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Violência escolar e o fenômeno 'bullying'.

A responsabilidade social diante


do comportamento agressivo entre estudantes

por Janaína Rosa Guimarães

Tem-se por princípios norteadores do caráter e formação do ser humano


àqueles conhecidos e esculpidos em sua personalidade desde tenra idade.
Para isto, família e escola são pilares fundamentais de sustentação de valores
aptos a basear conceitos morais e sociais que seguirão por toda uma vida.

Para que se preserve a harmonia de uma vida em sociedade, importante uma


noção clara de princípios morais e sociais basilares. Em linhas gerais, a
educação de uma criança, sobretudo à noção de respeito ao próximo, é tarefa
dos pais. Quem pariu Mateus, que o embale! Contudo, no papel de fortalecer
conceitos de civilidade e convivência social, estão, secundariamente, as
cadeiras escolares.

Neste cenário, temerário quando cabe ao Judiciário, como força estatal, intervir
na tentativa de resgatar conceitos básicos de vida em sociedade, acendendo
um sinal de alerta a todos nós quanto à necessidade de se resgatar princípios
básicos não só do direito, mas da condição humana.

Em decisão inédita proferida pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal, os


desembargadores, por unanimidade, condenaram uma instituição de ensino a
indenizar moralmente uma criança pelos abalos psicológicos decorrentes de
violência escolar praticada por outros alunos, tendo em vista a ofensa ao
princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Não obstante outras decisões envolvendo violência escolar, têm-se como


decisão pioneira eis que relatou abertamente um fenômeno estudado por
médicos e educadores em todo mundo - o bullying.

Da decisão, extraímos a ementa:

ABALOS PSICOLÓGICOS DECORRENTES DE VIOLÊNCIA ESCOLAR


- BULLYING - OFENSA AO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA.
(...) Na espécie, restou demonstrado nos autos que o recorrente sofreu
agressões físicas e verbais de alguns colegas de turma que iam muito
além de pequenos atritos entre crianças daquela idade, no interior do
estabelecimento réu, durante todo o ano letivo de 2005. É certo que tais
agressões, por si só, configuram dano moral cuja responsabilidade de
indenização seria do Colégio em razão de sua responsabilidade
objetiva. Com efeito, o Colégio réu tomou algumas medidas na tentativa
de contornar a situação, contudo, tais providências foram inócuas para
solucionar o problema, tendo em vista que as agressões se
perpetuaram pelo ano letivo. Talvez porque o estabelecimento de ensino
apelado não atentou para o papel da escola como instrumento de
inclusão social, sobretudo no caso de crianças tidas como “diferentes”.
Nesse ponto, vale registrar que o ingresso no mundo adulto requer a
apropriação de conhecimentos socialmente produzidos. A interiorização
de tais conhecimentos e experiências vividas se processa, primeiro, no
interior da família e do grupo em que este indivíduo se insere, e, depois,
em instituições como a escola. No dizer de Helder Baruffi, “Neste
processo de socialização ou de inserção do indivíduo na sociedade, a
educação tem papel estratégico, principalmente na construção da
cidadania.” (TJ-DFT - Ap. Civ. 2006.03.1.008331-2 - Rel. Des. Waldir
Leôncio Júnior - Julg. em 7-8-2008)

O termo bullying

Ainda pouco estudado no Brasil e quase totalmente desconhecido pela


comunidade jurídica, o fenômeno bullying começa a ganhar espaço nos
estudos desenvolvidos por pedagogos e psicólogos ligados às instituições de
ensino, ganhando destaque em meados da década de 90.

Brincadeiras de mau gosto, gozações, rixas e brigas escolares sempre


existiram. Entretanto, para tudo, existem limites. Ações e comportamentos
excessivos de crianças e adolescentes no ambiente escolar, ainda ignorados
ou tratados como “normais” por pais e professores, tornou-se um grande
problema do século XXI.

O bullying, palavra derivada do verbo inglês bully (termo utilizado para designar
pessoa cruel, intimidadora, muitas vezes agressiva) significa usar a
superioridade física ou moral para intimidar alguém. O termo, adotado em
vários países, vem definir todo tipo de comportamento agressivo, intencional e
repetido inerente às relações interpessoais. Ofender, zoar, gozar, encarnar,
sacanear, humilhar, discriminar, excluir, isolar, ignorar, intimidar, perseguir,
assediar, aterrorizar, amedrontar, tiranizar, dominar, bater, chutar, empurrar,
ferir, roubar e quebrar pertences são comportamentos típicos do fenômeno.

Em um primeiro momento, podem parecer comportamentos agressivos que


ocorrem nas escolas e que são tradicionalmente admitidos como naturais. Para
alguns, atitudes inerentes ao “amadurecimento” de crianças e adolescentes;
para outros, ações de profundo desrespeito ao próximo e que carecem de
análise.

Não obstante o estrangeirismo, a adoção universal do termo bullying se deu em


razão da dificuldade em traduzi-lo para diversas línguas. Durante a realização
da Conferência Internacional Online School Bullying and Violence, ocorrida em
2005, ficou caracterizado que o amplo conceito dado à palavra dificulta a
identificação de um termo nativo correspondente em países como Alemanha,
França, Espalha, Portugal, Brasil, e muitos outros.

A responsabilidade da escola

O bullying é um problema mundial, sendo encontrado em toda e qualquer


escola, não estando restrito a nenhum tipo específico de instituição: primária ou
secundária, pública ou privada. As escolas que não admitem a ocorrência do
fenômeno entre seus alunos, ou desconhecem o problema ou se negam a
enfrentá-lo.

A escola é o primeiro contato da criança com o âmbito público, sendo um


espaço plural por natureza. Justificando-se na agitação da vida moderna, onde
as famílias têm um, no máximo dois filhos, sendo deixados em creches e
escolas cada vez mais cedo, os pais, indiretamente, transferem a
responsabilidade pela educação dos filhos às escolas.

É neste ambiente que crianças e adolescentes entram em contato com um


conjunto de valores diferentes daqueles de sua família. É aqui que, via de
regra, deverão aprender a viver em sociedade, tendo noções do coletivo, da
convivência harmônica e democrática.

Na decisão proferida pelo TJ-DFT, nos termos do art. 14 do Código de Defesa


do Consumidor, a responsabilidade civil das escolas por defeito na prestação
de serviço é objetiva.

Nestes termos, importante considerar que a entidade de ensino é investida no


dever de guarda e preservação da integridade física e psicológica do aluno,
com a obrigação de empregar a mais diligente vigilância, objetivando prevenir e
evitar qualquer ofensa ou dano decorrente do convívio escolar.

Para o relator, as agressões físicas e verbais de alguns alunos foram muito


além de pequenos atritos entre crianças. Assim, considerando que o
estabelecimento de ensino não atentou para o papel da escola como
instrumento de inclusão social, a condenação foi de rigor.

Sobre a responsabilidade da escola, destacamos outro julgado, agora do


Tribunal de Justiça de São Paulo:

RESPONSABILIDADE DO ESTADO. O Município é responsável por


danos sofridos por aluno, decorrentes de mau comportamento de outro
aluno, durante o período de aulas de escola municipal. O descaso com
que atendido o autor quando procurou receber tratamento para sua filha
se constitui em dano moral que deve ser indenizado. (TJ-SP – Ap.
7109185000 – Rel. Des. Barreto Fonseca – Julg. em 11-8-2008)

A responsabilidade dos pais

Nesse ponto, vale registrar que o ingresso no mundo adulto requer a


apropriação de conhecimentos socialmente produzidos. Para tanto, sabe-se
que a natureza humana não é espontaneamente generosa, respeitosa e
solidária. Virtudes como essas devem ser rotineiramente aprendidas e
exercitadas.

A interiorização de tais conhecimentos e experiências vividas se processa, em


primeiro lugar, no interior da família e do grupo em que este indivíduo se
insere. Neste sentido, cabe aos pais e responsáveis zelar pela condução de
princípios básicos, eis que, neste processo de socialização ou de inserção do
indivíduo na sociedade, a educação tem papel estratégico, principalmente na
construção da cidadania.

É no seio familiar que são construídos os primeiros conceitos de moralidade,


civilismo e ética. Neste sentido, compete aos pais a responsabilidade pelos
abusos e atitudes violentas praticadas pelos seus filhos.

O comportamento agressivo vem ganhando mais força com a internet. O


cyberbullying – a versão on-line da prática – tem potencial para fazer ainda
mais vítimas que o bullying tradicional. A versão virtual do fenômeno, através
de e-mails, páginas na web, sites de relacionamento, programas de bate-papo,
mensagens via celular, favorecidos na maioria das vezes pela facilidade do
anonimato, vem tomando proporções geométricas.

Também em decisão de vanguarda na Justiça brasileira, o Tribunal de Justiça


de Rondônia condenou os pais de um grupo de alunos que, utilizando de um
ambiente virtual, agrediram moralmente um professor.

Vê-se, pois, que o comportamento agressivo de crianças e adolescentes não


estão limitados apenas aos colegas. Infelizmente, o desrespeito e humilhação
vêm atingindo os próprios educadores.

Assim se destaca da ementa:

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - COMUNIDADE VIRTUAL DO ORKUT -


MENSAGENS DEPRECIATIVAS A PROFESSOR -
RESPONSABILIDADE DOS PAIS. Os danos morais causados por
divulgação, em comunidade virtual – orkut – de mensagens
depreciativas, denegrindo a imagem de professor – identificado por
nome –, mediante linguagem chula e de baixo calão, e com ameaças de
depredação a seu patrimônio, devem ser ressarcidos. Incumbe aos pais,
por dever legal de vigilância, a responsabilidade pelos ilícitos cometidos
por filhos incapazes sob sua guarda. (TJ-RO – Acórdão COAD 126721 -
Ap. Civ. 100.007.2006.011349-2 – Rel. Convocado Juiz Edenir
Sebastião Albuquerque da Rosa – Public. em 19-9-2008)

Em seu voto, o relator fez as seguintes considerações:

“A meu ver, tais condutas ultrapassam, em muito, o que pode ser


considerado brincadeira, pois não é a pretexto de brincadeira que se
justifica ofender a honra alheia ou se ameaça depredar o patrimônio
alheio. Caso não saibam os apelantes, a brincadeira, quando ocorre,
tem o consentimento e a empatia das partes envolvidas, e não foi assim
que os fatos se deram. Quanto à função punitiva da reparação, esta se
dirige diretamente aos pais, que têm o dever de vigilância e educação,
de forma que o cumprimento de medida socioeducativa pelos filhos não
tem o condão de, por si só, afastá-la. Saliento que o dever de vigilância
é uma incumbência legal dos pais, enquanto responsáveis pelos filhos.
Trata-se de um dever legal objetivo do qual não pode o responsável se
escusar, ao argumento de ser impossível a vigilância do filho por vinte e
quatro horas ao dia. Noutras palavras, o argumento trazido pelos
apelantes é por demais frágil e não afasta os consectários do
descumprimento do dever legal. Quanto à repercussão dos comentários
lesivos, é fato notório que as comunidades virtuais do orkut têm ampla
divulgação aos cadastrados via internet, não sendo crível que os dados
ali postados tenham-se restringido aos vinte e nove membros
participantes do grupo. Portanto, não há como afastar a
responsabilidade dos apelantes, sendo devida a reparação pelos danos
deflagrados.”

As consequências no ambiente escolar e na sociedade

Ao aprofundarmos nossa reflexão, veremos claramente que o bullying,


fenômeno cruel e silencioso, não traz somente consequências negativas para o
ambiente escolar.

Para o Promotor de Justiça de Minas Gerais Lélio Braga Calhau, o fenômeno


estimula a delinquência, induzindo a outras formas de violência explicita aptas
a produzir, em larga escala, “cidadãos estressados, deprimidos e com baixa
auto-estima, capacidade de auto-afirmação e de auto-expressão, além de
propiciar o desenvolvimento de sintomatologias de estresse, de doenças
psicossomáticas, de transtornos mentais e de psicopatologias graves”.

Neste contexto, válido relembrar o caso do adolescente sul-coreano Cho


Seung-Hui responsável pelo massacre em uma Universidade Estadual da
Virgínia, nos Estados Unidos da América, em abril de 2007. Vítima de bullying
pelos colegas de turma, o estudante invadiu a universidade matando 32
pessoas, deixando mais de 15 feridas e, em seguida, suicidando-se.

As estatísticas vindas dos estudos realizados por pediatras, pedagogos e


psicólogos mostram números cada vez mais preocupantes de tal prática em
nossas instituições de ensino.

Não obstante a iniciativa de alguns Estados e municípios em adotar uma


política para adoção de um programa de combate ao bullying, não existe uma
legislação específica tratando do tema, cabendo ao Judiciário aplicar as regras
e sanções previstas na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do
Adolescente, no Código Penal, por exemplo.

Após um caso ocorrido com um estudante na Paraíba, a Câmara Municipal de


João Pessoa aprovou projeto, dando origem à Lei municipal 11.381/08 que
dispõe sobre o combate ao fenômeno.

Recentemente, o Governador do Estado de Santa Catarina sancionou a Lei


estadual 14.651/09 para instituição do programa de combate ao bullying, de
ação interdisciplinar e de participação comunitária nas escolas públicas e
privadas do Estado.
Em Estados como São Paulo e Rio de Janeiro, a iniciativa ainda está sendo
analisada pelo Poder Legislativo, através dos respectivos projetos de lei 350/07
e 683/07.

Na lição do educador Içami Tiba, “o enfrentamento do bullying, além de ser


uma medida disciplinar, também é um gesto cidadão tremendamente
educativo, pois prepara os alunos para a aceitação, o respeito e a convivência
com as diferenças”.

Destarte, é tempo de reflexão de toda a sociedade, em especial pais,


professores, pedagogos, psicólogos e, agora, juristas. O bullying não pode ser
entendido como mero banalizador para o nível de tolerância da sociedade com
relação à violência. Infelizmente, enquanto a sociedade não estiver preparada
para lidar com o bullying, serão mínimas as chances de reduzir as outras
formas de comportamentos agressivos e destrutivos.

Reduzir a prevalência de bullying nas escolas pode ser uma medida de saúde
pública altamente efetiva para o século XXI. A sua prevalência e gravidade
compelem os pesquisadores a investigar os riscos e os fatores de proteção,
associados com a iniciação, manutenção e interrupção desse tipo de
comportamento agressivo. Os conhecimentos adquiridos com os estudos
devem ser utilizados como fundamentação para orientar e direcionar a
formulação de políticas públicas e para delinear as técnicas multidisciplinares
de intervenção que possam reduzir esse problema de forma eficaz.

Para o tema, não há que se discutir aqui a quem compete à responsabilidade


na educação de crianças e adolescentes. Diante do desrespeito flagrante e a
ausência de noções básicas de civilidade, todos devem “ficar de castigo”, pais
e professores.

Em um país como o Brasil, onde o incentivo à melhoria da educação de seu


povo se tornou um instrumento socializador e de desenvolvimento, onde
grande parte das políticas sociais é voltada para a inclusão escolar, as escolas
passaram a ser espaço próprio e mais adequado para a construção coletiva e
permanente das condições favoráveis para o pleno exercício da cidadania.

Revista Jus Vigilantibus, Sexta-feira, 24 de julho de 2009

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