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História oral, memória e história do tempo presente: debate conceitual e de

sentidos

GIANNE CHAGASTELLES∗
GISLENE LACERDA∗

A história oral no Brasil iniciou-se em 1970, mas teve maior expressão nos anos 1990.
Em 1994 a criação da Associação Brasileira de História Oral estimulou a história oral como
metodologia através da sua propagação e discussão. Pode-se pensar na história oral a partir de
três formas: técnica, disciplina; metodologia. A abordagem da história oral como técnica gira
em torno da realização dos procedimentos técnicos para a realização das entrevistas,
transcrições e conservação, bem como da organização de acervos. A história oral como
disciplina tem como objetivo principal inaugurar técnicas específicas, procedimentos
metodológicos singulares e conjunto próprio de conceitos, dando então um status de
disciplina, ou seja, como um novo campo do conhecimento. Entretanto, esta abordagem acaba
enfrentando um problema que é dissociar a história oral da teoria, concebendo qualquer tipo
de história como conjunto de técnicas A abordagem da história oral como técnica ou como
disciplina tem dois caminhos possíveis, porém ambos problemáticos. Na primeira perspectiva,
há o esquecimento das questões exclusivas da teoria, deixando de problematizá-las no
trabalho ou buscando só no âmbito da história oral, resultando em um trabalho sem crítica.
Na segunda, as questões teóricas que deveriam ser discutidas com profundidade são vistas de
forma superficial e ligeira, em notas de roda pé, não contribuindo com discussões para a
história, derivando no empobrecimento da área de estudo. A abordagem da história oral como
metodologia problematiza a história oral como uma área de estudo com objeto próprio e
capacidade de gerar soluções, estabelecendo e ordenando procedimentos de trabalho como
uma ponte entre teoria e prática. As soluções e explicações devem ser buscadas na teoria da
história que se dedica a estudar os conceitos de história e memória assim como as complexas
relações entre ambos.


Doutoranda do Programa de História Social do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Bolsista do CNPq.

Doutoranda do Programa de História Social do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Bolsista CAPES.
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Esta última abordagem vai ao encontro de nossa perspectiva sobre história oral,
principalmente no que se refere à ideia da subjetividade, emoção e cotidiano, pois este estudo
tem como ponto central a problematização da memória que passa a nortear as discussões
históricas, acentuando a discussão da história como narrativa: ficção e verdade. Assim, a
história oral legitima trabalhar com a história do tempo presente. De tal modo, vale à pena
problematizar as várias concepções de Memória.
A memória é uma forma de conhecimento como experiência, caminho possível para
que sujeitos percorram a temporalidade. Para Henri Bergson (1999) a memória tem função
unificadora entre o eu profundo e o eu da ação, ou seja, ela se subdivide em memória hábito e
memória pura. A memória é viva, presente, total, virtual e é atualizada na vida ativa em
função da ação. A ação do inconsciente é apresentada por Bergson através da imagem do
cone: a base do cone – o inconsciente - cresceria sempre pela aquisição de novas experiências;
já o vértice representaria o momento presente, de inserção do psiquismo na vida. No interior
do cone, os elementos psíquicos apresentam duplo movimento: do vértice para a base
(experiências presentes que passam ao inconsciente) e da base para o vértice (o inconsciente
que emerge, atuando sobre o plano da consciência). O crescimento incessante do cone
significa que cada qual carrega consigo todo o seu passado, que é conservado integralmente.
Como mostra Bergson, o verdadeiro problema relativo à memória não é o da conservação de
lembranças, mas o do esquecimento daquilo que se conserva por inteiro. Explica então:
justamente porque o cérebro é um órgão vinculado à atenção à vida, ele seleciona as
lembranças, recalcando aquelas que são desnecessárias à ação presente. Órgão de integração
do indivíduo à vida, o cérebro é, assim, também, órgão de esquecimento. Quando a atenção à
vida se afrouxa, o inconsciente pode aflorar, propiciando a atualização de memórias mais
próximas do sonho, a memória pura.
Neste sentido, Bergson distingue dois tipos de memórias: a memória-hábito (ou
memória-contração) e a memória-pura (ou memória-lembrança). Marilena Chauí (1994)
assinala que, para Bergson, a memória-hábito é um automatismo psíquico que adquirimos
pela repetição contínua de algum gesto. Essa memória, segundo Chauí, é uma simples fixação
mental obtida pelo fato de repetirmos a mesma coisa. Todos esses atos e essas palavras são
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realizados por nós quase sem pensarmos neles. Assim, em vez de automatismo psíquico,
podemos afirmar que se torna um automatismo corporal. A memória pura é aquela que não
precisa da repetição para conservar uma lembrança, pois ela guarda alguma coisa, fato ou
palavra únicos, mantidos por nós por seu significado especial afetivo, valorativo ou cognitivo.
Chauí mostra que, para Bergson, a memória pura é um fluxo temporal interior (CHAUÍ,
1994: 129).
Maurice Halbwachs (1990) diz que a memória se constrói a partir das vivências de
grupos sociais concretos. Nesse sentido a memória individual constitui-se como ponto de
vista da memória coletiva. Afetiva e encantada a memória alimenta-se de lembranças vagas,
flutuantes, particulares e simbólicas. É sensível a todas as transferências, cenas, censura e
projeções. Instala na lembrança, o sagrado. É múltipla, dilacerada, coletiva, plural,
individualizada. É sempre expressão de identidades, não é unívoca, mas, plural e inter-
relacional. Na memória é um infinito, onde se entrecruzam tempos múltiplos. Dessa
infinidade, só registramos um fragmento. No processar da memória estão presentes as
dimensões do tempo individual e do tempo coletivo. Os acontecimentos e processos, os sinais
exteriores são referências para o afloramento de lembranças e reminiscências individuais. O
tempo da memória ultrapassa o tempo de vida individual: histórias de família, tradições,
histórias de amigos, enfim, histórias de experiências coletivas que conformam as identidades.
Entretanto, tão importante quanto lembrar é esquecer. É fundamental na problemática da
memória não negar o esquecimento, pois a memória é seletiva e a principal operação da
memória é compreender o esquecimento.
Existe uma relação de complementaridade entre memória e história. Para Paul Ricoeur
(2008), a memória é em primeiro lugar, matriz da história enquanto escritura e que, em
segundo lugar, está na base da reapropriação do passado histórico enquanto memória instruída
pela historia transmitida e lida. A história se configura na experiência que traz à tona uma
multiplicidade de percursos possíveis revelados pelas memórias. Esta memória pluralizada é a
maior ferramenta de elo social, da identidade coletiva e individual. Ela pode ser envolvida
numa perspectiva interpretativa aberta para o futuro, fonte de reapropriação coletiva e não
simples ilustração do passado recortada a partir do presente. Assim, a história pode ser vista
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como alimento da memória e vice versa. A história enriquece as representações possíveis da


memória coletiva, fornecendo símbolos, conceitos, instrumentos rigorosos para que a
sociedade pense a si mesma em sua relação com o passado. A história fertiliza a memória,
reativando intelectualmente as lembranças. Entretanto, a história pode ser vista como
destruidora da memória. A tradição histórica é um exercício regulador da memória. A
história: transforma a paisagem da memória espontânea, destruindo-a em história. O peso
disciplinar da história volta-se contra a memória social espontânea, enquadrando-a. A
fundação da história científica ocorreu como forma de contraposição ao espontaneísmo e à
subjetividade da memória. A história é espaço de poder que também produz memórias, mas,
dessa feita, dirigi-las.
Para Beatriz Sarlo, o retorno do passado não é um momento livre da lembrança, mas
uma captura feita a partir do presente. O passado para ser dito se faz presente. A autora
analisa a transformação do testemunho em um símbolo da verdade ou no recurso mais
importante para a reconstrução do passado, diz Sarlo: é mais importante entender do que
recordar, ainda que para entender seja preciso, também, recordar (SARLO, 2007: 26). Já
Paul Ricoeur (2008) ressalta que o historiador não se pode limitar ao estabelecimento dos
fatos, e fazer história consiste em construir, fabricar, “criar”. Assim, a verdade histórica é
sempre passível de revisão, em função dos novos arquivos, de novas questões; portanto a
ressurreição do passado é impossível e só podemos conhecê-lo por relatos, no qual a memória
se apresenta como um tipo, que contribui com a formação de uma narrativa histórica. Ela é
uma fonte, um dos indícios a serem utilizados na escrita da história. O retorno ao passado é
impossível; assim Ricoeur afirma que não se pode ter conhecimento do passado a não ser
mediante um relato (oral, escrito e visual).
Ricoeur lembra ainda que História e Memória são narrativas; ele diz que a narrativa é
a mediação indispensável para se criar uma obra histórica. A configuração do tempo passa
pela narrativa do historiador. A história se torna uma prática discursiva, que se distingue da
ficção ou mesmo da memória, pelo recurso do documento. O enredamento impõe-se,
portanto, a todo historiador. Assim, espaço de experiência e horizonte de espera fazem mais
do que se oporem polarmente, eles se condicionam mutuamente.
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Segundo o filosofo Paul Ricoeur, a memória demonstra como o passado é


reapropriado no presente a partir de uma história oficial transmitida. A mesma sociedade em
diferentes épocas também utiliza da memória de um acontecimento especifico de diferentes
formas com fins políticos, com valores que se deseja agregar em sua identidade. Um simples
exemplo é o caso do Tiradentes, que inicialmente foi visto como um traidor, depois virou
símbolo e herói nacional na república, e permanece até hoje na nossa sociedade sendo
rememorado com um feriado nacional, ganhando espaço na mídia e nas escolas, mesmo
depois de tantos estudos historiográficos que já colocaram fim à idéia de herói nacional.
Na busca de escrever uma narrativa histórica, a história oral possibilita ao historiador
usar das entrevistas como fonte para sua escrita, buscando reconstruir o passado conforme foi
vivido. O que temos são fragmentos do passado, narrados por aquele que viveu. Isto nos
mostra um ponto central: não existe apenas uma memória ou uma história que dê conta do
passado, e sim varias. É impossível reconstruir o passado tal qual ele aconteceu.
No que diz respeito à relação entre verdade e ficção na prática historiadora, Ricoeur
(2008) escreve que a construção dessa hermenêutica do tempo histórico oferece um horizonte
que não é mais tecido pela única finalidade científica, mas voltado para um fazer humano, um
diálogo a se instituir entre gerações, um agir sobre o presente. É com essa perspectiva que
convém reabrir o passado, revisitar suas potencialidades. Assim, o presente reinveste o
passado a partir de um horizonte histórico separado dele. Transforma a distância temporal
morta em transmissão geradora de sentido.
Se compreendermos a memória como uma narrativa, a história não é diferente. A
narrativa é a mediação indispensável para se criar uma obra histórica. A configuração do
tempo passa pela narrativa do historiador. A história se torna uma prática discursiva, que se
distingue da ficção ou mesmo da memória, pelo recurso do documento; é ele que torna a
história uma narrativa diferenciada e mostra que mesmo no trabalho com a memória, ela não
apenas incorporada relatos; a fonte oral, no confronto com outras fontes, contribui com a
escrita da histórica.
Ao falar da relação entre verdade e ficção na prática historiadora, Paul Ricoeur (2008)
se aproxima das teses dos narrativistas e destaca dois pontos dessa abordagem narrativista:
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Em primeiro lugar, os narrativistas fazem a demonstração de que “contar já é explicar (...)”.


Em segundo lugar, à diversificação e hierarquização dos modelos explicativos, os narrativistas
opuseram a riqueza dos recursos explicativos interiores ao relato.
Entretanto, e apesar desses dois avanços na compreensão do que é um discurso
histórico, Ricoeur não compartilha das teses mais radicais dos narrativistas, quando elas
postulam a indistinção entre história e ficção. Apesar de sua proximidade, subsiste um corte
epistemológico baseado no regime de veracidade próprio ao contrato do historiador em
relação ao passado. Segundo Ricoeur,

O recurso dos documentos determina uma linha divisória entre história e ficção:
diversamente do romance, as construções do historiador almejam ser reconstruções
do passado. Por meio do documento e da prova documentária, o historiador está
submetido ao que, um dia, foi. (Ricoeur, 2008:58)

A dimensão veritativa da história é um fio condutor importante do pensamento de Paul


Ricoeur, constituindo-se no ponto que diferencia a história das outras formas de escrita, como
a da ficção. Segundo o autor, o historiador deve buscar atingir o nível da veracidade por meio
da escrita. Assim, a história como narrativa, passando pela compreensão da memória como
fonte, pode atingir o nível da veracidade pela sua escrita. Já Beatriz Sarlo (2007: 73) afirma
que “não há verdade senão uma máscara que diz dizer sua verdade”. No entanto, a história
tem muito a fazer com a verdade.
Michel de Certeau define uma estrutura triádica da operação historiográfica. Como
primeira etapa define a história que rompe com a memória quando objetiva os testemunhos
para transformá-los em documentos, passando-os pelo crivo da comprovação de sua
autenticidade, discriminando o verdadeiro do falso. É a fase arquivista. A prova documentária
permanece em tensão entre a força da atestação e o uso adequado da contestação, do olhar
crítico.
A segunda etapa se baseia na tentativa de explicação e compreensão. O historiador
aprofunda a autonomia de seus passos em relação à memória, perguntando-se “por quê”? Ele
desconstrói a massa documentária para dispô-la em séries coerentes significantes (fenômenos
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econômicos, políticos etc). Ele modaliza na medida do possível para testar seus instrumentos
interpretativos.
Já a terceira etapa se pauta na representação histórica e tem na escrita o principal
nível. Para o autor, é exatamente no plano da escrita que se situa a história nas suas três fases.
Ricoeur faz questão de distinguir duas ambições de naturezas diversas: verificativa para a
história e de fidelidade para a memória.
A intervenção de Ricoeur nesse terreno pode ser de fato analisada como uma
tentativa de articular essas duas dimensões, sabendo-se que elas são simultaneamente
diferentes e que Ricoeur concebe “a memória como matriz da história”. Existe, porém, grande
ruptura entre o nível memorial e o do discurso histórico, e ela se efetua com a escrita. Os fatos
não são revelados senão a partir de seus indícios, discursivos ou não.
O historiador se interroga a respeito das diversas modalidades da fabricação e da
percepção do fato a partir de sua trama textual. Esse movimento de revisitação do passado
pela escrita historiadora acompanha a exumação da memória nacional e conforta ainda o
momento memorial atual. Através da renovação historiográfica e memorial, os historiadores
assumem o trabalho de luto de um passado em si e dão sua contribuição ao esforço reflexivo e
interpretativo atual nas ciências humanas.
Essa inflexão recente se une à depreciação/retomada de toda a tradição histórica
objetivada por Pierre Nora (1993) e abre caminho para outra história, enriquecida pela
reflexão necessária sobre os indícios do passado no presente. Neste sentido, os historiadores
“não devem se esquecer de que são os cidadãos que realmente fazem a história – os
historiadores apenas relatam; mas eles também são cidadãos responsáveis pelo que dizem,
sobretudo quando seu trabalho toca em memórias feridas” (RICOEUR, 2008)
O historiador se interroga a respeito das diversas modalidades da fabricação e da
percepção do fato a partir de sua trama textual. Esse movimento de revisitação do passado
pela escrita historiadora acompanha a exumação da memória nacional e conforta ainda o
momento memorial atual.
Neste sentido, torna-se importante pensar a relação entre história e verdade. Segundo o
autor François Bédarida, a verdade da história provém da interface entre os componentes do
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passado, tal como ele nos chega através de seus vestígios documentais, e o espírito do
historiador que o reconstrói, buscando conferir-lhe inteligibilidade. Há, pois, necessariamente
correlação e reciprocidade entre o sujeito e o objeto. O valor da história repousa na
integridade interior do historiador, em sua paixão ardente e incondicional pela verdade.
Hoje estamos longe da concepção singularmente reducionista dos positivistas, para
quem o objeto histórico de algum modo já existia de antemão e em si, com o que o historiador
não construía a história, mas simplesmente a reencontrava tal como havia sido. Não se pode
mencionar um objeto sem mencionar ao mesmo tempo quem o apreende e como ele o
apreende, visto a impossibilidade de separar o objeto do sujeito. Portanto, o historiador jamais
é neutro.
Desta forma, a realidade histórica procede de uma mistura complexa de objetividade e
subjetividade na elaboração do saber, e o grau de objetivação depende em boa parte do campo
de aplicação, que vai desde acontecimentos simples e bem estabelecidos. Daí a necessidade de
distinguir os níveis de verdade histórica, que comportam maior ou menor grau de
aproximação e diferentes estágios de certeza, mas nos quais a mesma aspiração elevada deve
sempre repercutir na consciência do historiador.
Ao passar da história das estruturas e das conjunturas para a das representações e das
práticas (e mais particularmente das práticas sem discurso e das representações mais comuns),
a história atual multiplicou as questões para as quais, em último caso, não existe resposta
possível nas fontes disponíveis. Segundo Roger Chartier (2006), o historiador do tempo
presente é contemporâneo do seu objeto, e portanto, partilha com aqueles cuja história ele
narra as mesmas categorias essenciais, as mesmas referências fundamentais, além de ter a
capacidade de construir observatórios, fontes ajustadas às suas preocupações, podendo assim
superar entraves que classicamente limitam a investigação histórica.
Para o historiador do tempo presente, parece infinitamente menor a distância entre a
compreensão que ele tem de si mesmo e a dos atores históricos, destos ou ilustres, cujas
maneiras de sentir e de pensar ele reconstrói. De acordo com Chartier (2006), o estudo da
presença incorporada do passado no presente das sociedades e, logo, na configuração social
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das classes, dos grupos e das comunidades que as constituem é um tema inventado pelos
modernistas e incorporado na prática de todos os historiadores contemporâneos.
Os numerosos trabalhos dedicados às modalidades de construção, de
institucionalização e de expressão da, ou melhor, das memórias contemporâneas foram
decisivos para o início de novas pesquisas que, em todos os períodos históricos, tentam
identificar, além do mero discurso histórico, as formas múltiplas e possivelmente conflitantes
de rememoração e utilização do passado.
A história do tempo presente manifesta com peculiar pertinência a aspiração à verdade
que é inerente a todo trabalho histórico. Ora, a história do tempo presente, mais do que todas
as outras, mostra que há entre a ficção e a história uma diferença fundamental, que consiste na
ambição da história de ser um discurso verdadeiro, capaz de dizer o que realmente aconteceu.
Essa vocação da história, que é ao mesmo tempo narrativa e saber, adquire especial
importância quando ela se insurge contra os falsificadores e falsários de toda sorte que,
manipulando o conhecimento do passado, pretendem deformar as memórias (CHARTIER:
006).
Animada por uma imperiosa exigência de verdade, a história do tempo presente obriga
todos os historiadores a refletirem sobre a questão colocada por Paul Ricoeur e também por
Certeau: em que condições se pode considerar um discurso histórico como verdadeiro, isto é,
como capaz de produzir, com o auxilio de instrumentos e categorias próprios de uma
determinada configuração do saber, um conhecimento adequado da realidade que constitui
seu objeto?
A resposta é difícil, mas devemos reconhecer que a história do tempo presente, pela
própria natureza de suas preocupações, permite reconhecer a historicidade fundamental das
condições de produção e de validação do saber histórico, atrelando nosso ofício à exigência de
conhecimento verdadeiro que o fundamente.
Para René Rémond uma questão essencial é relativa à duração e diz respeito à
delimitação do campo que constitui o objeto próprio da história do tempo presente. Não se
trata de uma história do instante, e é preciso denunciar a confusão entre uma história da
proximidade e uma história da instantaneidade; trata-se, portanto, de uma história da duração.
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A partir disto varias questões surgem para se definir o Tempo Presente: que duração
seria essa? Quais critérios podem definir onde termina a história que ainda não é do tempo
presente e onde começa a que é do tempo presente? Qual é o ponto de partida? É necessário
esperar o desaparecimento dos últimos sobreviventes, daqueles que poderiam testemunhar? É
o aniquilamento da memória pessoal? É preciso esperar que os fenômenos estudados sejam
fenômenos consumados? Ou seria algum fato?
Para Rémond, a Segunda Guerra seria incluída ou deixada de fora? Hoje, a 2ª Guerra
Mundial se apaga e se distancia. Isso tem uma consequência para os historiadores do tempo
presente: eles precisam rever continuamente a delimitação do seu campo de pesquisa. Por um
deslocamento contínuo e ininterrupto, um problema, um assunto ou um tema que definia seus
objetos retira-se do campo, cai em uma história que não é mais do tempo presente.
E como resultado da aceleração, que nos faz ver em dois ou três anos o cenário
transformar-se, a maioria dos temas que estavam no cerne da investigação e da reflexão da
história do tempo presente de repente envelhece e passa à condição de objeto do passado: a
Guerra Fria, o comunismo, a descolonização. Consequentemente, os historiadores do tempo
presente devem estar atentos às mudanças, acolher novos temas, dar provas de imaginação.
Desta forma, a reintegração do tempo presente faz varrer da visão da história os
últimos vestígios do positivismo: o historiador do tempo presente sabe o quanto sua
objetividade é frágil, que seu papel não é o de uma chapa fotográfica que se contenta em
observar fatos, ele contribui para construí-los.
Para François Bédarida,a história do tempo presente é feita de “moradas provisórias”.
Sua lei é a renovação. O tempo presente é reescrito indefinidamente utilizando-se o mesmo
material, mediante correções, acréscimos, revisões – imagem que remete ao âmago do
processo de reescrita de que fala Paul Ricoeur.
Para Henry Rousso, a denominação História do Tempo Presente está associada à
criação do Instituto de História do Tempo Presente (IHTP) entre 1978 e 1980 e tinha por
objetivo trabalhar sobre o passado próximo e sobre a História Contemporânea no sentido
etimológico do termo, ou seja, uma História na qual o historiador investiga um tempo que é o
seu próprio tempo com testemunhas vivas e com uma memória que pode ser a sua.
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Segundo o autor, a primeira razão para se distinguir a História do Tempo Presente da


História Contemporânea foi uma motivação técnica e semântica, pois desejavam mostrar
“outra coisa”. Na segunda razão há também uma dimensão ideológica. Ideológica no sentido
que não é qualquer História que será feita a partir dos anos 1980 e o IHTP, assim como todos
que trabalharam com o tempo presente, buscou objetos particulares. O termo está em debate
em diversos países como Alemanha e EUA, onde a discussão busca determinar qual foi o
ponto de partida dessa história recente.
Rousso define que nós (os historiadores do Tempo Presente) fazemos uma história
inacabada. Nós fazemos uma história do inacabado. Nós assumimos o fato de que as análises
que vamos produzir sobre o tempo contemporâneo, provavelmente, terão certa duração e que
os acontecimentos vindouros podem mudá-las. É uma árdua tarefa de manter-se à distância
face ao próprio presente.
Dessa forma, definimos que Memória e História do Tempo Presente possuem relações
bem estreitas, em especial, pelo potencial da memória que suscita o testemunho como fonte.
Surge, assim, um desafio central, que consiste em relacionar presente e passado,
estabelecendo as definições de tempo de um passado recente. O passado precisa ser sentido
tanto como parte do presente quanto separado dele. Como afirma Henry Rousso (1996: 94), a
memória interessou aos historiadores do tempo presente por apontar para uma solução para o
problema, já que para o autor a memória em seu sentido essencial da palavra é a presença do
passado.
A memória possui um papel significativo de fortalecimento da identidade de grupos e
comunidades. Devido a isso, a memória tem sido objeto de muitos debates e originado muitos
trabalhos nas ciências humanas. Responsável por abrir ao pesquisador possibilidades de
análises novas, a memória apresenta características peculiares e que merecem reflexões
cuidadosas.
Contudo, a pressão pela verdade em que sempre se submeteu o historiador, faz com
que a história do tempo presente se torne tema de inúmeros debates acadêmicos que por vezes
falavam de um recuo temporal como sinônimo de perspectiva histórica, e assim,
inviabilizavam a abordagem histórica por definir que o historiador não pode escrever sobre o
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que presenciou, precisando de um recuo temporal para que possa analisar de forma imparcial,
ou então, apreciam em demasiado o historiador vivente do que estuda, pois o mesmo ganharia
o status de testemunha, o que valorizaria sua analise em detrimento daqueles que não são
coetâneos.
Eric Hobsbawn afirma que nossa experiência pessoal é moldada pelo tempo que
vivemos, mas isso interfere tanto no que escrevemos sobre o presente quanto sobre o passado.
A partir disso, podemos pensar a subjetividade como algo que vai sempre estar presente no
trabalho do historiador do tempo presente que lida com a sua própria subjetividade e com a
subjetividade das memórias nas quais analisa.
Desta forma, nosso objetivo com este artigo foi apresentar os principais debates
conceituais que se travam ao falar das particularidades do trabalho do historiador do tempo
presente que a relaciona com a memória a partir da perspectiva da história oral. Sabemos que
este debate não se esgota no que foi apresentado aqui, mas buscamos contribuir a partir das
ideias aqui apresentadas para a definição de sentidos aos trabalhos que relacionam estes três
pontos: história oral, memória e tempo presente.

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