Você está na página 1de 4

HZ 258 B – turma D

SOCIOLOGIA DE MARX
Sobre as chamadas ‘determinações-da-reflexão’. Categorias do sistema de Hegel
(A partir do dia 28/09/2020)

Ciência (Wissenschaft) tem, em Hegel, um sentido bastante genérico de


conhecimento. Mas se trata de um conhecimento que se ajusta às situações
vinculadas ao seu próprio produzir enquanto formação de um sistema. Em primeiro
lugar, tanto a possibilidade de aquisição quanto a estrutura formal de um corpo de
conhecimento podem ser encontrados em Hegel como sinônimo de ciência, posto que
ele, filósofo, acompanhava de muito perto as experiências e conquistas de distintas e
variadas áreas do saber – da matemática à geologia; da arquitetura à biologia,
passando pela física e psicologia. No que estamos vendo, o estudo sistemático da
Arte, Direito, Ética e Religião é entendido por Hegel como uma Wissenschaft, o que
faz com que ele considere, nesse sentido, o estudo filosófico sistemático como estudo
científico. Em segundo lugar, a ciência é tornada sistema quando estas partes distintas
se articulam num todo de conhecimento em que o seu próprio ser-em-si regula e
justifica a investigação destas diferentes partes, uma vez que momentos isolados do
sistema tomados abstratamente obedecem a uma lógica interna própria de pesquisa
científica, mas não estariam aí se a necessidade de respostas às suas perguntas não
se fizesse presente enquanto carência remetida ao todo. Como está dito no livro I (A
ciência da lógica) da Enciclopédia das ciências filosóficas, 14º. parágrafo, o verdadeiro
só é concreto se é capaz de manter-se junto na unidade, uma vez que um conteúdo só
tem sua justificação como momento do todo, mas fora dele é uma pressuposição sem
fundamento ou mesmo uma certeza subjetiva, que não passa de convicção pessoal
cercada pela contingência. É claro que, diante de tal assertiva, Hegel entendia que a
ciência assim posta era a própria filosofia hegeliana, na medida em que incluía nela
mesma o conjunto dos princípios das outras filosofias particulares. Mas este
acolhimento das outras filosofias tinha um motivo intrínseco: demonstrar “que o mundo
como um todo forma um sistema único, inteligível, que nos cumpre discernir e refletir;
que os itens e corpos do conhecimento, uma vez que compartilham de uma estrutura
racional comum, devem estar inteligivelmente relacionados; que os fragmentos de um
sistema não são totalmente inteligíveis quando isolados uns dos outros (...) e que
somente um sistema em seu projeto pode ser epistemologicamente seguro” (Cf.
INWOOD, Michael. Dicionário Hegel, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1997, p.
66).

Ser. Como a perspectiva hegeliana não é materialista (apesar de objetiva), mas


se pronuncia a partir do pressuposto de uma lógica que agrega o conhecimento
segundo a finalidade (teleologia) interna do objeto (finalidade já pressuposta por essa
lógica), não é possível esperar que Hegel compreenda o ser (Sein) como a
demonstração última daquilo a que o progresso da atividade humana pôde chegar.
Este é o lugar do conceito, categoria que será analisada posteriormente; ao “ser”, o
lugar reservado é aquele de contraste com ‘essência’ e ‘conceito’, posto que se trata
do objeto de estudo da primeira das três seções centrais da Lógica hegeliana, ou seja,
ali ‘ser’ tem o lugar de algo imediato, das primeiras características (as mais
superficiais, por assim dizer) das coisas qualitativas e quantitativas. Por isso, há o
contraste com a essência mais profunda destas coisas, assim como com sua estrutura
conceitual. Neste sentido, o ser (ao contrário de Dasein, ser-aí, uma existência que
pressupõe determinação) puro implica uma positividade tal das coisas, que a sua
constituição as projeta para a maior das indeterminidades possíveis, ou seja, chamar
algo de ser é simplesmente dizer que este algo é, mas sem ter a obrigação de dizer o
quê ele é, pois essa não-determinação é caracterizada pela falta plena de qualquer
qualidade. É claro que esse é um recurso usado por Hegel para mostrar o

1
desenvolvimento interno das coisas e, para fazer isso, caminha no sentido de construir
a identidade a partir da predicação do ser, pois dizer que algo é ainda é demasiado
pouco em função da qualidade e singularidade daquilo que está sendo afirmado. Mas
neste estágio do ‘ser puro’ não se pode trabalhar ainda com estas características
assinaladas: ‘singularidade’ e ‘qualidade’. Por tudo isso, é importante dizer que,
quando usarmos, num eventual curso sobre a “Sociologia de Marx”, a expressão ‘ser’
para fazer referência ao sistema de Hegel, estamos pensando, na verdade, no
desdobramento das qualidades do ser em algo que Hegel chamaria, dependendo da
situação, de essência, de conceito ou mesmo de idéia, uma vez que entendemos que
o desenvolvimento de toda e qualquer qualidade é, no limite, um desdobramento que
dependeu, sim, da consciência, mas enquanto produto tardio da existência, existência
esta que é moldada pelo ser (social) segundo suas características materiais. Então,
com maior ou menor grau de sofisticação e desenvolvimento, o ser é, nessa nossa
interpretação, o todo em processo – em outras palavras, a concepção materialista de
ser.

Essência. Mais tarde, quando falarmos das chamadas determinações-da-


reflexão (Reflexionsbestimmungen) ficarão, esperamos, mais claras as relações que
determinam o conteúdo da essência (Wesen) que, ao contrário de ser, carrega uma
significação um tanto mais ampla, em função justamente da caracterização daquelas
determinações constituintes das coisas, determinações que podem ser diretamente
objeto de reflexão – a revelação da essência é o ponto de passagem para a
constituição do conceito. Mas não só: na exposição hegeliana, a identificação objetiva
tanto do ser quanto do conceito chega a ser mais palatável do que o tratamento
dispensado à ‘doutrina da essência’, e isso porque no núcleo da apresentação daquilo
que é pertencente ao elemento essencial das coisas as relações se estabelecem a
partir de um encontro recíproco entre suas qualidades, qualidades estas que têm a
atribuição de definir o conteúdo daquilo que se mostra, pela primeira vez, como algo
determinado pela mediação – e essa ‘apresentação’ não é formada por uma estrutura
simples de reconhecimento de seus pontos nodais. Enquanto no ser as determinações
aparecem como o imediato (quantidade e qualidade reconhecíveis e em interação na
medida, que é momento de identificação da quantidade pela sua qualificação), no
sentido de que não pertencem a uma só essência ou ente (Wesen) ou mesmo a uma
essência que indique persistência ou perenidade (numa infinita troca de qualidade em
quantidade e vice-versa, já que não existe consecução verdadeira no infinito regresso
inessencial), na esfera da essência, por seu turno, reconhece-se que a estruturação
do sujeito só acontece na medida em que ele se apóia em algo distinto dele mesmo e,
para que se reconheça enquanto sujeito, é preciso que aquele algo ou objeto esteja
posto enquanto elemento duradouro, para que o próprio sujeito se defina – e este
definir significa tanto a explicabilidade-de-si das características do objeto quanto a
sustentabilidade do sujeito que é plasmado por estas características. Então, em
princípio, as características agora presentes como essência de algo são contrastantes
com o que, antes, era apenas Sein no seu imediatismo e superficialismo – a essência
é o negativo do ser e, portanto, sua própria verdade, mas no sentido de que é o ser
que se volta para si, um ser que é em si (dentro de si) mesmo, um ser que é reflexão
acerca de si. Esta reflexão, que é o seu aparecer em si, é sua própria distinção com
relação ao ser imediato e, portanto, a própria determinação (ou destinação) da
essência mesma (Cf. HEGEL, G.W.F. Enzyklopädie der philosophischen
Wissenschaften (1830), cit., p. 123, itálicos no original). Em outras palavras, para que
a essência de alguma coisa seja conhecida é necessário que esta coisa não seja
deixada em sua imediatez, mas seja demonstrada (e se demonstre para si mesma)
como mediatizada ou fundada por algo outro. A essência só se produz em sua própria
manifestação e somente por isso ela é objeto de verificação (HEGEL, G.W.F.
Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio (1830), cit., v. 1, adendo ao
parágrafo 112, p. 225). Mas o que antes era o imediato no ser (Sein) resulta na

2
essência como a aparência ou fenômeno (Schein) ou o aparecer das características
agora mediadas pela atividade da essência – por isso, o passado é parte do vir-a-ser
que leva à formação do ser-outro. A essência é o ser que-passou e refletiu em algo
outro; mas não que passou e deixou para trás o que lá ficou, mas trouxe consigo o que
dele foi supra-sumido. A essência é, portanto, o aparecer do ser para-si mesmo (pois
aparece, ‘brilha’, tanto para o exterior quanto para o interior de si mesma) e saber o
que algo é, para alguém de fora, depende de enxergar-se o brilho dele, uma vez que
este brilho é a porta de entrada para o interior do objeto (Idem, ibidem, p. 223). Enfim,
o desenvolvimento da essência progride da mais simples indeterminação do ser para
aquilo que ela representa como estrutura lógica na sua relação de reciprocidade e
alteridade enquanto aparição da especificidade de distintos fenômenos; deste ponto, a
progressão é sinônimo de apresentação daquilo que é a efetividade, segundo sua
ordem e articulação.

Conceito. Como já deve ter sido notado, é praticamente impossível


acompanhar o raciocínio de Hegel sem considerar concomitantemente o conjunto das
categorias com as quais o autor trabalha. Neste momento de nossa exposição,
prevaleceria um conflito de entendimento se não falássemos das categorias conceito e
idéia – esta última tratada em verbete imediatamente posterior. Em primeiro lugar,
conceituar tem o sentido de incorporação de uma experiência, que pode ser tanto
empírica quanto emocional – além de assimilação e eventual reprodução dela em nível
intelectual; mas, para além da simples concepção ou intuição, ou ainda representação,
com as quais contrasta, o conceito tem a ver com a possibilidade de manutenção
consciente da perenidade de determinado pertencer, no qual o sensível, a intuição e a
representação aparecem como componentes da possibilidade de distinção do
verdadeiro pensar. Em outras palavras, uma simples concepção empírica formada a
partir de nossa reflexão sobre objetos é distinta de um conceito, pois constatar que
uma flor é vermelha, que um homem existe ou que um objeto tem esta ou aquela
característica testemunha somente suas características superficiais, mas nada diz de
sua constituição propriamente científica ou conceitual, ainda que semelhantes
afirmações sobre a referida superficialidade só possam ser feitas porque estão
remetidas ao conceito componente de seus objetos. Isto acontece porque o conceito é
constitutivo do mundo e de todo ser contido nele e, por sê-lo, é igualmente constituinte
de nossa subjetividade, na medida em que nossa capacidade de abstração depende
dele para chegar ao mundo material – a existência propriamente dita depende de seu
próprio conceito, de seu desenvolver interno, enfim, de sua imanência. Neste sentido,
a criação e recriação do mundo se expressam na “auto-realização do conceito num
objeto que é distinto e, no entanto, idêntico a ele mesmo” (INWOOD, M. Op. cit., p.
75), uma vez que o processo de constituição do conceito, portanto, do mundo, é
também movimento. E na medida em que o que está fora e o que está dentro deste
mundo são momentos componentes dele mesmo, Hegel associará o conceito à
categoria liberdade, uma vez que a consciência da estrutura conceitual do mundo nos
faz entendê-lo e, portanto, torná-lo parte legitimamente componente daquilo que nós
mesmos somos, posto que tomar consciência de nossa necessidade é conhecer
conceitualmente aquilo que o mundo (e nós dentro dele) é – por isso, a liberdade
aparece como sinônimo de consciência da necessidade. Enfim, o conceito é tudo a
que algo pode, dentro de suas potencialidades intrínsecas, almejar – e justamente por
isso, pelo fato do conceito não ser pura abstração de realidades empíricas, é que nem
sempre e nem todos os objetos corresponderão imediatamente ao seu conceito, ainda
que dependam dele para poder ser identificados enquanto objeto mesmo, do ponto de
vista de suas qualidades e da potencialidade de seus desdobramentos.

Idéia. Sobre a categoria idéia, que aparece a um só tempo como o em si e o


para si, temos de lembrar que, em primeiro lugar, ela está associada à junção entre a
objetividade e o conceito (Cf. HEGEL, G.W.F. Enzyklopädie der philosophischen

3
Wissenschaften (1830), cit., p. 182, parágrafo 213). Enquanto este último, o referido
conceito, trata da incorporação subjetiva do conteúdo do existente na sua efetividade,
a idéia representa a unidade entre esta percepção e a objetividade propriamente dita.
Em outras palavras, a idéia assenta como a plena realização de um conceito, o que a
aponta como sendo o verdadeiro ou a verdade, já que ela não se confunde com
qualquer ente subjetivo ou mesmo mental – a idéia é o universal cuja manifestação
está presente na particularidade do conceito. Ao mesmo tempo, idéia não é sinônimo
de transcendência e também pode estar associada a entidades particulares, uma vez
que sua realização pode e deve ser sintética. Tal qual o conceito de conceito, a idéia
não é simples aparência ou reprodução de objetos sensíveis, sensoriais, mas, ao
contrário, todo objeto correspondente à idéia pura é determinado por sua própria idéia
ou conceito, “uma vez que nenhum material sensorial extra é requerido para a sua
existência ou para o nosso conhecimento de sua existência” (Cf. INWOOD, M. Op. cit.,
p. 169). Estes objetos são, em princípio, incondicionados, pois dependem
exclusivamente de sua natureza, ou de seu conceito, para existir e para serem
conhecidos – existência e conhecimento que dependem daquilo que lhes é
originalmente constitutivo e não daquilo que lhes é estranho. Igualmente, a idéia
abarca movimento, pois toda constituição depende de um processo interno para se
efetivar e prover – o condicionamento do mundo (que não acontece de uma só vez) é
parte constituinte da idéia, uma vez que a contingência deve ser supra-sumida; neste
sentido, o mundo é um processo em que cada fase supera e condiciona a seguinte
que é, por sua, vez condicionada e supra-sumida pela superior. Assim, a idéia lógica
condiciona a natureza, que condiciona o espírito que, por sua vez, volta a condicionar
a idéia lógica, já que o processo de desenvolvimento da idéia só pode ser reconhecido
e cientificamente conhecido na fase da consciência constituinte do mundo do espírito,
que é a mesma fase de constituição do mundo humano, ativo. Na fase mais elevada
da idéia, a idéia absoluta, a definição do sujeito-objeto idêntico é o auge da
potencialidade da investigação filosófica, pois é o próprio objeto de estudo da lógica;
neste patamar, “como a lógica é simplesmente pensar sobre pensar ou pensamentos
sobre pensamentos, o conceito está em plena concordância com o seu objeto, e a
verdade é alcançada” (Idem, ibidem, p. 170). E isto acontece porque a esfera da idéia
absoluta é aquela em que não há dicotomia alguma entre objetividade e subjetividade,
uma vez que foram supra-sumidas todas as inadequações do desenvolvimento do
conhecer, do eu, da moralidade e do bem, que são momentos do percurso em que a
vida deixa de ser adaptação ao ambiente e passa a ter no regramento normativo a
base de sua conduta e condição de perenidade num mundo de cultura. No absoluto, a
autodeterminação do todo tem o privilégio de se isolar de suas condições históricas e
empíricas e render-se somente ao universo do pensamento, que também, é claro, não
é um simples universo mental, mas o princípio autodiferenciador. Na vida ética do
Estado a idéia reaparece como a unidade entre indivíduo e vida política, ou seja, o
Estado plasma os indivíduos que lhe são constituintes, ao mesmo tempo em que, por
corresponder àquilo que devia ser, recebe os indivíduos como componentes livres
dentro dele, mas sem que estes indivíduos percam sua dependência com relação à
referida vida política, sob pena da dissolução estatal. Enfim, a idéia é o que tudo
abarca e ela corresponde às fases infinitas (pensamento, gnosiologia e ontologia) de
preparação do conhecimento.

Você também pode gostar