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DEUS na filosofia

doSECULOXX
GIORGIO PENZD ROSINO GIBELLINI
(ORGANIZAÇAO)

Bdicoes ioyola
22
MARTIN HEiDEGGER (1889-1976)
O DIVINO COMO O
NÃO-DITO
GIORGIo PENzOo

filósofo mais lido e discutido do século XX.


artin Heidegger é o
mais fundamentais da
.O seu pensamento penetra as expressões
entre outras disciplinas, a estética, a peda-
cultura contemporânea, como,
psiquiatria e, de modo particular,
a
a
gogia, a lingüística, a psicologia,
(Bultmann, Tillich, Gogarten, Fuchs, Ebeling),
teologia, não só protestante Heidegger nasceu
como também católica (Rahner, Guardini, Lotz, Fabro).
setembro de 1889 e morreu em
em 26 de
em Messkirch, na Alemanha,
os estudos secundários,
26 de maio de 1976. Ternminados
Freiburg, em
noviciado dos jesuitas para, em seguida, ingres-
duas semanas no
passou dois anos na
Estuda teologia católica durante
sar no seminário episcopal. à filoso-
ent o dedicar-se completamente
Universidade de Freiburg, para
em filosofia (1913),
obteve em 1915 a livre
fia. Depois do doutorado leciona na
sobre Duns Scotus. Em 1923,
-docência com um trabalho
como professor
extraordinário e, a partir de
Universidade de Marburgo sucedendo a seu mestre
ordinário em Freiburg,
1927, como professor atividade acad mica. Para
até o fim de sua
Husserl. E titular da cadeira de F. v. Brentano, Sobre
contribuíram o escrito
a sua conversão filosófica,
ente segundo Aristóteles, o tratado Sobre o ser
o significado múltiplo do modo particular, o encontro
C. Braig, e, de
do professor de dogmática
de Rickert a e com fenomenologia de Husserl
com o neokantismo

297
FILOSOFIA
DO SÉCULO XX
NA
DEuS
para se co-
particularmente importante
A vida de Heidegger não é realiza numa con-
desenvolvimento de seu pensamento,
que ele
nhecer o
única exceção é dada pelo fato de ter ade-
tinua e solitária meditação. A
em abril daquele ano,
1933 nacional socialismo, quando,
rido, em ao
Universidade de Freiburg, que deixará, porém.
aceita cargo de reitor da
o
discurso oficial, com o título de
de 1934. Fica famoso o scu
em março mesmo porque
será muito de-
universidade alem,
A auto-afirmação da da univer
Ao delinear uma renovação
batido depois do fim da guerra'.
fundamental do saber, ao
sidade do Terceiro Reich, ele
ressalta o serviço
discutiu sobre o
do trabalho e da defesa. Muito se
lado dos serviços
se pode contestar que
Heidegger não
germanismo de Heidegger. Não
romåntico, como a pátria,
libertar-se de alguns temas caros aos
consiga fim da Primeira
desilusôes políticas do
a terra e o povo. Por trás das
Guerra Mundial, Heidegger constata o
fato de que há tempos se perdera
se propõe uma renovação
o sentido autêntico da cultura. Por isso, ele
como também o cristianismo,
radical, da qual exclui não só o liberalismo
Por esta razão, ele
a sua força histórica.
porque há tempos teria perdido
movimento nacionalista. Mas depois
Julga distinguir uma renovação no
poucos escritos
da profunda desilusão de 1934, Heidegger só publica
filosóficos no fim da guerra. Trata-se de uma experiência análoga à que
terá ao mesmo tempo o teólogo protestante F. Gogarten, com o qual

Heidegger ministrara seminários durante a


docência em Marburgo?. Todas

Il 1933-
Heidegger, L'autoaffermazione dell'università tedesca.
rettorato
1. M.
Ormai solo
-34*. A cura di C. Angelino. Genova: lI Melangolo, 1988; M. Heidegger,
un Dio ci può salvare. Intervista con
lo "Spiegel". A cura di A. Marini. Parma:
Guanda, 1987. Há uma ampla bibliografia sobre o pensamento e sobre o engajamento
de Heidegger. Pode-se citar: V. Farias, Heidegger et le nazisme. Paris: Verdier,
político
1987: A. Schwam. Die politische Philosophie in DenkenHeideggers. Kön:
Westdeutscher Verlag, 1988; O. Pöggeler. Philosophie und Politik bei Heidegger
Freiburg: K. Alber, 1974; K. Jaspers. Notizen zu Martin Heidegger. München
Zürich: Piper, 1978; H. Ott. Martin Heidegger. Unterwegs u seiner Biographie. Frank-
furt a. M: Campus, 1988. CE. a respeito
G. Penzo, "Nietzsche e Heidegger e l'ideologra
del nazionalsocialismo", in VVAA. Heidegger. A cura di G. Penzo. Brescia: Morcelliana
1990, pp. 39-52.
*Em português, publicou-se um discurso de Heidegger de seu período com
reitor. Trata-se do "apelo aos estudantes de Freiburg", in Novos Estudos Cebrap,
Paulo: 22: pp. 100-101, outubro 1988. Tradução de Marfisia P. S. Lancellotti [n. do R.].
Sao
2. Entre as obras de Gogarten em tradução italiana, recordamos: F. Gogarten.
Destino e speranza dell'epoca moderna. Trad. di F. Coppellotti, appendice di E.
Amigoni. Brescia: Morcelliana, 1972;, L'uomo tra Dio e il mondo. A cura di A. Molinari.

298
O DIVNO
COMO O
NÄO-DITO
as numerosas obras de Heidegger desenvolvem as linhas essenciais de seu
nensamento abordado na obra
fundamental, Ser e tempo (1927). Dep
dos escritos
dos de 1929
(Queé metafísica?'; Sobre a essência do jfunda-
a
mento"; Kani e o problema da metafisica), fala-se de uma "reviravolta" no
pensamento de Heidegger. Ela consistiria em ressaltar, na problemática
do ser-ai (Daseim) delineada em Ser e tempo, a atbertura ao ser (Sein). Isso
iá se pode constatar em algumas obras que são publicadas nos anos 40,
mesmo se toram escritas na década de 30, como A doutrina platónica da
verdade, Sobre a essência do fundamento e também na carta Sobreo
"humanismo. Dentre as obras da maturidade, publicadas entre 1950 e
1962, podemos recordar: Caminhos que não levam a lugar nenhum

(Holzwege), Que significa pensar?, 0 princípio de razão, A caminho daa


linguagem. Um ano da morte de Heidegger, em 1975, inicia-se
antes
publicação de todas as suas obras, cerca de 80 volumes.
Mesmo que em suas reflexões sobre o ser-aí, o ser e o sagrado,
sistemá-
Heidegger não pretenda apresentar o seupensamento de modo
levar à
único pensamento. Este consiste em
tico, sempre aprofunda um
existência do homem ou do
luz, exatamente como Nietzsche, o sentido da definitiva.
pergunta não pode haver resposta
uma
ser-aí (Dasein). A essa
da pergunta
Toda resposta se revela como um posterior aprofundamento
(Que é isso a filosofia?9).
mundo e ser, ou a natureza do
seja, ser-
da relação entre
Ao tratar
da metafisica ocidental para
deixa de lado o terreno batido
aí, Heidegger
su Dio. A cura
di G. Penzo. Brescia:
1971; La questione Penzo. Brescia:
Bologna: Dehoniane, L'annuncio di Gesù
Cristo. A cura di G.
Queriniana, Bréscia, 1971; Chiesa. A cura di G. Penzo.
Brescia: Queriniana,
Demitizzazione e ed
Queriniana, 1978; tra storicismo
F. Gogarten. ll problema di Dio
G. Penzo. onde se trata da
1981; cf. a esse respeito 1981 (em especial a parte III,

esistenzialismo. Roma:
Città Nuova, del XX secolo.
Brescia:
Gibellini. La teologia
problemática política); cf. também R.
130-142.
19-21; pp. Paulo: Duas Cidades,
Queriniana, 1992, pp. de Ernildo Stein. São
Tradução
3. Que é a metafisica?.
1969 [n. do R.]. introdução e notas de
2" edição. Tradução,
fundamento.
4. Sobre a essência
do
1983 (Os pensadores)
[n. do R.].
Cultural, notas de Emildo
Paulo: Abril introdução e
Emildo Stein. São Tradução,
" h u m a n i s m o " . 2" edição.
do R.].
5. Sobreo
1983 (Os pensadores) [n.
Cultural, introdução e notas
de Emildo
Stein. São Paulo: Abril Tradução,
filosofia?. 2 edição. do R.].
6. Que é isso-a
(Os pensadores) In.
1983
Abril Cultural,
Stein. São Paulo:
299
DEuS NA FILOSOFIA DO SECULO AX

seguir o método fenomenológico inaugurado por Husserl'. Graças ao seu


mestre, Heidegger tematiza o horizonte do ser em relação com o tempo.
ESsa problemática é própria também do pensamento metafísico. Porém,
nessa relação, Heidegger consegue revelar, como Nietzsche e Jaspers,a
dimensão do não-tempo ou da eternidade existencial como sentido últi-
mo da existência do homem. A esse respeito, Heidegger fala de
temporalidade. Com essa expressão, ele quer dizer que o sentido do ser
não está fora do tempo, como no pensamento metafisico, mas no próprio
tempo, embora obviamente este não seja entendido num sentido
cosmológico, mas existencial.
Em Ser e tempo, Heidegger retoma esse ponto de vista fenome-
nológico, nele ressaltando o aspecto ontológico. E significativo o$7. Ele
observa que o método fenomenológico não está subordinado nem a um
"ponto de vista" nem tampouco a uma "corente", mas significa apenas
o "como se leva adiante essa pesquisa. Isso já fora dito por Huserl na
introdução ao segundo volume das Investigações lógicas. Mas Heidegger
não considera o "como" do mesmo modo que seu mestre. O retorno às
coisas de que fala Husserl significa, para Heidegger, revelar o significado
originário do fenômeno. A expressão fenomenológica no se refere ao
objeto da ciência, como, por exemplo, a biologia ou a teologia. Numa
análise filológica dos dois termos, fenômeno e lógos, Heidegger esclarece
o momento origináio deles.

O termo phainómenon, que deriva de pháinesthai, exprime o mani-


festar-se no sentido de trazer à luz. Antes, pháino implica pha, phós, que
significa luz. O fenômeno é, assim,o-que-se-manifesta-em-si-mesmo, Mas
esse manifestar-se não é o mero aparecer como aparêencia, mas um "anun-
ciar-se" que se esclarece como um "encontrar". A mesma dimensão ori-
ginária revela-se na análise do termo lógos. Em seu sentido originário, ele
não indica "discurso", mas "linguagem", entendida como um deixar-verk
a coisa assim como é. Com isso, Heidegger quer ressaltar que o momento
originário do que se mostra como algo que se anuncia não pode ser
esclarecido através de conceitos abstratos. Em vez disso, estes encobrem
a dimensäão originária. O que se anuncia jamais pode ser apreendido e
definido como o que é anunciado. Neste contexto, com efeito, reaparece

7. Cf. A. Ales Bello. Husserl. Sul problema di Dio. Roma: Studium, 1987.
8. Há tradução da Sexta Investigação das Investigações. Tradução de Zeljko
Loparic e Andréa Loparic. São Paulo: Abril Cultural, 1980 (Os pensadores) [n. do R.].

300
DIVINO COMO O
NÃO-DIT
o
predominio da estrutura do lógos como lógica, onde a verdade c
ematizada no ämbito
tem da gnosiológico representação.
A fenomenologia revela a natureza originária do ser-aí como possl
bilidade em nivel
ontológico e não mais lógico. O ser como
poSsibilidaae
é. por essencia, não-tematizável e, por isso, é um permanecer-fora-de.
Nesse não-ser-tematizável, o ser foge do alcance do conhecer. Sob esse
aspecto, o ser como nao-tematizável é não-ente e, portanto, nada. Isso
implica que o procedimento filosófico desenvolve-se mediante um pensar

que não é o conhecer tipico da ciência.


Pensar significa sempre pensar o Ser.
O ser-nada mostra-se, assim, por definição, como o outro do ente,

donde a essência do fundamento), que


diferença ontológica (cf. Sobre a
tematizar o ser, mas,
é distinta da diferença metafisica. Essa última pensa
A razao
na realidade, tematiza o ente, mesmo se como ente supremo.
ser como substäncia.
disso consiste no fato de que a metafísica pensa
o
ser-nada como
revela o
A ontologia existencial de Heidegger, porém,
possibilidade.
de
o ser indica um
modo diferente
Esse modo diferente de explicar
substância tem as suas
considerar a relação tempo. O ser como
entre ser e
suceder-se de
cosmológica do tempo como um
raizes n u m a concepção tem as suas
O ser-nada como possibilidade
momentos ligados ao espaço. horizonte do
que se funda num
de temporalidade
raízes n u m a concepção Essas
m e s m o futuro
do tempo cosmológico.
o
futuro que não é, porém, sua vez, implicam
um
e tempo, que, por
diferentes entre ser considere-
relações ser esclarecidas
caso
falar de Deus, podem aber-
modo diferente de abertura em nível ôntico e a
abertura: a
mos o ser-aí e m sua dupla
tura em nível
ontológico. ou
fenömeno ""originário" do ser-aí,
esclarecer o
da lógica
A abordagem para vimos, a do lógos típico
como
pode ser, análise
seja, o ser-nada, não prefere falar de u m a
conceitos. Heidegger consciência de)
dos homem tem
e, portanto, cotidiano. O
do ser-aí e m seu
o
ser-no-mundo implica
fenomenológica nele. Assim, do
mundo como "jogado" abertura à realidade
Se achar no entes e a
abertura aos particular
a esse ente
abertura do ser-aí, o homem
é
a dupla como
nada. Só como uma
ao s e r mundo
nao-ente, ou seja, O ser-aí não está no
ao ser.
metafísica.
c o n c e b i d o pela
está aberto também é
Lque Deus,
como
porém, "está
animal ou c o m o Para o homem,
um
planta, presentes". funda-
entes
"simplesmente aberto ao seu próprio
Esses são homem está
ser'. Por isso, o
em jogo o seu 301
DEus NA FILOSOFIA DO SEC

do intelecto cognoscente, mas


abordado através
mento. que
não pode ser
assim, revelada uma pos-
mediante uma análise existencial.
No ser-aí é,
e ente.
sibilidade existencial de encontro entre ser

dupla abertura do
é esclarecida na
Essa possihilidade de
encontro
fenômenos existen-
inautêntico da abertura é tratado nos
ser-aí. O âmbito Esses fenô-
"curiosidade" e da "equivocidade".
ciais da "tagarelice", da "decadéncia" ou
da
menos e n r a i z a m se no fenômeno mais originário
da abertura,
como estar em queda. O âmbito autêntico
queda, centendido
existenciais originários
da "situa-
fenômenos
por sua vez, é esclarecido nos
afetiva
e da "linguagem". A situação revelat
ção afetiva", do "compreender"
se mostra
não só como medo.
seu aspecto ontológico na medida em que abre caminho
da angústia
mas também como angústia. Um aprofundamento
definido como "cuidado".
para um fenômeno ainda mais originário,
revela-se como
Nesse horizonte, o tempo ôntico, ligado ao espaço,
ao nada: trata-se do fenômeno
tempo ontológico, ligado ao no-espaço,
é dado pelo fe-
da temporalidade. O sentido último dessa temporalidade
nomeno existencial da morte, que serve de fundamento de todos os ou-

Esses
tros. O ser-aí pode ser definido, assim, como o ser-para-a-morte
fenômenos existenciais em nível ôntico e ontológico entrelaçam-se entre
si. Revela-se fundamental, nesse entrelaçamento, a dimensão existencial-

ontológica da decadência ou queda.


Na carta Sobre o "humanismo", Heidegger observa que a natureza
da decadéncia assim como é explicada em Ser e tempo não deve ser
interpretada num sentido antropológico e moral, posto que exprime a
verdade do ser. Vale dizer, ela exprime o fato de que o ser não foi pensado
em sua essência. Mais precisamente, a decadência ressalta, na relaço
entre o homem e o ser, a intrínseca "finitude" do ser. Com isso não se
quer dizer que o ser se encontrasse antes no estado de luz, de perfeição,
e que de repente decaísse. Pelo contrário, o ser começa a sua história
justamente como decadência e depois como ocultação. A decadência
exprime, no fundo, o furtar-se do ser a toda tentativa de ser tematizado
pelo intelecto cognoscente. A morte como fundamento último da finitude
ontológica do ser-aí deve ser entendida a partir justamente desse furtar
-se e, portanto, da de-cadência.

Mostra-se, assim, o profundo sentido "teológico"


fenômeno. Não há uma queda do homem por causa decompreendido
nesse
uma culpa
ria. E, por conseguinte, não tem sentido falar de originá-
uma
redenção moral.
302
O DIVINO COMO O NÃO-DITO

Trata-se de uma tematica que é comum também a Nietzsche. Este último,


embora admirador de Pascal, critica-o porque aceita a visão crist de uma
embora adm

culpa originaria da existência. De fato, se o ser é finitudee se o ser é, por


isso, ocultaçao, isso não depende do homem, mas do próprio ser. Assim,
também a morte não é apenas a razão da finitude do ser-aí, mas se revela
também como o lugar mais profundo do esconder-se do ser. O homem
não pode dispor da morte, que assinala, assim, o limite intransponível de
s u a finitude.

A decadencia apresenta-se, assim, como a ponte que une a realidade


existencial ôntica à ontológica. Todo discurso filosófico-teológico deve
enfrentar esse fenömeno. São dois os pensamentos de fundo que se en-
trelaçam. Com o primeiro, constata-se que o ser-aí não é compreendido
através do ente, mas do não-ente, do nada que é o autêntico ser. Como
segundo, ressalta-se que não depende do homem o fato de estar aberto ao
ser, mas do próprio ser. Em outras palavras, a ocultação do ser, ou seja,
fundo do não do comportamento do
o estar-em-queda, depende no ser e

homem. Não trata de um problema ético, mas ontológico. Essa refle-


se
xão torna problemática a própria decisão do homem e, portanto, a dimen
são de sua liberdade. O homem decide-se pela liberdade autêntica quando
se abandona à abertura do ser.

Esse duplo modo de ser da decadência, que explica o entrelaçamen-


to destino do homem e o destino do ser, implica, por sua
essencial entre o
considerar o tempo. Em Ser e tempo, fala-se do 7
vez, o duplo modo de
é o
conceito vulgar do tempo, entendido como simples-presença, que
terreno em que se desdobra o conhecimento como relação entre sujeito e

Física de
Lobjeto. A primeira interpretação explícita encontra-se na

permanece ancorado também Hegel.


O tempo é visto
Aristóteles, qual
na
O passado n o é mais
como sucessão de momentos a partir do presente.
tempo O é entendido como
presente e o futuro ainda não é presente.
o
o
fundamento do etemo, donde o horizonte
passar. O que passa não pode ser o
último dos valores do homem.
objetivo do eterno como fundamento
ou a "temporalidade". Ele não
Muito diferente é o tempo ontológico
não está ligado ao
exprime o fluir dos diversos momentos, posto que
Como tal, ele tem uma dimen-
espaço, mas exprime o plano da revelação. éo porvir como
são O fenômeno primário da temporalidade
escatológica.
estar-diante-de. Para distingui-lo doporvir cosmológico, Heidegger, com
na base do feno-
escreve esse termo como por-vir. Isso estâ
Treqüência,
meno ontológico da morte.

303
XX
FILOSOFIA DO SÉCULO
DEus NA

implica duplo
um modo
de
duplo modo de considerar tempo uma verdade ôntica coma
o
Esse
ser da verdade. Ao tempo ôntico
corresponde
verdade-certeza. E å temporalidade
concordância e exatidão. Trata-se da
uma verdade ontológica
como revelação, como acontecer, corresponde
verdade como certeza, a questão sobre
como a-létheia, não-ocultação. Na
a esséncia do conhe-
como questão sobre
a essência da verdade é tratada
entre sujeito e objeto
conhecido. A reali
cer, que é expressa na relaço
dade que cai sob o processo cognitivo
é sempre uma realidade determi-
desdobra no âmbito do tempo
nada. E presença como substância que se
cronológico. Trata-se de um procedimento típico do pensamento metafisico.
No curso desse pensamento, vê-se unida ao ser como presença a

dimensão grega de causalidade, na qual mais tarde é inscrita a concepção

bíblica de criação. Donde o ser como ato puro, Sumo ente, perfeiço
a que se dá o nome de
Deus. Em seguida,
a0SOuta e verdade Suprema,
com o triunfo da metafísica subjetiva, os atributos que eram dados ao
Deus criador passam ao eu puro, como fonte última do conhecer. Assim,
O sumo ente, definido anteriormente como Deus e depois como eu puro,
cai sempre no âmbito do pensamento que representa e, portanto, sob o
poder das categorias lógicas. Contra esse método metafísico de levar
adiante o discurso sobre a verdade-certeza já polemizara Nietzsche e,
antes dele, Max Stirner. Este último, em sua obra O único e a sua pro-
priedade (1844), mostra as conseqüências paradoxais desse modo de pro-
ceder, que consegue não mais esclarecer o espaço sacral do nada, mas põe
o discurso racional diante do "nada"°,
Diferente é a dimensão de ser-nada que é abordada pelo pensamento
não-representante ou contemplante. Por isso, tal ser, que por essência é o-
que-não-pode-ser-representado, pode ser definido como o que por essên-
cia permanece-fora-de. Isto é, fora da concepção do ser-presença, tipico
da metafisica. Tal ser se esclarece, de preferência, como "dar-se", "acon-
tecer". Ou antes, o ser não só se dá, mas deve necessariamente dar-se. A
própria liberdade vem, assim, a coincidir com o necessário dar-se do ser.
Nessa dinâmica existencial, o ser, no momento em que se dá ao ente,
ilumina o ente e esconde a si mesmo. Daí a especial dialética da verdade
do ser como desvelamento-ocultação, que representa a dimensão da ver-
dade originária.

9. Max Stirner. L'unico e la sua


proprietà. A cura di G. Penzo. Milano:
Mursia, 1990; cf. G. Penzo. Max Stirner. La rivolta esistenziale.
Genova:
Marietti.
19923.

304
O DIVINO COMO O N

Por isso, é
também definido como "destino"', como "ser epocal
0 ser
Tal dimensão do ser escapa à metafísica, que permanece fechada numa
verdade-certeza. As características fundamentais da verdade-certeza tipica
do pensamento metatisico, que torna suas as categorias do pensamento
científico, sao a evidéncia e a segurança. O modelo de tal verdade C
justamente,a luz. O ser-nada de Heidegger não se revela, porém,
originári0 dar-se como luz e, portanto, como segurança: ele é, enquanto
tal, ocultação, ou ser-em-queda.

Entende-se, assim, por que o ser em sua dimensão originária de

subtrair-se e esconder-se implique também o fenômeno do risco, que e

filosófico e teológico ao mesmo tempo. O subtrair-se comporta a impos-


sibilidade que o intelecto tem de "explicar" a natureza do ser. Este pode
ser tratado apenas pelo "compreender", que, como dissemos, representa,
junto com a afetiva e a linguagem, a abertura ontológica do ser-
situação
horizonte do real
aí. O compreender tem a missão de esclarecer aquele
No compreender abre-se a realidade do sagrado.
que foge ao conhecer.
metafísica. Se
Trata-se de um sagrado que é mais originário do que o da
será conseqüentemente a
esta última é a história do esquecimento do ser,
não tematizável, cai
história da perda do autêntico sagrado, que, enquanto
|

no ambito do nada.
niilismo é o horizonte em que
Daí a tese de Heidegger de que o
revela no silêncio.
pode ser abordado o sagrado típico do ser-nada, que
nada permane-
se

a problemática do
No quadro do pensamento metafísico, escreve que
No texto Identidade e diferença", Heidegger
ceu marginal.

experiência da teologia, quer da teologia da


fé crist, quer da
quem teve
da filosofia, prefere, no âmbito do pensamento, calar-se sobre
teologia
do sagrado sem encerrá-lo numa respos-
Deus. Heidegger põe o problema não-
for tratada pelo pensamento
se a pergunta
ta decisiva. Isso é possível
conclusão do ensaio "A questão da técnica'", que
-representante. Como
e s c r e v e que "O pergun-

lido em Ensaios e discursos, Heidegger


pode ser
não está no nível religioso,
mas
Essa piedade
tar é a piedade do pensar".
no nível do ser.
justamente porque o seu
pode acusar Heidegger de ateísmo,
Não se da metafísica. Sob
pensamento-que-representa

"pio" está além do também na


pensar como0 se pode ler
esse aspecto, ele não é nem
ateu nem teísta,
e notas de Emildo
Tradução, introdução
10. Identidade e diferença. 2" edição. do R..
(Os Pensadores) [n.
Cultural, 1983
Stein. São Paulo: Abril
305
pois, que, do ponto de
Não é de espantar,
que falar de filosofia
"humanismo"".
carta Sobre o Heidegger diga
"pio", n
um ferro de pau.
quadrado e de
pensamento
vista do seu

que falar de um circulo D e u s deve


ser conside
crista é o mesmo se
le-se que,
pela religiosidade d
reviravolta,
técnicaea
No texto A decidido nem
ser
ou morto,
isso não pode mas só pela "concto
rado vivo filosótico,
pensamento
homem e ainda menos pelo a possibilidade de um
questionar
ele não quer
lação do ser". Com isso,
do diálogo que é levado adiarn
mas só
filosofia e teologia, trazer à luz um Den-
diálogo entre No própri0 estorço de
metafisico.
pelo pensamento categorias logicas, está implícitaa
originário" queescape às
samento "mais

a nova dimensão do sagrado.


horizonte do pensamento
divino se abre no
ou o
Assim, sagrado
poder do homem. Em Ca-
o

sagrado se furta
ao
que a fonte do
"pio" em
Heidegger escreve que o pensa-
minhos que não levam a lugar nenhum, Fala também de
desde que há ser.

mento do ser surge", mas existe


"'não
o pensamento decai
destino do ser", que se
tem quando
um "lamentável

ao nível da ciência e da fé.


observação de fundo que tem um
A esse respeito, pode-se fazer uma
nitidamente
não se pode distinguir
desdobramento teológico. Vimos que

entre explicar e compreender. Isso implica


que hâ um entrelaçamento
e pensamento do ser-nada.
Tal
essencial entre pensamento metafísico
nos diversos modos de falar
entrelaçamento, obviamente, repercute-se
sobre o divino. Com isso, não se
uma
deve pensar que o ser-nada seja
num determinado tem-
expressão do pensamento metaf+sico, que aparece
deve pensar que, por exemplo, depois das intuições
po. Ou seja, não se
de Aristóteles, Platão, Descartes e Nietzsche, apareça a de Heidegger. A
realidade do ser como Heidegger a concebe estásempre presente nas
diversas expressões metafisicas, Justamente porque o pensamentO do ser
não surge"no tempo. Ele estasemprepresente.mesmo que como ausen-
te. Sob este aspecto, pensamento metafísico é também con-
a história do
siderada como história do ser, no sentido de que se trata da história do
esquecimento do ser.

Á luz do ser-nada, a metafisica revela, assim, dois aspectos. Um é


dado justamente pela história da metafisica como história da ausência do

11. Cf. G. Penzo. "Se l'essere sia 'capace' di Dio. Riflessioni inattuali sulla
secolarizzazione nella problematica di M. Heidegger", in VVAA. La recezione italia-
na di Heidegger. A cura di M. Olivetti. Padova: Cedam, 1989, pp. 159-179.

306
O DiVINO COMO o NÃO-DITO

ser. Isso implica, no contexto do ser-nada, o esforço de "superar" a con-


cepção öntica do ser, que é representada pelos diversos sistemas
metafisicos. A esse respeito, Heidegger fala também de "destruição". Não
se trata, obviamente, nem de uma total superação nem tampouco de uma
total destruição da metafisica. Essa superação comporta, por sua vez, a
necessidade de superar as diversas figuras metafísicas de Deus, 0 outro
aspecto da metatísica mostra-se quando se tem em mente a compreensão
do ser. Com isso se quer observar que, no fundo, o ser está sempre
presente no curso do pensamento metafísico, mesmo se como "ausente".
E claro que essa presença como ausência do ser não é a mesma presença
do ser metafisico, que é presença como substância. A presença-ausëncia

revela-se Justamente como dar-se, como evento, como destino.


Assim, justamente no âmbito do ser-nada, ou seja, a partir do pen-
samento "pio'", encontra implicitamente certa legitimidade o discurso sobre
as diversas figuras que assume o Deus da metafísica em suas multiplas
expressões. Revela-se, assim, uma essencial relação entre o divino e o
Deus da metafisica e a dimensão sacrale divina do ser de Heidegger
Essa relação, respectivamente entre momento inautêntico e momento
autêntico da sacralidade, é continuamente discutida através da categoria
existencial-ontológica da superação ou da destruição. Essa problemática
da superação, que lembra bastante a superação de Zaratustra, implica, por
sua vez, a problemática da secularização.

Ao contrário de Jaspers, que quis entrelaçar um discurso sobre a


relação entre o seu filosofar e a revelação, Heidegger tem oportunidade
de entrar em discussão com a problemática teológica na conferência pro-
ferida em 1927 aos teólogos protestantes de Tübingen, com o título Fe-
nomenologia e teologia. As reflexões "teológicas" que se lêem nessa
conferência são óbvias se tivermos em mente as características de fundo
do seu pensar. A teologia não é uma ciência como as outras, dado que o
seu objeto é a fé que, enquanto possibilidade existencial, inaugura um
contrário do
Porisso,
relação que supera o conhecer como explicar. ao

vë uma entre fé e saber


oposição
pensamento metafísico, Heidegger não
ou entre revelaçãoe razão. A teologia que tem o seu objeto na fé crist
é abordada na dimensão existencial do viver humano.

leva adiante, mesmo que de


12. Na sua concepção do ser-Deus, Heidegger
modo fenomenológico, um discurso que é túpico de Mestre Eckhart. Não é por acaso

que emalguns de seus escritos, e em particular nos póstumos, Heidegger cite com
esse respeito, entre outros, G. Penzo. Meister
admiração o místico alemão (cf. a

Eckhart. Una mistica della ragione. Padova: Messaggero, 1992).

307
SÉCULO XX
FILOSOFIA
DO
DEUS NA

mas remete ao crente.


exaure objeto, no
Por conseguinte, a fé não se
tem como objeto oque é crido,
a teologia é ciência da fé, não enquanto
como relação existencial com
Esta se mostra
mas enquanto brota da fé.
revelaçao. A tareta da filosofia
0 Jesus crucificado, que é atestado pela
a dimensão existen. do evento cristão, 7.cc
consiste em tornar transparente
existenciale por issopode ser revelado pela
Este é sempre um evento
ao fenómeno histórico do cristia.
compreender. A teologia não pertence
nismo, mas é o que toma possível que
haja o cristianismo como evento
se mostra, como Jaspers, um
da história universal. Assim, Heidegger
de Nietzsche"
genial intérprete do Anticristo
em crise não
Por outro lado, é dado cultural que Ser e tempo pös
um

metafisico, mas sobretudo pensamento


o teológico ba-
só o pensamento
R. Bultmann
seado na metafísica. E sabido que o teólogo protestante
com a sua interpretação existencial da Sagrada
Escritura, elaborada gra-
com Ser e
influenciou de modo decisivo duas
ças a diálogo
um tempo,
não só protestantes como também católicos.
gerações de teólogos
Por isso, penso quedo juízo de Sartre em seu texto O exis-
acerca
tencialismo é um humanismo", ou seja, que Heidegger seria antimetafísico
e ateu, devemos fazer uma observação. Heidegger é obviamente ateusó
enquantoantimetafísico, istoé, se tivermos em mente o Deus da metafi-
faz acerca de Heidegger
SIca, Compartilho, porém, o juízo que Gadamer
no seu Os caminhos de Heidegger, quando escreve que a radicalidade de
seu pensamento deixa para trás também o "dogmatismo ateu.

De resto, esse é um pensamento que se acha explicitamente num


importante escrito póstumo sobre o sagrado, sobreo divino e sobre Deus,
com o título Contribuições à filosofia (Beiträge zur Philosophie), em que
Heidegger fala da relação essencial que existe entre 0 ser com0 evento
(Ereignis) e Deus, Essa relação intrinseca não seria possível se o ser não
se apresentasse intrinsecamente como necessitado de Deus. Heidegger
fala do último Deus como de um novo início, pelo que haveria uma
relação essencial entre o último Deus e a verdade do ser em nível autên-

13. F. Nietzsche. L'Anticristo. Milano: Mursia, 1982.


14. O existencialismo é um humanismo. 3 edição. Tradução de Rita Correia
Guedes. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os pensadores) [n. do R.].
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308
O DiVINO COMO O NÃO-DITO

tico. No S 256 da parte VI, lê-se que último Deus está além de toda
o

determinação como mono-teísmo, pan-teísmo e a-teísmo. Heidegger ob-


serva, a este respeito, que se fala de monoteísmo e dos diversos generos
de tesmo apenas a partir da apologética judeu-crist, que tem a metafí-
sica como pressuposto filosófico. Com a morte do Deus da metafísica,
porém, caem todas as expressões do teísmo.

BIBLIOGRAFIA

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