Vilela e Souza

Propomos neste capítulo um debate sobre uma das


questões mais instigantes pertinentes ao campo do saber (e do
fazer) Psicologia: como, por meio da linguagem e dos discursos,
nossa subjetividade é constituída? As clássicas concepções
da Psicologia – resumíveis na dualidade estabelecida entre
idealismo e materialismo – são suficientes para responder, isola-
damente, a essa indagação? Pensamos que não e, por isso, pro-
pomos uma discussão sobre esse tema a partir das concepções
da perspectiva construcionista social.
A escolha por desenvolver uma argumentação partin-
do dessa matriz discursiva se justifica por duas razões, a saber:
(1) por causa de suas potencialidades propositivas e explicativas
diante dos fenômenos sociais; (2) devido às recorrentes incom-
preensões ainda existentes sobre seus fundamentos e principais
argumentos. Em outras palavras, debater sobre esse espinhoso
tema a partir da perspectiva construcionista social é tanto uma
oportunidade de melhor esclarecer os fundamentos e argumentos
dessa proposta quanto oxigenar e reatualizar o debate sobre o
tema.
Assim, é necessário esclarecer que pretendemos discutir
mais do que as razões pelas quais falamos, sobre o que falamos,
como falamos, se já nascemos com a capacidade da linguagem
ou se ela nos é incutida em específicos contextos sociais; preci-
samente, pretendemos nos debruçar sobre como por meio
dos discursos construímos e temos construída nossa subjetivida-
de, cuja uma das expressões é a própria linguagem. Parodiando o
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título desse texto, não apenas não preocupamos com a vida das
palavras, mas como as palavras nos causam a vida.
Trechos da música Uma palavra, de Chico Buarque
(1989), podem servir de disparador e de belo exemplo para essa
indagação: palavra viva / palavra com temperatura palavra /
que se produz muda / feita de luz mais que de vento, palavra /
palavra minha, matéria, minha criatura, palavra / que me con-
duz mudo / e que me escreve desatento, palavra.
Em suma, o que nos impele a essa discussão não é a
busca de uma resposta exata ao questionamento proposto, mas
sim problematizar os possíveis argumentos que o balizam para
que não sejamos (i.e. nossa subjetividade) escritos desaten-
tamente – a própria produção deste texto ilustra isso, pois
debruçar-se e construir uma discussão coletiva (dois autores já
formam um coletivo) sobre assunto é uma estratégia pertinente
para aumentar o diálogo, a crítica e a capacidade de reflexão,
evitando individualismo que na realidade inexiste.
Vamos ao texto.
“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o
Verbo era Deus (...) E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós,
e vimos a sua glória”. Assim afirma o versículo 1 do capítulo 1 de
João (Bíblia, 2013), em uma explícita alusão à força criadora da
palavra de Deus diante do nada. Aforismo curioso: diante do
nada (de nenhum objeto prévio, de nenhuma ação prévia, de ne-
nhuma palavra prévia, de nenhuma precedência), a palavra cria.
Mas como criar um mundo novo, repleto de ações,
partindo de um princípio de inexistência? Esoterismo à parte e
em outros termos, como conceber que as palavras possuam
existência própria e determinar nomeações, valores, regras,
constâncias e capacidade instituinte sem antes, aparentemente,
haver um antecedente para tanto? Podem as palavras prescindir
de palavras (significados) anteriores? – ou seja, podem prescindir
de bases materiais que as limitam e possibilitam?
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Tal indagação não é nova: segundo Salih (2012), na


década de 1950, J. L. Austin, em Como fazer as coisas com
palavras, distinguiu entre dois tipos de enunciados: aqueles que
descrevem ou relatam algo (enunciados constatativos; por
exemplo, quando se relata “fui às compras”) e aqueles que ao
dizer realizam efetivamente o que está sendo dito (atos perlocutó-
rios; por exemplo, quando um médico em um nascimento clama
que “é um menino” ele simplesmente não apenas nomeia um
corpo ou constata um fato, ele também distingue e possibilita
desde ali o que pode/deve fazer aquele corpo).
A distinção é sutil, mas não menos importante: enquanto o
primeiro tipo de enunciado simplesmente relata, o segundo enun-
ciado (na própria enunciação) realiza uma ação e constitui uma
realidade – às vezes, enquanto falamos fazemos (criamos) algo
e, assim, as palavras são atos. Apesar das diferenças em ambos
os casos, para Austin, as premissas e condicionantes desses dois
enunciados são as mesmas: a constatação ou a criação parte de
um arcabouço pré-existente e consolidado de palavras e significa-
dos limitados – os falantes, e suas ações não criam nem formam
autonomamente as palavras e os seus sentidos, mas sim são
criados e formados por elas, repetem significados, visto que a
linguagem pré-existe aos sujeitos.
Fica, portanto, a indagação: se as palavras e os signifi-
cados (supostamente) pré-existem aos sujeitos e os formam, de
que maneira podemos conceber a mudança, a criação de novos
sentidos e, consequentemente, de novas ações no mundo, de
transformações? Basta dizer para criar? De que maneira o
discurso construcionista ou pós-construcionista poderia responder
a essa questão?
Como alerta Iñiguez (2003), ainda que estejamos em um
momento no qual críticas têm sido feitas às ortodoxias dentro do
movimento construcionista social, que tenhamos mais de 20 anos
de sua entrada no campo da Psicologia e que já tenhamos auto-
res posicionando-se a partir de um discurso pós-construcionista,
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muitas pessoas ainda não compreenderam plenamento a propos-


ta construcionista social, avaliando-a como uma proposta que
toma tudo como construção social ou como construção linguística.
Gergen (1997) já avaliava os efeitos dessas críticas res-
pondendo que o discurso construcionista social não pretende
negar uma existência material, mas propor que a partir do
momento em que passamos a tecer qualquer afirmação sobre
esse mundo entramos no universo do discurso. O autor fala, en-
tão, em termos de ontologias relacionais, sem debater sobre sua
natureza e com o foco nos efeitos pragmáticos que as diferentes
descrições de mundo e de self sugerem.
Para Ibánez (2001) é importante, ao tomarmos a lingua-
gem realista como dispositivo ideológico, que façamos a distinção
entre o discurso do ser e o discurso sobre a realidade. Para o
autor, não há nenhum problema em se admitir que o ser antecede
o conhecimento do ser, uma vez que tomemos o conhecimento
como, também, um tipo de ser. Portanto, a questão é diferenciar
que um discurso sobre realidade não é um discurso sobre ser,
mas sobre um determinado modo de ser. No realismo ontológico,
coloca o autor, a realidade (e não o ser) é tomada como uma
existência independente e, no realismo epistemológico, entende-
mos que há a possibilidade de conhecer essa realidade
independente. Bom, para muitos autores que dialogam com a
crítica construcionista social em ciência, a pergunta é sobre a
possibilidade de acesso a uma realidade independente dos co-
nhecimentos que temos sobre ela. O que não é o mesmo que
dizer, como afirma Ibánez, que podemos imprimir qualquer
característica à realidade. Para o autor, a realidade que
construímos é sempre uma realidade compatível com um critério,
um conceito, que varia de cultura a cultura, ou seja, o mundo
material é uma realidade linguisticamente mediada e não pode ser
construído de qualquer forma, pois nossos conceitos são produtos
coletivos. O que não quer dizer que a realidade é de natureza
conceitual, nega-se a realidade e não o ser, a existência.
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 21

Segundo Ibánez (2001), algumas perguntas são importan-


tes de serem feitas quando consideramos o caráter performático
da linguagem. A primeira é: (1) o que se está relativizando? É o
conhecimento? Os valores e culturas? A realidade?; (2) A respeito
de que se está relativizando? A linguagem? Os esquemas
conceituais? A teoria?; (3) Em que grau se relativiza?
Completamente? Parcialmente? Para o autor, a resposta a essas
perguntas mostram os diferentes relativismos possíveis (cultural,
semântico, linguístico, epistemológico, ontológico, moral). O pró-
prio Ibánez opta por um relativismo radical, ou seja, o relativismo
que relativiza tudo, incluindo a si mesmo. O que seria afirmar que
nenhuma proposição é verdadeira em todos os contextos.
Afirmar que um “algo” só se torna objeto a partir do
processo de construção linguístico-conceitual, como mencionam
Spink e Frezza (2000), não é o mesmo que afirmar que esse
algo é de natureza discursiva. Como colocam as autoras:
“quer dizer, apenas, que o construcionismo reconhece a centrali-
dade da linguagem nos processos de objetivação que constituem
a base da sociedade de humanos” (p. 33).
Sobre a crítica ao reducionismo linguístico, Hacking
(1999) nos lembra que o uso da linguagem na classificação das
coisas não acontece no vácuo, mas a partir de uma matriz
povoada por instituições, papéis sociais, infraestrutura material,
etc. O autor menciona que podemos chamar essas matrizes de
sociais, pois seu sentido é o que interessa problematizar, mas
elas também são materiais, na medida em que disponibilizam
diferentes elementos na construção das coisas. Assim, nenhuma
ideia sobre o mundo funciona fora de uma matriz. Indivíduos e
experiências são construídos nessa matriz.
Latour (1994) busca avançar nessa questão ao abordar o
aprisionamento que podemos sentir nos jogos de linguagem e no
ceticismo da desconstrução de sentidos. Ele pontua: “o discurso
não é um mundo em si, mas uma população de actantes que se
misturam tanto às coisas quanto às sociedades, que sustentam
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 22

ambas, e que as mantêm” (p. 89). O autor propõe que tomemos o


conceito dos quase-objetos para sairmos das armadilhas da
modernidade de querer garantir como separados natureza,
discurso, sociedade e Ser. Os quase-objetos são, portanto, “reais
como a natureza, narrados como o discurso, coletivos como a
sociedade, existenciais como o Ser” (p. 89).
Ainda para este autor, os debates sobre o relativismo
nunca chegam a lugar algum, pois “é tão impossível universalizar
a natureza quanto reduzi-la à perspectiva restrita do relativismo
cultural” (p. 104). Ele propõe, assim, um relativismo relativista que,
diferentemente dos universalistas que definem uma única
hierarquia para as coisas, e dos relativistas que tornam tudo igual,
são “mais modestos, porém mais empíricos, mostram os
instrumentos e as cadeias que foram usadas para criar as-
simetrias e igualdades, hierarquias e diferenças” (p. 111). Dessa
forma, teríamos, de fato,

uma natureza que não criamos, e uma sociedade que podemos


mudar, há fatos científicos indiscutíveis e sujeitos de direito,
mas estes tornam-se consequência de uma prática continua-
mente visível, ao invés de serem, como para os modernos, as
causas longínquas e opostas de uma prática invisível que os
contradiz (p. 138).

Para Iñiguez (2003), Latour faz parte dos autores que se


localizam em um “panorama pós-construcionista”, pois permite
equilibrar e desfazer a dualidade natural-social, “reposicionando o
material e criando uma nova hibridação conceitual longe de
essencialismos culturalistas ou materialistas” (p. 9).
Iñiguez (2003) toma Judith Butler como outra importante
figura presente nesse panorama pós-construcionista, pela propos-
ta dessa autora do conceito de performatividade que, segundo o
autor, é uma alternativa à noção de que tudo é uma construção
linguística. Para Iñiguez, Butler fala de uma noção de construção
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 23

social que implica um processo de materialização, “que se


estabiliza com o tempo, para produzir o efeito de fronteira, de
permanência e de superfície que chamamos matéria” (p. 10). Se-
gundo o autor, Butler responde à pergunta de se há algo externo
ao discurso afirmando que “referir-se a algo extradiscursivo
implica que se tenha de delimitar previamente qual é esse âmbito
do extradiscursivo, e no caso de se poder fazer essa delimitação
então, e paradoxalmente, será o discursivo que estará delimitado
pelo próprio discurso do qual pretendia liberar-se” (p. 10).
Portanto, é possível reformular a pergunta de se as pala-
vras pré-existem aos sujeitos? De que forma pensar a noção de
eu nesse cenário? Se partirmos, portanto, da suposição de que a
realidade (a base material) não existe desconectada e exterior ao
plano discursivo, isso equivale a supor que a (formação) da identi-
dade e da subjetividade – e, nesse sentido, do eu – ocorre no
interior das estruturas discursivas e de poder existentes.
Considerando a argumentação de Mariano (2005), autora
partidária da tradição feminista crítica, podemos concluir que ao
contrário do que preconiza a tradição do pensamento liberal ou
clássico sobre a formação da subjetividade (supondo um sujeito
coeso e racional), se tanto as relações de poder quanto as
relações discursivas operam em grande parte de maneira
inconsciente ao indivíduo, a conclusão é que o eu na verdade é
um efeito das relações de poder e dos discursos que formatam o
indivíduo, e não sua origem ou causa. Em outras palavras, mais
apropriado do que o termo eu (que remete ao âmbito consciente)
seria a terminologia sujeito (parte consciente, parte inconsciente).
Neste sentido, tanto para Haraway (1991, 1995) quanto
para Butler (2012), aquilo que se designa como sujeito é resul-
tado da performatividade (sua ilusão de existência e de coesão
é posterior aos efeitos discursivos e às relações de poder), e não
antecede nem pré-existe como entidade imanente. Como bem
definem Costa (2002) e Wajcman (2008), o eu (sujeito) está em
constante ação e construção, em constante transformação, em
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constante tentativa de afirmação, ao mesmo tempo em que se cria


uma ilusão de concretude e estabilidade. Tais suposições estão
de acordo com o pressuposto de que não haveria uma realidade
“descolada” ou exterior ao âmbito discursivo, mais sim que essa
realidade seria constituída a partir dele.
O que é, portanto, o sujeito? É o eu? É o aspecto racional
e consciente do psiquismo? É composto por elementos inconsci-
entes e conscientes? É o self? Para Butler (2012), ao invés de
supormos que as identidades (eu) são autoevidentes e fixas como
fazem as perspectivas essencialistas e tradicionalistas em Psico-
logia que o equivalem às capacidades racionais, devemos
considerar que elas são construções que ocorrem no interior
dos processos de linguagem e das práticas discursivas que
regulam os atos do executante – suas condições de emergência.
Essa é a ideia chave para a compreensão da obra de Bu-
tler: a de que a performatividade (as condições e possibilidades
discursivas que formatam os sujeitos em específicas relações de
poder) antecede, delimita e possibilita o performer (aquele que
executa a ação; ou seja, o executante é, na realidade, efeito e não
causa das práticas discursivas) – o eu é um sujeito-em-processo.
Butler (2012), portanto, sugere não que o sujeito seja totalmente
livre para escolher o que fazer ou o que (e como) pensar, pois o
script de suas possibilidades está sempre anteriormente determi-
nado no interior de um quadro regulatório (discursivo) e o sujeito
tem uma quantidade limitada de opções a partir das quais pode
atuar.
Contudo, é preciso esclarecer que Butler utiliza o termo
discurso conforme proposto e compreendido por Michel Foucault
(2008) ao longo de sua obra: discurso não equivale à fala ou a
conversação ocorrida entre as pessoas e tampouco à linguagem,
mas sim especificamente designa os grandes grupos de enuncia-
dos que governam o modo como falamos, pensamos e perce-
bemos um momento ou momentos históricos específicos. Ou
seja, o(s) discurso(s) são matrizes de inteligibilidade do mundo e
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 25

das práticas sociais, possibilitando sentidos e significados aos


sujeitos. Isso equivale a dizer que o sujeito é formatado pelos
discursos (efeito) que o antecedem e, assim, não é plena-
mente capaz de controlá-los – sua autonomia é, portanto, con-
dicionada e ilusória.
Considerando que as relações discursivas são relações
de poder, o essencial nessa discussão não é questionar se existe
um eu que habita os indivíduos (e se ele é mais ou menos consci-
ente ou inconsciente, pouco importa), mas sim quais são as
condições sociais e discursivas necessárias para que haja a
suposição da existência de um eu. Ou, em outras palavras, quais
foram as condições que permitiram advir a ideia e supor a
existência de um sujeito?
Novamente Butler (1987), apoiada em Kojève, Hyppolite,
Sartre, Lacan e Foucault – eminentes autores do contexto francês
da década de 1960 e posteriores – conclui que as ciências psiqui-
átricas e psicológicas dos séculos XVIII e XIX foram essenciais na
proposição da ideia de existência de um sujeito coeso, racional,
estável, delimitável, autônomo e equivalente a uma instância in-
terna do indivíduo, quando, na realidade, o sujeito está em-
processo, é instável e poroso aos discursos que o circunscrevem.
Posteriormente, em seu livro Excitable Speech, Butler
(1997a) melhor discorre sobre esse argumento: considerando que
todo enunciado é em certo sentido um ato e que, ao dizer algo,
estamos sempre fazendo algo, as práticas discursivas que
formatam os sujeitos são tanto excitáveis (no sentido de serem
incontroláveis pelos próprios sujeitos) quanto ex-citáveis
(ex-citable, para além do sujeito; exteriores àquele que cita)2.

2 Aparentemente Butler alude ao Deus ex machina, recurso usual no teatro


grego antigo no qual uma situação ou cena é resolvida quase que absurdamen-
te por uma intervenção de um deus, ou seja, por um personagem externo ao
ocorrido, fato incontrolável pelos partícipes da encenação e da peça. Assim, ex-
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 26

Se o sujeito é formado pela linguagem e pelo discurso, ou


seja, dependente de certos condicionantes, não haveria razão em
supor (e mesmo crer em) a existência de um eu interno tal com
proposto pela Psicologia tradicional. Aliás, tal suposição oriunda
das ciências psicológicas e psiquiátricas seria menos uma cons-
tatação de uma real evidência e mais um artifício ideológico de
controle e normatização social (Chauí, 2010), pois supor a
existência uma instância interna (eu) sugere a possibilidade de
melhor conhecê-la para melhor controlá-la – e a história das
práticas psi bem demonstra isso.
Em The psychic life of Power, Butler (1997b) reitera sua
argumentação de que não existiria nenhuma identidade social
nem um eu sem sujeição – não há interioridade prévia, não há
essencialismo biológico ou psicológico. Há, todavia, exterioridade
com efeitos de interioridade. Ninguém nasce sujeito, mas se torna
sujeito – parodiando Simone de Beauvoir. Em suma, se é impos-
sível fugir das estruturas discursivas de poder, tampouco faz
sentido supor que o sujeito (ou aquilo que a ciência psicológica
denomina como eu) não seja resultado dessas estruturas e rela-
ções de poder. Em outros termos, isso equivale a afirmar que a
formação da psique somente ocorre no interior e devido às estru-
turas discursivas e de poder, ou seja, que é a exterioridade
que causa a interioridade psicológica.
Salin (2012), ao comentar a obra butleriana The psychic li-
fe of Power, relata que “Butler não define ‘psíquico’ ou ‘psique’,
mas se concentra na emergência da consciência, mais especifi-
camente, na sua emergência no interior do discurso e da lei” (p.
166) ou, em outras palavras, como o sujeito pode utilizar-se do
fato de ser assujeitado pelo poder e poder exercer esse mesmo
poder como instrumento de questionamento e de libertação. As-
sim:

citable speech remeteria aos discursos ou falas que são exteriores e anteriores
aos sujeitos, mas que são fortes o suficiente para influenciar seus destinos.
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 27

o sujeito é efeito de um poder prévio. Contudo, o poder é tam-


bém a condição do sujeito sem a qual ele não poderia existir
como um agente (e, aparentemente, o sujeito é um agente,
mesmo que esteja imerso nas estruturas de poder). O sujeito
não exerce o poder, ele é efeito da subordinação: em ou-
tras palavras, o sujeito necessita do poder para ser um sujei-
to, e sem o poder não haveria possibilidade nem status de su-
jeito, nem para a agência. O sujeito emerge como o efeito de
um poder prévio que ele também excede, mas o poder tam-
bém age sobre um sujeito que parece anteceder (mas não o
faz) o poder (p. 167).

Resultado: ser sujeito enquanto efeito do poder não


significa um simplório fatalismo mecanicista, uma determinação
insuportável ou uma impossibilidade de questionamento. Ao
contrário, pois a relação do sujeito com as estruturas discursivas e
de poder é ambivalente: ele depende do poder para sua existência
mas, e apesar disso, ele também exerce o poder em suas rela-
ções sociais e pode exercê-las sob formas inesperadas e poten-
cialmente subversivas.
Butler (1997b) se pergunta como e em que direção é pos-
sível lidar com as relações de poder e com as práticas discursivas
pelas quais os sujeitos são produzidos. Uma vez que o sujeito
está em constante processo de construção (apesar de isso ser
ocultado pela ideologia, tal como entendida pela tradição marxiana
– Chauí, 2010), esses processos são passíveis de repetição
(perfomatividade, o que cria a ilusão de coesão) e de nor-
matização e, se são atos performáticos, por consequência,
são passíveis de subversão e questionamento das mesmas
normatizações às quais estão submetidos.
A agência (capacidade de transformação) consiste em
renunciarmos a qualquer pretensão à coerência ou a autoidenti-
dade (tal como supõem a existência de um eu psicológico estável
e coeso), submetendo-nos à interpelação e subversivamente não
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 28

reconhecendo os termos pelos quais somos designados e mesmo


intimidados – a própria linguagem e o discurso são as arenas
políticas de transformação. A ideia de que o sujeito (eu) não é
uma entidade preexistente, essencial, e que nossas identidades
são continuamente construídas significa que as elas podem ser
continuamente reconstruídas sob formas que desafiem e subver-
tam as estruturas de poder existentes.
Respondendo diretamente às questões que iniciaram essa
seção do debate temos que: é possível reformular a pergunta se
as palavras pré-existem aos sujeitos? Respondemos categorica-
mente que não, pois os discursos pré-existem aos sujeitos. Mas a
própria pergunta nos aparenta agora um pouco mal formulada, e
melhor seria questionar como os sujeitos existem por causa das
palavras (dos discursos e das relações de poder); e de que forma
pensar a noção de eu nesse cenário? Respondemos que o eu é
um efeito dos discursos (no sentido foucaultiano), e não sua
origem, mais especificamente, não devemos apenas pensar o eu
(enquanto categoria interna que antecede a ação e revela a
verdade do sujeito), mas sim como agenciá-lo (enquanto exercício
em construção que produz efeitos retroativos de compreensão,
pressões exteriores que delimitam uma interioridade fluida e
performativa).
Isso nos leva a outras inúmeras indagações, dentre as
quais ganha relevância a seguinte: não estaríamos simplesmente
substituindo um radicalismo (psicologismo e suposta autonomia
do pensamento e anterioridade, interioridade e coesão do eu) por
outro radicalismo de cunho sociológico (sujeito enquanto produto
e não como produtor dos discursos)? Como compreender as
variabilidades e as particularidades individuais em uma sociedade
disciplinar que nos impõem discursos, performatividades e subjeti-
vidades?
Essa é uma questão que fica aberta à reflexão. Por hora,
entendemos que uma possível saída para o embate entre auto-
nomia e determinação social é o convite construcionista social da
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 29

análise dos efeitos da produção desses diferentes modos de defi-


nição de eu, encarando essas próprias definições como discursos.
Ou seja, como Gergen (2009) sugere, nos questionar quais são as
implicações para nossas práticas ao pensarmos um eu coerente,
racional e motivado ou ao pensarmos o eu como determinado por
estruturas macrossociais?
Para Gergen (2009), o primeiro modo de definição de eu
fomenta o individualismo, com a valorização de competências
individuais, com modelos de comparação entre as pessoas, em
uma cultura que leva à competição e à busca do desenvolvimento
pessoal em detrimento do cuidado com os relacionamentos. Rela-
cionar-se, nesse modelo, é visto a partir dos benefícios trazidos
para o indivíduo e, em muitos momentos, é avaliado como algo
dispendioso e desnecessário. Já o eu entendido como produto de
estruturas macrossociais externas a ele leva a uma sensação de
impotência e submissão.
Gergen (2009) nos chama a atenção para um outro modo
de definição de eu que tenta escapar desse dualismo. Um eu
constituído nas relações humanas, um ser relacional. Ele propõe
a substituição da discussão sobre um dentro e um fora para um
entendimento das ações relacionamente corporificadas. Pensar
nos relacionamentos não como derivados da noção de um eu,
mas como locus da própria produção da noção de um eu e das
explicações para o que esse eu é ou deixa de ser. Assim, o autor
propõe que tomemos agência pessoal e determinismo como resul-
tado das próprias construções conjuntas entre as pessoas, como
construções desse ser relacional.
Shotter (2012) aponta que o conceito de ser relacional de
Gergen é um conceito não finalizado, vivo, ganhando seu signifi-
cado a partir de seu uso. Considera que pensar eu como uma
confluência do relacionar-se demanda de nós a exploração desse
espaço fluído no qual
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 30

não há ‘coisas’ fixas ou finalizadas que nos conduza, mas ape-


nas vértices de movimentos que fluem em espaços também flu-
idos, com estabilidades dinâmicas ocasionais aqui e ali, depen-
dentes em sua natureza de sua incorporação relational no fluxo
de atividade mais amplo constituindo nosso ao redor (s/p).

Uma definição que chama a atenção para cada uma de


nossas decisões de delimitação entre um fora e um dentro, um
separado e um todo, um dependente e um independente. Por
exemplo, nossa decisão por tomar o eu separado das relações
de poder e olhar para sua mútua influência.
Ao focalizar o processo do fluxo relacional como foco para
a definição de sujeito, Gergen, segundo Shotter (2012), enfatiza
os limites para construção dos sentidos de eu, ao mesmo tempo
em que reconhece a abertura para a evolução dos sentidos.
Portanto, nossas ações não são mais explicadas em si mesmas
(como frutos de intencionalidade ou determinação externa), mas
como parte de um todo do qual fazem parte. Qualquer estabilida-
de ou estrutura é tomada, então, como dinâmica e dependente em
sua própria existência das contínuas atividades relacionais das
quais faz parte. O ser relacional é, portanto, uma alternativa a um
eu submisso a estruturas que o oprimem e a um eu isolado dono
de suas ações. Assim, ninguém pode ser livre, oprimido, diferente
ou igual, sozinho.

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S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 33

Contribuições da teoria do
amadurecimento para o estudo das famílias
homoparentais
Conceição Aparecida Serralha

Entre os movimentos reivindicatórios dos homossexuais


está o do direito de ter filhos e de formar uma família da mesma
forma que as pessoas heterossexuais. Discussões em diversas
áreas têm evidenciado a legitimidade desse direito e abordado os
conflitos gerados em razão dos diferentes caminhos que acabam
sendo utilizados para a constituição da família.
O presente capítulo, visando contribuir para o tema, tem
por objetivo estudar a família homoparental no tocante aos efeitos
desta na constituição psíquica da criança que nasce e cresce
dentro dela, a partir da teoria do amadurecimento humano e da
teoria da sexualidade de D. W. Winnicott. Propõe refletir sobre o
lugar e a elaboração dos papéis de cada membro do casal paren-
tal e o desempenho desses papéis em relação à satisfação das
necessidades da criança.
Para tanto, são considerados os textos do próprio
Winnicott e de autores estudiosos de sua obra na atualidade. A
discussão evidencia a importância do ambiente facilitador para a
constituição de um eu amadurecido e de como a qualidade
facilitadora desse ambiente depende do bom desempenho dos
papéis parentais, desempenho que pode prescindir do gênero da
pessoa que o desempenha, mas não de suas características de
confiabilidade e capacidade de sustentação e manejo.

Família e homossexualidade
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 34

A homossexualidade, ao ser considerada, a partir de


1973, uma orientação sexual e não mais uma patologia, ou seja,
ao ser considerada uma possibilidade não patológica de atração
sexual e sentimental de uma pessoa por outra do mesmo sexo,
fez deslanchar movimentos reivindicatórios das pessoas com essa
orientação, entre estes o direito de ter filhos e de formar uma
família. As principais discussões em diversas áreas têm evidenci-
ado a legitimidade desse direito e abordado os conflitos gerados
em razão dos caminhos utilizados para a constituição da família,
que podem ser por meio de adoção, inseminação artificial, barriga
de aluguel ou filhos de relacionamentos heterossexuais anteriores
(Palma, 2011).
A proposição de contribuir para o tema a partir da teoria
do amadurecimento humano de D. W. Winnicott e, dentro desta,
da teoria da sexualidade sistematizada por Loparic (2005), busca
estudar a composição da família homoparental no tocante aos
seus efeitos na constituição psíquica da criança, que nasce e
cresce dentro dela: o lugar e a elaboração dos papéis de cada
membro do casal parental e o desempenho desses papéis em
relação à satisfação das necessidades da criança.
Antes de prosseguir, contudo, tornam-se essenciais
alguns esclarecimentos. O primeiro é de que como Winnicott não
escreveu sobre o tema especificamente, este trabalho delineia
uma visão possível com base na teoria legada por ele. O segundo
é que, da mesma forma que as pessoas consideradas hete-
rossexuais não constituem um grupo homogêneo em termos de
constituição de Eu e potencialidades, a referência às pessoas
homossexuais, neste estudo, também as considera pertencen-
tes a um grupo heterogêneo, composto por pessoas com raízes
diferentes para sua identidade homossexual e constituições
diferenciadas em termos de integração do Eu. Conforme evidencia
Roudinesco (2003), tratam-se de pessoas com uma prática sexual
marcada pela diversidade, que é referida como “homossexuali-
dades, (...) um componente multiforme da sexualidade humana”
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 35

(p. 185). Sendo assim, são pessoas com possibilidades diferentes


também de exercício dos papéis parentais. Por fim, que a análise
realizada leva em conta a homoparentalidade em relação a crian-
ças no início da vida, ou bem próximo deste, e não a crianças
adotadas com mais idade. Outrossim, independente das várias
motivações para a adoção, o estudo tem por objeto o que mais se
possa aproximar de casais homoafetivos que desejam ter filhos e
formar uma família.

A homoparentalidade

O termo homoparentalidade surgiu na França em 1996,


cunhado pela Associação dos Pais e Futuros Pais Gays e
Lésbicas (APGL) e passou a designar a situação de conjugalida-
des homossexuais que possuem filhos (Roudinesco, 2003). Mes-
mo que haja uma crítica ao uso desse termo, por associar o
cuidado oferecido aos filhos com a orientação sexual dos pais,
como relatam Zambrano, Lorea, Mylius, Meinerz e Borges (2006),
o seu uso evidencia uma situação que se apresenta e reclama
por reconhecimento social. Além disso, por ser o termo que vem
sendo mais utilizado pelos estudiosos (Jurado, 2013; Paiva &
Rodriguez, 2009; Palma, 2011; Passos, 2005; Uziel, 2007; Zam-
brano et al., 2006), mantê-lo permite uma comunicação clara, sem
grandes equívocos no que concerne à discussão que é a tônica
do momento em relação à criação de filhos, ou seja, se casais
compostos por pessoas do mesmo sexo conseguem oferecer o
ambiente e exercer as funções ou papéis que a criança necessita
para bem se desenvolver.
Quando analisamos um grupo familiar constituído por pais
do mesmo sexo, assim como de pais heterossexuais com proble-
mas de infertilidade, além de todas as questões relacionadas à
impossibilidade de gerar um filho de ambos, eles precisam
encontrar uma forma de gerar esse filho que os ameace menos;
em outras palavras, que não lhes traga uma instabilidade
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 36

emocional e psíquica. Entretanto, qualquer que seja essa escolha,


haverá sempre permeando esse desejo de ter um filho, uma
incompletude, uma impossibilidade de gerar e um terceiro,
uma vez que o casal depende de um outro para realizar esse pro-
jeto de ter o filho (Passos, 2005).

Esse outro que permanecerá no imaginário da família, com o


qual os pais precisam conviver, se interpõe na formação dos
laços afetivos com os filhos de modos diferentes, dependendo
de como ele é assimilado/elaborado por esses pais. Algumas
vezes, o outro imaginário toma a forma de uma figura que se
superpõe aos pais. Outras vezes, aparece como sombra enig-
mática que acompanha e perturba o reconhecimento dos filhos,
podendo ainda ser assimilado como elemento sem o qual a fili-
ação não existiria (Passos, 2005, p. 35).

Além disso, no caso de uma família formada por pais do


mesmo sexo, deve-se considerar sua composição interna, que
comumente apresenta ausência de papéis e lugares fixos entre os
membros e inexistência de hierarquias, possibilitando diferentes
referências de autoridade (Passos, 2005), o que não quer dizer
ausência de conflitos. Há de se considerar, contudo, que mesmo
entre pais heterossexuais essas questões podem estar presentes,
uma vez que o arranjo familiar e o desempenho dos papéis paren-
tais sofrem influência do contexto sócio-histórico-cultural e dos
recursos pessoais de cada indivíduo, não sendo pré-determinados
pelo gênero de cada membro.
Sem menosprezar todas essas características que podem
complicar a parentalidade, mas colocando-as em suspensão,
questiona-se como a família homoparental pode ser pensada a
partir da teoria do amadurecimento emocional de Winnicott; como
pode ocorrer o amadurecimento pessoal e, dentro deste, a consti-
tuição da identidade sexual da criança que nasce e cresce em
meio à homoparentalidade?
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 37

Ao se empreender uma revisão de literatura, nota-se que


o estudo da homoparentalidade imerso na teoria do amadureci-
mento de Winnicott (1990; Dias 2012) é um trabalho bem mais
recente do que o estudo da homoparentalidade a partir de outras
visões, como, por exemplo, da Psicologia Social e relações de
gênero (Palma, 2011; Passos, 2005; Uziel, 2007; Zambrano et al.,
2006). Dois estudos que buscaram o auxílio da teoria winnicottia-
na para compreender as possibilidades da homoparentalidade
foram os de Rodriguez e Paiva (2009) e Jurado (2013). Rodriguez
e Paiva apontaram a importância dada por Winnicott à qualidade
do vínculo que deve ser estabelecido entre os membros do casal
parental e a criança – que geralmente está presente no lar comum
e não em um lar especializado –, ao justificarem a potencialidade,
para o desenvolvimento da criança, também do casal homoparen-
tal que consegue estabelecer um bom vínculo. Jurado, por sua
vez, conduz seu estudo a partir da importância dos cuidados
materno e paterno proposta por Winnicott (1990), e do
entendimento deste de que o bebê também pode ser bem
cuidado por pessoas – que não os pais biológicos –, que exerçam
esses papéis e, em especial, o papel materno suficientemente
bem. Contudo, nenhum dos estudos aprofunda sobre aquilo que
pode ser o fundamento do bom vínculo ou do desempenho desses
papéis, como é pretendido neste texto, ou seja, nenhum dos estu-
dos considera a teoria dos elementos feminino puro e masculino
puro de Winnicott (1994a), na base do exercício dos papéis
parentais e das relações que se estabelecem, quer se tratem
de casais homo ou heteroafetivos.

A teoria do amadurecimento e a homoparentalidade

De acordo com Winnicott (1990a), para a constituição de


um eu amadurecido integrado em uma unidade, o indivíduo, no
início, necessita de um ambiente capaz de favorecer o
desenvolvimento de suas tendências herdadas, que lhe permita
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 38

SER, “sem ter que tomar conhecimento do ambiente” (p. 151).


Nesse momento inicial, o ambiente favorecedor de uma
continuidade do ser sabe que o indivíduo ainda não tem condições
de perceber o ambiente e mais, que ainda não existe um self
individual que consiga “discriminar entre o Eu e não-Eu” (p. 153).
Na teoria do amadurecimento de Winnicott, descreve-se o
ambiente integrado de vários ambientes específicos (humano,
não-humano, físico, objetivo, subjetivo, interno, externo, materno,
paterno, familiar e social), que não podem existir independentes
uns dos outros, pois eles não são uma soma de ambientes não-
integrados, mas um inter-relacionamento fundamental de círculos
maiores que se abrem gradualmente, e que fornecem ao indivíduo
a possibilidade de ser. No entanto, no início da vida, o ambiente
que se ressalta é o ambiente constituído pelos cuidados e pelo
modo de relação da mãe com o seu bebê, que depois, com o
desenvolvimento, se amplia para outras relações (Araújo, 2011).
O ambiente inicial, ao ser constituído pela pessoa que exerce o
papel de mãe, fornece diretamente os cuidados necessários ao
bebê, em razão de sua identificação com este, possibilitada por
um suficiente potencial de “elemento feminino puro”, ou seja, do
elemento feminino não relacionado ao gênero feminino dessa
pessoa, particularmente, não relacionado às suas funções corpó-
reas ou aos instintos.
A identificação da mãe com o bebê promove a identifica-
ção primária do bebê com a mãe – ser a mãe-que-cuida (Loparic,
2005, p. 343) –, que, na verdade, não é ainda percebida pelo bebê
como externa a ele, podendo-se dizer que o bebê se identifica
primariamente consigo mesmo, uma vez que ele e a mãe são um.
A partir dessa condição de unidade, o bebê resolve as tarefas
relativas à constituição de uma identidade pessoal: inserir-se no
tempo e no espaço, alojar-se em um corpo e passar a se relacio-
nar com outras pessoas e com o mundo à sua volta. Desse modo,
ele se torna real, no sentido de poder existir como um sujeito
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 39

objetivo, separado do ambiente, sendo capaz de ser impulsivo


e de fazer coisas (Loparic, 2005).
Na teoria do amadurecimento pessoal, segundo Winnicott
(1994a), deve-se aceitar a existência de “um elemento masculino
e um elemento feminino tanto em meninos e homens, como em
meninas e mulheres” (p. 139), que nada têm a ver com o sexo
biológico desses indivíduos. Em suas palavras,

(...) na saúde, há uma quantidade variável de elemento menina


em uma menina, ou um menino [...] de maneira que facilmente
seria possível encontrar um menino com um elemento de me-
nina mais forte do que a menina parada ao lado dele, a qual
pode possuir menos potencial de elemento feminino puro (Win-
nicott, 1994a, p. 142).

Se o amadurecimento segue facilitado pelo ambiente,


segundo Dias (2012), os elementos masculino e feminino, por sua
natureza, “não são alvo de repressão”. Entretanto, caso essa
facilitação não ocorra, principalmente em razão de intrusões
ambientais, pode ocorrer de eles ficarem “cindidos da perso-
nalidade total” (p. 273), como no caso FM apresentado por
Winnicott, em 1966, em artigo lido perante a Sociedade Psicanalí-
tica Britânica (Winnicott, 1994a).
A presente exposição, portanto, parte do pressuposto de
que, quer sejam casais heteroafetivos, quer sejam casais homoa-
fetivos, o que vai prevalecer como fator de facilitação para o
amadurecimento do bebê, inicialmente, será o potencial de
elemento feminino puro que possa existir integrado no si-mesmo
de um dos membros do casal, suficiente para o bom desempenho
do papel materno, bem como do elemento masculino puro
também integrado no si-mesmo do outro membro, que será
necessário para o bom exercício do papel paterno, na
sequência do desenvolvimento da criança. Ressalta-se que,
mesmo que o casal homoafetivo, ou heteroafetivo, flexibilize esses
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 40

papéis, com um membro substituindo o papel do outro quando


necessário, para o bebê é muito importante que um dos membros
permaneça como referência no exercício de um dos papéis, ainda
que isso só possa ser percebido por ele com o decorrer do seu
amadurecimento pessoal.
Para Winnicott (1990a), uma das necessidades iniciais do
bebê para o seu desenvolvimento é a monotonia – entendida
como uma rotina adequada ao grau de amadurecimento do bebê
no momento – e a continuidade do cuidado: “a simplicidade e a
constância da técnica podem ser dadas apenas por uma pessoa
que esteja agindo naturalmente” (p. 132; itálicos meus). Assim,
pensar em situações como as referidas por Roudinesco (2003),
em que “duas mães, das quais uma desempenharia o papel de
pai, ou dois pais dos quais um se disfarçaria de mãe” (p. 198;
itálicos meus), jamais poderia atender às necessidades de um
bebê. Ser cuidado por mais de uma pessoa, cujos modos de
cuidar sejam artificiais e diferentes, vai exigir muito mais do bebê.
O cuidado específico de uma única pessoa com “interesse de
mãe”, já traz em si a variabilidade que o bebê consegue lidar no
início da vida.
De acordo com Winnicott (1994a), a condição primitiva
de SER do bebê, ou o desenvolvimento do potencial de elemento
feminino puro deste, possibilitado pelo elemento feminino puro da
mãe, é básica para que o bebê conquiste, posterior e gradativa-
mente, a autodescoberta, o senso de existir, a capacidade de
desenvolver um interior, ser capaz de utilizar os mecanismos de
projeção e introjeção e se relacionar com o mundo em termos
desses mecanismos, relação que já indicaria a mistura dos
elementos feminino e masculino. O elemento feminino puro
“relaciona-se com o seio (ou com a mãe) no sentido de o bebê
tornar-se o seio (ou a mãe), no sentido de o objeto é o sujeito” (p.
140). Já o elemento masculino puro “circula em termos de um
relacionamento ativo ou de um passivo deixar-se com ele relacio-
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 41

nar, com cada uma das atitudes sendo respaldada pelo instinto”
(p. 139).
Winnicott se sentiu muito enriquecido quando se permitiu
pensar esses conceitos de elementos femininos e masculinos
pertencentes a cada menino e a cada menina. Segundo ele,

Isto me fez ver que os termos ‘ativo’ e ‘passivo’ não têm valida-
de nesta área. Ativo e passivo são duas facetas da mesma coi-
sa em termos de algum outro tipo de consideração que vai mais
fundo e que é primitiva. Em uma tentativa de formular isto, en-
contrei-me na posição de comparar ser com fazer. No extremo
dessa comparação, descobri-me examinando um conflito es-
sencial dos seres humanos, um conflito que já deve ser operan-
te em data muito inicial, o conflito entre ser o objeto que tem
também a propriedade de ser e, por contraste, uma confronta-
ção com o objeto que envolve uma atividade e um relaciona-
mento objetal respaldados pelo instinto ou pulsão (1994a, p.
149).

No âmbito da redescrição dos relacionamentos objetais


por Winnicott, são encontradas relações com objetos que favore-
cem o amadurecimento, como as relações com objetos
transicionais, que propiciam o encontro com a externalidade e o
princípio da identidade pessoal, que se distinguem das relações
com objetos que provêm da satisfação instintual como encontra-
dos em Freud e Klein (Loparic, 2005, nota p. 324). Winnicott nos
apresenta, assim, uma teoria “suplementar à instintualidade,
baseado no estudo das propriedades de dois diferentes modos
de relacionamento com outras pessoas – a identificação e a
objetificação” (Loparic, 2005, p. 338).
Desse modo, na identificação, embora pareça inadequado
falar em “relacionamento”, já que, como dito anteriormente, nesse
momento inicial bebê e objeto são um só, Winnicott mantém o
termo para se referir ao “relacionamento objetal do elemento femi-
nino puro” que estabelece a mais simples experiência, a da identi-
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 42

dade inicial do bebê (SER), “que precisa de um seio que é”.


Contrastando com esse relacionamento, Winnicott vai se referir ao
“relacionamento objetal do elemento masculino com o objeto”,
para o qual já deve ser pressuposto que o bebê já sente separado
o Eu do Não-Eu (1994a, p. 140). Esse relacionamento tem por
base os impulsos instintuais e a necessidade que o bebê tem de
FAZER. “O fazer, [...] deve vir depois e sobre o ser” (Dias, 2012, p.
273).
Desse modo, ser uma pessoa capaz de fornecer suficien-
temente bem o elemento feminino, ou seja, ser uma pessoa com
suficiente potencial de elemento feminino puro integrado capaz de
favorecer que o bebê possa desenvolver o seu próprio potencial
de elemento feminino puro é uma questão bastante sutil de mane-
jo é uma questão bastante sutil de manejo. Para Winnicott
(1994a),

Ou a mãe tem um seio que é, de maneira que o bebê também


possa ser, quando bebê e mãe ainda não se acham separados
na mente rudimentar daquele, ou então a mãe é incapaz de
efetuar esta contribuição, caso em que o bebê tem de desen-
volver-se sem a capacidade de ser ou com uma capacidade
prejudicada de ser (p. 141).

Winnicott permite aos analistas compreender que, muitas


vezes, estes têm que lidar, na clínica, com pessoas que, quando
bebês, tiveram de se safar de uma identidade com um seio de
elemento masculino, ativo, e que não foi satisfatório para uma
identidade inicial que necessitava de um seio que é, e não de um
seio que faz. Segundo Winnicott (1994a), “ao invés de ‘ser como’,
este bebê tem que ‘fazer como’, ou deixar que lhe seja feito, o
que, desse nosso ponto de vista aqui, constitui a mesma coisa”,
ou seja, “fazer como” ou “deixar que lhe seja feito” evidencia,
nesses casos, a presença de elemento masculino puro extempo-
raneamente (p. 141).
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 43

Embora acreditando que a mãe biológica fosse a pessoa


melhor preparada para a tarefa de maternagem, Winnicott (1994b)
sabia que isso poderia não ocorrer: a mãe poderia faltar, ou
poderia não estar com saúde suficiente para entrar em um
estado em que lhe fosse possível identificar-se com o bebê e, ao
mesmo tempo, fornecer a este os cuidados de que necessita.
Também, em condição semelhante poderia ser incluída a mãe
que, até por fatores hereditários, não tivesse suficiente potencial
de elemento feminino puro para essa tarefa.
Levar em consideração fatores hereditários nesse ponto,
se torna importante ao se recordar três proposições do texto
winnicottiano. A primeira, já citada anteriormente, diz: “Em nossa
teoria, é necessário aceitar-se a existência de um elemento
masculino e um elemento feminino, tanto em meninos e homens,
como em meninas e mulheres” (Winnicott, 1994a, p. 139). A se-
gunda se refere à quantidade variável desses elementos em uma
menina, ou menino, sobre a qual ele disse: “Elementos de fator
hereditário também ingressam nisso, (...)” (p. 142). A terceira e
última, trata-se da proposta de Winnicott de ser possível que a
experiência de “fracasso atormentador do seio como algo que É”
produza uma criança “cujo self ‘feminino puro’ é invejoso do seio”
(p. 141), indicando a existência de um potencial hereditário de
elemento feminino puro no bebê que pode ser desenvolvido,
bloqueado ou distorcido pelo modo como ele é cuidado. Contudo,
apesar de Winnicott se referir a fatores hereditários, o hereditário
para ele nem sempre estava relacionado ao biológico, como no
tocante à “experiência de ser”, que é “o que é passado de uma
geração para outra, por via do elemento feminino de homens e
mulheres e dos bebês do sexo masculino e feminino” (p. 140).
Desse modo, a convicção de Winnicott em relação ao
exercício da maternagem era de que, para o bebê, é vital que
outra pessoa possa exercê-la caso a mãe esteja impossibilitada.
Em 1956, Winnicott escreveu que a “(...) mãe adotiva, ou qualquer
mulher que possa ficar doente no sentido de apresentar uma
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 44

‘preocupação materna primária’, pode ser capaz de se adaptar


suficientemente bem, por ter alguma capacidade de se identificar
com o bebê” (Winnicott, 2000, p. 404), o que, para Winnicott, quer
dizer possuir elemento feminino puro integrado suficiente para ser
e deixar que o bebê seja. Nesse sentido, torna-se plenamente
possível que também o homem, cujo potencial de elemento femi-
nino puro integrado seja suficiente para isso, possa exercer bem o
papel materno. Conforme Dias (2012),

Existem casos, [...] em que os homens são mais maternos que


suas mulheres, e há relatos clínicos em que a aptidão do pai
para o cuidado materno amenizou falhas ambientais, devidas a
uma patologia da mãe [caso Sally], e salvou a criança de dis-
túrbios que poderiam ter sido ainda mais graves do que os que
realmente advieram (p. 135).

Entende-se que, se houver esse membro no casal homoa-


fetivo, com suficiente integração do potencial de elemento femini-
no puro, permitindo que o bebê possa SER, ao outro membro será
importante o fornecimento do apoio necessário nesse momento e
que possa aparecer, para o bebê, posteriormente, como “o
primeiro vislumbre que a criança tem da integração e da totalidade
pessoal”, podendo ser usado como padrão para a própria
integração do bebê, em razão do suficiente potencial de elemento
masculino puro integrado dessa pessoa (Winnicott, 1994c, p. 188).
Caso isto não ocorra, o bebê terá de alcançar essa integração de
uma forma muito mais difícil, a menos que ele possa contar com
uma relação com outra pessoa total. E isso não é diferente no
caso de casais heteroafetivos em que essas necessidades do
bebê não estejam sendo atendidas. Nesses casos, será muito
importante que ele possa contar com uma pessoa do ambiente
mais amplo como uma avó, um irmão, um tio, uma vizinha, ou
vizinho, entre outros.
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 45

No tocante à identidade sexual, Winnicott (1994a) alerta


para a consideração da bissexualidade presente na fantasia e da
capacidade da criança de se identificar com qualquer um dos
membros do casal parental, o que será dependente da relação
que se estabelecer entre eles. Para ele, o principal fator determi-
nante dessa identidade é o sexo desta pessoa pela qual a criança
esteja apaixonada no intervalo entre o desmame e o período de
latência (1990, p. 66). Vale lembrar que o casal homoparental não
é um casal isolado. Seus membros possuem família e amigos. Da
mesma forma que o filho de pais heteroafetivos pode vir a se iden-
tificar com um tio, uma babá, um avô, entre outras pessoas, o filho
de um casal homoafetivo também pode vir a se identificar com
pessoas externas ao casal.
De acordo com Roudinesco (2003), “todos os pais têm o
desejo de que seus filhos sejam ao mesmo tempo idênticos a eles
e diferentes” (p. 195). E as declarações dos homossexuais,
relatadas por ela, referem os sentimentos destes quanto à
necessidade de “dar aos filhos por eles criados uma representa-
ção real da diferença sexual” (p. 198).
Assim, a questão da identificação sexual não pode ser
simplificada e sequer garantida somente a partir do desejo apon-
tado por Roudinesco (2003). Winnicott se referiu à dificuldade que
uma criança pode vir a ter, nesse processo, caso ela constitua
uma identidade sexual diferente de sua constituição anátomo-
biológica. O processo de elaboração imaginativa, que unifica,
organiza, prepara a satisfação e permite o controle dos instintos,
será muito mais dispendioso para a criança, nesses casos, do que
se o desenvolvimento de sua sexualidade for predominantemente
congruente com a referida constituição. Contudo, para Winnicott
(1990a), qualquer que seja a identidade sexual alcançada pela
criança, esta será de grande valor social se o desenvolvimento do
caráter dessa criança for satisfatório em outros aspectos, que têm
a ver com a forma como Winnicott define esse conceito. Ele o
entende como “uma manifestação de integração bem sucedida”,
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 46

que se estabelece sobre “a base de um desenvolvimento contí-


nuo” (1990b, p. 185), o que será dependente do fornecimento dos
elementos feminino puro e masculino puro dos membros do casal
parental. Antes do desmame há todo um caminho maturacional a
ser percorrido pela criança, que independe do gênero de seu
cuidador, mas que é básico para a autonomia do bebê, para que o
próprio bebê comece “a agir sobre os objetos externos, separados
dele e constituídos devido aos impulsos efetivos de destruir
objetos subjetivos (Loparic, 2005, p. 349).
Como sintetiza Loparic (2005), a sexualidade humana
adulta resulta de um processo de amadurecimento que parte de
duas raízes diferentes: “umas instintuais, amparadas nas funções
corpóreas ou no gênero (sexo biológico) e outras, relacionais,
concebidas exclusivamente no contexto de relacionamentos inter-
pessoais estabelecidos tanto pelo si-mesmo verdadeiro como pelo
si-mesmo falso” (p. 341). As aquisições principais desse processo
seriam a elaboração imaginativa de todos os instintos, bem como
sua integração “no si-mesmo e nas relações interpessoais duais,
triangulares ou múltiplas, [que terminam] por estabelecer a sexua-
lidade como o tipo instintual dominante na fase adulta, e [...] o
desenvolvimento de características sexuais não fundadas
biologicamente, decorrentes de inter-relacionamentos de dife-
rentes tipos” (p. 315-316). Nesse sentido, também pode ser
compreendida a atração de uma pessoa por outra do mesmo
sexo, cuja origem pode não ter a ver com uma identificação sexual
com o sexo oposto, mas sim com tantos outros tipos de
identificação possíveis, atração que, nos tempos atuais,
denomina-se orientação sexual.
Assim, a elaboração imaginativa integradora possibilitada
pela capacidade de SER, que por sua vez é desenvolvida pelo
apoio do elemento feminino puro integrado do membro parental,
deve ser seguida pelo FAZER, possibilitado pelo elemento mascu-
lino puro integrado, que, na teoria winnicottiana da sexualidade,
consiste na “execução de ações que resultam na satisfação instin-
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 47

tual e asseguram a manutenção no contexto das relações inter-


pessoais – e não apenas as fantasias sexuais” (Loparic, 2005, p.
335). Esse processo faz emergir conflitos, que devem ser
compreendidos como um problema humano universal constituído
pela oposição entre ser e fazer, pertencente à acontecencialidade
da natureza humana, e:

que decorre da incompatibilidade entre a tendência para inte-


gração por identificação primária, definitória da natureza huma-
na e inerente à experiência de ser, e a tendência, igualmente
presente nessa natureza, para a desintegração – perda da in-
tegração resultante da identificação primária – por objetificação,
característica essencial do fazer. Muito mais do que o desma-
me, o que dói no ser humano é a necessidade de reconhecer
que, devido à estrutura temporal do seu existir, depois de expe-
rienciar a identidade total com o real, base inicial da sua capa-
cidade de existir, ele terá que passar, para poder continuar
existindo, pela experiência da diferença total. Dito de outra ma-
neira, o seu dilema básico é insolúvel. Não havendo meios de
ser resolvido, pode ser esquecido ou, então, assumido e supor-
tado, isto é, tolerado” (p. 450-451).

Se esse conflito essencial se exacerba, podem surgir


patologias em razão da alteração brusca do ambiente que passa
“do estado de ser-o-bebê ou a criança para o estado fazedor com
esta” (Loparic, 2005, p. 352). A tensão inerente a esse conflito
entre diferentes modos de existir que o ser humano terá que su-
portar durante sua vida, não pode ser creditada às diferenças
entre o masculino e o feminino, mas, de acordo com Loparic,
“essa tensão é decisiva para a constituição da masculinidade e da
feminilidade (p. 354).

Considerações Finais
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 48

O delineamento proposto e realizado neste capítulo


permite-me inferir que a homoparentalidade não é um problema
em si para a constituição de um si-mesmo integrado e amadureci-
do em uma criança, e muito menos do desenvolvimento de sua
sexualidade. Desde Freud, em Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade, de 1905, várias reflexões vêm sendo realizadas por
diversos autores, tanto dentro da psicanálise como fora dela,
sobre o êxito e o fracasso desses processos, apontando
principalmente os fatores que os dificultam e os distorcem, mesmo
em famílias com pais heterossexuais. Assim, parece-me plausível
sugerir que problemas nessa área, que possam surgir em famílias
homoparentais, nem sempre vão diferir daqueles encontrados na
heteroparentalidade, já que, a partir do exposto ao longo deste
capítulo, esses processos são basicamente dependentes dos
potenciais de elemento feminino puro e masculino puro que os
membros desses casais possam apresentar desenvolvidos e
integrados em seu si-mesmo, de suas características de
confiabilidade e capacidade de sustentação e manejo. Embora
esses potenciais e características não sejam suficientes para de-
terminar esta ou aquela identificação ou orientação sexual, são
elementos básicos para isso.
Por outro lado, a preocupação específica da sociedade
no tocante à orientação, ou mesmo identificação sexual, que a
criança constituiria ao nascer e crescer sob os cuidados de um
casal homoparental, aparece sob a égide de preconceitos acerca
desse tipo de união, que tenderia a influenciar – negativamente –
para a homossexualidade, como apontado por Costa (2004).
Entretanto, presume-se que, se a sociedade evoluiu no sentido de
aceitar a existência de diferentes formas de expressão e exercício
da sexualidade, o receio e a preocupação de que a criança se
torne identificada ou orientada homossexualmente não deveriam
existir ou prevalecer, mas sim a preocupação de que ela possa ter
dificultada a sua continuidade de ser no sentido da sua maturida-
de pessoal e social. Os registros oficiais de cuidados homoparen-
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 49

tais são muito recentes e pouco numerosos, bem como o são os


estudos científicos sobre estes. Assim, novos estudos com o tem-
po poderão corroborar delineamentos como este ou refutá-los,
mas, sobretudo, fazer emergir novos questionamentos.

Referências

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S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 51

Pedofilia, pedófilos e pedofilização social:


Apagamentos ideológicos e novas
perspectivas de compreensão
Rafael De Tilio

Os monstros estão entre nós (?)

Recentemente, e desde algum tempo, as diversas


modalidades de mídias têm informado o público leigo sobre o
(suposto) vertiginoso crescimento de um tipo de relação sexual
envolvendo adultos e crianças/adolescentes considerado execrá-
vel, a pedofilia, ato sexual sempre cometido sem consentimento e
a contragosto das vítimas, destacando os perigos e as
consequências que tais atos ocasionam na sociedade (Landini,
2003; Todos..., 2013).
Alguns desses referidos perigos são as possibilidades da
destruição e traumatização (física e psicológica) da infância, a
monstruosidade sem limites que esse ato representa, as múlti-
plas doenças ou distorções psicológicas e morais que acometem
os agressores sexuais de crianças, a violência inerente ao ato,
entre outros, motivos suficientes para a criação em 2013 pela
Polícia Civil Paulista de um cadastro de pedófilos (Feltrin, 2013),
a fim de melhor controlar os acometidos por essa “doença”.
Os pedófilos parecem estar por toda a parte: nas escolas
e nas igrejas (instituições antes responsáveis por proteger a infân-
cia e as crianças) e nas esquinas, sempre espreitando suas
potenciais vítimas. Enfim, são múltiplas as vozes que atentam
para a necessidade da extinção tanto da pedofilia quanto do
pedófilo. Apesar de não existir dados estatísticos precisos,
levantamentos da Organização Mundial da Saúde apontam que
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 52

cerca de 30% das crianças no mundo já sofreram, sofrem ou


sofrerão vitimações sexuais (Pfeifer & Salvagni, 2005).
Mas, afinal, o que é um ato de pedofilia? O que faz um
sujeito um pedófilo? Por que excessiva ênfase no agente? De que
maneira – se é que isso acontece – as próprias vítimas e, de
modo geral, a sociedade podem estar relacionadas e, segundo
Felipe (2006), corroborar com a ocorrência desse fenômeno?
Toda relação sexual envolvendo adultos e crianças/adolescentes
são atos declarados de abuso ou violência sexual?
São tantas as questões que podem ser levantadas que é
necessário repensar a complexidade dos conceitos e práticas
concernentes a esse fenômeno. Assim, o objetivo principal deste
capítulo é o de investigar como ocorrem e para onde apontam as
recentes investigações da literatura especializada sobre o tema
acerca da figura do pedófilo e da pedofilia.
Neste sentido, é proposto que a ênfase da pedofilia como
ato individual e individualizado (resultado de predisposições bioló-
gicas, desordenamento das pulsões sexuais, desarranjos neuro-
químicos, traumas infantis variados ou específicos – ter sido
vitimado sexualmente – etc.) na realidade participa e é resultado
da estratégia ideológica que, típica das sociedades modernas de
cunho de produção capitalista, pretende des-historicizar e
descontextualizar os fenômenos sociais. Ou seja: a individua-
lização da pedofilia é uma explicação recorrente, mas não
suficiente diante da complexidade do tema.
Isso posto, o conceito de pedofilização como prática social
contemporânea pode ser muito útil para reinserir, no que tange à
construção da pedofilia e do pedófilo, as influências e participa-
ções do contexto social no entendimento desse fenômeno. É im-
portante destacar que com essa contribuição não se pretende
sugerir a desrresponsabilização daqueles que abusam ou vitimam
sexualmente crianças/adolescentes nem também normatizar
essas práticas sugerindo que as crianças em todas as situações
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 53

podem prestar livre consentimento em participar de relações


sexuais com adultos ou com outras crianças/adolescentes.
Para Waites (2009), o questionamento sobre a idade de
consentimento das crianças/adolescentes em relações sexuais
não violentas (safe sex) pode ser objeto de apreciação social,
dado que no mundo contemporâneo a existência da sexualidade
infanto-juvenil e suas manifestações são dadas como certeiras,
mas há inconclusões sobre a idade/momento a partir da qual se
pode afirmar que a criança/adolescente passa a compreender
plenamente as consequências das suas escolhas e atos, inclusive
os sexuais. Assim, diante disso, na impossibilidade de estimar
com precisão a inexistência de prejuízos e danos (físicos e psico-
lógicos) quando da participação de crianças/adolescentes em
relações sexuais, o mais prudente é protegê-las, garantindo-lhes
direitos. Por isso, para Waites (2009), a idade de consentimento
regulamentada por lei é necessária porque

(...) a razão para haver uma idade de consentimento não é que


os riscos são maiores quando se está abaixo de uma idade par-
ticular, ou que eles possuem um impacto uniforme ou que eles
não podem ser negociados com sucesso entre os envolvidos;
mas sim que é necessário estabelecer limites etários que afe-
tem coletivamente os mais jovens, particularmente os mais vul-
neráveis (p. 234)3.

Assim, a intenção deste capítulo é simplesmente inserir


novas perspectivas de compreensão sobre o fenômeno da pedofi-
lia que, partindo dessa proposição, não pode ser completamente
compreendido se reduzida às expressões e elementos
individuais, seja do suposto agressor, seja da suposta vítima.
Neste sentido, pode-se adiantar que a pedofilia e as relações
sexuais envolvendo adultos e crianças/adolescentes é um campo

3 Tradução livre.
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 54

de estudos no qual entrecruzam relações de gênero, relações


etárias (relações sexuais intergeracionais), afetos, representações
da sexualidade e práticas que incluem a violência.
É significativa a literatura nacional e internacional sobre
esses temas, e muitas são as abordagens teóricas que pretendem
compreender e circunscrever esses fenômenos; sem desejar
esgotar o campo de possibilidades teóricas e de investigação
sobre as relações sexuais entre adultos e crianças/adolescentes,
posto que estão articulados, didaticamente, pode-se restringir a
três as ênfases investigativas, a saber:
(i) Estudos sobre a evolução histórica do conceito e das
práticas de pedofilia, pederastia, violência sexual e relações
sexuais intergeracionais, naquilo que se convencionou denominar
de história social da sexualidade;
(ii) Estudos sobre as representações sociais dos
envolvidos (principalmente das vítimas e seus familiares, agentes
institucionais e organizacionais que combatem tais práticas, etc.) e
agressores (em menor grau) sobre as possíveis causas, tipologias
e consequências deste fenômeno – neste eixo, é importante
destacar que são poucos os estudos diretamente realizados com
os denominados agressores sexuais de crianças/adolescentes, os
denominados pedófilos, sendo que as representações sobre
pedofilia quase sempre ou são relatados pelas vítimas e seus
familiares ou por profissionais da saúde;
(iii) Estudos acerca da terapêutica, isto é, que
pretendem tanto compreender os motivadores (psicológicos,
biológicos, sociais) da pedofilia, da violência sexual e das relações
sexuais intergeracionais quanto desenvolver estratégias de
intervenção para diminuir ou cessar sua ocorrência. Assim, é
importante apresentar, mesmo que sucintamente, os principais
argumentos destes três eixos de compreensão das relações
sexuais que envolvem adultos e crianças/adolescentes.
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 55

Primeira ênfase: História social da sexualidade e a


construção moderna da pedofilia

Relativo aos estudos teóricos sobre a história social da


sexualidade é significativo esclarecer que a argumentação sobre a
sexualidade das ou envolvendo crianças e adolescentes não se
desvincula da construção da ideia moderna de sexualidade e
família (Flandrin, 1988; Foucault, 1997).
É durante os séculos XVIII e XIX que a sexualidade foi
reconfigurada em termos discursivos e práticos como sendo uma
vivência restrita à esfera da domesticidade do ambiente familiar,
restrita à função procriativa biológica (de novas crianças) e
replicadora (de papéis sociais e de comportamentos), tendo na
família nuclear seu principal emblema e guardião. Fundamental
neste processo é a reordenação da vivência da sexualidade, prin-
cipalmente no que se refere às figuras da mulher/mãe (que deve
ser casta, bondosa, fiel, cuidadosa do marido e dos filhos
advindos do casamento) e do homem/pai (provedor do lar e
zeloso dos seus dependentes) que tinham no casamento a
legitimação da vivência sexual.
Assim, mulheres e crianças não deveriam viver suas
sexualidades e manter relações sexuais até o casamento, sendo,
contudo, permissível aos homens jovens manterem amantes e
concubinas antes, durante e após o casamento. A dupla moral
sexual (Durham, 1983) regia a relação entre os gêneros e entre
as gerações e distribuía, portanto, possibilidades diferenciais de
viver a sexualidade para homens, mulheres, jovens e crianças.
É importante enfatizar que as relações sociais e sexuais
não se limitam e se restringem às de gênero: as relações etárias
(intergeracionais) também ajudam a organizar o estrato social,
e no que se referem à sexualidade as crianças e adolescentes
podem ser assemelhados às mulheres – sua sexualidade é de
espera pela vida adulta e casamento, momento em que poderão
usufruir das relações sexuais.
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 56

Disso resulta que os que escapam deliberada ou desa-


visadamente deste modelo de organização da sexualidade (na
vida adulta e entre adultos) e da união (casamento) devem ser
excluídos da sociedade ou ser por ela corrigidos: mulheres ninfo-
maníacas, crianças com apetites sexuais precoces, adolescentes
onanistas, homens agressivos no tocante às regras de
aproximação ao sexo oposto e muitos outros devem ser alvo de
sanções. Não à toa, é naquele mesmo período histórico (meados
até o final do século XIX) que ocorre não apenas a catalogação,
mas também a proliferação das denominadas perversões sexuais
e dos desviantes da sexualidade (Lanteri-Laura, 1994; Roudines-
co, 2008; Vigarello, 1998). Aqui se encaixa o perfil do pedófilo
enquanto doença.
Conforme explicita Ducharme (2009), o termo pedofilia (do
grego paid, criança, e phileo, amor) significa o amor pelas crian-
ças e designa, mais precisamente, a necessária atração sexual
pelas crianças, qualquer que seja seu sexo. Tal fenômeno difere
da pederastia (ancestral da homossexualidade; também do grego
paid, criança, e érastès, amante), uma relação de instrução e de
aprendizagem que na Grécia antiga ocorria de maneira consentida
entre um homem adulto e um adolescente/jovem do sexo
masculino sem obrigatoriamente haver (mas, por muitas vezes,
englobando) relações sexuais.
Essa é uma distinção essencial: a pederastia original e
historicamente definida era uma relação consentida de aprendiza-
gem e de inserção social por meio da qual o homem adulto
socializava e apresentava o jovem homem à sociedade grega
após um complexo jogo de trocas de presentes e de favores nas
quais relações sexuais poderiam ocorrer entre o érastès (o que
ama) e o éronème (o amado), relações sexuais sempre
consentidas por ambos e ocorridas até um momento específico
da vida do jovem homem, o início da puberdade, quando eram
rompidas e tornadas proibidas. Já o pedófilo, que segundo
Vigarello (1998) é termo especificamente cunhado no século XIX,
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 57

designaria e precisaria uma personalidade (uma subjetividade e


uma interioridade psicológica com características delimitadas)
própria aos indivíduos que em busca de satisfações sexuais não
respeitavam o livre consentimento do parceiro criança, represen-
tando a derrisão e o descontrole de uma sexualidade aproximada
a animalidade, não raro utilizando de vis estratagemas e violência
física para alcançar seus objetivos (Lowenkron, 2007). O conceito
de pedofilia, portanto, está intimamente relacionado ao conceito
moderno de (proteção da) infância e de incapacidade infantil em
escolher e ser plenamente responsabilizada por seus atos.
Todavia, pederastas e pedófilos partilhariam característi-
cas semelhantes e diferenciais: assemelham-se no que diz
respeito à possibilidade de manutenção de relações sexuais com
crianças; porém, diferem quanto ao objeto elegido e agente ativo
(apenas homens, na pederastia; homens e mulheres, na pedofilia)
e quanto ao consentimento do parceiro sexual (consentido na
pederastia grega; não consentido na pedofilia).
Ademais, a pedofilia na modernidade, diferentemente da
pederastia, seria uma relação não apenas sexual, mas eminente-
mente de violência (em todos os sentidos) entre adultos e
crianças/adolescentes que não tem por finalidade a manutenção
de um laço social, mas simplesmente a pura satisfação das
pulsões sexuais, não raro envolvendo dominação e maus-tratos
daqueles considerados incapazes de plena decisão e responsabi-
lização pelos seus atos e escolhas (as crianças) (Lowenkron,
2007). Daí as razões pelas quais a pedofilia ser considerada pela
Organização Mundial da Saúde um desvio da preferência sexual
(predileção sexual de adultos por crianças e adolescentes, quando
o considerado normal e adequado seria por outros adultos). Toda-
via, a pedofilia não é considerada um crime autônomo pelo Código
Penal Brasileiro em vigor (Brasil, 2012), mas a menoridade da
vítima é uma das muitas agravantes possíveis.
Neste sentido, um dos parâmetros estabelecidos na Mo-
dernidade para a caracterização de um ato de pedofilia é a idade
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 58

da vítima, ou melhor, a idade de consentimento esclarecido4 nas


relações sexuais com adultos ou com outras crian-
ças/adolescentes (Waites, 2009), ou seja, sua suposta situação de
incapacidade ou capacidade relativa de escolha e responsabilida-
de plena que, em termos etários no Brasil, convencionou-se
delimitar até os 18 anos de idade pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente (criança até os 12 anos e adolescente entre os 12 e
18 anos) e 14 anos pelo Código Penal Brasileiro.
Assim, um dos maiores entraves quando se discute as
definições legais ou do senso comum de pedofilia e a delimitação
da faixa etária da vítima é definir de maneira clara o que
exatamente é uma criança/adolescente – ou, em outros termos,
supor que sempre há violência ou coerção nas relações sexuais
envolvendo adultos e crianças/adolescentes. Desta discussão não
podem ser excluídos os apontamentos de Ariès (1981) sobre o
sentimento de infância, fenômeno que na modernidade está inti-
mamente relacionado ao ideal de família: se a família e a vivência
legítima da sexualidade só podem ocorrer entre o casal heteros-
sexual adulto constituído e legalizado pelo matrimônio (hetero-
normatividade ou heterossexualidade compulsória), e se o matri-
mônio é o processo social que por excelência visa à reprodução
biológica e simbólica, a descendência deve ser tanto preservada
da lassidão sexual que pode ser perpetrada por agressores quan-
to ser socializada segundo os ideais da família nuclear – pois
segundo teorias biológicas e psicológicas do desenvolvimento
humano, a sexualidade da criança maturará no tempo certo, na
puberdade (entrada na vida adulta), e será vivida na vida adulta
visando formar novas famílias e novos descendentes, e
qualquer adiantamento (consentido ou forçado) nessa maturação
sexual é considerado capaz de traumatizar a criança.

4 Idade de consentimento, ou seja, idade abaixo da qual o indivíduo seria inca-


paz de compreender as responsabilidades e consequências dos seus atos,
incluindo os relativos às relações sexuais.
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 59

Em suma, não se espera nem que os adultos violem


sexualmente as crianças nem que as crianças e adolescentes
sejam coniventes com ou mesmo decidam por manter espontânea
e esclarecidamente relações sexuais. A criança, figura construída
na história, é o ente precioso que deverá ser tão mais amado
quanto protegido porque será o portador futuro das regras de
vivência social.

Segunda ênfase: A constituição de perfis de agresso-


res e vítimas na pedofilia

Por sua vez, o segundo grande agrupamento é concer-


nente aos estudos sobre as perspectivas, opiniões, impressões e
representações dos envolvidos em casos suspeitos ou
comprovados de ocorrência de relações sexuais entre adultos e
crianças/adolescentes, tanto em casos de relações sexuais a
contragosto e forçadas como em casos de consentimento.
Segundo Sales (2003), a maioria desses estudos
restringe-se à coleta de representações dos próprios vitimados,
dos seus familiares e dos agentes institucionais responsáveis por
prever e cuidar dos vitimados (tais como profissionais da
educação, da saúde, da segurança pública, entre outros) em
detrimento dos acusados adultos. E a maioria desses estudos
destaca os danos reais e potenciais concernentes a essas situa-
ções e às opressões as quais as vítimas crianças/adolescentes
necessariamente são submetidas.
Raramente são investigados os adultos e
crianças/adolescentes que dizem manter relações sexuais
consentidas entre si e mesmo os adultos agressores que preferem
crianças como parceiros sexuais, visto o tabu que essas situações
representam – alguns exemplos são as investigações de Sandfort
(1982), Leahy (1996) e Nelson e Oliver (1998) que, entrevistando
indivíduos que na infância mantiveram relações sexuais com
adultos, atestam que consentiram com esses atos e sentiram
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 60

enorme prazer nessas relações sem que, contudo, essas


experiências afetassem seu desenvolvimento psicológico posterior
ou causassem sofrimentos e traumas. Essa limitação existente em
relação às pesquisas que abordam diretamente os denominados
agressores sexuais ou aqueles (adultos e crianças) que mantêm
relações consentidas são reflexos de uma dificuldade real de
acesso a esses sujeitos que receiam a exposição pública.
Mesmo assim e diante dessa limitação de acesso ao
campo, para Petitot (2006), dois argumentos e representações
ganham destaque. O primeiro sugere que a criança, em maior ou
menos grau, teria facilitado ou consentido com as relações
sexuais com adultos em troca de presentes, favores e afetos, ou
seja, que o consentimento foi motivado não por um evidente
esclarecimento próprio das suas faculdades racionais, mas sim
por outro interesse; uma possibilidade de compreensão deste
argumento é a ideia generalizada (mas construída historicamente)
de que se a sexualidade é um dos bens pessoais e íntimos mais
preciosos que se possui e cedê-lo ou deixá-lo possuir por outrem
(por aquiescência ou por descuido e falta de resistência)
equivaleria a um drástico rompimento com as normas sociais
(Petitot, 2006), visto que as crianças e adolescentes não devem
manter em qualquer hipótese relações sexuais. O segundo
argumento, também balizado pela mítica da família nuclear e os
regramentos que ela distribui, seria o de que apenas um homem
adulto doente, perverso, monstruoso, destituído de sua plena ra-
zão trocaria a naturalidade das relações sexuais com mulheres
adultas por crianças e adolescentes (Petitot, 2006). Ou seja, há
dificuldade e resistência em atribuir algum grau de aceitação
àqueles que rompem com a organização não só de gênero, mas
também etária da sexualidade, e as considerações são tecidas em
maior volume em torno do agente adulto do que do
agente/paciente criança.
Para haver uma melhor compreensão dessa temática, é
preciso, portanto, distinguir entre a utilização e consequência dos
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 61

termos pedofilia (relações sexuais abusivas ou violentas ou que,


mesmo quando consentidas pelas crianças, ocultaria uma impos-
sibilidade de plena compreensão) e relações sexuais intergeracio-
nais (que envolvem tanto as relações sexuais violentas e as
consentidas entre adultos e crianças/adolescentes e entre as
crianças), sendo que na Modernidade, por razões históricas,
houve prevalência e destaque para a pedofilia.
Assim, é preciso um debruçar mais aprofundado sobre os
dois argumentos anteriormente apresentados, pois há um
elemento que os une: a suposição de que a escolha (da
criança/adolescente) em ceder ou (do adulto) em corromper
sexualmente a infância seria somente de ordem pessoal (tanto faz
se consciente ou inconsciente, visto que é a apreciação individual
que toma relevância nesta perspectiva), apagando ou negando
todo um complexo jogo histórico social e cultural que auxilia a
compreender esse fenômeno delimitado pelas regras de contato
sexual entre e para os gêneros e entre as faixas etárias.
O conceito de ideologia, tal como definido por Chauí
(2004), bem pode ajudar a desvelar esse movimento, pois por ele
se compreende a responsabilização individual (resultante de um
sistema de produção capitalista que enfatiza a meritocracia e o
protagonismo individual) por fenômenos cuja gênese e organiza-
ção são, na realidade, coletivos e sociais. Em outras palavras, por
ideologia se compreende a tentativa de delegar toda e qualquer
responsabilidade da ação e decisão apenas ao indivíduo, conside-
rando que seus atos são frutos de escolhas racionais e conscien-
tes (portanto, ponderadas com antecedência) ou resultados de
características que lhe são naturais e imutáveis – furtando a uma
discussão coletivamente organizada e aprofundada sobre as
relações históricas constitutivas da sociabilidade no que tange à
sexualidade entre os gêneros e intergeracionais.
Mas essa estratégia (ideologia) é eficaz, e a proliferação
das categorias de desvios e desviantes sexuais proposta tanto
pela psicanálise quanto pela psiquiatria é extensa, e dentre a ca-
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 62

tegoria de pedófilos e violadores de crianças/adolescentes haveria


muitos tipos, subtipos e variações: pedófilo abusador, pedófilo
molestador (molestador situacional ou pseudopedófilo; molestador
situacional regredido; molestador situacional inescrupuloso; mo-
lestador situacional inadequado), pedófilo molestador preferencial
(molestador preferencial sedutor; molestador preferencial sádico;
preferencial introvertido), psicopata e doente mental (Serafim,
Saff, Rigonati, Casoy, & Barros, 2009). Chama a atenção que
nesta ampla categorização mesmo quem tenha apenas deseja-
do/fantasiado relações sexuais com crianças sem nunca
ter partido para o ato pode ser classificado pedófilo (APA, 2013a;
APA, 2013b)5. Sob essas perspectivas, exclui-se inclusive a varia-
bilidade das infâncias, pois as crianças são tomadas como uma
categoria coesa – sempre carente de proteção por serem todas
incapazes da utilização da plena razão (Lima, 2009).
Tal linha de argumentação não deixa de ser interessante
por promover uma possibilidade de entendimento do fenômeno,
mas é uma compreensão parcial tanto por enfatizar demasiada-
mente as características pessoais (formato do crânio, anatomia
cerebral, traumas infantis, taras e predileções sexuais delimitadas
pela história de vida, entre outros) como por não considerar
suficientemente os elementos culturais contemporâneos (Felipe,
2006) que ajudariam a compreender a complexidade do fenômeno
das relações sexuais envolvendo adultos e crianças/adolescentes.
Neste sentido, para Felipe (2006), há tanto uma evidente
preocupação social em coibir relações sexuais entre adultos e
crianças (por isso o governo e a sociedade civil criam inúmeros
mecanismos para gerenciar, controlar e coibir o abuso e a

5 O DSM-IV foi originalmente publicado em 1994 e, depois disso, reeditado em


vários outros anos; no DSM-V, publicado em 2013, os critérios de definição
diagnóstica dessa parafilia continuaram os mesmos, mas a terminologia passou
de pedofilia para pedophilic disorder; em suma, é uma desordem que acomete
o (e é originária do) indivíduo, furtando-se a uma discussão sobre as influências
sociais, históricas e contextuais relacionadas a esse fenômeno.
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 63

exploração sexual de crianças) quanto há, ao mesmo tempo, uma


ampla exibição nas mass midia dos corpos infantojuvenis como
objetos de desejo, sedução e consumo por parte dos adultos. Há,
portanto, um processo de pedofilização enquanto prática social
contemporânea que concorre com a produção dos indivíduos
denominados pedófilos e crianças/adolescentes que se predis-
põem aos atos sexuais.
Em outras palavras, pedofilização enquanto prática social
contemporânea pode ser entendida como o constante “(...) oscilar
entre diferentes perspectivas teóricas e políticas sobre a infância,
conferindo ora um lugar assexuado e sacralizado para a criança,
ora um posicionamento permissivo e sedutor, sendo ela
condenada como possível inspiradora da iniciativa sexual que
existe sobre si” (Nunes, 2009, p. 23), tal como se pode ver em
diversas imagens de revistas, anúncios de propagandas,
programas televisivos e músicas nos quais os corpos infantis são
tornados desejáveis e elevados ao status de objetos de
idealização, apropriação e consumo.

Terceira ênfase: Terapêutica (consequência da falsifi-


cação ideológica)

Não à toa, é a partir desse modelo de compreensão (indi-


vidualização) que são propostas as principais intervenções
terapêuticas para a pedofilia, para vitimização sexual de crianças
e adolescentes e para aquelas crianças e adolescentes que dizem
consentir com relações sexuais (com adultos ou com outras
crianças), terceiro grande eixo de estudo deste fenômeno.
A gama de possibilidades interventivas é vasta, desde a
simples exclusão social por meio do encarceramento até a
castração química ou física dos supostos agressores sexuais de
crianças/adolescentes, cujo objetivo é limitar os atos dos que
infringiram as normas sociais e legais – sem, contudo,
compreender como e por quais razões funcionam determinadas
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 64

regras sociais estruturantes da sexualidade (Scherer & Scherer,


2000). Não escapam dessa lógica inúmeros dispositivos psicote-
rapêuticos que pretendem (por meio de atendimentos ocorridos
em ambientes controláveis e controladores) normatizar os sujeitos
envolvidos neste fenômeno.
Daí o interesse da literatura especializada, tal como cons-
ta em Baltieri e Andrade (2008), Chagnon (2008) e, principalmen-
te, Drapeau e Brunet (2003), tanto em compreender o que se
passou com a suposta vítima e quais serão as repercussões
futuras (físicas e emocionais) das relações sexuais consentidas
ou da vitimização sexual quanto compreender quais seriam as
razões e motivações individuais dos agressores que explicariam a
pedofilia, por vezes justificadas segundo uma cronologia de
influências que remonta a própria infância do adulto agressor.
Talvez a individualização das explicações e das
propostas interventivas individualizadas ocultem uma questão
anterior e mais significativa: a maneira pela qual estão distribuídos
(e, portanto, organizam as práticas) os direitos de adultos e
crianças/adolescentes na sociedade contemporânea. Waites
(2009), ao comentar as clássicas formulações sobre cidadania de
T. H. Marshall, acrescenta à tripartição dos direitos civis, políticos
e sociais uma nova categoria, os direitos sexuais (intimate
citizenship ou sexual citizenship), dado que após as décadas de
1960 e 1970 e as alterações ocorridas na sociedade no que se
refere à vivência da sexualidade (revolução sexual; separação da
sexualidade e reprodução biológica; liberalização dos costumes;
início do desprendimento da sexualidade da conjugalidade no
casamento; movimentos minoritários gays, lésbicos e queer, entre
tantos outros) seria inconcebível considerar a plena assunção de
direitos e cidadania desconsiderando o autodomínio sobre corpo e
sobre a sexualidade.
Contudo, para Waites (2009), apenas referir que cidadania
envolve todas essas esferas de vivência que englobam a sexuali-
dade é limitante, posto que há contradições nas práticas
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 65

localizáveis na sociedade atual: mesmo que a Organização das


Nações Unidas, desde 1959, com a Declaração dos Direitos das
Crianças, reconhecem-nas como sujeitos portadores de plenos
direitos, nem todos os direitos lhes são a segurados, o que na
realidade as posiciona como detentoras de menos direitos (portan-
to, menos sujeitos, menos cidadãs) quando comparadas aos
adultos.
Isso claramente se reflete na discussão sobre a sexuali-
dade: se os direitos protetivos das crianças e adolescentes contra
vitimizações e abusos sexuais são extremamente importantes e
amplamente reconhecidos e difundidos, contudo, os direitos de
prestar pleno consentimento ao envolvimento em práticas sexuais
(tal como reservado aos adultos) lhes são tolhidos, pois se suben-
tende que não são capazes de pleno entendimento e autonomia
até determinada idade, geralmente a mesma idade que demarca
sua saída da vida infantil ou púbere, ou seja, quando não são
mais crianças, mas sim jovens adultos. Somado a isso, há a
questão de que quando se limita a legitimação das práticas
sexuais a partir e após uma idade específica (age of consent,
idade do consentimento), a capacidade de autodeterminação e
escolha (justamente o que garante o status de cidadãos de
direitos) dos adultos também fica comprometida, posto que
determinadas escolhas tornam-se moral e legalmente proibidas
(tal como manter relações sexuais consentidas com uma
determinada categoria social, crianças) e os recoloca em uma
perspectiva de anormalidade (não-plena capacidade de autode-
terminação e assunção das responsabilidades) que deve ser cor-
rigida. Novamente, neste ponto, os organismos internacionais não
bem distinguem entre pedofilia e relações sexuais intergeracio-
nais, reduzindo todos os fenômenos à primeira possibilidade.
Esse último argumento é expresso por Alderson (1994) da
seguinte maneira, sendo necessário “(...) criticar o sujeito racional
autônomo da maioria dos filósofos iluministas, argumentando
que a caracterização da autonomia racional está socialmente
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 66

descontextualizada e impenetrável às emoções não reflete as


características situadas das tomadas de decisões éticas”6, posto
que a competência de consentir não deve ser tomada como uni-
versal e/ou abstrata, mas sim produzida em contextos sociais
específicos.
Como dito anteriormente, para Waites (2009), um esclare-
cimento se faz necessário neste ponto: não se trata de legitimar
quaisquer ocorrências de relações sexuais entre adultos e
crianças/adolescentes, visto que relações sexuais obtidas por
meio de constrangimentos e coerções contra qualquer indivíduo
são consideradas atos de violência e, portanto, passíveis e
necessárias de limitações e responsabilizações. Todavia, o que se
discute aqui é a premissa de que nem todas as relações sexuais
ocorridas entre adultos e crianças/adolescentes podem ser clas-
sificadas de antemão como violentas e monstruosas que
envolvem incapazes (as crianças/adolescentes) e algozes
(adultos aliciadores) – pedofilia.
Não se trata também de estimular que tais tipos de
relações sexuais sejam normatizadas e incentivadas, longe disso:
trata-se de compreender como os processos históricos e sociais
produzem, por meio de complexas relações de poder, figuras
sociais tais como crianças, adultos, homens, mulheres, vítimas,
agressores, aliciadores, pedófilos, cidadãos e sujeitos de direitos,
entre outros, que em situações específicas podem decidir livre e
independente de suas idades por manter relações sexuais
(relações sexuais intergeracionais), mas que são socialmente e
legalmente designadas como desviantes – fruto de processos
sociais de constituição da infância moderna e de apagamento da
pedofilização social. Não se trata de uma liberalização das
relações sexuais pedofílicas nem das relações sexuais intergera-
cionais, mas de uma tentativa de compreensão do funcionamento

6 Tradução livre.
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 67

social que particulariza e individualiza e, portanto, limita o enten-


dimento desse fenômeno.
Waites (2009) condensa essas ponderações:

(...) as crianças são situadas em posições estruturais de des-


vantagem na hierarquia social, particularmente vulneráveis em
relação aos riscos concernentes ao comportamento sexual. Is-
so requer que sejam protegidas [...] Isso sugere que as idades
legais para o consentimento que organizam formas apropriadas
de cidadania envolvem um difícil equilíbrio entre a proteção dos
direitos das crianças e os direitos de autodeterminação dos
adultos (p. 31)7

Portanto, ao contrário do que as propostas terapêuticas


mais usuais enfatizam, não podemos limitar a questão do
tratamento ao indivíduo denominado pedófilo ou a crian-
ça/adolescente incapaz de consentir de maneira plena, mas
devemos ampliar a questão para compreender como são
socialmente produzidas as figuras do pedófilo e da
criança/adolescente a serem protegidas. Reitera-se que não se
trata de liberalização (ou derrocada) dos costumes, mas sim da
compreensão de como construímos espaços sociais e figuras de
(con)vivência.

Afinal, o que é mesmo o pedófilo (e a criança


vitimada)?

Em suma, essas três grandes linhas de investigação


sobre relações sexuais entre adultos e crianças/adolescentes
(sejam elas consentidas, sejam fruto da violência) podem, por
semelhança, segundo Teles e Melo (2005), serem inseridas

7 Tradução livre.
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 68

naquilo que se convencionou denominar de campo de estudos


das relações de gênero – estudos sobre a heteronormatividade.
Todavia, a tradição acadêmica quase sempre as insere na
subárea da violência de gênero, o que é um equívoco e limitação
por não problematizar adequadamente as relações entre violência
e consentimento dos envolvidos, quaisquer sejam suas idades –
ou seja, os estudos sobre relações sexuais intergeracionais são
escassos.
Resgatando as importantes considerações de Felipe
(2006) em seu texto Afinal, quem é mesmo o pedófilo?, podemos
questionar afinal, o que é mesmo o pedófilo? Segundo o exposto
até o momento, compreendemos que o pedófilo não é apenas um
indivíduo possuidor de traços de personalidade (inatos ou
adquiridos em sua história de vida), mas sim uma resultante de
complexas relações de poder que distribuem papéis (e
expectativas de cumprimentos de papéis) para adultos, jovens,
crianças, homens e mulheres, enfim, para as diversas categorias
sociais.
Em suma, atribuir uma interioridade psicológica que por si
seria suficiente para definir a personalidade do indivíduo pedófilo é
negar o papel e influência que o coletivo social enquanto espaço
de negociação de valores e de produção de inclusões e exclusões
possui neste processo. Destarte, nesta discussão, o apagamento
ideológico pretende basicamente dois objetivos: em primeiro
lugar, individualizar a escolha do parceiro sexual por parte do
adulto – visto que as crianças/adolescentes não são, por razões
ora biológicas, ora psicológicas, ora morais, capazes de eleger
racional e prudentemente objetos/parceiros sexuais; e nesta indi-
vidualização, em segundo lugar, localizar e restringir as responsa-
bilizações e consequências apenas ao indivíduo agente/agressor,
obscurecendo os incentivos sociais explícitos e implícitos que
corroboram com a erotização da infância e com as práticas
sexuais envolvendo crianças/adolescentes, sejam elas forçadas e
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 69

a contragosto (violência), sejam elas consentidas (e quais as


condições de ocorrência desse consentimento).
Tal apagamento ideológico é extensível ao papel
socialmente delegado às crianças que, desde o Iluminismo, são
consideradas como não-portadoras de razão suficiente para
decidir sobre seus atos, inclusive os sexuais, visto que essa
incapacidade os impede de consentir livremente nos momentos de
tomadas de decisões. Para Waites (2009), desde o século XVII

(…) consentimento implica concordância voluntária, assumida


por um sujeito com suficiente grau de vontade própria e capaci-
dade de ação. Para ser considerado válido, o consentimento
deve estar baseado num critério pré-determinado relacionado
ao contexto social e o status do agente [...] Quase sempre o
consentimento esclarecido esteve historicamente associado às
competências de decisões racionais num contexto de livre-
arbítrio – atribuídas aos homens adultos e brancos. Crianças,
tal como mulheres, historicamente foram determinados por
seus corpos, e assim incapazes de exercer ações de controle
sobre esses corpos. Consequentemente, onde a família patriar-
cal foi a instituição central, o consentimento de mulheres e cri-
anças não são consideradas relevantes em relação aos com-
portamentos sexuais (p. 19)8.

A delimitação histórica da idade (e consequente capaci-


dade) de consentimento para relações sexuais é tão significativa
para compreender a configuração moderna da figura do pedófilo e
da criança/adolescente sem capacidade de consentir que até o
século XVII, segundo Flandrin (1988), foi necessário estabelecer
leis para coibir as práticas sexuais envolvendo não somente crian-
ças e adultos, mas também as que ocorriam entre crianças – ou
seja, elas aconteciam e participavam das práticas sociais e, até
aquele momento, não eram objetos de legalização e proibição

8 Tradução livre.
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 70

porque eram consideradas normais e aceitáveis. Além disso, Viga-


rello (1998) esclarece que a terminologia pedófilo passa a ser
recorrente no vernáculo e na psiquiatria apenas no século XIX,
anteriormente não havendo designação precisa para
aqueles adultos que se relacionavam carnalmente com
crianças/adolescentes. E, ademais, tal como exposto
anteriormente, a figura da criança compreendida como indivíduo
em situação de desenvolvimento e carente de cuidados e prote-
ções da família nuclear e do poder público é, para Ariès (1981),
construção histórica recente, sendo que nos séculos anteriores ao
XVII as distinções (de responsabilidade e de capacidades) entre
adultos e crianças praticamente inexistiam.
Para Ricas (2006), não se pode, portanto, limitar a discus-
são sobre pedofilia e pedófilos à violência e aos indivíduos adultos
agentes dessas relações sexuais e tampouco excluir desse deba-
te a análise da categoria crianças/adolescentes como não-
portadores (ou portadores limitados) de racionalidade, inteligibili-
dade e de capacidade de consentimento informado quando de
suas participações em relações sexuais com outras crianças ou
com adultos.
Trata-se, portanto, de investigar com profundidade o ima-
ginário sobre a infância e os processos de pedofilização enquanto
prática social contemporânea, dado que, assim, há a garantia de
entrecruzamento entre as temáticas pedofilia, pederastia, violência
sexual, amor e afetos destinados às crianças e adolescentes,
infância, dupla moral sexual, heteronormatividade, relações
sexuais intergeracionais que podem ser consentidas (mesmo que
legalmente proibidas) ou frutos de violências, relações afetivas e
de prazer, processos de exclusão e de normatização social.
Essa é uma das contribuições que a Psicologia Social pode apre-
sentar ao tema.
Tais conhecimentos, que são históricos, socialmente loca-
lizados e coletivamente construídos, podem auxiliar a organizar
novas ações e novas práticas, havendo possibilidade de compre-
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 71

ender a estrutura ideológica de uma sociedade, ou seja, as manei-


ras pelas quais tanto os conhecimentos são constituídos quanto
são utilizados para orientar e justificar práticas de determinados
grupos sociais (Campos, 2012; Foucault, 1978; Zizek, 1992).
Em suma, adultos e crianças que se engajam em relações
sexuais não são somente indivíduos (com interioridades constituí-
das e imutáveis): são resultados de complexos processos sociais
e de relações de poder – suposição que Butler (2012) define como
a anterioridade da performatividade diante do (sujeito) performer –
e, por isso, não podem ser simplesmente tarjados de pedófilos,
monstros, aliciadores ou descuidados e incapazes.

Pedofilização enquanto prática social contemporânea:


Contra-ideologia como prática em saúde

Todas essas considerações nos conduzem a uma última


problematização: o que fazer diante de episódios de relações
sexuais envolvendo crianças/adolescentes e adultos? Haveria
distinção de intervenções entre as situações de evidente violência
sexual (relações sexuais cometidas a contragosto das vítimas) e
as situações nas quais há consentimento de ambas as partes?
Como considerar que crianças – historicamente submetidas a
relações de poder que condicionam e limitam suas decisões,
inclusive no tocante à sexualidade – podem (e mesmo se podem),
em situações específicas, consentir com relações sexuais com
outras crianças, jovens e adultos sem que isso seja necessaria-
mente danoso para seu desenvolvimento (relações sexuais inter-
geracionais)?
Se muitas dessas questões necessitam de estudos e
investigações clínicas para serem respondidas, a consideração da
categoria de análise histórica pedofilização como prática social
contemporânea pode ser muito útil para esclarecer a temática
em questão, considerando que Felipe (2006) define esse processo
como a dualidade inerente entre as práticas sociais (e legais) de
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 72

proteção da infância e as produções (midiáticas) de desejos


sobre o corpo infantil, dialetizando cuidados e instigações para
com o corpo infantil; e mais, pois assim também se permite retirar
do polo passivo (e alienado) tanto a sociedade (que atribui
responsabilidade apenas aos adultos diretamente envolvidos)
quanto as crianças/adolescentes – considerando novas esferas de
compreensão do fenômeno e de responsabilização.
Para concluir, a discussão que parte do indivíduo
pedófilo e da necessária violência, passando pela consideração
do (possível) consentimento das crianças/adolescentes até
desembocar em um processo social de pedofilização não nega a
evidente necessidade de proteção às crianças nem propõe sua
plena autodeterminação em qualquer esfera (inclusive a sexual),
mas problematiza um âmbito muito específico da vivência
(podendo ser estendido para outros espaços e relações sociais): a
construção da cidadania e da autonomia das crianças, dos
adolescentes e dos adultos de uma sociedade, ou seja, auxilia a
discutir a construção de poder em uma sociedade – isso sim,
uma questão que repercute em inúmeros âmbitos sociais, tais
como as políticas de saúde, de educação e as políticas sociais em
geral.

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Humanização e cuidado em saúde:


Contribuições da Psicologia para esta
parceria no contexto do adoecimento grave
Karin A. Casarini
Carmen Lúcia Cardoso

Nas últimas décadas, o desafio de transformar a


qualidade da assistência pública em saúde oferecida no país tem
implicado no desenvolvimento e ampliação de conceitos e de
recursos humanos de forma a promover o reconhecimento da
alteridade e da importância do diálogo como facilitadores da reali-
zação de um cuidado em saúde integral. Nesta direção, as
publicações científicas refletem modificações realizadas nas
formas de compreender os processos de humanização e de
cuidado em saúde, no sentido de ampliar a identificação da
complexidade das ações de saúde e de seu potencial de auxílio
(Deslandes & Mitre, 2009). Tal identificação manifesta-se pela
inclusão progressiva de dimensões necessárias à humanização
do cuidado, abarcando desde a organização e estrutura física das
instituições até questões sociopolíticas (Oliveira & Macedo, 2008).
Estas dimensões são entendidas como elementos pertencentes
ao trabalho de oferecer ajuda especializada e, dependendo do
modo como são articuladas, podem contribuir, ou não, para a
efetivação de um cuidado humanizado. Paralelamente, a noção de
cuidado em saúde também vem sendo discutida, incluindo, entre
outras, as propostas de mudanças nas concepções sobre a
pessoa adoecida, a legitimidade de seus desempenhos no
processo de produção do cuidado e as diferentes formas de
significação da realidade vivida nos ambientes de atenção à
saúde (Ayres, 2007; Merhy, 2000).
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 78

As discussões sobre os conceitos de humanização, de


cuidado à saúde e sobre as formas de aplicá-los no cotidiano dos
serviços de saúde se aproximam de perspectivas psicológicas, na
medida em que buscam considerar a subjetividade daqueles que
os frequentam e compõem. Levando em conta que a Psicologia
encontrou neste âmbito um espaço para sua inserção, como
prática profissional, cabe refletir sobre possíveis contribuições que
tal área pode oferecer. Tomando estas considerações como
cenário, o objetivo deste capítulo é refletir sobre as ações
humanizadas, apresentadas em situações de adoecimento grave,
a partir do instrumental teórico-técnico da Psicologia, de modo a
favorecer a articulação do mesmo com as noções de humaniza-
ção e cuidado em saúde. Espera-se que tais reflexões possam
contribuir para a ampliação das ações psicológicas presentes no
processo de humanização do cuidado, esclarecendo seu potencial
de ajuda e sua vinculação ao corpo de saber psicológico. Os
temas e exemplos tratados neste capítulo fazem parte do estudo
realizado para a elaboração da tese de doutorado da primeira
autora (Casarini, 2013), orientada pela segunda.

Humanização e cuidado em saúde

De acordo com Deslandes e Mitre (2009), as ideias sobre


humanização do cuidado em saúde foram compreendidas e
tratadas de modos diferentes ao longo das últimas décadas.
Entre os anos 1950 e 1970, mencionar a necessidade de humani-
zação de um serviço de saúde era interpretado como um
julgamento negativo sobre o trabalho ali realizado, resultante da
atribuição da responsabilidade dos profissionais por um cuidado
permeado por maus-tratos. A partir dos anos 1980, as ideias
sobre humanização foram, progressivamente, ligando-se à
concepção de cuidado integral à pessoa adoecida, referindo-se à
incorporação de outros elementos, que não os estritamente
biológicos, nos tratamentos das doenças. Neste período, frequen-
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 79

temente, a humanização era entendida segundo uma ótica carita-


tiva, na qual a pessoa adoecida era vista como vulnerável e
dependente, despertando a compaixão dos profissionais e
requerendo ações de cunho assistencialista e paternalista.
Dessa forma, o movimento dos profissionais era o de
reconhecer o sofrimento das pessoas adoecidas, seja pela doença
apresentada, seja pelas consequências dos tratamentos
necessários, e buscar por alguma forma de alívio do mesmo.
Porém, estas ações não implicavam em um questionamento sobre
a hierarquização das relações em saúde e sobre a autonomia da
pessoa adoecida, sendo que os profissionais permaneciam como
detentores do saber e da capacidade de tomada de decisões. As
ações humanizadas, assim, eram defendidas e executadas de
modo pontual, sendo geradas pela mobilização emocional
despertada nos atendimentos em saúde, sem contar com uma
sistematização ou definição de seus objetivos e resultados (Des-
landes & Mitre, 2009; Oliveira & Macedo, 2008).
Nesta época, ainda, no campo da produção científica,
iniciaram-se estudos que buscavam o esclarecimento de fatores
responsáveis pela (des)humanização do cuidado, como a
formação prioritariamente biomédica dos profissionais, as dificul-
dades de comunicação e de acesso às informações no processo
terapêutico, as relações hierárquicas e de poder presentes na
produção do cuidado e os fatores subjetivos e psicológicos
envolvidos no adoecimento (Oliveira & Macedo, 2008). Este
esclarecimento de fatores que interferiam no processo de
humanização do cuidado contribuiu para o encaminhamento de
estudos sobre ações humanizadas como recursos terapêuticos e
como instrumentos de melhoria das condições de trabalho dos
profissionais de saúde.
No Brasil, pesquisas sobre humanização começaram a
ser realizadas no período entre os anos 1970 e 1980 (Deslandes
& Mitre, 2009; Oliveira & Macedo, 2008). Elas, inicialmente, trata-
vam da descrição dos fatores (des)humanizantes presentes nos
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 80

serviços de saúde, das alterações emocionais apresentadas por


pessoas adoecidas em contextos de saúde e dos modos de
interação presentes nas equipes de saúde. Na década de 1990,
as pesquisas tratavam de investigações sobre as possíveis
associações entre alterações emocionais apresentadas por pes-
soas adoecidas e sucesso terapêutico, apontando para o potencial
de ajuda oferecido pela incorporação de ações humanizadas nas
rotinas de atendimento em saúde. Neste sentido, pesquisas e
discussões sobre estratégias de acolhimento, comunicação e
organização do ambiente hospitalar ganhavam corpo no contexto
brasileiro e buscavam oferecer diretrizes de aplicação destas
ações (Deslandes, 2004). Seus primeiros resultados apontaram
para a necessidade de informar as pessoas adoecidas de modo
eficiente, de incluir os familiares no cotidiano dos serviços, com
abertura para sua permanência junto à pessoa adoecida, bem
como para a importância de conhecer expectativas e dificuldades
daqueles envolvidos no cuidado à saúde (Casarini, Gorayeb, &
Basile Filho, 2009; Oliveira & Macedo, 2008). Estes elementos
passaram a integrar a visão e as ações de um tratamento humani-
zado.
Nos últimos anos, a tendência de compreender a
humanização como um conjunto de instrumentos terapêuticos
que podem auxiliar no processo de adaptação/recuperação
da pessoa adoecida se fortaleceu, ganhando descrições operaci-
onalizadas relativas à sua aplicação (Oliveira & Macedo, 2008).
Em 2000, o Ministério da Saúde apresenta o Programa Nacional
de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH), com o
objetivo de promover uma nova cultura de atendimento à saúde,
enfocando principalmente mudanças nas relações interpessoais
(Brasil, 2000). Em 2004, este Programa é substituído por uma
política pública, denominada Política Nacional de Humanização,
em uma perspectiva transversal, sendo inserida nas diretrizes de
funcionamento do Sistema Único de Saúde (Brasil, 2004). Esta
política pública propõe a valorização dos diferentes sujeitos
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 81

implicados no processo de produção do cuidado, o estímulo à


autonomia e ao protagonismo, a corresponsabilização e estabele-
cimento de vínculos solidários (Deslandes & Mitre, 2009).
Entretanto, apesar do entendimento sobre a humanização
ter se transformado a ponto de se consolidar como diretriz de
trabalho em saúde, esta transformação não garantiu um aporte
teórico-operacional consensual nem uma demarcação e
aplicabilidade definidas e partilhadas pelos serviços de saúde
(Deslandes, 2004). Neste sentido, observa-se ainda certa banali-
zação dos desafios apontados pelo processo de humanização,
correndo o risco de ser efetivado por meio de um discurso que
se torna progressivamente vazio e tecnificado (Deslandes & Mitre,
2009).
Destaca-se, assim, a necessidade de descrever e refletir
sobre as consequências das ações humanizadas, não só do ponto
de vista da melhoria da qualidade do cuidado oferecido às
pessoas adoecidas, mas também do potencial de transformação
das identidades e dos modos de viver daqueles envolvidos na
produção de cuidados. Refletir sobre estes aspectos remete a
uma leitura psicológica das ações de saúde, buscando o esclare-
cimento de aspectos vinculados à formação da pessoa e às reper-
cussões do adoecimento grave sobre a organização psíquica.

Psicologia, humanização e cuidado em saúde

Pode-se considerar que as ações de cuidado à saúde


representam formas de interação, estabelecidas entre pessoas,
que não se reduzem somente a um fazer técnico (Merhy, 2000).
Elas são portadoras de ideias e concepções sobre o processo de
assistência, sobre as pessoas envolvidas no cuidado e sobre a
natureza das relações mantidas nos serviços de saúde (Ayres,
2004). Realizar uma reflexão psicológica das ações de saúde
implica no esclarecimento de qual antropologia filosófica as orien-
tam, ou seja, de quais concepções de pessoa embasam os
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 82

posicionamentos e atitudes dos profissionais em um serviço de


saúde.
Nos contextos de cuidado à saúde, influenciados forte-
mente pela perspectiva biomédica, a concepção sobre a pessoa
adoecida tende a ligar-se a uma determinada visão de saúde-
doença. De acordo com Ricoeur (1996), a visão predominante é a
que entende uma pessoa saudável como detentora de
capacidades e possibilidades de desenvolvimento, ou seja, esta
é a pessoa que tem condições de pensar, escolher, produzir e
transformar sua própria vida. Diante de um adoecimento, esta
mesma pessoa passa a ser vista como incapacitada e portadora
de um horizonte de possibilidades de viver restrito, determinado
pelas características do adoecimento. Ela perde a condição de
potência e de transformação de sua própria vida, permanecendo
limitada pela configuração da doença e dependente das ações de
outros para a continuidade de sua vida. Em uma situação assim
configurada, os encontros entre profissionais e pessoas adoecidas
são marcados pelo protagonismo do profissional, uma vez que ele
é identificado como saudável, capaz e detentor de condições
suficientes para direcionar as condutas da pessoa adoecida.
Esta concepção de pessoa, ligada à visão de saúde-
doença com orientação biomédica, perpassa o modo como ações
de saúde são, em geral, apresentadas pelos profissionais. Em
uma situação de adoecimento grave, a pessoa adoecida pode ser
percebida como desprovida de condições para efetuar julgamen-
tos apropriados sobre o que lhe ocorre, favorecendo a invalidação
de seus desempenhos pelos profissionais. Tal configuração das
relações de cuidado em saúde pode ser ilustrada pelas situações
descritas a seguir.
Um homem, de 45 anos, internado em uma UTI para a
recuperação de traumas torácicos e secção completa da medula
espinhal, resultantes de uma agressão, apresentava solicitações
repetidas para ingerir água e para ser coberto com um lençol. Este
homem, aqui denominado André, encontrava-se consciente e
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 83

orientado, sem a possibilidade de movimentar seus membros


superiores e inferiores, e fazendo uso de ventilação mecânica.
Diante de suas solicitações, a equipe de saúde o informa sobre a
impossibilidade de ingerir água em função do uso do ventilador
mecânico e o “cobre”, levando o lençol estendido até o seu peito.
Nesta ocasião, os profissionais consideravam ter atendido às
solicitações de André e mostravam-se cansados e confusos com a
manutenção da apresentação das mesmas. Esta situação
desenvolveu-se ao ponto de uma queixa sobre o comportamento
de André ser formulada aos profissionais da Psicologia. Nesta
queixa, os profissionais de saúde descreviam suas tentativas reais
de promover a satisfação dos pedidos de André e o quanto se
sentiam pressionados com sua presença na unidade, uma vez
que ele permanecia fazendo os mesmos pedidos, despertando
sentimentos de inutilidade, raiva e impotência. Diziam “Mas, ele
não entende que não pode. Ele continua pedindo” (sic), “Eu já
cobri ele umas três vezes e não adianta...” (sic), e “Ele é mesmo
muito custoso, difícil. Manipula a gente” (sic).
A partir destas descrições, pode-se questionar o que
estava acontecendo naquela situação. Os profissionais realmente
apresentavam ações destinadas a cuidar de André e este, em
contrapartida, continuava indicando a presença de necessidades
insatisfeitas. Esta situação parecia se encaminhar para a formula-
ção de um julgamento sobre André que o colocaria como
responsável pelos fracassos das ações de saúde ditas
humanizadas, uma vez que ele era custoso, difícil (sic). Ressalta-
se que não se trata, aqui, de apontar falhas das ações realizadas
pelos profissionais, mas de destacar a dificuldade existente para
apresentá-las de um modo funcional. Os profissionais realmente
buscavam ajudar André diante de suas solicitações, inseridos em
um contexto de possibilidades limitadas derivadas de um adoeci-
mento grave. André não podia ingerir água e os profissionais es-
tavam sendo honestos na informação que ofereciam, e, de fato, o
tinham coberto com o lençol. Trata-se, antes, de perguntar sobre
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 84

quais elementos podem ter contribuído para que os profissionais


apresentassem tais ações diante das solicitações da pessoa
adoecida e de refletir sobre os resultados alcançados.
Aparentemente, os profissionais estavam orientados pela
forma como puderam entender os pedidos de André, de acordo
com a visão que traziam do mesmo. Assim, ao considerar que
André era uma pessoa doente, incapaz de realizar diversas
atividades e destinado a conformar-se àquilo que os outros
poderiam autorizar e realizar por ele, a solicitação pela ingestão
de água poderia ser solucionada com o oferecimento da
informação sobre a natureza da sua proibição, e a solicitação
para ser coberto também poderia ser satisfeita com a colocação
do lençol sobre seu peito. Dessa forma, o protagonismo era do
profissional, que contemplava suas concepções como suficientes
para o entendimento e para a tomada de decisões relacionadas à
pessoa adoecida.
O que pode ter escapado nesta situação é exatamente a
perspectiva de André e a potencialidade de seus desempenhos
para a satisfação de seus pedidos. Ele relata ao profissional da
Psicologia que gostaria de ser coberto até o pescoço, já que pos-
suía sensibilidade somente na região superior dos ombros e
pescoço, porém, não teve a oportunidade de mencionar este
aspecto do seu pedido aos demais profissionais. Em relação à
água, André relatou que sentia sede e queixava-se dela. Ele já
havia compreendido que não podia ingerir água, mas ainda assim,
sentia sede. Questionou se existiriam outras formas de obter alívio
da mesma. Além disso, André relatou que sentia medo de voltar a
não conseguir respirar, mesmo usando o ventilador mecânico (fato
que havia ocorrido por três vezes em dias anteriores). Assim, a
solicitação pela ingestão de água parecia ser uma necessidade
que resultava de diferentes fontes: a sede e a insegurança em
relação às suas capacidades de manter-se vivo. Neste sentido,
considera-se que os profissionais poderiam responder à necessi-
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dade de ingestão de água com a apresentação de diferentes


ações, que não só a informação.
É o próprio André que oferece sinais daquilo que ele
poderia apresentar como condutas que facilitariam a resolução
dos impasses vividos em relação às suas solicitações. Quando
descreve a forma como o lençol deveria ser colocado sobre seu
corpo para que ele se sentisse coberto, André evidencia o quanto
mantém ativa e preservada uma capacidade de percepção,
discriminação e avaliação do que lhe ocorre, considerando sua
condição patológica. Este mesmo movimento se repete em rela-
ção à água, quando ele questiona se haveria outras formas de
aliviar a sede. Nestas situações, André demonstra a potencialida-
de para negociar outras formas de satisfação de suas necessida-
des, por meio de desempenhos próprios suficientes para buscar
por uma ação compartilhada entre ele e os profissionais.
Dessa forma, aponta-se que a visão do serviço de saúde
sobre André diante de tais solicitações pareceu se distanciar da-
quilo que ele podia ser e restringiu as possibilidades de facilitação
de seu desenvolvimento e de sua recuperação. Tal restrição pode
ser compreendida como o afastamento dos profissionais da pers-
pectiva da pessoa adoecida e da consideração daquilo que ela
pode fazer para auxiliar na resolução de suas necessidades. Tal
posição afasta-se, ainda, das concepções contemporâneas de
humanização e cuidado em saúde, na medida em que a atenção
oferecida aos aspectos não biológicos da pessoa é direcionada
por aquilo que o profissional concebe como sendo adequado e
possível, sem se ligar a uma construção compartilhada. Neste
sentido, a ação de cobrir o corpo ou de oferecer uma explicação
pode apresentar-se de modo automatizado e esvaziado, desvincu-
lada da realidade da pessoa adoecida.
Pode-se pensar que a superação do automatismo e do
esvaziamento das ações humanizadas pode ser buscada por meio
de uma postura de abertura à pessoa, seja ela adoecida ou não.
Isto pode remeter ao diálogo com uma antropologia filosófica que
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conceba a pessoa como um ser em constante desenvolvimento e


portadora de potencialidades que podem ser acionadas a partir de
um suporte oferecido pelo ambiente (Winnicott, 1969/1994). Nesta
perspectiva, a pessoa é vista como alguém que, mesmo em uma
condição de adoecimento ou de suposta restrição de suas possibi-
lidades de viver, pode realizar transformações em si mesma e em
sua vida, por meio do reconhecimento daquilo que ainda
apresenta como capacidades e dos recursos presentes nos
ambientes que a circundam. Especificamente em relação às
concepções sobre saúde, relacionadas a essa perspectiva,
Ricoeur (1996) afirma que mesmo nos estados saudáveis, as
pessoas são constantemente chamadas a negociar com
condições limitantes e a buscarem por soluções possíveis dentro
de um horizonte delimitado. Dessa forma, todos os humanos,
saudáveis ou não, podem ser compreendidos como pessoas que
se defrontam com limites e procuram por meios de superá-los a
partir das condições que detêm.
Aproximar essas concepções de pessoa e de saúde-
doença dos contextos de cuidado à saúde pode favorecer o
desenvolvimento de ações de ajuda segundo uma lógica em que
o protagonismo seja compartilhado entre pessoa adoecida e
profissional. O cuidado em saúde, então, é visto como aquilo que
pode ocorrer por meio do encontro entre duas pessoas, ou seja,
por meio de um contato autêntico e aberto entre ambas, enquanto
tais, sem a imposição de uma perspectiva que considera o
outro como objeto de intervenção. Neste contexto, cabe refletir
sobre ferramentas presentes na Psicologia que auxiliem a
desenvolver modos de interação que favoreçam a preservação da
dimensão humana das pessoas nas situações de cuidado.

Vértices de compreensão da pessoa e de seu


processo de desenvolvimento: Uma proposta para o
diálogo com as ações humanizadas
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 87

Considera-se que a teoria do amadurecimento emocional


de D. W. Winnicott (1988/1990) pode oferecer ferramentas
teóricas que contribuam para a construção de uma prática
vinculada aos princípios da humanização. Apesar do autor tratar
do amadurecimento emocional principalmente em termos dos
percursos possíveis do desenvolvimento de bebês, em conjunção
com a qualidade de relação estabelecida com suas mães, ressal-
ta-se que tal teoria pode aplicar-se às situações onde exista uma
pessoa em situação de vulnerabilidade e um cuidador a ela ligado.
Esta possibilidade afirma-se na medida em que a pessoa, na
visão do autor, é concebida em constante estado de desenvolvi-
mento, podendo, ao longo da vida, enfrentar momentos de sobre-
carga psíquica e/ou física que a remetem a configurações
psicológicas semelhantes àquelas vivenciadas pelos bebês (Dias,
2003).
Winnicott (1969/1994), assim, apresenta uma concepção
de desenvolvimento humano que enfatiza o papel dos contextos
de facilitação, interessando-se pelo ambiente onde as pessoas
estão e pelas relações que aí se estabelecem. O ambiente social,
para ele, é constituinte da subjetividade, e tem um papel ativo no
amadurecimento emocional ou no processo de constituição da
sensação de ser si mesmo. Dessa forma, a constituição do si
mesmo, da sensação subjetiva de ser uma pessoa, é possível a
partir do encontro inter-humano e da relação viva que se
estabelece com este ambiente. Tal encontro pode ser entendido
como genuíno e fundamental para a transformação psíquica
quando caracterizado pela disponibilidade devotada do outro
àquilo que se apresenta como necessidade pela pessoa em
processo de constituição do si mesmo. Dito em outras palavras,
este encontro da pessoa com o ambiente social ocorre a partir da
compatibilidade potencial existente entre as suas necessidades e
a forma como o outro as percebe e se comporta diante delas (Miz-
rahi, 2010).
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 88

Para que um encontro deste tipo seja possível, é neces-


sário que aquele que cuida, o profissional, por exemplo, possa se
adaptar às necessidades singulares da pessoa, ou da pessoa
adoecida, oferecendo pouca resistência à sua força vital criativa,
podendo ser percebido como agindo em sintonia com ela. Isto não
significa a adoção de uma postura permissiva diante da pessoa
adoecida, mas, antes, a apresentação de uma resistência neces-
sária e resultante das condições do adoecimento que permita,
ainda assim, a expressão da vitalidade da pessoa adoecida.
Nesta condição, Winnicott (1945/2000) afirma que a vida,
amparada pelo ambiente facilitador, pode fluir em continuidade,
favorecendo a constituição de um si mesmo por meio da articula-
ção espontânea daquilo que é vivido. Entretanto, o autor assinala
que, nas situações em que esta resistência é excessiva ou nas
quais o ambiente se apresenta pouco adaptado às necessidades
da pessoa adoecida, impõe-se a ela a tarefa de lidar com
“intrusões”, ou exigências excessivas sem relação com aquilo
que é vivenciado, que a levam a reagir a este ambiente de modo
pouco espontâneo e a apresentar algum grau de sofrimento (Miz-
rahi, 2010).
Assim, de acordo com Winnicott (1962/1988), o ser hu-
mano nasce com uma tendência inata para o amadurecimento e
necessita de um ambiente favorável para que esta tendência
possa se realizar. Para o autor, o desenvolvimento pode ocorrer a
partir do encontro entre as pessoas. A integração e a constituição
de si, alcançadas por meio do desenvolvimento emocional, pres-
supõem uma série de conquistas, que são fundamentais para o
sentido do ser, porém não são definitivas. A conquista de uma
unidade psíquica não é permanente e intacta, é parte de um
processo que, na relação com o meio, pode se perder ou se ga-
nhar, de forma dinâmica.
Em uma situação de adoecimento grave, pode-se
considerar que a pessoa adoecida pode perder transitoriamente
sua integração psíquica, além de se ver diante do desafio de
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 89

alcançar uma nova articulação de suas experiências corpóreas e


psíquicas. Dessa forma, o adoecimento grave pode implicar na
necessidade de revisão do sentido de si mesmo (ou da sensação
pessoal de ser uma pessoa) e de um projeto de vida. O
adoecimento grave pode resultar na necessária apresentação de
um esforço para agregar o que foi e é vivido em uma história
inteligível e emocionalmente estável. Na linguagem de Winnicott,
pode significar a necessidade de realizar uma nova integração
psíquica das experiências relacionadas ao adoecimento grave.
Neste sentido, uma recuperação integral se refere à recuperação
do sentido de si, de uma nova articulação das experiências,
incluindo os esforços para a organização das percepções, para o
restabelecimento do funcionamento corporal e para permanecer
ligado ao ambiente de modo ativo e coerente.
Este movimento pode ser facilitado e amparado pelo
ambiente, em sua dimensão física, mas principalmente em sua
dimensão relacional. É neste sentido que as ações humanizadas
podem se apoiar nos saberes psicológicos para tornarem-se
ações facilitadoras do desenvolvimento e da recuperação da
pessoa adoecida. As ações humanizadas, dessa forma, podem
adquirir sentido para a pessoa adoecida quando favorecem a
retomada da noção de si, promovendo a apresentação de um
movimento ativo, realizado pela própria pessoa adoecida, pela sua
recuperação (Casarini, 2013; Mencarelli, Bastidas, & Vaisberg,
2008; Winnicott, 1969/1994).
Retomando as situações vivenciadas por André, pode-se
considerar que nelas o ambiente foi pouco facilitador, na medida
em que não promoveu a possibilidade do mesmo expressar sua
vitalidade. Tal expressão necessita do apoio da curiosidade dos
profissionais em relação ao conhecimento de suas necessidades
e seus potenciais desempenhos colaborativos, antes de antecipar
uma direção privilegiada de comportamento, norteada pelas roti-
nas de cuidado ou pelas concepções dos profissionais. Nesse
sentido, o ambiente parece não ter favorecido a articulação dos
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 90

movimentos de André com as condutas possíveis, colocando-se


como pouco sintônico e promovendo uma fragmentação das
experiências.
Por outro lado, experiências de sintonia entre profissionais
e pessoas adoecidas oferecem a oportunidade de visualizar a
riqueza da realização de ações em saúde humanizadas. Uma
situação bastante simples será utilizada como ilustração. Juliana,
uma menina de 14 anos, foi internada pela segunda vez na UTI
para tratar de graves insuficiências respiratória e renal,
consequentes de uma doença autoimune recém-descoberta. Ela
apresentava-se entristecida e assustada com o que lhe ocorria,
referindo não compreender o motivo de ter inchado tanto e não
conseguir respirar. Seus pais relataram que o breve período
que passaram em casa, após a primeira internação na UTI, foi
marcado por muitas dificuldades para delimitarem as necessida-
des do tratamento, em função de um entendimento restrito sobre a
doença, e para orientarem e controlarem o comportamento de
Juliana. Segundo eles, sua filha “queria continuar vivendo do
mesmo jeito” (sic) e “era duro dizer que ela não podia tomar água,
ou comer um salgado.” (sic). O retorno de Juliana para a UTI
provocou nos profissionais da equipe da UTI sentimentos de com-
paixão e de preocupação com o futuro de uma pessoa tão jovem
portadora de uma doença tão agressiva. De alguma forma, os
profissionais se perguntavam sobre as possibilidades de
Juliana dar continuidade à sua vida e realizar seus planos. Isto
se tornou compartilhado quando um dos profissionais observou
que um dos dias de internação na UTI correspondia ao aniversário
de Juliana.
A partir desta observação, os profissionais começaram a
se perguntar sobre o que poderiam fazer para comemorar o
aniversário de Juliana e pensaram em fazer uma pequena festa,
com bolo de aniversário, velinhas e “Parabéns para você”. Estas
ideias foram divididas com os profissionais da Psicologia e, então,
iniciou-se um processo de negociação entre profissionais e pes-
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 91

soa adoecida. A ideia de comemorar o aniversário foi comunicada


à Juliana. Ao saber, ela disse que não gostaria que nada fosse
feito porque queria comemorar o aniversário em casa. Um dos
profissionais disse, então, que podia compreender que ela
quisesse comemorar em casa, mas que considerava que aquele
era um dia especial (ela estava fazendo 15 anos), e que poderiam
pensar em algo que pudesse marcar aquele momento. Juliana
respondeu, então, que gostaria de comer um pedaço de torta de
frango ou pizza junto com seus pais. A equipe, a partir de então,
providenciou formas possíveis de atender seus pedidos: ela
comeu um pedaço de torta de frango e um pedaço de bolo de
chocolate, acompanhada de seus pais e disse a eles que queria
um tablete de presente. Os profissionais estiveram ao lado da
família em diversos momentos, cumprimentando Juliana e
fazendo observações engraçadas e positivas sobre seus pedaços
de torta e bolo.
Uma situação como esta demonstra a possibilidade de
estabelecer uma relação com a pessoa adoecida que a considere
como alguém que pode dizer sobre si mesma, fazer escolhas e
participar das decisões, favorecendo que uma ação de saúde
possa corresponder àquilo que ela mesma identifica como
necessidade. Isto só pode acontecer se a equipe de saúde se
colocar como disponível diante da pessoa adoecida, aberta àquilo
que encontra como uma possível necessidade, mas curiosa e
cuidadosa com a perspectiva da pessoa adoecida. Exatamente
por esta equipe ter conseguido se posicionar com tal abertura e
curiosidade, foi possível encontrar um formato de festa que tinha
um sentido e uma congruência com o que Juliana vivia.
Tais reflexões remetem à noção de cuidado em saúde
relacionada à capacidade de autoadministração da própria vida
que a pessoa adoecida pode apresentar preservada (Ayres,
2004). Com exceção dos casos em que a pessoa adoecida per-
manece inconsciente ou naqueles em que seja portadora de um
grave transtorno mental, que a impeça de manter um contato
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 92

mínimo com a realidade, esta capacidade de autoadministração


parece estar presente. O reconhecimento desta condição ativa da
pessoa adoecida implica na busca, pelos profissionais, pelo
protagonismo da mesma em relação à sua vida e a definição de
um projeto de vida (Casarini, 2013), tal como efetivado nas ações
diante de Juliana. Dentro dos limites impostos pelo adoecimento,
foi apresentada à Juliana uma proposta que considerava seu
reconhecimento enquanto pessoa para além da doença e foi
oferecida a possibilidade de escolha e de planejamento de um
futuro imediato. Dessa forma, os profissionais puderam ocupar o
lugar daqueles que detinham o conhecimento de recursos que
podiam ser utilizados para a consecução de um objetivo, definido
conjuntamente com a pessoa adoecida e que podia ser integrado
ao seu projeto de vida, exatamente por manter uma
correspondência com este.
Ações em saúde com estas características pressupõem a
existência de um fenômeno chamado de mutualidade por
Winnicott (1969/1994). Este fenômeno se refere a uma qualidade
da relação humana que afirma que o cuidador só pode oferecer
condições de cuidado satisfatórias para a pessoa adoecida se
puder, ele mesmo, alimentar-se da relação com ela. Tal
concepção reconhece naquele que está em uma posição de
vulnerabilidade a necessidade básica de que o outro, que se
ocupa de seus cuidados, esteja bem, vivo e beneficiando-se
criativamente desta relação. Dito em outras palavras, a
mutualidade remete à reciprocidade das trocas subjetivas
existente nas relações de cuidado e aponta que o trabalho em
saúde se dá nos encontros possíveis entre pessoas adoecidas e
profissionais. É neste contexto que as ações humanizadas
podem adquirir significado e apresentarem-se como instrumentos
vivos do cuidado em saúde. Ressalta-se que, na perspectiva dos
profissionais, a realização de uma ação que produziu bem-estar
para Juliana, com momentos de felicidade compartilhada com sua
família, pode ter-lhes proporcionado a gratificação de testemunhar
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 93

o resultado de seu trabalho, possibilitando que eles se sentissem


alimentados. Esta é uma característica potencial das ações hu-
manizadas: a possibilidade de constituírem-se como espaços de
negociação criativa com as tarefas institucionais, favorecendo o
contato com transformações e conquistas positivas vivenciadas
pelas pessoas adoecidas e sustentadas pelos profissionais.
Considera-se que tais ações, abertas a propostas criativas e
inovadoras, são fundamentais para o desenvolvimento do
profissional e para o cuidado com a pessoa que constitui este
mesmo profissional.
Assim, a busca pela recuperação integral que abarque o
alcance das melhores condições físicas possíveis e a reconstitui-
ção de uma noção de si e de um projeto de vida remete a uma
demanda de reciprocidade, na qual o reconhecimento do outro
como igual, em suas potencialidades e fraquezas, permite que a
estima e o respeito surjam, assim como a noção de autoria e
responsabilidade (Ricoeur, 1995). Estima e respeito derivados do
reconhecimento recíproco, entre pessoa adoecida e profissional,
do encontro com um outro que faz um percurso semelhante para
manter-se vivo, para buscar pela realização e para haver-se com
os limites impostos pela vida. É neste encontro, genuíno, entre
pessoas que pode residir um terreno fértil para o surgimento da
solidariedade e para a construção de uma parceria respeitosa.
Ayres e Anéas (2011), abordando a questão da solidariedade,
apontam que esta atitude favorece a identificação das
necessidades presentes por meio da formação de um vínculo
disposto ao encontro. Neste sentido, a presença do profissional
diante da pessoa adoecida ultrapassa a condição de aplicação de
um saber “absolutizado”, abrindo espaço para o compartilhamento
de responsabilidades na apropriação criativa do instrumental
tecnológico. A atitude de solidariedade pode promover, desta
forma, a construção de perspectivas existenciais mais autênticas,
vinculadas aos projetos de vida em questão. Ricoeur (1995)
fala, ainda, sobre autoria e responsabilidade, como marcas da
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 94

relação entre pessoas, vistas como capazes de pensar e se posi-


cionar, realizando escolhas que se encontram dentro dos limites
de suas existências e possibilidades. Desse modo, cada um é
responsável pelos rumos que toma em sua própria vida, mas
também é responsável pelas possibilidades que apresenta ao
outro para escolher, na medida em que participa da constituição
do mundo do outro.
Relações pautadas pela solidariedade, entendida como a
abertura que permite o desenvolvimento da eficácia das pessoas
a partir do fortalecimento e ajuda mútuos, podem compor uma
comunidade, de acordo com Stein (1933/2003). Dessa forma, a
comunidade, ou uma equipe organizada enquanto tal, implica no
estabelecimento de relações que podem promover crescimento e
cuidado por meio de um envolvimento com esforços para viver e
criar juntos. Neste sentido, o contato com o que de fato se passa
com as pessoas adoecidas e com os profissionais, com as
vivências particulares de cada um, e a disponibilidade para
conhecer e pensar junto podem favorecer o surgimento de uma
relação entre ambos que os fortaleçam, enquanto pessoas unidas
em busca de um sentido comum.
Esta aproximação das pessoas, tais como são e da forma
como apreendem o mundo à sua volta, pode permitir que
potências singulares sejam despertadas, colocadas em ação e
atualizadas. Isto remete à importância de se manter ‘em relação’,
apresentando ao outro aquilo que se é e observando aquilo que o
outro oferece. Considera-se que isto tem fundamental importância
diante de uma realidade que se mostra instável e cercada de
eventos imprevisíveis. Vale destacar que, na perspectiva de Stein
(1933/2003), para manter-se ‘em relação’ é preciso que as pes-
soas sejam solidárias umas com as outras, ou que mantenham
uma atitude de disponibilidade positiva, e que se sintam respon-
sáveis pelo que acontece com o outro, seja em função de uma
ação diretamente praticada ou não. A autora afirma, ainda, que
são a solidariedade e a responsabilização recíproca que podem
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 95

fornecer a fonte de força para enfrentar o imprevisível e para


pensar o impensável.

Considerações Finais

A partir das reflexões realizadas, pode-se afirmar que a


Psicologia oferece um arcabouço teórico e prático que se coloca a
serviço de uma busca conjunta pela produção de saúde
(Chiattone, 2011). Esta perspectiva do trabalho psicológico se
aproxima da valorização dos sujeitos, das relações dialógicas e
trocas solidárias, presentes na concepção de humanização
(Oliveira & Macedo, 2008).
Assim, ao pensar as ações humanizadas em diálogo com
estes elementos teóricos e práticos, advindos da Psicologia, pode-
se reconhecer que a humanização não se realiza nem se esgota
com a definição e implementação de ações padronizadas, como
chamar a pessoa adoecida pelo nome ou proporcionar momentos
de distração no ambiente hospitalar. Ao contrário, neste caso, ela
pode aparecer como mais um protocolo de condutas, executado
mecanicamente, com pouca conexão com as vivências da pessoa
adoecida.
As reflexões derivadas da teoria de Winnicott e da visão
de saúde-doença de Ricoeur permitiram compreender as ações
humanizadas como o meio para estabelecer um ambiente facilita-
dor de um cuidado ampliado nos contextos de atenção à saúde.
Tal ambiente é composto pela presença constante da busca pelo
entendimento das necessidades singulares da pessoa adoecida e
pelas tentativas de satisfazê-las a partir de negociações legítimas
entre os limites da instituição, do profissional e da perspectiva
da pessoa internada. Nesta direção, a humanização figura como
um potencial instrumento de promoção da recuperação integral da
pessoa adoecida, abarcando a possibilidade de auxílio na recons-
tituição da noção de si e de um projeto de vida.
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 96

Os saberes derivados da Psicologia podem, assim,


oferecer a possibilidade de compreensão daquilo que acontece
nos contextos de atenção a saúde, permitindo a discriminação de
necessidades e de formas de atendê-las que correspondam aos
sentidos atribuídos pela pessoa adoecida e pelo profissional. A
abertura e o interesse pelas concepções de pessoa e de saúde,
que orientam as ações dos profissionais, podem favorecer a
ampliação da crítica sobre o trabalho em saúde, com o
aparecimento da criatividade no fazer cotidiano. Isto remete à
criação de espaços de reflexão sobre este fazer, espaços estes
que incluam e suportem o não-saber, relacionado à pessoa
adoecida e às possíveis respostas às suas necessidades. Consi-
dera-se que é neste contexto, onde as perguntas permanecem
temporariamente sem respostas, que a criatividade pode se
manifestar.
Além disso, um espaço aberto ao novo só pode se consti-
tuir a partir da possibilidade de encontrar apoio no ambiente de
trabalho, daí a importância do desenvolvimento de relações
solidárias entre pessoas que estão envolvidas em uma mesma
tarefa desafiadora. Neste sentido, a perspectiva humanizada, no
modo aqui discutido, também pode ser aplicada aos profissionais,
principalmente, em relação à forma como a tarefa de cuidar é
entendida e realizada nos serviços de saúde. Ressalta-se a
importância da busca pelo estabelecimento de um ambiente
facilitador do trabalho, oferecendo, a quem realiza as ações,
oportunidades de amparo e de trocas que favoreçam o
crescimento e a segurança.
Torna-se necessário incorporar às oportunidades de
amparo uma ponderação sobre o que é possível ser realizado em
diferentes momentos pelos profissionais. Estes também precisam
ser vistos como pessoas, portadoras de uma história e de neces-
sidades que interferem e fazem parte de seu trabalho. Construir
um ambiente humanizado e facilitador também deve contemplar a
realidade vivida pelos profissionais. Os serviços de saúde podem
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 97

conter diversas deficiências que tornam o trabalho mais difícil,


como o número inadequado de profissionais e a falta de materiais.
Estas condições deficientes muitas vezes são ignoradas quando
se avalia e se estabelece uma expectativa de desempenho dos
profissionais, confrontando-os com exigências incongruentes
com a realidade.
O contato constante com o sofrimento do outro e com os
limites humanos pode provocar desgastes físico e emocional,
gerando sofrimento também para o profissional. Reconhecer este
aspecto do trabalho em saúde pode favorecer o surgimento de
negociações diferenciadas dentro da equipe, como na situação
em que um profissional apresente necessidades pontuais e possa
ser visto como alguém que pode ser poupado de algumas ativida-
des em um determinado dia. Considera-se que esta postura de
interesse e respeito pelas pessoas que realizam o cuidado em
saúde corresponde a um olhar humanizado e flexível nos ambien-
tes de saúde. É neste contexto que se afirma a fecundidade da
parceria entre os profissionais, incluindo os da Psicologia, para a
consecução de projetos de humanização efetivos, nos quais tanto
as pessoas adoecidas, como os profissionais e cuidadores, pos-
sam se beneficiar de um olhar solidário e amparador que os esti-
mule a permanecer em contínuo desenvolvimento.

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P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 100
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 101

Os segredos familiares no processo clínico:


A escuta a partir do psicodiagnóstico interventivo
Deise Coelho de Souza
Martha Franco Diniz Hueb
Fabio Scorsolini-Comin

Tem mais presença em mim o que me falta.


Manoel de Barros, Poesia completa, 2010.

A psicanálise dos vínculos sociais proposta por Pierre


Benghozi (2005, 2010) tem enfatizado o seu interesse na trans-
missão dos sintomas a partir dos vínculos estabelecidos na família
ao longo do tempo. O foco da compreensão desse autor não
estaria apenas na história de origem da criança e suas primeiras
relações com os pais, mas no modo como as suas vinculações
posteriores, na fase adulta, por exemplo, poderiam promover
leituras menos deterministas acerca do desenvolvimento, com a
possibilidade de que os vínculos considerados traumáticos
pudessem ser desmalhados e remalhados por meio do
estabelecimento de relacionamentos interpessoais considerados
mais saudáveis, dando continuidade a processos mais adapta-
tivos.
No contexto da parentalidade adotiva, o segredo sobre a
história de origem da criança pode ser um dos complicadores do
desenvolvimento do casal e também do filho por adoção, haja
vista que a não revelação pode dar vazão a fantasias tanto dos
filhos quanto dos pais, que temem a rejeição por parte da criança,
a curiosidade por conhecer os pais biológicos e mesmo a fantasia
de que seus filhos lhes sejam roubados, ou que eles pais os estão
roubando daqueles que os geraram (Cecílio & Scorsolini-Comin,
2013; Hueb, 2012; Otuka, Scorsolini-Comin, & Santos, 2012,
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 102

2013; Rosa, 2008; Sólon, 2009). Essas dificuldades, tanto do ca-


sal como da criança que passou pelo processo de adoção, podem
levar as famílias à busca por ajuda psicológica.
O processo terapêutico é uma das estratégias desenvol-
vidas para o atendimento de pais e crianças neste contexto. Mas
nem sempre essa demanda apresenta-se de maneira clara,
podendo ser mascarada por dificuldades de adaptação da criança
ao ambiente escolar, por exemplo, podendo ser investigada a
partir do processo psicodiagnóstico. O objetivo deste capítulo é
apresentar um estudo de caso que discute a construção do
processo terapêutico com uma criança que possuía como queixa
a dificuldade escolar e as constantes “mentiras” que contava. Ao
longo dos atendimentos, pode-se compreender que essas
fantasias se remetiam à própria história pregressa da criança, não
revelada pelos pais. Assim, trata-se de um estudo de caso
conduzido a partir dos pressupostos da pesquisa qualitativa. O
estudo de caso foi escolhido como método investigativo por pos-
sibilitar a compreensão aprofundada de uma dada realidade – a
história dos segredos familiares – , a fim de que sejam
estabelecidas possibilidades interpretativas que contribuam com a
prática clínica (Peres & Santos, 2005). O referencial adotado é o
psicanalítico, com destaque para as proposições de Benghozi
(2005, 2010) acerca dos vínculos geracionais.

O psicodiagnóstico interventivo com a participação da


família

O processo psicodiagnóstico tradicional é de caráter


científico, uma vez que utiliza levantamento prévio de hipóteses a
serem investigadas por meio de caminhos predeterminados. A
obtenção desse material ocorre a partir de uma entrevista inicial,
aplicação de testes para confirmação ou rejeição de hipóteses e,
por fim, uma entrevista devolutiva com o paciente para informar os
resultados alcançados (Barbieri, 2010, 2008; Trinca, 1984). O
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 103

psicodiagnóstico interventivo mantém o enfoque de avaliação,


mas também o intuito de intervir junto ao paciente ao longo do
processo. Durante a aplicação dos testes projetivos, são utilizados
assinalamentos e interpretações ao longo de todos os encontros
com o paciente que, apesar do tempo restrito, é impelido a se
defrontar com distintas etapas de seu desenvolvimento (Barbieri,
Jacquemin, & Biasoli-Alves, 2007; Mishima-Gomes, 2011). Esse
processo interventivo possui elementos semelhantes às consultas
terapêuticas apresentadas por Winnicott (Barbieri, Jacquemin, &
Biasoli-Alves, 2004), pois servem tanto como instrumento de
investigação dos mecanismos primários do desenvolvimento como
elemento de diagnóstico.
O processo psicodiagnóstico, tal qual as consultas
terapêuticas, possibilita um tratamento breve, além de permitir
uma maior segurança de resultados, que asseguram precisão e
profundidade, alcançados por meio de testes psicológicos e
entrevistas. A partir dessa concepção, foi construído o Estágio
Supervisionado Clínico I na modalidade Psicodiagnóstico
Interventivo com o intuito de realizar intervenções psicológicas,
por meio de acolhimento, interpretações e holding, durante entre-
vistas e aplicação de técnicas projetivas. Essa metodologia foi
aplicada de forma a dar maior segurança ao diagnóstico psicológi-
co em crianças de três a 12 anos de idade e também orientar os
pais ou responsáveis das crianças em intervenção.
Com base nessa perspectiva o caso acompanhado foi da
menina Roberta (nome fictício), de seis anos de idade, encami-
nhada por um profissional de Psicologia ao Centro de Estudo e
Pesquisa em Psicologia Aplicada da Universidade Federal do
Triângulo Mineiro (CEPPA-UFTM). A queixa inicial apresentada
pelos pais era dificuldade escolar e constantes mentiras, além da
necessidade de dar continuidade ao atendimento que era realiza-
do em uma Unidade Básica de Saúde.

O caso de Roberta
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 104

O atendimento foi realizado em 12 sessões, sendo quatro


delas com os pais e oito com a criança. As técnicas utilizadas
foram a entrevista inicial e de orientações com os pais e a hora
lúdica diagnóstica e interventiva com a paciente. Para o
levantamento da história de vida da criança foram realizadas duas
sessões, sendo que o pai participou apenas da segunda. Ao longo
do processo houve mais uma entrevista com a mãe e, no fim do
atendimento, uma devolutiva com o casal.
Com a criança, em todos os encontros, realizou-se a hora
lúdica com o suporte da caixa lúdica e de outros jogos adequados
à idade. Ocorreu o planejamento de outros procedimentos projeti-
vos, como o Desenho Estória da Família, de Trinca (1997), e a
Técnica do Rabisco de Winnicott (1994), mas que não foram apli-
cados, de fato, em função da negação da criança a realizá-los. De
acordo com Nunes (2000), a hora lúdica possibilita que sejam
criadas estruturas que permitem o aparecimento de fenômenos
que não surgiriam por meio apenas da palavra, sendo que isso
ocorre em função da criança projetar suas questões-chaves no
jogo e na forma como utiliza os materiais propostos. Essa situação
é possível em função do jogo ser a maneira de discurso da
criança, o que viabiliza tanto possibilidades terapêuticas quanto
diagnósticas.

A chegada da família ao atendimento: encontro com


os pais

Na primeira entrevista realizada com a mãe de Roberta, a


queixa inicial foi a respeito das mentiras da criança e sobre seu
comportamento considerado “difícil”, sendo que as professoras
fizeram comentários sobre as atitudes da menina. Foram ressalta-
das as dificuldades na escola, principalmente para escrever, e que
as professoras chegaram a indicar que a mãe procurasse auxílio
de um terapeuta ocupacional. A mãe relatou que a menina é lenta
para escrever e pede muita ajuda para fazer as tarefas de casa.
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 105

Quando a mãe se recusa a ajudá-la, a menina diz: “Você não é


mais minha mãe”.
No segundo encontro, o pai de Roberta acrescentou que a
filha tem questionado muito em relação às decisões que os pais
tomam. No entanto, era possível perceber que o maior receio dos
pais era que essas queixas tivessem relação com o fato de
Roberta ter sido adotada, sendo que esses não lhe contaram a
respeito de sua situação de forma clara, afirmando apenas em
uma ocasião que a menina era sua filha do coração, que não
havia saído da barriga da mãe como os outros dois irmãos (um
mais velho, de 21 anos, e outro de três anos e meio). Briani (2008)
afirma que por mais que o processo de abandono que leva à
adoção cause danos no desenvolvimento infantil, não é plausível
atribuir qualquer dificuldade que surja na vida da criança a esse
fato, uma vez que, apesar de possuir particularidades, é
fundamental que tanto a criança quanto seus familiares possuam
recursos internos para lidar com as complexidades do processo
de adoção. No entanto, o fato de não saber de sua origem, de se
acobertar o processo adotivo, pode ser muito mais danoso à
criança envolvida do que o fato de ter sido adotada. O “não-dito” é
muito mais cruel do que aquilo que tem por se revelar. Em geral,
vê-se muito mais deterioração nas relações humanas pelo “não-
dito” do que por aquilo que, às vezes, se diz (Schettini, 2009).
Depreendeu-se que a queixa de dificuldade escolar estaria vindo
para denunciar o “não saber” sobre a adoção, e que somente o
acesso ao saber poderia atuar como forma de diminuição dos
sintomas, conforme pontuam Lipp, Mello e Ribeiro (2011).
Ademais, o que está subjacente na difícil situação de
revelar a verdade é o sentimento de acabar inferiorizando ou
discriminando a criança, e com ela situação de serem pais
adotivos. A literatura comprova que quando o filho adotivo levanta
as primeiras dúvidas sobre sua origem, se lhe forem fornecidas
imediatamente respostas compatíveis com suas perguntas, irá se
acostumando a encarar a verdade com mais tranquilidade (Piccini,
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 106

1986). Notadamente, a verdade não machuca quando vem acon-


dicionada ao afeto, porém é preciso saber dizer.
Os pais tinham receios que alguém contasse a Roberta
sobre a sua origem ou que a menina passasse a questioná-los
diretamente a respeito. Quando a família opta por não revelar a
história da adoção, carrega-se constantemente o peso dessa
omissão, o que gera medo de que a descoberta do segredo ocorra
por meio de terceiros, que não o revelarão de maneira adequada.
Contudo, há de se ressaltar que, em geral, os segredos
que perduram por muito tempo encobrem acontecimentos carre-
gados de marcas dolorosas e negativas. Se é algo que não se
pode saber, depreende-se que se trata de algo ruim, negativo, que
prejudica o desenvolvimento da intimidade entre os membros da
família ao negar a realidade. Ao perceber que os pais escondem a
adoção, facilmente a criança conclui que se trata de algo vergo-
nhoso, condenável ou indigno pois, do contrário, não se justificaria
para ela o silêncio sobre esta situação (Piccini, 1986).
Outra questão relevante foi a maneira como se deu a
adoção, já que os pais adotivos a receberam com dois dias de
vida e a registraram como filha biológica, caracterizando a
chamada adoção pronta ou “à brasileira”, considerada crime pela
nova lei da adoção (Brasil, 2009). Esta terminologia, de acordo
com Lobo (2004), trata de um processo no qual ocorre uma
adoção, sem as observâncias legais, por meio da declaração de
paternidade e maternidade de um casal sobre uma criança
nascida de outra mulher que lhes entregou o filho.
Um detalhe que surgiu nos dois encontros com os pais foi
a maneira como falam de Roberta. Destacaram que a menina
possui o mesmo temperamento da mãe do pai adotivo (“arrogante,
implicante e exibida”), que as duas são muito parecidas e
próximas, embora não sejam unidas pelo laço de sangue.
Observou-se que apesar de fazerem uma comparação da filha
com a avó, pelos aspectos negativos, os pais também deixaram
implícito, sem o perceberem, que o amor familiar não é instintual e
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 107

pode ser construído. Contaram, ainda, que Roberta grita muito,


fica nervosa quando não fazem as coisas da forma como ela de-
seja, comentando que consegue “tudo que ela quer”.

O encontro com a criança

No primeiro encontro com Roberta, foi-lhe informado


sobre a queixa inicial dos pais. A criança concordou que
realmente estava sendo um pouco indisciplinada e que, às vezes,
contava algumas mentiras, mas negou sua dificuldade na escola.
Em função disso, ela escreveu algumas coisas e não foi possível
perceber a demanda apresentada pela mãe de que a menina
escrevia devagar ou que não tinha conhecimento, sendo capaz de
realizar atividades que estavam de acordo com sua idade e o nível
de desenvolvimento esperado. No entanto, é muito comum que
crianças adotivas que não possuem informação sobre sua origem
apresentem dificuldades escolares. Piccini (1986), sustentando-se
em Freud (1948) e em Klein (1959/1991), argumenta que a
criança, ao perceber que determinados conhecimentos lhe são
proibidos, costuma reprimir estes e, por extensão, outros, o que
pode acarretar graves prejuízos escolares.
Ao longo da primeira sessão, a criança contou três
mentiras, sendo a primeira de que o nome da professora era o
mesmo da estagiária, mas em seguida disse que na realidade era
o da diretora da escola. A segunda mentira foi referente a uma
vivência fantasiosa sobre sair da escola e ir estudar na mesma
instituição escolar de uma telenovela. A terceira mentira foi sobre
já cozinhar em casa e que o fogão era de seu tamanho. A partir
dessas situações, todas elas apresentadas de maneira muito
teatral, foi possível perceber a reclamação da mãe de que a
menina estava faltando com a verdade. Ressalta-se que fantasiar,
ou alterar a realidade conforme seu desejo, é algo comum
em fases iniciais do desenvolvimento infantil, quando do compor-
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 108

tamento egocêntrico, fato pouco usual a partir dos seis anos,


idade da paciente (Soifer, 1992).
No segundo e terceiro encontros, Roberta mostrou que se
preocupava imensamente com a sua aparência e com a organiza-
ção do ambiente. Isso pode ser notado quando brincavam com um
jogo da memória. Em alguns momentos, o desejo de manter as
cartas organizadas foi tão intenso que não foi possível jogar, pois
o alinhamento das cartas sempre se alterava, o que deixava a
paciente extremamente furiosa.
Roberta também demonstrou um grande desejo de brincar
com as tintas, mas apenas no segundo atendimento ela foi capaz
de produzir as duas primeiras letras de seu nome na folha, sendo
que, em seguida, na terceira sessão, ela apenas misturou as
tintas, as relacionando com “cocô”. Quando questionada sobre o
que mais em sua vida estava “misturado” e confuso, Roberta
apenas fitava a estagiária e, em seguida, voltava a misturar a tinta
com mais força. No terceiro e quarto atendimentos, apresentou
dificuldade em deixar a sala de atendimento quando findou a
sessão, sendo que em ambas as sessões começou a bagunçar e
a sujar a sala com tinta, após lhe ser informado que o horário
havia finalizado, conseguindo o seu intento: mesmo deixando a
sala, a estagiária ainda “permaneceria” com ela, pois precisava
limpar a sujeira produzida pela mistura e bagunça de tintas.
Nesses momentos, os comportamentos de necessidade de con-
trole do jogo, da sessão e das atitudes da estagiária ficaram
evidentes, sendo que quando frustrada Roberta se mostrava
nervosa, afirmando que não voltaria mais ao atendimento, além de
reclamar da estagiária nos momentos em que esta não fazia as
coisas da maneira como Roberta gostaria. Maneira similar
observada no relacionamento para com a mãe, quando dizia:
“você não é mais minha mãe”. Outra característica percebida foi
que a criança, apesar de querer que seus desejos fossem satisfei-
tos, não tinha paciência em explicá-los ou argumentar sobre o
porquê de serem satisfeitos. Ao ser questionada sobre isso, a
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 109

menina apenas se calava, ou voltava a dizer em voz mais alterada


o que queria e como gostaria que a estagiária agisse, tentando ter
um controle sobre tudo. Ao longo desses atendimentos, Roberta
voltou a contar mentiras, ou então acrescentava fantasias sobre
situações que de fato ocorreram.
No quarto atendimento, chegou um pouco mais tranquila,
comentou que tinha ficado com raiva no término da sessão
anterior, mas que já havia acabado. Neste encontro a menina
apresentou muito sua raiva e agressividade, isso foi observado ao
jogar com muita força e bater a “mãozinha” do jogo “Tapa-certo”
muitas vezes na mesa, com força, além de também bater leve-
mente na cabeça da estagiária. Outro dado foi que a criança gritou
muitas vezes na sala. Ao ser salientado que poderia atrapalhar
outras pessoas em atendimento, ela riu e comentou que gritar lhe
agradava muito. Em um dado momento, a menina apagou a luz da
sala e disse que assim ficava melhor. Ao longo desse período em
que a sala ficou apenas em meia-luz, a menina comentou baixinho
que não tinha mãe, mas ao ser questionada novamente sobre o
que havia pronunciado disse estar brincando. O que ela pode
dizer apenas no escuro? O que não está claro para ela? O que
falta iluminar? Seria a verdade dos fatos? A verdade sobre sua
origem?, perguntava-se a estagiária.

O terceiro encontro com a mãe: o segredo familiar

Após o quarto atendimento com a criança, a mãe solicitou


um encontro, que foi agendado. Mostrou grande preocupação,
pois a filha havia lhe perguntado: “Mamãe, me fala a verdade, eu
sou adotada?”. A mãe não foi capaz de responder de maneira
clara, disse novamente que ela era filha do coração, que foi um
presente de Deus e que, ao contrário dos outros dois filhos, ela foi
realmente escolhida pelos pais, mas em nenhum momento disse:
“sim, você foi adotada”. Levando-se em conta a idade da criança,
seis anos, a qual é caracterizada pelo raciocínio concreto, acredi-
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 110

ta-se que seria muito difícil para ela processar uma abstração,
compreender o que é ser “escolhida pelos pais”. A mãe destaca
que depois disso a menina não voltou a lhe perguntar diretamente,
mas que tem feito constantes comentários sobre a personagem de
uma novela que é adotada. Briani (2008) salienta que é grande a
angústia gerada na criança por não ter um conhecimento real da
verdade que lhe possibilite elaborar esse sentimento de rejeição
pela família de origem e não pertencimento por laços de sangue à
família adotante.
Os pais já haviam conversado entre si a respeito do
assunto, mas não haviam decidido a melhor forma de revelar esse
fato. Briani (2008) argumenta que, ainda que se conte a verdade,
muitas vezes esta nunca é revelada completamente, gerando um
vazio que necessita ser preenchido nas relações. Os pais obser-
vavam que a menina já tinha indícios acerca de seu processo de
adoção, inclusive comentando com os familiares sobre algumas
diferenças que ela própria constatara, como a cor de sua pele,
ligeiramente mais escura que a dos pais, o cabelo mais crespo
que o da mãe, além do que o primo havia lhe dito certa vez ao
brincarem, que ela era adotada, o que a levou a perguntar para os
pais se de fato o era, ocasionando a resposta vaga e abstrata de
que não havia sido gerada biologicamente pela mãe, entre outras
situações. Em momento inesperado, o primo fez-lhe uma revela-
ção, a qual a mãe não soube aproveitar para lhe apresentar a
verdade.
A mãe destacou que tinha medo de que Roberta quisesse
conhecer sua família biológica e que intensificasse seu
comportamento autoritário e controlador ao confirmar a verdade.
Embora haja intensos temores dos pais em revelar a verdade
sobre a história da criança que foi adotada, há de se destacar que
a literatura aponta que é extremamente importante saber da sua
história, além do que há de se levar em conta que é um direito da
criança conhecer a sua origem (Nabinger & Chaves, 2005; Silva,
2002).
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 111

A mãe revelou outras situações que mostram um histórico


de segredo em sua família ou o modo como os “segredos familia-
res” são ocultados e transmitidos de uma geração a outra. O filho
mais velho não é filho biológico de seu marido. Ela já se
encontrava grávida quando começou a namorar com ele. A
verdade só foi revelada pela mãe ao filho quando este completou
15 anos. À época, o adolescente ficou revoltado, porém pediu que
o pai não fosse informado que ele havia descoberto a verdade,
sendo que a mãe aceitou o conluio e hoje, passados seis anos,
nunca mais se comentou sobre o assunto. Hipotetiza-se que o
adolescente pudesse ter medo que o pai passasse a rejeitá-lo, ou
que ele próprio viesse a rejeitar o pai – antes considerado
biológico, hoje pai adotivo –, já que havia um acordo familiar entre
o casal e o filho adolescente de que a irmã adotiva não poderia
saber da sua história pregressa. Ou seja, se a irmã não poderia
ter conhecimento de sua origem para não se sentir rejeitada, e
não despertar lhe o desejo de procurar seus pais biológicos, o
adolescente possivelmente deduziu que não poderia revelar ao
pai que sabia de sua condição de adotado, pois também poderia
querer conhecer seu pai biológico e abandonar aquele que o
criou. Era preciso reprimir e criar um novo segredo familiar. A
associação que se estabelece é que para esta família a verdade é
compreendida como muito perigosa. Ao invés de união, indica
rejeição, separação. Portanto, houve uma revelação unilateral que
deslocou o lugar de terceiro excluído, antes ocupado pelo filho,
agora ocupado pelo pai. Uma revelação que ficou novamente
encoberta, novamente velada.
Apesar de haver três casos de adoção na família, a avó
paterna também o é, e inclusive já falou abertamente sobre a sua
própria adoção com a neta, o casal parental apresenta
dificuldades em lidar com a situação. Presume-se que, na
verdade, a dificuldade não se dá propriamente com a situação da
adoção, mas com o fato de haver tendências em viver em um
patamar idealizado por não conseguir lidar com dados da realida-
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 112

de, com as frustrações, com o medo do abandono, a agressivida-


de interna de cada um. Provavelmente, a mãe não consegue lidar
com a questão do abandono por não ter resolvido sua própria
situação, o que faz perpetuar nesta família este fantasma. Se
encontrava grávida de outro quando se vinculou ao atual
companheiro, pai de seu terceiro filho. Pode ter sido “abandonada”
pelo pai biológico do primeiro filho, hoje adolescente, que também
evita conhecer a sua história, provavelmente por medo de
abandonar ou ser abandonado, fato que faz perpetuar o segredo
familiar por gerações, como apontado pela literatura (Eiguer,
1985; Falcke & Wagner, 2003; Kaës, 2001, 2005).
Atualmente, não se questiona mais se deve-se revelar ou
não a adoção. Hoje estão em pauta três questões: Como contar?
Quando contar? E quem vai contar? Na oportunidade, a mãe foi
instruída a procurar acompanhamento psicoterapêutico para si,
além de discutir com o marido sobre a necessidade de se
prepararem para contar a verdade a Roberta em um futuro próxi-
mo, pois quando a história não é falada, recai sobre a criança o
escoamento do conflito entre o seu saber inconsciente e o seu
não saber consciente (Lipp, Mello, & Ribeiro, 2011).
Neste encontro com a mãe, os segredos familiares revela-
ram um modo de constituição familiar, haja vista que não ocorria
apenas no caso de Roberta, mas também no caso de seu irmão
mais velho. O segredo sobre a origem de Roberta não se
justificava apenas pelo medo de que os pais perdessem o amor
da filha e ela os rejeitasse, mas que também fosse descoberto o
modo como se processou a sua adoção, a rejeição da mãe
biológica assim que o bebê nasceu e a adoção pronta,
materializada em meio à ilegalidade. Desse modo, a rotina de
constantes “mentiras” por parte da menina destacava a própria
mentira acerca de sua origem e de sua história. Ao não revelar à
criança o fato de esta ser filha adotiva, gerava em Roberta a
angústia por desconhecer o seu próprio passado. A sua revolta se
manifestava, desse modo, na necessidade de controle, na
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 113

agressividade e nas pequenas mentiras que contava com


frequência. Ela também vivia em uma família que mentia constan-
temente, o que denota uma agressividade interna do casal
parental, achando que protegê-la seria omitir-lhe a verdade. Como
destacado por Benghozi (2010), a não-revelação do segredo pos-
sibilita a concepção de um sintoma que pode ser transmitido de
uma geração a outra, caso o trauma não seja elaborado. A
alternativa de receber um atendimento psicológico propiciava à
criança rever sua origem, partindo em busca de sua adaptação e
da aceitação de sua história.
O conceito de transmissão psíquica intergeracional, que
ocorre de uma geração a outra, pode se dar pela via do negativo,
ou seja, seriam transmitidos os aspectos desadaptativos, os não-
ditos, os não-representáveis, os não-elaborados, de modo que os
segredos familiares funcionariam como elo de uma geração a
outra. Caso uma geração não conseguisse elaborar seus traumas
e fantasmas, transmitiria à próxima geração a missão de perpetu-
ar o segredo ou mesmo tentar elaborar o aspecto negativo. Esses
traumas e fantasmas familiares poderiam ser atualizados na
próxima geração como sintomas em dados membros da família,
de modo que o tratamento deveria evocar não apenas a história
do indivíduo, mas de sua origem (Eiguer, 1985; Falcke & Wagner,
2003; Kaës, 2001, 2005; Valdanha, Scorsolini-Comin, & Santos,
2013).

A continuação do atendimento de Roberta

O quinto atendimento de Roberta permitiu que ela expres-


sasse as dificuldades em lidar com frustrações. A menina estava
perdendo um jogo e após constatar isso passou a roubar e a
tentar mudar as regras estipuladas. A criança já havia tentado
modificar as regras anteriormente, mas neste encontro ficou
extremamente nervosa. Em sessão posterior, ficou com receio de
perder, passando a burlar as regras. Ao ser questionada sobre
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 114

isso, comentou que era a estagiária quem estava roubando, mas


não foi capaz de argumentar de qual maneira isso estava ocor-
rendo.
No sétimo encontro foi possível perceber que ela tinha
mais facilidade em revelar algumas angústias quando a estagiária
se encontrava, de certa forma, no escuro, como havia se dado na
quarta sessão. Assim, ao modificar as regras de um jogo, Roberta
pediu que a estagiária fechasse os olhos, o que de fato a manteria
no escuro, ao ser impossibilitada de enxergar. Ao ser atendido seu
desejo, ela manteve a estagiária de olhos fechados por um longo
período. Esta perguntou sobre o incômodo de ficar desta maneira
e se poderia abrir os olhos novamente. Com a negativa da meni-
na, lhe foi questionado se alguém a deixava no escuro. Roberta
comentou que sua mãe e também seu pai a deixavam no escuro,
mas não falou mais sobre o assunto.
Nesta sessão, Roberta perguntou se a estagiária havia
conversado com a sua mãe. A menina então disse que a estagiá-
ria havia se encontrado secretamente com a mãe e lhe contado
todos os “seus segredos”. A estagiária reafirmou a questão do
sigilo, e que havia lhe pedido autorização anteriormente para falar
com a sua mãe, o que lhe foi consentido, mas Roberta disse que
era mentira e que a mãe havia lhe batido ao descobrir “seus se-
gredos”. Embora a estagiária reforçasse que nada havia sido dito
do conteúdo das sessões para a mãe, Roberta a culpava por ter
revelado seus segredos. Associa-se que a paciente se expressou
dessa maneira por “saber” que há um “terrível” segredo da mãe
para com ela e transferencialmente projetou na estagiária a som-
bra da mãe. A estagiária, por meio da transferência, passou a ser
vista como a mãe neste momento.
A manutenção do segredo pode fazer com que a criança
se sinta vítima de uma traição (Silva, 2002), demonstrando
sentimentos de revolta. Roberta sentia-se traída pela mãe e pela
estagiária. A não revelação da sua história por parte da mãe
aumentava a angústia da criança, de modo que esse segredo
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 115

passava a ser um elo traumático na família, desencadeando o


sintoma (Benghozi, 2010). A história da criança, como não havia
sido elaborada pelos pais, fazia com que eles se sentissem
amedrontados e não revelassem o seu conteúdo para a filha.
Ainda assim, esse segredo não é totalmente ocultado, de modo
que a criança possui indícios conscientes e inconscientes sobre a
sua história. A fantasia dos pais de roubo da criança se perpetua-
va nas ações da filha. Ela roubava nos jogos com a terapeuta e
mentia como os pais. O sintoma representado pelas suas constan-
tes mentiras recupera não apenas dificuldades internas, como a
dificuldade da família em lidar com esse processo de adoção, que
foi mascarado de todas as formas. Analisando a história da
família, fica claro que essa dificuldade se remete a histórias
pregressas não elaboradas, de modo que o vínculo passa a se
constituir pelo viés do negativo, do não elaborado, daquilo que
não encontrou uma representação psíquica (Eiguer, 1985; Kaës,
2005).
O oitavo encontro foi o último atendimento de Roberta. Foi
realizada a devolutiva para a criança, na qual se frisou sobre o
quanto a menina era vaidosa, bonita e que admirava extremamen-
te sua mãe, além de ser esperta, inteligente, animada e não ter
receios em revelar o que pensa de maneira clara, além de ser
muito organizada. Porém, que ela tem a tendência a querer que
tudo seja feito de seu jeito, sendo que isso pode lhe gerar alguns
problemas em seus relacionamentos. Roberta não concordou com
essa afirmativa. Ao lhe ser questionado sobre o que acontecia
com seus colegas de escola quando não concordavam com ela,
disse que batia nesses, mas que não era por ser autoritária,
apenas por desejar que tudo fosse realizado de acordo com seu
desejo. Comentou-se sobre os segredos que Roberta estava per-
cebendo e que nem todos ela foi capaz de dividir. A menina
afirmou que não podia revelá-los porque eram segredos de seus
pais e de seu irmão mais velho. Este fato sugere que até mesmo
para Roberta a manutenção do segredo é questão de vida; no
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 116

entanto, ela ainda não consegue perceber que se trata de um


morrer em vida, uma vida falsa, sustentada na mentira. Salientou-
se também sobre os diversos momentos em que Roberta ficou
nervosa e desejou não retornar mais ao atendimento, mas o quan-
to havia sido gratificante para a estagiária que ela continuasse.
Por fim, foi informada de que seria encaminhada ao aten-
dimento psicoterapêutico. Ela questionou se continuaria com a
mesma estagiária e, ao lhe ser informado que não, mostrou-se
desconfiada e desgostosa, com um sentimento de estar sendo
trocada, mas por fim concordou em conhecer a nova estagiária,
quando for chamada para o atendimento. Segundo Nabinger e
Chaves (2005), é possível perceber um sentimento de persecuto-
riedade relacionado aos sentimentos de abandono e de dúvida da
origem em crianças que foram adotadas. Contudo, o fato de ter
aceitado a possibilidade de continuar com outra terapeuta, sugere
um bom prognóstico. Aponta indícios de que a paciente vislumbra
que, apesar de abandonos ao longo da vida, há a possibilidade de
se estabelecer novas relações afetivas e sociais. Ela foi rejeitada
pela mãe biológica, mas conseguiu novos pais que, embora
atuando de forma inadequada quanto a revelação da origem,
mostram-se atentos ao cuidado com a saúde física e mental da
filha, já que procuraram pelo apoio psicológico.
No encerramento do processo psicodiagnóstico
interventivo, Roberta brincou um pouco com a placa da porta (que
diz na sua frente e verso: Livre/Em atendimento) como que
dizendo: “Encerrou-se, ou continuarei em atendimento?”, olhou
para a estagiária e falou: “Ah tia, ainda tenho um segredo para te
contar, depois eu vou te contar”. Em seguida, saiu da sala. Essa
atitude mostra como Roberta tentou manter o controle de todo o
processo, até mesmo no momento final, conseguindo triunfar so-
bre a estagiária. Neste instante, perversamente transferiu a an-
gústia do desconhecido para a estagiária. Já não era a paciente
que desconhecia os segredos, mas passou a ser a estagiária que
ficaria sem a revelação deles. A estagiária continuaria pensando
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 117

nela, sofrendo como ela, pois não havia conseguido de fato encer-
rar, não estaria livre.

A devolutiva com os pais

Na devolutiva com os pais lhes foram confirmadas as


queixas que ambos trouxeram, com exceção da dificuldade esco-
lar. Também foi frisada a necessidade da revelação da história de
origem à Roberta e da importância de que ambos se sentissem
preparados e que cuidassem de si para conseguirem oferecer à
criança a estrutura que ela precisará para lidar com essa verdade,
pois infelizmente não será uma situação fácil para nenhum
membro da família. Por fim, informou-se aos pais a necessidade
de que Roberta fosse encaminhada a um acompanhamento
psicoterapêutico, com o qual ambos concordaram, e afirmaram
que aguardariam para serem chamados pelo serviço de Psicolo-
gia.
Também foi comentada a importância de ambos no
processo de acompanhamento e da relevância de terem
interagido de maneira ativa para que Roberta sempre estivesse
presente às sessões agendadas. O envolvimento dos pais no
processo e suas presenças constantes podem revelar não apenas
o cuidado para com a filha, como também a necessidade de pedir
ajuda e de mostrar suas dificuldades. A possibilidade de que
ambos sejam encaminhados para atendimento surgiu como um
cuidado também aos genitores para lidar com suas dificuldades e
propor a construção de novas vinculações, de remalhagens que
possam favorecer a assunção da resiliência familiar (Benghozi,
2010), ou seja, da constituição de vínculos mais saudáveis
independentemente das primeiras vinculações estabelecidas na
família de origem.

Mentiras, fantasias e segredos: a transmissão pelo


negativo
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 118

Foi possível perceber a grande fantasia de Roberta a


respeito de variados assuntos. Ora mostrava uma megalomania,
ora uma regressão a fases anteriores do desenvolvimento de
escopofilia e exibicionismo. Contava que tinha dez piscinas na
casa de sua avó, que uma das meninas da escola comeu suas
próprias fezes e que um de seus coleguinhas foi obrigado a ficar
no corredor da escola nu por ter discordado da professora.
Roberta também comentava que sua professora batia nos alunos
e “dava bomba” a todos eles. As mentiras e fantasias de Roberta
podem ter relação com o segredo que há em sua vida. Silva
(2002) afirma que há sintomas que são gerados a partir de
segredos, sendo que podem expressar de maneira simbólica as
emoções conectadas a esse segredo. Dessa forma, Roberta age
da mesma forma que seus pais, ela conta mentiras, uma vez que
lhe omitem a verdade.
Observou-se a utilização da reparação maníaca como
mecanismo de defesa em grande parte das sessões. Em todos os
momentos em que a menina revelou algo que demonstrava suas
angústias, como falar que os pais têm mais carinho pelo irmão
mais velho, era seguido da expressão “estou brincando”, porém
pedia segredo, o que denota o citado mecanismo de defesa. A
menina também demonstrou angústias mais intensas apenas em
situações de meia-luz, como quando apagava as luzes e em dado
momento afirmava “eu não tenho mãe”, porém voltava a dizer que
estava brincando. Algumas vezes também afirmava que seus pais
a mantinham no escuro, mas em seguida retirava o que disse,
tentando reparar a expressão da angústia e não demonstrar o self
verdadeiro. Apesar de ser uma fantasia, simbolicamente era uma
grande verdade: a não revelação da origem de Roberta é uma
forma angustiante de escuridão, que pode vir a impedir a melhor
escolha de quais caminhos seguir. Importante lembrar que a
história de adoção de uma pessoa é a sua história de vida. É
necessário conhecer o passado para que se possa vivenciar o
presente e seguir deste para o futuro. Acima de tudo, o adotado
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 119

tem o direito de saber da sua história, pois quando sua origem é


mantida em segredo gera-se uma sensação de vazio, de estra-
nhamento e de incompletude, que pode ser traduzido em angús-
tias impensáveis (Hueb, 2002).
Roberta também apresenta grande desconfiança e
curiosidade, o que pode ser percebido nos vários momentos em
que pedia para ver os pertences da estagiária, além de estar
constantemente tentando descobrir algo na sala que lhe fosse
escondido. A menina demonstra saber do segredo dos pais, o que
pode ser percebido ao afirmar que não possui mãe ou que não
pode revelar o segredo que esconde porque também é um
segredo dos pais e do irmão. Fato extremamente angustiante para
a paciente, pois é ambivalente. Seria verdade o que imagina? Ou
seria uma fantasia como as histórias que conta para a estagiária,
colegas e familiares como se verdade fossem?
Importante ressaltar que todo e qualquer filho, seja ele
biológico ou adotivo, precisa ser antes de tudo “sonhado” por
seus pais. Este sonho já define o lugar do filho no seio da família.
No entanto, identifica-se como problema quando não há um
destino possível para a criança e ela tem que atender a todo custo
às exigências familiares. Entende-se que a falta de clareza na
revelação do segredo à Roberta a mantém presa em uma
emaranhada trama, o que a deixa insatisfeita consigo própria,
insegura e incapaz de sentir-se boa o suficiente de forma a
agradar seus pais. Por isso a constante mentira, desconfiança e
extrema vigilância que mantém sobre todos à sua volta.
Briani (2008) afirma que ainda que a criança não saiba
sobre sua origem, é capaz de perceber internamente que há a
presença de um segredo, o que pode levar a questões ansiogêni-
cas. Essa consideração pode ser aplicada no caso de Roberta e
seu constante sentimento de que algo lhe é escondido.

Considerações Finais
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 120

Em função do momento pelo qual Roberta está passando,


das dificuldades dos pais em lhe informarem claramente sobre a
sua história de origem, além da grande necessidade de controle
da criança, esta foi encaminhada a um acompanhamento psicote-
rapêutico. A importância do apoio psicológico reside na pos-
sibilidade de constituir um espaço que lhe permita falar a respeito
de algo que não é permitido dentro de seu contexto familiar, sendo
que este segredo dificulta o processo de elaboração da rejeição e
do fato de se sentir diferente dos demais membros da família.
Apesar de manterem o segredo, os pais foram levados a
pensar sobre a necessidade de revelá-lo, além de obterem um
espaço no qual pudessem expressar seus receios sobre as
consequências desta revelação. Ambos também foram
convidados a lidar com o fato de que, como afirma Silva (2002), a
revelação de um segredo pode ser de efeito curativo, mas
também pode gerar divisões dentro da família.
Foi possível perceber que, ao longo do processo,
Roberta foi sentindo-se mais à vontade e que, apesar da sua
necessidade de controle, suas fantasias foram diminuindo um
pouco de frequência. No entanto, a necessidade de fantasiar
também pode ter relação com a possibilidade de Roberta construir
seu próprio mundo, de acordo com suas regras e suas verdades,
no qual ela é a detentora do saber. A menina apresentou
dificuldade em expressar o mundo interno, apresentando
constantes resistências sobre falar da família, o que ocorria
apenas em momentos esporádicos ou ao longo de pequenas
frases no decorrer dos momentos de hora lúdica, acontecendo
principalmente quando se brincava de “casinha”.
Outro ponto relevante para o atendimento de Roberta foi
a constante colaboração dos pais, sendo que sempre a levavam
no horário marcado e se fizeram presentes em todos os
momentos que foram solicitados, além de eles próprios se
sentirem à vontade para solicitar entrevistas com a estagiária.
Dessa forma, é importante recuperar a importância da participa-
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 121

ção dos pais para a eficácia do processo interventivo, possibilitan-


do flexibilidade e modificações no contexto familiar da criança.
Importante também destacar a atuação da estagiária.
Foi capaz de ser continente aos conteúdos bastante regressivos
nela depositados pela paciente, assim como de manter a sua
presença real, o que implica uma permanente interação de
vincularidade entre paciente e terapeuta em termos psicanalíticos.
Ser continente aos conteúdos nela depositados implica em
assumir a função-mãe, de emprestar-lhe sua função ego, como a
de perceber, conhecer, pensar, discriminar, significar, nomear
aquilo que era evacuado, expulso de forma muito primitiva e
agressiva (Zimerman, 1999).
Conseguiu sair do campo de uma de privilegiada
observadora para uma ativa participante, sem deixar de ser ela
mesma, mostrando-se inteira nas outras sessões, mesmo quando
a paciente tentava quebrar o vínculo, como ocorrido na quarta
sessão. Esta se deu uma semana após a que a paciente havia
bagunçado a sala com tinta, fazendo com que a estagiária
simbolicamente ficasse mais tempo com ela ao ter de limpar toda
a bagunça: Roberta chegou para a quarta sessão mais tranquila,
comentou que havia ficado com raiva no final da sessão anterior,
mas que já havia acabado. Tal expressão denota que, na
transferência, a criança estaria dizendo que a estagiária também
poderia ter ficado com raiva, mas que havia passado, já que esta-
va ali esperando por ela como nos encontros anteriores.
O psicodiagnóstico interventivo possibilitou a escuta não
apenas das dificuldades da criança, mas de sua família, de modo
a conter as angústias dos pais acerca do processo de revelação
dos segredos familiares. A questão que se coloca não é da
revelação em si como solucionadora dos traumas, mas de como a
família enquanto grupo pode manejar esse processo juntamente
com a criança, fortalecendo os vínculos entre pais e filhos e
possibilitando a reelaboração de fantasmas que permeiam a
estrutura familiar. O processo terapêutico deve estar a serviço
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 122

dessa remalhagem, oferecendo suporte para que pais e filhos


criem modos mais salutares de interação e de experiências de
troca e transformação. A escuta dessas famílias por parte dos
profissionais da Psicologia deve ser fomentada como recurso
terapêutico voltado não apenas ao tratamento do sintoma ou ao
desvelamento da queixa, mas ao desenvolvimento da resiliência
familiar, tal como proposto por Benghozi (2005), o que só pode ser
conduzido a partir da compreensão da família como fonte de apoio
emocional para a expressão de sentimentos e para a construção
de vínculos seguros.

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S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 127

Práticas de saúde:
Atendimento clínico cognitivo-comportamental
de um caso de síndrome de Tourette
Adriana da Silva Sena
Luciana Maria da Silva
Sabrina Martins Barroso

O trabalho em saúde assume diversas formas, entre elas,


a atuação clínica dos profissionais de Psicologia. A preparação
para ser um psicólogo começa com o início da graduação e tem
um importante avanço nos chamados estágios curriculares e
extracurriculares. Nesse sentido, os serviços escola oferecem um
local para o desenvolvimento profissional dos futuros psicólogos e,
ainda, cria uma oportunidade de atendimento psicológico para
pessoas da comunidade que não teriam condições de arcar
financeiramente com um tratamento psicológico convencional.
Nos Serviços Escola, antes chamados de Clínicas Escola,
os estudantes de Psicologia realizam atividades de psicodiagnós-
tico, avaliação psicológica e atendimento clínico, supervisionados
por um psicólogo, professor da instituição de ensino. Pode-se
considerar, então, que os serviços de Psicologia são um ponto de
troca entre as instituições de ensino e a comunidade.
Por ser um local de formação, pode-se supor que exista
uma seleção prévia dos casos, para que os estudantes não se
deparem com algo para o qual não estarão prontos, todavia, essa
prática não é adotada, por considerar-se que após a formatura
não há esse tipo artificial de seleção. Nesse capítulo, apresenta-
remos um caso clínico de síndrome de Tourette atendido em um
serviço escola de Psicologia sob enfoque teórico cognitivo-
comportamental. Para auxiliar na compreensão do caso
apresentado, antes de descrever o processo clínico serão melhor
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 128

explicados o que são a síndrome de Tourette e a abordagem


cognitivo-comportamental.

Síndrome de Tourette

A Síndrome de Tourette foi relatada inicialmente em 1885


pelo médico francês Georges Gilles de la Tourette. Ele divulgou
nove casos com características de tiques motores e vocais nume-
rosos, em que a maioria das manifestações ocorria no rosto e nos
membros superiores das pessoas acometidas (Marcelli, 1998),
sendo o mais famoso caso divulgado o da marquesa de Dampier-
re (Teive et al., 2008). Após essa divulgação, Jean-Martin Charcot
nomeou a patologia como Síndrome de Tourette (ST).
Um registro anterior, presente no “Malleus Maleficarum”,
famoso livro da Idade Média, que ensinava como identificar e
interrogar bruxas, apresentou dois registros de pessoas que
apresentavam comportamento verbal incontrolado. Esses
comportamentos foram atribuídos à possessão demoníaca e
foram “tratados” por meio de exorcismo (Germiniani et al., 2012).
Com o passar dos anos, as explicações para a ST evoluíram da
possessão demoníaca para a exacerbação de processos
masturbatórios (Ferenczi, 1921), até ultrapassar essas
concepções e chegar à explicação complexa da sua etiologia,
marcadamente genética, adotada hoje (Germiniani et al., 2012).
Esse não foi, entretanto, um processo simples. Em seu livro sobre
a ST, “A Cursing Brain? The Histories of Tourette Syndrome” (“Um
cérebro amaldiçoado? Histórias da Síndrome de Tourette”,
tradução nossa), Kushner (1999) relata que o primeiro artigo
apresentando a hipótese de origem genética da ST foi recusado
por todos os periódicos norte-americanos para os quais foi
enviado, sendo publicado apenas anos depois de suas primeiras
tentativas de publicação, no British Journal of Psychiatry em 1968.
A ST tem prevalência estimada em entre 1% e 2,9% na
população geral (Teive et al., 2008), afetando pessoas de vários
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 129

países, independentemente de classe social ou etnia e acometen-


do cerca de três a quatro vezes mais o sexo masculino, em
relação ao sexo feminino (Teixeira et al., 2011). Segundo Santos
(1998), a ST tem origem genética, ligada ao traço autossômico
dominante e influenciada pelo sexo, o que explica a maior
prevalência entre os homens. A ST se caracteriza como transtorno
neuropsiquiátrico, diretamente associado aos núcleos basais
(Guyton & Hall, 1998), com início na infância, que pode se agravar
durante a adolescência e depois entrar em remissão ou pode
perdurar ao longo de toda a vida, prejudicando-o no aspecto
psicossocial (Pontes, 1998).
Biologicamente, a desordem que favorece o aparecimento
dos tiques se desenvolve a partir de anormalidades distintas
envolvendo a ativação da saída inibitória dos núcleos basais, mais
especificamente, nos circuitos motores, encarregados de gerar
padrões de comportamento motor (Albin & Mink, 2006). Essa
desordem está baseada em uma inervação dopaminérgica e
serotonérgica densa no corpo estriado do encéfalo, que prejudica
seu funcionamento adequado (Guyton, 1993; Albin & Mink, 2006).
O funcionamento inadequado do estriado leva ao processamento
também inadequado das informações motoras pelo córtex
pré-frontal, responsável por selecionar os comportamentos
motores que iremos emitir em dadas circunstâncias. Essa seleção
pode ser guiada por informações internas (como memória e
emoção) ou pelo contexto ambiental (Kolb & Whishaw, 2002).
Segundo a quarta edição do Manual Diagnóstico e Esta-
tístico de Transtornos Mentais (DSM IV-TR), as características
essenciais da ST consistem em:

múltiplos tiques motores e no mínimo um tique vocal (Critério


A). Os tiques podem aparecer simultaneamente ou em diferen-
tes períodos, durante a doença. Os tiques ocorrem muitas ve-
zes ao dia, de forma recorrente, ao longo de um período supe-
rior a 1 ano. Durante este período, jamais houve uma fase livre
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 130

de tique superior a 3 meses consecutivos (Critério B). O início


do transtorno ocorre antes dos 18 anos de idade (Critério C).
Os tiques não se devem aos efeitos fisiológicos diretos de uma
substância (p. ex., estimulantes) ou a uma condição médica ge-
ral (p. ex., doença de Huntington ou encefalite pós-viral) (Crité-
rio D) (DSM IV-TR, 2002, p.136).

A 10ª edição do manual de Classificação Internacional das


Doenças (CID 10) apresenta a ST com as seguintes característi-
cas: tiques vocais frequentes e múltiplos, incluindo vocalizações,
limpeza da garganta, grunhidos repetidos e explosivos. Por vezes,
pode haver emissão de palavras ou frases obscenas, associadas
em certos casos a uma ecopraxia gestual, que também pode
manifestar componente obsceno (copropraxia) (CID 10, 2003, p.
82). Para que seja feito o diagnóstico de ST é necessário que os
tiques estejam presentes há pelo menos um ano (Germiniani
et al., 2012).
A ST sofre influência emocional. Segundo Lambert e
Kinsley (2006), os relatos dos pacientes evidenciam que os
sintomas se tornam mais intensos quando as experiências se dão
em momentos de ansiedade, estresse emocional ou excitação,
facilitando o aparecimento das respostas de maneira excessiva.
Essa exacerbação demonstra a ligação existente entre o aspecto
emocional e os tiques na ST.
É também importante perceber que a ST pode ser
confundida com outros transtornos que também apresentam
tiques e características similares, como por exemplo, a repetição
compulsiva e o agravamento com o aumento da ansiedade, o que
pode levar a confusões diagnósticas com o transtorno obsessivo-
compulsivo (Kapczinski, Quevedo, & Isquierdo, 2004) ou com
Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (Barlow, 2009).
Uma parte importante do processo de diagnóstico
diferencial consiste em verificar a presença de fator cognitivo na
manutenção dos tiques e demais comportamentos. Kapczinski et
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 131

al. (2004) salientam que na ST os tiques geralmente são precedi-


dos por fenômenos sensoriais, incluindo sensações corporais
(táteis, musculoesqueléticas e/ ou viscerais), ou sensações
mentais, como sensação de tensão interna, incompletude, frustra-
ção ou desconforto, sem que haja interpretação cognitiva do tique,
como geralmente ocorre no transtorno obsessivo-compulsivo.
Estudos com pessoas diagnosticadas com ST indicam
que os sintomas e o preconceito das pessoas com relação a eles
geram dificuldades de integração social e, por vezes, inadaptação
aos vários contextos (Teixeira et al., 2011). Crianças e adolescen-
tes que sofrem com a doença são frequentemente discriminados e
possuem desvantagens em termos de desenvolvimento
psicossocial, pois seu comportamento pode ser considerado
estranho ou desrespeitoso por colegas e professores. Essa
condição pode contribuir para uma cronificação dos sintomas,
assim como para o surgimento de outros transtornos de
personalidade (DSM IV-TR, 2002). As formas de tratamento mais
adotadas para a ST são a medicamentosa e a psicoterapia, com
destaque para a abordagem psicoterapêutica cognitivo-
comportamental.

Abordagem Cognitivo-Comportamental

A Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) surgiu na dé-


cada de 1950 e ganhou corpo na década seguinte, baseada nos
trabalhos de Albert Ellis e Aaron T. Beck (Knapp & Beck, 2008).
Em sua concepção básica encontra-se o “Modelo Cognitivo”, que
explica a tríplice relação entre pensamento – emoção –
comportamento, de forma interdependente e indissociável
(Dattilio, 2004). Nesse modelo, entende-se que a forma de pensar
sobre um contexto altera a maneira como nos sentimos e agimos
nesse contexto, mas o contexto e a emoção também conseguem
alterar a forma como interpretamos as situações.
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 132

Na abordagem cognitivo-comportamental, os casos são


atendidos utilizando-se uma integração de técnicas comportamen-
tais e cognitivas, considerando que o afeto e o comportamento do
indivíduo são determinados pelo modo como ele estrutura seu
mundo em termos cognitivos (Rangé, 2008). Essa abordagem visa
desenvolver a independência e resiliência dos clientes, por isso os
terapeutas adotam uma postura de construção conjunta de
soluções com os clientes, ao mesmo tempo clínica e
didática/educacional. Ou seja, todos os aspectos da terapia são
explicados ao cliente que, juntamente com o terapeuta, trabalham
em uma relação de cooperação, na qual há o planejamento de
estratégias para enfrentar os problemas que estão prejudicando a
qualidade de vida do cliente (Knapp & Beck, 2008; Rangé, 2008).
Em seu surgimento, a TCC adotou o modelo de psicote-
rapia breve, trabalhando com protocolos fechados de atendimento
(Knapp & Beck, 2008). Por exemplo, o modelo proposto por Beck
para o tratamento da depressão é composto por 20 sessões
estruturadas, nas quais há, a priori, um planejamento do que
deverá ser trabalhado junto ao cliente, mas que será adaptado
segundo o ritmo e particularidades do cliente (Beck, 1997).
Nas últimas décadas, a TCC tem adotado um modelo
mais “aberto” de atendimento, mantendo os protocolos quando os
casos têm objetivos específicos bem delineados, mas adotando
um caráter de intervenção terapêutica sem prazo definido para os
demais casos (Knapp, 2004). Os estudos mostram que a TCC tem
modelos de tratamento para vários transtornos mentais com índi-
ces elevados de eficácia (Norte et al., 2011).
As técnicas psicoterápicas na abordagem comportamental
fornecem ferramentas que possibilitam a identificação de situa-
ções cotidianas, que atuam como eventos estressores e
aumentam a intensidade ou gravidade de certos comportamentos
(sintomas). Além disso, podem também amenizar os sintomas,
nos casos de pessoas com ST, reduzindo o aparecimento dos
tiques, bem como capacitando-as em estratégias a serem utiliza-
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 133

das para autocontrole, convertendo-as em indivíduos mais prepa-


rados para lidar com ansiedade advinda das situações rotineiras.
No caso de clientes com ST, o processo terapêutico foca em
ensiná-lo a identificar as contingências que afloram os tiques,
construindo conjuntamente os meios de enfrentamento que
permitirão quebrar associações cognitivas que dificultem o
funcionamento do indivíduo de maneira assertiva (Rangé, 2008).
Outra característica da TCC que demonstra sua utilidade
para o tratamento da ST é a demonstração que suas técnicas
conseguem estabelecer modificações estruturais no cérebro. Ao
trabalhar com a fala e com o desenvolvimento de padrões de
pensamento e comportamento, a TCC consegue usar a plas-
ticidade cerebral a seu favor, atuando e alterando os circuitos
ligados diretamente com a percepção, emoção, memória e
cognição (Landeira-Fernadez & Mello Cruz, 2007).
Dessa forma, a TCC oferece uma perspectiva interessante
para a integração com o campo da neurociência, uma vez que
qualquer intervenção está vinculada a um suporte de pesquisa
experimental e empírico (De Raedt, 2006). Baxter et al. (1992)
conseguiram demonstrar, em um estudo feito com pacientes com
transtorno obsessivo-compulsivo, que a TCC obteve resultados
equivalentes ao da medicação antipsicótica para controlar o com-
portamento compulsivo. O estudo mostrou que, após 10 semanas
de tratamento, 80% dos pacientes tratados com medicamentos e
os tratados por psicoterapia apresentaram melhora significativa
dos sintomas e voltaram a ter funcionamento adequado do núcleo
caudado do hemisfério direito, que apresentava hiperfunciona-
mento antes do tratamento. Outros estudos comprovaram que a
TCC também foi eficaz no tratamento de fobias específicas, pois
restabeleceu o metabolismo dessas estruturas a padrões normais
de ativação (Landeira-Fernandez & Silva, 2007).
Visando exemplificar a relevância dos atendimentos em
serviços escola e demonstrar a efetividade da abordagem
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 134

cognitivo-comportamental, apresentamos a seguir um estudo de


caso de síndrome de Tourette.

Descrição do caso Maria

Caracterização da cliente

Maria (nome fictício), cliente do sexo feminino, tinha 28


anos quando iniciou o acompanhamento psicoterápico em um
Serviço Escola em uma cidade de médio porte do interior da Ba-
hia. À época, possuía segundo grau completo e trabalhava como
manicure. Seus pais moravam na zona rural. Possuía dois irmãos
casados, um residindo na zona rural e o outro na mesma cidade
que a cliente. Maria foi residir com a tia para estudar e mantinha
contato esporádico com os pais e irmãos. Antes de iniciar o
acompanhamento no serviço escola já havia sido atendida por
dois psiquiatras e um psicólogo, dos quais não trazia relatos de
sucesso terapêutico. Pouco tempo após o início do acompanha-
mento relatado no presente trabalho, Maria recebeu diagnóstico
de Síndrome de Tourette.

Contextualização técnica dos atendimentos

O acompanhamento de Maria foi iniciado em março de


2010, seguindo o referencial cognitivo-comportamental. A cliente
foi atendida por uma estagiária em Psicologia, supervisionada por
professor-psicólogo responsável. O acompanhamento foi feito
durante 15 meses, totalizando 40 sessões de atendimento psico-
terápico.
Com relação aos aspectos éticos, a equipe de atendimen-
to (supervisor e estagiária) seguiram recomendações do Conselho
Federal de Psicologia e da Resolução 196/96 do Conselho Nacio-
nal de Saúde sobre pesquisas com seres humanos. A equipe
possui, também, a autorização de Maria para utilizar o relato e
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 135

análise de seu atendimento para publicação, manifesto por meio


da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Ao longo dos atendimentos várias técnicas foram empre-
gadas. Os tiques foram sistematicamente contados ao longo de
todos os atendimentos e organizados em forma de tabelas,
especificando tiques vocais e motores. Visando melhorar o
autocontrole da cliente e minimizar sua ansiedade foram feitas
sessões educativas sobre a ansiedade, ensinou-se a Maria as
técnicas de respiração diafragmática e relaxamento progressivo. A
respiração diafragmática consiste em treinar um tipo diferenciado
de respiração, em um ritmo lento de inspiração-expiração visando
ativar o diafragma, estimulando um maior controle parassimpático
e possibilitando uma influência em todo o corpo, por meio do ciclo
de respiratório (Rangé, 2008). Já o relaxamento progressivo
consiste em tensionar e relaxar diversos grupos musculares em
uma ordem pré-determinada, com objetivo de fornecer maior
conforto ao corpo. Esta técnica, assim como a respiração diafrag-
mática, está diretamente ligada à mensagem fornecida ao cérebro
sobre a maneira como o mesmo deve funcionar e contribui para
que os desconfortos provocados pela ansiedade diminuam. Ou
seja, “o relaxamento é um processo psicofisiológico que envolve
respostas somáticas e autônomas, informes verbais de tranquili-
dade e bem-estar, como estado de aquiescência motora” (Rangé,
2008, p. 115).
A técnica “treino de assertividade” também foi utilizada e
consiste em um treino de expressão verbal e emocional, de forma
a conseguir manifestar expressões de afetos e opiniões de modo
direto, sem impor-se sobre outras pessoas, mas conseguindo
defender seus direitos e pontos de vista, conquistando um
tratamento justo, igualitário e livre de demandas abusivas (Rangé,
2008; Del Prette, A., & Del Prette, Z. A., 1999). Essa técnica foi
utilizada de forma associada ao relaxamento progressivo. Deste
modo, após o relaxamento, o terapeuta conduz o cliente a discri-
minar as imagem mentais e atitudes temidas anteriormente. Isso
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 136

permite trabalhar essas imagens durante a sessão, agregando


maneiras favoráveis de lidar com esses comportamentos até que
deixem de eliciar ansiedade.
Com a evolução do caso e a constatação de muitos
comportamentos de fuga e esquiva (fazer ou deixar de fazer algo
para evitar situações geradoras de ansiedade), foi proposto um
treinamento de habilidades sociais. Nesse tipo de treinamento,
situações e metas são estabelecidas e o comportamento
apresentado pelo cliente é analisado em conjunto com o terapeuta
e propostas de comportamentos mais funcionais são discutidas,
ensaiadas e testadas pelo cliente, de forma a serem incorporadas
ao seu repertório comportamental (Del Prette, A., & Del Prette, Z.
A., 1999). Este treinamento permite uma interação
pessoa/situação implicando o indivíduo no ambiente que o rodeia
e diminuindo a probabilidade de transtornos psicológicos (Caballo,
2008).
Utilizou-se, também, sessões de ensaio de comportamen-
to/dramatização (role-play). Essa técnica auxilia o cliente a
colocar-se mais diretamente em contato com o comportamento e
ampliar seu repertório por meio da modelagem diferencial de
habilidades para resolver situações reais, trazidas pelo cliente, e
situações típicas simuladas durante as sessões (Rangé, 2008).
Outra técnica empregada foi a Intervenção psicoeducacional, que
consiste em explicar, levar material para leitura e retirar dúvidas
de clientes sobre assuntos específicos relacionados a seus
sintomas. No presente caso, os temas mais abordados relaciona-
vam-se à ansiedade, assertividade e à própria ST.
Considerando as características da ST e por entender o
funcionamento e a maneira com que o corpo humano reage diante
dos estímulos considerados ameaçadores no cotidiano, aconse-
lhou-se a cliente a praticar algum tipo de atividade física. Maria
escolheu frequentar uma academia e fazer musculação.

A história de Maria
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 137

Maria veio ao Serviço de Psicologia em companhia da sua


tia, desejando uma cura para os tiques que apresentava. Ela e a
tia relataram como queixa inicial que sua fala trazia constantemen-
te um palavrão (“Buceta”), que incomodava muito os familiares e
amigos, o que a levou a se isolar socialmente mais a cada dia. A
tia complementou a queixa, indicando que, além do palavrão,
Maria apresentava tiques vocais e motores, incluindo levantar os
olhos como se estivesse olhando para cima, pigarrear e fazer um
som nasal.
Maria descreveu que um dos primeiros tiques foi percebi-
do e apontado por um dos seus primos, que estudava com ela,
mas a cliente não soube precisar quando isso aconteceu. Em seu
relato, Maria conta que o primo percebeu que ela virava os olhos
várias vezes e, com o passar do tempo, foram aparecendo outros
tiques. A cliente contou que foi acompanhada por certo tempo por
dois psiquiatras e por um psicólogo, mas que nenhum sequer
mencionou a possibilidade de que seus tiques fossem gerados por
algum tipo de transtorno. Essa vivência a marcou negativamente,
pois sofria várias queixas e críticas familiares por seus tiques e
uma vez que os profissionais de saúde a percebiam como
“normal”, a família acreditava que ela tinha controle sobre seu
comportamento. A tia de Maria reforça essa interpretação, dizendo
que sempre teve muito carinho pela sobrinha e que pedia constan-
temente para que ela parasse de falar palavrão “porque fica feio
para uma jovem falar estas coisas”. A família não acreditava
quando Maria argumentava que ela não tinha culpa, que não
sabia o que acontecia com ela e que não percebia o que falava,
só tomando conhecimento do tique devido aos relatos e
brincadeiras que surgiam ao seu redor.
Diante das características relatadas e também da obser-
vação de vários tiques durante a entrevista inicial, a estagiária
buscou na literatura referências sobre transtornos ligados ao
surgimento de tiques vocais e motores, chegando a ler vários
trabalhos sobre ST. Com essa hipótese em mente, Maria foi
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 138

encaminhada a um psiquiatra acompanhada do relato com a


hipótese diagnóstica da estagiária e o psiquiatra confirmou o
diagnóstico de ST.
No início do acompanhamento, a presença dos tiques era
constante e se agravava pelo momento de vida conturbado que
Maria estava vivenciando. Maria havia iniciado um relacionamento
com um rapaz que sua família não aprovava. Após iniciar o namo-
ro, a relação de Maria com sua tia, antes carinhosa e estável,
tornou-se conflituosa. A tia passou a se dirigir a Maria apenas em
caso de necessidade e isso abalou seriamente a cliente, já que a
convivência com outros tios e primos era mínima, uma vez que
eles debochavam de seus tiques. O sofrimento de Maria se inten-
sificava por sua dificuldade em se expressar para outras pessoas,
tornando difícil para ela expor suas opiniões e aumentando sua
angústia.
A condução do caso exigiu bastante calma e cautela por
parte da estagiária, pois além da delicadeza da situação e do
sofrimento da cliente, existia uma referência negativa prévia aos
profissionais de saúde mental, em especial de Psicologia,
manifesta por comentários como “médico para doido” e por relatos
de seus acompanhamentos anteriores, antes do acompanhamen-
to no serviço escola e do diagnóstico de ST. Foi preciso que a
estagiária auxiliasse a quebrar diversas construções disfuncionais
e estigmatizadas da cliente sobre quem são os profissionais de
saúde mental e quem os procura. A cliente comentou, diversas
vezes, que não havia dito as pessoas da sua família que estava
fazendo psicoterapia, pois tinha muito medo de ser rotulada como
“maluca”. Somente após a quebra dessas crenças disfuncionais é
que a cliente compartilhou com familiares e amigos sobre seu
tratamento, desmistificando para os mesmos sobre os profis-
sionais “psi”. Esse foi um indicativo que o processo de quebrar
essas crenças disfuncionais auxiliou no fortalecimento do vínculo
terapêutico, indispensável para a eficácia do tratamento.
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 139

Logo após o início dos atendimentos Maria terminou seu


relacionamento com o namorado, diminuindo a pressão e crítica
familiar a que estava submetida. Após alguns atendimentos, e do
uso do diagnóstico cognitivo-comportamental (flecha descenden-
te), pode-se entender a ligação entre a manifestação dos tiques e
possíveis agentes estressores ambientais, ilustrado por uma fala
constante de Maria: “eu sou muito ansiosa, acho que é porque
quando eu coloco alguma coisa na cabeça fica martelando o
tempo todo, não sai do meu pensamento”. A ansiedade,
pensamento automático disfuncional e reação de fuga/esquiva
ficaram bastante evidentes quando Maria relatou um episódio em
que encontrou seu ex-namorado no caminho para sua casa. Em
sua descrição:

eu agora tenho que mudar o horário em que vou para a aca-


demia, vou passar por outro caminho para evitar encontrar com
ele. Eu tô com medo de que alguém conhecido tenha visto eu
conversando e conte para a minha tia. Eu fico com medo de
que ela pense que eu ainda estou me encontrando com meu
ex-namorado. Eu também tenho medo de que ele me xingue e
que fale coisas desagradáveis na frente de todo mundo.

Maria antecipava acontecimentos improváveis e construía


crenças persecutórias, o que elevava seu nível de ansiedade, que
passava a se manifestar com a perda do controle corporal e a
exacerbação dos tiques. Episódios como esse mostraram a
necessidade de intervenção psicoeducativas com Maria sobre a
ST. Trabalhou-se com a cliente o que é a ST e o que realmente
acontecia com ela, tanto em termos biológicos quanto
comportamentais. Essa abordagem permitiu à cliente entender
como poderia colaborar com o tratamento e mudar sua postura
para uma percepção mais positiva do tratamento.
Como os tiques eram claramente fonte de sofrimento para
a cliente, a partir da segunda sessão de acompanhamento do
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 140

caso, e durante todos os demais atendimentos, os tiques de Maria


foram quantificados e registrados em uma tabela, dividida em
categorias (Tabela 1) e em um gráfico (Figura 1). Na tabela, os
tiques foram agrupados em: tiques vocais, motores e coprolalia.
Esta última categoria ainda que seja um tique vocal, foi colocada
separadamente por se tratar da característica que ocasionava
maior incômodo para Maria e seus familiares. Os tiques apresen-
tados por Maria ao longo das sessões foram: 1. Motores (virar os
olhos, fazer uma expressão com a boca como se estivesse sorrin-
do e entortar as mãos); 2. Vocais (fazer sons com a garganta,
pigarrear); 3. Coprolalia (repetir a palavra “Buceta” ao longo das
frases).
Inicialmente os tiques aconteciam em média 48 vezes por
sessão, distribuídos entre os tiques motores e vocais, durante o
atendimento de 50 minutos. De acordo com as características da
ST, o planejamento de atividades estratégicas foi direcionado
durante as sessões para a redução da ansiedade, com a conse-
quente diminuição dos tiques.
As técnicas treino de assertividade e de habilidades
sociais, ensaio de comportamento/dramatização, respiração dia-
fragmática e atividades físicas foram planejadas e executadas ao
longo das sessões e como “tarefas de casa”. As tarefas de casa
fazem parte das atividades estruturadas previstas pela TCC como
forma de maximizar o impacto da psicoterapia, por permitir aos
clientes manterem-se pensando ou executando tarefas terapêuti-
cas direcionadas fora do horário de atendimento clínico (Knapp &
Beck, 2008). Após as 10 primeiras sessões (início do tratamento),
o aparecimento dos tiques foi diminuindo progressivamente, redu-
zindo-se até quatro tiques por sessão, a partir da 15ª sessão.
Nos pressupostos teóricos da TCC entendemos que
nossos comportamentos são estabelecidos por meio da relação
entre o ambiente, o estímulo e a história prévia do indivíduo
(Rangé, 2008). Ao que Abreu-Rodrigues e Ribeiro (2005)
complementam, ao indicarem que ao interagir com um novo estí-
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 141

mulo, tendemos a utilizar modelos de comportamento aprendidos


em momentos anteriores. Portanto, ao perceber que Maria de-
monstrava bastante ansiedade ao conviver e se expressar para
outras pessoas, foi possível perceber que existia um condiciona-
mento prévio reforçado ao longo de sua história de vida.

Tabela 1. Apresentação dos Resultados com os Dados Finais em seus


Respectivos Períodos
Período Quantidade Tiques Tiques Coprolalia Total
de sessões motores vocais
Início do 10 96 76 108 80
tratamento
Remédio 10 05 00 05 00
normal
Aumento do 10 37 01 05 85
remédio
Apenas com 10 08 01 09 28
psicoterapia

Figura 1. Número de tiques por sessão segundo as fases de acompa-


nhamento.

O relato de Maria indicava que, à exceção de sua tia, os


familiares a ridicularizavam por seus tiques e uma vez que não
tinha o respaldo de um diagnóstico e que seu comportamento era
interpretado como intencional, Maria não conseguia argumentar.
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 142

Como as críticas deixavam a cliente e sua tia muito constrangidas,


Maria passou a não frequentar reuniões familiares e a se manter
em seu quarto quando algum familiar ia até a casa da tia, onde
morava. Ela passou a evitar conversar com parentes, para não
emitir tiques enquanto falava, o que colaborou para se tornar cada
vez menos assertiva.
Os primeiros contatos entre a estagiária e Maria também
indicavam essa dificuldade de contato social. Ao ser indagada
sobre o que a trazia ao Serviço de Psicologia, a resposta de Maria
foi: “fala tu tia, que sabe melhor do que eu”, demonstrando uma
dificuldade de estabelecer conversações com pessoas estranhas.
Esse tipo de desconforto foi observado em outros episódios ao
longo dos demais atendimentos, mostrando o aumento da ansie-
dade e a tentativa de evitar o contato social quando possível.
Rangé (2008) nos descreve teoricamente o que provavelmente
ocorreu com Maria:

O princípio teórico pressupõe que comportamentos de preocu-


pação e medo são aprendidos a partir da interação com mode-
los autoritários durante o desenvolvimento e inibe as respostas
espontâneas e naturais da pessoa, que deixa de expressar su-
as emoções, evita contatos visuais diretos e teme apresentar
suas opiniões aos outros (Rangé, 2008, p. 120-121).

Landeira-Fernadez e Silva (2007) atentam que as experi-


ências prévias de vida “definem as condições em que as
respostas são selecionadas e passam a compor o repertório
comportamental do organismo” (p. 18). A experiência aversiva
prévia de convívio de Maria com seus familiares a condicionou de
forma a evitar novas situações de encontro familiar, dificultando
para que desenvolvesse comportamentos para um convívio
familiar e social mais favorável, respeitando sua condição de
portadora de portadora de ST. Aprender a colocar-se e fazer com
que a respeitassem mesmo emitindo tiques fez parte do processo
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 143

terapêutico de Maria e, por esta razão, o treinamento de


habilidades sociais fez parte da intervenção com a cliente. Este
treinamento visou quebrar as associações estabelecidas entre os
tiques, o sentimento de desconforto e o contato com outras pes-
soas.
O acompanhamento de Maria seguiu de maneira satisfa-
tória até que a interação entre a intervenção medicamentosa e a
psicoterápica entrou em desacerto. O acompanhamento psiquiá-
trico de Maria também começou em março de 2010. Assim que
recebeu o diagnóstico de ST a cliente passou a fazer uso do
medicamento Orap®. A administração inicialmente foi de 0,5
miligramas e posteriormente essa dose foi aumentada, durante o
ano de 2010, até que Maria passou a utilizar dois miligramas
diariamente. Este fármaco é um neuroléptico que se caracteriza
por promover “forma extrema de lentificação ou ausência de
movimentos motores” (Stahl, 2010, p. 215). É mais comumente
conhecido como antipsicótico e sua utilização costumeira se dá no
tratamento da esquizofrenia e também para “supressão de tiques
fônicos e motores em pacientes com síndrome de Tourette”
(Korolkovas & França, 2008, p. 310). Os antipsicóticos agem so-
bre os receptores da dopamina, impedindo sua ligação sináptica.
Em janeiro de 2011, Maria retornou ao psiquiatra para o
acompanhamento. Apesar da drástica redução dos tiques
apresentada, o médico sugeriu o aumento do medicamento. O
profissional alegou que o aumento da dosagem medicamentosa
suprimiria os tiques em definitivo ou os reduziria ainda mais e ela
aceitou a alteração de dosagem. O uso diário do Orap® passou
de 2 mg para 4 mg. O aumento da dose coincidiu com o recesso
do Serviço Escola em que Maria estava sendo acompanhada, de
forma que as sessões de psicoterapia só foram retomadas no
início de março de 2011.
De imediato foi percebido o aumento dos tiques anterior-
mente observados e o surgimento de um novo tique motor, um
movimento de descida do lábio inferior, que não ocorria
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 144

anteriormente. Além do aumento dos tiques durante as sessões,


Maria também passou a falar de maneira arrastada e muito mais
lenta do que era seu habitual na manifestação do seu raciocínio
durante os diálogos estabelecidos nas sessões. Passado o
momento de retomada do acompanhamento e sem outras altera-
ções significativas na vida da cliente além do aumento da
medicação, a hipótese construída foi a de que o remédio poderia
ter efeitos colaterais que estavam gerando o novo aumento dos
tiques e o surgimento de novos trejeitos.
Em pesquisa sobre a medicação observou-se que o
Orap® pode causar efeitos colaterais referentes às áreas extrapi-
ramidais o que propicia distúrbios motores (Rang, Dale, & Ritter,
2001). Além disso, devido aos antipsicóticos bloquearem as vias
dopaminérgicas, este aumento na manifestação dos tiques e o
aparecimento de outro tique, parece ter relação direta à discinesia
tardia, como descrito por Stahl (2010):

Os receptores D2 presentes na via dopaminérgica nigroestriada


podem produzir um transtorno de movimento hipercinético de-
nominado discinesia tardia. Isto provoca movimentos faciais e
de língua, como mascar constante, protrusão da língua e care-
tas faciais, assim como movimentos dos membros que podem
ser rápidos, espasmódicos ou coreiformes (“dança”). A discine-
sia tardia é, portanto, causada pela a administração prolongada
de antipsicoticos convencionais e é supostamente medida por
alterações, por vezes irreversíveis, nos receptores D2 na via
nigroestriada. Mais especificamente, supõe-se que esses re-
ceptores se tornem supersensíveis ou “suprarregulados” (isto é,
em números aumentados), talvez na tentativa inútil de sobrepu-
jar o bloqueio induzido pela droga (Stahl, 2010, p. 222).

Neste sentido, o aumento da dose do fármaco pareceu


favorecer o aparecimento dos tiques de forma crescente. Como se
tratava apenas de uma hipótese, Maria foi acompanhada por um
período de um mês e meio, sem que qualquer tentativa de
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 145

intervenção na medicação fosse feita. A presença dos tiques


nesse período ficou em uma média de 43 tiques por sessão.
A hipótese de efeito colateral do medicamento ganhava
força com a manutenção dos tiques apesar do rebaixamento da
ansiedade da cliente. Por isso e por temer que o agravamento do
quadro se tornasse irreversível, a estagiária incluiu na agenda de
sessão9 conversar com a cliente sobre suas dúvidas com relação
à medicação utilizada e propor um contato com o psiquiatra que a
acompanhava. A cliente concordou que a estagiária marcasse um
encontro com o seu psiquiatra e a acompanhou a esse encontro.
Após explicar ao psiquiatra sobre a alteração do quadro
de Maria, ilustrando com a contagem dos tiques, feita desde a
segunda sessão, a estagiária propôs a retirada da medicação por
um período de tempo, para melhor avaliação. O médico e Maria
concordaram e o uso do medicamento foi suspenso por 10
semanas. Toda a proposta foi discutida a fim de que não
ocorressem danos para a paciente e, com a anuência da mesma,
para não ferir a ética no atendimento.
Logo que o uso do medicamento foi suspenso, observou-
se uma redução na quantidade de tiques emitidos por Maria nas
sessões psicoterápicas. Os tiques passaram a uma média de 28
por encontro. Após 10 sessões sem o uso do medicamento,
observou-se a redução de 28 para 12 tiques. No entanto, não se
alcançou o número obtido antes do aumento da dosagem do
Orap®, que foi de quatro tiques por sessão. Não houve, também,
o desaparecimento do tique no lábio, adquirido após a alteração
da dosagem medicamentosa, embora tenha havido redução de
sua manifestação.

9 Na abordagem cognitivo-comportamental as sessões de atendimento têm


tempo e formato pré-determinado. Em toda sessão há um momento chamado
de “agenda”, em que o terapeuta traz para a conversa temas que considera
relevantes para o andamento do caso.
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 146

Devido às características específicas de um Serviço


Escola, foi indicada a necessidade de encerramento do
atendimento de Maria pela estagiária. Assim, as três últimas
sessões foram dedicadas a preparar o encerramento dos encon-
tros, registrar a presença dos tiques e checar o desenvolvimento e
generalização das habilidades trabalhadas com a cliente desde o
início do atendimento. Ao final dos atendimentos, o número de
tiques havia sido novamente reduzido, tendo sido observados seis
tiques na última sessão, seguindo cliente sem medicação.

Pensando práticas de saúde à luz do caso Maria

A análise do caso de Maria permite algumas constatações


e questionamentos importantes. Em primeiro lugar fica evidente o
potencial positivo da intervenção psicoterapêutica com abordagem
cognitivo-comportamental para o tratamento da ST e para a
melhoria na qualidade de vida desses clientes. Permitiu também
elaborar que a participação ativa do paciente é fundamental para
o tratamento. No caso descrito, a participação ativa foi adotada
pela cliente na definição de metas terapêuticas, na realização das
tarefas de casa, na incorporação dos tópicos discutidos e papéis
trabalhados em sua vida cotidiana, em sua opção por tentar ficar
sem o medicamento, entre outros momentos. Isso propicia um
entendimento de que as pessoas com ST, ao se entenderem em
suas dificuldades e tornarem-se mais conscientes das suas
escolhas, podem estabelecer maneiras mais adequadas de res-
ponder a contingências cotidianas de forma assertiva.
Ao longo dos atendimentos, muitos aspectos puderam ser
trabalhados com Maria, auxiliando-a a perceber-se para além da
ST e a aprender a colocar-se e exigir respeito. Ao aprender a
controlar-se, baixar sua ansiedade por meio da respiração
diafragmática e do relaxamento progressivo e trabalhar suas
habilidades sociais e assertividade, o acompanhamento terapêuti-
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 147

co contribuiu para que Maria baixasse sua emissão de tiques.


Mais do que isso, auxiliou a melhora de sua qualidade de vida.
Fica igualmente evidenciada a relevância dos Serviços
Escola de Psicologia, permitindo à população receber um
atendimento de qualidade, sem custo e auxiliando na formação de
profissionais comprometidos e éticos. É claro que esse serviço
tem limites e no presente caso dois deles dificultaram a condução
do atendimento. Por estar vinculado a uma universidade, os
Serviços Escola de Psicologia seguem o calendário acadêmico, o
que faz com que os atendimentos sejam pausados duas vezes ao
ano. Essas pausas, embora necessárias para a organização
acadêmica dos serviços, podem ser prejudiciais aos atendimen-
tos, pois nem sempre ocorrem quando os clientes estão
estabilizados ou em um momento em que “poderiam” ter um
recesso. A segunda limitação é que os estagiários têm tempo
pré-determinado para ficar nos serviços escola, o que pode levar à
necessidade de troca de profissional antes do fim do processo
terapêutico, o que quebra o vínculo já estabelecido e pode dificul-
tar o acompanhamento dos casos. Apesar dessas limitações, esse
tipo de serviço tem mostrado grandes benefícios para a formação
dos profissionais de Psicologia e para a comunidade geral,
especialmente de baixa renda.
É igualmente uma boa oportunidade para mostrar como
profissionais de Psicologia e Psiquiatria podem trabalhar de forma
conjunta, visando o bem do cliente. No presente relato, observou-
se momentos de encontro e desencontro entre a Psicologia e a
Psiquiatria, inicialmente as duas se uniram para descobrir o
diagnóstico correto de Maria, redimindo os erros de profissionais
anteriores das duas profissões. Em um segundo momento,
quando o psiquiatra de Maria resolveu de forma unilateral
aumentar a dosagem de sua medicação mesmo observando que
o quadro estava estável e que os tiques tinham diminuído, as
áreas se distanciaram.
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 148

A Psicologia é uma ciência nova, tendo sua prática profis-


sional regulamentada no Brasil em 1962 (Brasil, 1962) e que ainda
está consolidando sua posição como prática de saúde mental. Por
outro lado, a área da Psiquiatria se consolidou fazendo diagnósti-
cos e uso de tratamentos convencionais, de base medicamentosa.
Essas áreas têm muitos pontos de encontro e podem colaborar
mutuamente para tratamentos de transtornos mentais. No caso de
Maria foi a estagiária que encaminhou a cliente para a psiquiatria,
buscando analisar a existência de ST. No início de seu acompa-
nhamento, a medicação somou-se à intervenção psicoterapêutica,
o que provavelmente contribuiu para a rápida resposta de Maria
ao tratamento.
A alteração da dosagem da medicação sem discussão
com a estagiária representou um distanciamento entre essas
áreas e não teve bons efeitos. Se havia dúvidas sobre isso, a
redução dos tiques com a retirada da medicação o demonstrou.
Mas esse equívoco foi retificado quando a Psicologia e a Psiquia-
tria voltaram a conversar. O médico que acompanhou Maria
mostrou-se sensível aos dados mostrados pela estagiária e se
mostrou aberto a mudar sua prescrição, reconhecendo que uma
conduta alternativa poderia ser melhor para Maria.
Há uma grande discussão na comunidade científica sobre
a hipermedicalização da população, sobre a equivalência de efeti-
vidade da psicoterapia ao tratamento farmacológico em várias
patologias psiquiátricas e sobre o uso de práticas alternativas,
como arteterapia, meditação e outras como formas de tratamento.
De acordo com o entendimento do modelo biomédico exposto por
Capra (2007), é notória a divisão existente entre indivíduo e a
compreensão da doença:

O problema central da assistência contemporânea à saúde é o


conceito biomédico de doença, de acordo com o qual são enti-
dades bem definidas que envolvem mudanças estruturais em
nível celular e têm raízes causais únicas. O modelo biomédico
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 149

deixa margem a várias espécies de fatores causativos, mas a


tendência dos pesquisadores é aderir à doutrina de “uma doen-
ça, uma causa” (Capra, 2007, p. 142).

Outro ponto que merece destaque no presente relato de


caso é que a atuação da Psicologia pode ser considerada
psicobiológica, uma vez que as intervenções psicoterapêuticas
mostraram-se úteis para a regulação da química cerebral,
condição necessária para a redução dos tiques. A palavra e a
alteração de hábitos de vida (repertórios comportamentais) sofrem
influência biológica, mas aprende-se a cada novo estudo que
esses aspectos podem também alterar a química cerebral e
aspectos biológicos de todo o corpo humano (princípio base de
todo processo de somatização). Infelizmente, pelo presente
trabalho tratar-se de um estudo de caso, não é possível
estabelecer relações diretas entre as intervenções da estagiária e
os aspectos biológicos, mas os resultados obtidos deixam a
indicação de um relevante (e promissor) foco para estudos futu-
ros, com metodologia mais adequada.
Esperamos, ainda, que novos estudos sobre a ST e a
evolução do contato da Psicologia com a Psiquiatria auxiliem na
construção de práticas na área da saúde mental mais atentas,
mais humanas e comprometidas com a qualidade de vida e não
apenas com a eliminação dos sintomas.

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Histórias de vida e vivências familiares


de jovens travestis
Roberta Noronha Azevedo
Giancarlo Spizzirri
Fabio Scorsolini-Comin

As transformações no modo de definir e compreender a


instituição familiar têm ampliado as possibilidades de discussão
em torno de arranjos cada vez mais presentes na
contemporaneidade. A pluralidade observada no cotidiano,
representada por adjetivos como: “monoparental, homoparental,
recomposta, desconstruída, clonada, gerada artificialmente,
atacado do interior por pretensos negadores da diferença entre os
sexos” (Roudinesco, 2003, p. 10) tem promovido debates acerca
do que vem a ser, de fato, a família no início desse século. Ao
pensarmos os três grandes períodos da evolução da família
(tradicional, moderna e contemporânea), estaríamos, desde os
anos 1960, sob a égide da chamada família contemporânea ou
pós-moderna, que une duas pessoas em busca de realizações
íntimas ou realização sexual, caracterizada pelas feridas íntimas,
violências silenciosas e pelas lembranças recalcadas, em
contraposição às ideias de transmissão do patrimônio (tradicional)
e de amor romântico (moderna) (Roudinesco, 2003).
Os estudos contemporâneos acerca da família pontuam,
desse modo, os acelerados processos de mudança que incidem e
redefinem esse objeto de investigação, o que faz com que a
emergência de um campo denominado Psicologia da Família seja
suficientemente amplo e possa abarcar diferentes tradições
epistemológicas e formas de avaliação e de intervenção (Baptista
& Teodoro, 2012). A tarefa de definir a família de hoje para o
futuro, por exemplo, deve considerar a criação dos filhos do casal
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 154

pelos avós, a adoção internacional, os filhos da


homoparentalidade, dentre outras configurações e processos
envolvidos na transformação da instituição familiar.
Apesar da diversidade dos estudos sobre família, são
pouco frequentes as investigações sobre as comunidades LGBT
(Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), em
particular de travestis, havendo maior investimento nas
discussões sobre gênero, práticas de saúde, políticas públicas e
direitos humanos, em um movimento que pode ser considerado
recente de inclusão das temáticas LGBT nos meios acadêmicos
brasileiros (Cardoso & Ferro, 2012; Grossi, 2003; Moscheta, 2011;
Peres, 2012; Zambrano, 2006). Os estudos existentes sobre
família nesse contexto concentram-se tanto na figura dos pais
como aqueles que podem se separar e decidir por experienciar
relações homoafetivas (Campos, 2012) como nos pais frente à
tarefa de educar filhos homossexuais, por exemplo (Telingator &
Patterson, 2008; Vecho & Schneider, 2005). No entanto, não só o
debate sobre as travestis não é abordado de modo suficiente,
como são pouco expressivas as pesquisas que destacam suas
vivências familiares e trajetórias desenvolvimentais.
Desse modo, é mister que os estudos abarquem os
processos de ruptura e de permanência que coexistem nas
múltiplas configurações conjugais e familiares (Féres-Carneiro,
2009) e o modo como têm repercutido nas relações de gênero, no
exercício da parentalidade (Cecílio, Scorsolini-Comin, & Santos,
2013) e na saúde emocional dos membros da família. Assim, o
presente estudo destaca as travestis, ou seja, pessoas que
utilizam vestimentas e adornos do sexo oposto e que podem ou
não fazer uso de próteses e hormônios para a transformação de
seus corpos, mas que não têm o desejo de se submeterem a
cirurgias de redesignação sexual (Araújo Júnior, 2006; Peres,
2009). A partir desse panorama, o objetivo deste estudo foi
investigar as relações familiares em jovens travestis que
trabalham como profissionais do sexo.
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 155

Os encontros com as histórias de vida de Patrícia e


Ketlen

Em função da característica qualitativa e da necessidade


de se valorizar o caráter único do discurso dos participantes, foi
utilizado como método de pesquisa o estudo de caso. Yin (2005)
aponta que a finalidade da pesquisa que utiliza o estudo de caso é
sempre sistêmica, ampla e integrada, visando a preservar e
compreender o caso no seu todo e na sua unicidade. Do ponto de
vista da técnica, foram utilizadas entrevistas, que são fontes
essenciais de evidências para o estudo de caso.
Participaram do estudo (Azevedo, 2008) duas jovens
travestis do sexo masculino que viviam durante tempo integral
como mulheres, identificadas como Patrícia (24 anos de idade) e
Ketlen (22 anos de idade). Foi garantido às participantes que suas
identidades não seriam reveladas. Seus nomes foram substituídos
por nomes fictícios, a fim de preservar seu anonimato, e este
cuidado também foi estendido a qualquer informação prestada
que pudesse identificá-las. Antes da realização das entrevistas, foi
lido e assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Foi utilizado um roteiro de entrevista semiestruturado, que
contemplou como temas de interesse os seguintes núcleos:
trajetória pessoal ao longo do ciclo vital, vivências afetivas na
família de origem, vivências afetivas nos relacionamentos de
casal, vivências sociais, sexuais, profissionais e relacionadas à
identidade de gênero, práticas de saúde e perspectivas futuras de
desenvolvimento. Especificamente para este capítulo, foi realizado
um recorte e analisadas em profundidade apenas as questões
relacionadas ao domínio familiar e às fontes de apoio das
participantes.
No primeiro contato com as participantes foi feita a
apresentação da pesquisadora responsável e do estudo,
convidando-as a participarem da pesquisa. Com uma delas este
primeiro contato foi feito por telefone e com a segunda,
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 156

pessoalmente. Ambas aceitaram participar do trabalho. Foi


agendado um encontro em horário e local preferido pelas
participantes, a fim de realizar as entrevistas. Ambas preferiram
marcar o encontro em sua residência. Optou-se pela entrevista
semiestruturada, já que esta facilita a organização dos temas a
serem explorados. Prioritariamente, as perguntas foram feitas de
forma aberta para dar mais liberdade de resposta às
entrevistadas, facilitando a percepção de suas atitudes e valores.
A entrevista com a participante Patrícia teve duração de três horas
e vinte minutos e a entrevista com a participante Ketlen teve
duração de três horas e cinco minutos. Ambas foram
questionadas durante a entrevista se preferiam marcar outro
encontro, dada a extensão do roteiro. No entanto, optaram em
realizá-la nessa ocasião e mostraram-se colaborativas e
motivadas.
A análise foi baseada no referencial teórico e metodológi-
co da fenomenologia. A fenomenologia, cujos principais
proponentes foram Husserl e Heidegger, surgiu no campo da
filosofia como uma reação ao positivismo que considerava válido
somente os fenômenos pesquisados empiricamente, método
apropriado assim para as ciências naturais. Husserl altera a
tradição filosófica ao buscar rigor científico na investigação dos
fenômenos humanos propondo que estes sejam abordados de
maneira direta, exatamente como se apresentam à experiência da
consciência. Apenas assim seria possível chegar à sua essência,
a seus significados, ou seja, sem suposições e teorias estabeleci-
das a priori. O interesse da fenomenologia não é conhecer o
mundo como realidade externa, mas sim o mundo como é
percebido e interpretado para cada pessoa (Dartigues, 2005).
Para a fenomenologia, o ser humano vivencia suas
experiências de acordo com seu modo de existir, ou seja, com sua
forma de compreender e significar os acontecimentos. Forguieri
(1993) considera que durante o decorrer da existência humana,
três formas básicas de existir se alternam de forma continua e
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 157

inter-relacionada: a sintonizada (quando predominam sentimentos


de tranquilidade e bem-estar), a preocupada (quando predominam
sentimentos de intranquilidade e mal-estar) e a racional (quando
predominam a análise sobre as vivências cotidianas). Dependen-
do da forma de existir predominante, há maior ou menor abertura
para as possibilidades que se apresentam em sua existência. O
escopo é “procurar o sentido ou o significado da vivência para a
pessoa em determinadas situações, por ela experimentadas em
seu existir cotidiano” (Forguieri, 1993, p. 59).
A análise das entrevistas foi feita com base na redução
fenomenológica. Suas etapas foram as seguintes: (a) Audição das
fitas de ambas as entrevistadas na íntegra buscando evitar
reflexões teóricas, (b) Leitura da transcrição das entrevistas na
íntegra, quantas vezes necessárias; (c) Releitura das entrevistas,
procurando captar as falas das participantes que contivessem
relação com o objetivo desse estudo; definição de categorias
temáticas e unidades de significados gerados nas entrevistas; (d)
Enunciação descritiva do sentido daquelas vivências para cada
uma das entrevistadas, pontuando suas semelhanças e diferen-
ças.
As categorias temáticas apreendidas na análise das
entrevistas e que subsidiaram a construção dos estudos de caso
foram: infância, adolescência, relacionamento com pais e familia-
res, percepção e reação dos familiares ao comportamento
considerado como mais feminino durante a infância e
adolescência, bem como o impacto das transformações corporais
das participantes em suas relações familiares. A fim de preservar
a narrativa das participantes e não promover rupturas de significa-
dos, tais categorias não serão abordadas em tópicos específicos,
mas ao longo da apresentação dos casos, ilustrados com trechos
das falas de Patrícia e Ketlen.

O relato de Patrícia
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 158

Patrícia tem 24 anos de idade, solteira, possui ensino


médio completo, é cabeleireira de formação e atualmente é
profissional do sexo. Seus pais se separaram quando tinha por
volta de dois anos e foi criada por sua mãe, tem uma irmã, mais
nova. Seu pai mudou-se para São Paulo e fazia visitas esporádi-
cas. A presença dos avós, tios e primos maternos sempre foi
grande. Patrícia afirma que a família era unida e que a ajudavam
em situações de dificuldade econômica. Relata ter muitas primas
e como consequência, maior convivência com o gênero feminino.
Começou a travestir-se por volta dos cinco anos de idade,
usando roupas, sapatos e adornos de sua mãe, irmãs e primas.
Conforme foi crescendo, passou a perceber que essa conduta não
era bem vista pela família e começou a preocupar-se em fazê-lo
com mais cuidado para não ser surpreendida. Começou a se
apaixonar pelos meninos assim como suas amigas, no entanto,
diferentemente delas, não podia expressar seus sentimentos e
não tinha com quem conversar. Então, no início da adolescência,
por meio de brincadeiras sexuais, popularmente conhecidas como
“troca-trocas”, Patrícia confirmou seu interesse sexual por meni-
nos. Conforme foi participando dessas brincadeiras, boatos sobre
sua participação foram narrados para sua mãe. Foi levada para
morar em São Paulo para viver com o pai, aos 14 anos de idade,
com o intuito de afastá-la dessas experiências.
Patrícia relata que durante a infância sempre manteve um
relacionamento afetuoso com a família. Sentia-se amada e prote-
gida. O relacionamento com a mãe sempre foi muito bom. Diz que
ela era rígida com a educação dos filhos, mas sempre estava
presente de maneira carinhosa. Valoriza o esforço da mãe para
educar e sustentar os filhos. Ainda em relação ao vínculo com a
mãe, percebia que esta estranhava seus comportamentos, mas
não a recriminava. Acredita que a mãe tinha esperanças de que
deixasse de ser homossexual.
O relacionamento com o pai sempre foi distante. Ele
morava em São Paulo e, durante sua infância, fazia visitas nas
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 159

datas comemorativas, trazendo presentes para ela e sua irmã.


Dos 14 aos 17 anos, Patrícia foi morar com o pai e viveu situações
de muita tensão emocional, pois ele não aceitava seus comporta-
mentos considerados por ele efeminados. Ela relata que seus
comportamentos o incomodavam. O pai acreditava que a afastan-
do de companhias femininas, poderia masculinizar-se. Patrícia
relata que desde sua infância seu pai estranhava seus comporta-
mentos, mas que foi durante a época em que morou com ele que
esse incômodo piorou e passou a reagir mais intensamente.
Patrícia sentia-se tolhida pelo pai e percebia que este tinha
vergonha dela. Aos poucos, a convivência tornou-se insustentável:

... Ele me cobrava muito... assim... Mas mais pelo meu jeito,
meu jeito... eu era muito afeminado, ele falava para eu mudar.
E sentia muita vergonha, assim... ele tinha muita vergonha de
mim. (...) Às vezes, quando ele trazia um amigo em casa, ele
apresentava meio assim, com vergonha. E antes que ele che-
gasse, ele chegava em mim e falava: “oh, muda esse jeito seu,
muito delicado”...

Durante o tempo que esteve em São Paulo, conheceu e


começou a frequentar as boates, os bares noturnos, especialmen-
te os locais LGBT. Sentia-se muito bem e se divertia nesses
ambientes. Depois da briga com o pai, voltou para a cidade em
que a mãe morava, iniciou o uso de hormônios injetáveis e diz que
estava ciente de que pretendia adquirir características físicas do
gênero feminino. Parece sentir pesar pela forma como o
relacionamento com o pai terminou quando ela se tornou uma
travesti:

... Não, nunca mais (teve contato com o pai) (...) Eu não tenho
consideração nenhuma por ele. Ele me pôs no mundo e só.
Tentou me educar da maneira dele, mas pra mim foi uma tortu-
ra, foi terrível. (...) Eu acho que poderia ser tão diferente... po-
deria ter sido muito diferente, muito, muito. Sei lá, ele poderia
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 160

ter me aceitado do jeito que eu era, hoje eu poderia estar for-


mada, trabalhando... mesmo sendo travesti. Porque eu sempre
fui muito amoroso, poderia estar cuidando dele, poderia ser um
relacionamento gostoso, não precisava disso...

O relacionamento com os avós maternos sempre foi bom.


Sua avó morreu quando era pequena, mas tem lembranças positi-
vas. A relação com o avô é narrada em tom bastante afetuoso, diz
que sempre foi um avô presente e carinhoso. Os tios e primos
maternos também sempre foram próximos. Lembra-se muito das
brincadeiras com as primas e de uma de suas tias maternas com
quem mantém um vínculo forte. Esta tia, embora condene o fato
de Patrícia prostituir-se, a aceita enquanto travesti.
Houve uma transformação no relacionamento com a irmã
da infância para a idade adulta. Quando crianças, percebia que
sua irmã sentia vergonha dela, o que a fazia sofrer. Quando a
entrevistada foi para São Paulo, ambas sentiram muita falta uma
da outra. Quando retornou, já com o corpo alterado, aos poucos a
irmã passou a aceitá-la e hoje mantém um relacionamento próxi-
mo não só com ela, mas também com seu sobrinho e seu
cunhado:

... o nosso reencontro foi muito legal, porque eu já estava mais


esclarecida, né, já estava assim, com o corpo mudado, com o
corpo já, né... aí foi a aceitação dela, foi quando ela começou a
me aceitar do jeito que eu era. Hoje em dia, nossa!... nosso re-
lacionamento é maravilhoso, maravilhoso...

No tocante à relação com sua família após a adequação


de determinadas características do seu corpo, Patrícia relata que
a irmã, a tia materna e suas primas a apoiaram, pois percebiam
que era como mulher que ela se sentia mais feliz. Com o pai,
houve o rompimento da relação, pois ele não aceitou ver o filho
homem transformar-se em travesti e a renegou, dizendo que seu
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 161

filho morreu. Já sua mãe não aceitava sua mudança, mas não a
renegou por isso. A entrevistada relata que a mãe sofria muito e
pedia a Patrícia que cortasse o cabelo e que não se vestisse de
mulher. Relata com pesar o episódio em que a mãe a viu pela
primeira vez de vestido. Patrícia sentiu-se culpada por fazer a mãe
sofrer e nesse momento desejou ser normal:

... Aí a primeira vez que a minha mãe me viu de vestido, minha


mãe chorou, ela chorou. Foi bem difícil pra ela. (...) ficou de-
cepcionada. (...) Ela falou: “Não, não... tira esse vestido. Você
vai com esse vestido na festa? Vai estar cheio de parente, sa-
be...” e ela: “Não, põe uma calça”. (...) eu falei: “Não, eu vou
assim mesmo”, sabe, fiquei batendo o pé, mas aí ela começou
a chorar, daí eu fui lá e daí eu não aguentei. Aí eu tirei. (...) Mas
eu me senti mal, entendeu de ver ela assim, entendeu? Eu
pensei que eu poderia ser diferente, eu poderia ser normal... eu
poderia dar felicidade pra ela, né. Eu poderia ser diferente, né.
Deu um desconforto. (...) culpa...

Patrícia diz que tem o desejo de ser mãe, mas sabe que
isso não é possível, pois jamais poderia gerar uma criança. Não
pensa em adoção nem cogita a possibilidade de fazer sexo com
uma mulher para engravidá-la. Além disso, diz não ter estrutura
financeira nem psicológica para criar uma criança e relata que,
embora ache admirável, causa-lhe estranhamento pensar em um
travesti criando um filho.

O relato de Ketlen

Ketlen, 22 anos de idade, é solteira e trabalha como


profissional do sexo. Possui ensino superior incompleto. Seu
comportamento de travestir-se se iniciou na infância. Diz que
sempre teve vontade de se vestir de mulher e que quando estava
sozinha em casa colocava uma toalha na cabeça e passava
esmalte nas unhas. Sempre desejou ir além desses comporta-
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 162

mentos, vestindo-se e maquiando-se como mulher, mas não o


fazia com medo de represálias. A primeira vez que se travestiu por
completo foi no teatro da escola. Esta era uma de suas atividades
preferidas, pois ali podia travestir-se sem ser criticada.
Passou sua infância em uma metrópole no nordeste do
Brasil. Morava com sua mãe, seu pai e seus dois irmãos, sendo
um mais velho e um mais novo. A situação socioeconômica da
família era precária. Nos fundos da casa morava sua avó materna.
Diz que era uma criança que gostava de ficar em casa, que não
tinha muitos amigos e que não gostava de brincar.
Positivamente, o que marcou sua infância foram os estu-
dos e negativamente, os problemas familiares. A entrevistada
conta que seu pai era alcoólatra e quando bebia, especialmente
aos finais de semana, agredia sua mãe, física e verbalmente.
Relata que quando os finais de semana se aproximavam ficava
apreensiva enquanto aguardava a volta do pai. Percebia-se
impotente perante o problema e chamava a polícia para proteger
sua mãe. Segundo a entrevistada, seu pai sempre estranhou seu
comportamento, especialmente o fato de não se interessar por
brincadeiras tipicamente masculinas.
Com a mãe o relacionamento sempre foi muito próximo e
bastante afetuoso. Depreende-se das falas da entrevistada a
fragilidade de sua mãe que a procurava para enfrentar seus
problemas. O movimento de proteger sua mãe parece ter se
perpetuado ao longo de sua vida. Ketlen percebe o relacionamen-
to com o pai como distante. Relata que atualmente, tem pouco
contato e quando o faz é para poder resolver problemas por ele
gerados, em função do abuso de bebida alcoólica. Acredita que o
pai tenha medo de suas críticas.

... eu acho ele diferente comigo... ele não era pai, pai de..
.sabe? (...) Ele fazia a obrigação de pai, (...) escola, alimenta-
ção, remédio, mas... ele não conversava comigo, não saía, não
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 163

chamava pra sair. Ele levava sempre o meu irmão, por isso que
eu via certa... a indiferença, entendeu?...

Com o irmão mais velho, a relação também é distante.


Segundo a entrevistada ele se parece muito com o pai e é agres-
sivo com sua mãe. Em função disso, preferiu afastar-se. Já com o
irmão mais novo, atualmente com 12 anos de idade, Ketlen tem
uma relação bastante próxima e afetuosa. Com os tios e primos,
Ketlen parece ter se aproximado após sua adolescência. Relata
bom relacionamento com todos. Sua mãe só tem um irmão, com o
qual se relaciona socialmente. Tem um vínculo mais próximo com
a família do pai, especialmente uma de suas tias e suas primas e
primos.
Entre os 12 e os 14 anos, quando ia à casa do primo, aos
finais de semana participava de brincadeiras sexuais durante dois
anos seguidos. Quando questionada sobre o tipo de envolvimento
Ketlen diz que não havia afetividade, que a motivação era somen-
te sexual. Nesta fase, durante os finais de semana em que ficava
na casa de sua tia, Ketlen relata que sua prima a travestia e lá se
sentia mais à vontade para expressar sua feminilidade.
Ketlen comenta que tem dois primos homossexuais e uma
prima travesti. A entrevistada relata que se sentia bem quando
estava com eles e tinha fascínio pela mudança física dessa prima,
desejando ser como ela. Aos 16 anos, Ketlen sentia necessidade
de adequar seu corpo ao gênero desejado e para tal iniciou a
ingestão de pílulas anticoncepcionais, sem orientação médica.
Neste período, aos finais de semana saía com amigas, vestida de
mulher, até à porta das boates a fim de observar travestis. Mas foi
após uma conversa com a prima travesti que a entrevistada abriu
caminho para possíveis mudanças físicas mais permanentes.
Além de temer a violência e a discriminação, Ketlen re-
lembra que a maior dificuldade para mudar de cidade e assim,
encontrar maior liberdade para as mudanças que desejava, foi a
insegurança e preocupação que lhe causavam ficar distante de
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 164

sua mãe. A despeito de seus temores, resolveu ir e retornou após


um ano e meio mais adequada ao gênero feminino. Embora não
tenha dito para a mãe que iria se tornar travesti e se prostituir,
durante esse período, quando fazia contato telefônico, dava indí-
cios que perpetraram desconfiança na sua mãe.
Relata que a fase em que passou pelo processo de ade-
quação física foi difícil, sentia-se sozinha, triste e estava
aprendendo a trabalhar em uma profissão arriscada. Os
procedimentos para colocar silicone e próteses foram realizados
por colegas travestis e eram caros. Sentia medo sempre que se
submetia a esses procedimentos. No que tange à atitude dos
familiares após sua adequação, Ketlen diz que foi aceita. Acredita
pelo fato de ter dois primos homossexuais e uma prima travesti
promoveu a compreensão de todos, pois temas relacionados à
orientação e identidade de gênero já haviam sido explorados pela
família anteriormente. Sua maior preocupação era com a aceita-
ção por parte de sua mãe, todavia a aceitaram:

... Porque eu tinha medo de ela não me aceitar. Eu sempre tive


esse medo, de perder a confiança da minha mãe, o apoio dela.
Eu tinha esse medo... mas aí ela me aceitou. E não foi tão difí-
cil quanto eu imaginava. Ela me aceitou, o meu irmão mais no-
vo me ama... nossa, eu adoro ele!...

A mãe, inclusive, chegou a conhecer o local onde morava,


seu namorado e suas colegas de trabalho. Seus tios e primos
também a acolheram e diz ter contato frequente e afetuoso com
eles. O tema de suas cirurgias e de sua identidade de gênero
nunca foi abordado com o pai e relata quase não ter contato com
ele.

Vivências familiares de Patrícia e Ketlen


S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 165

O período da infância das entrevistadas teve característi-


cas bastante distintas e apresenta significados afetivos diversos.
Nota-se que Patrícia tem lembranças muito positivas de suas
brincadeiras, da casa onde morava e de sua família; Ketlen
parece ter vivido maior apreensão e um estado afetivo de certo
isolamento. Chama atenção o fato desta última não se lembrar de
ter brincado durante a infância, justamente por serem as situações
de brincadeira grandes marcadores da fase infantil ou aspectos
frequentemente evocados pelas pessoas quando são convidadas
a falar sobre sua infância.
No que tange à relação das entrevistadas com seus fami-
liares, semelhanças e diferenças são narradas. Ambas relatam o
afastamento afetivo dos pais desde a infância e o vínculo estreito
com as mães, característica apontada pela literatura científica em
relação às famílias de indivíduos com transtornos de identidade de
gênero (Green, 2007). No entanto, a qualidade desses vínculos
parece ser diferente para ambas. Embora se sentissem amadas
pelas mães, no caso de Patrícia a genitora também era capaz de
proteger e proporcionar segurança para a criança. Já a mãe de
Ketlen aparentemente possuía maior fragilidade emocional, o que
levou a filha desde a infância a desenvolver uma atitude de preo-
cupação e proteção em relação à mãe.
A figura masculina de maior importância para Patrícia
parece ter sido o avô, com quem tinha um vínculo estreito e
afetuoso. Para Ketlen, a referência masculina era a do pai, figura
sempre associada em suas memórias com a ignorância e a
agressividade. O irmão mais velho de Ketlen não a aceita e
mantém com ela uma relação distante, o contrário ocorre com o
mais novo, com o qual tem vínculo estreito e afetuoso. A irmã de
Patrícia parece ter tido dificuldade para aceitá-la durante a
infância, no entanto, após a adolescência passaram a se
relacionar íntima e carinhosamente.
Em função das características da constituição residencial
e familiar, Patrícia parece ter tido mais contato com a família es-
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 166

tendida durante a infância: a presença dos primos, tios e avós era


constante e agradável. Ketlen teve menos contato com estes
inicialmente, o que foi sendo alterado durante sua adolescência,
período no qual se aproximou da família do pai e passou a se
relacionar constantemente com primos e tias.
A reação das mães das entrevistadas sobre característi-
cas comportamentais socialmente vistas como femininas durante
a infância se assemelham. Ambas notavam que o comportamento
do filho era diferente dos outros garotos de sua idade, mas não
conversavam com a criança sobre o assunto. No que tange à
reação dos pais, ambos estranhavam a ausência de comporta-
mentos tipicamente masculinos, no entanto, têm-se a impressão
de que o pai de Patrícia se incomodava e se preocupava mais
com o filho. Já o pai de Ketlen apresentava maior indiferença em
relação à criança.
Nota-se, em ambos os casos, que tanto as mães quanto
os pais apresentavam dificuldade para lidar com a identidade de
gênero de seus filhos. A presente descrição corrobora os achados
de Di Ceglie e Thümmel (2006), que apontam para a intensa pre-
ocupação e presença de dúvidas dos pais sobre como lidar com
os comportamentos gênero-simbólicos de filhos que apresentam
papel, orientação ou identidade que divirjam da norma estabeleci-
da socialmente e para a dificuldade que têm para encontrarem
profissionais preparados para ajudá-los.
O período da adolescência foi marcado por um acirramen-
to das atitudes dos pais das entrevistadas em relação à sexuali-
dade das mesmas. Ambas nessa fase estavam cientes de que
sentiam atração sexual por meninos, ao mesmo tempo em que
desejavam adequar seu corpo ao gênero desejado. No entanto,
parece que nem elas, nem seus pais tinham ainda clareza a res-
peito das diferenças entre orientação sexual e identidade de gêne-
ro. Pareciam acreditar que a necessidade de feminilização fosse
parte constituinte da própria homossexualidade.
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 167

Os rumores que surgiam sobre o relacionamento das


entrevistadas com outros garotos motivaram intensas reações em
seus pais. No caso de Patrícia, o genitor optou por assumir a
responsabilidade de tentar alterar suas condutas, levando-a para
outra cidade no intuito de aproximá-la de si, referência de figura
masculina e ao mesmo tempo afastá-la de seus referenciais
femininos. O pai de Ketlen age de maneira oposta, distanciando-
se ainda mais dela, não assumindo nenhuma responsabilidade
acerca de seus cuidados e exigindo que sua esposa, mãe da
entrevistada, optasse entre ele ou Ketlen. A proximidade entre
Patrícia e o pai, ao contrário do que este esperava, não alterou
seus comportamentos efeminados e sua orientação sexual,
fazendo com que aos poucos os confrontos entre eles se
intensificassem e, finalmente, chegassem a romper sua relação.
Desse modo, percebe-se que o período da adolescência, em
função das grandes transformações físicas e psicológicas
inerentes a esta fase, precipitou momentos de crise nas
participantes, nas relações com suas famílias, que precisaram
refletir sobre como lidar com elas.
O que se observa em ambas as histórias é que não ape-
nas as participantes foram se adequando fisicamente ao longo do
tempo, mas também suas famílias precisaram se reorganizar para
acolhê-las com seus corpos modificados e novos posicionamentos
diante do mundo. Durante a adaptação da família notaram-se
tanto os processos de afastamento (das figuras paternas), de
aproximação (de irmãs e outros familiares), de acolhimento (das
mães), revelando que as estruturas familiares operam no sentido
de permanência de valores e tradições, ao passo que também
permitem reinvenções dessas relações (Zambrano, 2006), o que
foi possibilitado nas famílias investigadas pela transformação dos
filhos em travestis, processo este já anunciado nas experiências
anteriores. A tarefa primordial da família de proteger e oferecer
suporte emocional ao desenvolvimento dos filhos mostrou-se insu-
ficiente diante das necessidades de Patrícia e Ketlen, muitas ve-
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 168

zes discriminadas e agredidas em seus desejos e em seus


comportamentos. A violência emocional observada nos relacio-
namentos entre elas e seus pais mostra que a família muitas
vezes não suporta a diferença e age com preconceito, havendo a
crença em determinismos biológicos (outros parentes travestis ou
homossexuais) ou ambientais (a maior convivência com a mãe e
com figuras femininas) e na possibilidade de modificação desse
cenário em função da maior presença do pai como um balizador
de comportamentos masculinos aceitáveis. A violência imposta
por uma instituição que primariamente deveria acolher a criança e
suas necessidades desenvolvimentais acaba se constituindo
como um espaço que cerceia a liberdade de escolha e tolhe o
desenvolvimento do ser, isso quando não constitui um ambiente
de violência física, homofobia e discriminação (Falcke, Rosa, &
Madalena, 2012; Nunan, 2004; Okita, 2007).
Desse modo, a família parece ser tecida como uma borda
capaz tanto de oferecer apoio e mostrar ao indivíduo que ele é
possuidor de uma história e de um passado como limitar seus
comportamentos e restringir suas possibilidades de mudança,
oprimindo-o. Como as famílias de origem não foram ouvidas neste
estudo, não se pode pré-conceber suas intenções com as atitudes
em relação aos filhos, mas sim compreender de que modo essas
práticas foram fonte de forte desconforto emocional nas histórias
de Patrícia e Ketlen. Ainda que as relações familiares atuais apon-
tem para mudanças e para um movimento melhor aceitação e
acolhimento, as experiências negativas em famílias estão
cravadas no ser-com e nas suas vivências. Em um cenário no
qual os investimentos públicos são escassos em termos de
políticas de assistência à população LGBT (Cardoso & Ferro,
2012), a família poderia oferecer mais recursos emocionais para
os seus membros. Em uma rede social por vezes empobrecida e
marcada pela discriminação (Sampaio, 2008), o espaço antes
concedido à família passa a ser ocupado por colegas de trabalho
e pessoas com relatos semelhantes, fazendo com que o apoio
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 169

venha dessa rede constituída em função do ingresso na


prostituição.
A fenomenologia busca alcançar a essência dos fenô-
menos não por meio de explicação, mas sim de compreensão.
Sendo assim, cumpre explicitar como o ser-no-mundo de Ketlen e
de Patrícia foram compreendidos fenomenologicamente neste
estudo. O ser-no-mundo é a estrutura fundamental da experiência
humana, ser e mundo, consciência e objeto não podem ser
olhados de forma independente, pois estão indissoluvelmente
ligados. O mundo não é compreendido como um conjunto de
objetos e pessoas existindo por si mesmos, pois cada um deles se
torna o que é em função da significação dada por quem o
percebe. Ser-no-mundo é sempre uma estrutura originária e total,
no entanto, pode-se visualizá-la em termos dos diversos aspectos
do mundo e das diferentes maneiras do homem existir nele.
O mundo circundante é compreendido pelas condições
externas (coisas, plantas, animais, leis da natureza e seus ciclos)
e o próprio corpo com suas necessidades. A importância do
mundo circundante na vida das entrevistadas pode ser notada
especialmente observando a relação estabelecida com seus
corpos. O corpo é o que proporciona ao ser humano os primeiros
e imediatos contatos com o ambiente, é por meio dele que o
homem existe. Ele tem uma função de síntese, unificando as
sensações e percepções de si e do entorno e proporcionando a
abertura para as possibilidades do mundo (Forguieri, 1993). Nos
relatos de Ketlen e Patrícia, o desconforto sentido em relação a
seus corpos dificultava a abertura, o olhar ampliado para as
possibilidades do mundo. Não havia como se relacionar com o
mundo de forma franca e aberta se seus corpos, a estrutura
fundamental por meio da qual existem, as restringiam em suas
potencialidades. O corpo do ser humano, diferentemente dos
objetos inanimados, não se restringe aos limites físicos impostos
por sua condição, indo além dos contatos concretos estabelecidos
e relacionando-se também com suas recordações e imaginações
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 170

de relações que possam vir a estabelecer. Assim, nota-se a


grande dificuldade das participantes em, tendo um corpo que
rejeitavam, estabelecer relações concretas e projetar ou desejar
relações futuras com o mundo e com os semelhantes. Essa
situação só pode ser revertida após alterarem seus corpos e
passarem a senti-lo em congruência com sua percepção de si.
A existência do homem é originalmente ser-com, ou seja,
é por meio das relações com outros seres humanos que
atualizamos, compreendemos e desenvolvemos nossas
potencialidades humanas, especialmente o amor, a liberdade e a
responsabilidade. Essas relações com os outros podem ser
denominadas de mundo humano entre as quais incluímos as
vivências familiares (Forghieri, 1993). No caso de Patrícia, nota-se
que o mundo humano com o qual se relacionou desde sua
infância possibilitou a ela a segurança necessária para que
pudesse explorar o mundo e se desenvolver psiquicamente. A
relação com a mãe, os primos, tios e especialmente os avós,
tinham em comum o amor, a reciprocidade e a segurança. Isso
parece ter facilitado a estruturação psicológica de Patrícia, pos-
sibilitando se desenvolver de modo existencialmente saudável, ou
seja, abrir-se às possibilidades do mundo, tomar decisões
conscientes e se responsabilizar por elas. Além desses, o contato
com outras pessoas, como seus colegas de escola, os colegas
com os quais participava de jogos sexuais, seu pai, dentre outros,
possibilitaram que Patrícia se conscientizasse de suas necessida-
des e da liberdade que tinha para decidir sobre sua vida.
O mundo humano de Ketlen parece ter se configurado de
modo diferente. Socialmente viveu uma situação de isolamento
desde a infância, tendo contatos sociais bastante restritos. Além
disso, estabeleceu uma relação distanciada e permeada pela
violência com o pai e de papéis invertidos com a mãe uma vez
que esta, em função de sua fragilidade psíquica, parecia
necessitar da criança para lhe proteger. Assim, nota-se que o
mundo humano de Ketlen parece ter proporcionado vivências que
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 171

dificultaram seu desenvolvimento existencial. No entanto, em seus


diversos contatos posteriores, com o primo com o qual mantinha
relações sexuais, com as primas que a travestiam, com a prima
travesti, dentre outros, Ketlen pode entrar em contato mais franco
com o mundo e consigo, proporcionando aumento da conscienti-
zação de suas necessidades e potencialidades.
Vivenciando diversas situações no contato com o mundo
circundante e com o mundo humano, o indivíduo vai reconhecen-
do a si próprio e toma consciência de si, formando o que é
chamado de mundo próprio (Forghieri, 1993). Este é caracterizado
pelas significações que as experiências têm para o indivíduo.
Patrícia parece possuir uma consciência mais acurada de si. Tem-
se a impressão de que reconhece quais são suas necessidades,
seus pensamentos e sentimentos, desejos e fragilidades. Desse
modo, tem melhores condições de desenvolver suas potencialida-
des, especialmente sua capacidade para amar e fazer escolhas
congruentes, responsabilizando-se por elas. A entrevistada con-
segue fazer suas escolhas de maneira integrada, considerando
inclusive a ausência de garantias e de controle que a vida oferece.
Sapienza (2007) aponta que a liberdade não é algo a que o
homem tem acesso ou não, mas sim, é algo constituinte de seu
ser, é algo que ele é. Assim as tomadas de decisão estão sempre
permeadas pela imprevisibilidade dos acontecimentos futuros que
atingem a estabilidade e a certeza das decisões previamente
tomadas. Para viver de maneira integrada é necessário correr
riscos e responsabilizar-se por eles e parece que Patrícia assim o
fez. É importante frisar que isso não significa que essas vivências
impliquem em tranquilidade e segurança; muitas delas se dão com
intenso sofrimento, sentimentos contraditórios e arrependimentos.
Notam-se na história de ambas momentos em que se alternam as
maneiras sintonizada, preocupada e racional de existir (Forghieri,
1993).
No que tange ao mundo próprio de Ketlen, há indícios de
que possua em grau menor essa consciência de si, apresentando
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 172

assim, menor integração existencial de suas escolhas. Em vários


momentos da entrevista, nota-se sua dificuldade em identificar
sentimentos ou assumi-los. Relata que frequentemente sente-se
fragilizada por problemas cotidianos e que quando não consegue
resolvê-los de imediato opta por evitar refletir sobre eles para não
piorar sua condição emocional. A presença de fortes e frequentes
sentimentos de tristeza e ansiedade também demonstram sua
maior fragilidade existencial.

Considerações Finais

Por meio do presente estudo foi possível identificar que


as duas travestis entrevistadas possuem experiências familiares
heterogêneas e, ao longo do tempo, são construídos tanto
sentimentos de aceitação quanto de rejeição por parte dos
familiares. Pelos relatos, pode-se compreender que a família é
descrita pelas participantes tanto como impulsionadora dos
percursos desenvolvimentais que se deram longe do ambiente
familiar (como a transformação em travestis), como um ambiente
ao qual retornaram após a mudança, ou seja, um contexto de
“antes” e de “depois” da sua constituição de ser-no-mundo como
travestis.
Entre as limitações do presente estudo, há que se
considerar que as vivências aqui discutidas não podem ser
compreendidas como um padrão de comportamentos familiares
em relação à presença de um membro travesti, mas são
narrativas que revelam diferentes possibilidades de histórias de
vida e de percursos desenvolvimentais. Como a visibilidade dos
estudos com travestis é requisitada, mostra-se a importância de
entrar em contato com esses estudos de caso, ainda mais tendo
como norte a discussão em torno das relações familiares.
Ainda que as participantes destaquem dificuldades no
relacionamento com os seus pais, há que se considerar que o
ambiente familiar continua a fazer parte das histórias das
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 173

participantes mesmo quando elas deixam de morar com a família


de origem. Ainda que as rupturas familiares e as crises façam
parte do desenvolvimento das participantes, a família também é
descrita como uma fonte de apoio, como um ambiente capaz de
acolher mesmo após a transformação desses homens em
travestis, em oferecer ajuda e aceitação. Mesmo com histórias
familiares marcadas pelo sofrimento, estas se apresentam como
um meio relativamente permanente que oferece acolhimento em
momentos importantes como logo após a transformação corporal.
As entrevistadas, apesar dos aspectos negativos de algumas
experiências familiares, notadamente com as figuras paternas,
encontram nas mães figuras importantes cuja aceitação é bus-
cada como uma espécie de “autorização” para a vivência como
travesti, para a vivência integral em seus mundos próprios.
Como primeira instituição socializadora, a família continua
a desempenhar um papel importante no desenvolvimento das
participantes ao longo do ciclo vital, no “antes” e no “depois” da
chamada transformação dessas jovens. A família não deve ser
apreendida como causadora dos percursos desenvolvimentais ou
dos comportamentos associados à população LGBT, como
tendência expressa em algumas correntes da Psicologia, mas
como cenário que pode deflagrar os processos desenvolvimentais
e permitir mudanças que favoreçam a assunção de estratégias
mais positivas de ser-no-mundo. Estudar essas famílias pode
contribuir para que estudos sejam delineados e para que as
travestis sejam melhor compreendidas como possuidoras de
relacionamentos familiares que as auxiliem nas suas trajetórias de
vir-a-ser.

Referências

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Estágio em NASF:
Interlocuções entre psicoterapia breve,
plantão psicológico e grupos operativos
Tamara Rodrigues Lima Zanuzzi
Tales Vilela Santeiro
Fabio Scorsolini-Comin

Este capítulo tem por objetivo contextualizar, refletir


sobre e debater experiências desenvolvidas em um estágio
supervisionado em processos clínicos, realizado em Núcleo de
Apoio à Saúde da Família (NASF) de um município de pequeno
porte, localizado no interior da região Centro-Oeste. Antes de
especificarmos essas experiências, faremos uma breve exposição
teórica sobre a concepção do estágio. Em seguida, mais
especificamente, discutiremos como atividades de estágio
supervisionado podem se alinhar aos processos de formação de
estagiários para atuar nas frentes de saúde pública, a partir de um
enfoque clínico, de modo a integrar os campos da saúde, da famí-
lia e da comunidade.

Saúde Pública, NASF e Psicologia

O Ministério da Saúde criou os NASF em 2008 com o


objetivo de apoiar a inserção da estratégia de saúde da família
(ESF) na rede de serviços. Além de ampliar a abrangência e o
escopo das ações da Atenção Básica, o NASF também teve como
objetivo aumentar a resolutividade, reforçando os processos de
territorialização e regionalização em saúde (Brasil, 2009, 2013b).
O NASF, como parte constituinte da ESF, tem o apoio matricial
como princípio básico de atuação. Este apoio matricial é a
constituição de uma equipe de referência, cujos integrantes têm
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 178

uma determinada clientela sob responsabilidade, dentro de um


território de abrangência, levando sempre em consideração a
interdependência profissional.
Visando à melhoria e a eficácia dos atendimentos, o SUS
(Sistema Único de Saúde) ampliou o número de equipes de
Saúde da Família que compunham a Estratégia de Saúde da
Família – ESF (Brasil, 2009, 2013b). Essa estratégia realiza
atendimentos comunitários, com o foco na atenção primária da
saúde da família. A ESF é a porta de entrada do SUS e nessa
condição procura intervir sobre os fatores de risco aos quais as
comunidades estão expostas, tentando oferecer atenção integral,
permanente e de qualidade (Couto, Schimith, & Dalbello-Araujo,
2013; Silva et al., 2012; Silva & Cardoso, 2013; Vasconcelos &
Pasche, 2006). A constituição de um NASF está inteiramente
ligada ao número de equipes de Saúde da Família existentes em
um município e tem como objetivo comum à ESF a criação de
espaços de discussão para gestão do cuidado, tendo como eixos
a responsabilização, a gestão compartilhada e o apoio à coorde-
nação do cuidado pretendido pela Saúde da Família.
De acordo com as concepções apresentadas pelo Conse-
lho Federal de Psicologia (2009), cabe ao psicólogo atuar em prol
de usuários do NASF e de seus familiares. Essa atuação visa
promover a saúde mental, intervir sobre as situações de risco
psicossocial e/ou de doença mental, tendo como objetivo
principal a prevenção, o tratamento e a reabilitação, por meio de
um cuidado com extensão longitudinal. Nesse sentido, a prática
da psicologia deve estar voltada para reflexões e intervenções de
amplas magnitudes, que considerem a complexidade da
sociedade brasileira e integrem as questões da subjetividade às
dimensões sociais e biológicas.
Desse modo, o trabalho no NASF pressupõe
interdisciplinaridade e requer uma série de cuidados onde cada
profissional, inclusive o psicólogo, deve atuar no momento
necessário (Couto, Schimith, & Dalbello-Araujo, 2013). O Conse-
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 179

lho Federal de Psicologia (2009) sugere uma análise profunda da


demanda prioritária e depois da discussão dos casos, construir e
estabelecer atendimentos em conjunto com a equipe, utilizando os
recursos possíveis e necessários para um projeto terapêutico
singular para os usuários ou famílias. Assim, é importante para a
eficácia dos processos de intervenção terapêutica a retomada da
história de vida das pessoas e das comunidades, avaliando suas
variáveis, identificando os principais problemas e decidindo quais
as articulações clínicas são mais apropriadas.

Formação profissional e atividades de estágio em


Psicologia e processos clínicos

O estágio é um momento muito esperado por estudantes


de cursos de psicologia, porque através dele é possível exercitar
aprendizados obtidos no decorrer da formação, permitindo que
conhecimentos, habilidades e atitudes se concretizem em ações
profissionais (Brasil, 2011). Além disso, constitui um espaço prio-
ritário para a formação da identidade profissional, sendo que este
é o momento em que o acadêmico se depara com diferentes
limites e possibilidades do fazer do psicólogo (Costa Jr. & Holan-
da, 1996; Scorsolini-Comin, Souza, & Santos, 2008).
Nesse momento de transição profissional, o espaço de
supervisão é fundamental para o aprimoramento da prática clínica
de estagiários. Aguirre et al. (2000) lembram que o instrumento
psicológico do terapeuta é a sua própria pessoa e por isso é
importante ele estar atento às emoções e atitudes que são
vivenciadas durante os atendimentos. A supervisão é, portanto, o
momento de acolhimento das emoções, atitudes, significados e
interpretações dos atendimentos realizados pelos estudantes. A
prática supervisionada busca oferecer, simultaneamente, suporte
“emocional” e “instrumental” ao estagiário, e também permite uma
compreensão mais ampla do que acontece com o paciente.
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 180

A reflexão e os estudos sobre os atendimentos


psicológicos promovem uma análise mais profunda do que é
relatado e vivido pelos usuários e tornam compreensíveis seus
contextos de vida em um dado momento. Assim, a importância
das supervisões no processo formativo é destacada, porque o
estágio oportuniza a transição de identidade estudantil, a inserção
em ambientes e em manifestações humanas diferenciadas e
favorece a articulação e a integração teoria-prática, experiências
tidas como indispensáveis para o “desenvolvimento e
consolidação de diversas competências esperadas de um
formando em Psicologia” (Oliveira-Monteiro & Nunes, 2008, p.
287).
Esclarecida e destacada a importância das atividades
supervisionadas, se faz necessário observar que elas são
entendidas como insuficientes para o estagiário adentrar nas
práticas de cuidados de si, o que seria condição a ser obtida em
processo psicoterapêutico pessoal. Em função da diversidade de
manifestações subjetivas que se apresentam no campo de
atuação, – muitas das quais exorbitam o universo pessoal do
estudante e interferem negativamente em sua própria subjetivida-
de, – convém ao aprendiz aprimorar-se em estratégias e
condições para estar consigo e cuidar de si tanto quanto nas que
promovem o estar com e cuidar de. Apesar de esse aprimoramen-
to do próprio instrumento de trabalho ser fundamental e ser
amplamente reconhecido pela comunidade acadêmica, não tem
havido discussão que o eleja seriamente como ponto de atenção e
cuidados, no âmbito de políticas de formação de psicólogos em
nível de graduação.
Em seguida, apresentamos alguns dados e reflexões
sobre o estágio específico na ênfase clínica, o qual originou esse
relato. De acordo com Brasil (2011), a ênfase em processos
clínicos visa orientar o estagiário a atuar “[...] de forma ética e
coerente com referenciais teóricos, valendo-se de processos
psicodiagnósticos, de aconselhamento, psicoterapia e outras
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 181

estratégias clínicas, frente a questões e demandas de ordem


psicológica, apresentadas por indivíduos ou grupos em distintos
contextos” (p. 4).
As atividades realizadas no estágio objetivam promover
conhecimento e reflexão sobre questões éticas, sobre regulação e
atuação profissional do psicólogo no contexto da saúde pública
brasileira, articulado ao compromisso social da psicologia no cui-
dado à saúde mental das pessoas. Deste modo, buscamos
desenvolver estratégias de atuação em equipes profissionais, por
intermédio de observação e de atuações supervisionadas nos
NASF. Entre os objetivos específicos do estágio está a oferta de
atendimentos em diversos formatos: (a) psicoterapias breves, com
o número de sessões variando entre uma e seis; (b) atendimentos
psicológicos sem agendamento de horário (plantão psicológico); e
(c) grupos operativos. Todas essas possibilidades consideram as
demandas dos usuários e as da equipe, e elas podem ocorrer
tanto em visitas domiciliares, quanto na Unidade de Saúde da
Família (USF).
Antes de esclarecermos os aspectos teóricos indicados,
caracterizaremos, de modo geral, o ambiente no qual o estágio se
desenvolveu e o público alvo das intervenções.

Cenário e atendimentos psicológicos no NASF

Os estágios supervisionados em psicologia no Campus de


Jataí da Universidade Federal de Goiás começam no oitavo
período, são denominados Básicos e são realizados a partir de
três ênfases curriculares: Psicologia e Processos Clínicos,
Psicologia e Processos Psicossociais e Psicologia e Processos
Educativos, todos com duração semestral. Essas ênfases cur-
riculares constam no Projeto Político-Pedagógico do Curso, orien-
tando e designando o que o estudante precisa se apropriar, ao
longo de sua formação, para atuar profissionalmente (Brasil,
2011). Os acadêmicos realizam estágios nas três ênfases, no
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 182

oitavo período de modo obrigatório e do nono ao décimo optam


por apenas uma delas, nos estágios denominados Específicos.
Estes são cursados em paralelo a disciplinas que remetem a cada
ênfase escolhida.
As considerações apresentadas a partir de agora se
valem de experiências tidas pela primeira autora em equipamento
de saúde pública, acontecidas no décimo período do curso de
psicologia, entre os meses de outubro de 2012 e março de 2013
em um NASF situado em bairro periférico do município de Jataí,
localizado no sudoeste goiano, a 320 km da capital. O censo 2010
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010) aponta que
a cidade conta com uma população de 88 mil habitantes; em
complemento, dados disponíveis no Cadastro Nacional de
Estabelecimentos de Saúde (CNES) indicam a existência de 138
estabelecimentos de saúde públicos e privados no município
(Brasil, 2013a); dentre os públicos, existem 11 Unidades Básicas
de Saúde na zona urbana e três na rural que integram a proposta
da ESF, sendo que nove psicólogos atuam nesses equipamentos
e dois deles exclusivamente em NASF.
A USF de inserção do NASF referido é composta pelos
seguintes profissionais: dois médicos, um pediatra e um ginecolo-
gista; duas enfermeiras, sendo uma delas a coordenadora geral
da Unidade; dois odontólogos; duas auxiliares de saúde bucal;
duas recepcionistas; quatro técnicas em enfermagem; duas
auxiliares de serviços gerais; um vigilante; e 11 agentes de saúde.
Os profissionais da saúde que por sua vez compõem o NASF são:
uma nutricionista; uma psicóloga; uma fisioterapeuta; e uma
terapeuta ocupacional. Sendo assim, o funcionamento do NASF
mantém íntima ligação com a organização e funcionamento da
USF, pois são os médicos, odontólogos, enfermeiros e agentes de
saúde quem geralmente fazem os encaminhamentos para
atendimento psicológico, nutricional e fisioterapêutico.
Os atendimentos psicológicos realizados pela estagiária
foram organizados e supervisionados pela psicóloga do NASF
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 183

(supervisora direta) e pelo segundo autor (supervisor indireto). Os


atendimentos eram realizados em consultórios considerados
parcialmente adequados para desenvolvimento de intervenções
psicológicas, haja vista que muitos instrumentos de uso médico
são visíveis (como maca, estetoscópio etc.). Entendemos que
essa configuração espacial, embora comum em ambientes multi-
profissionais, tende a influenciar a concepção do usuário sobre o
trabalho do psicólogo, que passa a ser visto como sendo
“médico”, inclusive intensificando expectativas de que poderia
receber prescrição medicamentosa.
Na prática da estagiária foram realizados 46 atendimentos
psicológicos na USF e seis visitas domiciliares, cumpridos em
uma carga horária semanal de oito horas. Entre os usuários que
procuraram atendimentos ou que receberam encaminhamentos,
apenas três eram homens, contrastando com número de
mulheres, que foi de 20. A idade média dos atendidos foi de 35
cinco anos. A população do bairro onde o NASF se encontra
demonstrou ter conhecimento e acesso aos serviços de psicolo-
gia, os quais inclusive contaram com outros estagiários nos anos
de 2011 a 2013. Ao longo desse tempo, estes parecem vir
auxiliando os demais integrantes da equipe a consolidarem
trabalhos educativos e focados na conscientização comunitária.
As principais queixas relatadas pelos usuários referiam-se
a sintomas e sinais relativos a estados emocionais diversos
(nervosismo, tristeza, apatia), a dificuldades de adaptação ao
ambiente físico e social, a problemas de transição no ciclo vital
(gestação, adolescência, velhice, paternidade), a dependência do
prestador de cuidados, entre outros. Diante disso, os espaços de
supervisão demonstraram a importância de se intervir a partir de
uma escuta respaldada no que Aguirre et al. (2000) chamam de
atitude clínica. Essas autoras descrevem essa atitude como sendo
uma ação profissional, a partir da qual o terapeuta atua sob um
enfoque empático, estruturado na relação de respeito e na qual se
procura evitar transgressões éticas. O alcance dessa postura clí-
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 184

nica oportuniza atendimentos psicológicos que priorizam o


acolhimento e a busca de compreensão sobre a condição descrita
pelo paciente.
Apreciadas essas contextualizações, a proposta de aten-
dimento psicológico nos NASF se mostra como um trabalho de
extensão universitária relevante, considerando a grande demanda
de parte da população que recorre a esses equipamentos e o
número de profissionais psicólogos contratados/concursados para
desempenhar esses serviços. O uso da psicoterapia breve e do
plantão psicológico como modelos de atendimento cumpre a
necessidade de se ter abordagens alternativas de atendimento
para lidar com filas de espera. Ambas permitem ao usuário uma
atmosfera acolhedora, que em última instância busca facilitar a
abertura para novas possibilidades de compreensão de si mesmo
e das problemáticas socioculturais e familiares que são
apresentadas, promovendo, assim, processos de apoio psicológi-
co. Nesse mesmo direcionamento, acreditamos que intervenções
grupais, em especial inspiradas no modelo de grupo operativo
proposto por Pichon-Rivière (1983/2009), possam ser integradas
às linhas de atenção comunitária.
A seguir, apresentamos alguns esclarecimentos sobre os
“instrumentos teóricos” utilizados nos atendimentos psicológicos
no NASF estudado.

Buscando integrar elementos teóricos e atitudinais


envolvidos no trabalho clínico

A psicoterapia é um espaço favorável para o crescimento


e amadurecimento daquele que busca ajuda. Nele o usuário pode
construir espaço de intimidade consigo mesmo, por meio de
diálogos que podem promover mudanças em padrões de
funcionamento que comprometem a sua saúde mental. Para
Simon (1981), os objetivos principais e essenciais de uma
psicoterapia são: diminuir a angústia, ajudar a resolver problemas,
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 185

esclarecer as obscuridades e promover o desenvolvimento da


personalidade. Segundo esse autor, o paciente geralmente procu-
ra ajuda psicoterapêutica quando não consegue mais suportar
suas angústias e resolver seus problemas. Seguro dos objetivos
da psicoterapia, o trabalho terapêutico pode garantir resultados
significativos para a melhora do paciente, o que sempre estará
vinculado às variáveis próprias a cada dupla paciente-terapeuta e
à instituição onde os atendimentos acontecem. Assim, entre os
objetivos propostos por Simon, no tipo de trabalho enfocado nem
sempre pode ser dito que todos eles serão contemplados, apesar
de se poder afirmar que alguns deles o seriam, em especial os
três primeiros.
Resguardadas essas peculiaridades, o referencial teórico
que vem sendo utilizado em atendimentos individuais tem busca-
do inspiração nas propostas de Psicoterapia Breve Psicodinâmica
(PBP) (Enéas, 2011; Enéas & Rocha, 2011; Enéas & Yoshida,
2012). Mais recentemente, diretrizes utilizadas em atendimentos
oferecidos na modalidade de plantão psicológico vêm sendo
incorporadas e têm sido objeto de reflexão e estudo (Doescher &
Henriques, 2012; Souza & Souza, 2011; Yehia, 2004). Em com-
plementação, sempre que atendimentos grupais são requeridos, a
proposta de Grupos Operativos tem sido contemplada (Pichon-
Rivière, 1983/2009).
Yoshida (1993) define psicoterapia breve como sendo
qualquer modalidade psicoterapêutica que trabalha “com
problemas, ou conflitos específicos, dentro de um espaço de
tempo delimitado” (p. 23). Para Enéas (2011), nessa modalidade
psicoterapêutica “todo planejamento terapêutico será feito em
função das condições e necessidades que a pessoa apresente”
(p. 183). Desse modo, o terapeuta tem como parâmetro a
definição de um foco e um objetivo – diretamente ligado ao foco –
para assim se pensar em estratégias de intervenção, deixando
clara a duração do processo terapêutico (Enéas, 2011).
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 186

O psicoterapeuta orientado teoricamente pelo modelo das


PBP busca, juntamente com o paciente, compreender e intervir
sobre as queixas, os motivos de angústia e de sofrimento
psíquico, para que haja um direcionamento focal dos atendimen-
tos psicológicos. A busca de foco é necessária para que, no
processo de ajuda, padrões repetitivos de comportamento possam
ser identificados, os quais usualmente sinalizam a origem dos
conflitos. Desse modo é possível tanto aperfeiçoar possibilidades
de ajuda psicológica, quanto evitar processos questionáveis em
sua utilidade. Além do mais, a focalização também é importante
tendo em vista brevidade do processo terapêutico ser imperativa
em cenários institucionais de saúde pública.
Discutir as vantagens de um processo focalizado implica,
ainda, em reconhecer que flexibilidade terapêutica é um dos
aspectos mais importantes da PBP. Ela significa que o terapeuta
deve adaptar a técnica às necessidades do paciente (Enéas,
2011). As estratégias psicoterapêuticas decorrentes da focaliza-
ção e da inerente flexibilização técnica visam apoiar, esclarecer e
promover mudanças duradouras, de forma que o paciente é
encorajado e orientado a auto-observar e compreender suas
dificuldades e seus conflitos, para buscar estratégias de melhoria
para o seu bem-estar (Yoshida, 1993).
No que diz respeito ao plantão psicológico, Souza e
Souza (2011) afirmam que ele tem sido reconhecido, também pelo
Conselho Federal de Psicologia, como uma alternativa de atenção
psicológica. Este tipo de intervenção mira o atendimento
emergencial da demanda do paciente, de modo que não se torna
obrigatório o agendamento da sessão antecipadamente (Yehia,
2004). No Brasil, destacamos contribuições desenvolvidas por
equipes de estágio na interface entre universidade e comunidade
(Doescher & Henriques, 2012; Gomes, 2008; Rosenthal, 2004).
O plantão psicológico tem a função de iniciar o processo
de reorganização dos conflitos e queixas trazidas pelo paciente,
“constituindo-se como espaço de expressão e acolhimento de
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 187

angústia, sendo, sobretudo, ‘um processo com começo, meio e


fim’” (Souza & Souza, 2011, p. 245). Para Yehia (2004), o
atendimento no plantão, em vez de focalizar o sintoma do cliente,
visa acolher suas experiências para tornar o encontro significativo.
Nesse sentido, Souza e Souza (2011) afirmam que:

“(...) as ações plantonistas são pautadas nas atitudes facilitado-


ras, sendo suas intervenções dependentes da necessidade e
motivação interna da pessoa atendida, cujas demandas variam
em complexidade, podendo ir desde a necessidade de esclare-
cimento de dúvida sobre assuntos simples, até assuntos técni-
cos” (p. 246).

Nesse tipo de trabalho, o plantonista deve proporcionar


um ambiente acolhedor, permeado de afetividade e de atitudes de
empatia e aceitação, facilitando o diálogo e viabilizando a escuta
das experiências emocionais dos pacientes, no exato momento
em que estes buscaram ajuda para solucionar seus conflitos e
dificuldades. Trata-se de uma intervenção que intenta resgatar e
promover autonomia e saúde (Souza & Souza, 2011) e que, por-
tando as características elencadas, mantém estreita proximidade
com as propostas de PBP.
Embora o atendimento em plantão psicológico possa se-
guir diferentes orientações teóricas, as atitudes de facilitação e
aceitação para a pessoa em sofrimento explicitar seus conflitos e
seus questionamentos se avizinha, destarte, de uma atitude
clínica orientada psicanaliticamente. Essa orientação tem sido
exercitada no âmbito das práticas de estágio diante da crença de
que, mesmo em se tratando de intervenções focais, breves e/ou
emergenciais, individuais ou grupais, as produções dos usuários
são dotadas de um sentido que não necessariamente encontra-se
na esfera de suas consciências.
Diante disto, compreendemos que a oferta de atenção à
saúde das pessoas em estudo nem sempre atende a critérios do
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 188

que se convenciona intitular como “psicoterapias breves”, entendi-


das como propostas de atendimento individual com duração
aproximada de 12 sessões. Porém, é “psicoterapêutica” porque
constitui e promove espaço de escuta e acolhimento às questões
existenciais dos pacientes. Essa adoção teórica implica em lidar
com uma consequente modificação nas técnicas de atendimento
apresentadas pelos respectivos modelos citados (PBP e plantão),
de modo que estratégias e atitudes clínicas sejam integradas
como recursos no âmbito da saúde pública (Santeiro, 2012).
Sobre grupos, vale lembrar que em sua acepção psicoló-
gica, a compreensão que se tem sobre eles vai além de
considerá-los como um simples amontoamento de pessoas. Eles
são entendidos como composições de redes nas quais ocorrem
trocas sociais, simbólicas e afetivas, que por sua vez abarcam
relações e comunicações entre seus integrantes (Ávila, 2010).
Essas características permitem tanto entender quanto enfrentar a
complexidade de um processo grupal, porque nele ocorrem
tensões de ordens diversas, que abrangem todas as pessoas que
o constituem.
Pichon-Rivière (1983/2009) definiu um tipo específico de
modalidade grupal, chamado grupo operativo. Esse tipo de grupo
versa sobre um conjunto de pessoas interligadas no “tempo e no
espaço, por sua mútua representação interna, que se propõe de
forma explícita ou implícita, a realizar uma tarefa para qual intera-
tuam em uma rede de papéis através de vínculos estabelecidos
entre si” (p. 242). Essa tarefa poderá ser a obtenção da cura, se
for um grupo terapêutico, ou a aquisição de conhecimento, se for
um grupo de aprendizagem.
Na concepção operativa, o objetivo da tarefa grupal é
superar e resolver situações estáticas e estereotipadas e
transformá-las em situações flexíveis (dialéticas). Ou seja, o
direcionamento dos trabalhos ocorridos em grupos operativos
seria focado na busca de ruptura de angústias relacionadas ao
desconhecido, rumo à obtenção de construções aprendidas
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 189

mutuamente entre seus membros constituintes. E no caso de


trabalhos ocorridos no NASF, por toda a ambientação institucional
e própria do estágio, o trabalho grupal focado na aquisição de
conhecimento tem sido priorizado. A Figura 1 esquematiza os
elementos teóricos discutidos e busca enquadrá-los em uma esfe-
ra maior, que é a da formação de uma atitude clínica em proces-
sos e trabalhos desenvolvidos em NASF.

Figura 1. Interlocuções possíveis entre psicoterapias breves, plantões


psicológicos e grupos operativos.

Sendo assim, para ilustrar as práticas clínicas realizadas


no NASF, dois casos serão apresentados. O primeiro refere-se ao
atendimento individual de um homem que sofreu a amputação de
parte de uma perna e o outro destaca a experiência grupal com
gestantes. A brevidade das intervenções, a necessidade de elas
serem focalizadas e a relativa urgência no modo como as deman-
das foram formuladas por integrantes da ESF são fatores que
neste momento justificaram a escolha dos mesmos. Outro compo-
nente explicativo para essa seleção ter sido feita é que visitas
domiciliares e trabalhos grupais, incluindo grupos operativos,
permanecem como modalidades de intervenção integradas às
preocupações expressas pelo Ministério da Saúde (Brasil, 2013b).
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 190

Caso 1: Atendimento clínico em visita domiciliar

Aquiles (nome fictício) possuía cerca de 20 anos quando


foi atendido, e mantinha relação conjugal estável. Recebeu
atendimento psicológico em seu domicílio em virtude de estar
acamado, que totalizou três encontros. Ele foi encaminhado pela
agente de saúde e pela enfermeira que o acompanhavam, após
ter sofrido grave acidente automobilístico, no qual teve fratura
exposta nos membros inferiores. Em razão da gravidade dos
ferimentos, teve que amputar parte de uma perna e realizou várias
cirurgias para reconstituir a bacia e outro membro, todas
complexas e envolvendo risco de morte e de tornar-se tetraplégi-
co.
O paciente passou por internação prolongada (cerca de
70 dias) e foi submetido a diversos procedimentos para melhorar o
seu estado de saúde. Nesses períodos, afirma ter experimentado
momentos de muita reflexão, angústia e superação. Narra que os
médicos se surpreenderam com a evolução do seu quadro clínico,
pois não acreditavam que ele sobreviveria. A repercussão do aci-
dente no aspecto físico de Aquiles concorda com achados de
Chini e Boemer (2007), quando afirmam que as estatísticas sobre
as amputações são imprecisas, mas que cerca de 85% delas
ocorrem em membros inferiores.
As consequências do acidente foram vivenciadas por
Aquiles como uma condição que o possibilitou ser uma pessoa
melhor no momento atual de sua vida. Afirmava que todos os
momentos difíceis pelos quais passou foram muito importantes,
revelando se considerar uma pessoa melhor após o acidente, pois
conseguia ver, sentir e viver coisas sobre as quais não parava
para refletir. Em seu discurso, ele relatava os momentos de difi-
culdades e em seguida refletia positivamente sobre tudo o que
aconteceu. Nos momentos mais difíceis, angustiantes e de dores
físicas muito intensas, ficava agressivo, nervoso e tinha vontade
de desistir de tudo. Entretanto, percebia que suas atitudes não
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 191

colaboravam para sua melhora e que também deixava seus fami-


liares muito angustiados. Diante disso, ele resolveu ser mais
colaborativo e assertivo com o tratamento e percebeu que podia
utilizar suas experiências para ajudar as pessoas que passavam
pelo hospital, durante o período em que ficou internado.
Por essa via, Aquiles ressaltava firmemente os aspectos
positivos envolvidos no ter sido acidentado e demonstrava aceitar
muito bem a sua nova condição. Outro aspecto ressaltado por ele
com constância era o fato de não querer atrapalhar e dificultar a
vida de seus familiares por causa da seu estado de saúde. Afirma
que, em muitos momentos, sofreu calado para não fazer os
familiares sofrerem. “De certo modo, a preocupação com a família
mostra-se como algo determinante para a tentativa de
manutenção das aparências e do contínuo esforço para não
deixar transparecer a dor vivida” (Chini & Boemer, 2007, p. 333).
Esse tipo de afirmação também precisou ser constantemente
ponderada, em supervisão, na medida em que a estagiária
parecia ter sido inserida na cadeia de mais um outro passível de
ser “poupado” por Aquiles.
Devido à gravidade do seu estado de saúde, Aquiles não
teve a oportunidade de saber que, nos procedimentos, ele teria
que amputar parte de uma perna. De acordo com Seidel, Nagata,
Almeida e Bonomo (2008), “a amputação muitas vezes se faz
necessária e se mostra como procedimento decisivo para salvar a
vida do doente” (p. 309). Chini e Boemer (2007) dizem que a
amputação, na maioria dos casos, é conversada previamente e
geralmente o paciente concorda, apesar de apresentar sentimen-
tos de desespero, tristeza, desânimo e medo. Para estas autoras,
a amputação é uma experiência que interfere nas relações
biopsicossociais, marcada por sentimentos racionais sobre uma
determinada necessidade e que também envolve um lado
emocional que dificilmente aceita a perda. Essa situação implica
em “viver uma incompletude que traz consigo uma série de
alterações no existir. É ter que se adaptar/readaptar, aprender a
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 192

viver novamente, agora assumindo outra perspectiva no mundo


para si, para os outros, para os objetos” (Chini & Boemer, 2007, p.
332).
Para Aquiles, o processo de amputação era descrito como
aparentemente tranquilo. Ele percebia que passava por momentos
de adaptação, aprendizagem e reflexões, mas parecia optar por
lidar com essas situações com predomínio de racionalizações,
defendendo-se, assim, de sentimentos de tristeza, desespero,
medos e angústias. Conforme Galván e Amiralian (2009), em al-
guns casos o paciente não reconhece emocionalmente a amputa-
ção e não subjetiva a perda, vendo-se com dificuldades para se
apropriar do seu corpo diferente. E na medida em que o trabalho
foi desenvolvido com Aquiles, essa impressão emocional relacio-
nada à ausência de aceitação subjetiva sobre a perda física, era
presença constante na estagiária.
A todo o momento a necessidade de autosuperação pre-
senciou-se, fortemente, no modo de expressão de Aquiles, que
desse modo parecia revestir o seu processo de reabilitação com
atenção às suas possibilidades, ultrapassando as limitações. So-
bre isso, Chini e Boemer (2007) dizem:

A reabilitação deve ser considerada como mais uma etapa do


tratamento, pois permite que a pessoa continue a lançar-se no
mundo e a viver novas experiências. O retorno às atividades
traz consigo uma sensação de plenitude, onde as possibilida-
des tornam-se concretas e deixam de fazer parte de um mundo
desejado para um mundo vivenciado (p. 334).

Para esses autores, a amputação denota sentimentos de


tristeza, dor e questionamentos, porém as dificuldades e os sofri-
mentos enfrentados podem ser encarados com sentimentos de
necessidade de superação e novas possibilidades de viver a vida.
Podemos dizer, com Aquiles, que para ele, “a expectativa de uma
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 193

nova vida é motivo de felicidade e desejo de querer continuar


vivendo” (Chini & Boemer, 2007, p. 336).
Com este breve relato, buscamos ilustrar a necessidade
do profissional de Psicologia estar engajado e disposto a encon-
trar o outro em seu sofrimento, – um sofrimento que pareceu mais
visível àqueles que efetivaram o encaminhamento e atenderam
Aquiles, do que para ele próprio. Os encontros em atendimento
domiciliar proporcionaram expressão de parcela de suas
angústias e o ensaio de novos modos de ser, a partir dos recursos
desenvolvidos por ele após a amputação, puderam ser comparti-
lhados com a estagiária.
O contato com Aquiles em seu contexto também permitiu
compreender de modo mais aproximado as suas relações familia-
res e os seus principais desafios, estabelecendo com ele um
planejamento para atendimentos futuros, a partir de suas
necessidades emocionais e de reinserção social e laboral. A sua
adaptação à nova rotina pode ser acompanhada pelo profissional
de psicologia no sentido de oferecer-lhe suporte emocional. Em
um sentido, essa medida contemplaria as diretrizes esperadas de
trabalhadores situados em NASF, no sentido de que ela mira o
necessário acompanhamento com alcance longitudinal; contudo,
em outra direção, ela dificilmente poderia estar contemplada no
plano de atividades de um mesmo estagiário, haja vista as
limitações envolvendo calendários acadêmicos em que este se
encontra.
Em âmbito de supervisão, com frequência debates e
reflexões sugeriam necessidades de haver aprofundamentos nas
questões subjacentes ao teor manifestado nas narrativas de
Aquiles, – porque isso poderia consolidar espaços para sua
expressão subjetiva e para favorecer trabalhos elaborativos
acerca de seu novo momento pessoal. Todavia, muito precoce e
claramente ele sinalizava não haver interesse nesse tipo de
exercício que lhe foi disponibilizado, o que determinou seu
processo na série de três encontros. Esse foi o modo como ele
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 194

pode conduzir os diálogos junto à estagiária e esta, em colabora-


ção com o grupo de supervisão, se deixou aprender sobre Aquiles
nessa mesma medida, procurando respeitá-lo em seu tempo
interno.
Assim como houve demandas formuladas por membros
da ESF para desenvolvimento de trabalhos domiciliares e indivi-
duais, outras também ocorreram, o que será exemplificado no
próximo item, com ilustração de intervenção grupal.

Caso 2: Processo grupal com gestantes

O grupo de gestantes foi proposta formulada pela equipe


de enfermagem e surgida a partir do grande fluxo de mulheres
que faziam acompanhamento pré-natal na USF. Essa equipe
considerou significativa a presença de profissionais de outras
áreas e por isso convidou a estagiária de psicologia para integrar
a condução do processo grupal, juntamente com uma estagiária
de enfermagem. Esta ocupou-se de buscar e trabalhar informa-
ções médicas sobre fases e mudanças no período gestacional e a
de psicologia, por sua vez, focou condições emocionais.
Tendo em vista o cronograma previsto para o encer-
ramento do estágio, as estagiárias concordaram que teriam três
encontros com as gestantes e que a modalidade de funcionamen-
to grupal seria do tipo aberta. O objetivo dos encontros era
promover diálogos reflexivos que pudessem colaborar para com
aprendizados sobre as vivências da gestação. Esse tipo de
trabalho planejado pode constituir-se, ainda, como um meio
facilitador para “tomada de consciência de aspectos importantes
envolvidos no dia a dia das pessoas que normalmente passam
despercebidos por elas” (Klein & Guedes, 2008, p. 864).
A gravidez é um momento no qual a mulher tem experiên-
cias significativas que geralmente modificam seu cotidiano e seus
relacionamentos interpessoais. Ela depara-se com a modificação
do seu corpo, com as preocupações acerca do desenvolvimento
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 195

fetal, de seus relacionamentos familiares e sociais, além de


apresentar dúvidas relacionadas à experiência da maternidade
(Baroni, Souza, & Scorsolini-Comin, 2013; Klein & Guedes, 2008).
Por razões como essas, compreendemos e julgamos importante
desenvolver trabalhos em grupo com gestantes, visando
proporcionar acolhimento para as vivências inerentes à sua
condição e para suscitar situações de aprendizagem mútua.
Para Delfino, Patrício, Martins e Silvério (2004), a saúde
da mulher tem recebido atenção nas últimas décadas, porém o
objetivo de proporcionar uma assistência integral à saúde da
mulher tem sido falho. No que diz respeito à saúde da gestante,
esses autores afirmam que:

As ações de saúde não propiciam um acolhimento às ansieda-


des, às queixas e temores associados culturalmente à gesta-
ção. Desta forma, a gestação é conduzida pelos profissionais
de saúde de modo intervencionista, tornando a assistência e as
atividades educativas fragmentadas, sem que a realidade da
mulher gestante seja tratada na sua individualidade e integrali-
dade (Delfino et al., 2004, p. 1058).

Esse tipo de ponderação teórica auxiliou no planejamento


das atividades e na ampliação do olhar das estagiárias sobre o
público alvo das intervenções. No primeiro encontro sete mulheres
participaram, sendo quatro delas primíparas, com gestações que
variavam entre quatro a nove meses. A estagiária de enfermagem
apresentou informações sobre as mudanças de cada trimestre da
gravidez, ilustradas por imagens de fetos, e reforçou a importância
do pré-natal para a mãe e para o bebê. Em meio às surpresas
provocadas pelas imagens, houve questionamentos e dúvidas
puderam ser esclarecidas. Em seguida, conversou-se sobre as
“alterações psicológicas” no período gestacional. As participantes
demonstraram entusiasmo ao falarem sobre as questões emocio-
nais que envolviam suas gestações, sendo que enfatizaram o
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 196

choro excessivo e o nervosismo, alterações nem sempre compre-


endidas por elas. Outro aspecto muito evidente foram as dificulda-
des descritas em relação ao convívio familiar.
No segundo encontro participaram três gestantes, das
quais apenas uma integrava os trabalhos pela primeira vez. A
estagiária de enfermagem conversou com as participantes sobre
mitos e tabus na gravidez, o que caracterizou um momento
dinâmico de partilhas, no qual as pessoas puderam participar
ativamente, redimensionando concepções apresentadas sobre o
período gestacional, muitas das quais eram equivocadas.
Objetivando continuar debates sobre as experiências
gestacionais e sobre a importância das relações sociais nesse
momento, a estagiária de psicologia propôs às participantes
reflexões sobre seus próprios ciclos de desenvolvimento. Como
elas imaginavam que haviam sido gestadas por suas mães? Co-
mo se lembravam de suas infâncias, adolescências e juventudes?
Como se viam em suas vidas atuais? Essa atividade tinha a
finalidade de instigar reflexões sobre as pessoas e momentos que
foram marcantes nas vidas das participantes e sobre como isso
poderia afetar o período gestacional atual e as expectativas sobre
a inserção dos bebês na vida delas.
No último encontro três participantes compareceram, das
quais uma o fazia pela primeira vez. A estagiária de enfermagem
dialogou sobre a importância da amamentação e procurou
demonstrar como é o modo apropriado para as mães
amamentarem seus filhos. Um vídeo do Ministério da Saúde sobre
a importância da amamentação foi, ainda, apresentado. Tendo em
vista este tema, a estagiária de psicologia promoveu diálogo
focado no significado do aleitamento para elas. O diálogo se
estendeu às expectativas acerca do parto, facilitando novos
esclarecimentos de dúvidas e debates sobre como seria a
inserção dos bebês no ambiente familiar.
Considerando o período gestacional e o parto, relaciona-
dos aos questionamentos e dúvidas apresentados pelas
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 197

gestantes, compreende-se que a mulher fique temerosa. Esses


são eventos desconhecidos em relação a outras experiências
pregressas, talvez sejam dolorosos e configurem um “momento
inaugural de concretude da relação mãe-filho” (Klein & Guedes,
2008, p. 864) e do próprio papel de mãe, “por este ser mitificado e
conter a exigência de a mãe ser um modelo de perfeição. Com
todas essas exigências, a gestante chega ao parto, muitas vezes,
sem refletir sobre seus desejos, suas possibilidades e suas limita-
ções” (p. 864).
Para encerrar os encontros planejados, as estagiárias
presentearam as participantes com um caderno onde poderiam
registrar suas experiências gestacionais. Compreendemos que as
atividades em grupo puderam proporcionar às gestantes um
espaço de compartilhamento de experiências, de sentimentos e
de troca de saberes.
Esse conjunto de ações, ora relatadas de modo breve,
procuram ressaltar o valor dos processos grupais como ferramen-
ta apropriada de ser utilizada em NASF, em especial quando
coordenado por profissionais com distintas formações. Estes
devem ser planejados considerando o perfil das gestantes e o
levantamento prévio de suas principais necessidades, enquanto
inseridas na comunidade. A partir desse levantamento, torna-se
possível convidar mulheres para a participação em grupos que
tenham maiores chances de acolher suas necessidades e
expectativas. Conhecer essas demandas é fundamental para o
adequado planejamento, manejo e avaliação do grupo (Fernan-
des, 2013), o que pode contribuir para que as gestantes, neste
caso específico, possam construir um espaço de escuta, troca e
construção de aprendizados para enfrentar a gestação e a futura
maternidade.
A experiência aqui narrada constitui uma aproximação no
sentido de refletir sobre as potencialidades do NASF para a oferta
de atendimentos grupais focados em tarefas de aprendizagem.
Neste momento, o trabalho com gestantes foi utilizado para
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 198

ilustrar algumas das ações que vêm sendo praticadas no estágio,


entretanto outros segmentos comunitários poderiam desfrutar
desse tipo de trabalho.

Considerações Finais

A proposta de estágio em processos clínicos procurou


proporcionar imersão no campo de atuação da Psicologia clínica
na saúde pública, em uma prática supervisionada que busca arti-
cular teoria, produção científica e princípios éticos da profissão.
Dessa forma, o que foi desenvolvido no NASF teve como objetivo
promover reflexões sobre o compromisso social da psicologia no
cuidado à saúde mental, levando em consideração as limitações e
os potenciais dos processos clínicos inseridos no campo da saúde
pública brasileira.
Algumas questões puderam ser apresentadas e discuti-
das, como a necessidade de que a psicologia desenvolva e
aprimore estratégias de atendimento que, de fato, atendam às
necessidades da população que busca auxílio psicológico em
NASF da cidade de Jataí. Tendo em vista os princípios
norteadores do SUS, da ESF e do NASF, os atendimentos foram
realizados concebendo as pessoas como membros de uma
determinada comunidade, com características que precisam ser
respeitadas e melhor conhecidas pelos psicólogos. Assim, a
inserção do profissional nessa instituição pode gerar uma atuação
firmada no conhecimento de expectativas e demandas comu-
nitárias.
Além desse preparo profissional, a disponibilidade para o
encontro com o outro, com as dores inerentes ao trabalho de
ofertar cuidados àqueles que sofrem, deveria permanecer no foco
da atenção do psicólogo e da equipe, de modo que cuidar-se
fosse uma prerrogativa institucional e política tão imprescindível
quanto cuidar de. A capacidade de estar com o outro, de
corresponsabilizar-se e de buscar alternativas coerentes com seu
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 199

contexto e com as suas possibilidades, dentro de uma comunida-


de local, são desafios que precisam compor o repertório dos
profissionais da psicologia. Entende-se que essas questões
emergentes precisam atravessar a formação do estudante na
graduação, bem como o espaço primordial constituído pelos
estágios básicos e específicos na construção profissional.
As modalidades de atendimento clínico executadas e rela-
tadas, as visitas domiciliares e o processo grupal compuseram um
repertório de atuação que pode e deve ser ponderado, mirando
progressos. Quais os limites e os alcances dessas formas priori-
zadas no atendimento psicológico? Como essas estratégias
podem atender à população que diariamente chega ao NASF
estudado e a outros, situados em realidades semelhantes?
Esses são alguns dos desafios que devem continuar
servindo à nossa reflexão na universidade em sua interface com a
extensão à comunidade e com a pesquisa. Compreender o fazer
clínico como uma atividade diretamente atrelada à comunidade e
ao meio social pode contribuir para a assunção de intervenções
que encontrem a pessoa em sofrimento em sua realidade,
buscando soluções a partir de sua rede de apoio e de seus recur-
sos pessoais. O encontro com o outro na urgência pode ser mais
uma oportunidade para que os psicólogos compreendam o saber
clínico como algo dinâmico, que pode promover a abertura para a
escuta e o acolhimento em situações diversas, como as retratadas
neste momento.
O que tem sido desenvolvido nas atividades do estágio,
particularmente nos atendimentos individuais, não é algo que
coincida com as propostas especificadas pelos proponentes das
PBP e do plantão psicológico. Ambos os modelos são adotados
como motivadores das práticas, entre os fatores já mencionados,
porque consideram o fator temporal e a focalização como delimi-
tadores das intervenções. Contudo, nem sempre é possível ser
dito que os atendimentos oferecidos constituam, de fato, em
psicoterapias breves, ainda que seja possível dizer que, com
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 200

muita frequência, eles exerçam a função de plantões psicológicos.


Por outro lado, nos casos de trabalhos grupais, os grupos
operativos são tidos como ponto de partida teórico e prático,
todavia não seria conveniente dizer que se tratam de processos
espelhados em relação às proposições de Pichon-Rivière e seus
colaboradores.
Com este trabalho pretendemos indicar algumas pos-
sibilidades de inserção do psicólogo clínico no NASF, pela via do
diálogo e da reflexão ocasionada pela presença de uma
estagiária. Como ferramentas básicas, o profissional em formação
deve conhecer o campo da saúde pública e suas políticas. Se sua
atividade estiver suficientemente embasada em recursos dis-
ponibilizados pela Psicologia e se ela puder ser aprimorada e
reinventada, estratégias e reflexões sobre saúde podem
materializar de modo construtivo e progressivo, junto à equipe e à
comunidade, os princípios norteadores do SUS. Esperamos,
ainda, ter ressaltado a impossibilidade de execuções clínicas
pautadas em modelos teórico-técnicos e práticos já estabelecidos.
Acreditamos na necessidade de existirem pesquisas para
aprimoramento de vertentes mais adequadas à realidade da
saúde pública nacional, o que se mostra exequível a partir de
atividades extensionistas como as relatadas neste capítulo.

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S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 205

O processo de construção de um
espaço grupal para equipes de profissionais
da Estratégia Saúde da Família
Marianna Ramos e Oliveira
Carolina Martins Pereira Alves
Joana Borges Ferreira
Neftali Beatriz Centurion
Roberta Rodrigues de Almeida
Laura Vilela e Souza

Neste capítulo, objetivamos a apresentação e análise da


proposta de intervenção grupal com profissionais de equipes da
Estratégia Saúde da Família (ESF), desenvolvida no estágio no
curso de graduação em Psicologia da Universidade Federal do
Triângulo Mineiro, na cidade de Uberaba (MG). Iniciamos o
capítulo resgatando a proposta do SUS e da ESF e a literatura
sobre prática grupal nesse contexto e, em seguida, apresentamos
a intervenção grupal desenvolvida nesse estágio. Por fim,
tecemos uma discussão dessa prática a partir dos desafios por
nós vivenciados.

Estratégia Saúde da Família, equipes de


profissionais e espaços grupais

Desde a conquista legal de um Sistema Único de Saúde


(SUS) para o Brasil, um processo dinâmico e complexo tem se
estabelecido, com especial atenção à produção do cuidado à saú-
de e ênfase em dois aspectos principais: o processo de trabalho
em saúde e a integralidade (Merhy, 2002). Após as propostas da
VIII Conferência, em 1988, foi incluída na Constituição Brasileira a
saúde como um direito de todos e dever do Estado (Cordeiro,
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 206

1991). A conferência, ao propor um novo entendimento de saúde,


teve como efeito a garantia do direito à cidadania com relação às
condições do cuidado em saúde, rompendo com a concepção
medicalizada de que saúde é apenas ausência de doenças
(Escorel & Bloch, 2005). Os princípios do então novo sistema de
saúde são: universalidade, equidade, integralidade, descentraliza-
ção, regionalização, hierarquização e participação popular. Esse
sistema foi, após sucessivos movimentos e tentativas, a primeira
ferramenta legitimada e garantida em lei para a construção de um
sistema de saúde digno, humano e universal (Camargo-Borges &
Japur, 2005).
Com a Declaração de Alma-Ata, houve uma aproximação
dos serviços de saúde com as necessidades da população com
sua participação na tomada de decisões e reorientação dos servi-
ços. Nesse contexto, ficou definido que a atenção primária à
saúde (APS) seria a porta de entrada da população ao sistema
nacional de saúde, responsável pela coordenação e integração
dos cuidados em saúde (Heimann & Mendonça, 2005). A Estraté-
gia de Saúde da Família (ESF), considerando-se a hierarquização
do modelo SUS, faz parte das estratégias do primeiro nível de
atenção em saúde. Segundo o Ministério da Saúde (Brasil, 1998),
a ESF deve garantir o acompanhamento dos indivíduos e famílias
no acesso a outros níveis de maior complexidade, como hospitais
e unidades de pronto atendimento. A ESF se apresenta como uma
resposta à crise do sistema de saúde provocada pela assistência
centrada no modelo biomédico medicalizante, verticalizado e
centrado na produtividade, propondo parcerias com as famílias no
local onde atua e privilegiando um trabalho baseado na promoção
de saúde, no vínculo e na responsabilidade das ações coletivas e
individuais (Brasil, 2005; Matumoto, 2003).
O bom trabalho em equipe é uma das principais caracte-
rísticas do SUS. Para tanto, é preciso uma atuação harmônica,
onde haja a homogeneização de práticas e saberes. É preciso,
porém, garantir, ao mesmo tempo, a presença de diversidades
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 207

relativas aos campos de cada saber profissional. A equipe precisa


trabalhar em harmonia, mesmo que em alguns momentos o
trabalho de um ou outro profissional se sobressaia (Gomes,
Pinheiro, & Guizardi, 2005). Camargo-Borges e Cardoso (2005)
apontam para a necessidade da criação de espaços nas Unidades
Básicas de Saúde (UBS) onde haja apoio mútuo dos profissionais
e possibilidade de expressar as dificuldades encontradas no
trabalho pela a equipe. Peduzzi (2001) afirma que a equipe de
saúde, muitas vezes, organiza-se agindo sem comunicação,
fortalecendo as hierarquias de subordinação previamente
estabelecidas pelo modelo biomédico tradicional de saúde. A
constituição de uma equipe multidisciplinar deve basear-se no
diálogo e troca de saberes, na qual o cooperativismo e os diferen-
tes conhecimentos ajudariam a equipe a se tornar mais integrada
e eficiente para lidar com os usuários. Por esses motivos, embora
a ESF tenha crescido e facilitado importantes processos de
mudança, ainda são necessárias transformações significativas na
prática desse tipo de serviço (Gil, 2006).
A Psicologia tem tido o desafio de rever suas práticas no
campo da saúde de forma a responder às demandas de implanta-
ção desse novo modelo de cuidado. Nas últimas décadas, os
psicólogos passaram a compor as diferentes equipes de saúde.
Todavia, essa inserção aconteceu, em um primeiro momento, com
a ausência de um arcabouço teórico e prático para sua atuação
nesse âmbito (Camargo-Borges & Cardoso, 2005). Andrade e
Simon (2009) apontam que a falta de formação específica durante
a graduação pode prejudicar a prática profissional na saúde públi-
ca. Um estudo conduzido pelo Conselho Federal de Psicologia
(2010) mostra que profissionais que atuam em Unidades Básicas
de Saúde (UBS) encontram dificuldades em realizar um trabalho
inovador devido às más condições de trabalho, falta de capacita-
ção, recursos materiais e espaço físico, que não permitem a
realização de um atendimento em grupo adequado. Além disso,
os profissionais afirmam haver uma desvalorização de seu
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 208

trabalho nas unidades, ainda muito voltadas à tradição medicali-


zante. Apesar destes fatores, os profissionais que participaram da
pesquisa acreditam que práticas grupais nesse contexto podem
ser positivas, promovendo um envolvimento entre profissionais e
usuários. A respeito do trabalho com grupos, Souza e Carvalho
(2003) também consideram uma intervenção consagrada no
âmbito da saúde pela Psicologia.
Segundo Ferreira Neto e Kind (2011), a atuação com
grupos nas UBS tem sido uma ferramenta muito útil que atende
aos princípios do SUS e proporciona um trabalho de
transformação das práticas de saúde. Alguns profissionais
também consideram grupos uma estratégia para a reorganização
do excesso de demanda. Além das razões práticas para o
incentivo da formação de grupos, há também a de promoção de
saúde.
A construção de grupos pode ser elaborada tanto com os
usuários do serviço quanto com os profissionais, trazendo diferen-
tes benefícios (Ferreira Neto & Kind, 2011). O grupo inserido na
realidade dos profissionais pode auxiliar na criação de um espaço
de colaboração, apoio, interação dos saberes e sociabilidade
(Nascimento, Brigadão, Silva, & Spink, 2010). McNamee (2010)
afirma que a constituição de uma equipe multidisciplinar deve
basear-se na dialogia e troca de saberes, na qual o cooperativis-
mo e os diferentes conhecimentos ajudariam a equipe a se tornar
mais integrada e eficiente para lidar com os usuários. Um espaço
que, como colocado anteriormente, mostra-se necessário na reali-
dade das unidades de saúde. Considerando-se a importância de
se pensar a forma como esses espaços de trocas entre os profis-
sionais têm sido propostos em diferentes UBS, apresentamos o
relato de nossa experiência, com especial foco nos momentos
iniciais de construção desse trabalho.

Como a experiência de intervenção foi delineada


S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 209

A proposta de intervenção aqui discutida surgiu com a


solicitação de que assumíssemos a coordenação do espaço
institucionalizado em uma UBS como “Grupo de Integração” das
equipes de profissionais da ESF. O convite foi feito pela psicóloga
da UBS que vinha desempenhando o papel de coordenadora
deste grupo há alguns anos e estava interessada em promover
uma nova construção do grupo, com um movimento de
co-responsabilização dos participantes. O convite foi aceito e
operacionalizado em forma de estágio curricular ligado ao curso
de Psicologia da UFTM.
A realização dessa atividade foi entendida por nós como
uma excelente possibilidade de aprendizagem, visto que as
estagiárias não tinham, até então, experiência prática na área de
saúde coletiva. No início, refletimos sobre a importância em
realizar visitas na unidade anteriores à realização do grupo, a fim
de conhecermos um pouco a equipe e também começar a
construir um entendimento compartilhado sobre o grupo a partir de
entrevistas iniciais com os profissionais que desejassem
participar. Essas conversas iniciais eram vistas por nós como
fundamentais para o processo, uma vez que preparariam os
participantes para o grupo e possibilitariam esclarecimento das
regras do contrato grupal. Como colocam Rasera e Japur (2007),
essas conversas iniciais, que podem ser chamadas de sessões de
preparação, promovem uma participação mais produtiva dos
participantes, uma vez que tendem a diminuir expectativas
irrealistas, o nível de atrito, ansiedade grupal e a taxa de
abandono dos participantes.
Contudo, escutávamos da equipe a importância de
iniciarmos o trabalho o mais rápido possível e o receio de que as
pessoas não aceitassem ser entrevistadas individualmente antes
de nos conhecerem. Ficamos atentas ao receio de uma das
profissionais de que a demora no início do grupo aumentasse o
desestímulo na participação das pessoas, algo que ela avaliava
como estando acontecendo. Pensamos, desde o início, que essas
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 210

entrevistas seriam fundamentais para que o grupo se organizasse


da forma mais confortável possível para a maioria dos participan-
tes. No entanto, sentimos que diante do que essas narrativas nos
traziam, o melhor a ser feito era começar o grupo naquela semana
e que no primeiro encontro pudéssemos conversar sobre o
contrato grupal.
Desta forma, uma equipe de trabalho com cinco
estagiárias foi composta, com duas na função de coordenadoras e
três na equipe reflexiva. A equipe reflexiva propõe uma escuta
diferenciada sobre o processo de conversa e colabora com
múltiplas compreensões possíveis de realidades co-construídas
(Andersen, 2002). Segundo Rasera e Japur (2007), a equipe
reflexiva não é um método, mas uma maneira de pensar. Trata-se
de uma prática clínica, na qual as pessoas que fazem parte da
equipe reflexiva são chamadas a participar, a fim de criar
condições para que novas descrições e entendimentos das
situações sejam produzidos, utilizando de processos reflexivos.
Explica-se inicialmente aos participantes do grupo como esta
experiência se dá e combina-se que em alguns momentos
ocorrerão pausas, nas quais os membros da equipe reflexiva
falarão e os participantes ficarão na posição de escuta.
Além disso, as pessoas que compõem a equipe reflexiva
buscam identificar aberturas, tentam fazer conexões entre
assuntos aparentemente contraditórios, pensam em transforma-
ções possíveis e suas consequências para o sistema e também
refletem sobre as consequências de partilhar as reflexões que
lhes veem à cabeça. O que se busca quando a equipe reflexiva se
expressa é a multiplicidade de diálogos, não com o intuito de
impor algum sentido específico, mas de construir novas
potencialidades baseadas nas múltiplas possibilidades (Rasera &
Japur, 2007).
Os profissionais das equipes da ESF foram convidados a
participar dos encontros grupais, tendo a adesão de cerca de 15
pessoas por encontro, ao longo de um processo que durou sete
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 211

encontros. A equipe participante do grupo era composta, em sua


maioria, por agentes comunitários de saúde. Contava também
com a presença esporádica de uma profissional de odontologia,
dois profissionais de medicina, alguns membros da residência
multiprofissional da UFTM e uma profissional de enfermagem. A
presença no grupo não foi constante, variando conforme as pos-
sibilidades da equipe.
No primeiro encontro explicamos quem nós éramos e pro-
pusemos que pensássemos sobre o contrato grupal, uma vez que
não foi possível fazer as sessões de preparação, que teriam nos
auxiliado bastante neste primeiro contato. Perguntamos para as
pessoas que estavam presentes o que precisaria existir no grupo
para que cada um ficasse mais à vontade e para que ficássemos
bem juntos, baseando-nos na proposta de “Construção de Contex-
to Conversacional” proposta por Japur, Ruffino e Costa (2011),
que visa à definição conjunta sobre o “para que” se quer estar
junto, “como” se quer estar junto, “o que” se quer fazer junto e
“quem” estará junto.
Os pedidos dos participantes para se sentirem confortá-
veis no grupo e considerarem que a experiência tinha valido a
pena foram: respeito, comunicação, saber ouvir o outro, união,
respeitar opiniões, ter opiniões próprias, aceitar críticas, amizade,
ter lanche durante o grupo, compreensão, pontualidade, compro-
metimento, boa vontade, descrição, prudência, ter orientações, ser
atencioso e ser um grupo descontraído. Percebemos que algumas
pessoas não sabiam o que dizer e seguiam a resposta de quem já
havia se manifestado e também sentimos que eles não davam
detalhes de como o grupo poderia atendê-los. A palavra "respeito"
foi muitas vezes citada, mas não eram feitos pedidos práticos para
que se sentissem confortáveis no grupo.
Ao final deste encontro, a coordenação pediu que os par-
ticipantes falassem uma palavra que resumisse como eles
estavam saindo daquele encontro ou o que tinham pensado sobre
o que foi feito naquele dia. Eles responderam: equipe, mudança,
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 212

novo, diferença, curioso, respeito, expectativa, diferente, interes-


sante, bom, realidade, medo. Percebemos pelas respostas dadas
que havia algo de muito novo e diferente no que estávamos
propondo ou na forma que eles viam o que estávamos propondo.
Foi possível perceber, também, que inicialmente a equipe se
caracterizava pelo que os próprios participantes denominavam “o
medo do desconhecido”. No entanto, mostraram-se também
curiosos a respeito do que seria realizado nos encontros grupais,
visto que apesar de se mostrarem receosos no primeiro momento,
grande parte dos profissionais estiveram presentes no segundo e
terceiro encontros, principalmente os agentes comunitários da
UBS.
Devido a algumas questões burocráticas na instituição
não pudemos estar presentes na semana seguinte, e o encontro
grupo foi realizado sem a nossa coordenação. Neste dia, toda a
equipe se sentiu à vontade para fazer críticas sobre o nosso
primeiro encontro, e a psicóloga da instituição sugeriu que con-
feccionassem uma carta para ser enviada para a equipe de está-
gio. A ideia da carta surgiu como uma saída para nos incluir nesse
diálogo e sistematizar as queixas e os pedidos que surgiram a
partir de uma impressão bastante negativa do primeiro dia do
grupo. Foi importante que, neste momento, a psicóloga estivesse
presente como mediadora do grupo que já existia e de sua nova
coordenação, criando a possibilidade de que os dois lados pudes-
sem ser ouvidos, ainda que não estivessem todos presentes. Foi
esta carta que, a princípio, nos ajudou a entender melhor os pedi-
dos da equipe e repensar o estilo da coordenação.
O conteúdo da carta dizia que eles não entenderam o
porquê de nós estarmos lá e se sentiram perdidos. Afirmava que a
coordenação dificultou os diálogos e chegou com muitas imposi-
ções, dando a impressão de querer sujeitar aquele espaço às
suas vontades. Alguns participantes que não gostaram do modo
como falamos estavam preocupados com aquele espaço deixar
de ser agradável com a nossa coordenação. Também demonstra-
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 213

ram confusão quanto aos nossos objetivos e à finalidade do


grupo, e perguntaram se não faltou um pouco de “freio” da nossa
parte. A carta dizia que nós deveríamos ter conversado melhor
com a psicóloga da instituição, até então coordenadora desse
grupo, e que eles sentiram que os beneficiados seríamos nós,
pela nossa aprendizagem no estágio e não mais eles. A carta
demostrava que estavam com medo de perder o espaço do grupo
e de nós tomarmos esse espaço deles. A impressão que eles
tiveram da equipe reflexiva também foi bastante negativa. Eles
apontaram terem ficado com a sensação de que não podiam
responder ao que a equipe reflexiva falava.
Não foi fácil ler todas essas críticas, especialmente
porque achávamos que estávamos oferecendo uma forma de
conversa exatamente na contramão das impressões que ficaram
para os participantes. Entendemos que negociar “o como” e “para
que” queremos estar juntos é justamente a oportunidade para não
impormos um modo de ser do grupo, mas co-construir o próprio
espaço e seus objetivos com a participação de seus membros. Ou
seja, os efeitos produzidos não foram os que imaginamos produzir
e fomos convidadas a entender os diversos elementos que
poderiam ter levado a esses mal entendidos. Sabíamos que a
forma como interpretássemos a carta faria toda a diferença no
futuro do nosso trabalho na UBS. Assim, delineamos a nossa
resposta baseada em uma perspectiva construcionista, de co-
responsabilização pelo desencontro inicial, e entendemos a carta
como um voto de confiança do grupo de que poderíamos construir
um novo encontro melhor.

Como responder a esse desafio

A perspectiva construcionista social toma os relacio-


namentos como locus da produção de sentidos, sendo que as
descrições sobre o mundo e sobre nós mesmos são tomadas
nessa perspectiva como construções histórico-culturais. Na
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 214

proposta construcionista, linguagem é tomada como uma


atividade compartilhada socialmente e não como representação
da realidade (Gergen, 1997). Nessa perspectiva, os entendimen-
tos e desentendimentos entre as pessoas são compreendidos
como tendo origem nos processos culturais de interação, estando
relacionados à criação do que Rasera e Japur (2001) descrevem
como ontologias relacionais. Estas ontologias estão ligadas a
certos contextos específicos, que não necessariamente se
estendem a outros relacionamentos, o que pode gerar o
desentendimento (Gergen, 1999).
Quando pensamos uma intervenção no campo da atenção
em saúde estamos falando de um campo em constante ressignifi-
cação decorrente do momento histórico e cultural no qual profis-
sionais e comunidade atendida se encontram e pelo
relacionamento estabelecido entre eles (Camargo-Borges & Japur,
2005). Pensar uma prática grupal nesse contexto é estar aberto
aos múltiplos entendimentos sobre o que é grupo, qual sua
utilidade como espaço de atendimento da equipe de profissionais
e qual o papel da Psicologia nessa proposta.
Quando delineamos nossa proposta de conversa inicial
com os profissionais da ESF no estágio aqui apresentado,
partimos da ideia construcionista social da prática grupal como
discursiva e negociada com a implicação e co-responsabilização
dos participantes e coordenadores em seu delineamento. Assim, o
contrato grupal é entendido como oportunidade de delimitar
condições para esta produção de sentido, a partir de uma
negociação entre coordenadores e participantes; tendo o
coordenador como parceiro nestas construções, estabelecendo,
assim, um relacionamento não hierárquico e com todas as descri-
ções do grupo definidas em um processo relacional entre os
participantes (Rasera & Japur, 2001). Dessa forma, as conversas
iniciais levam à construção da realidade grupal e a prática grupal
não precisa ser definida a priori, mas constituída pelas
negociações e demandas de coordenadores e participantes (Ra-
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 215

sera & Japur, 2007). Portanto, nosso convite aos participantes do


grupo da UBS para uma negociação inicial sobre o propósito e
formato do grupo era, para nós, uma oportunidade para se falar
sobre de que forma os participantes sentiam-se confortáveis
nesses encontros, quais atividades valorizavam, quais expecta-
tivas tinham e quais conquistas almejavam com sua participação.
Observamos que em relações constituídas com conflitos e
desacordos, podemos promover uma mudança para padrões mais
construtivos se nos orientarmos por uma perspectiva relacional
(McNamee & Shotter, 2004). Recebemos as críticas como um
apontamento do que construímos com o grupo naquele primeiro
momento, interpretando aquele mal-estar como algo produzido na
nossa relação com a equipe. Em seguida, tentamos abordar a
situação com uma disposição de curiosidade para entender como
havia acontecido e de que forma poderíamos utilizar as críticas
para começar a construir um novo momento com o grupo.
Baseamo-nos em um pensamento construcionista,
compreendendo que a realidade da relação é co-construída, e que
a forma como respondemos e entendemos as críticas que nos
foram feitas era o que iria possibilitar a construção de uma nova
realidade relacional com o grupo. Foi no processo de conversa e
supervisão que pudemos começar a entender que não éramos
culpadas do grupo ter se configurado de forma negativa, mas que
talvez tivéssemos nos precipitado tentando antecipar o que a
equipe da UBS poderia querer de nós.
Fomos à UBS com uma ideia prévia sobre como um bom
diálogo deveria acontecer e esperamos que as nossas boas inten-
ções fossem bem recebidas. Com as críticas da equipe é que
pudemos verificar que existe um elemento de novidade no
diálogo, algo que vai além do que podemos prever e que é
construído no momento da comunicação (McNamee & Shotter,
2004). É justamente este elemento novo e inesperado que torna
cada encontro do grupo algo precioso, e que faz com que
possamos promover uma verdadeira construção da nossa relação
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 216

com eles. Com a possibilidade de pensar a sensibilidade necessá-


ria para o diálogo e de compreender esses elementos que não
poderiam ser ensaiados, voltamos ao grupo de uma forma
completamente diferente daquela com que começamos.
Ao nos prepararmos para responder às críticas que
recebemos fizemos uma reflexão sobre tudo o que ouvimos e da
forma como nos posicionamos na coordenação daquele grupo.
Utilizamos algumas estratégias de McNamee e Shotter (2004),
como parar por um momento e pensar de que outra forma o grupo
poderia acontecer e se havia um jeito diferente de entender os
comentários da equipe. Tivemos que questionar a nossa
concepção do que era o melhor para o grupo e nos abrir para
ouvir que o nosso melhor poderia ser diferente do deles.
Decidimos voltar ao grupo evitando o sentimento de certeza.
Observamos que a certeza poderia inibir a nossa habilidade de
superar aquele desacordo com a equipe, que gostaríamos de
transformar em novas possibilidades dialógicas. Assim, propuse-
mos no segundo encontro uma conversa entre estagiárias e
participantes sobre os incômodos apontados.
Neste segundo momento, tentamos instituir um espaço
democrático de conversa e nos esforçamos em nos posicionar a
partir de um de não saber e de uma disposição questionadora
(Anderson, 2009). Agradecemos a confiança que eles tiveram em
nos fazer críticas e procuramos entender como poderíamos
transformar essas queixas em pedidos. Começamos a conversar
sobre como seria mais confortável para o grupo funcionar e de
que forma cada um entendia que poderíamos cuidar daquele
espaço.
Com relação ao incômodo causado pela postura das
estagiárias e o uso da equipe reflexiva, entendemos que essa
postura foi inadequadamente incomum naquele contexto
conversacional (Andersen, 2002), precisando que recuperás-
semos com os participantes seu modo confortável de funcionar.
Foi possível entender, também, que muitos profissionais não
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 217

haviam participado da decisão de inclusão das estagiárias nesse


trabalho, o que se considerou importante de ser renegociado.
Esclarecemos, então, que a nossa ida para coordenar o grupo
veio com um convite da psicóloga da instituição, e a possibilidade
de falar sobre isso ajudou a mudar a configuração inicial do grupo.
Deixamos de ocupar um papel de estar invadindo o espaço deles
para começar a fazer parte de uma forma alternativa para o grupo
se reorganizar e reconstruir de forma positiva.
Conversamos sobre o nosso sentimento perante a “carta”
e colocamos que o que despertamos neles estava em desacordo
com a nossa proposta de cuidado. Observamos que a possibilida-
de deles compartilharem coisas difíceis de serem ditas foi
importante para nós e condizente com o nosso modo de trabalhar,
no sentido de estarmos ali para ouvir e para constituir um
ambiente de transparência. Retomamos a pergunta do que
precisamos para estarmos juntos, enfatizando a necessidade de
não darmos respostas abstratas, como no primeiro encontro.
Colocamos que o que é confortável para eles não havia ficado
claro, e que gostaríamos de ren egociar esses elementos.
Afirmamos que a nossa intenção para o segundo encontro era
recomeçar a configuração do nosso grupo, usando recursos que
fizessem sentido para todos nós. Tínhamos intenção de implicá-
los no processo e de criar um clima de co-responsabilização pelos
resultados do grupo.
Neste segundo momento, surgiram falas mais concretas
sobre a forma como o grupo gostaria de se organizar: não ter que
estar no grupo obrigatoriamente; não criticar as falas uns dos
outros, para que não houvesse receio na hora de se expressar;
sentir-se à vontade de forma unida, sem críticas ofensivas; evitar
risadas maldosas; não fazer nada apenas para agradar, sendo
abertos para falar com sinceridade sobre aquilo de que não
gostam; serem representativos no caso de exemplos, falando de
um lugar de pessoalidade; ter cuidado com as conversas
paralelas, por educação; construir um grupo alegre e
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 218

descontraído, que possa proporcionar um momento de qualidade


de vida; não exigir uma estrutura severa, com muitas regras; e
tentar a equipe reflexiva mais uma vez.
Ao ouvirmos os novos pedidos tivemos a oportunidade de
nos organizar melhor para atender às necessidades apresenta-
das. Passamos a entender que a ideia de cuidado do grupo não
era compatível com muitas regras e com uma estrutura
estabelecida. Passamos a pensar na configuração do grupo
encontro a encontro, tentando sempre promover uma co-
construção dos acontecimentos de cada semana. Ouvimos
também o pedido por um grupo descontraído, entendendo que
não era preciso evitar assuntos de maior tensão, mas trabalhá-los
com recursos interessantes, como filmes, atividades e textos.
O grupo demonstrou interesse por ter a liberdade de falar
sem sofrer críticas e julgamentos e conversamos sobre como
poderíamos ouvir uns aos outros para promover este respeito.
Ficamos satisfeitas pela oportunidade de renegociar a utilização
da equipe reflexiva e entendemos que, agora que os contratos
haviam sido melhor conversados, a possibilidade de ter bons re-
sultados com este formato do grupo havia aumentado. Por fim,
procuramos ser consistentes com o pedido de sinceridade e
transparência, e fomos abertas ao dizer como nos sentimos ao
receber as críticas iniciais, agradecendo a confiança de termos
uma nova oportunidade de começar o grupo.
Entendemos que o desencontro do começo, ainda que
tenha gerado desconforto e ansiedade nas estagiárias, foi um
momento valioso para o nosso trabalho com o grupo. As críticas
nos permitiram rever a forma como nos apresentamos e nos
ajudaram a pensar em uma resposta alternativa que ajudasse a
criar uma atmosfera de colaboração e diálogo. O que fizemos
neste segundo encontro foi nos engajar em uma conversa sobre o
futuro do grupo, delimitando as nossas intenções de que ele fosse
construído conjuntamente. Assim, mudamos o nosso foco das
nossas próprias visões e certezas para os recursos que podería-
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 219

mos usar para promover e incentivar o diálogo (McNamee & Shot-


ter, 2004).

Considerações Finais

Entrar em contato com a opinião do outro sem dúvida é


um desafio, e este é ainda maior quando a realidade ou a visão do
outro difere da nossa construção ideativa de como o grupo é ou
deveria ser. E foi perante essa fronteira entre a visão do outro e o
imaginário que a equipe de trabalho desse estágio havia construí-
do que se manifestou o desafio de coordenar este grupo de
profissionais. Para a equipe que aceitou o convite de coordenação
desse grupo, a possibilidade de construção conjunta do contexto
conversacional seria a forma de promover um grupo mais
compartilhado e menos impositivo no início de sua atuação.
Porém, a ideia levada ao grupo de algo construído em conjunto –
em que os pareceres e possibilidades viessem de todos – não foi
bem recebida, despertando nos organizadores a necessidade de
promover novas formas de conversa e de estruturação das
atividades que seriam propostas ao grupo.
Para que esse grupo se sustentasse em um princípio
estrutural mais homogêneo, entre as expectativas da coordenação
e dos participantes do grupo, foi necessário trazer um diálogo
aberto e, ao mesmo tempo, cuidadoso, em que houvesse uma
aproximação do que era almejado pelos participantes. Estes
buscavam um grupo descontraído em que houvesse momentos de
diversão, ao mesmo tempo em que surgia a necessidade de
promover o diálogo referente a temas sérios e realistas que
entrassem em contato tanto com as vivências dos participantes
quanto daqueles que usufruíam de suas práticas profissionais.
Como define a perspectiva construcionista social, é
apenas na suplementação do outro em conversa que se vai
delineando a possibilidade de diálogo. Esse diálogo possibilitou
fomentar a construção de um grupo sustentado em reflexões e
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 220

vivências apresentadas nos encontros por meio de diversas


atividades, como dinâmicas, filmes, debates que buscaram uma
interação que possibilitasse uma identidade enquanto grupo,
incluindo neste os seus coordenadores.
Perante a nova dinâmica que se construiu, foram surgindo
novos desafios. Um deles se tratava de os participantes conside-
rarem os coordenadores como sendo igualmente integrantes do
grupo. Este ponto trouxe à tona diversas conversas sobre isso,
além de encorajar os coordenadores a participarem do dia-a-dia
dos profissionais, crendo que, por meio disso, o grupo não se
limitava a um dia e horário específicos, o que ressaltava a impor-
tância em compreender e perceber a prática do outro como sendo
relevante para a união do grupo, ao mesmo tempo em que os
participantes poderiam perceber os coordenadores como não
sendo totalmente alheios à realidade apresentada pela UBS.
Outro desafio referia-se aos participantes ansiarem
receber atividades e propostas de atuação prontas, ou seja, já
planificadas, em que não fossem necessários esforços para serem
concretizadas, além daqueles requeridos no próprio espaço do
grupo. Essa característica do grupo precisou ser igualmente obje-
tivada pelos coordenadores no planejamento das atividades, visto
que se tornou uma espécie condição para o bom funcionamento
do grupo. Essa estrutura rígida de atuação aparenta ser uma
reprodução da vivência da maioria dos profissionais na unidade, o
que suplementa ainda mais essa necessidade ou exigência do
grupo.
Contribui com essa suplementação a consideração das
tradições das práticas em saúde pública que, muitas vezes, não
permitem o ativo envolvimento dos profissionais nas decisões
sobre quais espaços participam e sobre o porquê dessas partici-
pações, com decisões unilaterais e hierarquizadas. A partir de
nossa experiência de construção desse espaço grupal com a
equipe da ESF, entendemos que o incentivo a esse envolvimento
deve ser buscado sem se desconsiderar as práticas sociais insti-
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 221

tucionalizadas, cuidando para que a diferença apresentada possa


até ser causadora de incômodos, mas que seja também uma
oportunidade para a transformação e questionamento do status
quo.

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S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 225

Grupos com agentes comunitários de


saúde de Uberaba (MG):
Dando voz aos cuidadores
Sabrina Martins Barroso
Helena de Ornelas Sivieri-Pereira
Izabella Lenza Crema
Juliana D’André Montandon
Mariana Tolêdo Fuzaro
Nathalia Beatriz Fontes Silva
Renata Lemos Crisóstomo
Wanderlei Abadio de Oliveira

As mudanças sociais e políticas ocorridas no Brasil nas


últimas décadas contribuíram para que se repensassem o
conceito de saúde e as práticas em saúde pública, incluindo a
aproximação dos profissionais que atuam nessa área com a
comunidade atendida. Assim, a saúde não seria mais compreen-
dida apenas como ausência de doenças ou enfermidades, mas
sim de uma forma integral, incluindo ausência de sofrimento físico,
mental, o direito ao bem-estar social e à qualidade de vida (Bock,
2002; Mattos, 2001; Ministério da Saúde, 2000; Spink, 2007).
Seguindo o referencial dessa nova concepção de saúde,
vista como coletivamente construída e um direito de todos,
adotou-se a descentralização dos atendimentos médicos e
odontológicos como parte da nova política pública para saúde
(Sisson, 2007). Em 1994, o Ministério da Saúde criou o Programa
de Saúde da Família (PSF) como forma de oferecer à população
um ponto de acesso inicial e regionalizado ao atendimento, conso-
lidando as propostas de atuação do Sistema Único de Saúde
(SUS). Os princípios básicos desse programa, posteriormente
denominado Estratégia de Saúde da Família (ESF), são a atuação
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 226

em caráter comunitário, servindo como porta de entrada para


atendimentos mais complexos e especializados, atuação interpro-
fissional, territorialização e adscrição da clientela atendida, o que
contribui para o estabelecimento da corresponsabilização entre
equipe de saúde e comunidade (Feliciano, Kovacs, & Sarinho,
2005; Kluthcovsky, Takayanagui, Santos, & Kluthcovsky, 2007;
Ministério da Saúde, 2000).
Segundo Bornstein e Stotz (2008), os trabalhadores que
atuam na Estratégia de Saúde da Família (ESF) são profissionais
da área da saúde com diferentes formações, havendo sempre a
presença de um médico generalista, um enfermeiro, um odontólo-
go e de agentes comunitários de saúde (ACS). A essa equipe
mínima prevista em lei podem ser acrescidos assistentes sociais,
psicólogos, fisioterapeutas e outros profissionais, de acordo com
as necessidades apresentadas pela comunidade em que a equipe
atua, a disponibilidade de profissionais na região e acordos com
as prefeituras municipais (Campos & Belisario, 2001; Gil, 2006;
Ministério da Saúde, 2000; Starfild, 2002; Telles & Pimenta, 2009).
Na ESF, o atendimento na atenção primária à saúde
passou a ser mediado pelos ACS, profissionais que estão na
“ponta” do sistema de saúde e estão mais próximos às famílias,
conhecem as realidades locais e são responsáveis pelas ações de
educação em saúde e pelo mapeamento dos seus territórios de
atuação (Levy, Matos, & Tomita, 2004). Os agentes comunitários
são moradores da própria região atendida pelo serviço de saúde
em que atuam. Essas pessoas recebem treinamento e passam a
trabalhar informando à comunidade sobre os tipos de atendimento
disponíveis nas Unidades Básicas de Saúde, mediando a relação
entre a comunidade e os profissionais, marcando consultas, verifi-
cando vacinas, informando sobre grupos de acompanhamento e
sensibilizando os profissionais da ESF sobre a necessidade de
desenvolver programas para demandas específicas da comunida-
de (Borges & Cardoso, 2005; Gomes, Cotta, Cherchiglia, Mitre, &
Batista, 2009).
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 227

No Brasil, a tarefa dos ACS como mediadores entre a


comunidade e os serviços de saúde teve início em 1987, no
Ceará, sendo posteriormente incorporada às práticas do SUS e
suas atribuições foram regulamentadas pelo Governo Federal no
ano de 2000. Seguindo o princípio da territorialização proposto
pelo SUS, cada equipe da ESF torna-se responsável por uma
área em que residem de 2.500 a 4.500 pessoas (ou famílias) e o
acompanhamento domiciliar é feito pelos agentes comunitários de
saúde. Pela definição do Ministério da Saúde, cada ACS acompa-
nha entre 450 e 750 famílias por microárea (Jardim & Lancman,
2009; Kluthcovsky et al., 2007; Levy et al., 2004).
A atuação dos ACS visa promover uma maior identifica-
ção da comunidade com o serviço de saúde, já que os agentes
são escolhidos entre membros da própria comunidade (Kluthco-
vsky et al., 2007). Residir na comunidade em que deve atuar é
uma das características exigidas para que uma pessoa se torne
um agente comunitário de saúde. Essa medida visa auxiliar na
identificação desse profissional com as pessoas que precisa
acompanhar, facilitando o trabalho de tradutor das demandas
comunitárias previsto para os ACS, uma vez que, ao residir na
mesma região, os agentes comungariam de referenciais culturais
e vivenciariam os mesmos problemas que as pessoas que eles
atendem (Kluthcovsky et al., 2007; Pupin & Cardoso, 2008; Silva &
Dalmaso, 2002).
De acordo com o Ministério da Saúde, as atribuições do
ACS são estruturantes, quando se considera sua atuação como
educadores em saúde e promotores de mudanças. Mas essa
atuação também remete à condição de anteparo da equipe de
saúde, informando-a sobre a comunidade, suas necessidades e
disponibilidades (Lunardelo, 2004; Ministério da Saúde, 2006;
Nunes, Trad, Almeida, Homem, & Melo, 2002; Silva & Dalmaso,
2002; Tomaz, 2002).
Desde seu surgimento, o papel de mediar o acesso aos
serviços públicos de saúde para a comunidade mostrou-se impor-
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 228

tante. Com o tempo, os ACS passaram a ocupar uma posição


central para a efetivação da proposta de acesso universal à saúde
do Sistema único de Saúde e no funcionamento da ESF (Silva,
1997; Spiri, 2006). De acordo com Nunes et al. (2002), os ACS
atuam na organização da comunidade, na mediação do contato
com o sistema de saúde e na prevenção de problemas ou na pre-
venção do agravamento dos problemas de saúde, especialmente
nos chamados grupos de risco. O lugar de mediador inerente ao
trabalho dos ACS faz com que sua atuação seja tanto política
quanto técnica, levando-os a ocupar uma posição chave para o
sucesso do atendimento comunitário de saúde.
As atividades desenvolvidas pelos ACS os colocam em
uma posição fundamental na política nacional da atenção básica,
pois são protagonistas na identificação dos principais problemas
que afetam a saúde da comunidade. O protagonismo na atenção
primária exercido por esses profissionais também os coloca diante
de situações e contextos para os quais não receberam formação
ou ainda não estão preparados (Campos & Belisário, 2001).
De acordo com Hirchzon e Ditolvo (2004), no âmbito da
assistência, o trabalhador produz o cuidado dentro de uma experi-
ência de relação, vivência ainda mais presente no caso dos ACS.
Mas a relação estabelecida é permeada por regras institucionais,
aspectos da história pessoal e profissional dos trabalhadores e da
própria instituição de saúde. Além disso, Kluthcovsky et al. (2007)
chamam a atenção para a necessidade de considerarmos outros
aspectos da vida dos agentes, seus dilemas, dificuldades e
realizações, pois tais fatores podem interferir na natureza peculiar
de seu trabalho e em sua qualidade de vida.
Lunardelo (2004) e Nunes et al. (2002) pontuam que o
contato com a população gera intenso envolvimento pessoal, com
possibilidade de desgaste emocional para o agente. Faz parte das
funções do ACS entrar nas casas dos integrantes da comunidade,
ouvir suas histórias e queixas, questionar sobre questões de
saúde e higiene. Essas tarefas geram uma relação de maior
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 229

intimidade entre os agentes e a comunidade. Se por um lado essa


aproximação foi planejada e desejada pelos criadores da ESF, por
outra vertente acarreta algumas complicações para a vida dos
agentes. Eles precisam lidar com uma variedade de contextos,
com a necessidade de adequar sua forma de abordar e trabalhar
as questões de saúde, o que os conduz a uma postura que se
alterna entre assistencialismo e promoção de saúde. Além disso,
os leva a ter que ressignificar seu papel como agente de saúde e
seu local de inclusão tanto nas equipes de saúde quanto na co-
munidade (Nunes et al., 2002).
Outro ponto de diferenciação do trabalho dos ACS refere-
se a sua relação com os demais integrantes da equipe da ESF.
Por não haver formação técnica específica para a profissão de
ACS, a remuneração destes profissionais difere dos demais
envolvidos na equipe de saúde. Nunes et al. (2002) apontam que
a inserção do agente comunitário de saúde na equipe da ESF
representou um aumento significativo de trabalho e responsa-
bilidade para os ACS, sem que isso tenha sido acompanhado por
um aumento salarial correspondente. Os profissionais das equipes
de saúde melhor remunerados são aqueles que detêm formação
técnica (médicos, enfermeiros, entre outros), o que gera nos
agentes uma associação entre a atuação técnica e o retorno
financeiro, levando-os a desqualificar sua atuação política na
comunidade, sua própria profissão e a almejar poder desempe-
nhar práticas pautadas no modelo biomédico de cura de
enfermidades (Gomes et al., 2009; Nunes et al., 2002).
Segundo Telles e Pimenta (2009), a formação dos
agentes pode interferir não apenas em seu trabalho, mas também
em seu relacionamento com os demais profissionais.
O treinamento que recebem para se tornar ACS gera nesses
profissionais um sentimento de orgulho e a percepção que tal
saber é diferente dos conhecimentos oriundos dos conhecimentos
do senso comum que possuíam antes. Segundo Nunes et al.
(2002), os agentes reportam um aumento na percepção de sua
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 230

própria resolutividade e em seu prestígio social ao serem incorpo-


rados à estratégia saúde da família, pelo estabelecimento de um
contato privilegiado com profissionais da área da saúde. Contudo,
o estudo de Telles e Pimenta (2009) mostrou que o mesmo trei-
namento que aumenta a percepção de qualificação dos ACS gera
ansiedade neles, pois os ACS comparam seu conhecimento com
o dos demais integrantes da equipe da ESF e sentem-se
despreparados, ou até mesmo insatisfeitos com a educação que
receberam.
Conhecendo esses aspectos da realidade dos ACS, o
presente capítulo teve por objetivo construir juntamente com eles
sentidos para suas experiências, identificando suas potencialida-
des, dificuldades e a relação que estabelecem entre as atividades
que desempenham e seu estado de saúde (física e emocional).

Percurso Metodológico

O presente estudo relata o desenvolvimento de um projeto


de extensão/pesquisa da Universidade Federal do Triângulo
Mineiro (UFTM) junto a três Unidades Básicas de Saúde de
Uberaba/MG, pertencentes ao Distrito Sanitário I desse município.
Adotou-se como metodologia a intervenção por grupos de
educação em saúde e saúde do trabalhador, focando na
construção da identidade profissional, avaliação emocional e
capacitação. O trabalho foi dividido em duas fases, sendo a
primeira a avaliação do perfil e de aspectos emocionais dos ACS
e o segundo a realização dos grupos educativos e aconteceram
no segundo semestre de 2011. Todos os grupos foram
coordenados por acadêmicas dos cursos de Psicologia e Terapia
Ocupacional e foram supervisionadas por docentes e por um
psicólogo ligados à UFTM. As acadêmicas trabalharam em
duplas, sendo cada dupla acompanhada por um profissional de
Psicologia (professor ou psicólogo). Participaram das atividades
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 231

35 agentes comunitários de saúde (ACS), entre os 60 que traba-


lhavam nas três Unidades Básicas de Saúde (UBS) participantes.
Ao longo do projeto foram realizados oito encontros com
os ACS em cada UBS, com média de uma hora e meia de
duração cada. No primeiro encontro em cada UBS apresentou-se
a proposta de trabalho e realizou-se um levantamento das
expectativas dos ACS sobre projetos voltados para a saúde do
trabalhador. Na primeira etapa, de levantamento do perfil dos
ACS, realizada no segundo e terceiro encontros com os ACS,
foram aplicados quatro instrumentos: (a) Critério Brasil para
definição de nível socioeconômico; (b) WHOQOL-breve, para
avaliação da qualidade de vida; (c) Inventário de Sintomas de
Stress para Adultos de Lipp (ISSL) e (d) Inventário Síndrome de
Burnout de Maslach (MBI). Os resultados observados por meio
desses instrumentos encontram-se discutidos em outro estudo. Na
presente proposta, esses resultados serão apresentados breve-
mente e o foco será mantido nas atividades em grupo desenvolvi-
das durante a segunda etapa do trabalho.
Durante a segunda etapa foram realizados cinco encon-
tros com os ACS em cada UBS, também com média de uma hora
e meia de duração cada. Os encontros foram estruturados a partir
de temas propostos pela equipe condutora do projeto, definidos
previamente ou trazidos como foco de interesse pelos ACS ao
longo dos encontros. Todo o trabalho de intervenção adotou um
referencial de construção coletiva de cada passo, visando facilitar
a emergência dos conteúdos relacionados ao mundo do trabalho,
relacionamento interpessoal, saúde mental e saúde do trabalha-
dor. Destaca-se que os procedimentos propostos se adequaram à
intervenção, enfocando a saúde dos profissionais que se dedicam,
na atenção básica, ao cuidado domiciliar nas comunidades.
A opção por grupos de educação em saúde baseou-se
na perspectiva dos grupos operativos, definidos sumariamente
como um conjunto de pessoas com características que as interli-
gam (como o tempo e espaço, por exemplo) e que se propõe à
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 232

realização de uma tarefa cuja tônica pode ser terapêutica ou de


aprendizagem (Santeiro, Souza, Santeiro, & Zanini, 2012;
Zimerman, 2008; Pichon-Rivière, 1998). Os grupos realizados com
esta concepção operativa pretenderam auxiliar os ACS a incluírem
em seu cotidiano o debate sobre questões de saúde que influ-
enciam no processo saúde-doença, sobre o trabalhador como
cuidador/que necessita de cuidado, sobre situações estáticas e/ou
estereotipadas que possam ser transformadas ou flexibilizadas
nas equipes, nas práticas profissionais e nas relações inter-
equipes.
As informações e discussões realizadas foram tanto
fonte de dados quanto parte do processo interventivo. Foram
valorizadas ações que problematizaram as situações de trabalho
dos ACS e a necessidade de ampliar o alcance das iniciativas de
promoção em saúde e controle de riscos funcionais. As discus-
sões mostraram-se momentos fecundos e permitiram a formação
de processos de aprendizagem capazes de gerar mudanças e
transformações na realidade dos profissionais, atingindo de forma
indireta os usuários assistidos na atenção básica por estes profis-
sionais. Todas as fases do trabalho foram precedidas por
aprovação do projeto em Comitê de Ética em Pesquisa da Univer-
sidade Federal do Triângulo Mineiro (CEP 2090/2011).

Desenvolvimento dos encontros

Ao analisar a composição do grupo de ACS, observou-se


que a maioria dos participantes era do sexo feminino (85%) e
pertencia à classe socioeconômica “B”. Segundo o Critério Brasil,
referente ao ano de 2011, essa classificação equivale a dizer que
os ACS apresentavam renda familiar entre R$ 2.327,00 e
4.588,00. Os resultados sobre os aspectos emocionais possibilita-
ram verificar que a maioria dos ACS percebiam sua qualidade de
vida como boa e apresentavam um bom nível de bem-estar subje-
tivo. Apesar desses achados positivos, observou-se que 47% dos
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 233

ACS possuíam sintomas da síndrome de Burnout e que 42,4%


apresentavam estresse na fase de resistência, com sintomas
psicológicos predominantemente.
O estresse se divide em quatro fases: alerta, resistência,
quase-exaustão e exaustão (Lipp, 2000). Na primeira fase, de
alerta, o organismo se prepara para reação de luta ou fuga, que é
essencial para a preservação da vida. Na fase de resistência, o
organismo tenta uma adaptação devido a sua tendência para
buscar o equilíbrio interno e aparecem sensações de desgaste e
cansaço devidas a essa tentativa de adaptação. A próxima fase,
de quase-exaustão, caracterizada por um enfraquecimento da
pessoa que não mais consegue adaptar-se ou resistir ao estres-
sor. Na última fase, exaustão, aparecem doenças potencialmente
graves e a pessoa não consegue funcionar adequadamente, nem
se concentrar e trabalhar como costumava fazer. Assim, por meio
dos instrumentos utilizados, observamos que os ACS com quem
estávamos trabalhando estavam em seu limite de resistência,
caminhando para o adoecimento, se nenhuma medida fosse ado-
tada.
A análise da situação de estresse e burnout evidenciada
pela aplicação dos instrumentos embasou a escolha de dinâmicas
e das temáticas de discussão adotadas durante os grupos. Em
alguns desses encontros os ACS direcionavam as atividades pro-
pondo temas e esclarecendo dúvidas trazidas pela população que
atendiam, mas que não conseguiam responder sozinhos. Foram
realizadas cerca de dez dinâmicas, divididas ao longo dos
encontros e na finalização houve uma confraternização, na qual
foram retomados todos os pontos trabalhados e a troca de
feedback entre ACS e equipe de extensão/pesquisa sobre o
tempo passado juntos. Para melhor compreensão do trabalho
realizado, sintetizamos as atividades desenvolvidas em cada UBS,
focando nos temas trabalhados e na forma como os abordamos
nessa população. Os nomes das UBS foram omitidos, para garan-
tir o anonimato dos participantes.
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 234

UBS A

O primeiro encontro foi realizado pelas alunas e uma das


professoras responsáveis pelo grupo. Pediu-se aos ACS que as-
sinassem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e que
respondessem aos instrumentos para confecção do perfil e
checagem da saúde emocional dos profissionais. Nesse dia o
encontro foi realizado com oito ACS e depois da aplicação dos
instrumentos houve uma conversa sobre o tempo de trabalho e as
dificuldades presentes.
A partir do segundo encontro, todo o processo foi condu-
zido pelas estagiárias. No segundo encontro compareceram 11
participantes. Buscou-se conhecer como os integrantes do grupo
se tornaram ACS, o que esperavam dessa profissão e com o auxí-
lio de um mapa, os ACS marcaram suas áreas de atuação. Cada
ACS indicou as facilidades e dificuldades de sua atuação e as
interferências do trabalho percebidas no meio familiar. Todos os
ACS pontuaram a falta de resolutividade como a principal dificul-
dade de seu trabalho e que deixavam de fazer algumas coisas na
comunidade fora do horário de trabalho, porque era difícil separar
trabalho e lazer.
No terceiro encontro foi feita a devolutiva do resultado dos
testes para os ACS e seguiu-se uma discussão sobre o impacto
desses resultados na saúde e na profissão. Em seguida, a
discussão voltou-se para dificuldades de relacionamento dentro da
equipe e com os demais profissionais da Unidade Básica de Saú-
de. Os ACS também trouxeram para a conversa medos referentes
à sua segurança, por trabalharem em áreas marcadas pela venda
de drogas e com elevado índice de assaltos. Para pontuar outro
aspecto, pediu-se aos ACS que compartilhassem um momento
em que se sentiram satisfeitos e perceberam a relevância do tra-
balho que desenvolvem. Esse tema gerou muitas histórias entre
os dez ACS que participaram do encontro.
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 235

No encontro seguinte, a equipe do projeto levou três


casos fictícios, baseados em atividades cotidianas, para que os
dez ACS presentes discutissem e propusessem soluções para as
situações-problema apresentadas. A primeira situação apresenta-
va um membro de uma casa atendida pelos ACS que apresentava
comportamentos agressivos. O segundo caso representava um
possível abuso sexual envolvendo membros da comunidade e o
terceiro dizia sobre uma moradora de uma área não atendida
pelos ACS que exigia ser atendida e terminava sendo mal-
educada e desagradável com os agentes. O objetivo desta
atividade era trabalhar a tomada de decisões e os limites da
profissão, mas o principal aspecto trabalhado foi o relato dos ACS
de que se sentiram humilhados, desprotegidos e invadidos pela
profissão em diversas ocasiões.
No quinto encontro foi organizado um jogo de perguntas
ou tarefas, entre elas: “Conte uma história boa de sua vida”, “Fale
uma coisa que te faz bem”, “Fale uma qualidade sua”, “Sente que
algo está em excesso, o quê?”, “Conte algo que te incomoda (no
trabalho/vida pessoal)”, “Conte uma atividade que sente falta nos
dias de hoje”, “Se seu chefe está implicando com você, o que
você faz?”. Todos os integrantes foram bastante participativos,
mas o discurso repetiu-se ao falar sobre o trabalho, mostrando
que a má remuneração, o excesso de trabalho e as fofocas entre
os ACS eram os assuntos mais difíceis. Nesse encontro, a pedido
dos ACS, a equipe do projeto preparou e discutiu duas patologias
com que eles se deparavam na comunidade, mas que não conhe-
ciam bem: Depressão e Mal de Alzheimer.
Nessa UBS o sexto encontro foi o último e realizou-se a
dinâmica do “presente”. A equipe preparou um texto contendo
várias características e os ACS escolhiam para quem passar os
presentes de acordo com as características descritas. No final do
encontro o presente foi aberto e os chocolates foram divididos
entre todos. Encerrada essa dinâmica, pediu-se a todos os ACS
que externalizassem sua opinião sobre o trabalho realizado e
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 236

sugerissem alterações para melhorá-lo. A maioria dos presentes


relatou ter gostado da oportunidade de compartilhar seus medos e
ter visto mais possibilidades de resolutividade com os encontros.

UBS B

Nessa UBS o primeiro encontro também foi realizado


pelas alunas com o auxílio de uma professora e foram aplicados
os instrumentos já apresentados. Estavam presentes nove ACS e
durante o encontro eles expuseram seu desconforto com a profis-
são. Os ACS relataram sentirem-se usados e não receber nada
em troca do trabalho que desenvolvem, nem o reconhecimento da
comunidade.
No encontro seguinte compareceram 13 pessoas.
Aplicou-se os instrumentos de checagem para os novos integran-
tes e retomou-se a discussão sobre o sentimento de menos valia
dos ACS, buscando ressignificar seu trabalho e a forma como
poderiam ser reconhecidos. No terceiro encontro realizou-se a
dinâmica de encontrar soluções para situações cotidianas
propostas pela equipe do projeto. Apesar do grupo contar com
apenas cinco pessoas surgiu uma discussão rica, envolvendo
vivências de humilhação por parte de usuários, mas também do
sentimento de conquista ao conseguir que moradores considera-
dos “fechados” e “difíceis” abrissem as portas de suas casas aos
ACS e buscarem os serviços de saúde. Nesse encontro foi feita a
devolutiva dos resultados dos testes aplicados.
Ao longo do quarto encontro realizou-se uma dinâmica
sobre comunicação (dinâmica dos rótulos), contando com a parti-
cipação de 11 ACS. Nessa dinâmica a equipe do projeto atribuiu
papéis solicitando um posicionamento (por exemplo: defenda seu
ponto de vista, discorde de tudo, concorde com tudo). Para melhor
encaminhamento, foi proposto que esses papéis fossem executa-
dos ao longo de uma discussão sobre o sistema de saúde pública.
Observou-se que os ACS não conseguiam manter-se nos respec-
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 237

tivos papéis. Após esse momento discutiu-se sobre a importância


da comunicação, das dificuldades de entender e se fazer entender
e sobre o impacto negativo sobre um grupo de trabalho. A discus-
são evoluiu para formas alternativas de conversar e transmitir
pedidos e ordens e sobre o impacto de morar e trabalhar na mes-
ma região. Sobre este assunto, o discurso dos ACS foi confuso,
pois ao mesmo tempo em que diziam que compartilhar esses
espaços não atrapalhava em nada, relatavam histórias em que a
profissão e a sua vida pessoal estavam fundidas de forma negati-
va.
No quinto encontro a equipe decidiu retomar o assunto da
comunicação e da mescla entre vida pessoal e profissional por
meio de uma dinâmica (Bandeiras). Nessa dinâmica algumas per-
guntas (por exemplo: Qual o seu maior sucesso individual? O que
gostaria de mudar em você? Em que atividade você se considera
muito bom? Quais as dificuldades ou facilidades para se trabalhar
em grupo?) são feitas aos participantes, mas esses só podem
responder por meio de desenhos, símbolos ou mímica. Desse
encontro participaram 12 ACS. Depois de algumas rodadas de
perguntas e respostas cada participante comentou sobre a dificul-
dade de se expressar sem palavras, seguindo um tom bastante
descontraído. Ao final desse encontro pediu-se aos ACS que
indicassem assuntos que eles gostariam que fossem abordados.
Foram elencados: usuários resistentes ao tratamento e cuidadores
que adoecem. No encontro seguinte a equipe levou o material
preparado para abordar os temas escolhidos pelos ACS, mas
como apenas dois ACS compareceram, optou-se por mudar o
tema. Realizou-se uma atividade com papel amassado. O papel
representava a situação atual e as opções pensadas para ele,
inicialmente jogá-lo fora, depois fazer flores, anotar recados, entre
outros, representaram uma metáfora para as possibilidades de
alteração das situações indesejáveis.
Seguindo com o planejamento, no último encontro reali-
zou-se a dinâmica do “presente”. Os ACS agradeceram o trabalho
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 238

e justificaram suas ausências pela mudança no calendário de


reuniões da equipe. Cabe destacar que havia o planejamento de
oito encontros para essa UBS, mas três não foram realizados por
não haver ACS no local e horários combinados.

UBS C

O primeiro encontro foi realizado por duas alunas, com o


auxílio do psicólogo que colaborava com o projeto. Neste
encontro, os sete ACS presentes responderam aos instrumentos e
depois houve uma conversa sobre as características do trabalho e
as principais insatisfações dos profissionais. Os ACS relataram
que seu trabalho é dificultado pelas condições que vivenciam, as
longas distâncias que percorrem diariamente e o número
insuficiente de profissionais para a regional. O segundo encontro
contou com a participação de nove ACS na dinâmica das Bandei-
ras. Por meio dessa técnica foi possível conhecer algumas dificul-
dades, conflitos e também vários pontos positivos da rotina dos
ACS.
O terceiro encontro serviu para a discussão dos casos
cotidianos levados pela equipe do projeto e contou com a
presença de sete ACS. Foi proposto que os agentes se
posicionassem sobre como agiriam diante de cada situação e
outras vivências cotidianas foram discutidas. A discussão dos
casos proporcionou um espaço de diálogo, informações sobre a
rotina dos agentes foram compartilhadas, assim como seus me-
dos, inseguranças e satisfações. Essa conversa mostrou como os
ACS se ressentem da má qualidade do treinamento profissional
que recebem (quando recebem). Os ACS relataram que recebe-
ram apenas uma semana de treinamento, embora a legislação
preveja um mês de capacitação e que muitos não receberam se-
quer esse treinamento precário.
No encontro seguinte estiveram presentes quatro ACS. Os
outros agentes estiveram com a equipe no início do horário do
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 239

trabalho e justificaram que não participariam devido a uma reunião


de fechamento de mês. Apesar do reduzido número de participan-
tes, conduziu-se um jogo de perguntas (por exemplo: Quais situa-
ções te geram dúvidas no seu dia a dia?, Se não fosse agente
comunitário de saúde, gostaria de atuar em qual profissão?, Como
você definiria seu trabalho em uma palavra?). Os ACS participa-
ram bem da dinâmica, mostrando-se bastante interessados.
O quinto encontro contou novamente com apenas quatro
ACS. Foram realizadas duas dinâmicas, a primeira denominada "A
vida é uma novidade vibrante!", na qual se pedia a cada partici-
pante um desenho livre com uma cor de caneta a sua escolha e
posteriormente trocasse seus desenhos com a pessoa que estava
a sua direita, completando o novo desenho com algo importante
para si. Essa troca persistia até que todos os desenhos tivessem
passado por todos os ACS. A dinâmica proporcionou um momento
de descontração e diálogo. Os ACS comentaram que os desenhos
serviram para compartilhar ideias e sonhos, conhecerem melhor o
que pensam os colegas e trabalhar formas de auxiliar um ao ou-
tro.
Os desenhos produzidos apresentaram ideias sobre a
necessidade de melhorias no sistema de saúde e educação,
ausência de um líder competente na UBS, representaram o grupo
que estávamos conduzindo, representaram a motivação e o
estresse do trabalho, entre outros temas mais pessoais. Ao final
todos os desenhos estavam transformados pela colaboração dos
colegas e foram para o mural dos ACS em sua sala de trabalho.
Além dessa atividade, realizou-se a dinâmica "O feitiço virou
contra o feiticeiro", em que o grupo foi dividido em duplas e cada
participante escolheu algo para seu parceiro fazer. Assim que
todos escolheram, revelou-se o nome da dinâmica e pediu-se a
cada um que cumprisse a tarefa que escolheu para o parceiro. Ao
discutirem sobre a dinâmica os ACS, relataram que consideravam
a vida muito semelhante à dinâmica, pois, segundo eles, em di-
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 240

versos momentos o que desejamos a outros recai sobre nós


mesmos.
No sexto encontro trabalhou-se a comunicação da equipe
por meio da troca de desenhos e identificação de qualidades e
defeitos entre os participantes. Participaram apenas cinco ACS,
mas a interação entre eles mostrou que o grupo se conhecia bem
e que mantinham um bom relacionamento. Depois desse momen-
to foi feita a devolutiva dos testes aplicados.
O sétimo encontro focou em dois temas escolhidos pelos
ACS: envelhecimento e qualidade de vida para idosos. Os agen-
tes comentaram sobre os idosos atendidos por eles na região e da
indicação que sempre realizavam que os idosos passassem a
frequentar os programas criados para eles no município. Enfoca-
ram que veem retorno de suas indicações e que o trabalho de
promoção e prevenção de saúde que desenvolvem auxilia de
maneira significativa aos idosos, pois oferecem indicações, con-
versas e carinho para os idosos. O último encontro teve o propósi-
to de um fechamento e confraternização. Ouviu-se a opinião de
todos os agentes sobre o trabalho feito naquela instituição e eles
enfatizaram que desejavam a continuidade do projeto ou o desen-
volvimento de novos trabalhos no futuro.

Considerações Finais

O Ministério da Saúde atribuiu aos ACS um papel base na


nova forma de pensar saúde pública adotada no Brasil. Criou-se
um perfil desejado para esses profissionais, pedindo que
trabalhem e residam na mesma área, o que os coloca mediando a
relação entre sua comunidade e os profissionais de saúde com
quem trabalham (Jardim & Lancman, 2009; Lunardelo, 2004;
Silva, 1997). Como uma medida política recente, ainda não se
construiu conhecimento suficiente sobre o impacto dessas
posturas para os ACS, o que foi um dos motivadores do presente
estudo.
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 241

Com o desenvolvimento dos grupos, buscou-se auxiliar na


construção de uma identidade profissional ainda em formação,
marcada pela flexibilidade do trabalho como ACS e pela
proximidade com a comunidade. O trabalho desenvolvido mostrou
a relevância da atuação dos ACS na comunidade. Eles acompa-
nham casos crônicos, fornecem às famílias amparo e orientação,
medeiam o contato com a UBS e sondam os principais problemas
da comunidade. Contudo, os grupos também revelaram a
deficiência de capacitação dos ACS para as tarefas que
desenvolvem. Em muitas falas, esses profissionais se queixam de
não saberem como orientar os usuários que precisam
acompanhar, da ausência de resolutividade de seu trabalho, de
sua vontade de receitar (ou de haver receitado) medicação para
os casos que acompanham e de não entender das patologias que
observam na região em que trabalham.
Os ACS falaram sobre a precariedade do curso de capaci-
tação, da relação conturbada com a comunidade e com os demais
profissionais da UBS. A relação estabelecida com a comunidade
torna-se assistencial. Os relatos indicam que quando os ACS
conseguem agendar atendimentos médicos ou facilitam o acesso
à medicação, a comunidade mostra-se grata, mas quando não
conseguem, passam a ser hostilizados e maltratados. Apontam,
ainda, que apesar dos ACS considerarem-se profissionais de
saúde, não são percebidos dessa forma pelos outros integrantes
da equipe da UBS. Uma das queixas dos ACS que participaram
do presente trabalho é não ter acesso aos prontuários dos pacien-
tes da UBS, negado como norma institucional.
O sentimento de menos valia e a crença de que esse é um
trabalho temporário estiveram presentes em várias das discus-
sões conduzidas com os ACS dos três grupos. Ao problematizar
sobre as principais dificuldades e os momentos de maior orgulho
relacionados ao trabalho, os ACS pensaram sobre sua atuação
real e o que desejam para seu trabalho. As discussões também
permitiram compartilhar situações de conflito com os colegas e
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 242

com a comunidade, criando um espaço para que vivências não


elaboradas fossem explicitadas e ressignificadas pelos envolvidos,
criando a possibilidade de propostas de resolução.
As dinâmicas coordenadas pela equipe do projeto colabora-
ram com esse processo, criando um “clima” lúdico e descontraído
para que assuntos difíceis emergissem e fossem trabalhados.
Essa percepção foi ratificada presença dos ACS nos encontros e
por seu feedback, com pedidos para que os grupos continuassem
acontecendo das UBS. Para a equipe envolvida nessa experiência
fica a riqueza do encontro com pessoas que dedicam suas vidas
ao cuidado a outros e que, mesmo ainda estando em um “limbo”
de identidade profissional, sabem da importância de sua atuação
para a comunidade e mostram-se abertos para a construção con-
junta de um novo caminho, em que a saúde seja vivenciada de
forma integral, tanto pelos usuários quanto pelos profissionais de
saúde.

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A experiência do Grupo Interinstitucional


Pró-Adoção na cidade de Uberaba (MG):
Compartilhando saberes e práticas
Martha Franco Diniz Hueb
Marta Regina Farinelli
Ana Mafalda Guedes C. C. Vassalo Azôr
Eliane Gonçalves Cordeiro
André Tuma Delbim Ferreira

O que as pessoas mais desejam é alguém


que as escute de maneira calma e tranquila.
Em silêncio [...] A fala só é bonita quando ela
nasce de uma longa e silenciosa escuta. É na
escuta que o amor começa. E é na não-
escuta que ele termina.(Rubem Alves, 1999).

A adoção é um ato jurídico em que se estabelece um


novo vínculo parental entre pessoas que não apresentam laços
biológicos, sendo que os adotantes possuem os mesmos direitos
e responsabilidades da família de origem, assim como as crianças
e adolescentes adotados também possuem iguais direitos e
deveres dos filhos naturais, rompendo, dessa forma, qualquer
vínculo parental anterior.
Importante ressaltar que foi a partir da promulgação da
Constituição Federal de 1988, da Convenção Internacional sobre
os Direitos da Criança de 1989 e do Estatuto da Criança e
Adolescente (ECA) em 1990 que modificações significativas na
legislação foram efetivadas na forma de se encarar, tratar e
conviver com crianças e adolescentes na nossa sociedade. A
importância do reconhecimento dos direitos do cidadão na
Constituição Federal revela a grande dimensão que esses atin-
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 248

gem no sentido de determinar as linhas interpretativas do texto


constitucional (Canotilho, 2002). Atualmente é garantida a
proteção integral tanto à infância quanto à adolescência, bem
como lhes são conferidos o devido respeito enquanto sujeitos de
direitos. Dentre estes se destaca, em especial, a convivência
familiar e comunitária, como consta do artigo 227 da Constituição
Federal:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à cri-


ança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o di-
reito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liber-
dade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los
a salvo de toda forma de negligência, discriminação, explora-
ção, violência, crueldade e opressão (Constituição Federal,
1988, itálico nosso)

Nesse sentido, compreende-se que, a despeito da Lei,


esforços coletivos devem ser cultivados para a efetivação da
convivência familiar, fator imprescindível para que se consolide o
pleno desenvolvimento, proteção e crescimento de crianças e
adolescentes, para que se possam materializar suas
potencialidades. Nesta perspectiva, a concretude do direito da
convivência familiar se dá primeiramente por meio da família
biológica ou extensa que é aquela “formada por parentes
próximos com os quais a criança ou adolescente convive e
mantém vínculos de afinidade e afetividade” como determina o
Artigo 25 do ECA (Lei n. 8069,1990).
Diante de situações que violem os direitos da criança e do
adolescente surge, então, a necessidade de tomar medidas prote-
tivas que assegurem o melhor interesse deste grupo de cidadãos.
Entre as diversas formas de proteção destaca-se a colocação em
família substituta, que advém quando a família biológica da
criança ou adolescente, por algum motivo, não consegue dar
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 249

continuidade à relação familiar. A colocação em família substituta


comporta três categorias, a saber: a de guarda, a de tutela e a de
adoção, sendo que aquela que mais se verifica em nosso país é a
inserção da criança ou adolescente em família substituta por meio
da adoção (Lei n. 8069,1990).
O objetivo principal dessa ultima inserção é encontrar uma
família que garanta a nova convivência familiar e comunitária,
oferecendo condições para que as crianças e os adolescentes se
desenvolvam e possam ser protagonistas de suas histórias. No
entanto, é importante destacar que a adoção é um processo
sociologicamente complexo e que muito depende da construção
das relações de afeto e da compreensão das dificuldades inatas a
esse processo. Porém, adotar pode trazer retornos tão suficientes
e prazerosos quanto o da filiação biológica.
Nesses encontros humanos que se processam, a fertilida-
de afetiva prevalece ao invés da esterilidade emocional, pos-
sibilitando que pais e filhos possam se reconhecer na filiação
simbólica ao oferecer um lugar afetivo em uma árvore genealógica
(Lisondo, 1999). Portanto, construir uma relação saudável entre
pessoas, em especial entre pais e filhos, que favoreça o
estabelecimento de vínculos afetivos, acolhimento, aceitação do
outro com suas potencialidades, dificuldades e limitações, são
desafios, conquistas mútuas permeadas tanto por momentos
prazerosos quanto por momentos difíceis. Por isso a legislação
assegura o estágio de convivência familiar, com vistas a evitar a
permanência de crianças e adolescentes em situações susten-
tadas na hostilidade, rejeição, abuso ou mesmo na humilhação.
Porém, muito mais do que atender ao aspecto jurídico,
para que seja de fato construída uma nova relação parental-filial,
tendo assegurados todos os direitos à condição de filho, sem
qualquer tipo de distinção, é imprescindível que os envolvidos
possam fazer a elaboração psíquica de fantasias e temores que
engendram o processo de adoção, questões essas muitas vezes
de difícil resolução. Acrescidos à complexidade do fenômeno psi-
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 250

cológico, situações socioculturais que variam conforme a época e


a região podem interferir no processo em construção. Não por
acaso, no vasto território nacional ainda é muito comum a
utilização da expressão “mãe de criação” como forma de
designar uma maternidade que não é biológica, mas que ostenta
outros contornos socioafetivos. Também é significativa a utilização
da expressão “adoção à brasileira”, deflagrando o crime de
registrar filho alheio como se fosse próprio, ignorando-se a
necessidade de cumprir o percurso jurídico da adoção que
regulariza a constituição do vínculo parental e de considerar a
criança ou adolescente como ser de direitos (Azôr, Julião, Cordei-
ro, & Hueb, 2011).
Profundas transformações sociais ocorridas no último
século, tais como a explosão tecnológica e dos meios de
comunicação, além do surgimento de novos arranjos familiares,
deflagraram a necessidade de uma resposta jurídica mais
atualizada que atendesse aos anseios sociais vigentes. A lei n.
12010/09, conhecida como “A Nova Lei da Adoção”, e que, no
nosso entender, seria melhor nominada de “Nova Lei de
Convivência Familiar”, contempla importantes diretrizes no que se
refere ao procedimento de colocação de crianças e adolescentes
para adoção. Estudo recente de Silva e Arpini (2013) aponta que
psicólogos e assistentes sociais vinculados a instituições de
acolhimento, respaldando-se na Nova Lei, procuram esgotar as
possibilidades de reintegração na família de origem para,
posteriormente buscar a família extensa. No entanto, mesmo com
a soma de esforços para reintegração familiar, há situações em
que nem a família de origem, nem a família extensa, encontram-
se aptas para receber a criança de volta, cabendo a alternativa da
adoção. Legisladores brasileiros, reconhecendo as inadequações
estruturais dos procedimentos utilizados anteriormente respalda-
ram, dentre outros aspectos, a necessidade de se realizar cursos
preparatórios para pais que pretendem adotar visando otimizar as
relações entre adotantes e adotandos, na construção de laços
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 251

familiares duradouros (Scorsolini-Comin & Santos, 2008; Huber &


Siqueira, 2010; Azôr et al., 2011; Hueb, 2012; Contente, Caval-
cante, Chaves, & Silva, 2013).
Nesse sentido, o objetivo do presente capítulo é relatar
como foi gestado e como tem sido desenvolvido desde 2009 o
Curso Preparatório para a Adoção na cidade de Uberaba, Estado
de Minas Gerais. A trajetória percorrida será a de caracterizar e
discutir a proposta do referido curso e o papel de seus coordena-
dores, utilizando como ilustração recortes de falas dos postulantes
à adoção, participantes dos grupos de reflexão.

O nascimento do Curso Preparatório para a Adoção

Na Comarca de Uberaba, por iniciativa da Promotoria da


Infância e Juventude, foram convidados docentes de duas
instituições de ensino superior para pensarem e gestarem o Curso
Preparatório. Tais docentes, vinculados ao curso de Psicologia da
Universidade de Uberaba (UNIUBE), e aos cursos de Psicologia,
Serviço Social e Terapia Ocupacional da Universidade Federal do
Triângulo Mineiro (UFTM), associaram-se a integrantes de uma
instituição civil de apoio à adoção, o Grupo de Apoio à Adoção de
Uberaba (GRAAU) e elaboraram um projeto para ser desenvolvido
com pais adotantes, de forma que respondesse às exigências da
Nova Lei da Adoção, mas que também superasse o formato de
curso convencional, aquele que em geral utiliza apenas de pales-
tras motivacionais.
Durante seis meses, profissionais representantes dessas
instituições, sensíveis ao fenômeno da adoção, reuniram-se para
estudar e compartilhar experiências que favorecessem a configu-
ração de um projeto de intervenção no qual aspectos, manifestos
ou latentes, tabus e preconceitos, pudessem ser desocultados e
ressignificados, contribuindo para a possibilidade de aumentar as
chances de que mais crianças/adolescentes consolidassem o
direito de conviver e ter uma família. Conforme a evolução dos
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 252

encontros constatou-se que, por meio do diálogo franco, os


integrantes, superando as diferenças, criaram uma unidade
grupal, onde pessoas e instituições não se apresentavam mais
isoladamente, mas com uma identidade coletiva. Essa
configuração fundamentou a nomeação do grupo como GIPA –
Grupo Interinstitucional Pró-Adoção, que gestou e executou o
curso vivencial para pais adotantes (Azôr et al., 2011; Hueb, 2012;
Hueb, Campeiz, Souza, & Galego, 2013).
Planejou-se que o referido Curso seria realizado em oito
encontros quinzenais de duas horas cada e, em função de agilizar
o atendimento à demanda existente, assim como favorecer duas
opções de escolha de horário, possibilitando a participação de um
maior número de postulantes à adoção, projetou-se o atendimento
de duas turmas organizadas em dias e horários diferentes da
semana (GIPA, 2010). Estabeleceu-se junto à Promotoria da
Infância e da Juventude que o curso não teria caráter avaliativo,
tendo como principal função a de contribuir para a reflexão e
conscientização das implicações psicológicas, sociais e legais que
norteiam o processo de adoção. O caráter de avaliação
continuaria sob a responsabilidade da equipe psicossocial do
judiciário, acreditando que, dessa forma, os participantes se
sentiriam mais livres e conseguiriam manifestar as verdadeiras
motivações e sentimentos em relação ao ato de adotar, durante o
Curso Preparatório, tendo como coordenadores profissionais não
vinculados à equipe avaliadora do judiciário.
Os objetivos do curso foram: (a) proporcionar um espaço
de acolhimento e compartilhamento de dúvidas, emoções e ex-
pectativas para postulantes à adoção de crianças e adolescentes;
(b) estimular a identificação e a reflexão dos participantes sobre
as motivações para adoção e fatores relacionados a estas; (c)
identificar e estimular a desconstrução das idealizações
relacionadas ao filho desejado no processo de adoção; (d)
favorecer a reflexão sobre as características e história da
criança/adolescente que influenciam no processo de adoção; (e)
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 253

favorecer o conhecimento e a reflexão das fases de adaptação na


convivência entre pais e filhos vinculados pela adoção; (f)
colaborar para a instrumentalização dos participantes no sentido
de melhor lidar com os desafios cotidianos nas relações entre pais
e filhos; (g) colaborar para a diminuição de experiências
frustrantes e frustradoras tanto para postulantes quanto para as
crianças/adolescentes; (h) sensibilizar os participantes às adoções
necessárias; (i) sensibilizar os sujeitos quanto à importância da
continuidade da participação em grupos de apoio à adoção; (j)
contribuir para a formação de profissionais sensíveis à
complexidade do processo de adoção e que futuramente venham
a desenvolver estratégias efetivas relacionadas a esta experiência
(GIPA, 2010).

Sustentação da prática: abordagem teórico-


metodológica

A metodologia pensada e utilizada no Curso é a participa-


tiva, que se sustenta em técnicas e recursos da dinâmica grupal,
assim como em jogos, dramatizações, expressões gráficas e
discussões. Os temas trabalhados obedecem a uma ordem
definida enquanto aproximação sucessiva dos pontos pertinentes
e significativos no processo de adoção, sendo a coordenação das
turmas realizada por duplas de profissionais/docentes das citadas
instituições de ensino e do GRAAU, a qual será melhor detalhada
ao final deste tópico. Buscando contribuir com a formação de
profissionais para atuação neste campo, dois discentes dos
cursos envolvidos acompanham o processo em cada turma.
Ainda, quinzenalmente, a equipe de integrantes do GIPA se reúne
para discutir e compartilhar as experiências vividas nas duas
turmas em formação e para estudar sobre as temáticas: adoção,
família e institucionalização.
No primeiro encontro do grupo de candidatos a pais, após
atividade de apresentação dos integrantes, faz-se a exposição da
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 254

proposta do curso e do cronograma previsto, além do levantamen-


to das expectativas dos participantes, aprofundando a temática da
adoção propriamente dita. No segundo encontro, discute-se a
visão do amor enquanto construção. Para os terceiro e quarto
encontros foram projetadas situações que envolvem o aprofun-
damento das questões ligadas às motivações para a adoção. A
fantasia do filho idealizado versus o filho real, aquele comumente
disponibilizado para adoção, é o tema do quinto encontro. E é no
sexto encontro que o tema sobre a família de origem e as visões
que se tem dela é discutido. No sétimo encontro, último sob a
coordenação da dupla, trabalham-se as cenas temidas após a
adoção consumada e ao final é realizada a avaliação da percep-
ção da vivência no curso, por meio de questionário preenchido de
forma individual pelos participantes, os quais tem a opção de não
se identificarem. O oitavo encontro é reservado para a participa-
ção da promotoria e da coordenadoria da Regional da Infância e
Juventude do Triângulo Mineiro e equipe de assistentes sociais
judiciários para esclarecerem dúvidas quanto ao processo legal de
adoção. É quando são entregues os certificados de conclusão de
curso aos participantes (GIPA, 2010). Importante destacar que os
temas foram arrolados de forma a contemplar a possibilidade de
entrar em contato com aspectos latentes do mundo interno dos
participantes, em interlocução com o contexto social e cultural.
Quanto à coordenação das turmas de preparação para a
adoção, definiu-se que seria composta por um assistente social e
psicólogo ou terapeuta ocupacional e psicólogo, ou, ainda, uma
dupla de psicólogos. Depreendeu-se a necessidade da presença
permanente do psicólogo, haja vista que, devido à sua formação
clínica, apresentaria uma condição mais favorável para compre-
ender e intervir sobre fenômenos psicológicos emergidos da
dinâmica grupal, principalmente quando se dá o uso excessivo
das identificações projetivas nas relações interpessoais.
A estratégia utilizada é a de grupos de reflexão. Conside-
rando a própria etimologia da palavra, em tais agrupamentos
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 255

possibilita-se que cada participante faça uma continuada e


renovada flexão sobre si mesmo, assumindo as responsabilidades
pelas próprias escolhas, pelas próprias ações. Fato que favorece
a todos os membros atuarem como se estivessem em uma
galeria de espelhos, “onde cada um pode refletir-se de maneira
especular, nos demais e vice-versa” (Zimerman, 2000, p. 92).
Esclarece-se que os Cursos Preparatórios na modalidade
em que foram gestados não apresentam como proposta a
interpretação sistemática, todavia, compreende-se que quando
aspectos tais como rivalidades, ansiedades, identificações
projetivas, dentre outros, emergem na dinâmica grupal, apre-
senta-se necessária a interpretação, a fim de não dificultar o
desenvolvimento dos encontros (Zimerman, 2000), como ocorreu
em um determinado grupo. Neste, após dois ou três encontros, os
componentes ainda demonstravam não conseguirem se envolver
com os temas propostos, desviando a atenção dos coordenadores
para questões legais, denunciando bastante rivalidade com os
integrantes do judiciário. Dentro deste contexto, o coordenador
psicólogo interviu: “Por que será que nos ocupamos tanto deste
outro assunto [questões da legalidade] e não nos ocupamos do
nosso assunto aqui [adoção]? O que será que está difícil?”. Após
um longo e significativo silêncio, o grupo conseguiu retomar a
tarefa proposta, viabilizando a continuidade da dinâmica pretendi-
da, indicando que a interpretação neste momento foi um divisor
de águas, produzindo uma mudança de atitude nos participantes
necessária para a condução grupal.
Tendo em mente que mudanças de atitudes estão alicer-
çadas em aspectos emocionais que por vezes necessitam ser
identificados ou apontados, visando à conscientização e elabora-
ção dos mesmos, de modo a favorecer o desenvolvimento do
trabalho, compreende-se que tal modalidade de grupo também
possui uma ação terapêutica, visto que implica em transforma-
ções, na ordem de pensamento, atitude e conduta (Zimerman,
2000).
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 256

Nesse sentido, um possivel diálogo travado entre dois


profissionais da área de saúde mental foi pensado por Zimerman
(2000):

[...] alguém poderia objetar: “mas uma mudança de atitudes im-


plica em modificações emocionais de certa profundidade, que
por sua vez, implicam em um processamento psicoterápico. Is-
so é da competência dos grupos de reflexão?” Minha resposta
seria esta: ainda que o grupo de reflexão não seja uma forma
de psicoterapia analítica e não siga as regras básicas desta, e
nem sequer seja esta a sua finalidade, é inegável que por seus
mecanismos específicos, ele exerce uma definida ação tera-
pêutica, que se traduz em modificações na atitude e na conduta
(p. 92).

A questão técnica que se depreende é que o Curso


Preparatório, concebido na estratégia de um grupo de reflexão,
não tem como objetivo interpretar de forma sistemática os
aspectos inconscientes grupais, mas o faz quando aspectos psico-
lógicos emergem de forma a interferir no livre curso da tarefa
planejada para o grupo. De um modo geral, a atitude a ser
desenvolvida por meio de tal estratégia é a de ajudar os
participantes a aprenderem a aprender sobre a adoção, viabili-
zando-lhes o desenvolvimento da percepção, pensamento,
conhecimento e principalmente da comunicação, funções alta-
mente significativas para o estabelecimento de qualquer relação
humana, conforme entendimento de Bion (1963/1966).
Importante ressaltar que os componentes do GIPA, ao
projetarem trabalhar com tal metodologia, compreenderam que a
proposta era desafiadora e inovadora, porém perceberam que
seria necessário inovar e arriscar para verdadeiramente contribuir
com as relações sociais e afetivas de pais e filhos adotados.
Desafiadora porque tudo que é novo suscita dúvidas, medos e
receios quanto a atingir aos objetivos propostos. Os membros do
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 257

GIPA constantemente se perguntam nas reuniões de discussão e


de aprimoramento, que são realizadas quinzenalmente após os
encontros grupais: “As dinâmicas planejadas estão atendendo aos
objetivos de maneira que os pais se conscientizem das questões
internas mobilizadoras da opção pela filiação adotiva?” Ainda não
se tem esta resposta de forma firme e concisa, mas no decorrer
de quatro anos de curso algumas dinâmicas sofreram pequenas
alterações no sentido de maior adequação à proposta do curso.
Também se trata de uma experiência inovadora, porque a
Lei 12.010/09 acabava de ser instituída e nem todas as comarcas
no Brasil haviam implantado o curso preparatório. As que já o
faziam, em sua maioria, utilizavam palestras esporádicas, o que
no entender do GIPA não atenderia ao objetivo por possivelmente
não atingir em profundidade as reais motivações para a adoção.
Realizar uma preparação para a adoção com oito encontros distri-
buídos ao longo de quatro meses seria realmente bastante distinta
de outras iniciativas de diferentes partes do país, compostas na
maioria das vezes em uma única palestra de duas horas. Os co-
ordenadores grupais, em especial, teriam ainda que disporem-se
internamente a enfrentar a ira dos próprios participantes, os quais,
informados sobre outras possibilidades de preparação em diferen-
tes comarcas, costumam apresentar resistências em participar de
preparação mais extensa e intensa.
A construção criativa que se efetivou objetiva contribuir
com a possibilidade do fenômeno da adoção ser melhor sucedido
e ampliado, de maneira a atender a uma demanda social na qual
se encontra envolvidos cidadãos e instituições de âmbito público e
privado. Neste contexto, ressalta-se que os integrantes do GIPA
perceberam que um trabalho desta envergadura não se desenvol-
veria sem paixão, conflitos e condição de lidar com as diferenças
e com o próprio desconhecido. Que algumas respostas para
inúmeras perguntas que surgiriam seriam possíveis somente no
decorrer do próprio trabalho, e que outras somente poderiam ser
respondidas após alguns anos transcorridos da preparação dos
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 258

pais, como a de verificar se a metodologia participativa utilizada


realmente teria ajudado aos postulantes a se prepararem para o
desafio de serem pais por meio da adoção. Constataram também
que as reuniões quinzenais dos integrantes do GIPA, nas quais se
incluíam os coordenadores grupais, eram imprescindíveis princi-
palmente porque havia diferentes profissionais com distintas
sustentações teóricas: promotores, assistentes sociais, psicólogos
e terapeutas ocupacionais. Do mesmo modo, havia diferentes
instituições envolvidas: Ministério Público, Vara da Infância e
Juventude e duas universidades, o que tornava mais premente
que se estabelecesse a comunicação efetiva entre seus membros.
A despeito da importância da função desempenhada
pelos vários membros do GIPA, este capítulo relata o papel
catalizador do coordenador dos Cursos Preparatórios realizados.
Apresenta, ainda, os referenciais teóricos, trazendo como
ilustração fragmentos de intervenções e de diálogos estabelecidos
entre os coordenadores e os participantes.

O pensar, o sentir e o sonhar: Reflexões sobre as


habilidades dos coordenadores do Curso Preparatório
para a Adoção

A vivência da coordenação tem deflagrado e confirmado


a necessidade de aprofundar os conhecimentos sobre adoção,
assim como o da análise da realidade social. É importante no
desenvolvimento dos vários encontros que os coordenadores
compreendam os participantes como sujeitos históricos e autores
tanto do seu percurso individual quanto do coletivo (Andaló, 2006).
Nesse sentido, faz-se imprescindível a leitura clínica do fenômeno
psicológico emergido na vivência das dinâmicas grupais.
Tais leituras se apresentam como instrumentos valiosos,
favorecendo virem à tona aspectos latentes referentes à subjetivi-
dade dos integrantes do grupo. Neste momento, é necessário
agilidade e sensibilidade dos coordenadores no que tange à
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 259

condução dos desdobramentos surgidos no interior grupal. Algu-


mas vezes emergem aspectos, ora idealizados, ora hostis, ora
cindidos, ora camuflados por meio de um discurso intelectual, que
aparentemente se apresenta apropriado, já que racionalizado e
advindo do mundo social, porém não contemplativo do mundo
interno. Nesse momento, intervenções verbais, às vezes de cunho
interpretativo, fazem-se necessárias com a finalidade de provocar
atitude reflexiva nos membros do grupo, que tanto podem
devolver de forma verbal quanto pensar silenciosamente sobre
seus sentimentos e anseios.
Já em um primeiro encontro, pode ser observada através
do mecanismo de defesa do deslocamento, a hostilidade camufla-
da e a racionalização expressa por uma participante. Com o
objetivo de conhecer as expectativas dos adotantes em relação ao
Curso Preparatório e a adoção propriamente dita são
disponibilizados no chão variados objetos, dentre eles materiais
de escritório e pequenos e diferentes brinquedos. É então solicita-
do aos participantes que escolham um objeto qualquer e que
façam uma associação entre o objeto escolhido e seus sentimen-
tos e expectativas naquele momento. Uma das integrantes,
escolhendo um pequeno burrinho de borracha disse: “Eu o escolhi
porque sabia que ninguém iria lhe querer, porque [...] acham que é
de segunda categoria, mas eu acho que é fantástico! Escolhi só
por isto, mas não vejo nada relacionado com a adoção”. Com
cuidado a coordenadora intervém:

Será que não poderíamos estar pensando que a filiação adotiva


não seria uma filiação de segunda categoria, e por isto mesmo
menos valiosa? Ou será que a estamos idealizando, a ponto de
querermos ser reconhecidos pelos demais como um benfeitor
que consegue cuidar daquele que ninguém quis?

O grupo ficou reflexivo. Alguém disse em seguida: “É...


Nós estamos aqui para pensar o que de fato nos faz querer ado-
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 260

tar, e como vamos enxergar e tratar este nosso filho...”. Dessa


forma, nos parece claro que a verdade psíquica não pode ser
alcançada somente por meio da informação racional, sem a elabo-
ração interna, que pode ser facilitada por meio das intervenções.
Para que os pais possam revelar a si próprios a possível verdade
sobre a adoção que querem processar é preciso que consigam
“elaborar” a sua própria história de vida (Lisondo, 1999).
A referida dinâmica grupal exige habilidade dos coorde-
nadores para desconstruir a racionalização apresentada pelo
grupo, enquanto mecanismo de defesa, favorecendo a
compreensão de aspectos internos ameaçadores como, por
exemplo, a insegurança da possibilidade ou impossibilidade de ser
mãe ou pai de alguém com uma história própria e que não pode
ser negada. O filho adotivo pode abandonar os pais que o
adotam? Esta é uma pergunta que não se cala no universo
psíquico dos pais, todavia apresenta-se silenciada na constituição
grupal na maioria das vezes.
A família de origem, de forma estereotipada, é com
frequência compreendida pelos postulantes à adoção como
ineficaz e incompetente, e não raras vezes se observa um
movimento de ataque grupal bastante hostil. Nesses momentos, é
necessário que o coordenador se posicione ativamente. Em uma
das turmas do Curso Preparatório em que se trabalhava a temáti-
ca “Convivência entre pais e filhos na adoção”, o coordenador
apontou: “Será que essa família tão temida pela sua ineficiência
não está aqui, nos receios internos de cada um?” O grupo silenci-
ou. Os coordenadores, respeitando o silêncio do grupo também
silenciaram, esperando que a reflexão provocada pudesse se
constituir em uma nova concepção do processo adotivo, na subje-
tividade de cada um. Importante destacar que alguns elementos
do grupo conseguem desenvolver um movimento mais elaborado
e entrar em contato com os próprios medos, podendo falar de si
próprios. Uma participante relatou:
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 261

Crianças vão mesmo dar trabalho, é normal! Se existe lua de


mel o tempo todo, isso demonstra que algo está errado, mas eu
tenho medo de como vou reagir. Tenho medo de pensar que a
criança é feia e medo de depois ficar com remorso.

Outros componentes se sentem atacados, canalizando a


hostilidade para os coordenadores e dando vazão às defesas
maníacas necessárias para lidar com a própria angústia.
Compartilha-se com Klein (1960/1991) que cada movimento em
direção à compreensão de mundo interno, portanto em direção à
integração, mobiliza ansiedades, podendo favorecer o surgimento
de intensas defesas maníacas como se vê no exemplo a seguir.
Durante o sexto encontro, que busca refletir com os pais a
importância de se respeitar que a criança/adolescente tenha
acesso à sua história de origem se assim o desejar, é realizada
uma dramatização na qual uma criança (representada por uma
estagiária/extensionista) pergunta para a mãe adotiva (represen-
tada por outra estagiária/extensionista) sobre onde estaria sua
mãe biológica. Na encenação, a mãe adotiva ignora a pergunta da
filha e desvia a atenção da criança para outra tarefa, demonstran-
do, por meio da representação, muita dificuldade para lidar com a
situação. Em uma das turmas, no final da dramatização o coorde-
nador perguntou: “Quem quer comentar?”. Um integrante do
grupo, de maneira agitada e elevando a voz gradativamente,
disse: “Essa mãe não está preparada, ela fez tudo errado, é uma
mãe despreparada, não devia nem adotar, se fosse comigo eu
sentaria com o meu filho e falaria tudo do jeito que precisa ser
falado (...)”. O coordenador, diante do discurso longo e ininterrupto
desse integrante, interrompeu a fala, aproximou-se da mãe
(representada pela estagiaria) e, colocando a mão em seu ombro,
disse: “Parece que esta mãe precisa de ajuda, ela não faz melhor
porque não sabe como fazer”. O grupo silenciou. O coordenador,
respeitando o silêncio grupal por alguns segundos, posteriormente
comentou: “Essa mãe não pode ser qualquer um de vocês tam-
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 262

bém necessitando de ajuda?”. Alguns elementos concordaram,


balançando afirmativamente a cabeça.
O funcionamento mental compreendido sob a ótica de
Klein (1960/1991) esclarece o surgimento da inevitável tensão no
campo grupal como parte de um processo que favorece o pensar,
o sentir e o enfrentamento de fantasias inconscientes, necessários
para a possibilidade de vivenciar a paternidade e maternidade de
maneira mais livre. É preciso acolher as fantasias como um lugar
privilegiado do prazer, promovendo uma ancoragem possível à
dor emergente (Miranda & Cohen, 2012). Em um contexto em que
a instituição judiciária, em geral, apresenta-se como alvo de ata-
ques, críticas e frustrações, é necessária a compreensão de que
ela representa de forma ilusória no imaginário de cada um o poder
de dar e tirar filhos e, em decorrência de tal fato, é vista como
amiga ou inimiga de um sonho.
A ideia de sonho pode abrir canais de compreensão e
comunicação importantes na relação dos profissionais com os
postulantes à adoção. Bion (1975/1989) ampliou a função e a
compreensão de sonhar, sugerindo que o mesmo ocorre não só à
noite, mas também durante o dia. O ato de sonhar consiste em
acrescentar algo às impressões sensoriais vivenciadas na
experiência da pessoa com os objetos, implicando em utilizar o
pensamento, percepção, observação, atenção, memória, as-
sociações livres e interpretação. Grotstein (2011) esclarece que,
segundo Bion, sonhar é um pensar emocional que facilita o pensar
cognitivo.
No desenvolvimento de uma dinâmica, no quinto en-
contro, no qual se trabalha a temática “Filhos Idealizados
versus Filhos Reais”, os participantes devem escolher de forma
bastante lúdica características sonhadas, escritas em fichas que
representem os filhos. Depois de pensada e processada a
escolha, estas são relatadas por cada elemento ao grupo. Alguns
dizem de forma bastante idealizada: “Será uma menina branca, de
dois anos, com os cabelos lisos, olhos vivos, obediente,
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 263

inteligente, amorosa e carinhosa”. Após a exposição, cabe aos


coordenadores modificarem as características de forma a apontar
àquele que escolheu que a criança real que espera ser adotada,
na maioria das vezes é bastante diferente daquela criança sonha-
da, o que causa distintas reações nos participantes. Em um dos
grupos, após o coordenador fazer alterações nas características
apontadas por uma integrante, esta disse que gostaria de devolver
à coordenadora aquelas que anteriormente havia escolhido, e em
seguida disse: “Me senti mal porque não cabe a mim escolher
como meu filho será... Quando esperamos os nove meses de
gestação, não escolhemos as qualidades ou os defeitos do filho
[biológico], apenas aceitamos como ele é”.
Ainda no decorrer dessa mesma dinâmica, o coordenador
trocou as características sonhadas acerca do filho de uma inte-
grante por outra, aleatoriamente, o que resultou na representação
de um filho completamente diferente do sonhado. Após uns minu-
tos de silêncio o coordenador perguntou: “Foi retirado o sonho ou
o filho de vocês?”. O participante respondeu:

Essa pergunta me fez pensar que não é somente os pais que


têm que aceitar o filho, mas o filho também passa por um pro-
cesso de aceitação dos pais e o medo do filho não aceitar é um
sentimento presente.

Essa fala deflagra o sonhar emocional facilitando o pensar


cognitivo, apontado por Grotstein (2011), levando-nos a compre-
ender que um sonho sempre necessita do encontro com outro
sonho, aguardando ser sonhado. “Será que os profissionais en-
volvidos, seja do judiciário, seja da instituição de acolhimento,
estão podendo compreender o sonho dos pais, aguardando ser
sonhado? Ou o sonho do outro está longe ou invisível, e, por tal,
impedido de se compreender a vulnerabilidade do sonhador?”.
São reflexões instigadoras como essas que os membros do GIPA
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 264

procuram realizar nas reuniões quinzenais, mas que nem sempre


encontram ressonância em uma grupalidade maior.
A questão do sonho, tratado nesta perspectiva, também
abre importantes canais de comunicação entre pais e filhos. A
expressão da subjetividade, por meio das dinâmicas grupais,
aponta que os pais candidatos à adoção apresentam-se
envolvidos de maneira muito intensa com o sonho da paternidade
e maternidade, mas contraditoriamente distantes do sonho das
crianças e adolescentes institucionalizados à espera de se
tornarem filhos.
Quanto mais idealizado e intenso for o sonho de serem
pais ou mães, frustrações podem ser geradas nos candidatos a
adoção chegando mesmo a redundar em “devolução” da criança
ou adolescente pelos adotantes, criando traumas significativos em
ambas as partes, com a respectiva revitimização das crianças e
adolescentes que, em alguma oportunidade anterior, foram
vítimas de situações de abandono, maus tratos e negligência.
Constata-se que talvez esse seja um aspecto importante
que aponta a diferença e a semelhança de ter filhos biológicos ou
adotivos. A diferença se encontra na origem da criança, que
muitas vezes chega bastante sofrida com a vivência de
experiências angustiantes do abandono, enquanto a semelhança
se dá na necessidade de se adotar aquele que nos é dado
enquanto pais, independentemente de ser biológico ou adotivo.
Todos os seres humanos necessitam se sentirem filhos, portanto
serem adotados com as características que vierem. Esta se
apresenta uma condição essencial para a construção da
subjetividade decorrente do sentimento da necessidade de
pertença que permeia a humanidade. Abrir canais para uma
comunicação autêntica entre todos os envolvidos, pais, filhos
biológicos e filhos adotivos, pode contribuir para um vínculo
parental-filial baseado na confiança (Otuka, Scorsolini-Comin, &
Santos, 2012).
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 265

Segundo Winnicott (1963/1983), o bebê humano, diante


de sua total dependência, vivencia uma fragilidade, deflagradora
da necessidade do cuidado de um outro que lhe garanta condi-
ções de sobrevivência. Esta relação de cuidado marcará todo seu
desenvolvimento posterior, contribuindo significativamente com a
constituição da identidade que necessariamente contém o registro
das primeiras relações. Dessa forma, a criança ou o adolescente
adotivo, no desenvolvimento da sua ontogênese, apresenta o
desejo de poder ser filho. No entanto, é importante destacar que a
relação construída com os pais adotivos envolve um encontro
permeado de uma história de medo e desamparo em função de
um registro psíquico de ausência no que se refere aos primeiros
cuidados, fato que aponta a necessidade de maior sensibilidade
no acolhimento por parte dos cuidadores.
O desenrolar do trabalho grupal tem sinalizado a impor-
tância de apresentar aos pretendentes da adoção a criança ou o
adolescente desejante de ser filho que, todavia, mostrar-se-á aos
pais adotivos do jeito que lhe for possível, necessitando de um
dado tempo que não é da ordem do cronológico, mas da ordem do
psíquico, a fim de que possa processar construções e desconstru-
ções, favorecendo a compreensão de uma subjetividade, por
vezes, diferente da idealizada pelos pais adotivos. Em uma das
turmas, quando foi solicitado aos postulantes que fizessem por
escrito uma reflexão de como tinha sido vivenciada a experiência
daquele dia, o quinto encontro, no qual havia sido trabalhado a
temática “Filhos Idealizados versus Filhos Reais”, um integrante
escreveu: “O encontro de hoje nos ajudou a perceber a vida
imaginária e a vida real, e que a nossa vontade nem sempre
acontece”. Outra participante apontou que:

Na vida real, qualquer filho é difícil de educar, não é só o adoti-


vo que e difícil, todos os presentes nesse encontro são filhos
também e não são iguais, mas que o sucesso enquanto pais
depende do seu amor e sua dedicação, isso depende.
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 266

Ao que outra participante completa: “quem garante que a


criança não vai fazer nada de errado por ser filho biológico? Filho
biológico também não tem garantia, de não ser ‘probleminha’”. Em
outro momento de intervenção, o coordenador perguntou: “Onde
existe a criança ou o adolescente que vocês pretendem adotar?”
O grupo silenciou. Alguém respondeu: “No abrigo”. O silêncio
continuou. Alguém murmurou, timidamente: “Parece que só dentro
de nós”, fato que denota a apropriação da idealização.
Se para alguns participantes os coordenadores, por meio
de suas intervenções, estão destruindo o sonho, para outros estes
estão auxiliando que o sonho possa ser sonhado. Portanto, a
percepção de cada elemento, com suas vicissitudes, necessitam
de tempo, de interação grupal e sensibilidade por parte dos
coordenadores para que intervenções adequadas sejam
realizadas pontualmente. Os coordenadores exercem a mediação
entre conteúdos, visões, sentimentos, experiências cotidianas,
trazidos pelos participantes, e as informações, reflexões e
conteúdos da realidade acerca da adoção colocados de forma
interventiva como possibilidade de revisão ou reafirmação de
conceitos e decisões.
Em alguns momentos, os encontros grupais apresentam-
se difíceis, todavia, no que se refere à condução da coordenação,
esclarece-se a importância dos profissionais aguardarem para
que os próprios componentes do grupo se encarreguem da pos-
sibilidade de pensar e sentir, apontando que os condutores
grupais necessitam lidar com a própria ansiedade e a ansiedade
grupal frente à possibilidade ou impossibilidade de se construir
respostas ou até de que não há respostas certas ou erradas. O
que existe é o sonho do adotando e o sonho do adotante, fatores
norteadores de que o desafio de quem se encontra na condução
grupal é facilitar ao adotante o alcance do significado latente de
seu sonho que necessita ir ao encontro do sonho do adotado.
Nesse sentido, o tempo apresenta-se como um elemen-
to valioso no processo da adoção. Pais adotivos demonstram ter
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 267

pressa. “Têm pressa porque esperaram muito? Por que estão


extremamente desejosos e receosos diante da expectativa de
serem pais de crianças e adolescentes com histórias assus-
tadoras de desamparo e frustração?”, perguntam-se os coor-
denadores. Ou, ainda, vislumbrando de outro ângulo: “Têm pressa
porque necessariamente irão se encontrar com as suas próprias
histórias de desamparo e frustração apontando que é melhor ter
pressa para não sentir?”.
Compreende-se que lidar com o tempo interno, referente
a uma subjetividade permeada de emoções a serem
(des)cortinadas para uma compreensão consciente, apresenta-se
na contramão do paradigma social vigente. Neste, o tempo
apresenta-se restrito à necessidade de ter e a um imediatismo,
ancorado na própria tecnologia fomentadora da cultura
descartável. “Sentir implica em tempo, mas como sentir diante do
tempo inexistente do paradigma vigente?”, questionam-se
bastante angustiados os integrantes do GIPA.
Nesse sentido, compartilha-se com Zimerman (2000) a
importância dos coordenadores de grupo serem continentes, visto
que tal função permite acolher as intensas emoções emergidas do
campo grupal que lhe são frequentemente depositadas. Nestes
momentos é preciso que contenham suas próprias angústias
desencadeadas pelas dúvidas, de forma a conseguir favorecer o
acolhimento das emoções emergidas, compartilhá-las, e ressigni-
ficá-las para o grupo conforme se apresente a condição deste.
Paradoxalmente, alguns postulantes à adoção as-
sustam-se com a proposição dos oito encontros, muitas vezes
protestando de forma silenciosa ou enfaticamente sobre o tempo
destinado aos encontros grupais, os quais imaginam inicialmente
ser tempo perdido. Outros, com frequência, associam a
participação do grupo com a possibilidade rápida de terem seus
filhos. “Se eu estou fazendo o curso é porque minha criança
esta chegando”, verbaliza alguém. Dessa forma, compreende-se
ser este um aspecto importante a ser identificado na dinâmica
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 268

grupal e trabalhado de maneira que se esclareça com


transparência que a participação no grupo não garante a agilidade
do processo da adoção, até porque, muitas vezes, as
características desejadas pelos adotantes não são aquelas de
crianças disponíveis a serem adotadas naquele momento. Seja
pela questão do tempo ou por todos os conteúdos psíquicos
emergidos no campo grupal, compartilha-se com Zimerman (2000)
a necessidade da escuta atenta dos coordenadores e da
realização de intervenções que busquem integrar aspectos
dissociados e dispersos em uma fala acrescida de significados.

Considerações Finais

A proposta de trabalho aqui relatada foi respaldada pela


referida Lei da Adoção, visando a contribuir com a preparação de
pais adotivos. Todavia, para além da contribuição, os encontros
estão favorecendo a constatação de que embora exista muito
ainda a aprender, o Curso Preparatório para a Adoção tem sido
um campo fértil de valiosa construção de conhecimentos. Esses
tem tornado os profissionais mais sensíveis à complexidade do
processo de adoção, além de possibilitar-lhes o desenvolvimento
de habilidades e competências na condução grupal que, reflexiva,
tem viabilizado aos participantes poder (re)significar conceitos,
avaliar pré-conceitos, atitudes e mesmo direcionar um outro olhar
sobre os filhos que desejam.
No entanto, é importante ressaltar que o GIPA verificou
que os conteúdos desenvolvidos nos oito encontros não foram
suficientes para trabalhar plenamente as fases de adaptação que
permeiam as relações sociais e emocionais entre adotante e ado-
tado. Adaptação esta que se relaciona a negar que a criança e o
adolescente possuem um passado que precisa ser resgatado para
a construção coletiva de um novo espaço, de uma nova vida, de
novos costumes, ou seja, permitir o florescimento de uma nova
família.
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 269

Desta forma, o GIPA constatou a necessidade de outras


importantes frentes de trabalho, tais como incentivo de grupos de
apoio aos pais que já estão com os filhos adotados, do trabalho
direto e contínuo com instituições de acolhimento, além da
necessidade de estabelecimento de comunicação real entre os
vários profissionais e instituições envolvidas. Parafraseando São
Francisco de Assis, o GIPA acredita que se deve começar
fazendo o que é possível, depois o que é necessário e, de
repente, estar-se-á fazendo o impossível.

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S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 273

As famílias que encontramos na atenção


básica:
Desafios e reflexões para a prática em Psicologia
Cibele Alves Chapadeiro
Conceição Aparecida Serralha

Ao estudarmos a família no século XXI, não po-


demos pensar em um único modelo de configuração e de relações
dentro dela. Cientes disso, neste capítulo, nós, que compomos
uma equipe de tutoria da Residência Integrada Multiprofissional
em Saúde (RIMS), da Universidade Federal do Triângulo Mineiro
(UFTM), pretendemos refletir sobre as relações que encontramos
nas várias configurações familiares e discutir a atuação do profis-
sional da atenção básica junto a elas. Essa reflexão será feita a
partir de dois referenciais teóricos distintos, que embasam os tra-
balhos de cada tutora e que se somam na tentativa de encontrar
ações mais efetivas para cada contexto.
Os dois referenciais utilizados serão a teoria do amadure-
cimento de D. W. Winnicott e a Teoria Familiar Sistêmica, com os
quais pretendemos discutir as dificuldades na comunicação, o
estabelecimento de regras e limites, assim como a falta de afeto,
que permeiam os problemas encontrados nas famílias atendidas
pelo programa da RIMS em atenção primária. Ainda, serão consi-
derados, nessa reflexão, a segurança emocional dos membros
destas famílias, assim como sua estrutura hierárquica, e ferramen-
tas importantes para compreender suas dificuldades, como as
etapas do Ciclo de Vida e o Genograma.
Respaldados por essas teorias, partiremos do princípio de
que, por um lado, os pais não podem abdicar da responsabilidade
de dar aos filhos a contenção que estes necessitam para se orga-
nizarem interna e socialmente. Por outro lado, os profissionais da
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 274

atenção básica precisam trabalhar com todos os membros da


família, inclusive transgeracionalmente, para que possam conse-
guir as mudanças que sejam percebidas como necessárias ao
alcance da saúde. Transgeracionalmente, porque muitas vezes
não se trata apenas de orientar, ensinar os pais como agir com os
seus filhos. Mas, trata-se de verificar como foram as práticas edu-
cativas dos avós para com estes pais, a fim de conhecer quais
são os modelos e as crenças que eles têm. E também que ansie-
dades estes pais têm na relação com seus filhos e cônjuges, que
provavelmente foram transmitidas transgeracionalmente. Daí sur-
ge a necessidade de se trabalhar em uma perspectiva transgera-
cional e com quantos membros for possível, de forma presencial.

Compreendendo a família

Minuchin (1990) compreende a família como um sistema,


um grupo natural que tem desenvolvido padrões de interação que
constituem a estrutura da família, que por sua vez governa o fun-
cionamento dos seus membros. Já o Ministério da Saúde (Brasil,
2014) compreende família como o conjunto de pessoas ligadas
por laços de parentesco, dependência doméstica ou normas de
convivência, que reside na mesma unidade domiciliar. Nesse
conjunto se incluem empregado(a) doméstico(a) que reside no
domicílio, pensionista e agregados.
A família é uma invenção, uma construção humana. Ao
longo da história, vem se mantendo como uma instituição passível
de adaptações e mudanças. Na idade média, a família não era um
grupo social significativo, tudo era partilhado pela aldeia, em um
ambiente rural. Com a Revolução Industrial, o ambiente passa a
ser urbano. O homem vai trabalhar fora e a mulher fica em casa,
como guardiã do afeto. O pai passa a ser o chefe de uma família
nuclear: pai, mãe e filhos (Acosta & Vitale, 2005). No século XX,
as mudanças continuaram, até chegar à concepção de família de
hoje, que é bastante diversa, com novas configurações familiares,
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 275

decorrentes especialmente da mudança do papel da mulher, da


alta taxa de divórcio (Brasil, 2012) e da possibilidade de recasa-
mento. Assim, algumas configurações familiares que aparecem
são: mãe divorciada ou solteira morando com seus filhos e, às
vezes, com os avós também; casal recasado com os filhos de um
dos cônjuges, dos dois e/ou de ambos; casais do mesmo sexo;
membros da família morando sozinhos, entre outras.
De acordo com Winnicott (1980a), a família fornece o am-
biente que uma pessoa, desde o nascimento, precisa para ter
suas necessidades atendidas. Trata-se do que este autor chamou
“lar primário”. Com essa expressão, ele se referiu à “experiência
de um ambiente adaptado às necessidades especiais da criança,
sem o que não podem ser estabelecidos os alicerces da saúde
mental” (Winnicott, 1999a, p. 63).
Estes diferentes entendimentos têm em comum que a
família é o ambiente em que relações podem ser saudáveis ou
prejudiciais aos seus membros. Desse modo, torna-se essencial
uma atenção a essas relações e às experiências de todo tipo que
nela são vividas, uma vez que essas experiências tendem a se
repetir e acabam formando padrões que, queiram ou não, são
importantes para o reconhecimento desse lugar como um lugar ao
qual se pertence.
Durante o desenvolvimento da criança no interior do grupo
familiar, ela vai se dando conta do crescimento gradual do próprio
grupo, assim como dos problemas que surgem dos
relacionamentos dentro dele. A criança começa a perceber que,
apesar de a família protegê-la, o mundo penetra gradualmente,
por meio dos tios, vizinhos, primos, amigos, escola etc. Para
Winnicott, “esta penetração gradual do ambiente é o modo pelo
qual a criança pode chegar ao melhor acordo possível com o
mundo mais vasto e seguir, exatamente, o padrão de sua
apresentação à realidade externa pela mãe” (1980b, p. 56).
Desse modo, a criança, com a ajuda do ambiente, chega a
esse acordo nem que seja minimamente, caso algo da própria
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 276

constituição biológica da criança dificulte o processo. Mas, se a


criança não consegue se ajustar, no entender de Winnicott, existe
sempre “uma falha do ambiente a se ajustar às necessidades
absolutas do tempo da dependência relativa” e a falha da família
em reparar as falhas dos pais e, na sequência, a falha da
sociedade nesse mesmo sentido, uma vez que é responsabilidade
desta uma provisão à família, ou uma substituição ao papel desta
quando de sua falta (1990, p. 188). No Brasil, esta falha pode ser
pensada quando 27,1 pessoas em 100 mil habitantes são
assassinadas, e 5,1 cometem suicídio (Waiselfisz, 2013). No ano
de 2010, 4.465 mulheres foram assassinadas no Brasil,
preponderantemente na faixa de 15 a 29 anos, mas 274 mortes
foram de crianças e adolescentes entre 0 e 14 anos. Na última
década, o número de homicídios correspondeu à metade dos
últimos 30 anos: 43.654 mortes. Estes dados colocam o Brasil em
7º lugar no ranking mundial de homicídios de mulheres. Em
termos de violência doméstica, sexual e outras, foram registrados
70.285 casos contra a mulher e 37.213 contra o homem no
mesmo ano (Waiselfisz, 2012).
Ao estudarmos os pontos mais propensos à disfunção na
família, segundo o axioma em que toda comunicação é uma troca
de informações e uma definição do tipo de relação (Watzlawick,
Beavin, & Jackson, 1967), a comunicação pode ou não ser uma
confirmação da própria pessoa, do outro como parceiro relacional
e das regras da relação. Assim, no que se refere à comunicação,
é mais importante conhecer o padrão redundante ou repetido, do
que o conteúdo das mensagens propriamente dito (Alarcão,
2000).
Os desacordos relacionais podem estar no nível do
conteúdo, que são mais facilmente resolvidos. É um complicador
maior para a saúde mental do indivíduo, quando há uma rejeição
ou desconfirmação do outro, isto é, quando o problema da
comunicação está na definição da relação, em que um não
reconhece o outro. No caso da criança, se a mãe não conseguiu
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 277

estabelecer uma relação de apego seguro, como Bowlby (1958)


propõe, a mensagem é de desconfirmação do outro. A mãe tem
que atender as necessidades da criança, de forma que a
mensagem da mãe é de sua confirmação como ser humano
importante. Por extensão, a criança tenderá a acreditar que as
outras pessoas do mundo também a reconhecerão. O apego
seguro se estabelece por meio da comunicação mãe-filho e está
na base da autoestima (Nichols & Shcwartz, 2007).
O estabelecimento de limites e a afetividade estão na
base do estilo parental autoritativo. Neste estilo, a exigência e
responsividade são altas. Exigência se refere ao controle do
comportamento através do estabelecimento de metas e padrões
de conduta pelos pais (Teixeira et al., 2004). Responsividade se
relaciona com a capacidade dos pais de serem contingentes ao
atender as necessidades de seus filhos, dar apoio emocional,
afetividade, ter reciprocidade e comunicação clara (Darling &
Steinberg, 1993; Rinhel-Silva et al., 2012; Teixeira et al., 2004).
Assim, no estilo autoritativo, os pais impõem restrições,
mas favorecem o diálogo e a autonomia, e são responsivos (Hutz
& Bardagi, 2006). Crianças educadas no estilo autoritativo tendem
a ter maior auto-estima (Jackson, Pratt, Hunsberger, & Pancer,
2005), motivação, competência social e cognitiva e poucos
problemas com internalização e comportamento (Aunola, Sttatin,
& Nurmi, 2000; Lamborn, Mounts, Steinberg, & Dornbusch 1991;
Wolfradt, Hempel, & Miles, 2003), características que começaram
a ser conhecidas pelos estudos de estilos parentais na década de
1990. As disfunções podem aparecer também mediante

a falta de segurança física no ambiente, a presença de tráfico,


roubos, assaltos e assassinatos, aliada à escassez de recursos
financeiros das famílias e ao seu baixo nível de instrução [que]
limita suas oportunidades de desenvolvimento, afetando a
qualidade dos processos proximais estabelecidos entre seus
membros (Cecconello & Koller, 2003, p. 517).
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 278

Ainda segundo Cecconello e Koller (2003), o estresse


gerado nessas situações interfere na responsividade dos pais
para com os filhos. Da mesma forma, o baixo nível de instrução
dos pais interfere na capacidade deles transmitirem os
conhecimentos e as habilidades que os filhos precisam para
resolver problemas, uma vez que eles próprios não os têm
desenvolvidos.
Entretanto, na família em que há uma cooperação mútua
entre seus membros, o fato de ser o lar específico de uma pessoa
e, portanto, não lhe causar estranhamentos, permite a esta uma
liberdade interior de conhecer, experimentar e até apreciar
excitações inerentes a vários tipos de conflitos que ali surgem.
Segundo Winnicott, “é na família que podemos encontrar
tolerância em relação ao que parece deslealdade, mas que talvez
seja apenas uma parte do processo de crescimento” (1996a, p.
108).
Nos jogos familiares, viver tensões, ciúmes, amores,
ódios, lealdades e deslealdades, é perfeitamente saudável, uma
vez que a família fornece tolerância e exasperação, além de
oferecer os limites que permitem conter todos esses afetos. “A
unidade familiar é mais do que uma questão de conforto e
conveniência” (Winnicott, 1999b, p. 18). A criança, que não pode
viver experiências assim, encontrará dificuldades ao viver
experiências no mundo lá fora. Pode acontecer, por exemplo, que,
se ela perde um dos pais quando bem pequena e não tem
oportunidade de presenciar momentos estressantes de irritação e
ódio entre os adultos, que, logo depois, conseguem solucionar
seus problemas – encontrando novamente o amor e o carinho um
do outro –, pode idealizar relações, nas quais só existem amor,
carinho e cuidado. Segundo Winnicott, “num período de separa-
ção, registra-se uma considerável dose de idealização, e isso é
tanto mais verdadeiro quanto mais radical for o afastamento”
(1999c, p. 51). Com isso, ela poderá ficar tremendamente
angustiada diante de pequenos conflitos em suas próprias rela-
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 279

ções conjugais, no futuro, acreditando que o mínimo estresse


levará ao fim do relacionamento. Esse tipo de pessoa se torna
extremamente ansiosa, não concede tempo para que tudo se
resolva da melhor forma possível e acaba destruindo um relacio-
namento atrás do outro. De acordo com Winnicott,

na realidade do mundo em que as crianças talvez precisem


viver enquanto adultos, toda lealdade envolve alguma coisa de
natureza oposta, que poderia ser chamada de deslealdade, e a
criança que teve a oportunidade de alcançar todas essas
coisas durante seu crescimento está em melhores condições
de assumir um lugar neste mundo (1996a, p. 110).

Winnicott também confirma a importância da hierarquia de


papéis para o bom desenvolvimento da criança. Para os
adolescentes, em especial, a família tem papel essencial na
promoção da segurança necessária ao turbilhão de
acontecimentos desse período, uma vez que, além de
reaparecerem todas as excitações advindas dos medos de
experiências semelhantes às da infância, agora as excitações
advêm também das experiências libidinais próprias da
adolescência. A intensidade do amor e do ódio vividos aterroriza o
adolescente e, se a família persiste, ele “pode atuar sobre seus
pais”, desafiando-os, ao que os pais precisam confrontar sem
vinganças e retaliações (1996a, p. 109).
Entretanto, segundo Minuchin, Nichols e Lee (2009), a po-
sição hierárquica antes ocupada pelos pais tem se alterado e as
crianças têm sido “elevadas a um status tão exaltado que na famí-
lia atual, os pais orbitam em torno dos filhos como planetas giran-
do em torno do sol" (p. 33). A importância dada aos filhos, muitas
vezes em detrimento da relação conjugal e até mesmo do papel
dos pais, não é boa nem para os filhos, que sentem o peso da
responsabilidade pela vida dos pais, além das consequências
para o seu desenvolvimento. Para Winnicott (1996d), torna-se
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 280

necessário que a sociedade acolha a passagem do tempo e não


permita que as crianças e, principalmente, os adolescentes, quei-
mem etapas e adquiram uma falsa maturidade por meio da “trans-
ferência de responsabilidades que não são deles, ainda que eles
lutem por elas” (p. 126).
Winnicott ficava impressionado com a necessidade que o
adolescente tem da ampliação do círculo de pessoas para seus
cuidados e afirmava que “todos estes círculos cada vez maiores
representam o colo da mãe, seus braços e sua preocupação”
(1980c, p. 108). Dessa maneira, a vida em família é a base para
os grupos com os quais o adolescente vai ter a necessidade de
conviver. Torna-se essencial que a família continue existindo para
que o jovem possa rebelar-se contra ela, ou mesmo, utilizá-la
quando precisar se reassegurar. Segundo Winnicott, “a família
tem uma posição claramente definida no ponto em que a criança
em desenvolvimento defronta-se com as forças que atuam na
sociedade” (1980d, p. 9).
Em famílias saudáveis, efetivas, os pais são capazes de
lidar de forma equilibrada com os filhos. No entanto, parece que a
maioria das famílias não tem funcionamento adequado. Os pais
tendem a polarizar entre si, um assumindo posição extrema,
enquanto o outro tende a se retrair. Casais que têm conflitos
conjugais têm maior probabilidade de discordar a respeito da
criação dos filhos. Muitas vezes, estes conflitos levam à
proximidade de um dos pais com o filho e distanciamento do
cônjuge, situação conhecida como triangulação. O problema do
filho aproxima os pais pela preocupação ou faz com que eles
entrem em conflito sobre como lidar com o filho (Minuchin,
Nichols, & Lee, 2009).
O que parece ser consensual entre os autores trazidos
neste texto é que os pais não podem abdicar de suas
responsabilidades e, ao confrontar os filhos, darão a eles a
contenção que estes necessitam para se organizarem interna e
socialmente. O sentimento de “estar em família” faz com que, em
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 281

meio a desentendimentos entre a criança, o adolescente e os


adultos, todos sobrevivam. Caso contrário, “se a família não esti-
ver mais à disposição, nem que seja para ser posta de lado (uso
negativo), então é necessário prover pequenas unidades sociais
para conter o processo de crescimento do adolescente” (Win-
nicott, 1996d, p. 123).

A família na atenção básica

No tocante à responsabilidade social de provisão à


família, particularmente no desenvolvimento de atividades de
promoção, proteção e recuperação da saúde, a Estratégia de
Saúde da Família (ESF), proposta pelo Governo Federal para
reorganizar a forma de atenção à saúde, tem sido desenvolvida
por equipes multiprofissionais nas Unidades Básicas de Saúde
(UBS) e nas Unidades Matriciais de Saúde (UMS) (Figueiredo,
2006). Junto às ESF, a equipe da Residência Integrada
Multiprofissional em Saúde (RIMS) da Universidade Federal do
Triângulo Mineiro (UFTM) tem se apresentado visando à atenção
básica aos usuários do sistema, que residem na zona de
abrangência pactuada pela UFTM com a Secretaria Municipal de
Saúde de Uberaba-MG. A referência à atenção básica abarca o
“conjunto de ações de caráter individual ou coletivo, situadas no
primeiro nível de atenção do sistema de saúde e voltadas para a
promoção da saúde, a prevenção dos agravos, o tratamento e a
reabilitação” (Zoboli & Fortes, 2004, p. 1690).
Assim, pensando nas famílias que as equipes da ESF têm
encontrado nessas unidades, os desafios aparecem de imediato
não pelas novas configurações familiares que os tempos pós-
modernos fizeram surgir, mas, exatamente pela disfunção nessas
famílias, que acabam servindo de base para as doenças e
comportamentos antissociais. Isso porque, nessas famílias,
costuma-se encontrar “um funcionamento patológico com relação
à comunicação, estabelecimento de regras e limites, e falta de
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 282

afeto” (Guimarães, Hochgraf, Brasiliano, & Ingberman, 2009, p.


71).
Asen, Tomson, Young e Tomson (2012) propõem que,
nos trabalhos em atenção básica, é preciso utilizar pelo menos
dez minutos para se trabalhar com a família. Conversar com
todos os membros da família, ou com os membros disponíveis,
trará para o caso uma nova perspectiva ao observar as interações
familiares in loco e conhecer o ponto de vista dos outros
familiares. Segundo os autores, trabalhar com todo o sistema
familiar é como ter uma série de lentes fotográficas, que dá a
possibilidade de visualizar a situação de diferentes ângulos. A
presença da família esclarece o contexto em que o sintoma está
ocorrendo. Ainda, Asen et al. (2012) referem que se deve buscar o
entendimento das relações que as pessoas possuem dentro dos
diferentes contextos, principalmente o familiar, além da relação
dos sintomas com as experiências, crenças e histórias da família.
O foco está na interação interpessoal concreta, mais do que na
intrapessoal, que, por outro lado, não deve ser menosprezada.
Quando se observam pessoas com a “síndrome do
prontuário gordo” (O’Dowd, 1988), ou seja, pessoas que vêm
repetidamente à unidade de saúde, com o mesmo ou diversos
problemas não solucionados, e crianças que são continuamente
apresentadas como “o problema” da família, verifica-se a
necessidade de realizar uma abordagem ampliada: conversar com
todos os membros da família ou mesmo com o casal.
Especialmente em relação às crianças e filhos mais jovens, a
relação conjugal de seus pais ou a relação parental pode ser a
origem de muitos de seus males. Contudo, torna-se importante
deixar claro que isso deve ser feito sem perder o foco de que não
só a família imediata (pais e filhos), mas também a família extensa
(tios, primos, avós, etc.) têm influência na vida de cada um,
ressaltando-se a transgeracionalidade.
Muitas vezes, a própria pessoa aponta a dimensão
interpessoal de seus problemas. Mas, por outro lado, ela pode
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 283

ignorar por completo a interpessoalidade de suas dificuldades. A


família de origem pode influenciar a todos por meio de suas
crenças, mitos, regras, implícitas ou explícitas, entre outras.
Segundo Framo (2002), as dificuldades atuais das pessoas, do
casal ou dos pais, são tentativas de reparar ou defender-se de
problemas relacionais na família de origem. A maioria das
pessoas vê os filhos, não pelo que são, mas como representantes
familiares do passado.
É importante trabalhar em colaboração com a família, seja
no tratamento, seja na promoção à saúde e prevenção de
doenças. É na transição das etapas do ciclo de vida das famílias
que mais frequentemente aparecem dificuldades, que se tornam
problemas (Carter & McGoldrick, 1989). Assim, o conhecimento
pelo profissional das etapas do ciclo de vida das famílias é muito
importante para que ele possa entender quais as tarefas de
desenvolvimento que a família tem naquele momento e se ela
está sendo capaz de cumpri-las. Este conhecimento deve
subsidiar ações de prevenção de problemas com a família, assim
como ações terapêuticas para as dificuldades que já estão
ocorrendo.
Outra ferramenta produzida para o trabalho com famílias
que tem se destacado é o Genograma ou Genetograma, que tem
sido utilizado pelas equipes de saúde da família, nas unidades de
atenção básica. É uma ferramenta diagnóstica, mas que pode ser
também terapêutica, que possibilita a identificação dos membros
da família e a relação entre eles em um período de pelo menos
três gerações, de forma gráfica, possibilitando uma rápida Gestalt
dos padrões familiares. O genograma é uma fonte rica de
hipóteses sobre como os problemas clínicos se desenvolvem na
família ao longo do tempo (McGoldrick, Gerson, & Petry, 2012).
As oportunidades que os residentes tiveram de utilizar o
genograma confirmaram os achados da pesquisa de Athayde e Gil
(2005), tanto no que se refere aos pontos positivos de sua aplica-
ção, quanto no tocante às dificuldades para esta. Segundo esses
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 284

pesquisadores, o uso do genograma melhora a compreensão da


situação da família, visualizando mais claramente todo o contexto
familiar. Além disso, na anamnese, obtém informações sobre da-
tas e patologias hereditárias, auxiliando principalmente no caso de
patologias múltiplas. As maiores dificuldades apontadas para a
aplicação desse instrumento foram: a brevidade do tempo desti-
nado às consultas, principalmente, em razão do elevado número
destas; a falta de estrutura física nas UBS que impedem o sigilo
aos pacientes; a não informatização nos serviços; entre outras. Da
parte dos usuários, foi notada a dificuldade de se lembrarem de
muitos dados e informações de suas histórias de vida, como tam-
bém de suas situações familiares. Já para os pesquisadores Pe-
reira, Teixeira, Bressan e Martini (2009), o genograma acaba se
restringindo ao uso acadêmico, uma vez que, para o trabalho das
equipes de saúde da família, esse instrumento despende muito
tempo para sua construção adequada, “para sua análise e atua-
ção frente às exigências de cuidados encontradas, e ainda para
sua atualização, visto que é o retrato de um momento do ciclo vital
da família, e desta forma, sofre modificações ao longo do proces-
so de viver humano” (p. 411).
Mas, em nossa experiência, quando o genograma é
realizado nas visitas domiciliares pelos agentes comunitários e
residentes multiprofissionais da UFTM, a oportunidade de
realizá-lo tem sido mais frutífera. Um desses frutos é a discussão
sobre as famílias, a partir do genograma, que é realizada na
reunião de Educação Continuada da equipe. Nesta reunião, os
dados colhidos junto à família são acrescidos pelo conhecimento
que outros membros da equipe de ESF têm sobre a mesma. Isto
ocorre principalmente por parte dos Agentes Comunitários de
Saúde (ACS), que mais frequentemente residem na área de
abrangência da unidade de saúde e têm a possibilidade de
conhecerem mais de perto as famílias da comunidade. No
momento da discussão, participam o maior número de membros
da equipe e dos integrantes da residência multiprofissional e a
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 285

busca por elementos, que possam levar a uma maior compreen-


são da situação daquela família e a indicação de possíveis
estratégias de enfrentamento de seus problemas, se intensificam.
A partir da reunião, os profissionais, que estavam em contato com
a família, retornam a ela para discutir possibilidades de enfrentar
suas dificuldades.
Se a ESF é recente, mais novas ainda são as estratégias
e ferramentas para lidar com os problemas que aparecem. Assim
é o genograma, uma ferramenta utilizada há pouco tempo e que
muitos ainda não conseguiram incorporá-la de forma a ser um
facilitador e não um complicador. Ao ser incluído na prática
rotineira, os aplicadores passarão a ter um domínio sobre essa
ferramenta para aproveitá-la bem.
Em relação à adesão das famílias às atividades propostas
pelos residentes em conjunto com as ESF, entendemos que há
ainda muito trabalho a ser feito. A percepção da participação de
todos os membros da família na constituição tanto da saúde
quanto da doença é ainda incipiente em muitos casos. Entender
que se pode atingir um equilíbrio mesmo em meio à doença é
difícil e a mudança parece ser mais ameaçadora. Entender que
mesmo o bom potencial hereditário necessita de um ambiente
facilitador das tendências presentes nesse potencial para bem se
desenvolver traz responsabilidades que nem sempre as pessoas
querem assumir.
Dessa maneira, estudos como o de Ronzani e Silva
(2008) apontam que os usuários dificilmente participam de
atividades propostas que não sejam atividades de assistência
médica, justificando essa não participação por elas não
corresponderem às suas necessidades. A visão medicalizante dos
problemas de saúde ainda é muito presente entre os usuários e é
um obstáculo difícil de ser vencido, uma vez que os próprios
membros da ESF parecem ter dificuldades de se convencerem
disso, diante da dificuldade de encontrar estratégias que mudem o
funcionamento produtor e mantenedor das doenças.
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 286

Assim, o entendimento sistêmico das relações


interpessoais não se restringe ao trabalho com as famílias
atendidas pelas ESF, mas também pode ser utilizado para
trabalhar as relações dentro das próprias equipes que atuam na
atenção básica. Qualquer grupo de pessoas, em contínua
interação, pode ter dificuldades que seriam melhor solucionadas
em conjunto. Metaforicamente, os passos da dança que as
pessoas realizam em seus contextos podem estar em
desarmonia. O profissional, ao fazer contato com o grupo em
questão, pode identificar quais passos poderiam ser modificados,
a fim de que a dança possa se tornar harmônica.
A RIMS tem trabalhado neste sentido. Apesar de também
pertencerem à equipe, os residentes, em razão da origem de sua
inserção nesta e por terem um tempo de permanência pré-
determinado nela, são sentidos mais como colaboradores
externos, ou seja, tendo uma natureza diferente de seus colegas
de equipe e, sendo assim, em algumas unidades, têm sido
chamados pelos ACS para um trabalho que os auxiliem a lidar
melhor com os enfrentamentos diários no trabalho junto à
comunidade. Até o momento, nessas experiências, foram
trabalhadas as relações com os usuários durante alguns
encontros, mas também intraequipe, uma vez que estas relações
acabam sendo afetadas pelo fato de os ACS se sentirem
sobrecarregados com as demandas das famílias da comunidade
tanto no período do trabalho como fora deste período.

Considerações Finais

Na atenção básica e em outros settings, trabalhar com a


família é desafiante. O modo de funcionar de uma família, em
homeostase há muito tempo, tende a minar as tentativas de
mudanças que uma equipe Estratégia Saúde da Família busca
produzir. Como exposto no desenvolvimento deste capítulo, as
dificuldades aparecem a partir da relação entre as pessoas, daí a
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 287

importância de os profissionais conhecerem não só o paciente


identificado pela família, mas todos os membros conviventes em
uma moradia, além da história da família extensa: irmãos, tios,
primos, avós, entre outros que se tenha acesso. Na Residência
Integrada Multiprofissional em Saúde, a oportunidade de receber
graduados em diferentes universidades, identificados com aportes
teóricos diversos, bem como contar com tutores e preceptores
também com diferentes perspectivas teóricas enriquece a
formação tanto prática quanto teórica, a partir das estratégias
empreendidas com a população.
A discussão aqui realizada mostra um duplo movimento.
De um lado, como uma teoria psicanalítica, que considera as
questões ambientais também relevantes ao nos apontar a
importância de cuidados efetivos, bem como do modo e do tempo
em que são realizados esses cuidados pelos pais, familiares e
sociedade para o amadurecimento emocional do indivíduo. De
outro lado, a teoria sistêmica, que se preocupa com a forma como
ocorre a comunicação entre as pessoas dentro de um sistema
(ambiente), como elas se estabelecem com suas regras e limites
e, sendo assim, como elas se afetam mutuamente. Esses dois
movimentos não são isolados, mas integrados, de modo que se
faz necessário encontrar os pontos complementares e
consensuais entre tais abordagens, que nos permitem enfrentar
os desafios surgidos no trabalho junto aos vários arranjos
familiares.
Entre os pontos complementares podemos destacar, na
teoria do amadurecimento, as questões inconscientes da
ambivalência presente nos sentimentos e ações, às vezes
inconscientes, dos membros de uma família e da equipe, como
lealdade e deslealdade, proteção e desproteção, amor e ódio.
Essa teoria traz a importância de se sobreviver sem retaliações ou
vinganças às inúmeras tentativas frustradas de cuidado que
podem ser realizadas tanto pelos familiares como pelos membros
de uma equipe ESF e residentes. Um exemplo de não retaliação é
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 288

permanecer atento e presente junto a um usuário que insiste em


não atender ao que é necessário para o alcance e manutenção de
sua saúde. Nos casos em que essa sobrevivência não ocorre,
percebe-se o afastamento dos membros das equipes, que passam
a colocar empecilhos às visitas domiciliares ou outras ações, para
justificar o distanciamento que se efetiva.
Na teoria sistêmica, a identificação de padrões de
funcionamento e as estratégias interventivas de alteração desses
padrões complementam o enfrentamento do desafio que existe
não só pela diversidade de seus arranjos familiares, mas também
pela complexidade de suas relações; pela intersubjetividade na
relação profissional-família; pela homeostase familiar que dificulta
a mudança; pela falta de conhecimento destes processos pelos
profissionais; pela falta de habilidade técnica dos profissionais,
especialmente os não psi; pela falta de habilidade instrumental do
profissional, por exemplo, com o genograma e, ainda, pelas
próprias dificuldades de apego e diferenciação que o próprio
profissional pode ter.
Assim, em termos consensuais, temos a visão de que o
que se apresenta para ser cuidado pela ESF e a RIMS tem como
origem as relações que se estabelecem nas famílias. Ambos os
conhecimentos são importantes no trabalho na ESF, uma vez que
este exige intervenções que contem com a colaboração da família,
o que envolve também saber lidar com os afetos e sentimentos
advindos de fantasias, ou da ambivalência inerente ao
amadurecimento do indivíduo. Além disso, ambas as teorias
comungam o saber de que os pais e/ou outros cuidadores não
podem abdicar de suas responsabilidades e de dar aos filhos a
contenção que estes necessitam para se organizarem pessoal e
internamente, para o alcance da saúde e de sua parte de
contribuição social.
A atenção básica priorizou o trabalho em Estratégia
Saúde da Família. O foco principal não é o indivíduo, mas a
família, que, se por um lado se constitui de indivíduos, por outro,
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 289

estes dependem dela para sua integração individual e saúde


psicossomática. Entendemos que a atuação com as famílias na
atenção básica está só começando, assim como é nova a
inserção da RIMS neste contexto. E as teorias, tanto sistêmicas
quanto do amadurecimento, estão apontando questões a serem
pensadas e caminhos a serem doravante trabalhados.

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Sobre os Autores

Adriana da Silva Sena é psicóloga pela Faculdade de


Tecnologia e Ciências de Jequié, na Bahia. Especialista em Neu-
ropsicologia pela mesma instituição.

Ana Mafalda Guedes C. C. Vassalo Azôr é psicóloga


pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas e mestre em
Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia. Atua como
consultora de instituição de acolhimento e é professora do curso
de Psicologia da Universidade de Uberaba.

André Tuma Delbim Ferreira é bacharel em Direito


pela Universidade de São Paulo e atua como promotor de Justiça
do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Titular da
Promotoria de Defesa da Infância e Juventude da Comarca de
Uberaba (MG). Coordenador Regional das Promotorias de
Infância, Juventude e Educação do Triângulo Mineiro. Membro da
Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e
Defensores Públicos da Infância e Adolescência – ABMP.

Carmen Lúcia Cardoso é psicóloga pela Universidade


de São Paulo, mestre em Saúde Mental pela Faculdade de
Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo e
doutora em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
Professora Associada do Departamento de Psicologia da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da
Universidade de São Paulo. Pesquisadora do Centro de Pesquisa
em Psicodiagnóstico (FFCLRP-USP/CNPq).
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 294

Carolina Martins Pereira Alves é psicóloga pela


Universidade Federal do Triângulo Mineiro.

Cibele Alves Chapadeiro é psicóloga, mestre e doutora


em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Professora Asso-
ciada do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do
Triângulo Mineiro. Pesquisadora do HUBRIS – Laboratório de
Estudos e Pesquisa em Sexualidade e Violência de Gênero
(UFTM-CNPq).

Conceição Aparecida Serralha é psicóloga pela


Universidade Federal de Uberlândia, mestre e doutora em
Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Professora adjunta do Departamento de Psicologia da
Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Coordenadora do
GEPPSE – Grupo de Estudo e Pesquisa em Psicanálise da
Universidade Federal do Triângulo Mineiro (CNPq).

Deise Coelho de Souza é psicóloga pela Universidade


Federal do Triângulo Mineiro e aluna do Programa de Residên-
cia Integrada Multiprofissional em Saúde da mesma instituição.

Eliane Gonçalves Cordeiro é psicóloga pela Pontifícia


Universidade Católica de São Paulo e mestre em Educação pela
Universidade de Uberaba. Professora do curso de Psicologia da
Universidade de Uberaba.

Fabio Scorsolini-Comin (Organizador) é psicólogo,


mestre e doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo.
Pós-doutorado em Psicologia pela Universidade de São Paulo.
Professor adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade
Federal do Triângulo Mineiro. Coordenador do PROSA – Labora-
tório de Investigações sobre Práticas Dialógicas e Relacionamen-
tos Interpessoais (UFTM/CNPq) e pesquisador do LEPPS – Labo-
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ratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde da Univer-


sidade de São Paulo (FFCLRP-USP/CNPq).

Giancarlo Spizzirri é psiquiatra pela Faculdade de


Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho”. Mestre e doutorando em Ciências da Saúde pelo
Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade
de São Paulo. Médico do Programa de Estudos em Sexualidade
(ProSex) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da
Faculdade de Medicina da USP e do grupo multidisciplinar de
atendimentos aos portadores de Transtornos de Identidade de
Gênero desta instituição. Professor do Curso de Especialização
em Sexualidade Humana da USP.

Helena de Ornellas Sivieri Pereira é mestre em Psico-


logia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas e doutora
em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Professora adjun-
ta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do
Triângulo Mineiro e do Programa de Pós-graduação em Educação
da mesma instituição.

Izabella Lenza Crema é graduanda em Psicologia pela


Universidade Federal do Triângulo Mineiro.

Joana Borges Ferreira é psicóloga pela Universidade


Federal do Triângulo Mineiro.

Juliana D’André Montandon é psicóloga pela


Universidade Federal do Triângulo Mineiro.

Karin A. Casarini é psicóloga pela Universidade Federal


de São Carlos, mestre e doutora em Psicologia pela Universidade
de São Paulo. Professora adjunta do Departamento de Psicologia
da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Pesquisadora do
P r á t i c a s e m P s i c o l o g i a | 296

PROSA – Laboratório de Investigações sobre Práticas Dialógicas


e Relacionamentos Interpessoais (UFTM/CNPq).

Laura Vilela e Souza (Organizadora) é psicóloga, mes-


tre e doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Pro-
fessora adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade
Federal do Triângulo Mineiro. Coordenadora do PROSA – Labo-
ratório de Investigações sobre Práticas Dialógicas e Relaciona-
mentos Interpessoais (UFTM/CNPq).

Luciana Maria da Silva é psicóloga, mestre e doutora


em Psicobiologia pela Universidade de São Paulo. Professora
adjunta do Departamento de Medicina Social da Universidade
Federal do Triângulo Mineiro.

Mariana Tolêdo Fuzaro é graduanda em Psicologia pe-


la Universidade Federal do Triângulo Mineiro.

Marianna Ramos e Oliveira é graduanda em Psicologia


pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro.

Marta Regina Farinelli é assistente social, mestre e


doutora em Serviço Social pela Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho”. Professora adjunta do Departamento de
Serviço Social da Universidade Federal do Triângulo Mineiro.

Martha Franco Diniz Hueb é mestre em Psicologia pela


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e doutora em
Saúde Mental pela Universidade de São Paulo. Professora
adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal
do Triângulo Mineiro. Pesquisadora do GEPPSE – Grupo de
Estudo e Pesquisa em Psicanálise da Universidade Federal do
Triângulo Mineiro (CNPq).
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Nathalia Beatriz Fontes Silva é graduanda em


Psicologia pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro.

Neftali Beatriz Centurion é graduanda em Psicologia


pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro.

Rafael De Tilio é psicólogo, mestre e doutor em


Psicologia pela Universidade de São Paulo. Professor adjunto do
Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo
Mineiro. Coordenador do HUBRIS – Laboratório de Estudos e
Pesquisa em Sexualidade e Violência de Gênero (UFTM-CNPq).

Renata Lemos Crisóstomo é graduanda em Psicologia


pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro.

Roberta Noronha Azevedo é psicóloga pela Faculdade


de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade
de São Paulo e especialista em Sexualidade Humana pela Facul-
dade de Medicina da Universidade de São Paulo. Psicóloga do
CREAS (Centro de Referência Especializado da Assistência
Social) do município de Orlândia, Estado de São Paulo.

Roberta Rodrigues de Almeida é psicóloga pela


Universidade Federal do Triângulo Mineiro.

Sabrina Martins Barroso (Organizadora) é psicóloga


pela Universidade Federal de São João del Rei, mestre em
Psicologia e doutora em Saúde Pública pela Universidade
Federal de Minas Gerais. Professora adjunta do Departamento de
Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Coor-
denadora do Laboratório de Avaliação das Diferenças Individuais
(LADI-UFTM-CNPq).
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Tales Vilela Santeiro é psicólogo pela Universidade de


Franca, mestre e doutor em Psicologia pela Pontifícia
Universidade Católica de Campinas. Professor adjunto do curso
de Psicologia da Universidade Federal de Goiás, campus Jataí.

Tamara Rodrigues Lima Zanuzzi é psicóloga pela


Universidade Federal de Goiás, campus Jataí.

Wanderlei Abadio de Oliveira é psicólogo pela


Universidade de Uberaba e doutorando no Programa de
Enfermagem em Saúde Pública da Escola de Enfermagem de
Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Membro do Grupo
de Estudos, Ensino e Pesquisa do Programa de Atenção Primária
de Saúde do Escolar (PROASE) da EERP-USP.
S a ú d e , F a m í l i a e C o m u n i d a d e | 299

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