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Encontro A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO NO CONTEXTO

Revista de Psicologia
ESCOLAR: DAS QUESTÕES INDIVIDUAIS ÀS
Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010
PROPOSTAS COLETIVAS
The work of the psychologist in the school context: the
individual issues to collective proposals

Daniela Altoé
Fundação Hermínio Ometto - Uniararas
dani.altoe@bol.com.br
RESUMO

Salete Moreno Marques O presente artigo objetiva relatar uma experiência de estágio na área de
Psicologia e Educação realizada com alunos do ensino fundamental de
Fundação Hermínio Ometto - Uniararas
uma escola estadual de uma cidade do interior paulista. A experiência
falecomsalete@hotmail.com
de estágio se baseou no modelo teórico denominado bioecológico que é
uma proposta de compreensão do desenvolvimento humano segundo a
perspectiva de seu principal expoente: Bronfenbrenner. Ao invés de
Raquel Pondian Tizzei relatarmos toda a experiência de estágio, optamos por um recorte de
Fundação Hermínio Ometto - Uniararas um caso específico vivenciado. Através do acompanhamento de um
tizzuca@hotmail.com aluno que, podemos considerar ter sido terapêutico, propomos a
reflexão sobre a possibilidade de atuação do psicólogo no coletivo, sem
negligenciar aspectos de natureza mais afetiva e pessoal da criança
neste contexto. Este trabalho trouxe como resultados o reconhecimento
da limitação da atuação do psicólogo na escola e junto à rede de apoio
educacional ainda que tenha trazido a possibilidade de melhor
integração do aluno na escola.

Palavras-Chave: psicologia educacional; desenvolvimento humano; prática da


psicologia.

ABSTRACT

This article is to report an experience in Psychology graduation and


Education area held on elementary public school in SP. The experience
was based on the theoretical model called bioecological, which is a
proposal for understanding human development from the perspective
of its main exponents: Bronfenbrenner. Instead of reporting the whole
experience of this school’s student, we opted for a cut of a particular
case lived. Through the monitoring of a student, that can be considered
therapeutic, we propose a reflection on the possibility of the
psychologist collective work, not neglecting most aspects of the
emotional and personal nature of the child in this context, though. This
work has brought as results the recognition of the limitation of the role
of the psychologist in school and with the educational support
Anhanguera Educacional Ltda. institutions; nevertheless it has also brought the possibility of a better
integration of the student in school.
Correspondência/Contato
Alameda Maria Tereza, 2000
Valinhos, São Paulo Keywords: psychology educational; human development; practice psychology.
CEP 13.278-181
rc.ipade@aesapar.com
Coordenação
Instituto de Pesquisas Aplicadas e
Desenvolvimento Educacional - IPADE
Artigo Original
Recebido em: 20/5/2010
Avaliado em: 28/3/2011
Publicação: 10 de agosto de 2011 83
84 A atuação do psicólogo no contexto escolar: das questões individuais às propostas coletivas

1. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL DO PSICOLOGO ESCOLAR

Diversas têm sido as publicações acerca de práticas realizadas por psicólogos da educação
e que envolvem formas bastante diferenciadas tanto de realização dessas práticas quanto
ao modelo teórico que as respaldam. As discussões realizadas no Congresso Nacional de
Psicologia Escolar e Educacional (CONPE) em São Paulo no ano de 2009 apontaram que
esta área vem buscando perspectivas que superem modelos tradicionais de compreender
o contexto educacional e tem buscado formas de aproximação da instituição educacional
coerentes com concepções teóricas de homem e de mundo que considerem a escolarização
um bem universal e um direito a ser efetivado com qualidade (SOUZA, 2009).

Este relato apresentado a seguir parte de um contexto tradicional de atuação do


psicólogo escolar – uma escola pública estadual de ensino médio – mas que, no entanto,
por meio do contato com alunos em sala de aula, possibilitou o acompanhamento mais
especificamente de um estudante e de sua família e que exigiu do serviço de psicologia
oferecido em forma de estágio na escola, grande diversidade em suas práticas: visitas
domiciliares, conversas na praça em frente à escola, passeios de ônibus, denuncias ao
Conselho Tutelar além das atividades dentro da própria escola. Tudo isso ocorreu para
possibilitar o acompanhamento do desenvolvimento deste estudante e sua família e a
nossa tentativa enquanto profissionais de cuidar de seu desenvolvimento.

Conforme aponta Cecconello e Koller (2003) um dos modelos teóricos que estão
contribuindo para compreensão do desenvolvimento de indivíduos e a interação entre
seus contextos de desenvolvimento, é a proposta de Urie Bronfembrenner (1996)
denominada abordagem bioecológica do desenvolvimento. Este modelo propõe que o
desenvolvimento seja estudado através da interação entre os diferentes contextos de
desenvolvimento do sujeito e as autoras apontam a carência de publicações na área que
envolva o trabalho de um profissional comprometido com a busca da compreensão dessa
dinâmica entre os contextos de desenvolvimento.

Assim, entendemos que este artigo possa colaborar em parte para que uma
articulação dessa teoria a partir de uma intervenção na escola possa acontecer e contribuir
para a construção do conhecimento científico. Para isso, descreveremos brevemente
alguns pressupostos dessa teoria e dados acerca da realidade educacional citada para que
o leitor possa acompanhar nossa proposta de reflexão.

Além disso, dentre tantos modelos teóricos, o modelo bioecológico de


desenvolvimento humano tem influenciado muitos estudos acerca do tema (POLLETO;
KOLLER, 2008; KOLLER, 2004; DESSEN; COSTA JR., 2005; LORDELO; CARVALHO;

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KOLLER, 2004), isso devido o seu potencial em trazer a tona os efeitos construtivos que
ambiente e organismo exercem um sobre o outro. Por esse pressuposto, o adotamos como
referencial teórico para reflexões sobre a prática em Psicologia Escolar que será trazida
neste artigo.

De acordo com Bronfrenbrenner (1996, p.191) o desenvolvimento humano é


definido como “o conjunto de processos através dos quais as particularidades da pessoa e
do ambiente interagem para produzir constância e mudança nas características da pessoa
no curso de sua vida”. O desenvolvimento é entendido como um processo dinâmico,
determinado por múltiplas relações e, sendo assim, a compreensão dos indivíduos
perpassa pela compreensão desse processo de interação do sujeito com contextos de
desenvolvimento do qual ele participa e, neste contexto, a escola vem desempenhando
papel importante, pois é instituição de passagem obrigatória para todos os brasileiros
conforme pressupõe a LDB – Leis de diretrizes e Bases da EducaçãoNacional. Lei nº 9.394,
de 20 de dezembro de 1996. D.O.U. de 23 de dezembro de 1996, e portanto, desempenha
papel importante para compreender e agir sobre o desenvolvimento de todos.

O contexto escolar, além de abranger uma gama de pessoas com características


diferenciadas, inclui um número significativo de interações contínuas e complexas.
Refere-se também, segundo Oliveira (2000, citado por DESSEN; POLÔNIA, 2007) a um
ambiente multicultural que envolve a construção de laços afetivos e preparo para a
inserção social. Concomitante a essa questão, outros autores (MARQUES, 2001;
ALEMRIDA, 2000, citados por DESSEN; POLÔNIA, 2007) enfatizam a importância das
tarefas desempenhadas em sala de aula, que favorecem as formas superiores de pensar e
aprender, como exemplo a memória seletiva, criatividade, raciocínio abstrato, pensamento
lógico, tendo o professor um papel importante como mediador.

Nessa ótica, Bronfenbrenner (1996) afirma que o único lugar que serve como um
contexto abrangente para o desenvolvimento humano a partir dos primeiros anos de vida,
após o ambiente familiar, é a instituição de educação infantil que, no Brasil, é
tradicionalmente conhecida como creche ou pré-escola. Essa instituição é um espaço em
que se priorizam as atividades educativas formais amalgamadas a um campo de
desenvolvimento e aprendizagem, ou seja, voltada bastante para aspectos de
escolarização, brincadeiras, interações bastante diversificadas. Pode-se considerar que a
escola contribui no desenvolvimento do indivíduo, bem como na obtenção do saber
culturalmente organizado em suas diversas áreas de conhecimento e que, de acordo com
Cury (2008):
[...] a educação escolar, mercê de sua natureza conatural ao desenvolvimento das
faculdades intelectuais do ser humano, graças ao potencial de sua vertente socializadora,

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veio se constituindo como um dos direitos mais importantes da cidadania (CURY, 2008,
p.208).

No entanto, de acordo com o autor, em que pesem os avanços conquistados na


educação escolar nos últimos séculos no Brasil, como a universalização do ensino
fundamental, a ampliação dos ensinos médio e universitário e a discreta abertura na
educação infantil, ainda há muito que se fazer para avançarmos em termos educativos no
Brasil e isso vem sendo descrito pelas estatísticas do governo em termos de escolarização,
acesso à escola, permanência, continuidade do ensino, formação, dentre outros fatores.

É nesse contexto que a aproximação da Psicologia com a Educação se sedimenta


ainda mais. A aproximação dessas duas áreas data o período colonial, quando
preocupações com a educação e a pedagogia traziam em seu bojo elaborações sobre o
fenômeno psicológico. A partir de então, as duas áreas percorrem caminhos
intrinsecamente relacionados até o momento em que, na segunda década do século
passado, a Psicologia se constitui enquanto ciência e profissão e passa a delimitar seu
campo de conhecimento e atuação

Contudo esse percurso fora marcado por movimentos antagônicos de tentativa


de explicação dos problemas escolares e, ao mesmo tempo, a rotulação dos sujeitos como
portadores de problemas emocionais ou cognitivos intrínsecos e incapazes de aprender. A
partir de então, a psicologia no contexto educacional ficou marcada pelas explicações de
fundo psicológico que dava às queixas escolares e, como tal, propagava uma forma de
estigmatização e por conseqüência de exclusão dos sujeitos que apresentavam
dificuldades escolares conforme debatido por Machado (2002), Patto (1981/1984/1990),
Guzzo (1999), Guzzo, Costa e Sant’Anna (2009), Tanamashi, Souza e Rocha (2000), dentre
outros. Um exemplo disso é uma atuação distante da realidade escolar e focada no
indivíduo, no caso no aluno com problemas de aprendizagem ou de comportamento.
Dentro dessa perspectiva, a atuação do psicólogo se limitaria à aplicação de testes de
inteligência e na emissão de laudos atestando a veracidade de uma concepção que situa o
lócus exclusivamente no aluno, sem relevar o contexto em que tal queixa é produzida.

Essa concepção tem como modelo de atuação dominante a psicologia clínica


aplicada ao contexto escolar. Tal proposta partilha de uma visão de psicologia escolar,
vinculada com a área de saúde mental, a qual divide a problemática escolar em dois
pólos: saúde x doença, o que na escola acaba por refletir como problemas de
aprendizagem e de inadequação comportamental (ANDALÓ, 1984, p. 130).

Além da divisão citada acima, outra separação possível decorrente do modelo


clínico, segundo Reger (1981), se dá na seguinte dimensão: comportamento x educação.
Dessa divisão artificial, resulta uma forte tendência em não implicar os professores e

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outros agentes educativos no processo de determinação dos comportamentos, das ações,


das transformações que vem ocorrendo na escola, dentro das salas de aula. Pelo fato de o
comportamento ser considerado como um elemento à parte da educação, ou seja, é fruto
do que o individuo é na família, algumas crianças passam a ser vistas como portadoras de
problemas e por isso tendem a ser rejeitadas pelos educadores, ficando dessa maneira à
margem do processo educacional. Quando um psicólogo através da atuação calcada num
modelo que foca a queixa escolar como sendo um problema do indivíduo, ele por um
desdobramento conceptual acaba por desconsiderar todo o contexto em que tal queixa é
produzida. Conseqüentemente, tal profissional acaba também favorecendo um perverso
processo que rejeita a criança do sistema educacional, o qual lhe é de direito,
constitucional inclusive.

Essa concepção que coloca o lócus da problemática nos alunos, cabendo a esses a
sua resolução, se mostra ultrapassada e demasiadamente reducionista (REGER, 1981).
Não é de se estranhar que as intervenções que têm por base tal concepção estão fadadas
ao fracasso, pois geralmente concentram-se apenas em psicoterapias e na transferência
dos alunos considerados “problemas” para a classe especial. Assim, de um paradigma
que idealiza um padrão de normalidade, construído socialmente, resultam soluções fáceis
e superficiais para problemas complexos e multifatoriais. Na verdade não se tratam de
soluções, já que em nada contribuem para a melhoria dos processos de ensino-
aprendizagem. Não há possibilidade de atingir a raiz dos problemas desencadeados no
âmbito escolar, sem uma análise cuidadosa das condições em que estes são produzidos.

A história da psicologia escolar e educacional no Brasil deve ser pensada a partir


de raízes históricas centrada na teoria da carência cultural, conforme apontada por Patto
(1990) que se traduziu a partir de uma formação apoiada em preceitos clínicos, ou seja, na
realização de práticas individualizantes dentro de espaços educacionais que propagam a
idéia, especialmente para os educadores, de que questões educacionais centram-se em
problemas dos alunos.

Importante salientar que de nada adianta criticar o modelo hegemônico, sem


propor outras possibilidades. Por isso, optamos por discorrer acerca de uma experiência
prática, com o objetivo de ilustrar uma proposta que de fato possa refletir mais
profundamente acerca de um desenvolvimento integral do educando, tentando romper
com a patologização das queixas escolares e a pretexto de uma intervenção institucional,
não negligenciar uma subjetividade que clama por uma acolhida.

Retomando o papel do psicólogo, através de uma proposta mais efetiva, destaca-


se na atualidade o papel do psicólogo escolar como um agente de mudanças, nas palavras

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de Andaló (1984, p. 130) em que consiste “como um elemento catalizador das reflexões,
um conscientizador dos papéis representados pelos vários grupos que compõem a
instituição”.

Segundo Patto (1990) o modelo mais apropriado para a atuação do psicólogo na


área da educação é o modelo deste profissional enquanto educador, pois assim como seus
colegas educadores, o psicólogo enfatizaria mais o crescimento e desenvolvimento das
crianças, diferentemente do modelo clínico que enfatiza mais à “patologia”. Segundo a
autora em questão, o propósito central do psicólogo escolar é ajudar a planejar programas
educacionais. Sendo assim, o psicólogo escolar pode exercer o papel de consultor, pois
procura utilizar o sistema educacional de forma mais efetiva para cada criança; orientador
já que orienta os demais profissionais da instituição a lidarem com as situações
educacionais; professor e pesquisador, pois tem relação como o modelo acadêmico, já que
deve buscar a superação do descompasso existente entre educação e a aplicação de
resultados de pesquisa, bem como encorajar atividades de pesquisa em sala de aula.

De acordo com Reger (1981) delimitar o papel básico do psicólogo escolar evitaria
a ocorrência de inúmeros problemas que atualmente não podemos focalizar. Algo
importante segundo o autor, é que o psicólogo escolar não deve de forma alguma,
alimentar a idéia de que assumirá pelo professor as responsabilidades pelos problemas
ocorridos em sala de aula. Cabe ao professor o enfrentamento diário dos problemas que
surgem no contexto escolar. Os professores não podem ter seus processos de pensamento
e de julgamento interditado por uma crença de que outros profissionais assumirão suas
responsabilidades e pensarão por ele.

Seguindo a mesma linha de pensamento, Andaló (1984) destaca que não cabe ao
psicólogo assumir a responsabilidade de lidar com o aluno em sala de aula, pois esta
continua sendo responsabilidade do professor. Por sua vez, o psicólogo, através de seus
conhecimentos da área psicológica, pode colaborar com os demais agentes educativos a
lidarem melhor com as situações educacionais.

Guzzo (1996) também argumenta sobre a necessidade do psicólogo escolar em


dar suporte aos professores, alunos e instituições escolares nas questões sobre o
desenvolvimento humano, destacando que a atuação deste profissional é bem mais
ampla, não se limitando nos diagnósticos classificatórios e nem nas famosas psicoterapias
individualizadas, mas que para ir além, este profissional precisa se atualizar
constantemente e desenvolver uma proposta de trabalho que tenha um maior
envolvimento com a comunidade educacional e sua dinâmica. Nesse sentido o psicólogo
pode ser considerado uma espécie de “catalisador” de reflexões dos diversos grupos que

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compõem a instituição. Lembrando que se necessário ele pode fazer um enfoque clínico,
mas sem perder o ponto de vista institucional.

Com base na afirmação acima, apresentaremos o relato de um caso específico que


acompanhamos durante o Estágio Curricular de Psicologia, Educação e Comunidade
ocorrido durante o ano de 2006, que contou com a presença de outros 8 estagiários além
de duas das autoras deste artigo. A vivencia no ambiente escolar; as conversas com
educadores e alunos, escutar suas angústias e dificuldades nos colocou diante de intensos
questionamentos sobre a prática do psicólogo, bem como nos proporcionou ter que lidar
com uma atuação do psicólogo pouco definida tecnicamente, praticamente. É através da
prática e da produção de pesquisa, que entendemos ser possível criarmos uma concepção
mais crítica sobre as diversas teorias estudadas e com isso, repensar o papel do psicólogo
no contexto escolar.

No presente artigo, optamos por um recorte de um caso específico, sem perder o


enfoque de uma intervenção com a família, a instituição e a comunidade, o qual propõe
uma reflexão sobre a possibilidade de atuação no coletivo, sem negligenciar aspectos de
natureza mais afetiva e pessoal da criança neste contexto, conforme o destaque do
pressuposto teórico bioecológico.

2. O ENCONTRO COM FÁBIO

Fábio (O nome Fábio, assim como, outras informações que eventualmente possam remeter
a identidade do aluno em questão, foram alteradas com a intenção de preservar a imagem
deste), 14 anos, aluno da sexta série do ensino fundamental monopoliza a atenção de toda
a escola pela sua forma diferenciada de se relacionar. Através de objetos o aluno expressa
seus conflitos emocionais, estes por sua vez relacionam-se em grande medida ao seu
contexto familiar, porém não restrito a ele, pois também questões que envolvem as
relações presentes no âmbito escolar emergem como demandas para possíveis
intervenções.

Muitas das atitudes do aluno, tais como, pintar as unhas, imitar bebê, gesticular
de forma caricata como homossexual, interromper constantemente as aulas, dar trotes no
comércio da cidade, mais freqüentemente em estabelecimentos de moto-táxi (uma moto-
táxi refere-se a um tipo de transporte individual na qual os passageiros têm ampla escolha
de local de embarque ou desembarque; é semelhante ao taxi, no entanto, utilizando uma
moto ao contrário de um carro), lhe renderam na escola o rótulo de louco e/ou esquisito.

Nosso primeiro contato se deu a partir de uma visita na sala de aula onde
tínhamos como objetivo conhecer os alunos, nos apresentar, colocando-nos a disposição

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da turma, bem como identificar possíveis demandas. Essa primeira forma de contato
também se baseia no pressuposto da abordagem bioecológica na medida em que essa
pressupõe o vínculo afetivo como forma importante de contato com o sujeito.
(BRONFENBRENNER, 1996).

Pensamos que, conforme apresentando, o papel do psicólogo na escola, por


muito tempo, foi o de rotular os sujeitos o que fez com que esse profissional acabasse
sendo temido dentro do contexto escolar. Para tentar romper com essa visão, buscamos
sempre um contato inicial, um vínculo sem intenções prévias de julgamento de uma
dificuldade ou a busca pelo aluno problema, e sim um contato mais informal, por meio do
acompanhamento das atividades escolares, o que, de acordo com o autor citado acima, é
denominada de díade, ou seja, uma interação formada sempre que duas pessoas prestam
atenção nas atividades uma da outra ou delas participam. Para Bronfenbrenner (1996),
uma díade por si só já tem sua importância, enquanto elemento favorecedor de
desenvolvimento do sujeito e do seu contexto na medida em que favorece essa interação
positivamente.

Acreditamos que esse feito não rotulador tenha ocorrido no encontro com Fábio,
pois logo após a apresentação das estagiárias em sala, solicitou que estas se sentassem
perto dele e a partir deste momento, iniciou uma interação que foi sendo fortalecida
durante o ano e que a denominamos como uma díade.

Vale ressaltar que o vínculo criado foi essencial para que Fábio conseguisse se
expressar, bem como elaborar seu sofrimento. Tal sofrimento em grande medida se
relaciona com o seu temor de estar contaminado pelo vírus da AIDS. Interessante destacar
que no ano anterior da atuação aqui apresentada, foi realizado em sua classe um projeto
de “Orientação a Sexualidade”, onde temas como prevenção, DST, entre outras
informações referentes ao assunto foram discutidos. Nessa ocasião o aluno mostrou um
forte incomodo relacionado ao tema da AIDS. Ao tentar entender sobre esse incomodo,
nos deparamos com questões de uma sexualidade exacerbada, a qual entendemos como
algo que vai além da simples curiosidade e do interesse natural dos mecanismos de
prazer obtidos com o próprio corpo e/ou de outrem. Nesta situação, isso significa que sua
relação com a sexualidade parece se inserir numa ordem marcada por algum tipo de
abuso. Sobre tal questão há um conteúdo expresso no discurso do aluno, nas brincadeiras,
em seus desenhos, em cartinhas, que podem nos remeter a indicativos de fatores de
abuso. A partir de tais indicativos foi tentado averiguar a veracidade do fato com o
próprio aluno. Ao longo deste artigo esse processo de averiguação será melhor
explicitado.

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3. SOBRE AS INTERVENÇÕES

Nosso primeiro contato com a escola foi através de uma reunião com a direção e com os
professores, na qual a supervisora de estágio apresentou o grupo de estagiários no ano
anterior (2005) e, já nessa reunião, as queixas referentes às dificuldades do aluno Fabio,
predominavam sobre qualquer outra. No ano seguinte, em outra reunião de avaliação do
estágio e apresentação para continuidade, alguns assuntos foram retomados - Aqui se
usou o termo “retomado” porque o Projeto de Estágio apresentado no presente artigo não
é novo na escola em questão, pois está sendo implantado desde o ano de 2005 - por
exemplo, sobre o papel do psicólogo na escola e sobre a necessidade de se trabalhar em
parceria a fim de tornar possível a construção de um projeto coletivo que contribua para o
desenvolvimento de um processo educativo mais eficaz.

Inicialmente nossa atuação na escola consistia em participar das aulas com os


professores, com objetivo de compreender a dinâmica das relações existentes nesse
contexto, bem como o funcionamento da própria instituição, suas normas, seus valores e
sua cultura. A partir desse momento iniciou-se também o processo de vinculação entre as
estagiárias, os alunos e os funcionários da escola.

O projeto de estágio caracteriza-se, fundamentalmente, por uma proposta


preventiva, por isso, o foco se daria especialmente em quintas e sextas séries, porém não
restrita a estas. Num primeiro momento, fez-se um o levantamento da demanda, em
seguida uma análise dessa e, por conseguinte estruturava-se um plano de intervenção.
Cabe no presente artigo explanarmos as intervenções realizadas ao caso específico que
nos propomos a ilustrar. Vale ressaltar que em nossas atuações, em nenhum momento
perdeu de vista o contexto institucional, o qual não configura apenas como pano de fundo
onde problemáticas mais específicas são encenadas, mas também apresentam-se como
contribuintes no desenvolvimento emocional, social e intelectual de uma criança.

Para melhor entendermos a concepção de desenvolvimento proposta por


Bronfenbrenner (KOLLER; NARVAZ, 2004), precisamos entender a dinâmica dos
sistemas, visto que tal desenvolvimento ocorre de acordo com a interação entre
características biopsicossoais (fatores genéticos, cognitivos, de personalidade, entre
outros) e ambientais, o qual compreende os seguintes níveis: microssistema (ambiente
mais imediato da criança, por exemplo, a família), mesossistema (conjunto de dois
microssistemas, por exemplo, família – escola), exossistema (ambiente que afeta a criança
ainda que de forma indireta, por exemplo, trabalho dos pais, programas sociais) e
macrossistema (nível mais geral dos sistemas, por exemplo, regime político). Faz-se

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necessário o entendimento destes, para defesa da proposta do trabalho em redes de apoio


para um acompanhamento mais efetivo da criança.

Tendo em vista um modelo de atuação do psicólogo escolar, que não concentra o


lócus do problema no aluno, mas que faz uma análise sobre as relações institucionais, bem
como as condições que tal queixa se formula (KOLLER; NARVAZ, 2004), desenvolvemos
um plano de atuação que envolve uma múltipla teia de relações representadas pelo
contexto escolar, que inclui os agentes educativos e os educandos; o grupo familiar; a
comunidade e as redes de apoio (As redes de apoio citadas nesse artigo referem-se ao PSF
– Programa de Saúde Familiar e Conselho Tutelar). Cabe ressaltar que tal paradigma
sistêmico está em consonância com a teoria bioecológica do desenvolvimento humano
conforme proposto por Bronfenbrenner, uma vez que não cristaliza a queixa e nem as
possibilidades de atuação num único sistema, considerando a integração e as
multideterminações desde os ambientes imediatos (microssistemas, mesossistemas) até os
contextos mais amplos (exossistemas, macrossistemas,), nos quais os ambientes estão
inseridos.

Destaca-se ainda no que concerne ao modelo bioecológico do desenvolvimento, a


importância do “vínculo” na dinâmica das interações sociais, caracterizado pela
reciprocidade, equilíbrio de poder e afeto (KOLLER; NARVAZ, 2004) o qual pautou a
proposta de atuação das estagiárias na escola e comunidade.

Na escola, a intervenção iniciou-se aos poucos, trabalhando-se com grupos


pequenos de alunos em sala de aula com os quais o vínculo já havia se constituído.
Formava-se com esses alunos rodas de conversa, geralmente no horário do intervalo,
nestas o aluno Fábio sempre fazia questão de participar. A partir do que os alunos
traziam, alguns temas foram sendo paulatinamente discutidos, tais como: o que o
psicólogo pode fazer na escola, o que significa ser “louco” ou ser “normal”, o que significa
ser “diferente”. Inicialmente em tais debates, os alunos apontavam para Fábio, referindo-
se a este como o louco, ou como aquele que tem problema e por isso precisaria de nossa
ajuda. Com o avançar das discussões e à medida que desconstruíamos junto com os
alunos, alguns de seus preconceitos e idéias equivocadas, o aluno Fábio deixava de
representar o “problema” da classe ou mesmo da escola. Com isso, também os demais
alunos começaram a se implicar em suas relações.

Nesse sentido, desenvolvemos um Projeto direcionado para a melhoria das


relações, sendo este organizado em encontros semanais dentro do período de uma aula.
Participavam desse encontro, todos os alunos da sexta série e o professor responsável pela
aula no momento do projeto. Alguns professores em algumas ocasiões contribuíam com a

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organização do grupo, já que trabalhávamos com cerca de 30 alunos, porém outros


professores se retiravam da sala. Com relação a este fato, algumas hipóteses referem-se ao
não comprometimento de alguns professores com a proposta, ou ainda pode relacionar-se
com uma falha no processo de formação do vínculo com esses educadores.

A proposta do trabalho envolvia dinâmica e atividades que possibilitava aos


alunos e professores reflexões sobre o tema da inclusão; das diferenças e do preconceito e,
a partir deste trabalho, percebíamos a implicação dos resultados dessas discussões em
seus relacionamentos. Como exemplo, podemos destacar um encontro sobre o tema da
inclusão que possibilitou ao grupo refletir que além de Fábio, outros alunos se sentiam
excluídos, seja devido sua etnia, cultura ou simplesmente por morar num bairro distante
do Centro, onde localiza-se a escola.

Sobre nossa intervenção, buscamos apoio nas teorizações de Pichón Rivière. É


sabido que o psicanalista começou a pensar o trabalho com grupos à medida que
observou em seus pacientes a influencia do grupo familiar. O teórico fundou seus
conceitos a partir da leitura da psicologia social e foi por meio desta, que afirmou que o
homem desde seu nascimento encontra-se inserido em grupos, sendo o primeiro deles a
família e mais tarde se ampliando para a escola, amigos e sociedade.

Introduziu em seus conceitos uma nova maneira de intervir em diversos grupos


de trabalho. Constituiu o conceito de grupo operativo e define que este não se refere a uma
técnica específica de coordenação de grupos, mas sim uma forma de pensar e operar em
grupos. Esses grupos podem ser: de aprendizagem, de reflexão, terapêutico, entre outros.
Nesse sentido, grupo operativo refere-se a um conjunto de pessoas com um objetivo
comum o qual tentam abordar operando como equipe. Nessa tarefa ocorre uma
organização dos processos de pensamento, comunicação e ações que se dão entre os
membros do grupo (PICHÓN-RIVIÈRE, 2005).

O processo grupal é visto por esse autor como o “estruturando” do grupo, isso
quer dizer, como uma estrutura em movimento, ao contrário de uma organização rígida.
A própria ação do grupo é responsável por sua existência e organização.

Assim, foi possível observar nossas intervenções atravessadas por essa leitura de
grupo. Buscou-se esclarecer junto aos profissionais e alunos inseridos no contexto escolar,
os conflitos estereotipados, seja do aluno considerado problema ou louco como é o caso
aqui citado, seja do professor. Acreditamos que com isso, proporcionamos a esses
profissionais e alunos uma reflexão sobre o lugar da escola: seria esse um lugar de
correções ou uma instituição de educação?

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Retomando aos encontros com alunos, estes foram fundamentais também para
realçar as potencialidades de Fábio, pois o aluno já estava marcado por uma
representação social vinculada à figura “do” louco, e a partir desses encontros, foi
possível uma resignificação desse lugar ocupado pela criança. Assim, tal intervenção foi
importante porque possibilitou o reconhecimento da multiplicidade de outros aspectos,
tais como, ser um grande amigo, companheiro, engraçado e habilidoso em matemática.

Com relação a essa intervenção, trazemos a tona uma reflexão sobre as relações
cristalizadas. Para Machado e Souza (1997) esse tipo de relação não possibilita certa
movimentação no que diz respeito às queixas, uma vez que estas permanecem as mesmas
há muito tempo.

Uma pessoa cristalizada, normalmente, transforma-se num personagem: “o”


aluno especial, “o” aidético, “o” excluído, “o” louco, “o” tímido, “o” irritante,
impossibilitando desta forma, que este venha ser reconhecido, pelas suas potencialidades.

Ainda do ponto de vista das autoras citadas acima, esses personagens


cristalizados, são objetivações de uma série de práticas. É possível perceber essas práticas
quando, afastando o olhar destes alunos considerados “aluno-problema”, observa-se uma
série de práticas que os objetivaram, como exemplo: a prática de encaminhamento de
crianças com problema de aprendizagem ou disciplina para psicólogos. Em tal prática,
pode-se perceber uma série de outras práticas paralelas, isto é: psicólogos realizando
avaliação psicológica para encaminhamento; educadores entendendo o problema da
criança vinculado a questão individual ou familiar; a exigência de um laudo psicológico
para a criança; entre outras.

No trabalho com os professores, estes aconteciam quando tais profissionais


encontravam-se na escola no dia da semana em que cumpríamos o estágio, foram
realizadas algumas conversas sobre as dificuldades encontradas em sala de aula para
lidar com certas situações. Nestas ocasiões a queixa dos professores em relação aos alunos
com problemas de aprendizagem e/ou de comportamento era constante, principalmente
no que tange a dificuldade com Fábio. Percebemos nessas ocasiões, grande resistência por
parte destes profissionais em aceitarem o nosso papel na escola, pois embora, este já
tivesse sido discutido, predominava ainda a crença que deveríamos retirar o aluno da sala
de aula e realizar um atendimento individualizado que produzisse o efeito “quase
mágico” de devolvê-lo para a sala bem ajustado às normas da escola. Nossas tentativas de
romper com essa visão parece ter suscitado frustração em alguns profissionais.

Nas discussões com os professores, foi problematizado sobre certas atitudes, pois
conforme os próprios estavam testemunhando, colocar o aluno para fora da sala de aula,

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ou mesmo mantê-lo excluído dentro dela, não estava contribuindo para seu aprendizado.
Buscamos problematizar tais atitudes e assim, possibilitar reflexões sobre como lidar com
a situação.

Além das atividades grupais, foi necessário realizarmos um acompanhamento


mais específico com o aluno. Este acompanhamento não significava, contudo, um
acompanhamento de natureza clínica dentro da escola, pois por mais que existissem no
discurso de Fábio problemáticas que pareciam transcender o âmbito escolar, estas eram
ouvidas no sentido de acolher sua angústia, bem como pensar possíveis intervenções no
contexto institucional. Entretanto, fomos entendendo o quanto era necessário escutar
Fábio num outro contexto que não caberia aos propósitos do psicólogo escolar. Por esse
motivo estudamos a possibilidade em supervisão, de encaminhar o aluno para o serviço
de Psicologia da Faculdade. Assim buscamos num primeiro momento estabelecer um
vínculo com a família, a fim de garantir a efetividade de um possível encaminhamento.

A partir de um pressuposto teórico que compreende o desenvolvimento a partir


da interrelação de sistemas de desenvolvimento, ampliamos nosso contato para além da
escola e iniciamos o contato com a família dele. Com relação a esta, inicialmente
mandamos convite para que os pais viessem para a escola, pois nestas poderiam
conversar conosco, expor suas necessidades, receber orientações e contar com suporte.
Num nível mais profundo queríamos conhecer a dinâmica de funcionamento desta
família, da qual tanto Fábio se queixava. Tentamos também contato por telefone, porém
nunca conseguimos por esse meio, da mesma forma que também não conseguimos via
bilhetes enviados pelo próprio aluno. Assim, depois de diversas tentativas em chamar
esses pais para a escola, sem conseguirmos a participação dos mesmos e diante do fato
das queixas do aluno se mostrarem cada vez mais graves, isto é, envolvendo situações de
violência, negligencia e conflitos familiares, decidimos diretamente fazer uma visita à
casa.

Essa dificuldade de acesso às famílias vem sendo apontada pela literatura na área
(PATTO, 1984/1990; LORDELO; CARVALHO; KOLLER, 2004) como sendo um dos
grandes desafios para o trabalho não só dos educadores, mas também dos psicólogos que
trabalham em instituições educativas. As famílias sentem-se impotentes diante das
demandas apresentadas a elas e, por isso, tendem a não responder aos chamados das
instituições. Por isso optamos pela visita domiciliar.

Numa primeira visita conhecemos a mãe e o que mais nos impressionou em tal
ocasião foi a identificação desta mãe com seu filho. Além de semelhanças físicas, nos

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96 A atuação do psicólogo no contexto escolar: das questões individuais às propostas coletivas

trejeitos, no modo de olhar, no ritmo da fala, percebemos também um modo de


funcionamento psíquico parecido, marcado fundamentalmente pela fantasia.

Na segunda visita encontramos com o pai, porém quase não conversamos com o
mesmo. Ele nos cumprimentou não ostensivamente enquanto estávamos no portão e
entrou na casa com uma garrafa de cerveja na mão. Mais tarde, retornou ao portão, onde
lá tivemos a chance de dialogar com ele, ainda que superficialmente. Nesta conversa o pai
se queixava do “mino” excessivo da mãe pelo filho e responsabilizava este pelo
comportamento inquieto e desobediente de Fábio.

As visitas domiciliares tiveram um efeito positivo, pois contribuíram para


aproximação entre mãe e escola. O afastamento da família em relação à escola foi sempre
apontado pelos educadores como um dos focos da problemática que envolvia a situação
com ele. Ainda que tal aproximação ocorresse mediante nosso contato, ela repercutiu na
concepção dos funcionários da escola, que pelo simples fato de verem a mãe toda semana,
sentiram com isso um interesse da família em relação ao processo educativo da criança.

No segundo semestre, após as férias, encontramos Fábio junto com sua mãe e seu
avô materno na frente da escola no horário que cumprimos o estágio. O garoto estava com
o olho esquerdo roxo, como se tivesse levado um soco. Além do hematoma no olho, Fábio
não estava com características de uma criança bem cuidada. Apresentava-se com o cabelo
ensebado, unhas cumpridas e sujas. Imediatamente nossa intervenção foi tentar levar o
garoto para o posto de saúde mais próximo da escola, no entanto, no contato com a mãe,
não foi possível, uma vez que esta insistia que o filho estava bem e não precisava de
médico algum. Inicialmente a mãe resiste em contar o que de fato havia ocorrido,
contudo, depois de firmemente pontuarmos nossas impressões, ela acaba assumindo a
violência cometida pelo marido, bem como seu medo em relação às conseqüências de uma
possível denúncia.

Algo que nos chamou à atenção é que, se por um lado a mãe se recusava
terminantemente, a procurar por um atendimento médico, ou seja, parecia não querer
explicitar a situação de violência a qual ela e o filho estavam submetidos. Por outro lado, a
presença desta mãe, exatamente no local e horário em que realizamos a estágio, nos
mostra o quanto à questão do vínculo foi estabelecido e também pode ser interpretado
como um pedido de ajuda diante do ocorrido.

Perante este fato, em discussão com o grupo de supervisão e também com a


direção da escola, decidimos encaminhar o caso ao Conselho Tutelar, visto que, levando
em consideração as leis de proteção à criança descritas no ECA (Estatuto da Criança e
Adolescente) Fábio teve muitos de seus direitos violados.

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Antes mesmo de eclodir tal episódio de violência, preocupávamos que a despeito


do temor constante de Fábio em relação à sua saúde, este não freqüentava um
atendimento médico há anos. Isto foi averiguado através de visitas que realizamos ao
Posto de Saúde do município. Em conversa com a enfermeira chefe, o prontuário de Fábio
foi levantado e de fato confirmamos que há tempos não era realizado nenhum tipo de
atendimento médico. Diante de tal revelação, sem contar os detalhes do caso, mas
enfatizando a necessidade que identificamos de um acompanhamento médico,
solicitamos que este fosse feito. Contudo, não obtivemos apoio no que tange aos serviços
de saúde disponibilizados pelo município. Tentamos também com o PSF – Programa de
Saúde da Família, o qual realiza um acompanhamento domiciliar, entretanto fomos
informadas que este também não seria possível em virtude da localização geográfica da
residência de Fábio.

No que tange o encaminhamento ao Conselho Tutelar, as providências tomadas


por este órgão consistiram em: uma entrevista com os pais, no encaminhamento de Fábio
para o Psiquiatra e para o Psicólogo Clínico. No entanto tais providências deram margem
para alguns questionamentos, pois estas se voltaram para intervenções somente com a
criança, até o momento, não se soube de nenhum trabalho que abrangesse todo o contexto
familiar, bem como nenhuma investigação mais apurada sobre as denúncias
encaminhadas.

Vale ressaltar que o fato de buscarmos a rede de apoio, em nenhum momento


nos fez considerar a possibilidade da diminuição de nossa implicação e/ou
responsabilidade diante da experiência relatada. Até porque, a prática cotidiana na escola
sempre nos coloca diante de grandes desafios, dos quais para enfrentar, não contamos
com manuais de orientação que sirvam de bússola para nossa atuação. Não há receitas
prontas. O que vale em tais situações é a ética e o respeito para com as pessoas que
necessitam do nosso profissionalismo.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo foi fruto de nossa inquietação no contexto escolar, quando nos deparávamos
com questões de natureza tão específicas que nos pareciam distantes da realidade da
escola. Contudo vimos que por mais que houvesse conflitos familiares, também existem
no contexto escolar produções que podem contribuir tanto para o equilíbrio emocional e o
desenvolvimento integral da criança, como também outras que podem contribuir para o
seu isolamento e exclusão.

Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 83-100
98 A atuação do psicólogo no contexto escolar: das questões individuais às propostas coletivas

O caso Fábio nos possibilita refletir como o psicólogo escolar pode atuar a partir
do conhecimento de uma realidade singular, sem perder de vista a proposta de um
projeto no coletivo, pois conforme vimos o papel do psicólogo enquanto atuante na
instituição de ensino, visa um trabalho complexo, incluindo à escola e suas hierarquias
como um todo.

O marcante dessa experiência de estágio não é o psicólogo trabalhar sozinho,


mas sim poder contar com uma equipe multidisciplinar de apoio, a qual pode ser
composta por Profissionais da Educação, Conselheiros Tutelares e Agentes de Saúde. No
relato apresentado, pudemos vivenciar o quanto tudo isso por mais que necessário, ainda
permanece numa esfera quase utópica, isto é, ainda que existam serviços de redes de
apoio, bem como programas sociais, o funcionamento destes na prática tende à
inoperância.

Partindo dessa constatação, torna-se compreensível a desistência de muitos


profissionais em relação às demandas levantadas durante suas atuações. Compreensível,
mas não justificável, visto que não podemos nos deixar capturar pelo comodismo ou pela
desesperança. Retomando a noção do psicólogo como agente de mudanças, torna-se
necessário a criação de estratégias que mobilizem todas as dimensões implicadas no
desenvolvimento da criança.

Enquanto atuantes, sentimo-nos instigadas a refletir sobre os limites e


possibilidades de trabalho. Durante a graduação muito se discutiu sobre o papel do
psicólogo escolar e do quanto este é diferenciado de outros contextos, como clínico, por
exemplo, no qual predomina um atendimento mais individualizado. No entanto é
somente na prática que podemos desenvolver uma concepção mais crítica sobre as teorias
estudadas e repensar o papel do psicólogo nesse contexto.

Embora a presente experiência de estágio tenha se mostrado de grande valia para


o nosso futuro exercício profissional, também encontramos dificuldades em nossa atuação
oriundas do próprio processo de formação, o qual se mostrou demasiadamente teórico e
empobrecido de conteúdos significativos no que concerne às práticas efetivas no âmbito
escolar. A distância entre teoria e prática, acabou por suscitar contradições, descrença e
angústia quando colocávamos em análise diversas situações vivenciadas na escola. Por tal
motivo, é mister pensar que o processo de formação ocorre desde os primeiros anos de
graduação através de matérias como: Psicologia Escolar, Psicologia do Desenvolvimento,
Técnicas de Avaliação Psicológica, entre tantas outras, as quais ao invés das “contra-
indicações” sobre o que “não fazer” deveriam comportar em seus constructos teóricos,

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possibilidades de atuação e diretrizes mais consistentes para uma prática comprometida


com a realidade de nosso país e com o respeito às singularidades.

Destacamos, nesse artigo, apenas um recorte dentre uma ampla experiência de


estágio curricular, o que nos suscita a seguinte questão: Quantas outras crianças passam
por experiências similares a de Fábio?

Provavelmente encontraremos inúmeros outros casos. Os quais permanecem


ainda negligenciados, ou mesmo camuflados através de projetos que ao proporem um
trabalho coletivo, resistem a uma escuta que considere certas especificidades e
sofrimentos.

Como conclusão final do presente artigo, respaldamos na teoria bioecológica do


desenvolvimento humano de Urie Bronfenbrenner, a necessidade da implementação de
políticas públicas voltadas para o fortalecimento do trabalho em redes, visto que, estas
podem ser entendidas como níveis ambientais, especialmente o mesossistema e o
exossistema, os quais a partir da adequada articulação poderia contribuir não apenas para
a melhoria da qualidade de vida da criança, mas também de sua família, a qual por sua
vez constitui o microssistema, ou seja, o ambiente mais próximo e de maior influencia na
vida da criança (KOLLER; NARVAZ, 2004).

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Daniela Altoé
Graduada em Psicologia pelo Centro Universitário
Hermínio Ometto (2006). Desenvolve atividades
como Psicóloga da Associação de Amigos da
Criança de Araras - AMCRA - instituição que
atende pessoas com demanda ao HIV/AIDS.

Salete Moreno Marques


Graduação em Psicologia pelo Centro
Universitário Herminio Ometto (2006).

Raquel Pondian Tizzei


Graduação em Psicologia (2002) e mestrado em
Psicologia Escolar pela Pontifícia Universidade
Católica de Campinas (2004) e é doutoranda
(bolsista CAPES) do mesmo programa no grupo
de pesquisa.

Encontro: Revista de Psicologia • Vol. 13, Nº. 18, Ano 2010 • p. 83-100

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