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A hiperglicemia é a complicação mais comum durante a gestação. Estima-se que 16,8% dos recém-nascidos vivos tiveram mães
com hiperglicemia. Destas, 84% em razão do diabetes mellitus gestacional (DMG), sendo portanto o tipo mais frequente de
diabetes encontrado na gravidez. Cerca de 18% das usuárias do Sistema Único de Saúde (SUS) apresentam DMG.
Depois de 60 anos da introdução do conceito de DMG, o significado clínico dessa doença está sendo mais bem entendido, apesar
de ainda pairarem controvérsias quanto ao seu diagnóstico, rastreamento e modalidades de tratamento. O que trazemos neste
capítulo é uma revisão bibliográfica dos mais importantes protocolos no tema, além de estudos observacionais de grande escala e
ensaios terapêuticos.
FISIOPATOLOGIA
Há significativas mudanças metabólicas na gestação, já a partir do primeiro trimestre, com o aumento da secreção de insulina
permitindo armazenamento nutricional precoce para suprir as demandas calóricas do terceiro trimestre e da lactação.3 A partir da
metade da gestação, a secreção dos hormônios anti-insulínicos leva a uma maior oferta de glicose e exige uma secreção
aumentada de insulina, a fim de manter a gestante em normoglicemia, por isso, esse período é considerado um “estado
diabetogênico”. Isso explica porque mulheres com aumento da resistência periférica à insulina (obesidade; tabagismo; uso de certas
medicações), ou aquelas com menor capacidade em responder às demandas crescentes de insulina no terceiro trimestre da
gravidez, estão mais propensas a hiperglicemia, intolerância à glicose, ou diabetes gestacional.2
DEFINIÇÃO E CLASSIFICAÇÃO
Diabetes mellitus (DM) é uma desordem metabólica crônica caracterizada por hiperglicemia e com três apresentações principais na
gestação:
Diabetes mellitus tipo 1 (DMI): refere-se a diabetes insulinodependente ou juvenil.
Diabetes mellitus tipo 2 (DMII) ou do adulto: esses indivíduos são tipicamente mais velhos e geralmente com maior índice de massa
corporal (IMC) comparados ao DMI. Geralmente fazem uso de hipoglicemiantes orais e são menos frequentemente
insulinodependentes, apresentam diminuição à sensibilidade periférica à insulina e resposta inadequada na produção de insulina pelas
células beta-pancreáticas.
Hiperglicemia diagnosticada pela primeira vez na gestação: pode ser o diabetes mellitus (DM) ou o DMG, dependendo dos níveis
glicêmicos, como veremos adiante.
Independentemente do tipo, o diabetes na gestação deve receber a classificação de White, proposta em 1940 (Tabela 1). Essa
classificação é baseada em fatores como idade do diagnóstico, duração do diabetes e envolvimento de órgãos-alvo (rins e retina).3
A classe A representa as pacientes com diabetes gestacional, sendo a classe A1 aquelas com bom controle glicêmico com dieta e
exercícios físicos e a classe A2 aquelas que necessitam de tratamento farmacológico, tendo portanto maior risco de complicações
perinatais. As classes B, C, D, R e F são tratadas com insulina. A classe B surge após os 20 anos de idade; a classe C não apresenta
vasculopatia. A classe D é diagnosticada antes dos 10 anos de idade e pode incluir exsudatos ou dilatação venosa na retina. A classe
F inclui pacientes com nefropatia e proteinúria persistente. A classe R refere-se a pacientes com retinopatia proliferativa e
neovascularização. A classe H engloba diabetes de qualquer tempo de duração associada a cardiopatia isquêmica.
DIAGNÓSTICO DO DMG
Todas as gestantes devem ser rastreadas para DMG, utilizando-se um teste laboratorial de tolerância à glicose (TTGO) entre 24 e
28 semanas de gestação. Recomenda-se rastreamento precoce em pacientes com risco de DM, entretanto, o melh or teste para
este fim ainda não está bem definido, sendo que muitos clínicos utilizam o TTGO precocemente. Mesmo pacientes com testes
iniciais negativos devem ser submetidas a novo rastreamento rotineiro.
Há duas situações clínicas distintas ao considerarmos o DMG. A primeira é a hiperglicemia diagnosticada pela primeira vez durante a
gestação, com critérios iguais àqueles determinados para o diagnóstico de diabetes do adulto (OMS, 1964): HbA1C ≥ 6,5%; glicemia
de jejum ≥ 126 mg/dL; ou glicemia randomizada ≥ 200 mg/dL6, definida como DM e que pode ocorrer a qualquer momento da
gravidez, incluindo o primeiro trimestre. A segunda situação é o DMG propriamente dito, aquele diagnosticado durante a gravidez,
com os parâmetros a seguir definidos, ocorrendo na maioria das vezes após a 24ª semana de gestação.
O teste oral de tolerância à glicose recomendado para o diagnóstico de DMG pela International Association of the Diabetes and
Pregnancy Study Groups (IADPSG) é o de 75 gramas (1 hora e 2 horas após administração oral).10 Essa recomendação baseou-se
em um estudo internacional e multicêntrico que foi um marco nas pesquisas de diabetes e gestação, o estudo Hyperglycemia and
Adverse Pregnancy Outcome (HAPO). Os pesquisadores associaram a hiperglicemia materna a um risco 75% maior de nascituros
com desfechos neonatais adversos, como: peso ao nascer acima do percentil 90, porcentagem de gordura corporal neonatal acima
do percentil 90 ou valor de peptídeo C no cordão umbilical acima do percentil 9
A Associação Americana de Diabetes (ADA) descreve a possibilidade do uso da hemoglobina glicada (HbA1C) como coadjuvante no
diagnóstico de DMG, porém, seu uso isolado para este fim não é recomendado.12
Os últimos critérios diagnósticos dos principais grupos de estudo do DMG estão dispostos na Tabela 2. Os valores a serem
considerados como pontos de corte do TTGO 75 g são: jejum ≥ 92 mg/dL, 1 hora ≥ 180 mg/dL, ou 2 horas ≥ 153 mg/dL.1 É
considerada portadora de DMG a gestante com qualquer um dos pontos alterados.
A Organização Pan-Americana da Saúde, o Ministério da Saúde do Brasil, a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e
Obstetrícia (Febrasgo) e a Sociedade Brasileira de Diabetes estabeleceram em 2017 as recomendações para o diagnóstico de DMG
no Brasil. Estas levam em consideração as possibilidades financeiras e técnicas de cada região, tendo como padrão ouro o
rastreamento universal das gestantes com TTGO de 75 gramas, dosagens glicêmicas na primeira e segunda horas, de acordo
com os critérios diagnósticos expostos na Tabela 2.
MORBIDADE E MORTALIDADE
Diabetes na gestação está associado a maior incidência de morbidade materna incluindo cesariana, pré-eclâmpsia, cetoacidose e
infecções urinárias de repetição. Há também um incremento na morbimortalidade perinatal.
Óbito fetal
Apesar de incomum hoje em dia, os óbitos fetais ainda ocorrem em pacientes com diabetes, principalmente preexistente, que não
recebam um ótimo cuidado pré-natal, sobretudo após a 36ª semana de gestação. A morte fetal tem sido correlacionada com
hipóxia crônica. Estudos têm mostrado que alterações no metabolismo do carboidrato, hiperglicemia, hiperinsulinemia, aumentam
demandas metabólicas e consumo de oxigênio fetal, podendo levar a asfixia. Essa fisiopatologia está representada na Figura 1.
A bomba de infusão contínua de insulina é uma excelente opção para DMI de difícil controle. Ela geralmente utiliza insulina de ação
rápida (lispro), a qual é liberada em padrões similares ao fisiológico, evitando hipoglicemia e melhorando a qualidade de vida dessas
pacientes. Pode ser indicada na fase pré-concepcional, diminuindo riscos de malformações. Apesar dessas vantagens, seu custo
financeiro é alto.
Na última década, os hipoglicemiantes orais têm conquistado seu espaço no tratamento do DMG resistente a medidas não
farmacológicas.3 Entretanto, a insulina ainda é historicamente a primeira opção nesse tratamento,12,14 e também em nosso serviço,
por uma série de fatores, como: rápido e preciso controle glicêmico, não atravessar a barreira placentária e maior experiência em
seu uso. Em contrapartida, o uso de hipoglicemiantes é mais confortável para a paciente, tem menores custos, e uma baixa falha
de tratamento (15 a 20%), que geralmente está associada a glicemias de jejum superiores a 110 mg/dL.3 A metformina pode ser
considerada como uma opção, mas atravessa a placenta e ainda não há estudos suficientes sobre os efeitos metabólicos na prole
em longo prazo. Sua dose inicial é de 500 mg à noite, aumentando para 500 mg duas vezes ao dia após uma semana, não
podendo exceder 2.500 mg ao dia.1,14 A glibenclamida, outro hipoglicemiante usado na gestação, tem mostrado recentemente
desfechos perinatais desfavoráveis quando comparados à insulina, e atualmente seu uso está sendo desencorajado.
A maioria das pacientes são seguidas ambulatorialmente com visitas semanais ou quinzenais, dependendo de seu controle
glicêmico, idade gestacional e adesão ao tratamento. Em cada visita as anotações de controle glicêmico devem ser minuciosamente
observadas; quando inadequado, a dieta deve ser questionada e ajustes de insulina feitos. Pacientes com DMI devem testar glicemia
com frequência de seis vezes ao dia, todos os dias, assim como as DMII com controle inadequado. Pacientes com bom controle
glicêmico ou com DMG poderão verificar a glicemia quatro vezes ao dia (jejum e pós-prandiais), em dias alternados. Entretanto,
durante finais de semana, quando há maior risco de consumo calórico, o controle deve ser rigoroso. Geralmente, nosso serviço
não recomenda controle glicêmico durante a madrugada, salvo se houver sintomas ou em DMI de difícil controle.
MONITORIZAÇÃO FETAL
Sem dúvida, a melhor forma de assegurar o bem-estar fetal é o bom controle glicêmico materno, com significativo impacto na
redução da morbimortalidade perinatal. Os testes para avaliação da vitalidade fetal servem basicamente para tranquilizar o obstetra
e evitar uma intervenção prematura desnecessária.
A monitorização fetal nas pacientes com diabetes mellitus gestacional (DMG) mal controladas ou naquelas em uso de tratamento
medicamentoso (insulina ou hipoglicemiantes orais), ou ainda nas pacientes com diabetes mellitus (DM) prévio à gestação, sem
outras comorbidades/fatores de risco, deve ser iniciada na 32a semana de gestação, podendo ser utilizado o perfil biofísico fetal
(PBF) modificado ou a cardiotocografia (CTG) anteparto isolada (semanalmente ou duas vezes na semana).2,4,14 Em caso de
comorbidades/fatores de risco além do diabetes, pode-se iniciar a monitorização fetal antecipadamente, já desde a 28a semana.4,14
Naquelas pacientes com vasculopatia ou hipertensão, pode ser associada a dopplerfluxometria colorida da circulação fetal como
método de avaliação fetal. Devido ao risco de miocardiopatia perinatal, uma ecocardiografia fetal deve ser realizada no terceiro
trimestre em gestantes farmacologicamente tratadas. Nas DMI e DMII a ecocardiografia fetal também deve ser realizada entre 20 e
28 semanas como método de rastreamento de malformações cardíacas congênitas.
Já em pacientes com DMG bem controlado, sem a necessidade de tratamento medicamentoso, não parece haver indicação de
avaliação da vitalidade fetal por meio de PBF ou CTG antes das 40 semanas de idade gestacional, por não haver comprovação de
aumento do risco de mortalidade fetal nessas gestações.
Como há maior risco de macrossomia fetal e polidrâmnio nas gestações complicadas com diabetes, recomenda-se o uso da
ultrassonografia (USG) para avaliação de líquido amniótico (LA) e peso fetal estimado (PFE) no terceiro trimestre. Pode-se utilizar a
USG seriada, iniciando com 28 semanas com controle mensal, ou ainda utilizar uma USG única, entre 34 semanas e 38 semanas e
6 dias de gestação para a avaliação de LA e PFE mais próximo ao momento do parto.
Na monitorização fetal intraparto, deve-se utilizar a cardiotocografia contínua sempre que disponível, ainda que não haja evidências
fortes do seu real benefício. Caso não haja disponibilidade da monitorização contínua, deve-se proceder com a ausculta fetal
intermitente a cada 15 minutos no trabalho de parto ativo e a cada 5 minutos no período expulsivo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A gravidez é considerada um estado diabetogênico.
Pacientes pré-diabéticas têm um risco maior de malformações congênitas, abortamento, pré-eclâmpsia, polidrâmnio, macrossomia
fetal, hipóxia perinatal e comorbidades neonatais, como estresse respiratório, hipoglicemia, hiperbilirrubinemia, hipocalcemia.
O rastreamento para DMG deve ser realizado em todas as gestantes, com TTGO de 75 gramas, entre 24 e 28 semanas de
gestação.
O tratamento para DMG é realizado com dieta e exercícios físicos. Na sua falha, hipoglicemiantes orais podem ser utilizados. No DMI
e DMII a insulinoterapia é preferível.
A monitoração anteparto é restrita às pacientes previamente diabéticas ou àquelas com controle glicêmico inadequado, ou ainda
macrossomia fetal. É preferencialmente realizada com PBF