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Ie ne fay r i e n

sans
Gayeté
(Montaigne, D es livres)

Ex Libris
José M i n d l i n
RESPOSTA
DADA
AO

AD
PELO

SENADOR

SOBRE

A PRONUNCIA DE CABEÇA DE REBELLIAO CONTRA


ELLE PROFERIDA PELO CHEFE DE POLICIA
DA PROVÍNCIA DE S. PAULO , J. A. G. DE
MENEZES , NO PROCESSO DA REVOLTA DE I 7
DE MAIO DE 1 8 4 2 .
Non omnis moriar, multa-qu-e*.
pars mei vitabitLibitinam.
Hor.

RIO DE JANEIRO.
NA TYPOGRAPHIA NACIONAL.
1843.
» 44
AUGUSTOS E DIGNÍSSIMOS SENHORES.

Obedecendo á ordem do Senado, que me manda


responder sobre a p r o n u n c i a lavrada pelo Chefe de
Policia de S. P a u l o , em que sou qualificado cabeça
de rebellião, v o u só dar h u m a prova de meu respeito
e consideração a este respeitável C o r p o , pois q u e ,
não havendo L e i , n e m ao menos A r t i g o r e g i m e n t a l
que isso d e t e r m i n e , n e n h u m o u t r o m o t i v o me poderia
mover. N ã o extranhe o Senado a demora que tenho
t i d o , attendendo ao estado de m i n h a saúde: ella t e m
s i d o , e ainda he t a l , q u e me tem impossibilitado até
agora , e agora mesmo apenas me p e r m i t t e fazer breves
considerações a esse respeito, entregando-me resignado
ao j u i z o do Senado, q u a l q u e r que elle seja.
Não me occuparei de mostrar a monstruosidade
desse Processo, e p o r conseguinte sua insanável n u i -
l i d a d e : elle será l i d o p o r todos, e q u e m f o r i m p a r -
cial e j u s t o verá os motivos e fins que teve, e julgará
de sua moralidade: embora seja elle feito p o r q u e m
não t i n h a jurisdicção, pois que já estavão iniciados,
ou findos os Processos nesses julgares em que f o i elle
instaurado ; embora tenha elle mais de quarenta tes-
t e m u n h a s , contra a letra e espirito da L e i , como se
conhece dos dous extractos para cá r e m e t t i d o s ; embora
não fosse r e m e t t i d o o Processo t o d o , como ordena a
Constituição e a L e i , e só h u m extracto incompleto e
p a r c i a l , e sem as formalidades do estylo; eu não me
occuparei disso: sirva elle de prova do miserável es-
tado do paiz; dê-lhe o Senado o valor q u e q u i z e r : só
digo que mesmo delle he e v i d e n t e , que não houve r e -
beüião em S. P a u l o , q u e eu portanto não podia ser
cabeça, e que finalmente não posso eu ser c r i m i n o s o
pela parte que neste m o v i m e n t o tive.
Para haver h u m a rebellião he preciso q u e se p r a -
t i q u e a l g u m dos crimes designados no A r t . 110 do
nosso Código C r i m i n a l ; mas onde se acha provado
que se tivesse commettido a l g u m dos crimes nesse ar-
tigo designados ? T a n t o he isto verdade, que o Chefe
de Policia p r o c u r o u , p o r meio de inducções, torcendo
o sentido natural da L e i , achar o c r i m e na violação
dos Artigos 86 e 87 do Código. Mas, quando se t e n t o u
directamentc, e p o r factos em S. P a u l o — d e s t r u i r a
(4)

Constituição ou algum de seus Artigos, desthronisar o


Imperador, o u p r i v a l - o , no todo o u em parte, de sua
Autoridade Constitucional? — Q u a l o documento ou a
testemunha que demonstre a existência de t a l facto?
Como não o aponta o Chefe de Policia no seu p r i -
m e i r o despacho a 11., ou na pronuncia? O que se vè
dos autos, e que he de p u b l i c a notoriedade, he q u e
— houve h u m movimento revolucionário em alguns
M u n i c i p i o s de'S. Paulo, nomeando-se h u m Presidente
i n t e r i n o , e obrigando-se elle e todos, com j u r a m e n t o ,
a sustentar a Constituição e o Imperador , suspendendo-
se entretanto a execução de h u m a L e i q u e se repu-
tava i n c o n s t i t u c i o n a l , e exercendo esse Presidente actos
desse e m p r e g o . — Deslruio-se acaso a l g u m A r t i g o da Cons-
tituição? F i c o u acaso desthronisado o I m p e r a d o r , o u
privado, no todo ou em parte , de sua Autoridade Cons-
t i t u c i o n a l ? Pelo c o n t r a r i o , para que elle a exercesse
l i v r e m e n t e , pois que era considerado coacto, he q u e
appareceo o movimento-, para conseguir esse fim he
que f o i escolhido h u n j Presidente i n t e r i n o , isto he ,
até que o u t r o fosse pelo Imperador nomeado : nunca
se desconheceo o Império da Constituição, e a A u t o r i -
dade do Imperador : era para seu t r i u m p h o que se
t e n t o u o m o v i m e n t o : como pois póde-se pensar, e
atéaflirmar, que se t e n t o u directamente , e p o r factos,
destruir a Constituição, o u a l g u m de seus A r t i g o s , e.
desthronisar o I m p e r a d o r , o u p r i v a l - o , no todo o u
em p a r t e , de sua A u t o r i d a d e ? N ã o c o n t i n u o u sempre
a Constituição a ser regra única dos revolucionários?
N ã o f o i sempre o I m p e r a d o r o objecto de seus respei-
tos, de seu a m o r ? Não continuava elle com toda a
sua x\utoridade, podendo nomear Presidentes e quaes-
quer outros empregados? O nosso Código q u i z clas-
sificar os diversos crimes politicos ; deu-lhes diversos
caracteres; á vista d e l l e , só h u m espirito v i o l e n t a -
mente apaixonado poderá pensar e a f l i r m a r , que f o i
rebellião o m o v i m e n t o havido em S. Paulo : para esses
t u d o quanto eu dissesse seria supérfluo, e para h u m
espirito desprevenido já tenho dito de sobra. Se pois
não houve —rebellião — e m S. P a u l o , como imè pa-
rece demonstrado , c sobre essa base he que está (or-
( » )

mado este Processo, claro fica que, faltando ella ,


todo elle caduca. Mas vejamos se ainda dada t a l h y -
polhese ( q u e nego), posso e u ser qualificado cabeça.
Nossa legislação não tem d e f i n i d o o q u e he cabeça j
mas, tendo d e f i n i d o o q u e he autor, e fazendo diífe-
rença entre cabeça e autor, segue-se q u e devem estes
dous vocábulos t e r diversa accepçâo e sentido. Mas
q u a l a accepçâo ? A q u e se deduz do senatus con-
sultus, q u e traz T i t o L i v i o l i v . 2 8 , cap. 2 6 , unde
orta culpa esset: s i m para ser cabeça he m i s t e r a l g u m a
qualidade mais do q u e aquellas q u e c o n s t i t u e m o a u t o r ;
de o u t r o m o d o no c r i m e de rebellião t u d o seria ca-
beça , o simples soldado q u e e m p u n h o u as armas e
p r a t i c o u aclos revoltosos, assim como o chefe capital
delia-, e assim absurda e inútil seria a distiricção e n t r e
cabeças, q u e a L e i só p u n e , e complices a q u é m ella
se não estende. Cabeça h e pois' só q u e m , alem de
de ser a u t o r , he demais aquelle d'onde p r o v e i o a idéia
e plano , aquelle q u e f o i causa do m o v i m e n t o , e sem
cuja aceão o u não e x i s t i r i a o c r i m e , o u m u d a r i a de
natureza.
Póde-se pois afoutamente a f l i r m a r q u e pelo menos
cabeça he o principal autor. E seria eu o principal
autor do m o v i m e n t o de S. P a u l o ? Respondão quantos
l e r e m o Processo, e sua resposta será — não. Desse
montão de documentos q u e avolumão este Processo *
apenas me dizem respeito b e m poucos, e n e m sei
a t i n a r com o m o t i v o p o r q u e a q u i se achío, f a l t a n d o
outras peças i m p o r t a n t e s . Dessas actas de Câmaras M u -
nicipaes e desses outros Oííicios nada se colhe c o n t r a
m i m . D o j o r n a l q u e r e d i g i , e q u e he citado p e l o
Chefe de Policia , como prova de rebellião , apenas se
prova q u e eu a p p r o v e i o m o v i m e n t o e a d h e r i a e l l e ;
mas n e g u e i eu isso alguma vez? As m i n h a s cartas ao
General Barão de Caxias, os meus Oííicios ao P r e -
sidente Barão de M o n f a l e g r e o confessão assaz: escu-
sada he pois a prova q u e se q u e r d e d u z i r de cartas
do Sr. R a p h a e l T o b i a s para h u m facto já provado :
s i m , eu a p p r o v e i e a d h e r i a esse m o v i m e n t o ; mas
t e r approvado e a d h e r i d o he ser cabeça? Haverá q u e m
o diga? Sc para ser autor he preciso — commcttcr , com-

»
( 6 )

tranger ou mandar commetter o crime —, como poderá


ser cabeça ou o principal autor quem apenas appro-
vou ou adherio a elle depois de seu r o m p i m e n t o ?
E m todos esses documentos que de m i m fallào, nada
apparece, p o r onde se pôde concluir, que eu commettt,
constrangi, ou mandei commetter o facto do movimento,
e m u i t o menos que eu fosse o p r i n c i p a l causador delle ;
como pois poderei ser qualificado autor, e , mormente
cabeça ?
Vê-se sim (o que eu confirmo) que approvei-o e
a elle a d h e r i ; mas se he a L e i que deve imperar e
ser obedecida, ella não me considera nem ao menos
a u t o r , quanto mais cabeça: he isto tão evidente que
me dispensa de insistir mais. Apparece entretanto entre
os documentos h u m borrão dc proclamação de m i n h a
l e t r a , pelo q u a l me considerou o Chefe de Policia
Vice-Pi esidente do movimento ; e por conseguinte ca-
beça ou pelo menos autor delle. Mas esse papel, em-
bora escripto por letra m i n h a , não f o i por m i m nem
por consentimento meu publicado ; h u m simples jogo
de espirito ficou guardado entre outros sem punca ter
visto a luz do dia. Como pôde pois resultar-me d elle
criminalidade? Querer-se-ha reviver no Brasil a j u -
risprudência de Jeferyes contra Algernon Sydney na

do A r i . *7.° do Código C r i m i n a l ? Se pois pelos do-


cumentos não posso ser qualificado cabeça, e nem ao
menos autor do m o v i m e n t o , resta observar se o posso
ser á vista das provas das testemunhas : he o que passo
a considerar. Fallão a meu respeito as testemunhas
Antônio José da Piedade, a fl.; João José Nogueira,
a fl.; Manoel José Barlholomeu, a fl.; Bento M a n o e l
de A l m e i d a , a f l . : Ignacio Dias da A r r u d a , a f l . ; Se-
r a f i m Antônio dos Santos, afl.-, José Vaz de A l m e i d a ,
a fl.-, José L u i z Coelho a fl.; L u c i d o r o Peixoto , a f l . ;
Padre José Galvão, afl.;Francisco M a r i a n o da Costa ,
a fl.; José de M e l l o , a fl.; Antônio José de Camargo,
a fl.; Francisco P i n l o x\dorno, afl.;Joaquim de A l -
meida L e m e , afl.-,e Antônio M a n o e l de O l i v e i r a ,
a fl.; além de outros q u e , especialmente interrogados
a m e u respeito , nada disserào; c destas 16 testeniu-
(~)

nhavS (não contando as que nada disserào), qual he a


que allirma factos que me possão qualificar cabeça, o u
mesmo somente autor? Ape/ar de violada a L e i , i n -
quirindo-se testemunhas em m u i t o maior numero do
que ella p e r m i t t e , apenas se acha provado — que eu
dava conselhos; que approvava o movimento; que estive
em Sorocaba, e morava com o Presidente do movimento
(o que tudo sempre confessei e confirmo). Mas n e n h u m
desses factos póde-me constituir cabeça, nem mesmo
autor. Dizem algumas testemnnhas que eu dera o plano
para a revolução; mas que razão dão ellas disso q u e
d i z e m ? A voz publica unicamente e nada mais: e bas-
tará acaso essa voz publica, essa opinião vaga, para
constituir prova a respeito de h u m objecto tão impor-
tante, de n u m crime tal? Como nenhuma ao menos
disse de quem ouvio que eu dera o plano ? Como n e n h u -
ma disse ter visto esse plano? Como se não descobrio
e l l e , tendo-se dado tantas buscas, tendo-se aberto
quantas cartas se encontravão, tendo-se servido de
todos os meios possíveis, quaesquer que elles fossem
para achar provas contra certos, tendo dominado a este
respeito o terror e a violência ? E como se podia ver
o u descobrir o que nunca houve? Q u e o movimento
de S. Paulo não teve concerto, não teve plano, e que
só f o i effeito de enthusiasmo irreflectido e de p a t r i o -
tismo ardente, porem sem guia e regra anterior, o
seu nascimento e fim de sobejo o demonstrão.
Para haver essa voz publica essa opinião vaga bas-
tava o que comigo praticou o Governo e seu Dele-
gado na Província, proclamando-me criminoso logo , e
impondo-me logo as penas de prisão, deportação e
degredo: bastava ser eu membro da opposição e t e r
alguma importância p o l i t i c a , pois que o mesmo se
disse de quem nem ao menos approvou o m o v i m e n t o :
bastava t e r eu estado em Sorocaba depois do m o v i -
mento e ter lá ido antes tratar de m i n h a saúde com
h u m medico Dinamarquez , e me demorado alguns dias.
Mas note-se que a testemunha Padre 3osé Galvão a f -
firma que eu só f u i a Sorocaba depois de ter já r o m -
pido o movimento (ó que he verdíade e se comprova
pelo documento n.° 79, a f l . ) ; entretanto que a tes-
í 8 j
t e m u n h a Antônio José de Camargo a l l i r m a q u e só de-
pois ,de m i n h a i d a a Sorocaba f o i q u e r o m p e o o mo-
v i m e n t o , e q u e a testemunha S e r a f i m Antônio dos
Santos aílirma q u e andei p o r S. Paulo e o u t r o s l u -
gares tratando da revolução, q u a n d o eu para lá não
t i n h a i d o nesses t e m p o s ! T a l he o v a l o r de taes tes-
t e m e n h a s ! H u m a t e s t e m u n h a (Bento M a n o e l de A l -
meida Paes) diz a fl. q u e e u era o q u e devia rece-
ber os avisos do R i o ; mas dá ella razão do seu
d i t o ? O u t r a (Francisco M a r i a n o da Costa) d i z a fl.
3ue e u tratara com diversos respeito á revolução ; mas
á também ella razão do seu d i t o ? O u t r a finalmente
( J o a q u i m José de M e l l o ) d i z a fl. q u e e u era cabeça
de t u d o , e q u e m p r o m o v e r a o m o v i m e n t o 5 mas como
sabe elle isto ? Pela voz publica, d i z elle : e podem
ter v a l o r taes d e p o i m e n t o s , m o r m e n t e em crimes da
natureza dos q u e se me imputão? A p p e l l o a todos q u e
conhecem os verdadeiros princípios ua jurisprudência
c r i m i n a l . D e m a i s , q u a n d o testemunhas aílirmão qua-
lificações em vez de facto$, n e n h u m v a l o r merecem-
á testemunha c u m p r e depor sobre factos especificada-'
m e n t e , e só ao J u i z pertence d e d u z i r delles a classi-
ficação do c r i m i n o s o .
Vê-se p o i s , pelos depoimentos das testemunhas
somente o q u e e u sempre t e n h o confessado, somente
> a q u i l l o q u e já se v i a dos d o c u m e n t o s , isto he , q u e e u
a p p r o v e i e a d h e r i ao m o v i m e n t o ; q u e e u escrevi n o
sentido d e l l e ; q u e e u desejava q u e elle fosse f e l i z , e nada
e esses factos podem-me q u a l i f i c a r cabeça, o u
mesmo autor ? Provão elles q u e e u fosse o p r i n c i p a l
agente do m o v i m e n t o , e q u e sem m i m não t e r i a elle
h a v i d o ? Provão elles q u e e u concertasse o plano da
revolução, e o puzesse em p r a t i c a , q u a n d o pelo con-
t r a r i o h e evidente dos autos q u e e u só a d h e r i a ella
depois do r o m p i m e n t o ? Se para ser q u a l i f i c a d o cabeça
basta t e r approvado a revolução, l e r a d h e r i d o a ella ,
ter desejado q u e ella fosse f e l i z , t e r dado alguns passos
para q u e ella não fosse ensangüentada, então serei ca-
beça, como serão m i l h a r e s de indivíduos mais q u e o u t r o
tanto fizerão; mas nesse caso quaes serão òs caracte-
res do cabeça? Nesse caso seria ocioso o Código C r i -

»
( 9 )

minai, quando fez distincçâo entre cabeça e autor, e


entre este ecomplice;ficariâobaralhadas todas as idéias
do nosso d i r e i t o , e os Cidadãos Brasileiros em estado
ainda mais deplorável do q u e no tempo da O r d . do
* l i v r o 5.°; seria h u m a illusão o systema de Governo
que nos rege. ... Se entretanto se j u l g a q u e cabe na al-
çada do Governo o u dos T r i b u n a e s a n n u l a r as definições
e distincções da L e i , e classificar os delictos e delinqüen-
tes por p u r o a r b i t r i o , e á sua v o n t a d e , q u e me resta
então a dizer senão, q u e em tal caso estaremos debaixo
do Império da força ? Mas a força não constitue o d i -
r e i t o , e esse tarde o u cedo obterá a v i c t o r i a . H e da
natureza dos Governos violentos o perseguirem ; as per-
seguições são conseqüência do Governo q u e quer i m -
por obediência a b s o l u t a ; mas a violência, como em-
prega força demais, cedo a esgota, e não l h e resta
mais q u e oppor á acção gradual e l e n t a , porem con-
t i n u a da Justiça.
T e n h o demonstrado q u e n e m á vista dos docu-
mentos, n e m á vista dos depoimentos, posso ser e u
classificado cabeça, e q u e n e m mesmo posso ser clas-
sificado autor, pois nada apparece q u e prove q u e e u
fosse quem fez o movimento ou constrangesse ou mandasse
fazel-o, estando pelo contrario provado q u e depois de
seu r o m p i m e n t o he q u e e u a d h e r i a elle. E m r i g o r
de d i r e i t o talvez n e m complice mesmo possa e u ser
considerado; mas, ainda q u e pudesse, no c r i m e q u e
se me i m p u t a não são p u n i v e i s os complices. Que me
resta pois mais a dizer? Resta expor todo o m e u pen-
samento a respeito, apresentar-me com toda a f r a n -
queza a meus collegas, e a todos os meus concidadãos
tal q u a l s o u : quero q u e elles penetrem no sanctuario
de m i n h a consciência, e então me j u l g u e m .
E u declaro ao Senado e á Nação q u e em verdade
eu não f u i cabeça, n e m ao menos autor do m o v i m e n t o
revolucionário de S. Paulo; mas q u e approvei-o
que adheri a e l l e ; que desejava q u e elle fosse f e l i z ,
e q u e para este fim escrevi e d e i alguns passos depois
do seu rompimento : eu estava e ainda estou p r o f u n -
damente convencido, que a isso era e u obrigado pelos
juramentos que p r e s t e i ; q u e , se o que m fiz, todos
( i o)
fizessem, se todos fossem fieis ao* juramentos presta-
dos á Constituição do E s t a d o , n u n c a Iiaveriáo m o v i -
mentos revolucionários, p o r q u e os q u e ousassem l a n -
çar sobre ella mãos sacrilegas , se acharião sós, e c a h i -
rião cobertos de maldições e desprezo, q u a n d o não
sofFrêssem as penas da L e i : e u penso q u e , se h u m a
Nação he t a l q u e vê submissa a violação de suas
instituições, he ella i n d i g n a de ser Nação l i v r e , e he já
escrava, e se já não t e m s e n h o r , terá o p r i m e i r o q u e
o q u e i r a ser: entendo p o r t a n t o q u e não he só d i r e i t o ,
mas s i m dever de t o d o s , q u e presão os foros e d i g n i -
dade de Cidadãos l i v r e s opporem-se ás infracções da Cons-
tituição de s e u p a i z , não só p o r todos os m e i o s , q u e
lhes facultão a Constituição e as L e i s , como t a m b é m ,
faltando estes, p o r todos os outros q u e lhes r e s t e m ;
que, se isso tivessem feito em o u t r o t e m p o a I n g l a t e r r a e a
França, se não se tivessem deixado i n t i m i d a r pelos anar-
chistas de então, não se teria h o r r o r i s a d o o m u n d o v e n d o
as catastrophes de Carlos I e L u i z X V I , sacrificados
c o m infracção das Constituições desses paizes ao o d i o dos
i n f r a c t o r e s d e l l a s ; q u e , para conseguir e consolidar as
instituições em h u m p a i z , he indispensável n e l l e esse
sentimento g e r a l e i n s t i n c t i v o de resistência á t y r a n n i a ,
a q u a l existe toda vez q u e se v i o l a a Constituição; q u e
em quanto esse s e n t i m e n t o não estiver i n f i l t r a d o nos
ânimos, radicado nos espíritos, a l i b e r d a d e será ape-
nas n o m i n a l ; q u e só depois q u e t a l f o i a religião po-
lítica da I n g l a t e r r a he q u e ella t e m t i d o e s t a b i l i d a d e , e
apresentado a o m u n d o a d m i r a d o o espectaculo de sua
#

grandeza e de s u a g l o r i a ; q u e h e p o r isso q u e se acha


#

consignado em nossas L e i s o d i r e i t o de resistência ás


ordens i l l e g a e s , sem o q u e seria fantástica e c h i m e r i c a
nossa f o r m a de Governo.
Sendo pois estas m i n h a s convicções; tendo a p l i -
cado sempre meus esforços, desde q u e e n t r e i n a v i d a
p o l i t i c a , para conseguir e consolidar na m i n h a pátria
a l i b e r d a d e p o r m e i o da M o n a r c h i a R e p r e s e n t a t i v a , a
despeito de todos os sacrifícios; como p o d e r i a e u ficar
insensivel vendo a Constituição m u t i l a d a , violada, e es-
carnecida, e p o r conseguinte os perigos da M o n a r c h i a
Renresentativa? Pelas L e i s da R e f o r m a J u d i c i a r i a e
(11)

Conselho dEstado, acabou a liberdade do cidadão e


coartou-se a do M o n a r c h a : o Ministério concentrou
em s i todos os poderes públicos, annullada a base de
todo o Governo l i v r e , que he a divisão dos poderes:
ainda mais: dissolveo previamente, e portanto contra a
Constituição, a Câmara dos Deputados, e para mais
até p r o m u l g o u h u m a nova forma de eleições , pela q u a l
fica i l l u s o r i o o d i r e i t o de eleger, e também concentrado
nelle de facto o Poder L e g i s l a t i v o , sendo apenas seus
çommissarios os que devião ser Representantes da Na-
ção. Neste estado, apresentando-se o Ministério em r e -
bellião manifesta contra a Constituição do paiz, em
hostilidade aberta contra o Monarcha e a Nação, p o -
deria eu ser criminoso dando alguns passos para que
fosse vingada e restaurada a Constituição, e l i v r e o Mo-
narcha da coacção em que f o i posto ? Forão criminosos os
q u e na Inglaterra vingarão a Constituição violada p o r
C r o m w e l l e seus adherentes, e depois pelos S t u a r t s ,
e a consolidarão finalmente em 1688? Os que em França
reagirão contra os M i n i s t r o s que violarão a C o n s t i t u i -
ção em 1830, e a consolidarão então? Os que fizerão
a Independência e proclamarão a Constituição do Brasil?
Os q u e se oppuzerào a D. M i g u e l e restaurarão a Cons*
tituição p o r elle violada? Se acaso eu sou c r i m i n o s o ,
sou como o f o i o Sr. D. Pedro I , o i m m o r t a l F u n d a d o r
do Império e Restaurador da liberdade porlugueza, e
tantos outros grandes homens: s o u , p o r obrar em
conformidade com nossa legislação, que sancciona a
resistência ás illegalidades. Será talvez prudência t o -
lerar h u m a Nação as infraccões de sua Constituição,
e a alteração de sua fôrma de Governo, receiando maiores
males da resistência ; mas não he por certo isso h u m
d e v e r ; he antes h u m symptoma de que ella ainda
não he digna da liberdade e dos altos destinos a q u e
aspira: para q u e m porem preza acima de tudo o de-
v e r , o desempenho delle he o único alvo, a única recom-
pensa , sendo-ihe indiíferentes os resultados, quaesquer
que sejão : eis o que me acontece.
T e n d o pois provado que não houve rebellião em
S. Paulo ; que (concedido que houvesse) eu não f u i
delia cabeça; q u e , finalmente, não he h u m c r i m e ,
( 12 )

antes h u m dever , a opposição aos que se rebelião coiir


tra a Constituição do Estado, devo concluir m i n h a
resposta.
Assim como não me occupei com as ínnunieras
nullidades desse monstruoso Processo, não me occu-
parei também com o proceder do Senado, mandando-
íne responder sem L e i o u A r t i g o R e g i m e n t a l , e pre-
tendendo julgar-me sem L e i , o u ao menos sem L e i
anterior ao facto, eontra a expressa determinação d o
<• J ~ A-»:~~ 1 7 Q r i a Triníiiiiiiclo: eu resigno-me
a t u d o , deixo tudo a o j u i z o do Senado, cerlo de q u e ,
em tempos • como estes e r i m p e ttaes,
^ em «crimes
Q m a e s . rrara vez se s
a r a vez
ouve a voz da justiça e da razão, e tarde he que ap-
parece o remorso : não serei eu a p r i m e i r a victima i m -
ínolada pela defesa das liberdades publicas : talvez mes-
mo são indispensáveis taes sacrifícios para firmar-se
h u m a Constituição, porque todas as Nações os tem
l i d o : oxalá seja eu a única v i c t i m a , e assim se con-
solide em meu paiz a Monarchia Representativa !/Oxalá
que o t r i u m p h o definitivo d e l i a , embora infalível,
não seia á custa ainda de muitas viclimas mais.
Já e u , embora sem culpa formada, embora Sena-
d o r , f u i preso, deportado, e degradado contra a letra
expressa da Constituição: enfermo, como sou, e t o -
dos reconhecem, f u i lançado nas praias da V i c t o r i a ,
sem que nem ao menos se me prestassem os alimen-
tos na viagem , e sem que lá se me proporcionassem
meios de conservar a v i d a : f u i assim conservado n o
degredo muito depois de finda a suspensão das garan-
tias pretexto das violências praticadas r regressando a
esta depois de tantos incommodos , e quasi m o r i b u n -
do como vedes , nem ao menos se quiz conhecer des-
ses' altentados contra m i m praticados, que o são igual-
mente contra a Constituição e contra o Senado, an-
tes se honrou com a Presidência delle a esse mesmo
que t i n h a praticado a m ó r parte dessas violências: que
pois mais poderei soffrer? Já quasi de 60 annos, e
além disso já á borda do túmulo, poderei acaso apre-
ciar tanto esses poucos dias , que me possâo restar de
v i d a , m u i t o mais quando pelo m e u estado de saúde,
não os posso mais empregar a bem do paiz?.
r 13)

Tendo tido tal ou qual parte nos negócios do Bra-


s i l desde 1 8 2 1 , em que despontou a aurora de sua
felicidade, já em L i s b o a , já na Câmara dos Deputa-
dos e no Senado, iá nos Conselhos gerai e do Go-
v e r n o , e na Assembléa Provincial de S. Paulo, já co-
mo M i n i s t r o e Regente; tenho a consciência de que
só procurei sempre o bem do paiz, trabalhando u n i -
camente para o consórcio da liberdade com a a u t o r i -
dade , por meio da Monarchia Representativa: este
único pensamento d i r i g i o - m e , e nunca a ambição e
o egoismo, como o provárão meus actos. F o i pois esse
mesmo pensamento que me d i r i g i o nos meus últimos
actos em S. P a u l o : q u e m tivesse conhecido m i n h a
vida anterior, não deveria esperar de m i m outra -con-
ducta : fiz então o que fiz sempre, t r a b a l h e i , como
sempre, pelo t r i u m p h o da Monarchia Representativa.
A' vista do exposto parece-me evidente que eu
f

não sou culpado; mas, se diverso he o j u i z o do Se-


nado , se elle me he desfavorável, consolo-me com a
consciência de ter desempenhado h u m dever, e de que
eu seria indigno da estima dos meus Concidadãos, se
outra tivesse sido a m i n h a conducta: resigno-me sa-
tisfeito a todas as conseauencias, quaesquer que sejão,
descançando na acção da Providencia, e delia espe-
rando com confiança, tarde o u cedo, o remédio aos
males do meu paiz.
T e n h o concluído.
Rio de J a n e i r o , 12 de Maio de 1843. — Diogo
Antônio Feijó.

Rio de Janeiro. Na Tjpographia Nacional. 1843.


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