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1

ALEXANDRE SANTOS

UM OLHAR SOBRE A
FICÇÃO E REALIDADE

2
Copyright© Alexandre José Ferreira dos Santos

EDIÇÕES MOINHO

Organização associada à Câmara Brasileira de


Desenvolvimento Cultural.

Conselho Editorial
Alexandre Santos
Jacinto Almeida
Gérman Cárceres
Caio Porto
Carlos Newton Júnior

3
A fronteira ente a Ficção e a Realidade é
uma linha muito tênue

4
Aos loucos e mentirosos, que não sabem
a diferença entre a realidade e a ficção

5
UM OLHAR SOBRE A
FICÇÃO E REALIDADE

6
SOBRE A FICÇÃO EM PERNAMBUCO
Comentário apresentado por ocasião do Festival
Literário de Garanhuns (FLIG), em 2006.

Muito me alegra participar deste I


Festival Literário de Garanhuns – um
evento que, ao materializar mais uma
brilhante ideia do escritor João
Marques com o apoio decisivo do
prefeito Luiz Carlos de Oliveira, coloca
Garanhuns sob os holofotes que
iluminam as cidades líderes da cultura
nacional. Aqui, hoje, estão reunidas as
maiores expressões da literatura
pernambucana, membros de academias
e associações, inclusive da União
Brasileira de Escritores, da Academia
de Letras e Artes do Nordeste, da
Academia Pernambucana de Letras, da
Academia Recifense de Letras e de
tantas outras.

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Muito me alegra também
participar deste painel sobre a ‘Ficção
em Pernambuco’.
Este é um tema fascinante e
muitos poderiam ser tentados a
discorrer sobre a fantástica obra dos
nossos escritores. Escritores
maravilhosos, que marcam a literatura
brasileira com livros ousados, estilos
próprios e característicos de diferentes
épocas. Eu poderia ser tentado a falar
sobre escritores e livros que levaram a
literatura ficcionista de Pernambuco
por trajetória de brilho, que romperam
as fronteiras do Estado e da região para
consagrar o Estado como berço de
grandes autores. Para não falar dos
grandes vultos que iluminaram as
letras do Estado no século XIX – como
Franklin Távora, Carneiro Vilela e sua
maravilhosa ‘emparedada da Rua Nova’
8
escrita ainda em 1886, Farias Neves
Sobrinho, Oscar Leal, Teotônio Freire,
Manuel Arão e Medeiros &
Albuquerque, que compôs a letra do
Hino da Proclamação da República – ou
de escritores que deram brilho a nossa
literatura por diversos momentos do
século passado – como Aderbal de
Carvalho, Josefa de Farias, Carlos Dias
Fernandes, José Condé, Osman Lins,
Edilberto Coutinho, Gastão de Holanda,
Haroldo Bruno, Hermilo Borba Filho,
Ayrton Bayma, Waldemar Lopes e
William Ferrer –, poderia falar da obra
de escritores que, neste início de novo
século, alimentam o gênero ‘Ficção’
com outras gotas de genialidade
literária – como Ariano Suassuna,
Armando Souto Maior, Olímpio Bonald
Neto, Rostand Paraíso, Ana Maria
César, Cyl Gallindo, Telma Brilhante,

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Luciene Freitas, Edna Alcântara, Cloves
Marques, Mário Márcio, Luzilá Ferreira
Gonçalves, Amílcar Dória Matos, Leny
Amorim, Manoel Rafael Neto, Nazareth
Gouveia, Maria Valderez, Elizabeth
Brant, Rosa Lia Dinelli, Luiz Gonzaga
Lopes, Verônica Nery, Zilda Maurício
Crisóstomo, Bartyra e Pelópidas Soares,
Luiz de Freitas, Esther Camurça, Dirceu
Rabelo, Tereza Tenório, Lúcio Ferreira,
Everaldo Moreira Veras, Bernadete
Serpa, Vital Correia de Araújo, Ducinéa
e Reinaldo de Oliveira, Lygia de Souza
Leão, Waldênio Porto, Aluízio Furtado
de Mendonça, Alvacir Raposo, Cláudio
Aguiar, Carlos Cavalcanti, Selma
Vasconcelos, Odile Cantinho, José
Wanderley, Milton Lins, José Nivaldo,
Margarida Matheus, Djanira Silva,
Laudemiro Telino de Lacerda, Perseu
de Castro Lemos, Lourdes Sarmento,

10
Abdias Moura, Alberto da Cunha Melo e
tantos outros.
Mas, talvez desiludindo alguns,
vou trilhar outro caminho.
Quando lancei o romance ‘O
moinho’ ouvi muitos comentários e o
que mais me marcou foi aquele
proferido pelo poeta Laudemiro Telino
de Lacerda que, a guisa de elogio, abriu
um carinhoso sorriso e disse:
“Alexandre, você é o maior mentiroso
que conheço!”. Colocado daquela forma,
ele tinha razão, pois, afinal de contas,
muitos afirmam que a ‘FICÇÃO’ é o
gênero literário das mentiras.
Para muitos, o nome diz tudo. A
palavra latina ‘Fictionem’ significa o
efeito de fingir, de simular. Ou seja,
‘Ficção’ é a categoria literária das
mentiras. Das invencionices
verossímeis ou inverossímeis,
11
conforme o tamanho da impostura,
mas, sempre mentiras. E os romances,
poemas, contos, novelas, fábulas e, até
mesmo, crônicas são perfilados no
vasto reino dos fingimentos. Com
efeito, a arte de modo geral, incluindo a
literatura, nunca se preocupou em
descrever a realidade tal como o
mundo a vê, mas em retratá-la como o
artista a sente. Para Aristóteles, “a arte
literária é a arte que imita pela palavra”
e, dessa forma, a função do artista não é
retratar o que acontece, mas o que
poderia ter acontecido. Nesta
perspectiva, a obra de arte não precisa
ser o retrato fiel da realidade, mas ter
uma coerência interna que a faça
assemelhar-se à verdade. E, assim, por
toda a história, a arte é considerada o
universo dos sonhos e a literatura, em
especial a ficção, o gênero das mentiras.

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Isso, no entanto, nem sempre é
bem aceito pelos escritores. Numa
crítica sutil, o fenomenal Fernando
Pessoa reagiu e, na primeira estrofe do
poema ‘Auto-psicografia’, esclareceu:

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

A dor sentida pelo artista parece


fingida aos olhos do expectador apenas
por vir na carruagem da arte. No reino
da mentira, a verdade parece mentira.
Mas o que é a mentira? O que é a
verdade?
Estaria mentindo a pessoa que,
sinceramente, chama de Ponte Velha a
Ponte da Boa Vista, que lhe parece mais
13
velha? Ou a pessoa que repassa como
verdade informação inverídica que
tenha recebido de alguém da sua
confiança? Quem disse que o nome
desta maravilhosa cidade é
‘Garanhuns’? Por que não Petrópolis?
Uma convenção diz que o nome é
Garanhuns e, assim, chamá-la de
Petrópolis é uma inverdade. Como
curiosidade, vale o registro que,
embora muitos digam que o nome
consagrado à cidade se origina do
vocábulo ‘Uraanhu’, José de Almeida
Maciel diz que a verdadeira razão
repousa nos Guiránhum, os Pássaros
Pretos, que abundavam na região.
Mentira? Verdade? Pouco importa. O
fato é que, vinda de Uraanhu ou de
Guiránhum, o nome ‘verdadeiro’ desta
bela cidade é Garanhuns e pronto!
Quem chamar esta cidade de Petrópolis
14
não estará dizendo a ‘verdade’. A
documentação oficial afirma que a
fundação do município de Garanhuns
ocorreu em 10 de março de 1811 – data
que reflete o relógio do calendário
romano, reformulado pelo Papa
Gregório em 1582. Que dizer que, se
apontada com base em outro
calendário – o islâmico, o judeu, o
chinês ou o que vem sendo estudado
pela ONU – a data da fundação de
Garanhuns seria outra. Estaria faltando
com a verdade quem afirmasse que
Garanhuns foi fundado em 5.026? Em
Garanhuns, enquanto o recifense sente
frio, um europeu pode sentir calor.
Estará mentindo o recifense, que sente
frio, ou o europeu, que sente calor?
Estarão mentindo os livros de
geografia e de história? Ou estarão
apenas refletindo verdades e valores
15
aceitos em determinada época por
comunidades específicas. Nomes, datas,
valores, sentimentos e aparências
refletem opiniões e convenções,
refletindo conceitos inconsistentes que
podem mudar em função de
referenciais e modas, nada significando
em ternos de verdade ou mentira.
Frase atribuída a Friedrich
Goebbels diz que “uma mentira dita mil
vezes se transforma em verdade”. Se
uma mentira pode se transformar em
verdade, o inverso também seria
possível?
No segundo período da história do
pensamento grego, no século IV a.C,
também conhecido como o Período
Antropológico pela importância que
atribuiu ao homem e ao espírito
inaugurando uma nova fase na história
da compreensão dos fenômenos,
16
Demócrito (460-370 a.C.) contestou
Protágoras (defensor de que todas as
sensações eram igualmente
verdadeiras para o objeto sensível) e
afirmou que todas as sensações são
falsas, pois não têm contrapartida real
fora do objeto sensível.
Fundamentando seus ensinamentos,
Demócrito distinguiu aquilo que é
‘Convenção’ (nómos), ou seja, fruto de
uma opinião e de um acordo entre os
homens, daquilo que é ‘Natureza’
(phýsei). "Por convenção – disse ele –,
há o doce, o amargo, o quente, o frio, a
cor... as nossas sensações não
representam nada de externo, apesar
de serem causadas por algo fora de
nós... Esta é a razão porque a mesma
coisa às vezes dá a sensação de doce e
às vezes de amargo... nós, na verdade,
não conhecemos nada de certo,

17
somente que as coisas mudam de
acordo com a disposição do corpo e
com aquilo que nele penetra ou lhe
opõe resistência [por isso] não
podemos conhecer a realidade, pois, a
verdade jaz num abismo". Com esta
linha de pensamento, Demócrito foi o
precursor da lógica dialética, retomada
no século XVIII por Friedrich Hegel
(1770 - 1831), adotando um ritmo
ternário com duas teorias contrárias
(tese e antítese) que se conciliam
fundindo-se numa síntese superior.
Demócrito, seus discípulos e adeptos,
entre os quais Parmênides e Leucipo,
foram pródigos em proclamar que não
há verdade absoluta.
Sob este ponto de vista, o gênero
‘Ficção’ ganha outro sabor, pois
mentira e verdade perdem a linha
divisória rígida.
18
Quais são os limites da verdade e
da mentira? Para José Américo de
Almeida, “há muitas formas de se dizer
a verdade [e] talvez a mais persuasiva
seja a que tem forma de mentira”. Pablo
Picasso, por sua vez, afirmou que “a
arte é uma mentira que revela a
verdade”. Afrânio Coutinho foi mais
adiante e afirmou que “a literatura,
como toda arte, é uma transfiguração
do real... Passa, então, a viver outra
vida, autônoma, independente do autor
e da experiência da realidade de onde
proveio. Os fatos que lhe deram às
vezes origem perderam a realidade
primitiva e adquiriram [uma] outra,
graças à imaginação do artista”.
Desdenhando questiúnculas sobre
verdades e mentiras, a arte faz sua
própria realidade.

19
E aí, onde estará a mentira e a
verdade? Será que existe uma verdade?
Ou a realidade se reflete em múltiplas
verdades e, tomando seu inverso, em
múltiplas mentiras?
O tema não é simples. Pouco se
lixando para a questão da verdade,
alguns chegam a questionar a própria
realidade. Alguns cientistas modernos
admitem a possibilidade de que a
própria realidade não exista e – como
no filme Matrix produzido em 1999
pelos irmãos Andy e Larry Wachowski
– nossa existência seja apenas uma
simulação de computador. Ainda em
1868, o naturalista Thomas H. Huxley
comparou o mundo com um tabuleiro
de xadrez e, associando as peças aos
fenômenos do universo e as regras às
leis da natureza, afirmou que “o
jogador no outro lado está oculto a
20
nós". Este modo de ver a existência
humana fez muitos adeptos. Em fins
dos anos 60, Konrad Zuse – o cientista
alemão responsável pela construção
dos primeiros computadores
eletromecânicos programáveis e que
desenvolveu a primeira linguagem de
alto-nível para computadores – sugeriu
que todo o Universo faz parte de
entranhas lógicas de um computador
‘autômato celular', cujo conceito, criado
pelo matemático húngaro John von
Neumann nos anos 40, tem como base a
ideia de sistemas lógicos auto
reprodutores e, assim, imitam a própria
vida.
Para os que questionam a
realidade, claro, não há sentido falar em
verdade e ficção, mas, graças a Deus, o
mundo existe e há uma realidade. Mas,
essa realidade não obedece a padrões
21
rígidos, pelo contrário. A realidade
varia de acordo com as pessoas, as
convenções, épocas e lugares. Não há,
portanto, um reino da ficção e um reino
das verdades. Ficção e verdade ocupam
o mesmo reino e alimentam o
imaginário das pessoas.
Nesta nova perspectiva, a Ficção
em Pernambuco não é composta
apenas pelos ficcionistas, mas, também
por todas as pessoas que exprimem o
mundo. As estórias são histórias e as
histórias são estórias. Os enredos são
roteiros de vida e vice-versa. Os
protagonistas e antagonistas são seres
bons ou maus conforme a vida a ser
vivida.

22
UM OLHAR SOBRE A FICÇÃO E A
REALIDADE
Artigo publicado em janeiro de 2007

Quando lancei ‘O moinho’,


romance vencedor do cobiçado Prêmio
Vânia Souto Carvalho, da Academia
Pernambucana de Letras, ouvi muitos
elogios, mas o que mais me marcou foi
o do poeta Laudemiro Telino de
Lacerda, que abriu um sorriso
carinhoso e, simplesmente, disse:
“Alexandre, você é o maior mentiroso
que conheço!”. Naquela situação, ele
tinha razão, pois, afinal de contas, a
teoria ensina que ‘FICÇÃO’ é o gênero
literário das mentiras. Um gênero
associado ao fantástico.
Para muitos, o nome diz tudo. A
palavra latina ‘Fictionem’ significa o
efeito de fingir, de simular. Ou,

23
trocando em miúdos, ‘Ficção’ é a
categoria literária das mentiras.
Invencionices verossímeis ou
inverossímeis, conforme o tamanho da
impostura, mas, sempre mentiras. E os
romances, poemas, contos, novelas e
fábulas são, automaticamente,
perfilados no vasto reino dos
fingimentos.
Com efeito, a arte de modo geral,
incluindo a literatura, nunca se
preocupou em descrever a realidade tal
como o mundo a vê, mas em retratá-la
como o artista a sente. Para Aristóteles,
a arte literária é a arte que imita pela
palavra. Nesta perspectiva, a função do
artista não é retratar o que acontece,
mas o que poderia ter acontecido e a
obra de arte não precisa ser o retrato
fiel da realidade, mas ter coerência que
a faça assemelhar-se à verdade. Neste
24
embalo, por toda a história, a arte é
considerada o universo dos sonhos e a
ficção literária, o gênero das mentiras.
Esta condição, claro, nem sempre
é aceita pelos artistas. Em crítica sutil, o
fenomenal Fernando Pessoa reagiu,
esclarecendo na ‘Autopsicografia’ que
“O poeta é um fingidor / Finge tão
completamente / Que chega a fingir
que é dor / A dor que deveras sente”. A
dor verdadeiramente sentida pelo
artista parece fingida aos olhos do
expectador apenas porque vem na
carruagem da arte. No reino da
mentira, a verdade parece mentira.
Mas o que é a mentira? O que é a
verdade?
Estaria mentindo a pessoa que,
sinceramente, chama de Ponte Velha a
Ponte da Boa Vista, que lhe parece mais
velha? Ou a pessoa que repassa como
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verdade informação inverídica
recebida de alguém em que confia?
Quem disse que o nome desta
maravilhosa cidade é ‘Recife’ e, não
‘Lisboa’? Uma convenção diz que o
nome é Recife e, assim, chamá-la de
Lisboa é inverdade. Historiadores
afirmam que a fundação do Recife
ocorreu por volta de 1536 – ano do
calendário romano, reformulado por
Gregório I em 1582. Se apontada em
calendário islâmico, judeu ou chinês, a
data da fundação do Recife seria outra.
Estaria faltando a verdade quem afirma
que Recife foi fundado em 5.026? Em
Gravatá, ao tempo que um recifense
sente frio, um europeu pode sentir
calor. Estará mentindo o recifense, que
sente frio, ou o europeu, que sente
calor? Estarão mentindo os livros de
geografia e de história? Ou apenas

26
refletem verdades e valores aceitos em
determinada época por comunidades
específicas. Nomes, datas, valores,
sentimentos e aparências refletem
opiniões e convenções, refletindo
conceitos inconsistentes que podem
mudar em função de referenciais e
modas, nada significando em ternos de
verdade ou mentira.
Frase atribuída a Goebbels diz que
“uma mentira dita mil vezes se
transforma em verdade”. Se uma
mentira pode se transformar em
verdade, o inverso também seria
possível?
No segundo período da história do
pensamento grego, no século IV a.C,
também conhecido como o Período
Antropológico pela importância que
atribuiu ao homem e ao espírito
inaugurando uma nova fase na história
27
da compreensão dos fenômenos,
Demócrito contestou Protágoras
(defensor de que todas as sensações
eram igualmente verdadeiras para o
objeto sensível) e afirmou que todas as
sensações são falsas, pois não têm
contrapartida real fora do objeto
sensível. Fundamentando os
ensinamentos, Demócrito distinguiu
aquilo que é ‘Convenção’ (nómos), ou
seja, fruto de uma opinião e de um
acordo entre os homens, daquilo que é
‘Natureza’ (phýsei).

"Por convenção – disse


Demócrito –, há o doce, o
amargo, o quente, o frio, a
cor... as nossas sensações não
representam nada de externo,
apesar de serem causadas por
algo fora de nós... Esta é a
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razão porque a mesma coisa
às vezes dá a sensação de
doce e às vezes de amargo...
nós, na verdade, não
conhecemos nada de certo,
somente que as coisas mudam
de acordo com a disposição
do corpo e com aquilo que
nele penetra ou lhe opõe
resistência [por isso] não
podemos conhecer a
realidade, pois, a verdade jaz
num abismo".

Com esta linha de pensamento,


Demócrito foi o precursor da lógica
dialética, retomada no século XVIII por
Hegel, adotando ritmo ternário com
duas teorias contrárias (tese e antítese)
que se conciliam fundindo-se numa
síntese superior. Demócrito, seus
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discípulos e adeptos, entre os quais
Parmênides e Leucipo, foram pródigos
em proclamar que não há verdade
absoluta.
Sob este ponto de vista, o gênero
‘Ficção’ ganha outro sabor, pois
mentira e verdade perdem a linha
divisória rígida. Quais são os limites da
verdade e da mentira? Para José
Américo de Almeida, “há muitas formas
de se dizer a verdade [e] talvez a mais
persuasiva seja a que tem forma de
mentira”. Picasso afirmou que “a arte é
uma mentira que revela a verdade”.
Afrânio Coutinho foi mais adiante e
afirmou que “a literatura, como toda
arte, é uma transfiguração do real...
passa, então, a viver outra vida,
autônoma, independente do autor e da
experiência da realidade de onde
proveio. Os fatos que lhe deram às
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vezes origem perderam a realidade
primitiva e adquiriram [uma] outra,
graças à imaginação do artista”.
Desdenhando questiúnculas sobre
verdades e mentiras, a arte faz sua
própria realidade.
E aí, onde estará a mentira e a
verdade? Será que existe uma verdade?
Ou a realidade se reflete em múltiplas
verdades ou, tomando seu inverso, em
múltiplas mentiras?
O tema não é simples. Pouco se
lixando para a questão da verdade,
alguns chegam a questionar a própria
realidade. Alguns cientistas modernos
admitem a possibilidade de que a
própria realidade não exista e – como
no filme Matrix (1999), de Andy e Larry
Wachowski – nossa existência seja
apenas uma simulação de computador.
Vale puxar do fundo do baú que, em
31
1868, Huxley comparou o mundo a um
tabuleiro de xadrez e, associando as
peças aos fenômenos do universo e as
regras às leis da natureza, afirmou que
“o jogador no outro lado está oculto a
nós”. Este modo de ver a existência
humana fez muitos adeptos. Em fins
dos anos 60, Zuse – cientista alemão
responsável pela construção dos
primeiros computadores
eletromecânicos programáveis e que
desenvolveu a primeira linguagem de
alto-nível para computadores – sugeriu
que o Universo faz parte de entranhas
lógicas de um computador ‘autômato
celular', cujo conceito, criado nos anos
40 por John von Neumann, tem como
base a ideia de sistemas lógicos auto
reprodutores, que, assim, imitam a
própria vida.

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Para os que questionam a
realidade não há sentido falar em
verdade e ficção, mas, graças a Deus, o
mundo existe e há uma realidade.
Essa realidade, no entanto, não
obedece, como querem alguns, a
padrões rígidos. Pelo contrário. A
realidade varia de acordo com as
pessoas, as convenções, as épocas e
lugares. Não há um reino da ficção e um
reino das verdades. Ficção e verdade
ocupam o mesmo reino. Alimentam e se
alimentam da sensibilidade e do
imaginário das pessoas.
Nesta perspectiva, o gênero Ficção
deixa de ser o campo das invencionices
e passa a ser um território amplo, que
inclui sentimentos individuais e
coletivos sobre experiências e
realidades de cada um, manifestando,
eventualmente, aspectos
33
especialíssimos de verdades não
reveladas ou proscritas do imaginário
de alguns. Neste novo ambiente,
estórias são histórias e as histórias são
estórias; enredos são roteiros de vida e
vice-versa; protagonistas se
transmudam em antagonistas
conforme a vida a ser vivida. A Ficção
passa, então, a ser o campo da arte
fantástica derramada em diferentes
estilos sobre estórias, que, no fundo,
são histórias de diferentes épocas
embaladas por sentimentos e modos de
ver o mundo peculiares.

34
FICÇÃO E REALIDADE: DUAS FACES DA
MESMA MOEDA
Artigo publicado em julho de 2007

O confronto da ficção com a


realidade é um tema instigante. Vezes,
sutil, vezes, imperceptível, distinguir a
ficção da realidade nem sempre é fácil.
Verdades desabrocham mentiras e
vice-versa; boatos e opiniões
estabelecem verdades; de tão
fantástica, a realidade se torna incrível;
interesses e conveniências podem
desmoralizar ou estabelecer verdades;
razões sociais, comerciais e
diplomáticas afligem a sinceridade.
Quando as torres do World Trade
Center ruíram em 11 de setembro de
2001, segundo dizem os meios de
comunicação, abatidas pela ação de um
pequeno grupo armado apenas com

35
estiletes de cortar papel, muitas
pessoas desconfiaram daquilo que seus
olhos viam pela televisão. “Isto não
pode ser verdade”, duvidaram muitos,
em reação à realidade incrível – aquela
na qual o fato parece irreal,
embaralhando ficção e realidade numa
imagem turva. Filmes classificados
como ‘mentirosos’ já perdem no
quesito fantasia para a realidade de
certos documentários.
Naquele 11 de setembro, o mundo
mudou. As torres desabaram e, junto
com elas, muitas verdades – inclusive a
de que, protegido pelo dólar, pelo
pentágono, pela Coca-Cola, pela CNN e
por Hollywood, os EUA eram
inexpugnáveis. Naquele episódio, sobre
um vasto campo de verdades
arruinadas, foram construídas
realidades até então impensáveis.
36
O borralho ainda fumegava sobre
escombros, estranhamente isentos dos
sinais da morte e do sofrimento,
quando fomos assaltados por um
turbilhão de informações,
desinformações, boatos e censuras que
construíram a verdade que prevaleceu
na época. Ganharam fama nomes até
então conhecidos apenas em certos
círculos, como Osama bin Laden e
movimento Taleban. Com o respaldo da
opinião publicada, governantes
intimidados e da irresistível força das
legiões do César Bush, em menos de um
mês, julgado e condenado à revelia por
cumplicidade terrorista, o indefeso
Afeganistão foi invadido e ocupado.
Nem por isso, conforme a história
mostra, o terrorismo amorfo e sem
rosto, fruto de injustiças econômicas,
brutais processos de aculturação e

37
radicalismos políticos e étnicos, foi
derrotado.
Na sequência, tendo por base um
rígido sistema de controle e
manipulação da informação, novas
verdades foram construídas.
Devidamente cevada por dados
fornecidos pelo governo dos EUA, que
se aperfeiçoava com maior intensidade
desde o 11 de setembro na gestão da
informação, a mídia mundial nos
empanturrou com notícias sobre
‘perigos’ dos novos tempos,
especialmente os representados por
um ‘famigerado’ Saddam Hussein –
homem diabólico de mil faces – e pelo
Iraque – país que [embora sufocado por
um severo embargo de mais de dez
anos] estaria levando adiante um
programa de Armas de Destruição em
Massa, capaz de arrasar Londres em
38
menos de 20 minutos. E o Iraque,
acusado de pertencer, juntamente com
a Coréia do Norte e com o Irã, a um
quimérico ‘Eixo do Mal’ berço do
terrorismo internacional, foi invadido e
ocupado pelas tropas norte-
americanas. As Armas de Destruição
em Massa que justificaram a ação
militar jamais foram encontradas, os
vínculos do Iraque com o terrorismo
internacional jamais foram provados.
Nem mesmo as dezenas de sósias, que,
segundo dizia a mídia, protegiam o
sanguinário Saddam Hussein,
apareceram.
Tudo fora fruto de uma mega
operação publicitária que iludiu a
todos, construindo as verdades que
interessavam aos senhores da
informação. Ficção e realidade
intercambiaram posições, construindo
39
as verdades e as mentiras que movem o
mundo.
Estes primeiros momentos da
Guerra do Iraque estão sendo muito
elucidativos e comprovam muitas teses
corajosas sempre acusadas de
pertencerem ao domínio das panaceias
e teorias conspiratórias.
Contando com a complacência e
colaboração das principais agências
noticiosas, o Pentágono criou um tal
‘Embebed Project’ cujo objetivo foi
mostrar a guerra que interessava aos
EUA. Surgiu, então, o War Show – ao
invés de destruição, sangue, mortes e
mutilações, a televisão mostrou um
espetáculo de explosões coloridas
como fogos de artifício, robustos
soldados em trajes futuristas, armas
modernas como as dos episódios de
Star Wars. Até simulações de visitas
40
presidenciais ao front e resgate de
soldadas heroínas foram encenadas
como forma de dar veracidade à nova
realidade que emergiu na ocasião.
Em contraponto, vazam outras
realidades e veio a público o horror, a
morte, a tortura, a destruição e as
mutilações próprias das guerras. Esta
outra realidade vem sendo sufocada
pelo controle da informação, incluindo
a censura e a remoção dos focos de
resistência. Peter Arnett – lendário
ganhador do Prêmio Pulitzer por
reportagens sobre a Guerra do Vietnã e
que, em 1991, reforçara sua
notoriedade mundial pela solitária
cobertura que fez da I Guerra do Golfo
para a CNN – foi demitido da NBC, e
Geraldo Rivera – correspondente da
Fox News – foi expulso do Iraque pelo
Comando Central dos EUA sob a
41
acusação de repassar ao inimigo
informações estratégicas. Nos dias
correntes, só se toma conhecimento
dos aspectos mais horrorosos da
guerra pelas transmissões da rede
árabe Al Jazeera, que, por conta disso, é
usualmente acusada pelos que dizem
porta-vozes do chamado ‘Ocidente’ de
colaboracionismo terrorista.
E, no jogo das versões que vêm a
público, verdades e mentiras ocupam o
mesmo espaço turvo construindo
realidades que, muitas vezes, passam
longe do fato real.
Para compor a nova realidade, são
usadas técnicas antigas e novas de
controle e manipulação da informação.
A definição do que é notícia, a forma de
apresentá-la, a escolha e a censura de
temas e personagens, a forma de
abordagem dos assuntos, a intensidade,
42
a abrangência e persistência da
veiculação das mensagens são algumas
das técnicas usadas na modelagem e
criação de novas realidades.
Confirmando as observações do mestre
Perseu Abramo, fatos escolhidos
arbitrariamente dentro da realidade
efetivamente verificada são
apresentados de forma fragmentada,
com aspectos selecionados e
descontextualizados, reordenados de
forma invertida, que contraria a
relevância, papel e significado, e, ainda,
com partes reais substituídas por
versões opinativas (1). Palavras como
liberdade e democracia são usadas para
designar novos cenários e a informação
ganhou aplicação estratégica. Do boato
ao fato, apenas a conveniência das
convenções e o interesse daqueles que
controlam as informações. Bernardo

43
Kucinsky chega a dizer que, nas
redações, houve uma rendição
generalizada aos ditames
mercantilistas ou ideológicos dos
proprietários dos meios de
comunicações (2).
Vale lembrar que este fenômeno
não é recente. De fato, embora mais
evidente na atualidade, a construção de
realidades psicológicas vem de longas
datas e apenas ganhou impulso com o
aperfeiçoamento das modernas
técnicas de propaganda e comunicação.
As massas sempre foram
conduzidas pelas verdades que
interessam aos poderosos e, na
construção destas verdades pouco
importa o fato real. A história mostra
que inocentes foram e são condenados
por veredictos que, longe da justiça,
apenas traduzem a verdade oficial que
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interessa e convém às elites. Entre as
vítimas dessas verdades construídas,
despontam, entre tantos outros, o
Iraque, que foi invadido em brutal
episódio que já matou mais de 150.000
pessoas, e Jesus Cristo, que teve a vida
terrena ceifada na Cruz aos 33 anos.
Nestes tempos modernos, regidos
pelo fundamentalismo de mercado, a
notícia deixou de ser um direito social e
passou a ser, como quase tudo, um bem
mercantil, estando sujeita a processos
de comercialização como quaisquer
outras mercadorias. Jornalistas foram
levados a uma nova ética e, em muitos
casos, assumiram a condição de
assessores de imprensa – profissionais
especializados em converter fatos,
jornalísticos ou não, em notícias e,
portanto, em realidades sociais.

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Muitos dizem que, se não
apareceu na mídia, o fato não ocorreu.
Esta frase tomada pelo seu inverso
afirma que, se apareceu na mídia, o fato
ocorreu. Assim, a mídia tem a chave da
construção e da desconstrução de
realidades. Em função dessa
capacidade, a mídia encarna um poder
equiparável às grandes religiões,
subjugando, substituindo ou induzindo
ações e comportamentos. Não é a toa
que se atribui à mídia o Quarto Poder,
nivelando-a aos poderes republicanos
executivo, legislativo e judiciário.
No ambiente mercantil, o sonho
de consumo criado pela propaganda
também estabelece novas realidades.
Com efeito, a conjunção da
mercantilização da notícia com a
aplicação dos refinados programas
publicitários despertam sonhos de
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consumo em realidades arrebatadoras
que criam o ‘consumismo’ – eixo em
torno do qual gira a sobrevivência do
sistema que, hoje, controla o mundo.
Vale dizer que, além de ser usada
como item indutor do consumismo, a
notícia passou a ser um decisivo
elemento de controle social. O
noticiário e o comentário correlato
modula o comportamento geral,
criando realidades que orientam as
conversas e indicam o caminho que
costuma ser trilhado pela maioria. Não
é sem razão o caráter alienante de
certos programas, confirmando o
triunfo da banalidade tratado por
Muniz Sodré como a ‘comunicação do
grotesco’, que ocupa o tempo das
pessoas, afastando-as de coisas que
possam levá-las a pensar sobre a
irrealidade da realidade que vivem.
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Por isso e muito mais, no dizer de
Bourdieu, que se especializou na mídia
televisiva, que é um dos carros chefes
da mídia, a televisão é um formidável
instrumento de manutenção da ordem
simbólica nos levando a compreender
porque nos tranquilizamos quando o
ouvimos notícias de que a economia
brasileira atravessa a melhor fase da
história do país, embora os
cruzamentos continuem repletos de
mendigos e a insegurança cresça em
função dos crimes famélicos.
A irrealidade da realidade criada
pela mídia vem sendo objeto de muitos
estudos. O sociólogo e professor
francês Alain Accardo analisou a ética
jornalística e apresenta sólidas razões
para que se desconfie das informações
transmitidas pelos grandes
conglomerados de imprensa
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institucionalizada. Sobre este tema,
Kucinski aponta que o vazio ético que
grassa a mídia tem várias razões,
incluindo o fim das fronteiras entre o
jornalismo e a assessoria de imprensa,
a fusão mercadológica entre o que é
notícia, entretenimento e consumo, e,
ainda, a concentração da propriedade
dos meios de comunicação (3).
A zona nebulosa sobre o real, o
imaginário, o virtual e o fictício se
alarga à medida que a observação
retrocede no tempo, pois a
precariedade dos registros apaga certas
verdades, possibilitando a construção
de outras realidades, misturando
boatos e fatos; histórias se modificam
na cadeia da transmissão oral, em
função das interpretações, simpatias,
interesses e conveniências; interesses
políticos e diplomáticos intercambiam
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realidades e mudam o curso da história.
E, perdidas no emaranhado das novas
realidades, as pessoas se questionam se
a história oficial realmente aconteceu,
dando razão a que muitos se
perguntam se Armstrong esteve,
realmente, na Lua ou se a Coréia do
Norte explodiu, realmente, uma bomba
nuclear?
Onde está a verdade? Onde está a
mentira? O que é fato? O que é boato? O
controle da informação e, portanto, do
esquema que permite construir
verdades e definir a opinião pública é
uma peça central da estratégia militar,
comercial e diplomática.
Ficção e realidade não ocupam
posições antípodas. Mostram, apenas as
duas faces da mesma moeda.

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NOTAS

(1) ABRAMO, Perseu. Padrões de manipulação na


grande imprensa. São Paulo: Perseu Abramo.
2003. p. 32

(2) KUCINSKI, Bernardo. Jornalismo na era


virtual. São Paulo: Unesp, 2006. p. 17.

(3) KUCINSKI, Bernardo. Jornalismo na era


virtual. São Paulo: Unesp, 2006. p. 18.

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