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5. CONCLUSÃO

Nesta parte final, gostaríamos de retomar nossas hipóteses fundamentais e desenvol-

ver algumas considerações ímplicitas nos argumentos dos capítulos anteriores do presente

trabalho; nossa intenção, ao aprofundá-las aqui separadamente, é de frisar a importância das

mesmas, que poderia ser diminuída em meio ao corpo de reflexões apresentado.

No nosso estudo, assumimos como eixo de nossas reflexões a noção de uma atuação

complementar nas imagens estéticas dos conceitos oriundos do pensamento estruturalista

modernoda de função estética e de princípio de equivalência: a função estética explica as

características fundamentais de autonomia e totalização encontravéis nas imagens estéticas

como decorrentes do próprio processo constituivo dessas últimas, regido por um movimento

autotélico; já o princípio de equivalência procura dar conta de uma maneira relativamente

satisfatória da natureza da articulação semântica de diversas imagens estéticas, postulando

as relações associativas que conectam os elementos referenciais dessas últimas como prede-

terminadas em uma instância anterior, em um paradigma regido por equivalências de signifi-

cado, o qual seria, por sua vez, projetado parcialmente na constituição das obras.
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Procuramos destacar então aquelas entre essas relações associativas que pudessem

ser consideradas com mais propriedade estruturais, uma vez que elas nunca são meramente

o resultado de uma constatação de vínculos existentes no real, mas sim derivadas do proces-

so de conceitualização humano, estando a meio caminho entre o espírito e as coisas, entre a

construção intelectual e a verificação empírica. Por isso não nos detivemos na discussão de

algumas relações associativas importantes, freqüentes nas imagens estéticas: é o caso, por

exemplo, da relação de coordenação, derivada da contigüidade entre os elementos referenciais

verificável no real, relação em função da qual diversas obras estão organizadas (é o caso, por

exemplo, daquelas ditas “realistas”). É importante lembrar, todavia, que essa aparente

desconsideração da instância semântica da forma não é casual; o que é comum ocorrer nes-

sas imagens, que são aparentemente função do real, é uma tendência deliberada à neutralização

do significado, no intuito de uma problematização privilegiada de questões mais ligadas a

visualidade (não é por acaso que o Impressionismo é muitas vezes citado como um movi-

mento percursor das tendências “abstratas” mais modernas).

Entretanto, a articulação semântica de diversas outras imagens estéticas não pode ser

satisfatoriamente explicada como atualizações exclusivas de relações de coordenação, como

cremos ter evidenciado no presente estudo; se estas obras não podem ser entendidas como

“representações da realidade”, tampouco seria correto entendê-las como expressões subjeti-

vas de seus autores, como se as mesmas obedecessem a caprichos de ordem pessoal. Parece

existir uma lógica subjacente que torna plausível a reunião dos elementos dessa obras e um

de nossos esforços nos capítulos anteriores foi justamente demonstrar que tal lógica embasa-

se na própria visão de mundo do ser humano.

Procuramos destacar então as relações estruturadoras dessa visão de mundo (simila-

ridade, oposição, hiponímia e relações metonímicas); vimos também que elas contribuem

por sua vez para instaurar as características de totalização e autonomia verificáveis nas ima-
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gens estéticas. Assim, por exemplo, a similaridade (atualizando vários possíveis de um mes-

mo conceito) e os diversos tipos de oposição (induzindo a totalidade de eixos semânticos)

contribuem para instaurar uma relativa totalidade conceitual nas obras; já as relações

metonímicas (na medida que tornam patentes os desvios referenciais dos quais são o resulta-

do) contribuem para evidenciar “o lado pálpavel do signo”, como diz Jakobson, i. é, a natu-

reza autônoma das imagens estéticas, cuja lógica constitutiva não se deve prioritariamente à

nenhum fator externo, mas sim fundamentalmente ao seu próprio movimento autotélico de

constituição.

Obviamente, por suas próprias limitações, o presente estudo não poderia esgotar a

discussão a respeito da variedade de procedimentos compositivos que regem a articulação do

siginificado referencial nas imagens estéticas; nesse sentido, poderíamos mesmo dizer que

nosso trabalho desempenha um papel apenas introdutório. Em diversas das imagens mais

semanticamente interessantes e evocativas atuam uma complexidade de procedimentos que

não podem ser explicados satisfatoriamente com o recurso exclusivo às relações associativas

que estudamos. Todavia, cremos que estas últimas, bem como algumas outras noções que

apresentamos no decorrer do presente trabalho(1), são fundamentais e podem servir como

ponto de partida para o entendimento dessas imagens semanticamente mais complexas, um

trabalho que deve ser levado a cabo em posteriores pesquisas.

Um último ponto que gostaríamos de destacar é que o vículo entre o sistema conceitual

humano e as imagens estéticas não deve ser compreendido como uma via de mão única: tais

imagens - e a arte de um modo geral - também atuam dialeticamente sobre a visão de mundo

humana como constituidoras dessa última. A esse respeito, Mukarovsky faz a seguinte de-

claração, que julgamos importante reproduzir:


_______________
(1)
é o caso, por exemplo, da noção do significado referencial como divisível em componentes semânticos mais
elementares, que é de grande valia para a compreensão das metáforas de caráter visual.
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em geral, os valores contidos em uma obra de arte são um pouco diferentes


[...] da composição de valores válida para a colectividade. Produz-se por-
tanto, uma tensão mútua, e nela consiste a própria acção da arte. O movi-
mento livre do conjunto de valores que regem a prática da vida de uma
colectividade é limitado pela necessidade permanente da aplicação prática
desses valores; [...] em troca, os valores de uma obra de arte - cada um dos
quais está por si próprio fora da obrigatoriedade actual, sem que o conjun-
to, todavia, careça de validez em potência - podem deslocar-se e reformar-
se sem problemas, podem cristalizar experimentalmente em novas combi-
nações que dissolvem as antigas, podem adaptar-se à evolução da situação
social e aos novos aspectos da realidade concreta ou pelo menos procurar
as possibilidades de tal adaptação.(2)

Nessa passagem, ao evidenciar as manifestações de natureza estética como um lugar

privilegiado da combinatória experimental dos valores sociais, da reorganização dos ele-

mentos que compõem o sistema conceitual, Mukarovsky explicita aquilo que julgamos ser o

objetivo fundamental da arte, i. é, “reger e renovar a relação entre o homem e a realidade,

entendida esta como objecto do comportamento humano”(3). Como vimos, a função estética,

apenas um componente da estrutura mais complexa das obras, é todavia um componente que

transforma os outros elementos e determina o comportamento do conjunto; assim como a

função estética organiza e dirige a obra estética individual, “esta, por sua vez, não sobressai

no conjunto dos valores sociais, não prevalece sobre os demais, mas nem por isso deixa de

ser a fundamental organizadora de sua ideologia”(4); é portanto a arte que “nos protege con-

tra a automatização, contra a ferrugem que ameaça a nossa fórmula do amor e do ódio, da

revolta e da reconciliação, da fé e da negação”(5).

É também sob este ponto de vista que, ao nosso ver, a obra de Guttmann Bicho

deveria ser reconsiderada já que ela, graças à sua consequência formal e à originalidade de

_______________
(2)
MUKAROVSKY, 1997, p.84; ver também a esse respeito o artigo “A Obra estética com Conjunto de Valores”
(id., ibd., pp.169-196)
(3)
id., ibid., p.88.
(4)
JAKOBSON, 1978, p.177.
(5)
id., ibid., p.177.
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algumas de suas soluções(6), pode ter ainda a sua relevância atualizada. Em um sentido restri-

to, as pinturas de Guttmann Bicho apresentam interesse para todos aqueles que encontram-se

diretamente envolvidos com a produção e com a compreensão das imagens estéticas; nesse

mesmo sentido, devemos lembrar que o campo de ação dessas últimas transcende em muito

o das artes da pintura e da gravura, que são normalmente reconhecidas como a sua área de

atuação privilegiada: a imagem estética - e o pensamento visual nela implicado - encontra

aplicações em atividades diversas como a ilustração artística ou científica e (em especial

através do desenho) em diversas outras artes como a escultura, a arquitetura, a cenografia,

etc.

De um modo mais amplo (e isso é talvez ainda mais importante), na medida em que

evidencia-se como um fenômeno estético de primeira ordem, como um exemplo daquela

reorganização ativa e criadora da realidade que acima citamos, a obra de Guttmann Bicho

atua como organizadora e renovadora da nossa própria atitude diante do mundo (bastaria

aqui lembrar como ela eleva à dignidade da apreciação os temas mais prosaicos). De todas

essas particularidades, ao nosso ver, resulta a verdadeira importância do legado de Guttman

Bicho e a necessidade de que continuemos estudando-o com a devida atenção.

_______________
(6)
é o caso de sínteses estilísticas encontradas, por exemplo, no Panneau Decorativo, onde ao lado de procedi-
mentos pontilhistas, convivem aspectos compositivos derivados diretamente da antigüidade e um tema mais
próximo das tendências realistas.

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