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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA

Uma Índia sem passado

Diogo Araujo

O contemporâneo na poesia:
A revolução feminista
Profa. Susana Scramin
Março, 2021
Para Chico Saraiva
(E a profa)
Prólogo

“ ‘O que a senhora fará em sua sociedade, srta. Hessel?’, perguntou Rörlund.


‘Deixarei entrar o ar puro, pastor’ respondeu Lona.”1 A resposta é dada por Lona Hessel,
na peça Os pilares da sociedade (1877), de Henrik Ibsen. Tomada isoladamente, e no
susto, pelo leitor, a frase pode ser interpretada como meramente a pseudo defesa
psíquica própria da alienação. Convocado a tomar posição diante da voz da autoridade,
o sujeito se posiciona obliquamente, falando a partir de uma espécie de meio-termo entre
mundo interior e exterior. Sua resposta parece rejeitar, caturra, o tom oficial, para o
conservadorismo e para a esquerda, de doação ao social.
Cuidando em desmoralizar a recepção, no entanto, a frase, ao se colocar à parte
da possibilidade de resposta mais efetivamente nobre (com um “Lutarei pela educação
e pela cultura”), pode dizer outras coisas. Pode dizer que há, e deve sempre haver, outra,
várias formas de cumprir reação a uma pergunta encurraladora, saindo do pronto-a-
pensar. Formas que, em última análise, quererão afastar, delinear e balancear as puras
exigências da representação. (Palavra que inclui e extravasa o sentido macro-político.)
Lona Hessel é uma mulher boêmia, amaldiçoada por uma sociedade
conservadora situada numa pequena cidade costeira da Noruega. A esta, Lena retorna
depois de alguns anos nos Estados Unidos, a “América”. Se bem tramada no drama, sua
ironia implica, além de desvio lógico, uma defesa atacante, uma micro-revolução
baseada num enfrentamento mais frontal de poderes do que se pode à primeira vista
imaginar.
Caberia dizer, antes disso, que, enquanto conceito, o desvio irônico não é nunca
uma mera defensiva ou reiteração de escapismo existencial: não podendo ser um puro
negativo, ele reclama seu status de afirmação com um apontar para um outro, um hiato.
Quer ser um chamamento para as engrenagens da linguagem, para o abismo da
alteridade (enquanto subjetividade e movimento da abstração). Há um alerta para a
consciência no diálogo, numa tentativa de revitalização das possibilidades da
comunicação por meio da sutil provocação.

1
Encontrei a frase em: ELLMANN, Richard. James Joyce. Tradução; Lya Luft. São Paulo: Globo,
1989, p. 101.

3
“Abrirei a janela pra deixar entrar o ar puro” pode também querer dizer:
precisamos lidar com o que há de normatizador-neurótico no que Freud descreveu como
as recriminações advindas das “severas exigências ideais” de um Super-eu, que é o da
cultura. Elas que, mesmo estando no sujeito, podem localizar muito mais facilmente
fora de si, no mundo, o objeto da recriminação, do que dentro.2 Talvez seja precisamente
a esse movimento que nós, da esquerda, crentes na possibilidade do progresso, tentamos
dar a forma da crítica.
Para não aceitarmos que tudo isso pode acabar redundando em jogos verbais, no
entanto, é interessante pensar com A experiência interior (1943) de Georges Bataille.
Lá, o autor se refere a uma restrição que é uma sabedoria, uma negação que deve ser
escolhida, não evitada: “Na vontade de suprimir a dor, somos conduzidos à ação, em
vez de nos limitarmos a dramatizar.”3
O objetivo de Bataille é enfrentar questões como a da expressividade ou da
participação sem castigo romântico ou subterfúgios. O drama aqui deve preterir a ação
para não a negar: “A ação exercida para suprimir a dor vai, finalmente, no sentido
contrário da possibilidade de dramatizar em seu nome: não tendemos mais ao extremo
do possível, remediamos o mal (sem grande resultado), mas, enquanto isso, o possível
perde seu sentido, vivemos de projeto.”4
Na ação de resistência política, é claro que traçar limites explicitamente e dizer o
mais prosaico não é um aprendizado e um dever. Justamente por isso, o não pode ser a
fala mais poética. Em um encontro concreto, mais ou menos banal, dizer não significa
interromper um rumo, exigir um reinício, afirmar a presença do sujeito enquanto

2
“O Super-eu da cultura, exatamente como o do indivíduo, institui severas exigências ideais, cujo
não cumprimento é punido mediante ‘angústia de consciência’. E aqui se produz mesmo o caso curioso
de os processos psíquicos em questão serem para nós mais familiares e mais acessíveis à consciência,
quando vistos no grupo, do que podem sê-lo no indivíduo. Neste apenas as agressões do Super-eu, no
caso de tensão, fazem-se audíveis como recriminações, enquanto as exigências mesmas com frequência
ficam inconscientes no segundo plano. (…) Daí que não poucas manifestações e características do Super-
eu podem ser mais facilmente notadas em seu comportamento na comunidade cultural do que no
indivíduo.” FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das letras, 2011, p. 89.
3
BATAILLE, Georges. A experiência interior. Tradução: Fernando Scheibe. Belo Horizonte:
Autêntica, 2016, p.43.
4
Ibid., p.43.

4
singularidade, discordar que o impulso gregário simplesmente dado tem a última
palavra. Significa a luta por saúde psíquica.
Assim como o cinismo ante a convocação à participação pública, no entanto, as
formas tradicionais de engajamento podem redundar em excessos. Para a arte, podemos
pensar que a expressão de Hal Foster, “ideologia dadaísta da experiência imediata”5 nos
serve aqui muito bem. Ela define o mito urbano da defesa, idílica, da completa união
entre arte e vida. Quer-se recusar todo controle e interdito, mas também, a exemplo,
aspectos da formação acabam, não raro, tomados como infinita mediação à liberdade,
por sua necessidade de reler a história.
Uma das posturas se isenta, portanto, e por isso só a podemos ver conivente com
o pior dos ditados da história, o fascista. Uma outra, no entanto e que se quer sua
antípoda, é tão mistificadora e mal formada para a ação que se apresenta como um outro
lado da mesma diluição, o que acaba sendo um favor à generalidade da técnica e da
educação. Eis o trágico.
Neste sentido, a resposta de Hessel na peça de Ibsen pode servir também para
alardear um entulhamento de discursos, todos almejando primazia de saída direta para
os impasses civilizatórios. Diante disso, ela escolhe o drama: “Primeiro me salvarei
como sujeito [o drama aqui já começou] e, depois, ajudarei a tecer, pela forma da
estratégia, o resíduo da ação. Quero gritar em horas bem escolhidas” [eis o ápice do
drama].
Na peça em si, no entanto, não se trata bem disso, veja-se só. Precisamos olhar de
mais perto. O pastor não fala da sociedade, mas de uma “Sociedade”: uma Society for
Fallen Woman. Trata-se de um erro da edição brasileira da biografia de Joyce, onde vi
a frase citada. A pergunta se dirige a saber o que Lona fará por aquela Sociedade, uma
miniatura da sociedade geral, neste uso algo sintomático da palavra. Esta, por sua vez,
tem, neste uso máximo, a maior vagueza de sentido.
A sociedade pode ser uma cidade, um país, o mundo, ou simplesmente, ser tão
impessoal quanto um it. Ali, na peça, as mulheres caídas em pecado, ou seja, as que de
alguma maneira expressaram, ou foram colocadas na posição de quem expressou, suas
sexualidades fora dos parâmetros impostos, se reúnem com um objetivo terapêutico: o
de se reencontrarem com o sentido do todo – normal, regulador.

5
FOSTER, Hal. O retorno do real. Tradução: Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 34.

5
A interpretação desviada, aqui, porém, volta a ter sentido: a Sociedade é um
simulacro da sociedade. Lona abriria também a janela, não de sua casa, mas a do
coletivo, para deixar entrar o ar puro, combatedor, diante do moralismo capitaneado por
um pastor – ele muito menos do que puro.
Na biografia de Joyce escrita por Richard Ellmann, o jovem escritor, com 17 anos,
e em uma de suas primeiras falas públicas, traz em seu texto, Drama e vida, esta citação.
A fala é definida pelo biógrafo como “a mais intensa afirmação de Joyce sobre método
e intenção, na juventude”. 6
O escritor irlandês, por seu turno, lia a fala em outra
sociedade: a Sociedade Histórica e Literária de Dublin.
Na tradução para o português há um erro de Lya Luft e da editora Globo que me
levou à primeira interpretação. Nela se lê, como citado: " 'O que a senhora fará em sua
sociedade, srta. Hessel?', perguntou Rörlund. 'Deixarei entrar o ar puro, pastor'
respondeu Lona." Quando as traduções inglesas presentes na biografia de Joyce e nas
obras completas de Ibsen trazem: “Rorlund: Pardon me, Miss Hessel, but what do you
propose to do in our Society? / Lona: I will let some fresh air into it, Mr. Parson.”7
Em suas formas radicais a arte é a anti-terapia, quando não a agressão mesmo,
cujo propósito é queimar esta imagem do social, aqui buscada. Propõe-se que se supere
o fator de domesticação embutido nela. “Como explicar essa transgressão?”, o senso
comum pergunta. E afirma que, justamente neste ponto, os artistas exageram em
valorizar os poderes auto atribuído em face à… sociedade.
Curiosamente, é violentando a representação do social (esta por regra baseada em
ideais de utilidade, univocidade e organicidade) que a arte atinge sua potencialidade
máxima. A representação é o congelamento de imagens baseado no conhecimento
tecnicizante que supõe que, sem o seu recurso, o que há é erro, desmedida, vazio,
nonsense, risco, etc Aquilo que está pra lá dessas imagens cai num desses estereótipos,
e o método e a eleição determinados nos salvariam. São destes mesmos sintomas que a
arte se alimenta.

6
ELLMANN, Richard. op. cit., p.101.
7
“Rorlund: Perdão, Miss Hessel, mas o que você propõe fazer em nossa Sociedade? / Lona: Eu
deixarei entrar algum ar fresco nela, Mr. Parson.” IBSEN, Henrik. Complete works of. Tradução: R.
Forquharson Sharp. Delphi classics, 2013 p. 2336. (Grifos meus.)

6
I

O tropicalismo é bastante feminino – e guerreiro. Apesar de os nomes que figuram


como o de cabeças do movimento serem o de homens, à sua intervenção também é
caríssima, como no subtítulo do livro Problemas de gênero, de Judith Butler, a
“subversão da identidade”.8 Junto a isso, não poucos autores ao longo do século XX
colocaram em marcha radicais intercâmbio e suspensão de imagens entre os gêneros.
Isto podemos ver como uma ação, das mais importantes, entre aquelas voltadas a
erradicar primazias ontológicas no pensamento geral acerca da cultura.
Se desestabiliza, e enormemente, as bases tradicionais deste a mera pergunta pelo
gênero (“É menino ou menina?”), então é porque algo importante, como um ponto cego,
foi deixado pra trás na construção de palácios de razão e humanismo. A exemplo e cada
um a seu modo, além dos próprios Gal, Caetano e Gil, Virginia Woolf, James Joyce e
Georges Bataille podem ser vistos como abordando frontalmente, cada um a seu modo,
este tema.
O discurso reacionário, por sua vez, pode ver subversão de várias formas, não
excludentes entre si: subversão é a negação do trabalho da vida, sendo, portanto, o sem-
sentido dado da mesma; é a não-cooperação, insolidária, com o social, configurando, no
mínimo, como a perda de tempo do afastar-se do funcionamento da vida “das pessoas”
em seu lugar e tempo; é o fetiche do contrariador que se pretende radical, como no mito
do herói das massas, um sujeito que, no fim das contas, é ou seria menos feliz do que o
proletário ascendente devidamente castrado; etc
E talvez seja um tanto disso tudo mesmo. Mas o que a hegemonia não consegue
perceber é que, não raro, esse outro modus operandi existencial consegue criar formas
de trabalho, obras, vida com resultado muito mais fértil e, sobretudo, com menos reserva
de tempo do que os que vêm de seu louvor às proezas da compartimentalização técnica.
Dentro de tudo isso, e na mão contrária do que quer o elitismo e o negacionismo
literário, há várias chaves simples para abrir um livro tido como hermético como
Ulysses. Uma delas é a questão de gênero. Seu “herói” maduro, Leopold Bloom, a
exemplo, é como “uma mistura dos dois gêneros, um expoente da androginia que Joyce

8
BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Tradução: Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização
brasileira, 2017.

7
via como a sexualidade do futuro” e almejava, indo ao limite e aqui mantendo as
palavras não muito precisas do crítico Declan Kiberd, ser “um homem capaz de partilhar
de maneira única a maravilha feminina do trabalho de parto.”9 Mas sua heroína
selvagem, Molly, é ao menos tão poderosa.
Chamar justo o trabalho de parto de “maravilha feminina” soa, de saída,
demasiado masculino e o feito de singularidade rara de Bloom, em si, parece
incrivelmente auto enaltecedor da imagem do homem – e na imagem de um homem
bem tradicional, convenhamos. Mas é aqui que devemos pensar.
Se afirmasse, postumamente, que Molly Bloom é uma “mulher capaz de
aproveitar de maneira única da maravilha masculina do ócio, enchendo a cara para subir
todos os degraus da finitude rumo à contemplação da imagem mais esplendorosa,
abandonando, para isso, a guarda do lar”, como ela faz, pareceria, da mesma forma, a
forma fixa de uma fantasia feminina de imitar o homem.
A interpretação que meramente confirmaria estas suspeitas críticas, também tem
de cuidar em não se tornar um estereótipo mitificador e bloqueador da experiência dos
gêneros e o que há para além deles e suas formas estáveis. Se queremos as imagens não
ordenadas, se queremos o ponto em que colocamos em cheque radical as leis que,
superfluamente, nos regem, então nada mais natural do que querer ser e participar de
uma imagem outra, não dada, nunca antecipável, transgressora de todas as formas,
inclusive as que se propõem como certas formas transgressoras.
Também, o termo androginia não é preciso, pois por ele entendemos a
harmonização de elementos masculinos e femininos, enquanto categorias naturais e
rígidas, dentro de uma mesma pessoa. O almejado é, aqui, acredito, uma das mais
ambiciosas metas da questão de gênero: a aceitação da tarefa e da liberdade de criar, ou
metamorfosear, gêneros, trazendo à tona formas não estabelecidas e binarizantes.
Contra o domínio das leis, que se estende a todo discursar, Bataille descreverá as
primeiras intuições da busca pela experiência, no interior, com imagens que também
são dadas pelo ser materno:

Se vivemos sem contestação sob a lei da linguagem, esses estados [da experiência
interior] são em nós como se não fossem. Mas, se, contra essa lei, nós nos chocamos,
podemos de passagem deter sobre um deles a consciência e, fazendo calar em nós o

9
KIBERD, Declan. Introdução a: JOYCE, James. Ulysses. Tradução: Caetano Galindo. São Paulo:
editora Penguin, 2012, p. 61.

8
discurso, demorarmo-nos na surpresa que ele nos causa. Mais vale então se encerrar,
fazer a noite, permanecer nesse silêncio suspenso em que surpreendemos o sono de
uma criança. Com um pouco de sorte, podemos perceber o que favorece o retorno de
tal estado, o que aumenta sua intensidade. E de certo não é demais para isso a paixão
doentia que faz com que uma mãe passe uma boa parte da noite ao pé de um berço.10

Ao solapar a primazia da representação, o pensamento de Bataille é como se


jogasse a razão no mundo da gravidade. A tentativa é a de livrar a experiência moderna-
intelectual de neuroses e subterfúgios gerados pela procura de inabaláveis fundamentos.
Sua busca quer afirmar a experiência do extremo do possível, o que quer ser uma crítica
ao infinitesimal da mediação, mas não menos aos manifestos do imediato.
Uma raiz dos problemas que cercam esta tentativa está na noção de “verdade como
correspondência”, ou seja, o tropo por meio do qual nos utilizamos das palavras para
apontar para algo fora dela e avaliar a correção em atingir esta meta. Como decorrência
disso, passamos a querer ver, obstinadamente, nas palavras, presenças perenes.
Com raízes na religião, mas encontrando seu altar no cientificismo, esta
concepção é tão forte que achamos seus vestígios fortemente latentes em trabalhos da
crítica que se pretendem progressistas, desconstrutores, abertos, segundo jargões. É ela
que está presente quando derivamos fundamentos objetivos através de derivações
comandadas pela lógica. Vi na tirada de Lona Hessel, citada no prólogo, uma sátira a
essa concepção.
Vindo na esteira das vanguardas artísticas, a filosofia de Bataille só pode se querer
igualmente anuladora de formas e fronteiras, recusando que haja uma concepção
majestificada de tempo, razão, objeto, sujeito, etc. Hoje parece banal, mas o colocar à
sua época a experiência como última palavra, em um livro que se pretende uma resposta
às ontologias tradicionais, certamente foi um enorme desafio à cátedra.
Traços fortes de continuidade da tradição racionalista encontramos em Jean-Paul
Sartre quando, resenhando contemporaneamente o mesmo A experiência interior,
afirma que Bataille sofreria de uma espécie de imperativo doente, através do qual sente
que “deve apontar, descrever, persuadir” por meio das palavras, desconhecendo que “a

10
BATAILLE, Georges. A experiência interior. Tradução: Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica
editora, 2015, p.46.

9
poesia se limita a sacrificar as palavras; Bataille quer nos dar as razões desse
sacrifício.”11
O autor irá catalogar a obra como “ensaio-martírio”12, definindo seu modo de
exposição como antiintelectualista, mas nisso parece haver uma permanência, muito de
antemão indisposta, na ante sala dessa anti filosofia. Sartre chega a afirmar que “a obra
de Bataille é o resultado de uma recaída, assim como a maior parte dos escritos
místicos.”13 Para os entusiastas do livro, como eu, torna-se engraçado o autor ver
convocações a epifanias, onde se vê o contrário – esvaziamentos, liberações,
horizontalizações.
Sartre fica aquém da crítica batailliana, na qual há um uso do discurso a um só
tempo como fim em si e descartável em si, não apoiado nem em objetos exteriores, nem
em hierarquizações racionalizantes, muito menos em mandamentos para a ação. Na
trilogia Suma ateológica, a qual este livro abre, há uma tentativa de radical saneamento
psíquico, por meio da violentação, não sua mera entulhação, como quer Sartre. Pelo
contrário, este poderia ser justo o sintoma acusado pela filosofia batailliana em face à
sartriana e seu compromisso com a tradição.
No trecho de A experiência interior, a figura do filósofo iluminista é perpassada
pela da paixão da mãe diante do berço. O “objeto” deixa de ser um ente exterior, a ser
tirado do mundo e escrutinado implacavelmente pela inteligência e torna-se uma criança
dormindo. Podemos nos imaginar, então, vaidosos e perplexos diante da extrema
fragilidade da experiência do conhecer.
Para os tropicalistas, subversões desarmadoras da perspectiva racionalista,
contemplativa, são também um seu mote comum. Em relação ao gênero, por exemplo,
as diferentes perspectivas do feminino e do masculino se abrem e protestam, falando
intimamente e sem ressalvas, trazendo um questionamento acerca da
incomensurabilidade entre ambos. Os papéis, ao contrário de serem aceitos como
rígidos, revelam experiências tentadoras de serem examinadas por dentro.
Podemos encontrar alguns exemplos em suas letras. Quando Gal, homossexual
algo assumida, em um disco polêmico gravado em plena ditadura, canta

11
SARTRE, Jean-Paul. “Um novo místico” In: Situações I – Crítica literária. Tradução: Cristina
Prado. São Paulo: 2005. Cosac Naify, p.156.
12
Ibid., p.153.
13
Ibid., p.158.

10
Índia
Da pela morena
Tua boca pequena
Eu quero beijar

Índia, sangue tupi


Tens o cheiro da flor
Vem que eu quero te dar
Todo o meu amor 14

Ou Caetano, encarnando a mulher e o desejo que pode ser ontologicamente


subversivo

Ah, que esse cara tem me consumido


A mim e a tudo o que eu quis
Com seus olhinhos infantis
Como os olhos de um bandido 15

Ou, ainda, por sua vez, Gil, ocupando uma posição de comentador e libertária

Um dia
Vivi a ilusão de que ser homem bastaria
Que o mundo masculino tudo me daria
Do que eu quisesse ter

Que nada
Minha porção mulher, que até então se resguardara
É a porção melhor que trago em mim agora
É que me faz viver 16

Quando fazem isso, é o tema caríssimo da construção da subjetividade para o


pensamento contemporâneo (enquanto cultura) que está sendo elaborado e reelaborado.

14
Gal Costa. Índia. São Paulo: Philips, 1973.
15
Caetano Veloso e Chico Buarque. Juntos e ao vivo. São Paulo: Polygram/Philips, 1972.
16
Gilberto Gil. Realce. São Paulo: WEA, Elektra: 1979.

11
17
A veia aberta pelo movimento foi a da autorreferencialidade dos artistas criadores.
Por ela, a distância entre autor e narrativa contada se anula ao se tornar um jogo
conscientemente alegórico.
À subversão da identidade estética correspondem revoluções subjetivas no
tropicalismo, razão pela qual, desde então, artistas jovens brasileiros simpatizantes da
rebeldia simpatizam mais facilmente com os tropicalistas do que com artistas da vertente
lírica.18
Para o feminismo, por sua vez, o questionamento de elementos tidos como
femininos ou masculinos, a liberdade na criação de gênero, vai sempre estar no cerne
de sua revolução. No começo de Problemas de gênero, Butler pontua:

Não é mais certo que a teoria feminista deva tentar resolver as questões da identidade
primária para dar continuidade à tarefa política. Em vez disso, devemos nos perguntar:
que possibilidades políticas são consequência de uma crítica radical das categorias de
identidade? 19

Ao longo do livro, Butler pontua rupturas que podem realizar a almejada


“subversão da identidade” em oposição às concepções de feminismo que estancam na
procura de um reconhecimento macro, ético-legal, dado de antemão. Butler parece
sugerir que a movimentação necessária para o feminismo é a de nunca supor que esta
subversão estanque em novas imagens dadas que, então, passariam a carecer de
reconhecimento. Trata-se de adotar esta subversão como movimento interminável, de
formação, exterior e interior, que não se reduz a fetiches.
A linguagem, porém, ela própria se mostra masculina, na medida em que a
economia entre interditos e permissões é toda elaborada em relação a um polo. Este é
elevado à posição de ativo em relação ao ter gênero e fazer história. O outro “nunca é
uma marca do sujeito (…) não pode ser o ‘atributo’ de um gênero”. Ao invés disso, este

17
“Os tropicalistas assumiram as contradições da modernização, sem escamotear as ambiguidades
implícitas em qualquer tomada de posição. Sua resposta à situação distinguia-se de outras da década de
60, por ser auto-referencial, fazendo incidir as contradições da sociedade nos seus procedimentos.”
FAVARETTO, Celso. Tropicália: alegoria, alegria. 3ª edição. São Paulo: Ateliê editorial, 2000, p.25.
18
Tom Zé satirizou assim Chico Buarque: “Pois ele é nosso avô”. VELOSO, Caetano. Verdade
tropical. 3ª edição. São Paulo: Companhia das letras, 2017, p. 244.
19
BUTLER, Judith. pp. cit., p.10.

12
“é a significação da falta, significada pelo Simbólico, um conjunto de regras linguísticas
diferenciais que efetivamente cria a diferença sexual.”20
A metafísica por trás das noções de identidade e verdade como correspondência é
a da já citada representação. Esta palavra, uma das mais caras ao pensamento em sua
variedade de uso e importância conferida, é um dos principais alvos da crítica filosófica
feita ao longo do século XX. Para Deleuze, a exemplo, “a representação é o lugar da
ilusão transcendental.”21
Ela é a seleção de imagens que não levam ao fim sua crítica, a herança de
estruturas de apreensão não conscientizadas, a oposição derivada ao negativo. Por meio
dela, os tipos colocados em dramatização são elevados à condição de puros e os
antagonismos caem no genérico – numa resolução separada e irreal. Ainda com
Deleuze, na metafísica da representação “o pensamento, com efeito, se recobre com uma
‘imagem’ composta de postulados que desnaturam seu exercício e sua gênese. Esses
postulados culminam na posição de um sujeito pensante idêntico, como princípio de
identidade para o conceito em geral.”22
O termo é também caro à questão de gênero. Em seu livro, Butler assim o aborda,
em trecho central:

Por um lado, a representação serve como termo operacional no seio de um processo


político que busca estender visibilidade e legitimidade às mulheres como sujeitos
políticos; por outro lado, a representação é a função normativa de uma linguagem que
revelaria ou distorceria o que é tido como verdadeiro sobre a categoria das mulheres.
(…)
É significativa [hoje] a quantidade de material ensaístico que não só questiona a
viabilidade do ‘sujeito’ como candidato último à representação, ou mesmo à
libertação, como indica que é muito pequena, afinal, a concordância quanto ao que
constitui, ou deveria constituir, a categoria das mulheres. Os domínios da
‘representação’ política e linguística estabeleceram a priori o critério segundo o qual
os próprios sujeitos são formados, com o resultado de a representação só se estender
ao que pode ser reconhecido como sujeito. Em outras palavras, as qualificações do ser
sujeito têm que ser atendidas para que a representação possa ser expandida.23

20
Ibid., ps. 60-1.
21
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Tradução: Luiz Orlandi e Roberto Machado. São
Paulo: Paz e Terra, 2018, p.353.
22
Ibid., 353.
23
BUTLER, Judith. op. cit., p.18.

13
Em um momento em que a canção está, vigiada de perto por uma ditadura, junto
ao centro dos debates políticos no Brasil (leia-se, para a esquerda ascendente, podendo
ocupar o espaço legítimo de um programa pedagógico e estratégico, de alcance nacional,
na luta contra o imperialismo), o tropicalismo subverte as rotas de discurso,
carnavalizando a identidade da MPB. Esta é vista como instrumentalizável, mostrando,
pela primeira vez, com tamanho alcance e pluralidade, algo nômade, suas potências
efetivamente alegóricas.
A referida autorreferencialidade tem como natural decorrência a mistura com
outras áreas, e o movimento é adotado pelos expoentes ascendentes da arte de outras
áreas, como Glauber Rocha, Hélio Oiticica e José Celso Martinez Corrêa (contando
também com o apoio dos irmãos Campos e de João Gilberto). Pela mesma via, o
tropicalismo sai da arte e passa a querer dizer, com vontade desmistificadora, algo sobre
comportamento antropológico.
O erotismo é outro dos temas centrais (mas descentrados) do tropicalismo. Nele
podemos ver uma provocação ao que poderíamos chamar de “concepção antropológica”
latente na arte de nomes como Tom Jobim, Edu Lobo, Elis Regina e Chico Buarque.
Escolhendo encarar o fazer artístico enquanto alta expressividade, a sofisticada
engenharia das canções destes artistas parece exigir estabilidade de seus elementos
mínimos.
Na parte literária e no rigor de não flertar com excêntricas linguagens, portanto,
este caráter acaba vinculado ao compromisso de criar um elo histórico e expressivo
forte, o que não o mantém propriamente aberto a imagens novas – que podem encontrar
sua politicidade na diferença. O tropicalismo, por sua vez, caracteriza-se por uma radical
suspensão e invenção dessas imagens.
Podemos ver o movimento sintonizado com o que acontecia de contestação nas
artes e nas filosofias de vários países da época. Ele ou sentia falta ou como que
inaugurava, na música popular, temas caros para a cultura até hoje como os de corpo,
resíduo, distração, inconsciente, acidente, disjunção, gesto, etc
Dentro destes temas, se Caetano e Gil são colocados, pela historiografia e de
maneira excludente, na posição de líderes absolutos da Tropicália, será Gal Costa quem
fará as mais contundentes manifestações do corpo no movimento. Um ápice disso é a
capa do disco Índia. Esta a podemos ver como a encarnação de Gal da imagem da musa
surrealista.

14
Uma “saia” no corpo da índia cai, para mostrar o sempre oculto para a cultura
macha. Mas, por baixo da saia, aparece uma urbana tanga vermelha. Por trás do
primitivo, o novo, e não o contrário. Por baixo da tanga, entretanto, transparece o sexo
de Gal, como se estivesse velado, mas já explícito, num terceiro movimento. A
linguagem pornográfica da internet, hoje, fetichiza amplamente ocorrências do tipo. A
sua rebeldia é caseira, e, por meio dela, categoriza-se a ocorrência, com o humor
constante, que visa compensar beatitudes (para novas espécies de santos, ainda
pubertários) com o termo cameltoe (dedo de camelo).
A contracapa do disco trazia Gal topless. A audácia como um todo foi censurada,
o disco tendo de ser vendido coberto por um plástico azul. Mais uma roupa, esta
servindo plenamente como uma burca a esconder uma mulher – aqui de costumes
expressivamente perturbadores. Obviamente, a proteção aumentou o fetiche e a
propaganda, principalmente ao longo dos anos.
Note-se, sobretudo, que não é o rosto, mas o sexo da cantora, e sob um véu, que
aparece na capa. O cinismo aí, já é evidente: trata-se de uma mulher – para nossa cultura
um sexo – inscrevendo-se, ou tentando se inscrever, no panteão sagrado da inteligente
música popular brasileira. E durante uma ditadura militar.
Hoje o controle é mais diluído. As imagens proibidas do corpo da mulher
encontram-se titanicamente difundidas na internet. Se digito cameltoe, numa busca de
imagens e mesmo com o safesearch ativado, verei infinitas quantidades de fotos
semelhantes as da capa de Índia e muito poucas relacionadas a camelos. Como o
explícito não é mostrado, as imagens são permitidas.
A vigilância está em propiciar, para uma apreciação ainda aparentemente secreta,
múltiplas possibilidades de prazeres domesticadores. Mas com os interditos mais pueris
talvez ainda mais plenamente vigentes.

II

Mesmo com todas as suas possíveis virtudes, tropicalismo também é um termo


que se banalizou nas últimas décadas no Brasil. Este é o nome de um movimento
(estético? a-estético? vanguardístico? comportamental?) prolongado para além de seus
anos heroicos por tempo impreciso, assiduamente laudado com vaguidão ou lugares
comuns. Também descolocado com ranço.

15
Interpretando-o a partir da posição de impressões imediatas e entusiastas, o
movimento quereria dizer mistura estética sem dogmas; música-sinestésica feita com
vastidão conceitual; coletividade como modo de criação; o Brasil devorando o mundo e
devolvendo algo próprio, com a força da juventude; um todo rico e vanguardístico
composto de filosofias imanentes, letras inteligentes, performances escandalosas, etc.
Este rol de características é, por uma benfeitora constatação de ampliação de
domínio, tomado como algo evidente e definitivamente positivo para a nossa cultura.
Mas, sua eleição mesma, pode ser um tiro que sai pela culatra. Pois, ao afirmar tão alto
bem-estar, esta se torna uma interpretação diluidora, que passa por cima de caras
questões, dada sua ânsia por conciliação ou ímpeto de comemorar algo. Forças muito
presentes nas construções teóricas.
As interpretações denegadoras da Tropicália também não raro são fartas de
lugares comuns. Em boa parte das vezes, elas não desdobram seus argumentos e caem
num moralismo ou esquerdismo esquemáticos demais para merecerem o nome. Para
elas, o movimento seria um esconder-se no cinismo diante das gigantescas dificuldades
do momento político, não constituindo uma resposta à altura deste; seria oportunista ao
envolver-se com a questão do mercado; a sua curta duração demonstraria que foi ou
fogo de palha, ou uma temporária notícia da imprensa; os desdobramentos das carreiras
solo de seus artistas careceriam da radicalidade que esperaríamos de vanguardistas, etc
Também, esta interpretação, sobretudo ansiosa por afirmar uma posição
monoliticamente coerente, é tão diluidora quanto a que faz festa com louvações. Com
golpes singulares, é como se a riqueza mais evidente de várias canções tropicalistas
fosse transformada em pó pela primazia de questões extrínsecas à arte, princípios
ontológicos construídos rigorosamente, tão morais que superiores à moral. Sobretudo,
esta atitude é de interdição estética, possivelmente a mesma que cria a resposta do delírio
tropicalista.
Dos raros trabalhos acadêmicos sobre Gal, encontrei este ensaio escrito por um
colega da antropologia da UFPA: “‘Eu sou uma fruta ‘gogóia’, eu sou uma moça’: Gal
Costa e o Tropicalismo no Feminino”.24 O trabalho chega a tocar em um dos temas

24
NOLETO, Rafael da Silva. “‘Eu sou uma fruta ‘gogóia’, eu sou uma moça’: Gal Costa e o
Tropicalismo no Feminino” IN: Per Musi – Revista Acadêmica de Música. Número 30. Belo Horizonte,
2014. Disponível em: shorturl.at/hPR46.

16
centrais do presente ensaio, o disco Índia, e traz a importantíssima, e também rara,
abordagem temática da figura da mulher no movimento tropicalista.
Infelizmente, porém, além do texto apresentar definições ligeiras (também
contestáveis e pouco poéticas) de tropicalismo e antropofagia, o mesmo faz
perigosíssimas analogias entre a performance artística de Gal e o comportamento
estético de indígenas. A analogia carece, crucialmente, de um desdobramento muito
caro à Tropicália: toda volta do movimento ao passado, do primitivo à Bossa Nova, não
é bem lida pela chave da origem, mas a do simulacro.
Assim, no trecho que comenta a censura feita à capa de Índia, o autor escreve:

Ao analisar esta capa é possível retornar ao discurso de Terence TURNER (1980)


sobre o uso das cores nas pinturas corporais dos índios Kayapó. Sendo o vermelho
associado às noções de “energia, vitalidade e intensificação”, esta cor – não se sabe
as reais motivações – foi utilizada, no biquíni, para encobrir a região genital de Gal
Costa na fotografia. Esta significação para a fotografia em questão pode não ter sido
concebida originalmente desta maneira, mas a coexistência de tal configuração de
cores, erotismo e dimensões de subjetividade dá margem às interpretações que venho
construindo a partir do cruzamento da obra de Gal Costa com esta literatura
antropológica.25

A ressalva do colega com relação à significação atribuída à tanga de Gal é


importante e tudo bem que se faça o cruzamento mencionado. Falar de tropicalismo e
não falar da metamorfose das imagens, porém, estancando em analogias exteriores,
relativas ao campo visual e a grupos tão distintos, que são sobredeterminadas como
comportamentos próximos, resulta em grande falta.
Um pouco antes, o ensaio abordava o tema pela primeira vez:

Retornando ao discurso de TURNER (1980) sobre os Kayapó, outros aspectos para


os quais desejo chamar a atenção – e que são perfeitamente cabíveis na análise que
faço sobre a subjetividade da performance vocal e cênica de Gal Costa – dizem
respeito à sua descrição acerca dos significados em torno do cabelo e das cores
utilizadas na pintura corporal desse grupo indígena.26

25
Ibid., p.70.
26
Ibid., p.65.

17
Além do contestável conteúdo da auto-autorização, Noleto desenvolverá essa
reflexão acerca do cabelo de Gal em torno de uma espécie de fenomenologia primária
(já que separada e geradora de efeitos positivos). Algo importante no movimento, no
entanto, é a autoconsciência da obra enquanto mercadoria. Assim, o cabelo de Gal não
diz respeito a algo redutível a comportamento tribal, mas a seu reconhecimento como
crítica mimética da imagem separada da origem.
Sem dúvida ao tropicalismo cabem críticas e também relativizações, ou definição,
de suas proezas. As falas públicas de Caetano Veloso são um dos mais fortes exemplos.
Não raro e ao longo de toda carreira, nelas o artista parece ver uma perigosa extensão
da arte, insistindo em símbolos e parecendo perder o pé de sua própria posição.
Igualmente, para um sujeito tão inteligente e bem formado, é estranho que só
recentemente, no fim de 2019, Caetano tenha mudado sua visão, que era constante e
sintomaticamente afirmada como avessa, a respeito do marxismo 27
– um pensamento
não menos importante do que os mais importantes para se pensar a modernidade.
Eu diria, no entanto, que críticas ruins feitas ao movimento chegam a empatar com
o excesso das laudatórias. Um exemplo contundente do canhestro destas reprovações,
encontramos no texto de Carlos Augusto Bonifácio Leite.28 Abordando de maneira
oblíqua, no sentido de não muito clara, o tema de uma estética da violência nas canções
tropicalistas e chegando a conclusões curiosas como a de Domingo no parque não ser
uma canção tropicalista29, o autor abre estes colchetes perto do fim de seu ensaio:

[Sem perder o ensejo, e sendo repetitivo, na Verdade tropical de Caetano, a sintaxe


longuíssima e repleta de negações das negações realiza no relato memorialista essa
voz escorregadia, como notamos na passagem (2008, p. 95, grifos meus): “A vitória
do prestígio do movimento sobre essas duas tendências não foi atingida sem
dificuldade, e não se pode dizer que a desatenção – quase hostilidade – a produções
como O cangaceiro (Vera Cruz) ou O homem do Sputnik (chanchada) não pareçam
hoje francamente injustas.” O que afirma o autor? Ou melhor: se o objetarmos por
afirmar o que quer que seja, ele poderia replicar dizendo que não era nada disso?]30

27
Em entrevista com Jones Manoel pelo Mídia Ninja disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=afrQvy2Y7Is
28
LEITE, Carlos Augusto Bonifácio. “Figurações da violência na estética tropicalista.” IN: O eixo
e a roda. Volume 24, número 2. Belo Horizonte, 2015. Disponível em: shorturl.at/vxCWX
29
Ibid., p.111.
30
Ibid., p.116.

18
Esta visão dos artistas tropicalistas transparece um ótimo exemplo de denegação
prévia, já que Leite coloca uma lupa, míope, num recurso estilístico corriqueiro,
presente em períodos longos, a fim de se contrapor ao posicionamento de Caetano
Veloso. O mesmo ecoa no resto do ensaio, o autor trazendo ânsias de demonstração
antes de percorrer a investigação.
Tentando dar conta de uma visão entusiasta, mas equilibrada, deste movimento,
desenvolvi em outro ensaio 31 a ideia de que uma das interpretações mais intuitivas da
Tropicália, a da deflagração de misturas estéticas, pode ser invertida. O colocar junto,
na equação estética, elementos díspares, sem tomada de posição, e o flerte inteligente
com o nonsense, podem ser vistos como a explicitação de uma equação não-resolúvel,
como a realização de obras abertas e fragmentadas que não se conciliam ou se fecham,
pelo contrário, dispõem-se à perplexidade, ao enigma, recusando a bela-alma.32
Assim, tropicalismo seria não só a fusão, mas também a reperformação da
mistura-lixo apresentada como obra pelos dadaístas – e podendo ser negada. Não o
feitiço sensível gerado pela arte (o sinestésico), criando monumentos, sem que este
esteja acompanhado com igual força do cinismo amoroso da inteligência. Não uma
filosofia da experiência imediata, pois há constantes referenciações à história do país.
Não uma incorporação estetizante do estrangeiro, pois há a pulsão vanguardística, a
afirmar também o afastamento da expressividade e a radical diferença.
E também apenas algo que acontece, sem intenção, sem programa estético e com
inteligência anárquica. A crítica seria à própria noção de intenção, à semelhança da
filosofia wittgensteiniana, que questiona a compulsão do papel privilegiado que se dá à
metalinguagem, como se devêssemos decorrer que ela concede suporte aos usos da
linguagem.
A duração da Tropicália no tempo também é fenômeno interessante. Por um lado,
apresenta-se o movimento como tendo durado dois anos, de 1967 a 69 – sua fase heroica.

31
“O xhtrukwyaoy nunca existiu”. Disponível em: shorturl.at/bktDN (página pessoal).
32 "Há muitos perigos em invocar diferenças puras, liberadas do idêntico, tornadas independentes
do negativo. O maior perigo é cair nas representações da bela-alma: apenas diferenças, conciliáveis e
federáveis, longe das lutas sangrentas. A bela-alma diz: somos diferentes, mas não opostos...” DELEUZE,
Gilles. Diferença e repetição. Tradução: Luiz Orlandi e Roberto Machado. São Paulo: Paz e Terra, 2018,
p.14.

19
Por outro, ressalta-se que ele ecoa ainda hoje, como se a qualquer momento um artista
pudesse não só nominá-lo como referência, mas tropicalista ele mesmo, sem grandes
explicações de como se dão essas interrupção e infinita continuidade.
O ano de 1969 é definido como sua oficial data término, devido ao exílio de
Caetano Veloso e Gilberto Gil. Gal Costa, no entanto, continuou criando e se tornando,
nesta época, uma das mulheres de comportamento mais influente na cultura brasileira.
Mesmo assim, a mencionada ausência de textos e estudos acadêmicos sobre sua obra é
sintomática. Fica parecendo que Gal é intérprete (cabendo melhor ser estudada por
alunos e alunas de canto, por exemplo) e não artista-criadora.
Se rompermos a ideia de uma estreita determinação temporal, um dos marcos do
tropicalismo se torna o álbum Índia, gravado por Gal em 1973. Ele é puro, e heroico,
tropicalismo, podendo mesmo figurar como o álbum mais bem acabado do movimento
– é a opinião de quem está nestas palavras. Pornográfico, lésbico, diabólico e, ao mesmo
tempo, organizado, sublime, melancólico, a obra se vê inserida em um país aquém da
atitude de voltar, mesmo em se tratando de um seu incessado tesouro da cultura, a MPB.
O benefício seria o de reelaborar aquilo que de forte ele próprio construiu.
Outros exemplos de leituras genéricas do tropicalismo os podemos ver gravitando
em torno de faixas como a que dá título a este álbum. Alheias aos já mencionados jogos
de inteligência do movimento, não raro as interpretações que tecem ou um caráter
laudatório padrão ou concedem um mínimo de complacência para com o tropicalismo,
veem a eleição de canções como essa como um intento de jogar luz nas culturas do
recôndito – temporal, geográfico e simbólico – do Brasil.
Isto poderia ser justificado dando a razão de que lá existem outras formas
culturais, outras maneiras de apreender a vida, massiva e injustamente consideradas
inaptas a ressignificar, em qualquer grau, o mundo da cosmópolis. Viria um movimento
democrático como o tropicalismo e lançaria luz a essa questão.
Novamente, a interpretação é válida, mas uma análise do movimento não deve
estancar nela. Trata-se, talvez, muito menos de recôndito que de interdito. Na tentativa
de estabelecer jogos livres com este, o tropicalismo procura obras e tropoi recalcados
pelo gosto urbano. Em versões como as feitas às canções Coração materno ou Hino do
Senhor do Bonfim ou em letras que compilam emblemas nacionais como Geleia geral,
trata-se muito menos de uma visita puramente familiar do que ardilosa.
Os céticos ante a Tropicália não veem assim, encarando a regravação de uma
canção como Índia como o chafurdar nos excessos da gratuidade, pseudo-

20
monumentalizando a arte quando o que ela pede, enquanto exigência histórica à época,
é nudez e chão. Essa visita a outro lugar é desautorizada por evidenciar cinismo na
apropriação de bens culturais de classes “mais simples”.
Por essa leitura, essa pretensa dobra tropicalista é lida como uma glamourização
do lixo comercial, sem lhe acrescentar nada. Algo que, em termos vanguardísticos,
estaria próximo do que fez Jasper Johns em 1960 com sua obra Bronze pintado, quando
colocou duas latas de cerveja Ballantine em uma base de bronze. Segundo Hal Foster,
assim, “ele reduziu a ambiguidade duchampiana do urinol ou do porta-garrafas a uma
(não)obra de arte; os materiais em si já significavam o artístico”33.
O gesto de Índia seria o oportunista instalar-se na linha de produção de canções
pré-formatadas comercialmente, fetichizado pela etiqueta “arte inteligente”, “arte
jovem”, “arte da multiplicidade”. Vai-se, com uma versão como a essa canção, portanto
e além de tudo, além das bordas, violando domínios, ao se ressaltar a adaptação
canhestra de uma música estrangeira. O fato de estes artistas serem inteligentes revelaria
um excesso de autonomia, uma fuga não para os recônditos etnográficos, mas para os
esconderijos (longe dos pais, poderíamos dizer) que resulta em alienação diante do
momento político do país.
Uma questão a se levar em conta é a de que, posto como chave, recôndito, aqui e
ao lado das outras ações tropicalistas, no entanto, tem limites nada estáveis. Pode querer
dizer interior geográfico: lá onde se vai buscar uma canção paraguaia – ou adaptada,
grosseiramente, para o português brasileiro, ou mesmo encontrada no Brasil em sua
versão original. Pode apontar para a cultura popular imigrada do interior já inserida na
urbe, portanto já deslocada.
Também há o óbvio de ver uma menção à população indígena o que é perigoso,
como já vimos. A filiação da Tropicália à antropofagia poderia encontrar justo aqui o
seu impasse, pois a Índia de Gal pode ser vista como se alimentando de forças
primitivas, mas ao mesmo tempo se sabe inserida na cultura de massas. Mais
tropicalisticamente, também messe sentido, o elogio ao recôndito também pode trazer
uma crítica ao interdito do gosto, na afirmação de que as ideologias de saneamento ou
progresso impostas pela cultura oficial não conseguem esconder certas posições – que
incomodam não sem razão positiva.

33
FOSTER, Hal. O retorno do real. Tradução: Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p.30.

21
Eis aqui o x da questão. A chave de leitura para Índia que a toma, positiva ou
negativamente, como o que chamo aqui de tributo ao recôndito acaba colocando em
perspectiva o gesto tropicalista pelo viés da autenticidade. Um aporte da arte marcado
sobretudo pelas vanguardas históricas é a já mencionada desvinculação do fazer artístico
do registro da origem, passando a pensar o domínio do simulacro como um tema
exigente de outras perspectivas.
Para Deleuze, escrevendo no mesmo momento do tropicalismo, na modernidade,
o recorrer ao fundamento da origem ou da identidade, é esquecer que uma aparente força
de sentido definidor quanto mais se imagina se afirmando, mais se diferencia segundo
micro segregações e mais se repete segundo enormes redundâncias. Isso acontece, pois
“no simulacro, a repetição já incide sobre repetições e a diferença já incide sobre
diferenças”.34 Gestos vanguardísticos podem ser vistos como uma espécie de
consciência disso.
Assim, o tropo da origem peca em considerar que faz uma observação
objetivamente justa, verificável, quando não leva em conta que esta observação se insere
num mar de observações justas e verificáveis, fazendo com que o caminho até a raiz da
questão, que é o pretendido por ela, se entulhe.
Ademais, continua Deleuze, “não é próprio do simulacro ser uma cópia, mas
reverter todas as cópias, revertendo também os modelos: todo pensamento torna-se uma
agressão."35 Severo Sarduy, em La simulación, aponta para esta reflexão, e outro dos
temas caros à presente monografia, secamente, logo na primeira frase de seu ensaio
propriamente dito: “El travestí no imita a la mujer.” 36 E, logo em seguida: “El travestí
no copia, simula.” 37 Voltarei a este ponto.
A miríade de simulacros tropicalistas é tomada como oportunismo e alienação,
mas também pode ser lida como algo próximo ao conceito benjaminiano de niilismo
revolucionário.38 Escapando das classificações da política burocrática, o termo anula a
imagem da representação social. Esta, que visa nunca perder de vista o reforçar laços de

34
DELEUZE, Gilles. op. cit., p.14.
35
Ibid., p.14.
36
SARDUY, Severo. La simulación. Monte Avila Editores, 1982, p.13.
37
Ibid, p.13.
38
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas volume 1: Magia e técnica, arte e política.
Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. 8ª edição. São Paulo: Brasiliense, 2012, p.25.

22
solidariedade sacrificadora, tem origem na caridade cristã. Através dela o indivíduo
deve sempre comparecer ao tribunal da consciência, pública, e prestar seus votos à
realização da responsabilidade moral. Uma saída, tão amorosa ou mais, é a do sonho:

A vinculação das imagens tropicalistas ao sonho nem é casual nem resulta de uma
simples analogia. A atividade tropicalista se materializa como exercício surrealista:
uma prática em que a realidade é fecundada pela imaginação e pelo sonho, iluminando
as possibilidades reprimidas. Esta prática, de inspiração materialista, antropológica,
volta-se para o cotidiano, mais precisamente para a mitologia urbana, aí investindo as
forças do êxtase para a revolução.39

III

Lado A

Vamos aos fatos: Índia (1973) é um álbum da cantora Gal Costa criado na esteira
de um movimento inteligente e escandaloso (ou “tímido e espalhafatoso”40), o
tropicalismo. Amplos jogos estéticos são um mote dos trabalhos do grupo. Este os
configura, por base, como ricos tecnicamente em forma e atravessados por uma
multiplicidade algo estonteante. Esta última vai desde a quantidade de canções,
compostas em um curto período, e é como que levada até uma radical subversão da
identidade para artistas da MPB.
Da fase heroica, 1967-9, portanto, não vemos, nos anos subsequentes, suceder um
estancamento ou superação, mas um desdobramento, bastante tropicalista, dos
programas e manifestos coletivos dos artistas. Mesmo que já oficialmente dispersos em
carreiras individuais. O disco Araçá azul, de Caetano Veloso, por exemplo, foi lançado
um ano antes de Índia e é considerado “sem dúvida, tropicália revisited”41. Ele pode ser
facilmente visto como o trabalho formalmente mais radical das experiências do
movimento como um todo.

39
FAVARETTO, Celso. op. cit., p.114.
40
Verso da canção Vaca profana, de Caetano Veloso, presente no álbum Totalmente demais
(1986).
41
FAVARETTO, Celso. op. cit., p. 53.

23
É este o contexto estético em torno do disco de Gal. Um ouvinte minimamente
ciente já podia se considerar, de antemão avisado para receber o repertório e a forma da
apresentação escolhidos. A capa e a contracapa, como num excesso de sucesso da
proposta, foram censuradas , e o disco teve de ser vendido dentro de um plástico azul.
Da mesma forma, uma tomada de conhecimento da origem das duas primeiras
faixas, Índia e Milho verde, já bastaria para confirmar quaisquer suspeitas: haverá algo
para além do corpo das canções, algo que se estende até o gesto, ou que se prolonga a
partir dele, e que ali as reúne de forma talvez perigosa.
É deste modo que, ao finalmente ouvir a versão à canção-titulo, poderíamos nos
sentir estimulados a perceber um tanto de coisas, deambulantemente. Ela é uma
louvação pseudo, mas monumentalizada dramaticamente ao Paraguai, funcionando
como cutucada, tanto mais venenosa quanto mais nonsense, talvez, ao nacionalismo.
Uma ode, encarnada secretamente por Gal e em germe revolucionária, ao amor lésbico.
Uma nova homenagem do tropicalismo ao brega ou ao melodramático, fazendo
ecoar versões como a de Coração materno42 (de Vicente Celestino) e a de Chão de
estrelas43 (de Lupicínio Rodrigues, compositor que aqui também está presente com
Volta). Também o registro musical do épico, fundado na “recriação musical”, como
define o encarte do álbum, e no arranjo orquestral de Rogério Duprat, que, no entanto,
termina dando forma a um resultado satírico-insólito.
Ou uma interpretação vocal que é de certo modo oblíqua em relação ao conteúdo
literário da canção, porque apoiada num tom sensual-liberador. Ela nos faz sentir que o
discurso está para além das palavras, restando posta, a meu ver, como bandeira contra
as opressões subjetivas do momento. Mas, talvez como força vórtice de tudo, devamos
colocar o vanguardístico, pois que é ele que visa o deslocamento contínuo da apreciação
da arte enquanto mera contemplação.
A composição é de autoria do músico José Asunción Flores e do poeta Manuel
Ortiz Guerrero, em 1928. Aquele é o criador de um gênero para a música paraguaia, a
guarânia, do qual Índia é exemplo. A letra original era acentuadamente mais complexa
que a da versão brasileira:

42
Versão presente no álbum manifesto, Tropicália ou panis et circensis (1968).
43
Gravada no terceiro disco dos Mutantes, A divina comédia ou ando meio desligado (1970).

24
India bella mezcla de diosa y pantera
Doncella desnuda que habita el Guaira
Arisco remanso curvó sus caderas
Copiando un recodo de azul Paraná

Indiscreta morena
Que una noche naciera
De tristeza y penar

De su tribu la flor
Montaraz Guayaquí
Eva arisca de amor
Del edén guaraní

Bravea en sus sienes su orgullo de plumas


Su lengua es salvaje panal de Iruzú
Collar de colmillos de tigres y pumas
Enjoya a la musa de Ibitiruzú

Y una noche nasiera


De la selva olorosa su
Perfume arrojar

La silvestre mujer
Que la selva es su hogar
También sabe querer
También sabe soñar44

É em 1952 que o compositor brasileiro José Fortuna45 faz a versão para o


português.46 Como é claro desde um primeiro olhar, apesar de as duas línguas serem

44
A versão mais antiga encontrada foi a de Mercedes Simone, de 1936. Mais informações sobre o
processo da composição da canção em: shorturl.at/gmnvB.
45 Uma breve biografia pode ser lida em: https://dicionariompb.com.br/jose-fortuna/dados-
artisticos.
46
“Índia, teus cabelos nos ombros caídos/ Negros como as noites, que não têm luar./ Teus lábios
de rosa, para mim, sorrindo/ E a doce meiguice desse teu olhar.// Índia, da pele morena/ Tua boca
pequena,/ Eu quero beijar.// Índia, sangue Tupi,/ Tens o cheiro da flor/ Vem, que eu quero te dar/ Todo
meu grande amor.// Quando eu for embora, para bem distante/ E chegar a hora de dizer-te adeus./ Fica
nos meus braços só mais um instante/ Deixa os meus lábios se unirem aos teus// Índia, levarei saudade/

25
muito próximas, o compositor brasileiro tornou a letra outra, apelativamente comercial.
A canção deixa de ser o culto da força da mulher indígena paraguaia para se tornar uma
pasteurizada declaração de amor feita a esta – tornando-a completamente desprovida de
seus atributos específicos.
O mais espantoso na versão é a anulação de todos os emblemas geográficos e
étnicos da original. O mesmo acontece com toda riqueza vocabular e fonética, para, no
final, como numa espécie de dívida sentida, acrescentar uma menção respeitosa, mas
bastante artificial, à nação paraguaia. Nesta homenagem, ainda se inclui, de forma
piegas, o uso do pronome possessivo “meu” para apontar para este país e criar um
deslocamento intocado anteriormente na nova letra.
Em abstrato, torna-se suspeita a eleição desta versão como base por um
movimento tido como qualificado intelectualmente – se bem que, desde o início,
polemizador. Uma nova versão poderia ter sido feita, por um dos tantos poetas do
tropicalismo, sem muita dificuldade de adaptar e até mesmo acrescentar algo à rica letra
da original.
Acontece que um dos motes centrais do tropicalismo se dá, como já dito, justo no
estabelecimento de múltiplos jogos com a matéria e os gestos circundantes à “obra de
arte”. É claro que, como em todos os jogos, nestes aqui também acabe sendo sentida a
presença do diabólico. É importante pensar, com o movimento, duas coisas: que quem
mimetiza não adere de forma una e que também pode fazer parte da lição da arte
esvaziar-se enquanto centro de significado, enquanto meio autonomamente redentor, da
cultura.
Também, e talvez principalmente, as implicações de Gal como artista mulher
neste período não podem passar despercebidas. A exemplo, o fato, ainda ocultado
publicamente, de ela ser uma mulher homossexual. O gesto da artista de colocar seu
ventre em close na capa como maneira de encarnar, transfigurando, a Índia. De ela estar
declarando amor a uma mulher na letra: em aparência, Gal repete o que, até aquele
momento e muito depois, a maior parte das cantoras acabava tendo de fazer, que é não

Da felicidade/ Que você me deu// Índia, a tua imagem/ Sempre comigo vai/ Dentro do meu coração/ Todo
meu Paraguai.”

26
adaptar uma letra composta para ser cantada por um homem, e dirigida a uma mulher.47
Mas aqui, porém, o que ela quer é fazer isso mesmo. Tudo isso, e mais, em meio a uma
ditadura.
Para os entusiastas, o disco pode ser encarado como tão politizado quanto
qualquer outro da moderna MPB. Como os poetas que cantaram os trapeiros no estudo
de Benjamin sobre Baudelaire, a Tropicália também pode ter visto a fonte primordial da
poesia nas cidades surgir do lixo. Um lixo, claro esteja, que é o do simbólico. Aqueles
poetas “encontram o lixo da sociedade nas suas ruas e é também ele que lhes fornece a
sua matéria heroica”, não surpreendendo que aconteça uma transformação onde “o poeta
é penetrado pelos traços do trapeiro.”48 Dentro disso, e da mesma forma para os
tropicalistas, poderia não ser justo comentar essa fonte bruta sem aceitar a metamorfose
oferecida por ela.
Um capítulo à parte neste álbum é o de seus músicos e a riqueza estritamente
musical presente nele. A isto caberiam análises técnicas que não tenho condições de
desenvolver, mas, como estudante de literatura, sinto que tenho a missão de fazer outras.
Com isso, por um lado deixo de tratar de aspectos semântico-musicais que só podem ser
dados pela técnica musical. (A relação de escansão melódica com o campo harmônico
usado, por exemplo.)
Por outro, no entanto, faço aqui, ao longo do ensaio como um todo, digressões e
associações que análises técnicas não costumam fazer. Num estágio ideal, ou idealista,
da minha formação, eu conseguiria unir as duas leituras, mas por ora me contento com
as infinitas possibilidades de olhar a música a partir da literatura. Por último, meu tema
foi bem escolhido para as minhas capacidades: como poucas manifestações da nossa
música, o tropicalismo é bastante permeável à noção crítica da “obra” de arte.
Entre os instrumentistas, há só participações especialíssimas, mas o personnel
base é um dream team brasileiro: no violão, assim como na direção musical, Gilberto
Gil; na guitarra, os acordes e fraseados jazz de Toninho Horta, que veio a se tornar um
dos nomes mais conhecidos do instrumento no país; na bateria, outro dos maiores
expoentes, inicialmente muito conhecido por seu trabalho junto aos mineiros do Clube

47
No jogo entre compositores e intérpretes, presente na canção, tradicionalmente se esperava das
mulheres que fossem intérpretes, não compositoras. Nestes papéis algo da própria polaridade masculino
e feminino se revela: elas servem a eles, as intérpretes encarnam as composições, dão seu corpo a elas.
48
BENJAMIN, Walter. Baudelaire e a modernidade. Tradução: João Barrento. São Paulo:
Autêntica, 2015. p. 81

27
da Esquina, Robertinho Silva; no acordéon, Dominguinhos, um dos músicos mais
influentes na história da música popular brasileira; na percussão e efeitos, Chico Batera
e, no baixo, Luiz Alves, estes dois últimos integrantes também de nada mais, nada
menos, que uma das bandas mais largamente consideradas perfeitas da MPB moderna,
a de Elis Regina de meados dos anos 70.
O arranjo de Índia é puro tropicalismo. Há primeiro um excesso de comentários,
autônomos, das várias seções de instrumentos: cordas, sopros, sanfona e violão. Os 3
últimos mantém-se criando panos de fundo simultaneamente ao canto, mas é a cada
“pergunta” de sua linha melódica que a orquestra de cordas se junta a eles para,
somados, fazerem as mais barrocas intervenções.
Este “sistema” se torna ligeiramente diferente após a convenção que chama o
refrão. Neste, as referidas instrumentações tornam seus desenhos mais alargados e
emoldurantes, como que finalmente cedendo o espaço de estrela principal à linha
melódica. O mesmo padrão se sucede na volta do refrão, com a segunda estrofe dos
versos e o segundo refrão.
Após este, Gal sobe oitavas na melodia para repetir toda a letra e, junto ao
aparecimento de uma levada da bateria, começa a intensificar a canção. As cordas
continuam fazendo comentários de resposta barrocos, a sanfona se tornou um
instrumento que, seja como acompanhamento, seja com intervenções, quase não deixa
de estar presente. Os sopros, por sua vez, acentuam uma tendência do início que é a de
como que apresentarem humores esquizofrênicos em frases de continuidade e
intervenção inesperadas.
Este cenário profuso, bem ao estilo de um carnaval tropicalista, tem seu ápice na
repetição do verso final “Todo meu Paraguai” com a catarse de todos os instrumentos
e, sobretudo, do canto de Gal que, no trecho conclusivo, como todos costumam lembrar,
explora suas notas mais agudas.
Em Milho verde novos deslocamentos insólitos são feitos. A canção, um tema
popular da Beira Baixa, província histórica de Portugal, foi gravada dois anos antes, em
1971, pelo português José Afonso, e lançada em seu disco Cantigas do maio. Afonso é
um herói da militância portuguesa, tendo sido um dos principais nomes a consolidar a
canção urbana politizada daquele país. Foi ele também um dos principais responsáveis
a trazer para dentro desta música temas como o da cultura africana.
Portugal estava na iminência do fim de sua ditadura de quase 50 anos. Alguns
anos antes, e em relação a ações do regime no continente africano, “quando do início da

28
Guerra Colonial em 1961, o governo agiu rapidamente no sentido de censurar qualquer
notícia que desabonasse as operações em África.”49 Canções que abordassem o tema,
notícias codificadas, portanto, também foram censuradas.
Nesta mesma época, porém, o “cancioneiro produzido em Portugal atravessou
uma significativa mudança quando da renovação do Fado de Coimbra por José Afonso
e por Adriano Correia de Oliveira”.50 O tema africano se tornava, então, para esta nova
música, urgente. Afonso, “além de ter tematizado o continente africano em suas
canções, também viveu em Moçambique e em Angola”51.
Em show de 1983, quando da execução de Milho verde, ele irá afirmar: “Vamos
misturar aqui um ritmo mais ou menos da Beira Baixa com umas tumbadoras que darão
um toque africano. Aliás, eu creio que existem muitas semelhanças entre as canções da
Beira e muitos ritmos africanos, sobretudo de Angola.”52
A gravação tropicalista, no entanto, e sem querer soar laudatório, é como se fosse
a versão 2.0 de sua colega portuguesa. Sob direção musical de Gilberto Gil, a rítmica
africana, a exemplo, é, nesse arranjo, reelaborada com variedade de instrumentos
percussivos, polirritmias, dinâmicas, riffs de ataque, definição e extensão que, quando
existem, o fazem espontânea e linearmente na versão portuguesa. Esta transcorre em
uma só toada, como num canto espontâneo que puxa instrumentação não elaborada,
quase sem arranjo.
Perto do fim, a versão tropicalista se permite um interlúdio psicodélico onde
vocalizações, percussões, uma singular linha de baixo, guitarra e viola se somam,
criando imagens livremente e compondo uma espécie de transe, cuja liberdade musical
surpreende tanto quanto o controle de sua curta duração.
Também, o canto de José Afonso é um canto “de compositor”, alguém que registra
o canto como gesto político. Prova disso são cerca de 3 overdubs vocais, feitos pelo
próprio artista, e existentes não só nas vozes de contraponto, como na principal,
repetindo da melodia sem abertura. A razão deste recurso é dar um suporte extra à força
da voz. Na versão tropicalista, o ataque rítmico da voz de Gal, suas impostações e

49
FIUZA, Alexandre Felipe. Representações do espaço africano na moderna canção popular
portuguesa. IN: Revista TriceVersa ISSN 1981 8432 Edição eletrônica. Maio-outubro,2008, p.23.
Disponível em: http://www2.assis.unesp.br/cilbelc/AlexandreFelipeFiuza.pdf
50
Ibid., p.28.
51
Ibid., p.15.
52
Ibid., p.32.

29
vocalizações auxiliares se relacionam com um todo pensado segundo ataques, pausas e
interlúdio.
Dada a franca politização do autor, o gesto de Afonso em regravar esta canção nos
faz acreditar na ideia de que, além do flerte com a cultura africana, há certos “acasos”
que ficam destacados na parte literária. Ao cantar, em plena ditadura e um pouco antes
da Revolução dos Cravos, os versos “À sombra do milho verde/ Ah, à sombra do milho
verde/ Ah, namorei um rapazinho”, variando o mote para “Ah, namorei uma casada”
ou mesmo “Mondadeiras 53 do meu milho/ Ah, mondadeiras do meu milho/ Ah, mondai
o meu milho”, é como se conotações sexuais, orgíacas e de liberdade de papéis sociais,
fossem entremostradas, como numa provocação.
Faço aqui uma analogia um pouco arriscada entre literatura e música. Pensando
com Erich Auerbach, em Mimesis, o épico em Índia, também presente aqui, é o registro
que dá a “impressão de retardamento” por, em uma narrativa, não querer “deixar nada
do que é mencionado na penumbra ou inacabado.”54 Também se épico é o relato de uma
“ação heroica” ou “de intensidade e grandeza fora do comum”, como nos informa o
Houaiss, 55 Índia e Milho verde são também tropicalizadas nessa direção.
Tais características aparecem no arranjo e na forma de apresentação das canções
da seguinte maneira: em ambas as versões, originais que foram apresentadas
espontaneamente, sem arranjo prévio, ou escrito, que têm seus caracteres de norma
prévia (composição) e de apresentação como que plenamente aderentes um ao outro,
são aqui prolongadas, escrutinadas por detalhamentos rítmicos e comentários melódicos
e enfaticamente diferenciadas enquanto gesto original e expressão. Também, e
sobretudo, é como se as versões mexessem na semântica das originais e aqui almejassem
um prolongamento majestoso.
Aqui, o sentido vanguardista do movimento se revela: se há um objetivo
tropicalista, não é o de monumentalizar um “produto” da cultura popular de massa,
elevando-o a um status de grandiosidade, mas sim, pela soma como que artificial dos
procedimentos, abrir leituras, confundir e des-hierarquizar, revelando a natureza
escolhedora dos constructos.

53
Capinadoras.
54
AUERBACH, Erich. Mimesis. Vários tradutores. São Paulo: editora Perspectiva, 2015, 6ª
edição, p.3.
55
HOUAISS, Antônio. Dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

30
Depois do registro algo próximo dessas duas faixas de abertura vemos o álbum
variar de chaves, bem ao modo tropicalista. A terceira faixa, Presente cotidiano, traz
alegria leve e energia constante e definida em face às canções anteriores. Ela é, da forma
ao conteúdo, pura sinestesia, como que usando arranjo e orquestra, a exemplo, de
maneira descompromissada, sem acentuações.
A canção foi composta pelo então novato Luiz Melodia, que gravava seu disco de
estreia, Pérola negra, neste mesmo ano. Ela foi feita sob encomenda para a própria Gal
ainda antes, em 1971, com a intenção de ser incluída em seu disco ao vivo Fa-tal. No
entanto, na ocasião, foi censurada pela ditadura.56 O que teria levado os militares a
censurar uma letra como essa57 só pode se justificar pela perseguição a uma artista
tropicalista.58
A letra se apoia na vagueza literária, apresentando fragmentos que não chegam a
constituir sequer um cotidiano fragmentado, mas sim dispersas imagens poéticas.
Exemplos disso estão explícitos em versos como os primeiros “Tá tudo solto na
plataforma do ar/ Tá tudo aí, tá tudo aí”, ou em “Vou caminhar um pouco mais atrás da
lua”, ou ainda na vagueza da repetição da pergunta final “Quem?” os quais parecem não
ter qualquer exercício de continuidade “realista”.
Se há um sentido que podemos ver e apontar em uma semântica musical, o próprio
humor do canto de Gal e as escolhas do arranjo favorecem a interpretação esboçada.
Ambos não cultivam imagens resolutas, claras, muito menos catárticas. Pelo contrário,
há névoas como que de indefinição, lentidão e tédio nos timbres, interpretações,
modulações musicais e, por fim, estados aqui almejados. Efeito semelhante
encontraremos em Da maior importância: em ambas, há uma espécie de emulação
tropicalista da vagueza existencial e da montagem aberta dos filmes da Nouvelle Vague,

56
A história aparece neste artigo: shorturl.at/ru247
57
“Tá tudo solto na plataforma do ar/ Tá tudo aí, tá tudo aí/ Quem vai querer comprar banana?/
Quem vai querer comprar a lama?/Quem vai querer comprar a grama?// Tá tudo solto por aí/ Tá tudo
assim, tá tudo assim/Quem quer morrer de amor se engana/ Momentos são momentos, drama/O corpo é
natural da cama/Vou caminhar um pouco mais atrás da lua/Vou caminhar um pouco mais atrás da
rua//Mas tudo voa por aí/Na asa do avião/No bico de um pássaro daqui/Mas tudo gira, ai de mim/A bola
e o pião/Menina em meu coração/Tá tudo solto na feira, nobre lugar/Tá tão ruim, tá tão ruim//Quem vai
querer comprar banana?/Quem vai querer comprar banana?/Quem vai querer comprar banana?/Quem vai
querer comprar?/Quem vai querer?/Quem vai?/Quem?/Quem?/Quem?/Quem?”
58
Lembremos que Caetano e Gil ainda se encontravam exilados em 1971.

31
tão poderosamente influente no movimento, como veremos.
Para os censores, talvez esta vagueza tenha parecido esconder algo que poderia
estar menos cifrado em versos como “Quem vai querer comprar a grama?” ou, numa
ode anti trabalho, “O corpo é natural da cama”, ou, ainda, na repetição da pergunta
“Quem vai querer comprar banana?”, que poderia ressoar o insulto velado de que
estamos numa “república bananeira”.
Forçando a barra, no tríptico “Mas tudo voa por aí/ Na asa do avião/No bico de
um pássaro daqui”, o último verso pode soar a denúncia velada da existência de uma
ave de rapina em nosso país. Em “Tá tão ruim, tá tão ruim”, novamente verso
extremamente vago para o contexto de um movimento tido como inteligente, justo por
isso, poderia haver razão para acreditar numa velada vontade de denúncia do estado
atual de coisas.
A canção contribui, é claro, com a valorização de um artista novo, mas
principalmente como um fator alegorizador do álbum, trazendo urbanidade, singeleza
e, sobretudo, a indeterminação que os milicos não quiseram ver a esta compilação de
canções que, aqui, mal começa a se erguer.
A quarta faixa, Volta, do já citado Lupicínio Rodrigues, é a descida tropicalista ao
melancólico da bossa nova. Se procedimentos marcas registradas da Tropicália estavam
já no “conteúdo” das três primeiras abordagens, aqui eles continuam, mas como que
apoiados na soma do repertório. A descida mencionada é agora uma tentativa do
autêntico, não um prolongamento do satírico. Se, antes, o álbum pretendia o
escandaloso, o épico, o orgíaco e a imagem aberta, agora é como se ele quisesse
abandonar essas pulsões, essa identidade recém formulada, e ir ao contrário de si: à
solidão melancólica das boemias, à tristeza e ao luto.
Uma interioridade, melancólica, é o oposto do destacado como uma característica
tropicalista. A atuação do movimento nos cenários dos festivais e na roda de lançamento
de álbuns é marcada como uma contraposição ao lirismo, conduzindo, hipoteticamente,
a MPB ao alegórico, ao pop internacional, ao carnavalesco estético, ao dadá, etc No
entanto, se o movimento quis, sobretudo, superar dicotomias, não poderia haver uma
mera negação, paródica ou evolucionista, de um seu contrário. Até porque este polo
oposto era razão de culto pelos próprios tropicalistas: a bossa nova.
Volta funciona, portanto, como uma espécie de mini-manifesto em torno dessa
questão. O primeiro álbum de Gal e Caetano, sozinhos e juntos, Domingo (1967), é, do
começo ao fim, um tributo ao movimento anterior. Mas, a garota que lá parecia uma

32
colegial, muito moderna porque modernamente recatada, absolutamente respeitosa ao
cânone, aqui já é a dona da festa em qualquer piano-bar, em qualquer cidade, aspirante
ao cosmopolitismo, no Brasil.
Falando nele, e neste formato, brilha imensamente na versão o único instrumento
a acompanhar Gal, o piano de Tenório Júnior. Se em Domingo os arranjos são bossa
nova comportada, ou seja, já escritos para os vários instrumentos, algo
burocraticamente, aqui, a liberdade permitida a Tenório é bossa nova radical e
atualizada. Ou seja, a mesma própria do jazz mais moderno à época. O instrumentista
pode ser livre em floreios, dissonâncias, re-harmonizações e jogos rítmicos, a seu bel-
prazer. E faz disso uma construção engenhosa e graciosa de imagens musicais.
Tenório Jr morreu assassinado 3 anos depois, na cidade de Buenos Aires, enquanto
excursionava com Vinícius de Moraes e Toquinho. O músico teria sido confundido com
um ativista político e foi preso e torturado até a morte por militares argentinos.59

IV

Lado B

A canção Relance, composta por Caetano Veloso e Pedro Novis, a podemos


definir como uma meta-canção. Ela apresenta a Tropicália em novo flerte com o
concretismo. Tal como acontecido em Bat macumba, do disco manifesto Tropicália ou
Panis et circencis, e Júlia/Moreno, do álbum solo de Caetano, Araçá azul, ainda que de
maneira mais simples, a palavra é submetida a um jogo de combinações por meio de
deslocamentos, acréscimos mínimos e repetições que acabam apontando para uma sua
visualidade.
Aqui a partícula de repetição re é desnaturalizada, saindo de seu significado
habitual e engendrando novos sentidos para as múltiplas palavras às quais se antepõe.
Assim em, a exemplo, “Pare, repare” ou “Salve, ressalve” ou “Salte, ressalte” ou
“Quebre, requebre” são sentidos insólitos os que brotam de uma espera de dupla
repetição: uma, semântica, que seria gerada pela partícula re e outra material, que viria
da nova aparição da mesma palavra. Aqui esta é metamorfoseada.

59
Mais aqui: http://memoriasdaditadura.org.br/biografias-da-resistencia/francisco-tenorio-jr/

33
A exceção é o verso final onde, da palavra “morra”, surge “renasça”, variação
repetida por quase 2 minutos. Com isso parece se mostrar um para além do finito, um
transcendente, um para além da mera repetição, formal e substancial. Podemos nos
sentir levados mesmo a uma repetição deleuziana, como na revelação do mote latente
em toda canção. Pode ser este seu relance: um novo relance ou uma mirada de relance
contra a morte.
Esta canção é também uma espécie de anti-canção, da mesma forma que
poderíamos chamar os jogos concretistas de anti-jogos, dados seu rigor, repetição e
meta-discursividade, anuladores das formas tradicionais do lúdico. A forma comum da
parte literária da canção, na qual se espera como que um enfileiramento de narrativas
mínimas e reiterações sublinhadas de temas pertinentes, é, aqui, ou negada ou levada ao
extremo.
Dada a ausência de mudanças e a repetição do mesmo procedimento, à exceção
do fim, o que acontece é algo contra-intuitivo para a tradição da canção: é o anti-clímax,
repetido, depois de uma expectativa criada. De fato, o começo de Relance tende a
fomentar essa espera: seu andamento é rápido, cada instrumento entra por vez e faz algo
diferente dos demais. O que acontece a seguir, porém, é repetição do mesmo.
Acredito ser Da maior importância uma das canções centrais de Índia.60
Composta por Caetano Veloso e regravada pelo próprio dois anos depois em Qualquer
coisa, a canção vai na contramão da forma tradicional da canção. Onde as canções
cultivam tensões em torno de temas existenciais e amorosos para culminar em catarses
simbólicas, repetindo, no mais das vezes, esquemas de representação dramática
temperados com poesia lírica, Da maior importância estanca antes do drama e se
derrama em hiatos, insignificâncias, fragmentos da consciência e pequenas-crueldades
do cotidiano, assim como em uma melodia arrastada, mesmerizante, sem grandes
definição e saltos.
Como dito anteriormente, há algo da montagem dos filmes da Nouvelle Vague,
transposto para a forma das canções, sobretudo na parte literária, aqui. O que ouvimos
são fragmentos que não condensam uma fábula de começo, meio e fim. Pelo contrário,
o apresentado parece ser cacos de reminiscências de um sujeito ou sujeitos urbanos em
uma roda de conversa ou flerte cheios de hesitações objetivas organizados pela
montagem.

60
Talvez junto com Índia, Milho verde e Volta.

34
Neste cinema, o poético e o anti-poético do cotidiano aparecem em narrativa não-
linear. Ao contrário do que se pode esperar, no entanto, esta invenção da relação entre
continuidade e descontinuidade não visa gerar conciliação ou uma cura do spleen. O
resultado é aberto e oco. Se há uma conquista é a de que o cinema inventa, não
representa, a narrativa decide livremente
Aqui, além da indefinição da letra, a melodia vai para onde quer, variando e
repetindo suas linhas de maneira indolente, como se tivesse sutilmente anarquizado os
pressupostos musicais de desenhos bem definidos e regrados.
Em versos como “Teve um negócio/ De você perguntar o meu signo/ Quando não
havia signo nenhum/ Escorpião, sagitário, não sei que lá/ Ficou um papo de otário”, na
segunda ocorrência da palavra signo, esta é apresentada com a vagueza de um triplo
sentido: o signo do horóscopo, signo enquanto palavra e signo enquanto enigma,
metalinguagem.
Também ao dizer que na conversa “não havia signo nenhum”, quando o comum
em narrativas representativas de quaisquer gêneros é procurar a força de ocorrências, e
afirmar, cinicamente, diante do papo sobre signos do horóscopo, “ficou um papo de
otário”, este sujeito lírico desarma a expectativa comum acerca das canções.
E faz isso em relação à música radiofônica, mas também à música inteligente
brasileira, ao desprover também de lirismo estes versos, dando-lhes o humor do
entediante e do vago: “É tão difícil, tão simples, difícil, tão fácil”. A canção é
verborreica como a de um Bob Dylan, acumulando imagens sem repetição e não se
apoiando em estrofes e refrão.
Podemos definir como outro dos motes do tropicalismo a não exclusão de temas,
sejam musicais, sejam literários. Aqui revisitamos a pequena digressão sobre poesia e
lixo gerando metamorfoses em Baudelaire. A canção Passarinho, composta por Tuzé
de Abreu, é um contra-exemplo do mesmo, pois, a princípio, traz apenas imagens
literárias das mais comuns à canção lírica brasileira, as da paixão bucólica. Ela parece,
por isso, negar o que há de moderno em temas da música popular.
Arranjo e estética geral, no entanto, trazem dinâmicas modernas em torno da
composição gerando um choque. O resultado musical se alimenta tanto do mais
avançado da MPB (em sentido musical técnico) quanto de uma atmosfera em certo
sentido psicodélica.
O principal é que, aqui, Gal e músicos oferecem uma aula para os artistas da
canção. Por mais que a literatura da canção seja absolutamente trivial, a concisão e a

35
expertise da diversidade de dinâmicas, a abertura de espaços de respiro, a total ausência
de pressa, a circunspecção imagética, tudo isso parecendo conquistado sem esforço
expressivo, compõem a graça e a autoridade da canção. O seleto personnel apontado no
começo do texto, aqui, como em nenhuma outra faixa do disco, toca sozinho e sempre
junto.
A Tropicália se situa numa posição enigmática em relação às duas perspectivas
míticas em relação à finalidade de uma obra de arte: a de que o artista imputa sentidos
mais ou menos legíveis ao seu trabalho e a de que, ao contrário, ele só faz, sem
“intenções”, muito menos qualquer chance de domínio da recepção.
Marcel Duchamp traz uma ironia brilhante para a questão. Ele afirma que o artista
deve esperar construir o sentido de sua manifestação segundo um “‘coeficiente artístico
pessoal’” que não pode pretender controlar o significado da expressão, mas, pelo
contrário, deve-se deixar levar por “‘uma relação aritmética entre o inexpresso mas
pretendido e o que foi expresso inintencionalmente.’”61
Sobretudo, uma leitura “senso comum” do tropicalismo irá interpretar o
movimento segundo o princípio da conciliação. Segundo ele, quando falamos sobre
obras da cultura, discursos e pessoas importantes, os quais aprovamos, apresentamos
realizações de ações conciliativas realizadas pelos mesmos.
Assim, estes agentes criariam, pontos de sutura em problemas do mundo cuja
principal causa de enfermidades seria o hiato. A obra humana sobre o planeta, portanto,
consistiria em chamar a atenção para o reconhecimento dessas proezas. De onde
conclui-se que o erro desta espécie é não prestar este tributo aos verdadeiros construtores
destas pontes.
A crítica dos pensamentos e das artes mais radicais do século XX (de Nietzsche à
Derrida e além, poderíamos arriscar) vai afirmar justo a positividade radical de ideias
como a de contingência, acidente, distração, negação, esquecimento, morte, hiato,
corpo, etc Levada para esta ontologia da conciliação, a crítica aponta para o fechamento
e para a ânsia insaciável de categorização meramente racionalista intrínseco a ela.
Relacionando-se a música tão enormemente com a emoção, a sensibilidade, o
corporal, o canto da mãe e a sensação de prazer, ou seja, com tudo aquilo que precisa

61
PERLOFF, Marjorie. “Duchamp sem Dadá / Dadá sem Duchamp: a tradição vanguardista e o talento
individual.” Tradução: Dilvo I. Ristoff. IN: ANDRADE, Ana Luiza; ANTELO, Raúl; BARROS, Maria Lúcia
Camargo. (Orgs.) Leituras do ciclo. Florianópolis/Chapecó: ABRALIC/Grifos, 1999, p.41.

36
ou propõe conciliação para os indivíduos, pode-se ter ideia do tamanho da confusão que
um movimento inteligente pode criar. Aqui, é como se o tropicalismo tratasse a música
enquanto matéria plástica. E como máquina capaz de pensar a si mesma.
Ainda lembrando que o tema que fomenta estas reflexões é a canção Passarinho,
reafirmo a ideia de que é muito interessante pensar a Tropicália a partir de uma
proposição de hiatos, um movimento que apresenta canções cujos elementos, ao
contrário da noção mais intuitiva, não se fecham, permanecendo dissonantes, suspensos,
abertos.
Um bom exemplo é a canção Ave maria, do primeiro disco solo de Caetano
Veloso. Ali, um baião se soma a uma roupagem psicodélica e a letra da oração do título
intacta em latim. No mínimo, um nonsense se nos é defrontado e, no máximo, este
nonsense é na verdade parte da origem do sentido.
Passarinho, dentro desta moldura transitória, pode ser considerada uma versão
low profile da mesma ação tropicalista. Sua letra bucólica se defronta com o moderno
dos instrumentistas, sua psicodelia confronta a calma e o prosaico do bucólico, a
capacidade destes músicos precisa se ater a um formato pop e, ao mesmo tempo, a uma
atmosfera contemplativa, movendo-se com habilidade.
Dois dos nomes mais famosos considerados pós-tropicalistas são os compositores
da penúltima faixa de Índia, Pontos de luz: o poeta Waly Salomão e o músico Jards
Macalé. Eles revisitam nela mais um dos motes que podemos ver muito presentes no
tropicalismo, o de criar, diante do momento tenebroso da ditadura, um eu-lírico
distraidamente feliz.
Inaugurado em Alegria, alegria, onde abunda em versos como “Caminhando
contra o vento, sem lenço e sem documento”, “O sol nas bancas de revista/ Me enche
de alegria e preguiça/ Quem lê tanta notícia?”, “Eu tomo uma coca cola/ Ela pensa em
casamento/ Uma canção me consola” ou “Eu quero seguir vivendo, amor/ Eu vou/Por
que não?”, o procedimento é o cerne da acusação de alienação política do movimento.
Sem dúvida a acusação de cinismo pode ser feita ao tropicalismo. Mas resta saber
se não há atitude cínica, ou alguma coisa nela, que possa ser produtiva e crítica – de
sentidos, deslocamentos, reconstruções, novas formas de protesto. Por outro lado, ela
pode ser um perigosíssimo, e mesmo massacrante, disfarce de camaleão entre duas
posições políticas decisivas, mesmo que almeje questionar frontalmente o teor sádico
de um mecanismo atual e local de binarismo.

37
Em Pontos de luz, a letra da canção se assemelha a uma mimese do simplório das
propagandas de mercadorias: “Me sinto contente/Me sinto muito contente/ Me sinto
completamente contente.” Uma pequena diferença se insere com uma ressalva “Ouso
dizer/ Completamente contente” que depois se torna “Me arrisco a falar/ Me sinto feliz”.
Podemos ensaiar uma interpretação interpretando a intervenção dadaísta no
começo do século com Benjamin. O autor é levado a encarar o declínio da imersão
contemplativa como modo de apreciação tradicional da arte. O lirismo na arte, tão
característico da parte da MPB mais cara à reação tropicalista, seria a contrapartida deste
modo pelo lado dos artistas (contemplação – lirismo).
“À imersão”, prossegue Benjamin, “que se transformou, na fase da
degenerescência da burguesia, numa escola de comportamento antissocial, opõe-se a
distração, como uma variedade do comportamento social.”62 Como uma das respostas
da arte a essa mudança, “o comportamento social provocado pelo dadaísmo foi o
escândalo.” 63
A origem desta reação, no entanto, está a princípio na mimese da
“distração intensa” provocada pelos novos meios técnicos de comunicação e arte. É um
arco dialético, portanto, o que se inscreve entre distração e escândalo.
Em Pontos de luz, há um componente de intensidade colocado em cena desde a
parte musical. Ele está no andamento acelerado, no groove do baixo posto em destaque
e nos ataques de metais atuando como resposta à síncope. O teclado de Wagner Tiso,
um dos arranjadores mais importantes da história da MPB (haja vista seu protagonismo
no Clube da Esquina), entra provocando um efeito suspensivo que se estende por toda a
faixa. O arranjo aqui, no entanto, não é dele, mas do músico Arthur Verocai, conhecido
contribuidor em vários álbuns da época, mas que depois teria seu próprio trabalho e
nome esquecidos por décadas, até ser resgatado por músicos estrangeiros na década de
90.64
O comportamento dos tropicalistas já havia tido fortes inclinações a uma
reencenação das performances dadaístas, mas claro que não é o caso desta música. Índia,
no entanto, sendo lançado como álbum musical disfarçado de produto de
entretenimento, ou o contrário, provocou escândalo pela soma de suas partes. Atuando

62
BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica.” IN: Magia e técnica,
arte e política. Obras escolhidas. Tomo I. p. 206.
63
Ibid., p. 206.
64
Conforme o programa Som do vinil com o artista: shorturl.at/oFOUY.

38
enquanto peça desta esfinge sem segredo que é o álbum, portanto, Pontos de luz cumpre
um papel próprio que é o de botar lenha na fogueira, seduzir, escrachar, atiçar e enganar.

Em versão discreta, praticamente uma citação, a faixa que fecha o disco,


Desafinado, é a menção mais explícita ao movimento pai-mãe do tropicalismo, a bossa
nova. Composta por Tom Jobim e Newton Mendonça, a versão traz o violão de Roberto
Menescal, um dos nomes bossanovistas mais famosos. O único detalhe a chamar
atenção no arranjo, em relação a uma gravação bossanovista, são os fraseados de
sanfona e guitarra, dobrados, tecendo floreios.
Caetano Veloso assim define seu encontro com o estilo, que se deu por meio desta
canção:

Eu tinha dezessete anos quando ouvi pela primeira vez João Gilberto. Ainda morava
em Santo Amaro, e foi um colega do ginásio quem me mostrou a novidade que lhe
parecera estranha e que, por isso mesmo, ele julgara que me interessaria: “Caetano,
você que gosta de coisas loucas, você precisa ouvir o disco desse sujeito que canta
totalmente desafinado, a orquestra vai pra um lado e ele vai pro outro”. Ele exagerava
a estranheza que a audição de João lhe causava, possivelmente encorajado pelo título
da canção “Desafinado” — uma pista falsa para primeiros ouvintes de uma
composição que, com seus intervalos melódicos inusitados, exigia intérpretes
afinadíssimos e terminava, na delicada ironia de suas palavras, pedindo tolerância para
aqueles que não o eram. A bossa nova nos arrebatou. O que eu acompanhei como uma
sucessão de delícias para minha inteligência foi o desenvolvimento de um processo
radical de mudança de estágio cultural que nos levou a rever o nosso gosto, o nosso
acervo e — o que é mais importante — as nossas possibilidades.65

Em Problemas de gênero, Judith Butler traz uma noção contra intuitiva para a
parte burocrática das lutas feministas. Estas, quando devem fazer exigências concretas
junto a órgãos políticos, mesmo com críticas, precisam dialogar com o sistema de
representação (e a palavra aparece aqui novamente) oferecido pelas leis. A grande
questão se torna, no entanto, em como continuar articulando uma crítica junto a esse

65
VELOSO, Caetano. op. cit., p.68.

39
sistema, pois o x do problema está ainda menos no não cumprimento de seus programas
reguladores do que na forma e na amplidão daquilo que ele elege para representar.
O tiro no pé dos movimentos emancipatórios é, aqui com Butler e o feminismo, o
de pressupor o dever de articular um “sujeito estável”, a princípio para atender às
exigências formais de diálogo institucional, mas, em um segundo momento, com sua
metafísica subjacente sendo levada a contrabando para dentro do pensamento e da
prática separada desta ação. Assim, pergunta Butler: “Qual o sentido de estender a
representação a sujeitos cuja constituição se dá mediante a exclusão daqueles que não
se conformam às exigências normativas não explicitadas do sujeito?”66
A contra intuitividade mencionada atinge aqui seu ápice: mulher não pode ser um
conceito fundador no feminismo. Anne McClintock, em Couro imperial, é também
taxativa: “a categoria ‘mulher’ foi desacreditada como tapeação universal pelo
feminismo, incapaz de distinguir entre as várias histórias e desequilíbrios de poder entre
as mulheres.”67 Mais uma vez voltamos a um conceito chamado no começo deste ensaio
que é o da subversão da identidade. É aqui, para o feminismo, que ele se insere.
Esta ação subversiva, que tanto mais atinge a intimidade das mulheres quanto
serve à crítica à universalidade da constituição do sujeito, muito pode ser pensada a
partir daquela frase de Sarduy: “El travestí no imita a la mujer.”68 Cabe-nos pensar, é
claro, porque o autor não disse também o contrário: “A lésbica não imita o homem.”
Mas o desejo desses pensamentos parece acompanhar o de Deleuze, ao propor a reversão
de todos os modelos, por meio da agressão da assunção do simulacro como ruptura com
a identidade.
A crítica atinge também a práxis. Seguindo Butler: “Fazer apelos à categoria das
mulheres, em nome de propósitos meramente ‘estratégicos’, não resolve nada, pois as
estratégias sempre têm significados que extrapolam os propósitos a que se destinam.” 69
Chocam-se, sobremaneira, aqui, tanto o caráter masculino da linguagem, salientado pela
psicanálise, quanto sua metafísica do universal, um desdobramento da representação.

66
BUTLER, Judith. op. cit., p.25.
67
MCCLINTOCK, Anne. Couro imperial. Tradução: Plínio Dentzien. Campinas: editora
UNICAMP, 2010, 1ª reimpressão, p.31.
68
SARDUY, Severo. op. cit., p.13.
69
BUTLER, Judith. op. cit., p. 4.

40
Isso quer dizer também que, no que usamos palavras para a expressão no
cotidiano, já estamos imersos nos jogos entre universal x particular, história ancestral
da constituição da estrutura da linguagem x momento relâmpago político da ação, uso
drástico, mas ciente de antecipações da teoria dentro da prática x filosofia que recorre à
imanência para ouvir e incorporar seu próprio reverso. Uma saída para tantas absolutas
variáveis? A alegoria, talvez.
Usando aqui um aforisma de um dos pensadores que mais e melhor se dedicou a
este conceito no século XX, e que também pensa aqui o tema do feminino e das leis que
concretamente nos regem (as do mercado), Walter Benjamin assim reflete sobre a moda
(que também é performance) nas cidades do fim do século XIX:

Aqui a moda inaugurou o entreposto dialético entre a mulher e a mercadoria – entre o


desejo e o cadáver. Seu espigado e atrevido caixeiro, a morte, mede o século em braças
e, por economia, ele mesmo faz o papel de manequim e gerencia pessoalmente a
liquidação que, em francês, se chama révolution. Pois a moda nunca foi outra coisa
senão a paródia do cadáver colorido, provocação da morte pela mulher, amargo
diálogo sussurrado com a putrefação entre gargalhadas estridentes e falsas. Isso é a
moda. Por isso ela muda tão rapidamente; faz cócegas na morte e já é outra, uma nova,
quando a morte a procura com os olhos para bater nela. Durante um século, a moda
nada ficou devendo à morte, agora, finalmente, ela está prestes a abandonar a arena.
A morte, porém, doa a armadura das prostitutas como troféu á margem de um novo
Letes que rola pelas passagens como um rio de asfalto.70

O aforisma é extremamente dificultoso e sedutor às interpretações que visem abrir


seu caráter barroco. A morte é apresentada, após a introdução, como o caixeiro servindo
à moda, onde ocupa, surpreendentemente, um papel subalterno, para logo depois,
procurar “bater nela”, numa inversão, mas, sobretudo, em uma narrativa
sadomasoquista.
Em “ele mesmo”, a morte como operário, “faz o papel de manequim e gerencia
pessoalmente a liquidação”, a impossibilidade comercial funciona como a sátira
ontológica a toda atuação no mundo contemporâneo, mercantil: o corpo está dividido,

70
BENJAMIN, Walter. Passagens. Tradução: Irene Aron. Belo Horizonte: editora UFMG, São
Paulo: Imprensa oficial, 2009, ps. 101-2.

41
por um lado almeja humildemente ser epifania resplandecente e, por outro, arca com o
imperativo de ser ação residual, múltipla e profanadora.
Mas liquidação em francês se chama révolution, nos lembra Benjamin. Com isso
temos uma inesperadíssima metamorfose imanente. Não é que simplesmente todo
manequim queira uma revolução artificial, ou que a revolução tenha assumido outra
forma e esteja condenada ao tédio. É que a revolução, ela mesma, só pode ser em sua
máxima potencialidade, uma ação infinita, múltipla, residual, inalcançável, chã.
Do papel sádico, a morte triunfará, como seria de se esperar, mas não de toda
leitura histórica, e sim de toda imagem parcial. Arrematando seu aforisma barroco com
a imagem mais barroca, e contudente, Benjamin afirma: “A morte, porém, doa a
armadura das prostitutas como troféu á margem de um novo Letes que rola pelas
passagens como um rio de asfalto.”
Aquilo que guiava a morte, e que era moda (roupa urbana, leve e cambiante,
servindo à mulher consumidora), agora se tornou a couraça do ser que efetivamente
unifica desejo e mercadoria. Esta couraça é um troféu à margem, e o tempo que se
desenrola à frente é um rio, o rio do mais sagrado esquecimento. Este rio no entanto,
tem a forma material da pedra mais urbana, e da forma mais breve de seu cruzar
caminhos.
A mulher e a mercadoria, em vez, são como os personagens desse teatro. Mas é a
moda, o universal, que age como a paródia de todos os entes: o cadáver colorido. A
imagem, em si, aqui é aprisionada no fetiche, não sendo assumida como o único
“realismo” possível do desejo e se torna, por consequência, o fim do ente, agora
enfeitado, como se assim, e nessa condição, melhor do que nunca servisse para o
consumo e a vida.
As relações entre mercado, performance e um frontal, ainda que nascente,
questionamento do patriarcado, assumindo nascentes feminilidades, são amplamente
exploradas pelo tropicalismo. Como no aforisma de Benjamin, interessa a ele o finito, o
urbano, o mito do feminino para a civilização e eu diria que, sobretudo, a metamorfose
das figuras tradicionalmente tomadas como estanques – a alegoria.
Em uma análise concreta, a errância urbana e brava das personagens heroínas
tropicalistas, Lindonéias, Julianas, Irenes, Clarices, Luzias Luluza, entre outras,
confrontam-se com o questionamento humorístico da figura do homem, nunca um
conquistador galanteador melancólico, quase nunca sequer nomeado ou mitificado, mas
ou um feliz distraído, como em Alegria, alegria, ou um herdeiro da melancolia

42
fracassada portuguesa, como em Os argonautas, ou um escuso herói que mata a mãe
em nome da amada e depois fracassa, em Coração materno, ou um astronauta caipira
em 2001.
Talvez isso tudo acompanhe o cenário para o provável ápice da alegoria do
feminino no tropicalismo que se dá em Índia. Para a arte ao longo de todo o século XX,
e até hoje, a cruz das mulheres é a de, diante do fato de os artistas poderem apenas
produzir imagens, elas mesmas serem consideradas toscas imagens de imagens.
No tropicalismo, o papel das mulheres que fizeram parte de sua face mais famosa
resulta, mais de 50 anos depois, rico como uma mina de ouro não explorada. Gal, Rita
Lee e Nara Leão são as três tropicalistas mulheres presentes na parte musical. Lygia
Clark e Lygia Pape são nomes de peso das artes visuais brasileiras que também fizeram
trabalhos tropicalistas. A arquiteta Lina Bo Bardi é considerada uma mãe do movimento
e igualmente realizou trabalhos junto a ele.71
Uma “validação” da análise desse álbum musical específico no presente pode se
dar com Benjamin, mais uma vez, e sua teoria da história. Índia chega aqui e agora não
como uma relíquia, áspera, porém valiosa, e de outro momento, mas um ente cuja
própria pré-história continua sendo criada e interpretada. Benjamin programa “uma
ciência histórica cujo objeto não é constituído por um novelo de pura facticidade, mas
por um conjunto determinado de fios que representam a penetração de um passado na
textura do presente.”72
A reflexão pode nos servir para pensar uma visão em que o feminismo não
constitui um progresso em termos de uma ruptura com o passado, mas uma reelaboração
a ser constante em sua movimentação histórica. Agora não estamos, nem estaremos,
numa sociedade menos machista (a própria linguagem é machista), mas podemos fazer
mais e mais sólidos movimentos de reinterpretação e cercamento fenomenológico deste
problema.
Benjamin é, dialeticamente, ainda mais radical neste trecho: “Porque é
irrecuperável toda imagem do passado que ameaça desaparecer com todo presente que
não se reconheceu como presente intencionado nela.”73 A imagem irrecuperável para o
feminismo seria a da genealogia de sua própria constituição. Ao machismo não se deve

71
Ver mais em: https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.093/163
72
BENJAMIN, Walter. “Eduard Fuchs, colecionador e historiador.” IN: O anjo da história.
Tradução: João Barrento. Belo Horizonte: editora Autêntica, 2016, p.139.
73
Ibid., 128.

43
dar um status ontologicamente negativo, sob pena de não assumirmos sua crítica como
tarefa concreta.
O desejo do presente que olha para esta imagem passada é o de reler e re-
dramatizar seus roteiros, seus hiatos, seus mitos e suas violências. O salientado, por esta
perspectiva da história, é claro: uma orientação progressista que supõe romper, mudar
ou aperfeiçoar o passado desconhece as presentes necessidade e abertura de sua
elaboração.
Pelo fato de estarmos vivendo uma ditadura (mal) disfarçada no governo do Brasil
(agravada pela catástrofe da epidemia mundial), mas, ao mesmo tempo, à gigantesca
difusão dos pensamentos e artes feministas, Índia nos chega, hoje, como se ele/ela
estivesse se fazendo (até) hoje. Uma ressonância possível e fácil mostra a força da
dramatização desempenhada por Gal neste trabalho.
Gal é como se tivesse encontrado aqui a medida entre ser verdade tropical e musa
surrealista, sendo ela mesma “o” poeta que, interpretando, cria. Tropicalista que é, seu
gesto vanguardístico violento é o de querer ser a um só tempo mulher, imagem (esta que
não é propriamente imagem e que o machismo toma como se fosse a mulher mesma), e
também genitália, zeitgeist, ancestralidade, urbe, lixo, mente e voz.
As “relíquias do Brasil”, cantadas na canção que, ao lado de Tropicália, é
manifesto do movimento, Geléia geral, neste álbum se tornam sem tempo, espaço,
origem, forma e discurso definidos – mas ao mesmo tempo são exuberantes. Do lixo se
fez uma cidade, como se favelas tivessem se tornado castelos sem deixarem de ser
favelas, mas no fundo sendo outra coisa.
Esta caotização ordenada de imagens funciona como uma poderosa arma contra a
representação. Sarduy comenta a anamorfose como uma espécie de procedimento disto
e em uma análise que muito lembra o que acabei de trazer aqui sobre Índia:

El lector de anamorfosis, es decir, el que bajo la aparente amalgama de colores,


sombras y trazos sin concierto, descubre, gracias a su proprio desplazamiento, una
figura, o el que bajo la imagen explicita, enunciada, descubre la outra, ‘real’, no dista,
en la oscilación que le impone su trabajo, de la práctica analítica: ‘su acción
terapéutica, al contrario, debe ser definida esencialmente como un doble movimiento
gracias al cual la imagen, al comienzo difusa y rota, es regresivamente asimilada a lo
real, para ser progresivamente desasimilada de lo real, es decir, restaurada en su
realidad propia’. En el operar preciso de una lectura barroca de la anamorfosis, un
primer movimiento, paralelo al del analista, asimila en efecto a lo real la imagen

44
‘difusa y rota’; pero un segundo gesto, el propriamente barroco, de alejamiento y
especificación del objeto, crítica de lo figurado, lo desasimila de lo real: esa reducción
a su próprio mecanismo técnico, a la teatralidad de la simulación, es la verdad barroca
de la anamorfosis.74

A psicanalista Maria Rita Kehl em Deslocamentos do feminino, por sua vez, irá
usar a palavra delírio, que é a miríade de imagens, para falar de Emma Bovary. A
personagem pode ser definida como o marco do nascimento da voz pública da mulher
burguesa nas cidades. Kehl usa a palavra delírio “propositadamente, para designar essa
espécie de certeza do eu sobre si mesmo que parece não ter nenhuma correspondência
na experiência sensível dos fatos.”75
Esta palavra, referente à intimidade dos e das sujeitos, choca-se enormemente com
o que Kehl chama de “potencial destrutivo da linguagem”.76 Da possibilidade de
revertermos as imagens de seu aprisionamento, doentio, ao real para sua condição de
imagens mesmas, como quer Sarduy (como se delirássemos e destruíssemos para fora,
em imagens), é que vejo a chance, como quer Deleuze, não de querermos a potência por
si, mas, de elevarmos um desejo à enésima potência.

74
SARDUY, Severo. op. cit., p.25.
75
KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do feminino. São Paulo: Boitempo, 2016, p.119.
76
Ibid., 112.

45
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