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COLHEITA DE INVERNO. ENSAIO DE hábito nos livros do autor, esse índice


TEORIA E CRÍTICA LITERÁRIAS não surge no presente volume.
VÍTOR MANUEL DE AGUIAR E SILVA A obra aparece dividida em três
Coimbra: Edições Almedina, 2020 partes, abrangendo os interesses que
568 páginas. ISBN 9789724085678 o Professor Aguiar e Silva vem culti-
vando em regime de maior estabilidade.
Após o aparecimento, em 2010, de um A primeira parte é consagrada à teoria
volume de dispersos, não se contava literária, a segunda incide em matérias
que um novo livro do Doutor Aguiar camonianas e a última tem o subtítulo
e Silva pudesse vir a público, decorrida mais genérico de “Ensaios sobre litera-
que foi apenas uma década. tura portuguesa”.
Mas eis que somos surpreendidos por Quatro dos textos são inéditos e
uma obra imensa, que surge sob a chan- um outro surge reproduzido “com
cela da sua principal editora de acolhi- algumas diferenças”. Apesar de se
mento (a Livraria Almedina). O livro encontrarem publicados, porém, dir-
estende-se por 568 páginas mas não é -se-ia que os restantes 30 não perdem
só por isso que merece o qualificativo o cunho de novidade. Bem sabemos,
de “imenso”: merece-o sobretudo por- desde logo, que são cada vez em menor
que nele subsistem os atributos a que o número aqueles que conseguem seguir
estudioso e ensaísta nos habituou desde tudo o que vem a lume em cada uma
sempre. Por vezes, é preciso parar no destas três áreas de estudo. Ou porque
final de uma página ou de um parágrafo a ultra-especialização foi dispensando
para entender, assimilar e iniciar o diá- o dever de abrangência ou porque o
logo com o que se leu. campo dos estudos literários se foi
Os bons autores de Humanidades deslaçando, a ponto de negligenciar
são sempre leitores perseverantes e a memória das referências, mesmo
transversais. Para além disso, têm as mais seguras. Se até há poucos
por detrás uma grande biblioteca. Ler anos era impensável escrever sobre
o que escrevem constitui, por isso, Camões sem ter ao lado os livros do
garantia de um precioso benefício: Professor Aguiar e Silva (para além de
porque convocam muitos outros livros outros) tornou-se possível, mesmo em
(nunca lidos pelo leitor comum ou já ambiente académico, encontrarmos
lidos há muito tempo), estabelecem essas mesmas referências ignoradas
relações novas entre muitos deles e ou, em alternativa pouco consoladora,
sinalizam caminhos de surpresa pro- lidas de forma superficial e apressada.
dutiva. A simples consulta de um A Tábua de Procedência dos ensaios
índice onomástico provaria a verdade comprova uma colaboração particu-
do que acabo de afirmar. Estranha- larmente dispersa por um conjunto de
mente, porém, e contrariando o que é revistas e coletâneas nacionais e estran-
c o l h e i ta d e i n v e r n o . e n s a i o d e t e o r i a e c r í t i c a l i t e r á r i a s | 5 13

geiras. Mesmo contando com o facto de adoção pelas universidades portugue-


alguns desses trabalhos se encontrarem sas de um curriculum de educação geral,
disponíveis em repositórios abertos, a semelhante ao que existe na Universi-
verdade é que eles ganham outro sen- dade de Harvard.
tido quando são lidos em conjunto. É À semelhança do que acontecera
essa a feliz oportunidade de que agora no volume editado há uma década,
dispomos. também nesta obra não faltam textos
A Primeira Parte é, de longe a prospetivos. É o caso daquele que tem
mais extensa, ultrapassando mais de por título “O ressurgimento da estilís-
metade do volume. Na sua diver- tica. Novos horizontes para o ensino
sidade, encontramos preocupações do texto literário” ou o que é dedicado
transversais. Existem textos que tra- ao “cânone literário de língua portu-
tam de temas esperados (v.g. “a ideia guesa”, publicado pela primeira vez em
de literatura nacional” ou “Sobre 2018. Tanto um como outro, de resto,
alguns tropos subjacentes aos concei- requerem ecos que vão tardando.
tos de clássico e de classicismo”); mas A tónica que atravessa a maioria
encontramos também posicionamen- dos textos pode resumir-se talvez na
tos claros e rigorosos sobre assuntos preocupação com o estado em que se
que se encontram em fase de discussão encontram os estudos literários nas
(é o caso dos ensaios que versam sobre universidades portuguesas e ocidentais,
a desconstrução, o pós-estruturalismo em geral. Aguiar e Silva tinha já publi-
e o pós-colonialismo). O conjunto é cado aqueles que são, provavelmente,
aliás encerrado com um ensaio que, os estudos mais sólidos e fundamen-
sob o título “A Biblioteca da Uni- tados que até hoje vieram a lume em
versidade e a República das letras” português sobre a história institucional
(pp. 307-319), chama a atenção para da Filologia e dos estudos literários.
a importância central desses espaços Mas regressa ao assunto neste volume,
institucionalizados e dos acervos que ampliando os seus pontos de vista. É
neles se preservam para a militia litera- nomeadamente o que sucede no ensaio
rum. Tendo tido início na Europa dos intitulado “Primavera e Inverno na
humanistas, a defesa do poder eman- Filologia Românica” que reproduz
cipador do conhecimento exige uma uma das conferências celebrativas dos
atitude de resistência serena e lúcida 100 anos da Fundação da Faculdade de
contra todos aqueles que menorizam Letras de Coimbra. Falando da Filo-
o livro e tudo o que ele representa. logia e do papel central que lhe coube
Nesse mesmo ensaio, a defesa do valor desempenhar na vida daquela unidade
das bibliotecas e dos livros cruza-se orgânica, o autor refere, agora de
aliás com uma proposta que o autor forma ainda mais alargada, a criação e
vem fazendo de forma reiterada: a (re) o desenvolvimento da área das Letras
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em geral, no país e no mundo ocidental. como noutros, é especialmente intenso


Refere-se a alguns protagonistas que o diálogo que o ensaísta trava com os
bem conheceu mas fala também de si nomes fundadores do pensamento
próprio, que viveu por dentro algumas ocidental, desde Aristóteles, Platão e
das principais transformações que iden- Horácio; mas é igualmente precioso o
tifica e analisa. diálogo que se estabelece com nomes
Se fosse obrigatório destacar um mais próximos do nosso tempo como
ensaio daqueles que figuram nesta Pri- Erich Auerbach ou Claudio Guillén e,
meira Parte do volume, optaria por no plano nacional, com Vasco Graça
aquele que o autor intitula “A Poética Moura, Jorge de Sena ou António José
da Alegoria e o Barroco”. Nele se mis- Saraiva.
tura uma fina autobiografia intelectual No domínio dos estudos camonia-
(“Como eu lamento a ausência de Ben- nos, encontramos igualmente posições
jamim da minha tese de doutoramento”, de auto-revisão (“Para a revisão do
p. 212), um vasto conjunto de propostas conceito de Maneirismo”), de consoli-
de trabalho a realizar (v.g. “A orató- dação (“Luís Vaz de Camões: alegoria
ria de Vieira é um genial e, a meu ver, da ilha dos Amores”) ou de inovação
insuficientemente estudado exemplo da corajosa e consistente (“A dedicató-
capacidade pragmática, fática, perlo- ria de Os Lusíadas e a hermenêutica
cutiva, da alegoria barroca”, p. 244) e do poema”). No primeiro dos ensaios
uma profunda e desencantada reflexão referidos, Aguiar e Silva procede a
sobre o campo das Letras (“E não serão uma clarificação de um conceito ao
hoje as Faculdades de Letras alegorias qual tanto recorreu ao longo do seu
barrocas benjaminianas, como unida- percurso de investigador. Numa ati-
des inorgânicas da Universidade em tude bem menos disruptiva do que
ruína...”, idem) aquela que, há 50 anos, lhe serviu de
Através dos textos de Aguiar e Silva suporte à categorização da poesia
podemos contactar com um pensa- portuguesa dos séculos XVI e XVII,
mento rigoroso, onde se encontram defende agora que o Renascimento
conjugadas fundamentação e pessoali- deve ser entendido como um “mega-
dade. Mas o benefício que resulta do -período”, no seio do qual se desen-
contacto com eles é bem mais alargado. volvem outros períodos de amplitude
Através da sua escrita, lemos e medita- menor, em regime de tensão: é esse
mos também sobre muitos outros auto- o lugar que agora reivindica para o
res: todos aqueles, e são muitos, com Maneirismo, que deixa de ser visto não
quem ele trava um debate qualificado. como uma reação ao Renascimento
Podem ser “autoridades” que, à par- mas como uma das suas derivas.
tida, nos podiam parecer acantonadas Já no último dos ensaios citados, o
em posições cristalizadas. Neste livro, grande camonista que Aguiar e Silva
d e p r e s são e p s i c ot e r a p i a e m a n tó n i o lo b o a n t u n e s … | 5 15

continua a ser abre caminho nem mais DEPRESSÃO E PSICOTERAPIA EM


nem menos a um novo campo de lei- ANTÓNIO LOBO ANTUNES: QUALQUER
tura da epopeia camoniana, chamando COISA QUE ME AJUDE A EXISTIR.
a atenção para o papel central que nela ANDRÉ CORRÊA DE SÁ
ocupam treze estâncias do poema (I, Alfragide: Texto Editores, 2019
5-18). eBook. ISBN 9789896607418
Pode passar despercebido o facto
de a maior parte dos ensaios incluídos A simbiose entre a voz empática de
nesta coletânea ser dedicada a vários André Corrêa de Sá e as vozes deprimi-
dos colegas e discípulos com quem das de António Lobo Antunes oferece
se foi cruzando ao longo da sua vida um caminho interpretativo onde teoria
académica: em Coimbra, em Braga literária e semiologia médico-terapêu-
mas também noutras universidades tica se entrelaçam de forma original
do país. Não se trata, porém, de uma para garantir um olhar profundo sobre
mera casualidade. No critério com a obra de um escritor incontornável.
que surgem essas dedicatórias reve- Depressão e Psicoterapia alarga o mapa
lam um diálogo de apreço intelectual de perguntas em torno dos romances
e humano, que o Professor e investi- antunianos, impondo-se como uma
gador foi mantendo ao longo de todo chave de leitura certeira com um triplo
um percurso, em registo de fecundo objetivo: iluminar a angústia e a cruel-
magistério. dade típicas das personagens de Lobo
Por fim, se pensarmos que entre a Antunes, projetar a obra do escritor
coletânea publicada em 2010 e aquela para fora da realidade portuguesa e
que agora surge Vítor Aguiar e Silva comentar sobre uma das doenças mais
coordenou ainda o monumental Dicio- debilitantes do mundo contemporâneo.
nário de Luís de Camões (que inclui O valioso contributo deste estudo con-
dezena e meia de verbetes da sua auto- siste em ver na obra de Lobo Antunes
ria) não podemos deixar de render não apenas repetições de pensamentos e
homenagem a uma ética do trabalho comportamentos depressivos, mas tam-
universitário que nunca soçobrou, tra- bém ressonâncias redentoras, curativas
duzindo-se em relevantíssimos serviços e, mesmo, felizes. André Corrêa de Sá,
prestados à causa das Humanidades por docente na Universidade da Califórnia
este professor e investigador que, com Santa Barbara, convida a ler a perfor-
suma justiça, foi recentemente galar- mance do passado realizada nos roman-
doado com o Prémio Camões. ces, procurando nas virtuosidades
linguísticas do escritor a possibilidade
José Augusto Cardoso Bernardes de futuro. E, nesse teatro de transfor-
https://orcid.org/0000-0002-8019-2465 mação interior encenado à luz do que se
https://doi.org/10.14195/2183-847X_11_24 tem entendido como narrative medicine,

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