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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

RODRIGO GRATACÓS BRUM

O LEITOR DE FILOSOFIA:

leituras sobre o discurso amoroso e a filosofia em Barthes, Platão e Derrida

Rio de Janeiro

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2013

Rodrigo Gratacós Brum

O LEITOR DE FILOSOFIA: leituras sobre o discurso amoroso e a


filosofia em Barthes, Platão e Derrida

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Filosofia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Filosofia

Orientador: Rafael Haddock-Lobo

Rio de Janeiro

2013
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Resumo

Esta pesquisa é parte de uma investigação sobre a formação do leitor em filosofia. Aqui, o
leitor concentra-se em explorar a aparição do discurso amoroso em alguns textos filosóficos, a saber,
O Banquete, de Platão e O Cartão-postal, de Jacques Derrida. Para tanto, partimos do célebre estudo
de Roland Barthes sobre o tema, publicado em Fragmentos de um discurso amoroso e presente nos
dois anos de curso que antecederam ao livro.

Palavras-chave: Platão; Barthes, Derrida, Leitor

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Sumário

1. INTRODUÇÃO................................................................................................................6
2. PRIMEIRO CAPÍTULO: Fragmentos de um discurso amoroso....................................15
3. SEGUNDO CAPÍTULO: O Banquete............................................................................33
4. TERCEIRO CAPÍTULO: O Cartão-postal.....................................................................49
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................................60
6. BIBLIOGRAFIA............................................................................................................61

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Introdução

Releio esta introdução mais uma vez (depois de muitas) e começo novamente a
reescrever o texto. Percebo que ainda não está claro, mas faço isso de um jeito esquizofrênico,
tentando me colocar no lugar de um leitor qualquer – um leitor que não fosse eu mesmo. E
então reescrevo: aqui, a questão diz respeito ao que se passa entre um leitor e um amante,
onde isso que se passa entre se dá porque ambos, leitor e amante, apesar de estarem sozinhos,
trazem um texto de filosofia nas mãos. Eles leem filosofia, e embora estejam solitários,
alguma coisa se passa entre os dois. É uma imagem improvável, eu sei, até mesmo
pretensiosa, talvez por uma certa vagueza de linguagem que vai enfim embaralhar os termos:
o amante que lê, o leitor que se enamora do texto, um amante dos livros ou um leitor amador,
como convier. Ora, essa loucura não é desrespeitosa. É por respeito ao leitor que eu insisto
nesse jogo. E é por amor a ele que eu releio esta introdução, mais uma vez, depois de muitas,
e saio modificando, aqui e ali, agora mesmo, tudo aquilo que julgo faltar ou sobrar no
parágrafo, na frase, até mesmo na letra (um acento, uma adequação), e quando faço isso é
porque tenho o leitor em mente (talvez não exatamente qualquer leitor, mas um leitor de
filosofia). Tenho por este leitor um desejo de legibilidade, quero que ele se identifique com o
texto, e é por isso que persigo a clareza da frase, da sintaxe, e também alguma poesia, se
houver. É por ele que busco (ou que eu fantasio buscar) a alternativa mais clara, nem vazia
nem excessivamente codificada, aquela que lhe dará prazer na leitura (pela familiaridade, pela
complacência do texto com a cultura daquele que lê). A esse leitor de filosofia, para quem
escrevo, para quem tenho alguma coisa a contar disso que se passa entre um leitor e um
amante, a ele tenho uma pergunta. Gostaria mesmo que ela ressoasse, insistentemente,
secretamente, ao longo de toda a leitura da dissertação. Trata-se de uma pergunta obsessiva,
que sempre me retorna quando estou diante de um texto de filosofia. É um pressentimento
teimoso, um fantasma, digamos assim, que reaparece com alguma frequência e que
interrompe a fluidez da leitura, suspendendo os sentidos do texto. Há muito tempo, acho que
desde antes da graduação, eu me pergunto sobre como ler filosofia. Às vezes no meio do texto
(às vezes no início) o sentido me escapa quase que completamente (por ignorância minha? do
texto? um texto pode ser ignorante?), e nessas horas, embora eu continue lendo (eu costumo
insistir com os textos, mesmo em condições adversas), nesse primeiro momento é como se o

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texto se fechasse, se codificasse contra mim, e nessas horas não me resta mais nada a não ser
perguntar como ler. Fico pensando num nome para explicar a sensação (os mineiros diriam
tocaia: a armadilha, a emboscada, o bote, mas também o lugar onde se espera a presa): sou
posto em cheque pelo texto, ele me põe em situação de perda, as presas fogem, ariscas, o
sentido se esvai, e não me resta outra alternativa a não ser permanecer à espera, à espreita, em
busca de algum sentido que eu possa comer. Nessas horas, entocado, a leitura em suspenso,
vem a pergunta: como ler, como ler um texto de filosofia? É verdade que não acontece
sempre, nem se trata de uma questão totalmente paralisante, mas acontece, e com alguma
frequência, frequência suficiente para me obrigar a assumir a questão numa dissertação de
mestrado. E se ainda não sei como responder a essa pergunta, como ler filosofia, se ainda não
sei como ler, posso ao menos tentar localizar, para melhor explicar ao leitor (ao outro, a mim
mesmo), as circunstâncias em que essa pergunta me aparece; quero dizer, posso tentar
relacioná-la a um certo acontecimento de leitura, para tentar identificar aquilo que, no texto,
me coloca em estado de perda, me fazendo suspender a sensação (às vezes necessária) de que
se pode simplesmente ler filosofia. Ora, esse acontecimento varia, ele é mesmo da ordem do
imprevisível, seria a cada vez um outro, mas se não é sempre que hesito, se não é sempre que
estou em dívida com o sentido do texto, é porque às vezes, simplesmente, acontece de o leitor
estar confortável em sua tarefa. E quando acontece assim, de a leitura correr sem maiores
hesitações, é porque ela é prazerosa, é porque há prazer e contentamento com aquilo que está
escrito (a palavra do texto vem me acariciar os olhos, os ouvidos, a boca). Nessas horas, eu
costumo repetir esses trechos comigo, em voz baixa, em voz alta, em silêncio, várias vezes.
Trata-se de uma prática tranquila de leitura: não me assusta, ao contrário, me apraz, me
confirma. Se tenho prazer com um texto, não me pergunto sobre como ler. A pergunta vem,
quero dizer, ela aparece, ela desata, justamente ali onde já não é mais possível, ou não é ainda,
ter prazer com o texto – ao que faço sem medo essa ressalva: é assim e sobretudo com os
textos de filosofia. Quase sempre (e principalmente nas primeiras leituras) o texto filosófico te
coloca em estado de perda, recua diante do seu poder de leitura, e esse é o momento em que o
leitor se vê lançado numa zona de suspensão dos sentidos, é o fatídico momento em que um
longo período de desconforto é anunciado, acredite em mim: às vezes é enfadonho, até
mesmo tedioso (não consigo encontrar palavra melhor, tocaia: a armadilha e também o
período de espera). E nessas horas a sensação de prazer, se houver, seguirá adiada, sem
promessas de retorno (porque o prazer que nos ligava ao texto ou que nos foi prometido por
ele está abalado por uma crise de linguagem). Roland Barthes, escritor francês, diferenciou

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bem os textos que provocam esses diferentes estados de leitura. Chamou-os de texto de prazer
(aquele que confirma a minha cultura) e texto de fruição (aquele que me coloca em estado de
perda). Obviamente não são categorias excludentes1. Se o leitor de prazer tiver um texto de
fruição em mãos, ou vice-versa, prazer e fruição podem conjugar-se. São, acredito, os
melhores textos: o máximo de prazer aliado ao máximo de fruição (Grande Sertão: Veredas
seria um bom exemplo, mas também As Ondas, de Virginia Woolf). E se é verdade que a
filosofia vai sempre exigir do leitor uma relação de fruição, isso não exclui o fato de que esse
mesmo texto filosófico pode, aqui e ali, talvez até com bastante insistência, oferecer ao leitor
momentos de prazer.

•••

Os três ensaios reunidos aqui, nesta dissertação de mestrado, compõem – junto aos
anexos que marcam o percurso e o inacabamento do texto – a trajetória dos estudos que
empreendi desde que me vi lançado a esta tarefa: escrever uma dissertação de mestrado em
filosofia. O tema da pesquisa, no entanto, é incerto. Ora se concentra na questão do amante
(do discurso amoroso2) na cena filosófica, ora se evidencia na figura do leitor em seu processo
de formação como estudante em filosofia. Esses caminhos, os caminhos do leitor (na leitura
do livro, na escritura da dissertação...) e os caminhos do amante (o discurso amoroso
propriamente dito, o discurso amoroso no texto filosófico), se transpõem ao longo do texto,
continuamente. É o leitor quem pergunta sobre o discurso amoroso no texto filosófico e é o
amante (ou ainda, o amador) quem especula sobre como ler filosofia. Ao que nunca é demais
acrescentar: essas transposições entre leitor e amante jamais devem ser lidas segundo uma
dialética, um jogo de forças, uma luta. Nenhuma batalha pode ser travada entre leitor e
amante, já que ambos, por definição, permanecem sozinhos: o leitor, como sabemos, está
mergulhado no livro, e o amante, desde que o analisemos, está perdido num imaginário.

•••

1
“Ora, é um sujeito anacrônico aquele que mantém os dois textos em seu campo, e em sua mão as rédeas do
prazer e da fruição, pois participa ao mesmo tempo e contraditoriamente do hedonismo profundo de toda cultura
(que entra nele pacificamente sob a cobertura de uma arte de viver de que fazem parte os livros antigos) e da
destruição dessa cultura: ele frui da consciência de seu ego (é seu prazer) e procura sua perda (é a sua fruição). É
um sujeito duas vezes clivado, duas vezes perverso.” BARTHES P.21 o prazer do texto
2
Ao texto, o corpo do amante é o discurso amoroso.
7
Seria preciso, pois, uma filosofia (trata-se mesmo de um momento oportuno: uma
dissertação de mestrado na área) que articulasse essas trajetórias, leitor e amante, para nomeá-
las, para compreendê-las (ou não) em seu discurso, para dar-lhes voz, para afirmá-las, ou, ao
contrário, para intrigá-las na linguagem, seja sob a alegação de uma lógica ou de um princípio
de não-contradição... E, no entanto, é meu dever alertar, a figura do filósofo, embora
desejássemos3 o contrário, ainda não chegou. Ela não aparece senão nos livros que o leitor
traz com ele ou nessa espera do amante, que aqui se distrai estudando filosofia. Sem o
filósofo, portanto, não será possível tomar os caminhos “de cima”, encontrar o atalho (real,
simbólico ou imaginário) para a montanha que nos permitirá, enfim, fazer uma cartografia
geral, um desenho mais preciso da questão, um “mapa”, digamos assim, dessas relações entre
discurso amoroso e discurso filosófico. Se é verdade que não se trata exatamente de um
problema, já que a filosofia chega sempre tarde demais4 (immer zu spät), isso não nos deve
servir de pretexto para que a pesquisa não seja levada adiante. Fico pensando se não seria até
mesmo desejável que se esperasse um filósofo lendo – amorosamente – a filosofia. No lugar
do filósofo, portanto, que ainda não chegou, teremos um leitor amador. Ou dois, se quiserem,
já que leitor e amante podem ser tomados separadamente, desde que solitários. Nosso ponto
de partida imaginário (lugar de onde o leitor amador parte em sua aventura): a leitura de
Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes. É ela que vai suscitar no leitor de
prazer o desejo de pesquisa (desejo de fruir com os textos). Ou ainda: Fragmentos nos
suscitará a questão a ser investigada, a saber, o completo abandono da fala do amante em
meio às linguagens existentes. Segundo Barthes, ao menos desde a modernidade, o
sentimental estaria fora de cena em nome do sexual, este sim reconhecido em meio aos
discursos autorizados. Nos seminários que deram origem ao livro (e que foram publicados
recentemente na França), Barthes evocava com freqüência a Psicanálise, afirmando que ao
menos ela havia conferido um lugar ao discurso amoroso em sua topologia conceitual (no
caso, o registro do Imaginário). Mas e a filosofia? Quero dizer: não haveria nenhum filósofo
dado lugar ao amor em primeira pessoa? Onde haveria discurso amoroso, ou mesmo discurso
sobre o discurso amoroso, no texto filosófico? Para tentarmos responder a essa questão
poderíamos percorrer, em busca desses vestígios, a tradição filosófica sempre que fala do
amor: Platão, Lucrécio, Santo Agostinho, Pedro Abelardo, Leão Hebreu, Montaigne... mas a
lista não terminaria mais, ou melhor, ela se complicaria, ela não se pagaria nunca... Em outras
3
O texto da introdução irá alternar as primeiras pessoas (no singular e no plural). O amante, que é sempre um eu,
e o leitor, ou a verdade para o leitor, que é sempre uma multidão.
4
E pensamos aqui não apenas em Hegel, mas também em Deleuze-Guatarri: Cf. DELEUZE, O que é a filosofia,
São Paulo: Editora 34, 1997, p.9
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palavras, quem saberia precisar, ao longo de dois anos (que é a duração média de um curso de
mestrado), onde a linguagem filosófica é contaminada pelo discurso amoroso, sendo o seu
objeto de pesquisa uma tradição que, além de trazer o amor marcado no radical do próprio
nome (filosofia, amor ao saber), é ainda vasta, tem os limites incertos, e dificilmente pode ser
tomada como um todo sem que aquele que o faça não incorra numa ingenuidade? Ainda
assim, podemos sempre traçar caminhos possíveis, sem a ambição de fechar um mapa. No
lugar de circunscrever a questão ao escopo (vasto e incerto) da tradição filosófica, optamos
por restringir nossos objetos de leitura a apenas três livros, dos quais só dois, apesar da
diversidade de discursos que eles individualmente comportam, estão diretamente
comprometidos com o discurso filosófico5. São eles O Banquete, de Platão, e O Cartão-
Postal, de Jacques Derrida. A escolha desses dois livros, cabe ressaltar, não se deu de maneira
arbitrária. Ambos trazem a marca de um discurso amoroso, embora cada um à sua maneira.
Para escrever essas leituras outros textos nos ocuparam, e por isso mesmo aproveito para
mencionar esses livros, citando-os nominalmente e conforme a ordem dos capítulos. Antes
disso, gostaria de anotar a minha dívida profunda com um curso a que tive o privilégio de
assistir, ainda como estudante de graduação na Universidade de Coimbra, em Portugal, sobre
o livro Le Phénomene Érotique, de Jean-Luc Marion. O curso foi ministrado pelo professor
doutor Mário Avelino Santiago de Carvalho, especialista em Santo Agostinho e leitor voraz,
que acabou por fazer do livro de Marion um passaporte para tantas outras leituras, das quais
cito, sobretudo, O Amor e o Ocidente, de Denis de Rougemont, A Estrela da Redenção, de
Franz Rosenzweig, e o interessante A Biologia das Paixões, de Jean Didier Vincent.

SOBRE AS LEITURAS EM CADA CAPÍTULO

Para a escrita do primeiro capítulo, sobre o Fragmentos de um discurso amoroso, de


Roland Barthes, tomamos como ponto de partida não só o livro, mas também os seminários
que o precederam, ministrados por Barthes na École Pratique des Hautes Études, entre os anos
de 1974 e 1976. Estes seminários foram publicados recentemente na França, pela Seuil, sob o

5
O caso de Fragmentos de um discurso amoroso é incerto. Alguns críticos chegaram a classificar o livro como
romance, outros reduzem seu gênero, por uma espécie de coerência com a obra do autor, ao catálogo dos textos
em semiologia, ou ainda, em teoria literária. Mas não concordamos com nenhuma dessas classificações e
preferimos problematizar o seu gênero enquanto neutro ou complexo.O livro de Barthes é, ao mesmo tempo, a
coleção de “um discurso amoroso” e uma denúncia de sua deriva teórica.
9
título de Les Discours Amoureux e permanecem ainda sem tradução para o português. Além
destes, foram também decisivas as leituras do seminário de Éric Marty sobre o Fragmentos,
publicado em Roland Barthes: o ofício de escrever, e os comentários de Leyla Perrone-
Moisés sobre o livro, encontrados ao longo de seus tantos escritos dedicados à obra
barthesiana. Cito ainda a biografia escrita por Louis-Jean Calvet e uma coletânea de ensaios,
escritos para um colóquio sobre Barthes que ocorreu na Faculdade de Letras de Lisboa em
1983 e intitulado Leituras de Roland Barthes.
Para o segundo capítulo, sobre O Banquete, de Platão, as leituras de Robin (La
théorie platonicienne de l’amour), José Américo Motta Pessanha (Platão: as várias faces do
amor), Michel Foucault (História da Sexualidade: o uso dos prazeres) e Jacques Lacan (no
seminário sobre A Transferência) ajudaram significativamente a elaborarmos a nossa própria
compreensão do diálogo platônico. Como o capítulo se concentra na entrada da personagem
de Alcibíades no simpósio, ressaltamos ainda as leituras de Tucídides (A Guerra do
Peloponeso), Plutarco (Vidas Paralelas), Jacqueline de Romilly (Alcibíades ou os perigos da
ambição) e Machado de Assis (Uma visita de Alcibíades), textos que nos ajudaram a pensar
um perfil mais autônomo (menos devedor da leitura de Platão) desta personagem histórica.
Finalmente, para escrevermos o terceiro capítulo, que é uma leitura dos Envios que
formam toda a primeira parte do Cartão-Postal, de Derrida, não nos debruçamos sobre
nenhum comentador, uma vez que a maior parte dos comentários ao livro se concentram na
segunda parte da obra, a partir das Advertências, que é quando Derrida passa a tratar mais
especificamente da psicanálise e da teoria freudiana. É sempre um risco fazer uma leitura
desamparada dessa grande associação de leitores que são os comentadores do texto. No
entanto, eu certamente estaria ainda mais perdido sobre como ler Derrida não fossem as aulas
que eu assisti, na PUC-Rio, ministradas pelo professor Paulo Cesar Duque-Estrada, e na
UFRJ, ministradas pelo meu orientador, professor Rafael Haddock-Lobo. Ambos me
ajudaram a melhor conviver com essa desorientação que a leitura de Derrida nos impõe.

•••

Uma vez declarada a minha dívida com esses livros (e com essas aulas), explicito
novamente as questões que me levaram até eles: Existe discurso amoroso no discurso
filosófico? Há alguma resistência (histórica, conceitual, ideológica ou inconsciente) da
filosofia com a fala do amante? E ainda, subvertendo o tema da dissertação em nome da boa e

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velha pergunta: como ler, como ler filosofia, como ler os textos em questão? Se essas últimas
perguntas refletem uma inquietação que tem poucas chances de ser respondida (a leitura vai
se sustentar ou não, e é bem provável que eu não tenha essa resposta, uma vez que ela deverá
chegar por você, só por você, se chegar), as primeiras, relativas ao discurso amoroso no
discurso filosófico, são bastante objetivas (trata-se de uma curiosidade até mesmo simplória):
se algum filósofo, alguma vez, escreveu num texto de filosofia o amor em primeira pessoa;
em suma, se ele fez uso do discurso amoroso. E, se não, quais seriam as justificativas para
uma tal recusa. Ora, nós sabemos que a filosofia é por demais sensível ao tema do amor,
motivo pelo qual tantos filósofos lhe dedicaram páginas – alguns até conferindo-lhe um lugar
privilegiado em sua arquitetura conceitual (como nos mostram os exemplos de Platão,
Agostinho, Kierkegaard, Rosenzweig e Lévinas). Mesmo que a recorrência do tema e a
importância do conceito, tal como aparecem nas histórias da filosofia, não fossem, por si só,
um indício suficiente dessa recorrência do amor no discurso filosófico, até os mais céticos
teriam que admitir que, desde o nome, é o amor (ou ao menos a amizade) que vai definir a
relação do filósofo com a sabedoria. Sendo assim, não é absurdo pensar que o discurso
filosófico possa trazer com ele, como herança e ainda que de modo esparso e assistemático, os
traços de um discurso amoroso, isto é, de uma linguagem primeira do amor, que tenha, por
sorte ou acaso, sobrevivido a essa obsessão do filósofo com o saber. Eu não sei se vocês
tocam comigo a questão (eu desejaria que sim, imediatamente, como num texto de prazer).
Mas se ainda não está claro, talvez eu possa contar uma última história.

UMA HISTÓRIA DO NOME

Segundo uma anedota que os professores de filosofia costumam contar (ainda que
fazendo muitas ressalvas à veracidade do que estão dizendo), a primeira pessoa a ter usado o
nome “filósofo” teria sido Pitágoras, e para tomar distância de um outro nome, o nome
“sábio” (sophós). Eis a cena: o rei saúda Pitágoras na corte chamando-o de Sábio, “Oh! Sábio
Pitágoras!”, e Pitágoras, constrangido, imediatamente corrige o nome (não como quem desfaz
um erro, mas como quem toma certa distância): não, eu não sou um sábio (um sophós), eu sou
um amante da sabedoria (um filósofo). Verídica ou não, essa história, se tomada como a
ilustração de um gesto, desse “dar um passo atrás”, mas que pode ser também um passo a

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frente (na medida em que não se nega, mas se assume um desejo), é, para nós, um dos mitos
de origem mais interessantes dessa imagem, a imagem do filósofo perante o saber que ele
persegue. Como sabemos, esse passo atrás de Pitágoras (ou à frente) se tornou para sempre
um descompasso: o filósofo não está, ao menos desde Sócrates, no terreno da sabedoria. E, no
entanto, ele está próximo, há uma certa zona de vizinhança, um pressentimento de verdade,
um enamoramento, entendam como quiserem. Em outras palavras, essa tomada de distância
do lugar do sábio, como fica claro na correção de Pitágoras ao rei, este eclipse na língua (do
“sábio” pelo “filósofo”) não se dá, embora as traduções dissimulem, por meio de uma
negação da sabedoria (isto é, como se ao nomear Pitágoras, o rei tivesse errado
completamente os lugares, trocado os termos). Ao corrigir sophós por philosophoi, Pitágoras
admite certa relação com o saber (o rei não estava de todo errado), mas se afasta (ou se
aproxima) desse lugar de sabedoria, afirmando-o marginalmente, a partir de outro termo:
philos, philia, amor, amizade, ou até mesmo, beijo.
Seja qual for a verdade por trás do nome, esta dissertação poderia ser lida como uma
reflexão desse recuo (para trás ou para frente – quem sabe para o alto) que a palavra amor
vem clivar na relação do filósofo com o saber. Este recuo poderá ser lido na própria figura do
leitor, do leitor como aquele que há muito tempo precede e atualiza o lugar do filósofo (ao
que nos cabe reforçar: um filósofo que não tenha sido um leitor, que não permaneça lendo, eis
uma incoerência). Em outras palavras, se Pitágoras recua ou avança diante do rei, não, não
sou um sábio, sou um amante da sabedoria, nós também recuamos para dizer que ainda não é
a hora de escrever o filósofo, mas antes dele, um leitor, um leitor de filosofia. E
acrescentaríamos, se nos fosse permitido perverter, ainda mais uma vez, se pudéssemos clivar
duplamente este sujeito, diríamos que esse leitor de filosofia é também um leitor de prazer,
um amante, ou melhor, um amador. Apesar dos perigos de dispersão que essa reserva (que
essa margem de manobra) oferece ao leitor de prazer, ele não está interessado em abandonar o
desejo de pesquisa (seja por um hedonismo de leitura, seja em nome de um desinteresse pelo
texto ali onde ele não proporciona – imediatamente – uma leitura de prazer...). Quero dizer,
ele segue lendo, ele escreve, ele relê, não só pelo prazer, mas também pela possibilidade de
fruição (de gozo). Sua contrapartida no texto (e que é justamente aquilo que o diferencia de
um especialista, aquilo que o singulariza enquanto leitor amador), será o fato de a escrita vir
marcada, aqui e ali, segundo um discurso amoroso ocasional, mas insistente, que vem
interromper a pesquisa teórica para denunciar o próprio corpo daquele que escreve.
Poderíamos ter vasculhado a dissertação em busca desses traços, para apagá-los, para

12
escondê-los, para queimá-los, ou mesmo para reduzi-los ao exemplo, ao tema, à questão. Mas
editar essas inscrições subverteria o texto naquilo que ele persegue mais profundamente. Peço
perdão pelo ridículo de tudo isso, mas estão aí, para além das leituras, as besteiras do amante,
o intratável de sua fala, seu aprisionamento, seu pulso, os olhos cegos e o coração pesado.

13
Primeiro Capítulo

“Todas as cartas de amor são ridículas”


Álvaro de Campos

Ao abrirmos a edição brasileira de Fragmentos de um discurso amoroso, depois das


páginas com o título, o nome do autor, depois das conhecidas referências editoriais e de um
longo índice, encontramos, enfim, uma espécie de pré-texto, um curto parágrafo que justifica
e contextualiza a escritura de Fragmentos:

“A necessidade deste livro funda-se na consideração seguinte: o


discurso amoroso é hoje de uma extrema solidão. Tal discurso talvez seja
falado por milhares de sujeitos (quem pode saber?), mas não é sustentado por
ninguém; é completamente relegado pelas linguagens existentes, ou ignorado,
ou depreciado, ou zombado por elas, cortado não apenas do poder, mas
também de seus mecanismos (ciência, saberes, artes). Quando um discurso é
assim lançado, por sua própria força, na deriva do inatual, deportado para
fora de toda gregariedade, nada mais lhe resta além de ser o lugar, por exíguo
que seja, de uma afirmação. Esta afirmação é em suma o tema do livro que
ora começa.”6

Escrito a partir de um seminário que Barthes manteve na École Pratique de Hautes


Études, primeiramente sobre o Werther7, de Goethe, pode-se resumir Fragmentos de um

6
Cf. BARTHES, R. 2003, p.XVI
7
As referências que eu farei ao “seminário sobre o Werther” correspondem aos dois anos de um curso sobre o
discurso amoroso, onde o Werther era o ponto de partida. Editado por Éric Marty, estes dois anos de seminário
foram publicados na França em 2007 em um livro intitulado: Les discours amoreux.
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discurso amoroso como um inventário dos movimentos do amante, ou ainda, como uma
espécie de dicionário dos estados amorosos. O livro é composto de 80 figuras, todas dispostas
em ordem alfabética, e que enunciam, em seus fragmentos, as cenas de linguagem onde
flagramos o amante em ação. Barthes optou por não adotar um método descritivo, assumindo,
em seu lugar, um método dramático (onde a análise do discurso é substituída por sua
simulação). Seu intuito, confessado nas considerações que abrem o livro, era tão somente pôr
em cena o discurso do amante, para afirmá-lo, ao invés simplesmente descrevê-lo:

“Tudo partiu deste princípio: que não se devia reduzir o amante a


um simples sujeito sintomal, mas antes fazer ouvir o que há em sua voz de
inatual, quer dizer, de intratável. Donde a escolha de um método ‘dramático’,
que renuncia aos exemplos e repousa unicamente na ação de uma linguagem
primeira (nenhuma metalinguagem). Substituímos pois a descrição do
discurso amoroso por sua simulação e devolvemos a esse discurso sua pessoa
fundamental, que é o eu, a fim de pôr em cena uma enunciação, não uma
análise. É um perfil, por assim dizer, que está sendo proposto; mas esse perfil
não é psicológico; é estrutural: oferece à leitura um lugar de palavra, o lugar
de alguém que fala em si mesmo, amorosamente, em face do outro (o objeto
amado), que não fala.”8

Estas páginas que abrem o livro e justificam sua metodologia, esse pré-texto que
Barthes insere como quem faz uma advertência, ele certamente nos antecipa ao menos uma
questão decisiva: a extrema solidão do discurso amoroso, fato que justificará a vontade de
encenar o intratável, de traçar um perfil, solitário, desse sujeito duplamente sozinho: no
discurso e em cena, o amante padeceria de uma solidão constrangedora: nem ser acolhido
pelas linguagens existentes, nem ser confirmado em face de seu objeto de desejo.
No que diz respeito a estes argumentos, o romance de Goethe é exemplar. Romance de
cartas, o Werther apresenta essa descontinuidade e essa solidão do discurso amoroso
(intensificada, é claro, pela dimensão epistolar do livro: o amante é obrigado a falar em
primeira pessoa e a falar em cartas que permanecem sem resposta). Quanto à descontinuidade
do discurso, talvez esta seja uma das características mais marcantes da fala do amante: o
amante fala por pacotes de frases, mas não integra essas frases num nível superior, numa
obra. (pXXII) Nenhuma totalidade, nenhuma transcendência, nenhuma unidade de discurso
vem consolar o sujeito amoroso em seu solilóquio.
Na figura Sozinho, Barthes evoca um pesadelo:

“[...] uma pessoa amada que se sentia mal na rua e pedia com
angústia um medicamento; mas todo o mundo passava e recusava-o

8
Cf. BARTHES, R. 2003, p.XVII
15
severamente a ela, apesar de minhas idas e vindas desesperadas; a angústia
dessa pessoa adquiria um viés histérico, que eu lhe reprovava. Entendi pouco
mais tarde que essa pessoa era eu – claro; com que outro sonhar? Eu clamava
a todas as linguagens (os sistemas) que passavam, sendo repelido por eles, e
reclamava em altos brados, indecentemente, uma filosofia que ‘me
compreendesse’ – que ‘me acolhesse’.”9

Sobre este aspecto, é de se notar que apesar do enorme sucesso editorial10, Fragmentos
tenha repercutido tão pouco entre os intelectuais da época e que ao seu redor tenha se
configurado uma espécie de silêncio teórico. No seminário que dedicou ao livro, Éric Marty11
questiona o motivo deste silêncio, comentando que, ao publicá-lo, Barthes teria rompido um
pacto fundamental. Sendo Fragmentos o livro de um autor teórico, era imperdoável que sua
estrutura abandonasse o ponto de vista rigoroso da theoria, para afirmar, em seu lugar, uma
língua frágil e insípida, o discurso amoroso do qual o livro se ocupa:

“[...] se Fragmentos é um livro órfão, a solidão do livro não se


explica nem pelo conteúdo conceitual nem pelo objeto escolhido. A solidão
do livro com relação à esfera à qual pertence se explica por uma ruptura com
a própria theoria na sua essência mais profunda: o livro abandona a hipótese
de que a theoria é o lugar hegemônico de leitura do mundo e de produção de
verdade. ‘É um amante que fala e que diz’”12 (MARTY, p.229)

Se nenhuma linguagem vem acolher o discurso amoroso (nenhum remédio para a


aflição do apaixonado), por outro lado ele se vê sozinho pela própria condição da situação
amorosa (que parece tê-lo hipnotizado). Inicialmente sujeito de uma captura (o trauma gerado
pela imagem do outro), a pessoa se vê convertida em sujeito amoroso, e esta conversão, como
veremos mais adiante, se dará primordialmente por uma submissão de seu discurso ao registro
do Imaginário. A própria circunstância do trauma (que é esse rapto pela imagem), impõe ao
sujeito uma certa imobilidade (ele está colado, hipnotizado pela imagem do outro), muito

9
Cf. BARTHES, 2003, p.317
10
Em Roland Barthes, uma biografia, Louis-Jean Calvet comenta: “Esses Fragmentos de um discurso amoroso
trazem-lhe [a Barthes] uma notoriedade inesperada, com grandes vendas e direitos autorais importantes. [...] A
tiragem inicial foi de 15.000 exemplares e logo se esgotou. Apenas no ano de 1977 teve sete edições
consecutivas, totalizando 79.000 exemplares. Uma nova tiragem em 1979, duas em 1980, uma em 1981 e
sucessivamente em 1983, 85, 87, até a décima sexta tiragem em 1989: 177.000 exemplares no total” (p.244-245)
No prefácio ao Le discours amoureux, edição francesa que reune o Fragmentos e o curso sobre o discurso
amoroso, Éric Marty afirma: “Fragments d’un discours amoureux paraît au printemps 1977. Le succès est
immédiat: 100 000 exemplaires vendus dans l’année, de nombreuses traductions, une adaptation théâtrale, autant
de manifestations qui témoignent d’une ouverture allant bien audelà du lectorat habituel des sciences humaines”
(p. 19)
11
Éric Marty é o editor das obras completas de Barthes na França. Foi ex-aluno de Barthes e seu amigo pessoal.
Marty ministrou, em DATA, um seminário sobre o Fragmentos de um discurso amoroso. Este seminário foi
traduzido para o português e faz parte do livro Roland Barthes: O Ofício de Escrever, publicado pela editora
Difel. Neste seminário Marty explora, em profundidade, esta recusa da academia francesa ao livro de Barthes.
12
Cf. MARTY, 2009, p.229
16
embora esta não seja uma imobilidade qualquer. Trata-se de uma imobilidade agitada13: o
amante não para de ir e vir, ele age segundo um discurso:

“Discursus é, originalmente, ação de correr de cá para lá; são idas e


vindas, ‘caminhos’, ‘intrigas’. O amante não pára, com efeito, de correr
dentro da própria cabeça, de encetar novos caminhos e de intrigar contra si
mesmo. Seu discurso existe unicamente por ondas de linguagem, que lhe vêm
ao sabor de circunstâncias ínfimas, aleatórias.” 14

A esses cacos de discurso, a esses pacotes de linguagem enunciados pelo amante,


Barthes dará o nome de figura. Segundo o autor, esta palavra deve ser entendida em sua
acepção grega, que quer dizer não o esquema, mas o gesto do corpo apanhado em ação e não
contemplado em repouso: aquilo que se pode imobilizar de um corpo tenso (p. XVIII). As
figuras, portanto, muito mais que a palavra falada, são o próprio corpo do amante em ação
(em Barthes, não há diferença significativa entre discurso amoroso e amante).

13
Barthes utiliza esse termo, imobilidade agitada [“immobilité agitée”], para definir o movimento do discurso
amoroso. P.64
14
Cf. BARTHES, 2003, p.XVIII
17
COMO LER AS FIGURAS

O leitor que manusear o livro por alguns minutos, logo perceberá a estrutura das
figuras: além de um nome (Abismar-se, Espera, Langor...), elas trazem uma breve definição,
como um verbete de dicionário, e a seguir o conjunto de fragmentos correspondente à cena de
linguagem que a figura representa. No topo da página, na cabeça (caput) de cada figura, o
livro traz um enunciado de discurso amoroso que, em geral, é uma expressão recorrente ao
amante15, uma palavra obsessiva que sempre retorna à sua fala quando ele está sob o signo
daquela figura (caso de “Que fazer?” ou “Estou louco”, que são as cabeças das figuras
Conduta e Louco, respectivamente).
A ordem das figuras, tal como elas aparecem no livro, é definida não por uma
trajetória cronológica do amante (isto é, segundo uma história ou um percurso): as figuras
estão organizadas segundo duas das convenções sociais mais antigas de nossa sociedade, no
caso, a nomeação e o alfabeto. Barthes preferiu adotar estes velhos parâmetros na tentativa de
evitar os ardis do acaso, que bem poderia ter produzido seqüências lógicas (XVIII),
conferindo ao discurso amoroso uma linearidade da qual ele parece justamente se esquivar.
No que diz respeito às citações, as figuras são construídas com base em três tipos de
referência: livros, conversas com amigos e experiências pessoais do autor. Na margem lateral
do texto, encontramos, com freqüência, o nome dos autores ou das obras aos quais Barthes
está se referindo. Se ele utiliza a margem para marcar as “citações” bibliográficas, não faz o
mesmo quando se refere aos amigos ou à sua própria experiência. Nesses casos, Barthes é
mais comedido: as experiências pessoais encontram-se dispersas no texto e as de conversas
com amigos trazem apenas a inicial de um nome, seguida de reticências, protegendo assim a
identidade de seus interlocutores (“Um dia, X... recebeu orquídeas anônimas...” p281).
Mas conhecer os aspectos metodológicos e a composição editorial do livro nos diz
muito pouco sobre como ler as figuras. A hesitação do leitor poderá se fazer ouvir: devemos
ler o livro segundo sua ordenação (o alfabeto), ou percorrer o livro aos saltos, lendo, talvez,
as figuras de maneira relacional, explorando suas semelhanças como se fossem as peças de
um inventário, os objetos de uma coleção? Devemos recitar as figuras (em voz alta?), segundo
sua estética dramática, segundo esse teatro, a encenação do discurso amoroso? Ou ainda,
hipótese que nos parece mais premente, reconhecer o livro como uma brincadeira: jogar no

15
“Se existe uma figura ‘Angústia’, é porque o sujeito por vezes exclama (sem se preocupar com o sentido
clínico da palavra): ‘Estou angustiado!’, ‘Angoscia!’, canta em algum lugar Maria Callas.” Cf. BARTHES,
2003, p. XX
18
texto, como se as figuras formassem uma tópica que permitisse ao leitor ir e vir, como quem
percorre as casas de um tabuleiro16. Ora, é o próprio Barthes quem sugere, ainda em Como é
feito este livro, esta dimensão espacial das figuras:

“[...] cada figura deve portanto estar ali, seu lugar (sua casa) deve
estar-lhe reservado. É como se houvesse uma Tópica amorosa, e a figura
fosse um lugar (topos). Ora, é da própria natureza de uma Tópica ser um
pouco vazia: uma Tópica é por essência meio codificada, meio projetiva (ou
projetiva porque codificada). O que aqui pudemos dizer da espera, da
angústia, da lembrança nunca passará de um modesto suplemento, oferecido
ao leitor, para que este dele se aproprie, adicione, subtraia e passe-o a
outros”17

Além de descrever a tópica (o tabuleiro, o espaço da brincadeira), Barthes também


antecipa o jogo: ele anuncia, ao definir as figuras, o jogo especular de Fragmentos: é próprio
das figuras que o leitor se projete, que se reconheça na cena, que a reconheça como parte de
um discurso do qual ele é também o portador. Eis a promessa: tendo o leitor vivido, ao menos
uma vez, sob o signo do sentimento amoroso, não será difícil reconhecer nas figuras os
episódios de linguagem que ele mesmo já teria encenado:

“As figuras se destacam segundo possamos reconhecer, no discurso


que está passando, alguma coisa que foi lida, ouvida, experimentada. A
figura é delineada (como um signo) e memorável (como uma imagem ou um
conto). Uma figura é fundada se ao menos alguém puder dizer: ‘Como isso é
verdade! Reconheço esta cena de linguagem.’ Para certas operações de sua
arte, os linguistas recorrem a uma coisa vaga: o sentimento linguístico; para
constituir figuras, é preciso nem mais nem menos que este guia: o sentimento
amoroso”.18

Este jogo de identificações que Barthes sugere ao descrever as figuras não é, em


absoluto, um jogo infundado. Ele encontra-se enraizado na própria solidão do discurso
amoroso, de modo que a brincadeira é justamente devolver a circulação ao discurso,
transformando o leitor, por meio desse processo de identificação com o texto, no próprio
emissor de um discurso completamente relegado ao fora de cena.
No entanto, mesmo se justificarmos a afirmação de Barthes pela condição marginal do
discurso amoroso, esta brincadeira de identificações deverá encontrar, de saída, ao menos
duas objeções teóricas: a primeira relativa à dimensão ideológica do jogo, ao fato de que a
brincadeira faria o leitor se identificar ao discurso amoroso (um discurso ridículo demais,

16
Em nosso entendimento, a extensão das figuras e a ordem alfabética, à semelhança de um dicionário, seriam
propícias a este tipo de apropriação: ler o livro como um jogo.
17
Cf. BARTHES, 2003, p.XIX
18
Cf. BARTHES, 2003, p.XVIII
19
besta, nada engajado); e a segunda resistência seria relativa à mobilização inconsciente desse
discurso, dado que, ao menos desde a psicanálise, o discurso do amante seria algo de
analisável e, portanto, traria com ele algo de sintomal.
Da objeção psicanalítica ao discurso amoroso e da relação de Fragmentos com a
psicanálise, falaremos mais adiante. No que diz respeito à dimensão ideológica do discurso
amoroso, sabemos que a resistência costuma acontecer em relação à bêtise [tolice] do amante:
Barthes pede ao leitor que se identifique com uma tolice, e esta tolice, a bêtise do amante, será
simplesmente afirmada, simplesmente apresentada ao leitor sem que antes disso (ou depois
disso) ela se submeta à análise de um semiólogo. Como a frase que apresenta o livro anuncia:
É pois um amante que fala e que diz: 19

A BÊTISE DO DISCURSO

De um modo geral, em parte por causa da ampla assimilação de Mitologias pela


academia francesa, a expectativa em torno de um texto barthesiano é de desmitificação. Ora, a
desmitificação, em Barthes, é geralmente a desmitificação da bêtise, do discurso tolo. Trata-
se, porém, de um movimento bastante sinuoso em seus textos: de O Grau Zero da Escritura à
A Câmara Clara, uma certa ambiguidade com relação à bêtise parece se intensificar,
tornando-se, ao menos desde Roland Barthes por Roland Barthes, uma relação
declaradamente ambígua, de rejeição e fascínio. O próprio Barthes, como nos mostra Leda

19
Primeira frase do livro. Está localizada depois das considerações iniciais em que Barthes expõe a necessidade
e o método de Fragmentos, e, portanto, antes dos fragmentos propriamente ditos. Na edição brasileira, a frase
encontra-se na página XXV.
20
Tenório da Motta, já havia confessado, na época em que ministrava o seminário sobre o
Werther, esta ambiguidade em relação à bêtise. Numa entrevista de 1975 ao jornal Le Figaro,
Barthes comenta:

“Eu tenho uma espécie de fascínio em relação à ‘bêtise’. E ao


mesmo tempo uma náusea enorme, claro. É muito difícil falar dela porque
não podemos simplesmente nos excluir do discurso tolo. Não estou dizendo
que não podemos nos excluir disso, mas que não podemos nos excluir disso
simplesmente”.20

Esta vocação de Barthes ao discurso desmitificador (marcada por esta vontade de


excluir-se ao discurso tolo), vocação por excelência da theoria, é ela que nos assombra em
Fragmentos: ao pensar o leitor não num exercício de desmitificação, mas numa postura
afirmativa, de identificação com um discurso, somos forçados a supor que haveria algum
efeito desejável na cumplicidade do leitor com o livro, efeito que justificaria os riscos da pura
identificação do leitor com a bêtise do amante:

“Como explicar que o grande inimigo dos estereótipos se entregasse


então ao discurso amoroso, não para o analisar e desmitificar, mas para
cultivá-lo? O discurso amoroso não é o mais estereotipado dos discursos, o
reino do clichê literário, o tautológico por excelência?”21

Não há dúvidas, no entanto, que Fragmentos de um discurso amoroso seja uma


investigação justamente dessa bêtise. Em O Prazer do Texto, de 1973, num comentário sobre
a deriva, Barthes fala da bêtise articulando-a como sinônimo de intratável:

“La dérive advient chaque fois que je ne respecte pas le tout, et qu’à
force de paraître emporté ici et là au gré des illusions, séductions, et
intimidations de langage, tel un bouchon sur la vague, je reste immobile,
pivotant sur la jouissance intraitable qui me lie au texte (au monde). Il y a
dérive, chaque fois que le langage social, le sociolecte, me manque (comme
on dit: le couer me manque). Ce pour quoi un autre nom de la dérive, ce
serait: l’Intraitable – ou peut-être encore: la Bêtise.”22 P.32-33

Ora, Intratável é aquilo que Barthes deseja fazer aparecer em Fragmentos (“Tudo
partiu deste princípio: que não se devia reduzir o amante a um simples sujeito sintomal, mas

20
Cf. MOTTA, 2011, p. 23
21
Cf. PERRONE-MOISÉS, 1983, p.63
22
Cf. BARTHES, 1973, p.32-33. Tradução: “A deriva advém toda vez que eu não respeito o todo e que, à força
de parecer arrastado aqui e ali ao sabor das ilusões, seduções e intimidações da linguagem, qual uma rolha sobre
as ondas, permaneço imóvel, girando em torno da fruição intratável que me liga ao texto (ao mundo). Há deriva,
toda vez que a linguagem social, o socioleto, me falta (como se diz: falta-me o ânimo). Daí porque um outro
nome da deriva seria: o Intratável – ou talvez ainda: a Besteira.”
21
antes fazer ouvir o que há em sua voz de inatual, quer dizer, de intratável”23). Ao propor um
livro que implicasse os leitores em sua escritura, Barthes obtém, como efeito (e em conjunto
com seus leitores), o resgate de uma linguagem antiga: é no jogo do texto, nesse espaço do
livro onde os leitores, implicados, simulam o discurso amoroso (projetando-se, eles mesmos,
com seus corpos no texto), é nessa dimensão de leitura em rede que o livro parece realizar sua
tarefa: conferir um lugar, entre as linguagens existentes, à bêtise do amante; fazer o discurso
circular para fora do solilóquio amoroso. Talvez por isso Barthes tenha cogitado transformar o
livro numa cooperativa: “Aos Leitores – Aos Amantes – Reunidos.”24

A PSICANÁLISE E O DISCURSO AMOROSO

Se a bêtise do discurso amoroso – sua dimensão de ridículo –, terá de ser afirmada


pelo amante25, é porque de fato não há, ao menos entre as linguagens atuais, um
reconhecimento do sentimento amoroso que o desobrigue de seu aspecto patológico. Se o
período moderno se ocupou de colocar a sexualidade cada vez mais em discurso, a
sentimentalidade do amor seguiu um caminho inverso, sendo condenada, também desde a
modernidade, ao fora de cena. (O obsceno, em suma, teria migrado da sexualidade para o
discurso amoroso):

“[...] o apaixonado tornou-se anacrônico, inoportuno e até mesmo


‘obsceno’. Hoje em dia, é natural contar experiências sexuais; quem o faz é
até mesmo bem visto, como pessoa ‘liberada’. Mas aquele que se puser a
falar de um sentimento amoroso, confessar uma paixão e descrever todas as
suas torturas (incertezas, esperanças, ciúmes, desesperos), encontrará logo
um ouvinte espantado, irônico ou encabulado. O apaixonado é visto
imediatamente como um louco mais ou menos manso, a quem o confidente
popular aconselhará um bom macumbeiro e o confidente intelectual dará o
endereço de um bom analista. É principalmente a esse confidente burguês
esclarecido que Barthes se refere: aquele que sabe que o amor está fora de
moda, que é apenas uma forma de neurose (precisa de tratamento) ou uma
falta de ocupações mais sérias (como jogar na Bolsa ou militar num partido
político).”26

Esta sugestão ao analista, como vimos, não aconteceria por acaso. A psicanálise
confere um lugar ao amante em seu discurso: ela toma o discurso amoroso como algo de

23
Cf. BARTHES, 2003, p.XVII
24
Cf. BARTHES, 2003, p.XX
25
O caput da figura Afirmação é “O INTRATÁVEL”. (Cf. BARTHES, 2003, p.15)
26
Cf. PERRONE-MOISÉS, 1983, p.64
22
analisável porque o localiza, ao menos desde Lacan, no registro do Imaginário, do qual
falaremos mais adiante. No início do seminário sobre o Werther, é o próprio Barthes quem
nomeia a psicanálise como seu intertexto. De todas as referências teóricas do livro, a obra do
psicanalista francês Jacques Lacan talvez seja uma das mais citadas (muito embora a citação
não ocorra exatamente às claras).
Ela pode ser lida, na maioria das vezes, a partir do conceito de Imaginário, que
aparece diversas vezes no livro, grifado em itálico e com a primeira letra em caixa alta. Ora,
este termo nos remete diretamente à psicanálise, mais especificamente a uma certa topologia
criada por Lacan. Ao lado do Simbólico e do Real, o Imaginário constituiria um dos três
registros essenciais da realidade humana27. Só que no processo analítico, ele é justamente o
primeiro a aparecer, e, portanto, é justamente aquele com o qual o processo de análise deverá
romper, para aí sim permitir o aparecimento de um Simbólico que re-signifique as narrativas
do analisando e o re-posicione em relação às suas faltas. Ora, Barthes procura, enquanto
amante, não exatamente responder a esse discurso da psicanálise, mas se oferecer a ele. O
discurso do livro parte desse lugar que é, para a teoria psicanalítica, o lugar onde o amante
está preso. Daí o livro não ser propriamente analítico, mas analisável. No seminário sobre o
Werther, Barthes comenta:

“Nous n’essayons pas de produire un discours analytique, mais


plutôt un discours qui s’offre le mieux possible à la psychanalyse. Et pour
s’offrir, notre discours doit être un peu en retrait: susceptible de se modifier,
de s’adapter. Notre discours sera, par exemple, parfois un peu psychologique,
parce que justement la psychanalyse se manifeste mieux lorsqu’elle déplace
le discours psychologique”.28

O IMAGINÁRIO DO AMANTE

O leitor que se ocupar de Fragmentos sem a intenção de analisá-lo, ele certamente


poderá prescindir das referências teóricas do livro. As citações que atravessam o texto, muito
mais do que comentar ou desdobrar uma tradição, estão ali para desenhar um quadro
específico: elas vêm ajudar o amante a compor uma cena de linguagem, ilustrar uma
determinada situação amorosa, mas nunca se ocupam de um comentário que extrapola a
27
Cf. LACAN, 2005, O simbólico, o imaginário e o real, p.12
28
Cf. BARTHES, 2007, p.58
23
encenação propriamente dita. Aparentemente, nenhuma teoria parece ser desenvolvida em
Fragmentos, muito embora o livro tenha muitas referências teóricas (como já dissemos, a
margem lateral do texto é reservada para nomear as citações, que são muitas: Goethe, Platão,
Freud, Lacan...).
De certa forma, o próprio objeto de investigação do livro, o discurso amoroso, embora
faça constante referência à theoria, ele pouco a acrescenta: o discurso do amante é pobre, não
produz conceitos, é elíptico, frágil, quase sem ideias. Soma-se a isso o fato de o lugar de
enunciação do discurso amoroso ser permanentemente paradoxal, de modo que o amante não
para de ficar indo e vindo às mesmas situações, num percurso que não respeita nenhuma
lógica aparente, que não parece preocupado em edificar nenhum sistema.
Mas se ainda assim o leitor insistir em resgatar algum contexto teórico, se for seu
objetivo analisar o texto, ele poderá problematizar o uso recorrente de um conceito no livro
(o Imaginário), lendo, a partir dele, uma série de remetimentos à psicanálise. (O leitor que
estivesse ocupado em analisar o texto não encontraria impedimentos, já que como nos
informa Barthes, embora o discurso amoroso não seja propriamente analítico, ele certamente
se presta à análise.) Barthes comenta que apesar do acolhimento parcimonioso da psicanálise
ao sentimento amoroso, ao menos ela lhe teria reservado um lugar em sua tópica (p.58). Por
oferecer um ponto de partida para suas investigações, Barthes utiliza a psicanálise,
nominalmente, como o principal intertexto de sua pesquisa (“...l’intertexte ici? La
psychanalyse.” P.58), admitindo, em seguida:

“La meilleure hypothése de départ est que l’Amour est la prise en


charge du Symbolique par l’Imaginaire: le discours amoureux est un discours
de l’Imaginaire.”29

Este retorno ao Imaginário, no qual o amante se veria implicado, aparece mencionado


diversas vezes ao longo do livro. Ele irá definir um certo lugar de enunciação (o lugar de onde
fala o amante, ou ainda, o lugar onde ele está preso). Na teoria lacaniana, o Imaginário
encontra-se indissoluvelmente atrelado ao tema do Espelho (e, portanto, ao tema da Mãe): é
diante do espelho, sob o reconhecimento da mãe, que a criança estabeleceria esta relação
fundamentalmente narcísica do sujeito à si mesmo, que seria, aliás, o próprio movimento do
discurso amoroso30.

29
Cf. LACAN, 1966, p.59
30
É do Lacan esta frase: “apenas a psicanálise reconhece esse nó de servidão imaginária que o amor sempre tem
que redesfazer ou deslindar” Cf. LACAN, 1998, p. 103
24
UM RETORNO AO ESTÁDIO DE ESPELHO

Se o amante fala sozinho, em parte é porque ele se refere não a um outro, mas a uma
imagem desse outro (na figura Imagens, Barthes apresenta a seguinte definição: a imagem é
aquilo de que sou excluído31): a situação amorosa, este estado hipnótico em que o apaixonado
se encontra, ela teria início justamente com um trauma provocado por uma imagem do objeto
amado (um retorno ao espelho), que mantém com ele uma situação espectral, mas que não o
constitui exatamente, não o pertence. A figura do Rapto, tal como aparece no seminário sobre
o Werther, é a única que possui uma relação de anterioridade com as demais:

31
Cf. BARTHES, 2003, p.211
25
“Nous commençons donc par la seule figure qui soit, por nous, hors
de l’alphabet, parce que c’est la seule figure qui puisse se prévaloir d’une
marque temporelle, marque diégétique de l’origine, du départ, de la
détermination. Figure du ‘tomber amoureux’, de l’énamoration, du rapt, ou
mieux: du Ravissement.”32

O rapto seria, portanto, esse arrebatamento, ou ainda, o momento do trauma, a captura.


A partir daí o sujeito se veria implicado na situação amorosa, o que quer dizer, retido no
Imaginário de seu discurso, que se agita segundo uma ordem imprevisível. Depois de afirmar
a captura pela imagem, numa série de encontros com o amado, o sujeito amoroso começa a
fantasiar a ausência do outro e a morte da relação. Na figura do Encontro, no primeiro
fragmento, Barthes afirma:

“[...] posso atribuir ao amor, pelo menos retrospectivamente,


imaginariamente, uma progressão regrada: é por esse fantasma
histórico que por vezes o transformo em: uma aventura. A trajetória
amorosa parece então seguir três etapas (ou três atos): inicialmente,
instantânea, a captura (sou seduzido por uma imagem); segue-se então
uma série de contatos (encontros, telefonemas, cartas, pequenas
viagens), durante os quais ‘exploro’ com embriaguez a perfeição do
ser amado, quer dizer, a adequação inesperada de um objeto a meu
desejo: é a doçura do começo, tempo próprio do idílio. Esse tempo
feliz forma sua identidade (sua circunscrição) por oposição (pelo
menos na lembrança) à ‘sequência’: ‘a sequência’ é o longo rastro de
sofrimentos, mágoas, angústias, depressões, ressentimentos,
desesperos, constrangimentos e armadilhas de que me torno presa,
vivendo então incessantemente sob a ameaça de uma desgraça que
atingirá simultaneamente o outro, eu mesmo, e o encontro prestigioso
que nos revelou inicialmente um ao outro”33

Passado o momento da captura e de sua consequente afirmação (a série de contatos


que o sujeito estabelece com o amado), inicia-se a sequência de sofrimentos: o sujeito
amoroso passa a se confrontar com a morte da relação, com a ausência do outro, ou com a
dele mesmo. A morte, ou o fantasma da morte, se apresenta na cena amorosa. A imagem do
outro se quebra depois de esforços decisivos: sem cessar, a imagem cultuada difere de si
mesma, se corrompe. O estado de hipnose produzido pela imagem do outro é insustentável: se
eu decidir afirmá-lo, terminarei morto. (A literatura teria se ocupado de descrever este
movimento do enamoramento em direção à morte: Tristão e Isolda, Romeu e Julieta,
Werther...). A esta morte da relação, Barthes sugere também a alternativa de uma saída
dialética. Ainda em Encontro, agora no segundo fragmento:

32
Cf. BARTHES, 2007, p. 67
33
Cf. BARTHES, 2003, p.135-136
26
“Existem amantes que não se suicidam: desse ‘túnel’, que é a
sequência do encontro amoroso, é possível que eu saia: vejo novamente a luz,
seja por conseguir dar ao amor infeliz uma saída dialética (conservando o
amor, mas me livrando da hipnose), seja por, ao abandonar esse amor, pôr-
me novamente em busca, procurando reiterar, com outros, o encontro do qual
conservo o deslumbramento: pois este é da ordem do ‘primeiro prazer’ e não
descanso até que ele volte: afirmo a afirmação, recomeço, sem repetir.”34

Se há toda um sequência de figuras que afirmam o encontro amoroso, há outras que


fazem o luto, que elaboram a perda desse mesmo encontro. De certa forma, pode-se dizer que
o amante passa mais tempo intrigando contra si mesmo, insistindo em fazer referência a uma
imagem que já não tem mais tempo de vida, do que vivendo a suposta alegria da relação com
o outro. Ele precisará decidir, portanto, em dar a morte ao outro, ou então ao estado de
hipnose que o liga ao outro (abrir mão do Imaginário, instaurar o Simbólico). De alguma
maneira ele precisará fazer um trabalho de luto. Para ajudá-lo, sabemos, haverá a
possibilidade do consultório psicanalítico, analisar o discurso. Mas em Barthes há também o
livro, e a brincadeira do livro:

“Em torno da figura, os jogadores brincam de passa-anel; às vezes,


incidentalmente, retemos o anel por um segundo antes de transmiti-lo. (O
livro, idealmente, seria uma cooperativa: ‘Aos Leitores – Aos amantes –
Reunidos)” 35 (P. XIX-XX)

34
Cf. BARTHES, 2003, p.136
35
Cf. BARTHES, 2003, p.XIX-XX. Esta não é a primeira vez que Barthes traz os leitores para a cena da
escritura nominalmente e em forma de cooperativa: em O Prazer do Texto, na página 22, ele menciona uma
“Sociedade dos Amigos do Texto”.
27
O LIVRO E O PROCESSO DE LUTO

Poderíamos nos demorar sobre o objeto em jogo, ao fato de que o anel é usado para
selar compromissos (sobretudo compromissos afetivos, amorosos). Em diversas cerimônias
religiosas, como sabemos, coloca-se um anel no quarto dedo (por isso mesmo, o dedo anelar,
dedo por onde passaria uma veia diretamente ligada ao coração) como símbolo da união
matrimonial. Não é de se espantar que seja justamente um anel o objeto que será posto em
jogo na brincadeira evocada por Barthes.
No que diz respeito ao jogo, pode-se dividir a brincadeira do passa-anel em dois
momentos básicos: o momento de fazer o anel desaparecer, isto é, passar o anel com a mão
fechada entre as mãos espalmadas, que é fingir passar o anel (pois mesmo o portador e o
destinatário devem manter sigilo sobre o paradeiro do objeto, dissimulando a posse); e o
momento da adivinhação, que é fazer o anel aparecer, momento em que um dos jogadores é
desafiado a adivinhar com quem se encontra o objeto.
Muito mais que celebrar a posse - efêmera e sigilosa – do anel, a brincadeira elabora a
falta do objeto, fazendo do jogo uma espécie de luto coletivo. Mesmo se em algum momento
o jogador pôde gozar do objeto em mãos (tendo-o recebido de outro participante ou mesmo
adivinhando com quem o anel se encontrava), ao final da rodada ele terá de outra vez
abandoná-lo, colocando o objeto novamente em jogo: nenhuma graça em reter o anel por
muito tempo nas mãos (pois o jogo ficaria tedioso) nem em denunciar a posse momentânea do
objeto (pois a adivinhação perderia a graça).
Se é verdade que as brincadeiras são importantes instrumentos de assimilação da
cultura, se as brincadeiras nos ensinam, em sua repetição, a tomar banho, a se alimentar, se
elas nos ensinam inclusive o amor, como já nos havia dito Walter Benjamin36, tendemos a
encarar a brincadeira do passa-anel, em Barthes, como uma alegoria do luto: tal qual a
brincadeira do neto de Freud, em Além do Princípio de Prazer, trata-se de deixar o objeto ir e

36
No prefácio ao livro de Karl Gröbber sobre a história do brinquedo, Benjamin se pergunta sobre a misteriosa
dualidade presente em algumas brincadeiras (como a dualidade entre o bastão e o arco, entre o pião e o
barbante...) e que seria marcada por uma espécie de magnetismo: “....antes que o amor externo nos faça penetrar
na existência e nos ritmos freqüentemente hostis de um ser humano estranho, ensaiamos primeiro com os ritmos
originais que se manifestam, em suas formas mais simples, nesses jogos com coisas inanimadas. Ou antes, é
justamente através desses ritmos que nos tornamos senhores de nós mesmos” (p.252). Mais adiante, o filósofo
afirma: “Pois é a brincadeira, e nada mais, que está na origem de todos os hábitos. Comer, dormir, vestir-se,
lavar-se, devem ser inculcados no pequeno ser através de brincadeiras, acompanhados pelo ritmo de versos e
canções. É da brincadeira que nasce o hábito, e mesmo em sua forma mais rígida o hábito conserva até o fim
alguns resíduos da brincadeira.” Cf. BENJAMIN, 2004, p. 252-253.
28
vir, aparecer e desaparecer, num duplo movimento que visa ocultá-lo, para então reencontrá-
lo mais adiante.
As semelhanças rítmicas entre a brincadeira do passa-anel e o fort/da de Freud nos
levam a perguntar sobre esta vocação de Fragmentos ao processo de luto: quantas figuras nos
ensinariam sobre a perda do objeto amado? Quantos leitores não teriam recorrido ao livro
durante a ausência do outro, justamente para elaborar esta falta? No seminário sobre Werther,
exceto pela primeira figura do Rapto (momento privilegiado do trauma, momento da captura
pela imagem), todas as figuras parecem denunciar este estado hipnótico do sujeito amoroso,
essa “imobilidade agitada”37 em que o amante parece elaborar o trauma causado pela imagem
do objeto amado.
Se for verdade que o livro é também um jogo, e mesmo que não seja exclusivamente
um jogo (ou um trabalho) de luto, sabemos que enquanto uma série de figuras fazem aparecer
o objeto amado, afirmando-o (caso, por exemplo, de Abraço, Adorável, Afirmação, Contatos,
Corpo, só para ficar com as primeiras do livro), há também uma série de figuras que o fazem
desaparecer, que o colocam em situação de perda (como é o caso, por exemplo, de
Constrangimento, Contingências e Demônios). Algumas figuras, inclusive, parecem mesmo
remeter especificamente ao processo de luto (caso de Abismar-se, Alteração, Angústia,
Ausência, Catástrofe, Circunscrever, Conivência...).
E, no entanto, há uma significativa diferença entre a brincadeira do Fort/da, descrita
por Freud, e a brincadeira do passa-anel, sugerida por Barthes. Se em Freud a criança brinca
sozinha, se o luto pela ausência da mãe não ultrapassa o espaço íntimo do quarto de dormir
(ou ainda, o espaço privado do consultório psicanalítico), na brincadeira do passa-anel as
crianças elaboram juntas a ausência do objeto. Daí o livro querer se chamar Aos leitores, aos
amantes reunidos. A brincadeira sugerida por Barthes ao escrever Fragmentos é teatral e
coletiva: enunciar publicamente a situação amorosa, elaborar em grupo.
É neste ponto, depois de muito adiar, que reencontramos no texto de Barthes a
filosofia. Tudo acontece como se essa brincadeira de Barthes nos remetesse a um lugar outro,
fazendo uma referência mais antiga que a psicanálise (o que torna a cena ainda mais inatual).
Tudo acontece como se o livro de Barthes enfim oferecesse uma alternativa ao discurso
psicanalítico, uma alternativa ao trabalho de luto solitário do neto de Freud (muito em parte

37
Cf. BARTHES, 2007, p.77
29
porque a brincadeira de Fragmentos lidaria com o amor de maneira bem mais ampla38). Nossa
leitura nos leva a pensar (é nossa fantasia ou nosso delírio) que Barthes, ao organizar o
discurso amoroso em Fragmentos, ao fazer do livro uma brincadeira, acaba por fazer alusão
não ao Fort/Da, de Freud, mas à uma conhecida cena platônica, bastante citada por Barthes
em seu livro: a brincadeira de Fragmentos em muito se assemelha ao jogo do simpósio, no
Banquete.

O MÉTODO AMOROSO DE SÓCRATES

Sobre O Banquete, além das citações de Fragmentos, há uma interessante referência


no texto sobre A Imagem, escrito por Barthes para o colóquio de Cerisy, que parece ilustrar
bem essa dimensão coletiva do discurso amoroso para a qual ele parece apontar em
Fragmentos. Nesse texto sobre a Imagem, ao fazer uma investigação dos termos gregos
Epokhé, a suspensão, e Mákhe, o combate em geral (mas também a lógica, a armadilha da não
contradição), Barthes afirma que a Epokhé não era a única maneira de se ultrapassar a Mákhe
(ao combate, aqui, das imagens). Haveria também a Acolouthia: o cortejo de amigos que me
acompanham, me guiam, aos quais me abandono:

“Esses amigos: eu penso por eles, eles pensam na minha cabeça.


Nessa cor do trabalho intelectual (ou de escritura) existe algo de socrático:

38
No seminário sobre o Werther, Barthes comenta que Freud dá razão à língua ao pensar o amor como união
sexual. Mas que ele (Barthes) não separaria esta região das outras: o amor de si mesmo, o amor pela família, a
amizade, onde nem todos convidam à união sexual. Cf. BARTHES, 2007, p. 52
30
Sócrates mantinha o discurso da Ideia, mas o seu método, o passo-a-passo de
seu discurso, era amoroso; para falar, ele precisava de caução do amor
inspirado, do assentimento de um amado cujas respostas marcavam a
progressão do raciocínio. Sócrates conhecia a Acolouthia; mas (a isto eu
resisto) mantinha nela a armadilha das contradições, a arrogância da verdade
(não é de espantar que ele tenha, para terminar, ‘sublimado’ – recusado
Alcibíades).”39

•••

39
Cf. BARTHES, 2004, p.444
31
Segundo Capítulo: O Banquete

“Mais, de l’amour, Il n’y a pas de science”


Roland Barthes

A insistência de Barthes em fazer referência ao Banquete, tanto nos Fragmentos


propriamente ditos, quanto nos seminários sobre o discurso amoroso40, nos trouxe uma certa
obrigação: retornar ao diálogo platônico, ainda mais uma vez, reler o texto, investigar a cena,
para finalmente tentar re-escrever, agora ao lado de Barthes, o nosso habitual itinerário de
questões: as dúvidas sobre um Sócrates hesitante, que evita falar em nome próprio; o nome do
diálogo, beber junto, que não corresponde em nada à sobriedade convencionada na maior
parte do texto; ou ainda, uma visita inesperada (a intrusão de Alcibíades), este apêndice
cômico do texto que vem se juntar ao banquete tarde demais, depois de Sócrates dar a última
palavra sobre o amor41.
Se não é certo que iremos conseguir responder às duas primeiras perguntas, é porque,
de saída, assumimos como tarefa deste segundo capítulo pensar a visita inesperada de
Alcibíades, a chegada do discípulo rebelde42, do mais intemperante e do mais insolente entre
os democratas atenienses43, aquele que não fará um elogio a Eros, mas que nomeará seu
objeto amado e dedicará a ele palavras de amor. Nossa aposta: Alcibíades será o único no
Banquete a falar do amor em primeira pessoa, isto é, a lançar mão de um discurso amoroso.
Se isso for verdade, é bem provável que o Banquete seja um ponto de partida interessante para

40
Para escrevermos sobre o livro, fizemos uma leitura atenta destes seminários, ministrados por Barthes na
École Pratique des Hautes Études entre os anos de 1974 e 1976, e recentemente editados por Éric Marty na
França. Especialmente na segunda parte dos seminários, que corresponde ao segundo ano do curso (1975),
encontramos as referências ao Banquete de Platão.
41
No caso, quando falamos amor, estamos nos referindo ao amor-Eros.
42
Robin, comentando a tradição, especula sobre quando o Banquete teria sido escrito. Tradicionalmente, em
função de uma alusão feita no discurso de Aristófanes a um fato histórico, o diálogo teria sido escrito depois de
383 a.c. Há, por outro lado, quem leia o discurso de Alcibíades como uma resposta às acusações sofridas por
Sócrates e que o condenaram a beber cicuta, o que também indicaria uma data aproximada. Na página 60, depois
de citar um trecho de Gomperz, Robin afirma que esta leitura tende a mostrar Alcibíades como um discípulo
rebelde [indocile] e, por consequência, livrar a responsabilidade de Sócrates de algumas acusações, sobretudo
aquela de corruptor da juventude. Cf. ROBIN, 1908, p.60
43
É assim que um dos acusadores de Sócrates se refere a Alcibíades. Cf. STONE, O julgamento de Sócrates,
p.45
32
nossa pesquisa em filosofia. Então o discurso amoroso já estaria ali (ou estaria ainda), no
velho diálogo de Platão, não na fala de Sócrates, mas no lugar hiperbólico e embriagado de
Alcibíades? Antes de tirarmos conclusões precipitadas, façamos um retorno ao livro.
Tentemos contar a história do Banquete conforme ela nos é contada.

•••

O caminho que nos leva ao Banquete é sinuoso. Aristodemo, que conta a Glauco, que
conta a Apolodoro, que conta a um companheiro, no meio da rua, isso que nos é contado por
Platão. Em seu diálogo sobre o amor, Platão estrutura o texto sobre um complexo jogo de
remetimentos onde o relato vai surgir no meio de uma série de discursos, provenientes de
várias épocas e entremeados de lacunas44. É como se, já aqui, em Platão, os discursos sobre o
amor estivessem sob o signo do inatual e do fragmentário. O amor, desde sempre, seria aquilo
a que não posso remeter à uma origem, à uma razão, à uma escrita, senão a muitos pedaços de
origens, de razões, de escritas, e nenhuma obra definitiva, nenhum texto-guia.
Seja como for, esse jogo de remetimentos entre personagens e épocas vai nos levar a
cena de um encontro entre Sócrates e Aristodemo, onde o primeiro aparece excepcionalmente
limpo e de sandálias, a fim de ir belo à casa de um belo45. Diante da surpresa de Aristodemo
(Sócrates era conhecido por andar descalço e não muito asseado), o filósofo conta que está
indo ao banquete na casa de Agatão em comemoração a um prêmio que o anfitrião havia
recebido na noite anterior, e o convida para acompanhá-lo. Aristodemo aceita e os dois
seguem caminho juntos.
À certa altura da caminhada, Sócrates começa a seguir num passo mais lento que
Aristodemo, ficando um pouco atrás dele. Quando nota alguma disposição de seu
companheiro em diminuir o passo para seguir ao seu lado, o filósofo o libera pedindo que siga
em frente. Aristodemo, portanto, chega à casa de Agatão sozinho, antes de Sócrates. A
ausência do filósofo é notada por todos, ao que Aristodemo esclarece ser este um velho hábito
do filósofo: às vezes, retira-se onde quer que se encontre e fica parado46.

44
PESSANHA, 1987, p.89
45
Cf. Platão, Banquete, 174b. Como sabemos, Sócrates costumava andar pelas ruas de Atenas maltrapilho e
descalço. Esta é, portanto, uma situação incomum.
46
Cf. Platão, Banquete, 175b
33
Quando Sócrates finalmente entra na casa de Agatão (a refeição já estava posta, todos
comiam), encontra seu leito (o lugar de honra) à sua espera47. O anfitrião pergunta sobre o que
ocupava Sócrates do lado de fora da casa, mas o filósofo desconversa. É aí que outro
convidado, Pausânias, finalmente indaga sobre qual seria o modo mais cômodo de beberem,
já que a maioria ali se encontra de ressaca pela noite anterior (o festival que teria coroado
Agatão como melhor poeta trágico). Erixímaco, que é médico, depois de alertar para os males
da embriaguez sem medida, sugere que ao invés de determinarem a quantidade de bebida a
ser ingerida, que façam discursos, que este seja o “jogo” do simpósio, subvertendo, de certa
forma, o propósito do encontro ao menos em sua vocação etimológica: simpósio, συμπόσιον:
a festa onde se bebia, festa de beber.
Após a sugestão, prontamente aceita por todos, Erixímaco é convidado a definir o
tema dos discursos. Ao que o médico, citando conversas que teria tido com Fedro, sugere:

“ao Amor, nenhum homem até o dia de hoje teve a coragem de


celebrá-lo condignamente, a tal ponto é negligeciado um tão grande deus!
Ora, tais palavras parece que Fedro as diz com razão. Assim, não só eu
desejo apresentar-lhe a minha quota e satisfazê-lo como ao mesmo tempo,
parece-me que nos convém, aqui presentes, venerar o deus [Eros]” 48

E assim, continuando, propõe o jogo:

“Se então também a vós vos parece assim, poderíamos muito bem
entreter nosso tempo em discursos; acho que cada um de nós, da esquerda
para a direita, deve fazer um discurso de louvor ao Amor, o mais belo que
puder, e que Fedro deve começar primeiro, já que está na ponta e é o pai da
ideia”49

A proposta é acatada por todos. Sócrates chega a dizer que não poderia fazer nenhuma
oposição ao tema, já que não seria entendido de mais nada além das questões de amor (177e).
Então passamos aos discursos, um a um, Fedro, Pausânias, Erixímaco, Aristófanes50, Agatão
e, finalmente, Sócrates. Antes do início do primeiro discurso, do Fedro, Apolodoro, que é
quem nos narra a história, faz um desvio importante. Por ele, ficamos sabendo que outros

47
Os leitos do banquete estão dispostos em formato de ferradura, e o lugar de honra, à direita do anfitrião, foi
reservado para Sócrates. Entre os comentadores, talvez Lacan seja um dos mais atentos a essa dimensão tópica
do simpósio. VER LACAN a transferência seminário
48
Cf. Platão, Banquete, 177c
49
Cf. Platão, Banquete, 177d
50
Em virtude de uma crise de soluço, Aristófanes pediu para que Eríximaco falasse em seu lugar, o que obrigou
uma pequena mudança na ordenação proposta. Segundo a ordenação inicial, Aristófanes viria antes de
Erixímaco.
34
convidados fizeram seus elogios (as personagens do Banquete não estão sozinhas no
simpósio), só que o jogo entre esquecimento e rememoração presente no diálogo vai acabar
nos legando uma espécie de “edição com os melhores momentos”. É a própria engenhosidade
do disse-me-disse51 platônico que permite essas omissões. Um pouco antes da fala de Fedro,
vemos o narrador afirmar:

“Sem dúvida, de tudo que cada um deles disse, nem Aristodemo se


lembrava bem, nem por minha vez eu me lembro de tudo o que ele disse; mas
o mais importante, e daqueles que me pareceu que valia a pena lembrar, de
cada um deles eu vos direi seu discurso” 52

O primeiro discurso a ser narrado, o discurso de Fedro, irá apresentar Eros tal como
ele aparece na Teogonia, de Hesíodo: o mais antigo dos deuses, a força criadora que surge do
Caos e junto com a Terra (178b). Fedro fará ainda uma breve descrição de questões relativas à
honra do amante. Em seguida, Pausânias defenderá o amor em sua multiplicidade (em
contraposição à fala anterior, de Fedro, que teria adotado uma visão muito uniforme do amor).
Ele distingue ainda a Afrodite de Hesíodo (filha de Urano, mutilada por Zeus) da Afrodite de
Homero (filha de Zeus e Dione): amor pandêmio (popular) e amor urânio (celestial).
Pausânias termina seu elogio, assim como Fedro, defendendo o amor desde que ele
estimulasse a virtude e preservasse a honra do amado.
Depois segue o discurso de Erixímaco. O médico ateniense, por sua vez, associa o
amor às musas e também o distingue em duas figuras: o amor belo e celestial, representado
pela musa Urânia, e o amor popular, representado pela musa da poesia lírica, Polímnia. No
que diz respeito à arte de cortejar os rapazes, seu elogio não difere muito dos anteriores, de
modo que é Aristófanes que inicia um deslocamento importante no que está sendo discutido
(antecipando, de certa forma, o tipo de abordagem que será adotada por Sócrates em seu
discurso). Aristófanes fará uma descrição mitológica do amor, onde a falta é explicada por
uma punição divina. Os deuses, incomodados com a força dos mortais (até então seres duplos,
de três gêneros: homem-homem, mulher-mulher, andrógino), teriam cortado-os ao meio,
separando-os em sua plenitude e dando início à punição a que estaríamos submetidos até hoje:
buscar a nossa metade perdida.

51
Barthes escreve, na figura sobre a Fofoca: “A caminho de Falero, um homem se aborrece; distingue um outro
que caminha mais adiante, alcança-o e pede-lhe que narre o banquete dado por Agatão. Assim nasce a teoria do
amor: de um acaso, de um aborrecimento, de uma vontade de falar, ou, se assim preferirmos, de uma fofoca de
três quilômetros de extensão. [...] O banquete não é pois somente uma ‘conversa’ (falamos de uma questão), mas
também uma fofoca (falamos entre nós dos outros)”. Cf. BARHTES, 2003, p. 199-200
52
Cf. Platão, Banquete, 178a
35
O discurso de Agatão trará um Eros mais ameno, que seria aquele que nos leva à
sociabilidade (197d) e que só traria amizades e paz (195c). Seria um deus jovem, belo e feliz.
Como bem observa José Américo Motta Pessanha, é enfim o Amor que rege as relações de
superfície, amenas, cordiais, mas sem profundeza e sem compromisso com o trágico53.

Foucault observa, em sua leitura do diálogo, que esses discursos, à exceção dos de
Sócrates e Aristófanes, terão como elemento essencial a problemática da corte e da honra
(assim como o discurso de Lísias e o primeiro contra-discurso de Sócrates no Fedro, que
abordam o tema do amor a partir de questões de conduta amorosa). A diferença do discurso de
Sócrates/Diotima é que há uma tentativa de re-inscrever o problema em termos mais amplos:
o que é o próprio amor, qual é a sua natureza e em seguida quais são as suas obras?54. No
que diz respeito ao de Aristófanes, Foucault comenta que, ao fazer uma gênese do
enamoramento, ao narrar o mito de uma unidade perdida, ele de fato pouco se ocupa dos
problemas da arte de cortejar55.

O DISCURSO DE SÓCRATES/DIOTIMA

Sócrates inicia seu discurso fazendo algumas perguntas a Agatão, que levam o
interlocutor, como é costume no método socrático, a admitir sua ignorância (201c). O filósofo

53
Cf. PESSANHA, 1987, p95
54
Cf. FOUCAULT, 1984, p.297
55
Cf. FOUCAULT, 1984, p.292
36
então passa a contar o que ouviu de Diotima, uma sacerdotisa que ele teria conhecido, há
muito tempo. Sócrates abre mão, portanto, de falar em primeira pessoa e evoca o nome dessa
sacerdotisa, Diotima de Mantinea, de quem ele teria aprendido inclusive o método:

“Parece-me então que o mais fácil é proceder como outrora a


estrangeira, que discorria interrogando-me, pois também eu quase lhe dizia
outras tantas coisas tais quais agora me diz Agatão, [...] exatamente com estas
palavras que eu estou refutando a este”56 (201e)

Há quem veja neste gesto nada além de um socratismo transposto57. No entanto, ao


leitor de Platão (principalmente ao leitor diletante, como é o nosso caso), a cena não deixará
de parecer curiosa. Sócrates, há pouco, acabara de afirmar ser entendido unicamente do amor,
e ainda que fosse sua intenção desfazer esta crença, o fato de ele simplesmente abrir mão de
fazer um discurso (quase que integralmente) para falar em nome de um outro, ou melhor, de
uma outra, Diotima, eis aí um movimento bastante curioso58. Sem falar na relação que
aparece entre os dois e que deixa ver um Sócrates aprendiz:

Sócrates – “Que dizes, ó Diotima, é feio então o amor, e mau?”


Diotima – “Não vais te calar? Acaso pensas que o que não for belo,
é forçosamente feio? Ou também se não for sábio é ignorante? Ou não
percebeste que existe algo entre a sabedoria e a ignorância? [...] Assim
também o amor, porque tu mesmo admites que não é bom nem belo, nem por
isso vás imaginar que ele deve ser feio e mau, mas sim algo que está entre
esses dois extremos”59 (202b)

Essa resposta de Diotima, que irá recusar as oposições em nome de uma medida
intermediária, antecipa o estatuto que o discurso de Sócrates irá conferir tanto ao amor quanto
à filosofia. É interessante que, se insistirmos nesse ponto, isto é, se não reduzirmos Diotima a
uma ficção de Sócrates, a sacerdotisa teria ensinado ao filósofo não só a respeito da gênese de
Eros, mas também o próprio método socrático, ao insistir numa qualidade intermediária entre
o saber e a ignorância e pelo modo com que ela interroga seu interlocutor. Se Diotima não é
uma ficção, ela é certamente uma influência determinante no pensamento de Sócrates.
Poderíamos ainda imaginar vinculações entre Diotima e a mãe do filósofo (Barthes adoraria
56
Cf. Platão, Banquete, 201e
57
É o caso, por exemplo, de Robin. Para ele, possíveis menções ao discurso de Aristófanes e Fedro dariam
indícios da ficcionalidade de Diotima. Ver: ROBIN, Léon. Platão, Lisboa: Cadernos Culturais, 1978, p. 26.
58
Lacan resolve a questão segundo esta leitura: para o psicanalista, como Diotima compara o amor com a Doxa
(204b), intermediária entre a ciência (episteme) e a ignorância (amathia), o gesto coloca Sócrates diante de uma
aporia. Isso explica porque ele não pode se apresentar em seu discurso senão num registro de quem não sabia, já
que assumir um saber sobre o amor seria invalidar o fato de que o tema parte sempre de um ponto de amathia, de
ignorância.
59
Cf. Platão, Banquete, 202b
37
isso), que, sabemos, era uma parteira. A própria Diotima faz menções que nos levam a cogitar
essa hipótese (206c-207b). Mas não sendo essa a nossa questão com o texto, seguiremos a
leitura como se tudo não passasse de uma ficção inventada por Sócrates.
Em resumo, o discurso de Sócrates/Diotima vai apresentar uma escala hierárquica para
o amor, com diferentes gradações. No nível mais baixo, encontraríamos o enamoramento pela
beleza de um corpo, e daí seguiriam o reconhecimento da beleza em todos os corpos, até
chegar ao reconhecimento da beleza nas almas e, finalmente, ao amor do filósofo, que é o
amor desinteressado pela sabedoria. Quando é tecida esta relação do amor com a filosofia,
ficamos sabendo que essa afinidade entre os termos se dá exatamente por sua condição
intermediária:

“Com efeito, uma das coisas mais belas é a sabedoria, e o amor é


amor pelo belo, de modo que é forçoso o amor ser filósofo e, sendo filósofo,
estar entre o sábio e o ignorante”60

Essa condição de intermédio é uma via de acesso bastante interessante ao idealismo


platônico, na medida em que o amor (e por consequência, a filosofia) são vistos como meios
de uma ascendência da condição de mortalidade do homem rumo à imortalidade celeste das
ideias (o eixo verticalizante que Platão explora no pensamento – possível herança de
Parmênides – e que tem no Banquete a sua força motriz: o desejo, o amor, o enamoramento,
ainda que todos eles devam, como último recurso na sua ascensão rumo ao céu das ideias,
curvar seu desejo, se enamorar da amizade, da philia: estranha torção que entrega o amor aos
cuidados de uma a “lei do incesto”).
Há muitos pontos interessantes a explorar no discurso de Sócrates/Diotima, bem como
nos discursos dos outros convidados. Se houvesse mais tempo, poderíamos nos deixar levar
pelo livro, ir e vir no texto se deixando impressionar por cada um dos seus pormenores. No
entanto, o interesse deste ensaio se concentra, como já foi dito, no momento em que Sócrates
termina seu discurso e o simpósio recebe uma visita inesperada: Alcibíades, que chegará
embriagado e modificará, definitivamente, a qualidade dos discursos no banquete platônico.

60
Cf. Platão, Banquete, 204b
38
A INTRUSÃO DE ALCIBÍADES

Há uma interessante bibliografia sobre Alcibíades, da qual ressaltaríamos sobretudo o


livro de Plutarco, Vidas Paralelas, onde o autor analisa o perfil biográfico de Alcibíades ao
lado de outro, o de Coriolano, comparando-os. A referência mais conhecida talvez seja a de
Tucídides, em A Guerra do Peloponeso (Alcibíades aparece desde o livro V até o livro VIII e
é bastante provável que o historiador grego tenha conhecido o democrata ateniense). Há
também o interessante Alcibíades, os perigos da ambição, de Jacqueline de Romilly, que é
rico em dados históricos e um ótimo livro introdutório à vasta bibliografia que versa sobre
este discípulo de Sócrates (de Tucídides ao historiador francês Jean Hatzfeld). Há ainda um
conto de Machado de Assis, intitulado Uma visita de Alcibíades, onde a personagem
ateniense aparece na casa de um desembargador brasileiro do final do século XIX (Machado
lê Alcibíades por meio de Plutarco e deixa essa referência marcada no texto: antes de receber
a visita inesperada, o desembargador estava lendo o Vidas Paralelas). Quase todos os textos
descrevem Alcibíades como uma personagem ambígua, além, é claro, de sempre ressaltarem
sua beleza e sua condição aristocrática (Lacan, certa vez, para defini-lo durante um de seus
seminários, fez uma comparação bem-humorada afirmando que Alcibíades seria então uma
mistura de James Dean com o presidente Kennedy).
De todo modo, e apesar das várias nuances que a personagem adquire à luz dessas
leituras, o que lemos sobre o Banquete costuma reservar a Alcibíades, quase sempre, um lugar
de ridículo. Na edição brasileira do diálogo61, encontramos, já na primeira página, uma
antecipação dessa leitura, feita pelos tradutores. Numa nota de rodapé, eles nos apresentam
Alcibíades, por analogia, ao comentarem as falas de Apolodoro:

“O entusiasmo de Apolodoro, raiando o ridículo, constitui sem


dúvida o primeiro traço do retrato que o Banquete nos dá de um Sócrates
capaz de suscitar desencontradas adesões, e nesse sentido é uma hábil
antecipação da atitude de Alcibíades, também ridícula, mas noutra
perspectiva”62

Esse reconhecimento de uma dimensão de ridículo no discurso de Alcibíades, é ele


que nos interessará daqui por diante. Sabemos o quanto essas leituras são devedoras do
impacto provocado pelo julgamento de Sócrates, na medida em que elas fazem eco à tentativa
de argumentar contra ao menos uma das acusações, a de corruptor da juventude (ao que é

61
Publicada na coleção Os Pensadores.
62
Cf. Platão, Banquete, p.7
39
preciso sempre reforçar o coro: Não, Sócrates não possuía discípulos!63). Por outro lado, não
há também como negar a afeição que Sócrates nutria por Alcibíades64:

“No início do Protágoras, de Platão, quando se zomba da admiração


que lhe votava Sócrates e de que pareça [Alcibíades] um tanto aéreo, alguém
lhe pergunta: ‘Que teria acontecido aos dois de tão extraordinário?’”
(Romilly, p18)

Mas não é a afeição (pública e notória) que Sócrates nutria por Alcibíades que vai nos
interessar propriamente, e sim aquilo que Alcibíades desloca da qualidade do que estava
sendo dito no Banquete: ora, a chegada de Alcibíades é a chegada do amante tomado de
desejo, aquele que, ao invés de enunciar um elogio a Eros, se deixará levar por um discurso
amoroso. Ao leitor atento, nem será preciso perguntar, agora com Barthes, sobre o intratável
deste discurso, quero dizer, sobre a condição marginal que ele parece ocupar entre as
linguagens autorizadas65 do Banquete. Como em Barthes, e pelo que nos antecipam os
tradutores, também aqui o lugar do amante é solitário e está à deriva de uma linguagem que o
compreenda.
Se não é verdade que essa dimensão de ridículo esteja pressuposta no Banquete, é o
que devemos verificar em nossa leitura. Por hora, ao menos é preciso admitir que muitos
leitores do diálogo insistiram nessa tendência de reduzir a importância da chegada de
Alcibíades a uma espécie de apêndice cômico da cena filosófica, que viria apenas ratificar o
discurso de Sócrates/Diotima66 (segundo essas leituras – que aparecem inclusive em autores
ocupados com o tema da diferença e da marginalidade, como é o caso de Foucault e, até

63
Por um acaso, seus interlocutores é que se deram ao trabalho: após a morte de Sócrates, vê-se o surgimento de
uma série de escolas possibilitadas pelo encontro com o filósofo (não só Platão teria se ocupado de fazer
discípulos, mas também Antístenes, fundador da escola cínica, Aristipo, fundador da escola de Cirene, e
Euclides, fundador da escola de Megara). Sócrates, assim como Jesus, não escreveu. Mas é de se notar que, em
ambos os casos, a circunstância trágica da morte desencadeie, em seguida, uma compulsão de escrita em seus
seguidores: nos dois casos uma rede de copistas é logo articulada para escrever em seus nomes.
64
O primeiro Alcibíades começa com Sócrates afirmando seu amor, apesar das acusações públicas contra
Alcibíades, provavelmente após o fracasso da expedição contra Siracusa: “Ó filho de Clínias, deves estar
admirado de que, tendo sido eu o primeiro a te amar, seja o único que não te abandonasse, quando todos se
afastaram, apesar de não te haver dirigido a palavra durante tantos anos em que a turba te importunava com suas
atenções...”.
65
Segundo Roland Barthes, o discurso amoroso é uma língua frágil, insípida, cheia de idas e vindas: muito
diferente do discurso lógico, programado para a enunciação de verdades. Theoria, em grego, significa ver. O
amante tem os olhos cegos. Sobre estas fronteiras entre o discurso amoroso e a theoria, ver: MARTY, Éric.
Roland Barthes: o ofício de escrever, São Paulo: DIFEL, 2008.
66
Pierre Hadot, entendendo a chegada de Alcibíades como uma mera extensão da fala de Sócrates/Diotima,
chega a localizar nesse gesto “o sentido profundo” do texto (p.72): “De uma extremidade a outra do diálogo, mas
sobretudo no discurso de Diotima e no de Alcibíades, percebe-se que os traços da figura de Eros e os da figura
de Sócrates tendem a confundir-se. E, finalmente, se eles se entremeiam tão estreitamente, a razão é que Eros e
Sócrates personificam, um de maneira mítica, outro de maneira histórica, a figura do filósofo. Tal é o sentido
profundo do diálogo”. Cf. HADOT, 1999, p.72
40
mesmo, de certa forma, do próprio Barthes67, – Alcibíades entraria em cena para “provar” que
o filósofo, no caso, Sócrates, seria o objeto a ser amado por excelência).
A reação de Sócrates a esta intrusão é desproporcional e defensiva. O filósofo já não
parece lisonjeado com o elogio antes de ele ser pronunciado. O medo do ridículo (numa
competição onde sua vitória já era dada como garantida) apavora o filósofo, que intervém em
meio as pretensões de Alcibíades em elogiá-lo: Tu! – disse-lhe Sócrates – que tens em mente?
Não é para carregar no ridículo que vais elogiar-me? Ou que farás?68
Alcibíades afirma que dirá a verdade, e desafia então Sócrates a interrompê-lo, caso
ele venha a dizer alguma coisa de inverídico, ou mesmo para o caso de ele exagerar no retrato
do filósofo (já que Alcibíades está bêbado, como ele mesmo se desculpa: não é fácil, a quem
está neste estado, da tua singularidade dar uma conta bem feita e seguida – 215a). Feita essa
ressalva, Alcibíades inicia seu elogio fazendo uma curiosa menção, que em muito nos
interessará:

“Louvar Sócrates, senhores, é assim que eu tentarei, através de


imagens [grifo meu]. Ele certamente pensará talvez que é para carregar no
ridículo, mas será a imagem em vista da verdade, não do ridículo.” 69

Ora, Alcibíades fará desfilar, em seu discurso, um imaginário do objeto amado


(Sócrates), que dará conta de uma potência e de um heroísmo, do qual, obviamente, aquele
que nos relata, admira justamente por excluir-se (para Barthes, a imagem seria justamente isso
de que sou excluído). Ao longo de seu elogio veremos Sócrates cumprir os mais
impressionantes feitos, permanecer dias e dias refletindo, numa mesma posição, resistir a
temperaturas extremas, etc, etc, etc...
Só que ao final do elogio, Alcibíades faz um alerta bastante razoável a Agatão,
dizendo que, em suas relações, Sócrates costuma se fazer de amoroso, para então permanecer
para sempre na posição de bem-amado (222b). Ora, não há nenhuma novidade nisso. O
discurso de Diotima já apontava para o filósofo como aquele que deverá ser o objeto amado
por excelência. O que incomoda Sócrates, de fato, é que Alcibíades não se limita, como ele
67
Apesar de sugerir, no texto sobre A Imagem, um estranhamento com o fato de Sócrates ter “sublimado”
Alcibíades, nos seminários sobre o discurso amoroso Barthes afirma que a última personagem do Banquete viria
mesmo pra confirmar Sócrates como o amante perfeito: “Dans le Banquet, lês cinq premiers discours (sur
l’amour) sont univoques: ils recherchent, postulent une essence de l’amour et donc une science de l’amour. Par
contre, les derniers discours, celui de Diotime, soutient que sur l’Amour, dieu intermédiaire, Il ne peut y avoir
qu’un discours intermédiaire (ambigu). Mais, du moins, une ‘science’ de l’intermédiaire, de l’ambivalence?
Même pas; le discours de Diotime n’est pas le dernier; le dernier discours: Alcibiade, qui fait l’éloge de Socrate,
c’est-à-dire de l’amoureux parfait.” (Cf. BARTHES, 2007, p.333)
68
Cf. Platão, Banquete, 214e
69
Cf. Platão, Banquete, 215b
41
havia prometido, a simplesmente fazer desfilar o seu Imaginário de amante. Ele também
desafia Sócrates a replicar-lhe um elogio, ou, como bem observa Lacan, apesar de se saber
desejado por Sócrates, o que Alcibíades quer é um signo desse desejo (o que tiraria Sócrates
da posição de bem-amado). Ora, um signo de seu desejo é justamente o que Sócrates não
pode dar. E isso acontece, como nos mostra Foucault, porque para manter-se em sua posição
de bem-amado (posição muito bem denunciada por Alcibíades a Agatão), ele deve sempre
manter-se temperante, resistindo à sedução de seus jovens amantes:

“A distribuição dos papéis é inteiramente invertida: são os jovens


rapazes – eles que são belos e que são assediados por tantos namorados – que
são os enamorados de Sócrates; eles seguem suas pegadas, procuram seduzi-
lo, querem que ele conceda seus favores, isto é, que lhes comunique o tesouro
da sabedoria. Eles ficam na posição de erasta [amante] e Sócrates, o homem
velho de corpo sem graça, na posição de erômeno [amado]. Mas o que eles
não sabem – e que Alcibíades descobre no curso da famosa ‘provação’ – é
que Sócrates só é amado por eles na medida mesmo em que é capaz de
resistir à sua sedução”70

Sócrates não tem saída. Está desconfortável na sua posição de bem-amado porque não
tem saída. Alcibíades, em seu discurso e ainda que embriagado, havia persuadido os
convidados. Todos riem, com Alcibíades, que aproximou o simpósio de sua verdadeira
vocação: a embriaguez, a alegria, a festa (o intruso chega a se autonomear simposiarca só
para reestabelecer a circulação de bebidas). Sócrates, então, sorrateiramente (talvez até
mesmo, quem sabe, se sentindo desafiado por Alcibíades em seu lugar de bem-amado do
simpósio), vai denunciar a intrusão, o fato de Alcibíades estar alterando a prévia ordenação do
Banquete. E ele vai fazer isso interpretando, afirmando uma dimensão implícita do discurso
de Alcibíades, e contradizendo assim a impressão dos demais convidados, que haviam rido do
elogio justamente por sua franqueza, porque parecia ele ainda estar amoroso de Sócrates
(222c):

“Tu me pareces, ó Alcibíades, estar em teu domínio. Pois de outro


modo não te porias, assim tão destramente fazendo rodeios, a dissimular o
motivo porque falaste; como que falando acessoriamente tu o deixaste para o
fim, como se tudo o que disseste não tivesse sido em vista disso, de me
indispor com Agatão, na ideia de que eu devo amar-te e a nenhum outro, e
que Agatão é por ti que deve ser amado, e por nenhum outro. Mas não me
escapaste! Ao contrário, esse teu drama de sátiros e de silenos ficou
transparente. Pois, bem, caro Agatão, que nada mais haja para ele, e faze com
que comigo ninguém te indisponha” 71

70
Cf. FOUCAULT, 1984, p.303
71
Cf. Platão, Banquete, 222d
42
Agatão, não por acaso, imediatamente lê a intrusão de Alcibíades submetendo-a à
tópica do Banquete. Em outras palavras, o anfitrião complementa a denúncia de Sócrates
sugerindo uma lei anterior à intrusão de Alcibíades: a disposição de lugares do Banquete, a
ordenação dos leitos. Eis como a interpretação de Sócrates permite a Agatão ler a cena:
Alcibíades, que havia chegado e se colocado ao lado dele, de onde proferiu seu elogio, havia
se colocado ali não somente para proferi-lo, como de fato fizera, mas para interromper uma
certa ordenação do simpósio: se colocar entre os dois, Agatão e Sócrates, interrompendo
assim uma relação pré-existente, já em jogo. E assim o anfitrião reconhece:

“De fato, ó Sócrates, é muito provável que estejas dizendo a


verdade. E a prova é a maneira como justamente ele se recostou aqui no
meio, entre mim e ti, para nos afastar um do outro. Nada mais ele terá então;
eu virei para o teu lado e me recostarei”72

Estava dito pelo anfitrião: o lugar de Alcibíades era o lugar do intruso. Ele havia se
colocado entre Agatão e Sócrates, se inserido entre os dois, e não por motivações virtuosas (o
amor), mas por um desejo vil, comprometido em interromper o funcionamento de uma
relação, em alterá-la à força para que ele fosse o único beneficiário. Diante dessa
demonstração socrática da intrusão de Alcibíades, Agatão é obrigado a mudar de lugar para
recuperar a proximidade com Sócrates, e então levanta, troca de leito, e finalmente toma o
lugar à direita do filósofo. A um último apelo de Alcibíades, que pedia agora para se colocar
do outro lado de Agatão, e não mais entre os dois, Sócrates responde:

“Impossível! Pois se tu me elogiaste, devo eu por minha vez elogiar


o que está à minha direita. Ora, se abaixo de ti ficar Agatão, não irá ele por
acaso fazer-me um novo elogio, antes de, pelo contrário, ser por mim
elogiado? Deixa, divino amigo, e não invejes ao jovem o meu elogio, pois é
grande o meu desejo de elogiá-lo”73

Sócrates sublima Alcibíades em nome da disposição de leitos do simpósio e da lei que


regulava a circulação dos elogios, mas não recusando-lhe o elogio, e sim submetendo-o à lei
do jogo. Ora, esse jogo já estava em operação antes da chegada de Alcibíades (desde a
proposta de Erixímaco74, estas seriam as regras: o movimento seguiria no mesmo sentido, da
esquerda para a direita; e a tarefa seria a mesma, um elogio). A diferença é que Alcibíades
altera a qualidade da tarefa: não mais um discurso (um elogio) sobre Eros, não mais uma

72
Cf. Platão, Banquete, 222e
73
Cf. Platão, Banquete, 223a
74
Cf. Platão, Banquete, 177d
43
theoria sobre o amor, e sim um elogio feito pelo amante, sob o efeito de Eros, isto é, em
estado de enamoramento: deixar que Eros fale por meio de nós: assumir o discurso amoroso
frente ao objeto de desejo.
Desse modo, Sócrates não interrompe propriamente o “jogo” de Alcibíades. Ele o
incita. Ficamos sabendo, por meio de suas palavras, que seu desejo é dar continuidade ao
movimento (como fica claro na citação anterior) já que o intuito agora é elogiar Agatão.
Assim, numa retomada estratégica do jogo que antes governava o simpósio (e no qual
Sócrates era evidentemente o mais forte), o filósofo incorpora o desvio de Alcibíades ao jogo
e assim se descompromete em “devolvê-lo”, o que seria dar o signo que Alcibíades tanto
deseja. O que Sócrates procura fazer (e daí a semelhança com a brincadeira do passa-anel,
evocada por Barthes), é tão somente passar o elogio adiante, recuperando assim a antiga
ordenação que operava no jogo, e oferecendo enfim à intromissão de Alcibíades uma saída
dialética. Ele que agora esperasse a sua vez de ser elogiado.
Do elogio de Sócrates a Agatão, no entanto, nada saberemos (aliás, não veremos
Sócrates enunciar um discurso amoroso, exceto, talvez, no Fedro75 e, sem muita certeza, no
início do Cármides). O encontro é interrompido mais uma vez e de modo definitivo: se
Alcibíades e seus companheiros haviam batido à porta de Agatão como foliões, agora, portas
abertas, o diálogo é novamente invadido, desta vez por um grupo numeroso de embriagados,
que desordenam a cena e provocam as personagens a beber (223e). Aristodemo, que é quem
nos conta a história, adormece após a chegada dos foliões e só vai despertar tempos depois,
quando já não havia mais ninguém acordado, exceto Sócrates, Agatão e Aristófanes. Ao
acordar, ele testemunha (sem ser visto?) ainda uma última conversa entre os três e nos faz um
pequeno relato: parece que eles falavam sobre os poetas trágicos e os comediantes. Só que
Agatão e Aristófanes, visivelmente cansados, logo adormecem, e Sócrates, sozinho, último
remanescente do Banquete, decide partir.

UM LUGAR PARA ALCIBÍADES

Uma vez reunidas as nossas impressões do diálogo, nosso interesse aqui irá se
restringir a uma retomada, tanto desta intrusão, a chegada de Alcibíades, quanto do

75
Há, é claro, a belíssima atualização de Paul Valery ao diálogo. Nela Sócrates enuncia, diversas vezes, aquilo
que poderíamos chamar de um discurso amoroso. Cf. VALERY, Paul. Eupalinos ou o arquiteto, São Paulo:
Editora 34, 2006.
44
consequente confronto com Sócrates, enfim, de toda essa última parte do diálogo quando
finalmente um amante entra em cena e fala do amor em primeira pessoa. Embora este seja um
traço notável, a tradição de comentadores, de maneira geral, reduziu este trecho a um simples
apêndice cômico do diálogo, quando muito a uma evidência, uma comprovação de que o
filósofo, no caso Sócrates, era o objeto a ser amado por excelência.
Acontece que Alcibíades enuncia seu discurso do ponto-de-vista de um apaixonado, e
independente da interpretação que se faça da cena, não se pode deixar de lado que ele traz ao
simpósio um discurso até então recalcado, esquecido pelos elogios que haviam sido feitos até
aquele momento. Quero dizer: até a chegada de Alcibíades ao Banquete, ninguém havia
falado do amor em primeira pessoa, muito embora toda variedade de histórias e mitologias
tenham sido evocadas em nome do amante, seja para pensar-lhe a honra, para dar-lhe um mito
ou para alcançar-lhe a ideia. Platão, ao terminar de escrever a fala de seu mestre, talvez tenha
notado essa falta imperdoável.
Eis o nosso delírio de leitura: o discurso amoroso, até então recalcado, expulso da
cena filosófica, retorna mais tarde, como palavra final, e é Platão quem o admite. Quero
dizer, o Banquete não é somente o combate entre os discursos, o jogo proposto por Erixímaco,
o conjunto de elogios que vai de lugar em lugar, de Fedro a Sócrates, mas é também todo o
percurso sinuoso que marca o início do texto, Aristodemo que conta a Gláucon, que conta a
Apolodoro, que conta a um passante na rua isso que nos é contado por Platão; e também os
desvios (de Sócrates, em entrar na casa, de Aristófanes, em respeitar a ordem dos leitos), os
excessos e os tempos mortos da escrita, sei que parece um pouco confuso, mas insisto: há
muito mais em jogo no texto que um combate entre discursos, como bem denuncia, quase ao
final do diálogo, o atraso, a chegada inesperada do amante, o elemento de virada do texto,
essa palinódia platônica sem Sócrates, que ousaríamos, é a retratação do texto sobre ele
mesmo, último recurso do antidogmatismo de Platão: aqui, a última palavra não será dada a
Sócrates.
Ora, se no Fedro é o próprio Sócrates quem se retrata, no caso do Banquete, a
palinódia é textual (Platão abandona um determinado tipo de discurso, um falar sobre o amor,
através de uma situação dramática específica, que permite essa mudança tão radical de
enunciação: um intruso, um embriagado de última hora que entra em cena sem saber o que se
passava). Quando Alcibíades enfim aceita fazer um elogio, desde que um elogio ao amado, no
caso, Sócrates, o filósofo nem sequer reconhece naquele discurso o seu endereçamento
declarado: ele tentará, ao contrário, se desviar dos elogios de Alcibíades, embaralhando os

45
lugares ao afirmar que eles teriam outro destino: Agatão, o anfitrião da festa. Num jogo onde
venceria o melhor elogio sobre o amor, Sócrates parece proteger-se do discurso amoroso (do
qual ele já temia o ridículo76) se subtraindo a ele, ou, se preferirem, conferindo-lhe uma saída
dialética: Sócrates assimila o elogio feito por Alcibíades ao jogo do simpósio. Incorpora,
sorrateiramente, o gesto do intruso ao manual da festa, tentando-lhe disfarçar o vigor da
apresentação.
Como a cena é novamente invadida por um grupo de foliões (vitória dos ébrios!), não
vemos Sócrates fazer o que prometeu (dar continuidade a uma sequência de elogios iniciados
com o de Alcibíades). Também não vemos mais Alcibíades, dado que Aristodemo, que é
quem testemunha a história, logo adormece. Quando ele novamente desperta, já pela manhã,
apenas Sócrates, Aristófanes e Agatão estavam acordados. Segundo Aristodemo, Sócrates
forçava Aristófanes e Agatão a admitir que é de um mesmo homem o saber fazer uma
comédia e uma tragédia, e aquele que com arte é um poeta trágico é também um poeta
cômico (223d). Mas seus interlocutores mal prestavam atenção, cheios de sono. Quando eles
enfim adormecem, Sócrates os acomoda ao leito (tal como uma mãe), e parte.
Platão termina o Banquete com um Sócrates solitário, num banho às margens do Ilisso
(estranho que isso se repita de modo tão marcado, antes e depois do encontro, no caso de
alguém que era conhecido por nunca tomar banho). A palinódia socrática ficará restrita à
retratação do Fedro, outro diálogo que também trata do amor. Às margens desse mesmo rio, o
Ilisso, fora dos muros da cidade, o filósofo reconhece seu erro e faz a sua palinódia: o amante,
quando tomado, quando sob o domínio de Eros, é mais divino que o amado, pois o deus está
no primeiro, e não no segundo. Sobre esta passagem, Thomas Mann escreveria, muito tempo
depois, que aí reside, talvez, o pensamento mais terno e irônico que jamais foi concebido,
fonte de toda malícia e da mais secreta volúpia do desejo.

76
214e
46
47
Terceiro Capítulo: O Cartão-Postal

“Não há escritos de Platão, nem nunca haverá; O


que por aí corre com esse nome é de Sócrates belo e
remoçado. Adeus, aceita meu conselho: queima esta carta
depois de a leres várias vezes”
Platão, Carta II

Começo a escrever sobre O Cartão-Postal já bem tarde, a poucas horas de enviar a


dissertação para a banca. Estou sem sono e decido seguir em frente. Reúno tudo que me vai
ser útil: o caderno onde estão os fichamentos, uma boa caneta, o notebook, folhas avulsas.
Deixo tudo separado numa mesa. Pego então o livro de Derrida e vou para o quarto (nesse
primeiro momento, quase sempre, gosto de fazer a leitura na cama). Coloco então o livro no
colo e tenho ainda alguma dificuldade em manuseá-lo: medo de perder as inúmeras marcações
que eu inseri entre as páginas (esse péssimo hábito de não marcar no texto, mas de inserir-lhe
folhas soltas, papéis, cartas, toda sorte de objetos que lhe guardem a página). Abro então O
Cartão-Postal, aleatoriamente, numa dessas marcações. É um lápis. Estava estirado bem no
miolo entre as duas folhas, e deslizou quando eu abri o livro pra bem perto da lombada. Deito
o lápis fora do livro, sobre o criado-mudo, sem ver: os olhos permanecem na página recém-
aberta, à procura daquilo que me teria me chamado a atenção:
48
“24 de agosto de 1979.
Você conhece o final do policial: Sócrates mata todos eles ou faz com que
eles se matem entre si, fica sozinho, os policiais das brigadas antigangues
invadem o local, ele joga gasolina em tudo, imediatamente é o braseiro, e
atrás dos policiais a multidão se imprensa, um pouco decepcionada que não o
tenham capturado vivo ou que ele não tenha conseguido escapar, dá no
mesmo”77

Procuro na página se não há mais nada que possa interessar – não me lembro de ter
marcado esse trecho, mas gosto. A maioria dessas marcações foram feitas na minha última
leitura dos Envios, há quase dois meses, quando tentei dar mais atenção a essas especulações
de Derrida a respeito da relação de anterioridade pressuposta entre Sócrates/Platão. Como
sempre, Derrida está interessado em provar (ele faz isso sem parar) que a estrutura da
diferença é mais complicada que a estrutura opositiva binária. A différance, o termo inventado
por Derrida, homófono, mas com uma pequena diferença na grafia (um e por um a) da palavra
différence, diferença, pode nos ajudar a entender porque a estrutura da diferença é mais
complexa que as oposições binárias. Na Wikipédia, no artigo sobre o termo, há um
apontamento bastante claro ao artigo sobre a Différance, publicado em Margens da Filosofia:

“[...] Derrida indica que essa différance acontece em um número de


características heterogêneas que governam a produção de significado textual.
A primeira (relativa ao adiamento) é a noção de que palavras e signos não
podem nunca evocar exatamente o que eles significam, mas podem apenas
ser definidos através de um apelo a palavras adicionais, das quais diferem.
Assim, o significado é sempre adiado ou postergado, através de uma cadeia
sem fim de significados. A segunda (relativa à diferença, algumas vezes
referida como espacement ou "espaçamento") diz respeito à força que
diferencia elementos um do outro, e, ao fazer isto, engendra oposições
binárias e hierarquias que sustentam o próprio significado.” 78

Se em O animal que logo sou Derrida problematiza a oposição Homem/Animal, se em


Força de Lei Derrida explora as tensões na oposição Direito/Justiça, no Cartão-Postal ele
embaralha os lugares Sócrates/Platão (ou melhor: é embaralhado pela imagem de um cartão-
postal onde Platão vem antes de Sócrates, que escreve). A complicação nesse texto é que sua
tese vai ser sustentada ao longo de cartas de amor, daí a linguagem delirante79 que atravessa a
maioria dos Envios.

77
Cf. DERRIDA, 2007, p.278
78
Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Différance
79
Como Roland Barthes observa no curso sobre Como Viver Junto, para os gregos, havia uma palavra específica
para designar a paixão, e então ele fala em mania, em delírio monomaníaco. (O áudio desta aula está disponível
em http://www.youtube.com/watch?v=d6DJmOfmKTI)
49
E aproveito, por isso mesmo, para fazer uma apóstrofe: sei que é injusto com você,
leitor, talvez você não esteja a par dessa história: quero dizer, das cartas de amor que Derrida
escreve e do que fizeram esses dois, essa dupla demoníaca, Sócrates e Platão, e de como
Sócrates escapou, diante de todos, desaparecendo pra sempre no meio da fumaça, enquanto
tudo queimava. Um delírio, eu sei (Derrida também o admite, diversas vezes). Peço perdão
por ter escolhido uma história maníaca (delirante) para ocupar a mim e a você. Mas quando a
fumaça baixar (e Sócrates já estiver no contraplano), nós veremos os copistas fazendo o seu
trabalho (escrevendo, mandando cartas, criando diálogos, tudo em seu nome). Sócrates não
desaparece impunemente, nós sabemos. Ele desencadeia com isso toda uma cena postal: os
correios, Derrida vai falar dos correios e eu os imagino, no instante seguinte à morte de
Sócrates, funcionando a todo vapor. De posto a posto, de lugar em lugar, até nós que nos
ocupamos ainda dessa história. Sócrates morre. Platão escreve. E o resto você já deve saber.
Mas e se eu invertesse a dupla, e se Platão viesse antes, ou melhor, e se ele estivesse atrás de
Sócrates? Eu sei, você vai dizer que eu enlouqueci, é estranho imaginar as coisas dessa
maneira, é delirante: eu mesmo resisti muito. Mas você precisa ler a correspondência, as
coisas que ele escreve pra ela (as suposições, a palavra amorosa, o endereçamento errante).
Talvez então você concorde comigo.

•••

Mas vamos começar do começo, quero dizer, não é minha intenção antecipar nada.
Voltemos, portanto, ao momento do rapto: Derrida diante do cartão-postal, Platão ordenando
Sócrates a escrever. É ali que o remetente parece mergulhar em seu delírio monomaníaco (não
era assim que os gregos chamavam a paixão?): é esta a imagem que desencadeia a escrita
epistolar e é em torno dela que Derrida escreverá seus envios. Acontece mais ou menos assim:
o filósofo é capturado pela imagem impressa no cartão-postal, uma imagem onde vemos
Platão posicionado atrás de Sócrates, vigiando seu mestre (agora discípulo?) que, sentado
num trono, escreve sobre uma bancada, tendo as duas mãos ocupadas (a da direita pousa o
pincel na tinta, a da esquerda desenha). Parece um erro, é claro: as legendas foram trocadas,
erraram os nomes. Mas não. E então Derrida começa a delirar outras maneiras de ler a cena
(há muitas ao longo dos Envios: Platão enrabando Sócrates, uma desordem geracional, um
acordo clandestino, a criação de um selo...). Por hora, trago à leitura a cena do rapto, que é

50
quando Derrida é capturado pela imagem numa biblioteca de Oxford (reproduzo, antes, a
imagem, encontrada num site da internet80):

“Você viu este cartão, a imagem atrás deste cartão? Deparei-me com ele,
ontem, na Bodleiana (é a famosa biblioteca de Oxford), vou lhe contar.
Fiquei imobilizado, com o sentimento da alucinação (ele é louco? ele errou
os nomes!), e ao mesmo tempo de uma revelação apocalíptica: Sócrates
escrevendo, escrevendo diante de Platão, eu sempre soube, tinha
permanecido como o negativo de uma fotografia para ser revelada há vinte
cinco séculos – em mim, evidentemente. Bastaria escrever isto calmamente.
O revelador está aqui, a menos que eu não saiba ainda decifrar nada desta
imagem, e é, com efeito, o mais provável. Sócrates, aquele que escreve –
sentado, curvado, escriba ou copista dócil, o secretário de Platão, digamos
assim. Ele encontra-se diante de Platão, não, Platão está atrás dele, menor
(por que menor?), mas de pé. Com o dedo estendido, parece indicar,
designar, mostrar a via ou dar uma ordem – ou ditar, autoritário, magistral,
imperioso. Malvado quase, você não acha, e voluntariamente. Comprei um
estoque inteiro desses postais”81

Não é o primeiro dos Envios. Os primeiros datam do dia 3 de junho de 1977 e este,
que narra a descoberta do cartão-postal, é do dia 4 de junho do mesmo ano: um dia depois,
portanto. Mas como Derrida faz alusão ao acontecimento como se ocorrido no dia anterior
(“Deparei-me com ele, ontem, na Bodleiana”), o início dos remetimentos postais coincide
com a descoberta da imagem. A partir de então, o cartão-postal de Oxford será evocado

80
http://kafilabackup.files.wordpress.com/2011/04/socrates_and_plato.jpg?w=600
81
Cf. DERRIDA, 2007, p.15-16
51
diversas vezes, e se desdobrará em meio às cartas de amor, nelas, numa especulação acerca
dos correios, da autenticidade das cartas de Platão e de uma pressuposição geracional, tida
como certa, onde Sócrates viria antes de Platão, atrás dele, portanto. A imagem que Derrida
tem em mãos parece colocar em cheque toda uma tecnologia de leitura que permitiria a
ordenação dos correios e o suposto entendimento das mensagens:

“Você se dá conta, tudo [...] em nossa política do enciclopédico, em nossas


telecomunicações de todos os gêneros, em nosso arquivo
telemáticometafísico, em nossa biblioteca, por exemplo, a maravilhosa
Bodleiana, tudo é construído sobre o mapa protocolar de um axioma, que
poderíamos demonstrar, estender sobre um grande cartão, um cartão-postal
evidentemente, de tão simples que é, de tão elementar, breve estereotipia
amedrontada (sobretudo nada dizer nem pensar que descarrile, que entrave a
telecom.). O mapa determina isto, simplesmente, devemos acreditar: Sócrates
vem antes de Platão, há entre eles – e em geral – uma ordem de gerações,
uma irreversível sequência de herança. Sócrates vem antes, não na frente mas
antes de Platão, portanto, atrás dele, e o mapa nos liga a esta ordem: eis como
se orientar no pensamento, eis a esquerda e a direita, ande. Sócrates, aquele
que não escreve, como dizia Nietzsche (quantas vezes lhe repeti que achava
aquele lá também, às vezes ou mesmo sempre, um pouco ingênuo nas
bordas; você se lembra daquela fotografia dele com aquele lado “bom
gordo”, no início em todo caso, antes do ‘mal’, antes do desastre?). Ele não
entendeu nada da catástrofe inicial, ao menos desta, pois das outras ele
entendia. Ele acreditou como todo mundo que Sócrates não escrevia, que ele
vinha antes de Platão, que escrevia mais ou menos segundo seu ditado, e o
deixava, portanto, escrever sozinho, como disse em algum lugar”82.

A IMAGEM E A DESCONSTRUÇÃO DO PLATONISMO

A autoria da imagem que Derrida tem em mãos (impressa num cartão-postal) é de um


monge beneditino do século XIII, chamado Matthew Paris, e foi extraída da folha de rosto de
um livro da sorte medieval (provavelmente de origem árabe, embora ele tenha também uma
versão latina), intitulado Prenostica Socratis Basilei (ou Os Prognósticos do Rei Sócrates).
Embora o genitivo, em latim, não necessariamente implique numa autoria da obra, o nome
“Socratis” aqui sem dúvida remete ao filósofo grego, uma vez que é esta a tradição que parece
ecoar no livro (há, inclusive, algumas sortes atribuídas a Pitágoras83, outras a Euclides84).

82
Cf. DERRIDA, 2007, p.154
83
Ver Los Libros de Suerte Medievales: Las Sortes Sanctorum y Los Prenostica Socratis Basilei, onde os
editores espanhóis Enrique Montero Cartelle e Alberto Alonso Guardo fazem uma revisão crítica da obra, além
de traduzi-la para o espanhol, comparando as versões árabes e latinas do livro da sorte. Sobre a aparição de
Pitágoras e a suposta autoria de Sócrates, ver página 108.
84
Cf. DERRIDA, 2007, p.237
52
Derrida não explora de maneira aprofundada as relações da imagem com o livro da
sorte. Sobre este último, ele faz uma descrição mais detalhada nas cartas do dia 19, 20 e 26 de
julho de 1979 – que é mais ou menos o período em que ele teve acesso ao exemplar de
Oxford. Mas o que quero dizer é que essa menção ao livro não vem para circunscrever a
imagem, para dar-lhe uma origem, senão para desdobrá-la: o livro vem se juntar ao que a
imagem já denunciava (à cena delirante que ela desencadeia em Derrida): este livro da sorte
vem se somar aos apócrifos da dupla de falsários Sócrates/Platão, para corroborar, digamos
assim, as (in)certezas em torno da obra, ou mesmo para questionar os mapas de leitura do
corpus platonicum.
Daí, por exemplo, a preocupação de Derrida com as Cartas. Como sabemos, entre as
epístolas de Platão há muita controvérsia (havendo consenso, se houver, apenas no que diz
respeito à autenticidade da sétima carta). Na correspondência do dia 9 de setembro de 1977,
Derrida atravessa, às vezes num tom zombeteiro, vários comentadores da obra platônica,
exatamente quando eles discutem a autenticidade das cartas, ao que eu reproduzo apenas um
trecho:

“Acho hoje essas cartas de ‘Platão’, que Sócrates evidentemente não teria
nem lido nem escrito, maiores que a obra. Gostaria de ligar para você para ler
em voz alta alguns trechos das ‘tomadas de posição’ que elas convocaram,
encomendaram, programaram durante séculos (como gostaria de utilizá-los
em meu legado, bato-os à máquina, ou melhor, você me devolverá um dia
esta carta). Você vai ver, estas pessoas são impertubáveis, Sobretudo os
grandes professores do século XIX. [...] Escute, isto é o Inglês, John Burnet,
ele concebe que as cartas sejam falsificações ou bastardos mas com uma
condição: que o falsário seja um grande entendido impecável, e
contemporâneo de Platão, pois, 50 anos depois, impossível dominar a esse
ponto o idioma. E além disso, ele não tem certeza de estar errado, mas enfim,
escute-o, imagine-o, por exemplo, atrás de sua cadeira na Universidade,
digamos, de Manchester: ‘Acho que todas as cartas de alguma importância
(sic) são de Platão e, consequentemente, as usarei’. Ele as usará! [...] Cousin,
Chaignet, Huit jogam fora todas as cartas. Fouillé: ‘muito reservado’ (razão,
eu também). O auge, bem perto de nós, Croiset (1921), à altura de
imortalidade: ‘Entre as Cartas, duas apenas têm algum valor: a terceira e a
sétima, que parecem ter sido redigidas sobre um documento bastante preciso
e que são fontes úteis para a biografia de Platão. Quanto às outras, elas são
insignificantes ou ridículas. Em suma, toda a coleção é certamente apócrifa;
mesmo na terceira e na sétima carta, não encontramos nada que lembre a
maneira de Platão.’” Ao que Derrida ironiza: “Esse aí conhecia, portanto, A
maneira de Platão”.85

É por meio dessas cartas apócrifas que Derrida sustentará sua tese. Na Carta II, por
exemplo, como dá a ler a epígrafe deste capítulo, Platão afirma que nunca escreveu nada, que
toda a sua obra teria sido escrita por Sócrates, por um Sócrates jovem, como é dito na Carta,

85
Cf. DERRIDA, 2007, p.101-102
53
mais jovem que Platão, e mais belo, e maior, seu filho grande, seu avô ou seu grande neto,
his grandson:

“E como Platão escreve, sem escrever, que Sócrates, que passa por
nunca ter escrito, na verdade, teria escrito, que se saiba (ou não) e teria
escrito isso mesmo que ele teria escrito (mas quem, ele?), você pode tentar
fazer com que se siga a herança. É verdade que Platão precisa: ele fala do
corpo das obras compostas (sungramma). Ele poderia ter excluído as cartas,
esta Carta evidentemente. Ainda que a questão sobre o critério para distinguir
um livro e cartas permaneça aberta. Não acredito no rigor de tal critério.
Tudo se passa como se nosso Fortune-telling book do século XIII
(Prognostica Socratis basilei) tivesse, sem ver ou sem saber, mas quem sabe
(Paris teria lido esta Carta?), ilustrado esta inacreditável trapaça de filiação e
de autoridade, esta cena de família sem crianças em que o filho mais ou
menos adotivo, legítimo, bastardo ou natural, dita ao pai a escrita
testamentária que deveria lhe caber. E nenhuma moça na paisagem,
aparentemente, em todo caso, nenhuma palavra dela. Fort:da”86.

As alusões ao avô, ao neto e à moça remetem a Freud, ao Além do princípio de prazer:


em suas especulações sobre a pulsão de morte, Freud analisa uma cena familiar onde o neto
arremessa seus brinquedos para debaixo do cortinado do berço. Quando o menino
arremessava os brinquedos, ele proferia um forte e prolongado o–o–o–o, que significaria,
segundo a mãe e o avô, Fort (“foi embora”). Depois, quando reencontrava os brinquedos, o
menino fazia “da” (“está aqui)87.

86
Cf. DERRIDA, 2007, p.72
87
Ver página 171 e 172 de Além do Princípio de Prazer, no volume 14 das obras completas de Freud, publicadas
pela Companhia das Letras.
54
AS CARTAS DE AMOR

Embora os Envios possam ser lidos com um excelente prefácio à uma desconstrução
da teoria platônica, as cartas que Derrida escreve – e aqui voltamos (Da) outra vez ao tema de
nossa pesquisa –, são cartas de amor (lettredamour88) e não há, me parece, nenhum
compromisso aparente com a demonstração rigorosa de nenhuma tese, ao menos segundo os
modelos gerais (modelos acadêmicos, literários, visando este ou aquele efeito geral). Em
outras palavras, as especulações são evocadas como palavras de amor e seguem-se na própria
medida em que fazem parte do universo íntimo dos amantes89.
Ora, o gênero epistolar, como já nos havia mostrado Barthes, é um gênero propício ao
discurso amoroso, principalmente quando as cartas permanecem sem resposta (como é o
caso). E se, ainda com Barthes, uma dimensão de Intratável vem marcar o discurso amoroso
perante as outras linguagens, os envios de Derrida preservam uma certa impertinência,
justamente ali onde eles se excedem no vocabulário amoroso, ou melhor, ali onde eles diluem
a especulação filosófica (que ao que parece não passa de um código, de um pretexto para
estabelecer uma relação postal, para dar continuidade à cena amorosa).
Em toda essa primeira parte do livro, referente aos Envios, não parece haver nenhuma
preocupação de Derrida em explicar nada a quem quer que seja, de modo geral, senão a seu
destinatário performático (que pode ser inclusive você, leitor, mas não sempre). Como ele
comenta diversas vezes, e não apenas nos Envios90, uma carta não tem destinação, senão
virtual. Cabe ao leitor que tem a carta em mãos decidir se aquilo é pertinente, se lhe cabe, se
ele é mesmo o destinatário da carta. Em outras palavras, aquilo que eu acredito escrever a um
destinatário, inevitavelmente se destinerra a outros91 (motivo pelo qual as cartas de Platão nos
pertencem, são nossa herança – mesmo que apócrifa, como segundo alguns –, e não mais

88
No Le vocabulaire de Derrida, estabelecido por Charles Ramond, o termo aparece com a seguinte definição,
extraída do Cartão-Postal: “Terme composé. La Carte postale, 69: ‘nous écrivons lês dernières lettres, des lettres
‘rétro’ , des lettredamour sur pôster bellépoque, mais aussi lês dernières lettres tout court’”. Cf. RAMOND, p.51
89
Na página 67 do Cartão-Postal, lemos: “[...] essas análises intermináveis, todas as nossas elucubrações teriam
sido ignóbeis, o contrário do amor e do dom, se elas não fossem feitas para propiciar ainda o tempo de se tocar
com as palavras”.
90
Em Papel-Máquina, por exemplo, Derrida escreve: “Cabe ao leitor julgar; ao destinatário decidir se um
conferencista terá tratado, e bem tratado, do assunto proposto. É como a cena da escrita de um cartão-postal, cujo
destinatário virtual tivesse, no futuro, que se decidir se, sim ou não, ele o receberá”. Cf. DERRIDA, Papel-
Máquina, p.44
91
Na página 61, Derrida escreve: “Uma vez interceptada – basta um segundo – a mensagem não tem mais
chance de alcançar quem quer que seja determinável, e qualquer lugar (determinável) que seja. É preciso aceitá-
lo, eu aceito. Mas reconheço que é insustentável, uma tal certeza, para qualquer um. Não podemos senão denegar
esta evidência, e por função, aqueles que denegam mais energicamente são os encarregados do encaminhamento
dos correios, os guardiões da carta, os arquivistas, os professores, assim como os jornalistas, hoje os
psicanalistas. Os filósofos, evidentemente, que são tudo isso ao mesmo tempo, e as pessoas de literatura.”
55
destinadas a Dioniso – ou a quem quer que tenha ocupado o lugar de um destinatário histórico
– quanto a qualquer um de nós, que zelamos por elas, que arquivamos em bibliotecas e
comentamos em dissertações).
Daí a imagem de um cartão-postal ser tão sugestiva: é um suporte que circula livre
pelos correios, quero dizer, “aberto”, sem lacres ou envelopes, e que pode ser lido por
qualquer um que o interceptar (a começar pelo carteiro). Só que a mensagem do cartão-postal,
eis aí a armadilha, é bastante codificada. Não se pode simplesmente ler um cartão-postal. Nem
tudo que ali está escrito pode ser decifrado, porque a gramática de um postal obedece aos
códigos de uma linguagem íntima, privada, amorosa. Daí uma certa impertinência, uma certa
dimensão de intratável que é própria dos Envios e que vai obrigar Derrida a admitir, no
prefácio do livro, que não sabe se a sua leitura é sustentável92.

O DISCURSO AMOROSO NO CARTÃO-POSTAL

Publicado em 1980, na França (e, portanto, três anos depois da publicação de


Fragmentos de um discurso amoroso), O Cartão-Postal, de Derrida, é uma tentativa bastante
ousada de escrever a filosofia do ponto-de-vista do amante, isto é, segundo um discurso
amoroso. Esse esforço pode ser conferido em toda a primeira parte do livro, os Envios, onde,
curiosamente, o rapto do sujeito amoroso se dá pela imagem de um cartão-postal filosófico, já
que é ele que desencadeará a escritura das cartas que Derrida remete para a amada (aqui,
várias: sua mulher, uma amante, Sócrates e até mesmo você, leitor). O discurso, langoroso,
não cessará de fitar a imagem onde o casal mais importante da história da filosofia se exibe,
às avessas, como num negativo (e onde os nomes só servem para atestar a desordem).
É em função desta imagem que Derrida trabalhará seu discurso: daí, em alguns
momentos, a sua fixação (o seu delírio) se aproximar tanto de uma exegese. E daí ele escrever
sobre os comentadores, sobre textos apócrifos, numa velocidade muito própria, que parece
respeitar somente a gramática familiar de um casal de amantes. Quero dizer: a maneira como
o amante persegue a filosofia só pode ser imprecisa, até mesmo impertinente. E isso se dá
porque, fixados a uma imagem (Werther à de Carlota, Alcibíades a de Sócrates, Derrida ao
cartão-postal de Oxford), os amantes são incapazes de ler a imagem segundo uma certa

92
Cf. DERRIDA, 2007, p.9
56
distância que a torne razoavelmente legível93 (o amante, como se sabe, tem os olhos cegos94,
siderados pela imagem: por isso ela é sempre turva, nebulosa, ébria – em algum lugar de
Grande Sertão, Riobaldo constata: Diadorim é minha neblina).
Mas acontece que o delírio do Amante, ainda que cego (talvez por isso95), também
pode ser bastante revelador: por exemplo, quando Alcibíades desvela a posição de Sócrates96
no Banquete, ou quando Derrida atenta para a dívida impagável que o casal Platão/Sócrates
vem cobrando, em seus nomes, há muito tempo. E não precisa ser filósofo para perceber isso.
Qualquer leitor amador, mesmo aqueles que acreditam nem saber quem é o casal em questão
(Sócrates/Platão), mesmo eles estão ao alcance da dívida que nos legaram e que nos é
remetida, onde quer que seja, aqui e ali, fort/da, já que não se pode mais escapar dessa taxa-
postal. A nossa única sorte, se ainda há uma, é que ainda se pode amar sobre ela:

“Essas pessoas podem até mesmo nunca ter escutado o nome de p. e de S.


(olhe, vejo-as alegres de repente). Por todas as formas de intermediários
culturais, ou seja postais, elas pagam sua taxa, e não é necessário para isso
ser tachado de ‘platonismo’ e mesmo se você subverteu o platonismo (olhe-
os, vire o cartão, quando eles escrevem de cabeça pra baixo no avião).
Evidentemente, a taxa só cabe aos nomes, ou seja, a ninguém (para os
‘vivos’, observe, não é absolutamente, rigorosamente diferente), já que os
dois pilotos não estavam mais aqui, apenas sujeitos, submetidos, subjacentes
a seus nomes, em efígie, a cabeça coberta pelo nome. Assim como Hegel,
Freud ou Heidegger, que eles próprios devem ter se colocado em posição de
legatários, pela frente ou por trás. De pé ou deitado, nem mais um
movimento, nem mais um passo sem eles. Eu gostaria de acreditar que
aqueles que se liberam melhor e mais rápido, aqueles que ao menos desejam
pagar o menor preço e quitar sua dívida o mais rápido possível são aqueles
que tentam tratar diretamente com eles, como se isso fosse possível, os
pacientes filósofos, historiadores, arquivistas que se obstinam na emissão do
selo, querem saber mais a esse respeito, sonham com a impressão original.
Eu, por exemplo. Mas, naturalmente, quanto maior a ânsia para libertar-se e
não mais dever, mais se paga. E quanto menos se paga, mais se paga, eis a
armadilha desta especulação. Você não poderá dar conta dessa moeda.
Impossível restituí-la, você paga tudo e não paga nada com este carte bleu ou
com este carte orange. Ele não é nem verdadeiro nem falso. A emissão do
selo é ao mesmo tempo imensa, ela impõe e se impõe em toda parte,
condiciona qualquer outro tipo, selo ou tímpano em geral; e, contudo, você
quase não a vê, ela é minúscula, infinatamente divisível, compondo com

93
Quando Derrida envia a imagem a um ‘especialista’, para análise, recebe uma resposta com um discurso
razoável, nada delirante.
94
“Em um dado momento, a psicanálise define a intersubjetividade imaginária como uma estrutura de três
termos: 1. Eu vejo o outro; 2. Eu o vejo ver-me; 3. Ele sabe que o vejo. Ora, na relação amorosa, o percurso do
olhar é mais direto; salta um trajeto. Sem dúvida, nessa relação, por um lado, vejo o outro com intensidade; vejo
apenas esse outro, analiso, quero penetrar o segredo desse corpo que desejo; e, por outro lado, eu o vejo ver-me:
fico intimidado, inativo, passivamente constituído por esse olhar todo-poderoso; e essa loucura é tamanha, que
não posso (ou não quero) reconhecer que ele sabe que o vejo – o que me desalienaria: vejo-me cego diante dele”
Cf. BARTHES, O óbvio e o obtuso, p. 280
95
Em Memórias de Cego, Derrida nos fala de uma vidência atribuída ao cegos.
96
Por exemplo, sua temperança obrigatória (a condição de bem-amado garantida pelo fato de que ele não pode
ceder nenhum de seus amantes).
57
bilhões de outras posições, imposições ou superimposições obliterantes. E
nós, meu anjo, nós nos amamos postados sobre esta rede, no pedágio em uma
volta de final de semana (felizmente, podemos nos amar dentro de um carro),
massacrados de impostos, em insurreição permanente contra o ‘passado’,
plenos de reconhecimento, contudo, e virgens de dívida como na primeira
manhã do mundo. Essa história, a armadilha de quem assina um
reconhecimento de dívida para o outro de tal modo que o outro se encontra
envolvido antes mesmo de saber o que quer que seja, antes mesmo de ter
aberto os olhos, essa história de criança é uma história de amor e é a nossa –
se você ainda quiser. Desde o primeiro amanhecer” 97

•••

97
Cf. DERRIDA, 2007, p.115-116
58
Considerações Finais

Fecho o livro sobre o cartão-postal (mas mantenho o indicador segurando a última


página lida). Procuro o lápis no criado-mudo (agora cheio de livros) e uso mais uma vez para
marcar a página (como uma promessa, não só de retorno ao texto, mas de escritura). O livro,
por sua vez, vai ficar ao lado da cama, à espera. Pressinto a pergunta se aproximar,
lentamente. Derrida é mestre em suscitar esse tipo de eco: como ler?, como ler filosofia?,
como ler a tradição de comentadores?, como ler Platão, como ler Sócrates, ao que eu
pergunto agora, sozinho, prestes a dormir, o dia já amanhecendo (vejo da janela o mar e é tão
tarde!), depois de terminar o capítulo e às vésperas de entregar a dissertação para a banca,
como ler, como ler esses Envios? Como ler os livros escolhidos?, como ler o que eu escrevi
sobre eles?, como ler outra vez Barthes, Platão, Derrida? Abro o arquivo da dissertação.
Estou cansado. Releio algumas partes (às vezes reescrevendo, aqui e ali, cortando parágrafos
ou adicionando frases). Mas nada do que eu faça agora é capaz de disfarçar que o que foi
escrito é fruto de uma digestão prematura, de uma precipitação, e isso não pode ser reparado
de uma hora pra outra. Tampouco o programa pode me conceder mais tempo para escrever a
dissertação, uma vez que essa é uma prática extinta do contexto produtivo regulado pelas
agências de fomento. Dois anos é o limite. No lugar de uma conclusão fracassada (o que seria
uma desonra, mas sobretudo uma tristeza), decido, portanto, (e mesmo sem tempo para dar
cabo da tarefa), retomar a escrita. Nos anexos que complementam esta dissertação, começo a
fazer a minha palinódia.

59
Bibliografia

Primeiro Capítulo:

BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. São Paulo: Martins Fontes, 2003
_______, Fragments d’ um discours amoureux. Paris Éditions du Seuil, 1977

_______, A lover’s discourse fragments. New York: Hill and Wang. 2010

_______, O rumor da língua. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012

_______, L’ empire des signes. Paris: Éditions du Seuil, 2007

_______, Mythologies. Paris: Éditions du Seuil,1957

_______, Incidentes. São Paulo: Martins Fontes,2004

_______,O grau zero da escrita:seguidos de novos ensaios críticos. São Paulo: Martins
Fontes, 2004

_______, O prazer do texto.São Paulo:Perspectiva, 1987

_______, A preparação do romance I: da vida à obra. São Paulo: Martins Fontes, 2005

_______, Roland Barthes por Roland Barthes. São Paulo: Estação Liberdade, 2003

_______, Le discours amoureux: Séminaire à l’ Ècole pratique des hautes études 1974-
1976. Paris: Éditions du Seuil, 2007

CALVET, Louis-Jean.Roland Barthes: uma biografia.São Paulo:Siciliano, 1993

60
GLENADEL, Paula e NOVA, Vera Casa (orgs.) .Viver com Barthes.Rio de Janeiro:7 Letras,
2005

GOETHE, Johann Wolfgang.Os sofrimentos do jovem Werther.Porto Alegre: L&PM, 2011

LACAN, Jacques. O Seminário: livro 20, mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

_______, Nomes-do-Pai. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

MARTY, Éric.Roland Barthes:o ofício de escrever.Rio de Janeiro:DIFEL, 2009

MILNER, Jean-Claude. Le pas philosophique de Roland Barthes.Paris: Éditons Verdier, 2003

MOTTA, Leda Tenório. Roland Barthes: uma biografia intelectual. São Paulo: Iluminuras:
FAPESP, 2011

______, Lições de literatura francesa. Rio de Janeiro: Imago, 1997

PERRONE-MOISÉS,Leyla. Roland Barthes.São Paulo: Brasiliense,1983

_______,Com Roland Barthes.São Paulo:WMF Martins Fontes, 2012

PERRONE-MOISÉS e Leyla, MELLO, Maria Elisabeth Chaves (orgs.) De volta a Roland


Barhes. Niterói: EdUFF, 2005

61
Segundo capítulo:

PLATÃO. Fedro. In: Diálogos de Platão.Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém:


EDUFPA, 2007

______, Cartas. In: Diálogos de Platão.Tradução de Carlos Alberto Nunes.Belém: EDUFPA,


2007

______, O primeiro Alcibiades. In: Diálogos de Platão. Tradução de Carlos Alberto


Nunes.Belém: EDUFPA, 2007

______, O Banquete. Coleção Os Pensadores. Tradução de José Cavalcante de Souza. São


Paulo: Abril Cultural, 1983

ASSIS, Machado. Uma visita de Alcibiades. In: Papéis avulsos, São Paulo: Penguin Classics:
Companhia das Letras, 2011

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Edições
Graal,1984

HADOT, Pierre. O que é a filosofia antiga? São Paulo: Edições Loyola, 1999

KOYRÉ, Alexandre. Introdução à leitura de Platão. Lisboa: Editorial Presença, 1988

PESSANHA, José Américo Motta. Platão: as várias faces do amor. IN: Os sentidos da
paixão.São Paulo:Companhia das Letras, 1987

ROBIN, Léon. Platão. Lisboa: Editorial Inquérito,1976

_____, La theorie platonicienne de l’ amour. Paris: Alcan, 1908

ROMILLY, Jacqueline. Alcibiades ou os perigos da ambição. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996

62
STONE, I.F. O julgamento de Sócrates. São Paulo: Companhia das Letras, 1988

VERNANT, Jean Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro. Paz e Terra,
1990

63
Terceiro capítulo:

DERRIDA, Jacques. O Cartão-Postal.

_______, Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2006.

_______, Papel-máquina. São Paulo: Estação Liberdade, 2004

_______, Salvo o nome. Campinas: Papirus, 1995

_______, O animal que logo sou. São Paulo: Editora UNESP, 2002.

_______, A univesidade sem condição. São Paulo:Estação Liberdade, 2003.

_______, Torres de Babel. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

_______, L’écriture et la différence. Paris: Éditions du Seuil, 1967.

_______, Éperons: les styles de Nietzsche. Paris: Flammarion, 1978.

_______, Khôra. Buenos Aires: Amorrortu, 2011.

_______, Aprender por fin a vivir. Buenos Aires: Amorrortu, 2007.

_______, Força de lei. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010

_______, Adeus a Emmanuel Lévinas. São Paulo: Perspectiva, 2008.

CAPUTO, John. Deconstruction in a nutshell: a conversation with Jacques Derrida. New


York, Fordham University Press, 1997.

GASTON, Sean. The impossible mourning of Jacques Derrida. Londres: Continuum, 2006.

64
HADDOCK-LOBO, Rafael. Para um pensamento úmido. Rio de Janeiro: Nau: Ed. PUC-Rio,
2011.

______________, Derrida e o labirinto de inscrições. Porto Alegre: ZOUK, 2008.

NASCIMENTO, Evando (org). Jacques Derrida: pensar a desconstrução. São Paulo:


Estação Liberdade, 2005

RAMOND, Charles. Le vocabulaire de Derrida. Paris: Ellipses, 2001.

65
Bibliografia complementar:

KRISTEVA, J. Histórias de amor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

PAZ, Octavio. A Chama Dupla: amor e erotismo. Rio de Janeiro: Assírio e Alvim, 1992.

ROUGEMONT, Denis de. O amor e o Ocidente. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988.

66
Anexo:

67
“Por respeito ao que ainda aprecio nele, prevejo então a impaciência do mau leitor: chamo
ou acuso desta maneira o leitor amedrontado, apressado para determinar-se, decidido a se
decidir (para anular, ou em outras palavras, para reduzir a si, deseja-se assim saber
antecipadamente pelo que esperar, deseja-se esperar pelo que aconteceu, deseja-se esperar-
se). Ora, é mau, do mau não conheço outra definição, é mau predestinar sua leitura, é
sempre mau pressagiar. É mau, leitor, não mais gostar de voltar atrás”. JACQUES DERRIDA,
O Cartão-Postal.
68
Palinódia

69
Aulas

Em dezembro de 2012, a Carmen (Filgueiras) me ligou perguntando se eu teria vontade de dar


aulas de filosofia num curso de formação de atores em Botafogo (o NuEspaço). Respondi que
sim e perguntei ao Rafael (Haddock Lobo, orientador) se haveria algum problema. Usei como
argumento o fato de que durante a escrita do primeiro capítulo (ainda para a banca de
qualificação) eu estava dando um curso livre sobre o Fragmentos de um discurso amoroso e
aquelas aulas (a preparação, o contato com os alunos) me ajudaram muito no trabalho de
escrita. Ele apoiou a ideia e disse que não haveria problema, mesmo levando em conta a
proximidade de entrega da dissertação e as complicações que esse período costuma demandar.
Em fevereiro, depois de me encontrar duas vezes com o diretor da escola de atores e de
definir as minhas turmas (seriam duas turmas de Introdução ao Pensamento Artístico), fui à
minha primeira reunião de professores (mas cheguei atrasado: a chuva, o trânsito...) e a
primeira coisa que escutei foi a reclamação de um professor sobre a indiferença dos alunos
com os textos que eram pedidos (eles não leem, o professor dizia). Todos os outros
concordavam, em coro. Ao final da reunião, o coordenador pediu que enviássemos um
programa de curso resumido (sendo que eu não tinha muita margem de manobra: a ementa,
definida por um outro professor de filosofia, deveria abordar dois textos: o Édipo, do
Sófocles, e O Nascimento da Tragédia, do Nietzsche). Segue o plano de estudos que eu
entreguei ao coordenador e um roteiro das aulas que foram dadas até agora:

Plano de curso: Introdução ao pensamento artístico (Professor: Rodrigo Brum)

O que é ler? Como ler? Por que ler? Ao longo das duas primeiras semanas do curso, o texto
de Barthes (Da Leitura) nos ajudará a pensar essas perguntas e a investigar a nossa vocação de
leitor. Terminada esta primeira parte, os alunos poderão escolher, individualmente ou em
pequenos grupos, qual livro querem ler para o curso (as opções são o Édipo, de Sófocles, O
Nascimento da Tragédia, do Nietzsche, e o Fedro, de Platão). Os alunos deverão trazer um
caderno que servirá como um “diário de leitura”. Ao final do curso deverão escrever um texto
sobre o livro escolhido. O texto e o diário de leitura serão comentados pelo professor.

Até o TAI (Teste de Avaliação Individual) I:

Leremos o texto Da Leitura, de Roland Barthes, e prosseguiremos com um laboratório de


leitura, onde leremos juntos, em sala de aula, fragmentos dos 3 livros propostos para o curso,
tentando pensar as dificuldades de leitura (a perda de atenção, o tédio, o desinteresse) e
tentando encontrar também, juntos, o desejo pelo texto (o encontro com aquilo na obra que

70
me diz respeito). Escolha individual (ou em grupos) do livro que será lido para o curso. Início
de um diário de leitura (cada aluno, individualmente, deverá escrever no caderno o seu
percurso de leitura).

Até TAI II:

* A antiguidade grega e o aparecimento da filosofia.

* Filme: O Anticristo, de Lars Von Trier

* O trágico no Édipo.

* O apolíneo e o dionisíaco em O Nascimento da Tragédia

* Filme: Olympia, de Leni Riefenstahl

* Discussão sobre uma estética apolínea/dionisíaca, tentando pensar a partir dos filmes.

Até TAI III:

A questão da escrita. O Fedro, de Platão (a escrita como remédio e veneno). A questão da


persuasão. Preparação de um texto (podendo trabalhar o material já escrito do diário de
leitura), onde o aluno deverá articular as principais ideias do livro escolhido com a sua
experiência pessoal de leitura. O texto e o diário de leitura deverão persuadir o professor de
que o aluno leu o livro escolhido.

Bibliografia:

BARTHES, Roland. Da leitura. (in: O rumor da língua)

NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia.

PLATÃO. Fedro [também usaremos alguns trechos de A República (Livros VII e X)]

SÓFOCLES, Édipo

Filmes:

O Anticristo, dir. Lars Von Trier

71
Olympia, dir. Leni Riefenstahl

PRIMEIRA AULA

Como eu disse na última aula, que foi na verdade uma primeira aula e por isso uma
aula de apresentação, o nosso curso vai ter como objeto de trabalho a leitura, a leitura do
texto, a relação com o texto, e essa nossa investigação da leitura vai trazer à cena os dois
textos que servem de bibliografia básica pra essa disciplina de introdução ao pensamento
artístico, que são o Édipo, do Sófocles, e o Nascimento da Tragédia, do Nietzsche, aos quais
eu adicionei o Fedro, que é um diálogo do Platão, na esperança de que vocês escolham um
deles pra servir de meio de investigação de leitura. A ideia é essa: que vocês se investiguem
enquanto leitores (vale o mesmo para aqueles que já tem uma relação amorosa com a leitura),
e pra isso eu preciso que vocês façam um diário de leitura conforme leem o texto. É só
colocar a data e o horário em que tomou o livro pra ler e então escrever algum comentário:
sobre o livro, sobre a experiência de leitura, as dificuldades: vale dizer que está chato – e aí
seria bom se vocês transcrevessem as partes chatas -, as partes onde o entendimento fica mais
difícil... Só não vale abrir o livro uma vez só, tentar ler uma vez só. Eu preciso que vocês
tentem essa aproximação com o livro, que vocês tentem ler, muitas vezes ao longo do
semestre, o livro escolhido.

Eu soube que alguns alunos já compraram o livro e já começaram a ler, mas eu vou
manter o combinado e, como eu havia prometido, eu trouxe hoje os três livros do curso e vou
falar um pouco sobre os três, vou ler alguns trechos, vou falar um pouco dos autores, enfim,
tudo pra tentar ajudar na escolha de vocês. Na aula passada eu contei a história do Fedro, que
é aquela história do Sócrates com aquele rapaz bonito, do lado de fora da cidade, fazendo
discursos sobre o amor. Eu não lembro se eu falei pra vocês, se eu contei alguns dos mitos,
acho que sim, mas eu quero lembrar que esse diálogo não é só um jogo de discursos sobre o
amor, mas é também uma discussão importante sobre a escrita, sobre a memória, sobre a
droga, e o interessante é que essa discussão vem cheia de mitos, o mito da orítia morrendo
com a droga no rio, o mito da invenção da escrita, a fábula das cigarras. É bom pra romper
com essa ideia de que a filosofia acontece num exercício abstrato de pensamento, como se o
texto fosse só o passaporte para um universo conceitual mais importante (e vejam só, eu não

72
estou dizendo que não é isso, que o texto também não pode servir à isso, eu estou dizendo que
ao leitor, ao leitor de prazer, que é a nossa questão nessa aula, isso pouco importa).

Por hora, eu precisaria que vocês acreditassem em mim. Eu, quando estou lendo esses
livros, encontro prazer na leitura. Eu poderia dizer pra vocês: Platão, Édipo e Nietzsche
escrevem bem. E cada um de vocês vai me confirmar ou não ao longo do período, mas eu
preciso que, por hora, vocês acreditem em mim. Platão, Édipo e Nietzsche escrevem bem. E
eles escrevem bem porque dá prazer. Não é sempre, eu desconfio muito que alguém aqui
esteja sempre no prazer, a gente sabe que tudo, o sexo, a droga, a música, que em tudo o
prazer encontra limites, e na leitura não é diferente. Não se habita o prazer, definitivamente,
mas pode-se passar por ele. E pra isso é preciso ir e vir no texto muitas vezes. Digo “ir e vir”
por muitos motivos, um deles pra romper com essa ideia de que o livro guarda uma escritura
que deve ser lida “do começo ao fim”. Talvez seja importante pros acadêmicos, pros
tradutores, pros críticos, enfim, pra toda essa gente que toma o livro de maneira autorizada,
mas para nós, que aqui somos leitores de prazer, amadores, essa lei pode ser subvertida, se for
o caso.

Eu vou começar então a ler uns trechos, esparsos, dos três livros. Vou começar pelo
Nietzsche. Bom, o Nietzsche, vocês já devem ter ouvido falar dele. Eu não sei, acho que
muito cedo, na escola, eu já tinha escutado esse nome. Para mim é como se estivesse ao lado
de Sócrates, Platão, Aristóteles, Descartes, esses filósofos que logo vem em mente quando a
gente pensa em filosofia. No que diz respeito à divulgação da história da filosofia, pelo menos
boa parte daquela que chegou até mim, é como se ele pertencesse ao rol dos incontornáveis: o
mundo contemporâneo, o mundo que a gente vive, ao menos no que diz respeito à literatura e
à teoria das ideias, foi definitivamente marcado por esse nome. Vocês já devem ter escutado
algumas histórias: que ele enlouqueceu, que ele acreditava no super-homem, que ele matou
Deus, que ele chorou. Quero dizer que mesmo que vocês não estejam familiarizados com os
livros dele ou com o debate teórico que se estabelece por ele e a partir dele, ao menos vocês já
devem ter lido esse nome por aí [ESCREVER NO QUADRO], por mais estranha que a grafia
possa nos parecer: escreve N-I-E-T-Z-S-C-H-E, é um nome alemão. Ele estudou filologia, que
é uma ciência que estuda os vários usos do texto ou das palavras em determinados períodos
históricos. Um filólogo diria, por exemplo: “O nome filologia vem do grego ‘amor ao estudo,
amor à instrução’”. E é nesse período de estudante de filologia em Bonn e depois em Leipzig
que ele começa a se interessar por Schopenhauer, que é o filósofo do pessimismo, se vocês

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quiserem, e pela questão da música (quem escolher esse livro, vai entender melhor isso)...
Enfim, ele se formou e depois virou professor da Universidade da Basiléia, que é mais ou
menos quando ele publica O Nascimento da Tragédia, ou, O Nascimento da Tragédia no
Espírito da Música, ou ainda, O Nascimento da Tragédia ou mundo grego e pessismo. E o
resto da historinha, pra quem não sabe: depois de oito anos dando aula ele se afasta da
universidade por motivos de saúde e passa viver uma vida de viajante e escritor, é um período
que ele escreve muito, viaja muito, até que ele sofre uma crise forte em 1890 ou 1889, agora
eu não tenho certeza, e passa a viver em hospitais psiquiátricos. Eu não sei se vocês já viram
uma foto: ele tinha um bigodão, vocês nunca viram uma foto dele? [PASSAR A FOTO PELA
TURMA]. Tem também um vídeo dele no sanatório, bem velho, vocês encontram fácil no
youtube.

Eu vou ler uns trechos, vocês podem pedir pra eu parar, pra eu repetir uma frase ou
outra que vocês tenham perdido:

[LEITURA DOS TRECHOS ESCOLHIDOS]

Agora eu vou ler esse aqui, que é o Fedro, do Platão, que fala, entre outras coisas,
sobre o amor. Pra quem não sabe, o Platão geralmente escreve em forma de diálogo, esse aqui
é um diálogo, um diálogo entre o Fedro e o Sócrates, eu acho que eu contei pra vocês na aula
passada. De qualquer forma, pra quem não veio: o Sócrates encontra o Fedro na rua, o Fedro
tinha acabado de ouvir um discurso sobre o amor, feito por outro cara, o Lísias, e o Sócrates,
que é apaixonado por todo tipo de discurso, acaba acompanhando o Fedro numa longa
caminhada em direção aos limites da cidade, a um rio, o Ilisso, e lá ele faz o Fedro repetir
tudo que tinha ouvido no discurso do Lísias e ele mesmo, Sócrates, faz em seguida mais dois
discursos. É legal porque essa é a primeira vez que vocês vão ver o Sócrates se arrepender de
tudo que ele tinha dito (talvez ironicamente) pra pedir em seguida pra fazer um novo discurso,
uma retratação daquele primeiro. O livro tem alguns mitos, também, pra quem gosta de mito:
tem o mito da morte de Orítia, tem o mito da invenção da escrita, o mito da parelha alada, a
fábula das cigarras...

Eu vou ler alguns trechos. Mais uma vez, me interrompam quando ficar difícil: eu
posso repetir, vocês mesmos podem tentar ler, enfim, a gente se vira. Vamos lá:

[LEITURA DOS TRECHOS ESCOLHIDOS]

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E por fim, aquele que pro Aristóteles é o mais perfeito exemplo da tragédia grega,
Édipo Rei, ou Édipo Tirano, do Sófocles. Vocês devem ter ouvido falar dele. O Freud, por
exemplo, na virada do século passado, vai colocar essa história bem colada a nós, vai trazer
ela pra bem perto, pro regime do familiar: Freud falará de um complexo de Édipo que parece
nortear o desejo infantil da criança. Os que escolherem esse livro podem tentar responder
(partindo desta leitura pro Freud) o porquê. Pra quem não conhece, essa é a história de uma
profecia: um filho que terá que matar o pai e se casar com a mãe:

[LEITURA DOS TRECHOS ESCOLHIDOS]

Bom, como eu tinha prometido, nós vamos interromper as nossas leituras pra que eu
conte pra vocês uma história, a história de Tristão e Isolda. Ela começa com o envolvimento
de uma princesa, Brancaflor, irmã do Rei Marcos da Cornualha, com Rivalino, filho do rei de
um outro reino, mas que agora servia ao rei Marcos e era tido por ele com muita estima. Eles
começam a se encontrar às escondidas no palácio, é o início da paixão entre os dois. Até que
um dia, durante um combate, Rivalino é gravemente ferido. Brancaflor vai visitá-lo no quarto
onde ele repousa e são os seus beijos que fazem Rivalino se recuperar. Nessa noite, Tristão é
concebido. Em seguida, Rivalino fica sabendo da morte do pai. Ele deve voltar a Leónis, reino
onde nasceu, governado por seu pai, e que agora deveria ser governado por ele. Rivalino pede
Brancaflor em casamento e, assim que eles se casam, Rivalino segue para Leónis. Lá, para
retomar o controle do reino, Rivalino tem que enfrentar diversas guerras, de modo que
Brancaflor passa seus dias sozinha, no palácio real. No dia do parto, depois de muitas
complicações, ela acaba morrendo. Rivalino chega da guerra e se desespera. Batiza o filho (o
nome dele não é Tristão, ele é chamado assim por sua história triste) e lhe designa um tutor.
Tristão é educado da melhor maneira possível e é muito bom em tudo que faz, especialmente
na música na pontaria. À certa altura ele ir até o reino do tio, o rei Marcos, irmão de sua mãe,
para passar uns tempos por lá. Mas ele não quer ganhar a estima do rei só pelo fato de ser da
família. Então ele dá um jeito de entrar no reino como um estrangeiro qualquer, e aos poucos,
conforme as suas qualidades vão sendo notadas, ele vai ganhando a admiração do rei Marcos.
Só que é chegado o tempo de uma dívida terrível. Um “pagamento” que o povo da Cornualha
deve dar, de tempos em tempos, à Irlanda. Agora eles serão 300 rapazes e 300 moças da
Cornualha para servirem de escravos aos desejos dos irlandeses. E para fazer valer o
pagamento, um gigante, irmão da rainha Isolda (ainda não é a nossa Isolda) da Irlanda, uma
feiticeira muito poderosa, é enviado junto com um exército. No dia em que os invasores

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chegam a Cornualha, Tristão tenta convencer o rei Marcos de lutar contra o Morholt, o
gigante que estava vindo, e assim, se vencesse, livraria o povo de arcar com essa dívida. É
nesse momento que a sala é invadida pelo gigante, que exige prontamente a recompensa.
Tristão, bravamente, o desafia para um duelo, na frente de todos. Mas o Morholt ri, dizendo
que pertencia à família real da Irlanda e que não lutaria com um plebeu. É aí que Tristão
revela a sua identidade, diante do tio que não sabia de nada: “Pois então nós podemos lutar,
porque eu sou filho do rei de Leónis com a rainha Brancaflor, irmã do rei Marcos da
Cornualha”. O rei (que fica apavorado – e ao mesmo tempo orgulhoso – daquele que acaba de
descobrir que é o seu sobrinho, filho de sua irmã amada) não tem tempo de fazer mais nada. O
duelo é marcado pelos dois para acontecer em breve. O Morholt e Tristão seguem em barcos
separados para uma ilha, ao que os habitantes da Cornualha, o rei, o exército invasor, todo
mundo é obrigado a assistir a luta à distância. Ao chegar na pequena ilhota, onde o Morholt já
lhe esperava, Tristão empurra seu barco ao mar, deixa-o à deriva. O Morholt: “Ué, Tristão,
não vai amarrar teu barco?”. “Pra que, se apenas o vencedor sairá vivo desta batalha. O teu
barco será suficiente...”. Os dois começam a luta. Os habitantes, à distância, tentam identificar
o que se passa na ilha. Os dois guerreiros lutam, o Morholt é forte mas Tristão é bravo,
destemido. Quando a espada do Morholt desfere um golpe que termina por ferir Tristão, este
lhe quebra o crânio, rompendo-lhe a cabeça. O Morholt cai, morto. A espada de Tristão, com
o impacto, está quebrada. E a espada que o gigante trazia com ele, e que havia ferido Tristão,
estava envenenada. Aquele fosse ferido por ela, morreria, lentamente. Na próxima aula eu
continuo essa nossa novela e conto como o Tristão vai escapar do envenenamento e conhecer
a sua amada.

Até a aula que vem eu quero que vocês me mandem, por e-mail ou por facebook, o áudio da
leitura de algum trecho do livro que vocês escolheram, uma gravação feita por vocês,
obviamente, e quero que vocês gravem, depois de ler o trecho escolhido, o motivo pelo qual
vocês escolheram esse trecho. É isso. E não se esqueçam de começar o diário de leitura. Boa
semana pra todos.

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SEGUNDA AULA

Platão não foi o único discípulo de Sócrates. Nem o único a fundar uma escola.
Sabemos de alguns outros: Antístenes, fundador da escola cínica, Aristipo, fundador da escola
de Cirene, e Euclides, fundador da escola de Megara. Essas escolas diferiam muito entre elas,
a escola cínica praticava a tensão e a austeridade, a escola de Cirene, a mais hedonista das
três, que exerceu influência sobre o Epicurismo, acreditava que a arte de viver consistia em
tirar o melhor partido das situações concretas que se apresentam na vida, e ainda, a escola de
Megara, que era famosa por sua dialética, que é a arte do raciocínio. Se Platão não é o único
discípulo de Sócrates a fundar uma escola, tampouco é o único a ter escrito diálogos onde o
mestre seria a personagem central. Embora não tenham chegado até nós, os “diálogos
socráticos” eram escritos em todas essas escolas, não sendo, portanto, uma exclusividade
platônica. Dá pra ver que os caminhos que Sócrates parece ter inaugurado são muitos, embora
eles estejam guardados por esse mesmo nome ou por essa mesma prática de vida que é a
filosofia.

E se eu digo prática de vida é porque, como eu venho dizendo a vocês, os gregos, ou


ao menos os gregos como aparecem pra mim nos textos de filosofia, nas histórias que eu
costumo ler sobre isso, nas aulas que eu tive, os gregos eram muito atentos à vida (eu sei que
deve estar vago, talvez a gente consiga tornar isso mais claro conforme eu conte pra vocês
essa história). Bom: a verdade é que o desenho mais conhecido de Sócrates é feito por Platão,
em parte porque são poucos os textos que chegaram até nós dessa época, em parte pela
qualidade literária, digamos assim, do que ele escrevia: Platão escreve muito bem, é talvez um
dos poucos filósofos que, pelo prazer de leitura, ultrapassa ainda hoje os limites da filosofia
enquanto discurso acadêmico. Você não precisa ser um estudante de filosofia para ler Platão
(é um fato notável: quem aí conhece alguém que comprou, por puro prazer de leitura, um
livro de Kant?). É curioso porque antes de conhecer Sócrates, Platão queria se tornar um poeta
trágico, ele queria escrever tragédias. É o encontro com Sócrates que faz ele mudar de ideia.
Um dos biógrafos de Platão na antiguidade, Olimpiodoro, nos conta que, depois de conhecer
Sócrates, Platão teria “queimado” suas investidas em poesia e abandonado a escrita. O
encontro com Sócrates teria provocado em Platão um certo silêncio de escrita. E, como
sabemos, é somente após a morte de Sócrates, é o impacto dessa morte que teria
desencadeado em Platão a escritura da obra.

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Esta questão da escrita, como vocês podem deduzir, não é uma questão entre outras. O
Fedro esconde, dissimula, apaga a escrita por debaixo da roupa ao encontrar Sócrates. Ele não
quer que o filósofo veja. O quê? Qual seria o problema de ele ter uma cópia do discurso com
ele, isso não facilitaria as coisas? Não é justamente ouvir um relato do discurso de Lísias o
pretexto entre os dois para a caminhada até os limites da cidade, até o Ilisso? Quem estiver
atrás dessa questão talvez encontre eco ao final do diálogo, quando Sócrates narra o mito da
invenção da escrita. Ela teria sido inventada por Thot e oferecida a um deus, Âmon, que teria
recusado a nova invenção sob muitas alegações. O rei rejeita a escrita porque, entre outras
coisas, ela seria um veneno para a memória. [LEITURA DO TRECHO]

É curioso porque, como vocês podem ver, é um mito. Eu não sei, essa é uma turma
bastante heterogênea, alguns podem já ter tido algum contato com as histórias da filosofia,
outros não. Os que já tiveram algum contato, talvez já tenham escutado falar de uma história
(bastante repetida entre os professores de ensino médio) de que a filosofia nasce como
negação do mito, como superação do mito, ou mesmo como diferenciação do mito, mas
enfim, que o negócio do surgimento da filosofia é com o mito. Essa crença não é injustificada.
Na Grécia Antiga, ou até o aparecimento da filosofia, costuma-se dizer que as explicações de
mundo dos gregos eram eminentemente mitológicas. Por exemplo, se eu perguntar pra alguém
aqui nessa sala qual é o motivo pelo qual a natureza vive um regime de estações, primavera,
verão, outono, inverno, muito provavelmente, quem achar que souber responder, vai dizer que
são padrões climáticos, e que elas resultam do eixo de rotação da terra em relação ao plano
orbital. Beleza, uma resposta científica. Mas se eu perguntasse a um grego antigo por qual
motivo a natureza vive num regime de estações, ao que tudo indica essa pessoa ia me contar a
história de Perséfone, filha de Deméter, a deusa da feminilidade e da agricultura, com Zeus, o
deus dos deuses. Pra quem nunca ouviu essa história, Perséfone nasceu linda, tão linda que
Deméter teve que escondê-la da companhia dos deuses, de tal modo ela havia enfeitiçado
quase todo mundo, Hermes, Ares, Apolo, Dioniso... Deméter manteve ela escondida enquanto
pode. Mas Perséfone, com o passar do tempo, ficava cada vez mais bonita. Um dia, Hades,
irmão de Zeus, deus dos mortos, vê Perséfone e se apaixona por ela. Vai direto ao irmão pedir
a mão dela em casamento, que o autoriza sem nem consultar a mãe, Deméter. Hades então
rapta Perséfone e a leva para o mundo dos mortos, para o desespero de Deméter, que
traumatizada pelo sumiço da filha, deixou de lado suas tarefas: as terras se tornaram estéreis,
houve frio e escassez de alimentos. Pressionado, Zeus ordena que Hades devolva a filha deles,
mas Perséfone havia comido uma semente de romã, o que atestava seu consentimento à união
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matrimonial. Sendo assim, houve um acordo entre Hades e Zeus: metade do ano ela passaria
no mundo dos mortos, como a esposa de Hades, e metade do ano ela passaria em companhia
de seus pais, Zeus e Deméter. É a lógica do acordo que define as estações. Deméter, deusa da
feminilidade e das colheitas, quando está longe da filha, fica estéril. Mas no período de tempo
em que é reintegrada à companhia de Perséfone, de tão alegre com o reencontro, faz com que
tudo frutifique e floresça (é a época da colheita!).

É verdade que a filosofia, a ciência, e até mesmo a literatura divergem desse modelo
narrativo. Mas se nos for permitido arriscar uma hipótese, eu gostaria de pensar que a filosofia
não nasce de uma questão com o mito, muito menos em reação ao mito. Vocês sabem, Platão
mesmo cria e evoca uma porção de mitos (eu já li pra vocês pelo menos dois deles). Quero
dizer: a questão do surgimento da filosofia na Grécia, segundo a hipótese que nós vamos
assumir nessa aula, não se dá a partir de complicações com o mito, como se a filosofia viesse
pra superar o mito, e sim de um reposicionamento na relação com o saber (é o lugar do sábio,
o lugar da sabedoria, que a filosofia parece colocar em cheque).

Não por acaso, o termo filósofo quer dizer, literalmente, amigo/amante do saber. É
óbvio que a filosofia não rejeita o saber, ao contrário, ela traz o saber no nome. Só que
mantém com ele uma relação na distância: o filósofo não está, ao menos desde Sócrates, no
terreno da sabedoria. E se admitirmos ainda que o termo philia significa, sobretudo, amizade,
e não amor (eros), nem paixão (mania), então talvez tenhamos encontrado alguma pista da
mudança de qualidade que o filósofo inaugura na relação com o saber. Ele vem cobrar uma
postura fraterna bem ali onde as relações com o saber eram incestuosas. Nem o mito, nem as
tradições orientais parecem tratar o saber com esse pudor (com essa distância) que a filosofia
vem lhe reivindicar.

No Banquete, que é um desses diálogos do Platão que, se eu fosse vocês, não deixaria
de ler, enfim, nesse diálogo fica bem evidente essa diferença de qualidade que a filosofia vai
inaugurar na relação com o saber. No discurso do Sócrates (aqui um Sócrates/Diotima,
Sócrates-mulher), a filosofia deriva desse movimento ascensional, que tende ao fraterno como
elaboração do erótico (ainda que esta elaboração não seja nunca uma superação, já que Eros
não sai da jogada: é ele que vai reconhecer a philia como o nome do seu desejo). O filósofo, o
amigo do saber, seria o último estágio de nossa escalada amorosa, o cume para onde
tenderiam todos os nossos desejos eróticos. Não é, certamente, a escala mais modesta já
desenhada por um filósofo, mas deixando de lado as aparências, talvez ela dê conta dessa
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nova experiência amorosa que a filosofia pretende travar com o saber. Relação de amizade,
sobretudo. De uma amizade que não é mais, ou não é ainda, puramente erótica.

Isso tudo pra situar vocês sobre como este termo, filosofia, veio modificar a relação
ocidental com o saber, possibilitando, para além do mito e do discurso religioso, o
aparecimento das ciências, de um pensamento dito científico, enfim, de toda essa infinidade
de discursos autorizados que hoje circulam na escola, nos jornais, na universidade, e que só
foram possibilitados por essa distinção que aparece na antiguidade grega entre um discurso
mais sóbrio, menos incestuoso, e esse discurso mítico-religioso que era mantido vivo pela
tradição oral.

Aristóteles começa a ver essa distinção ser desenhada já com Tales de Mileto e segue
com Anaximandro, Anaxímenes, Xenófanes, Heráclito, Pitágoras, Parmênides, Zenão,
Empédocles, Filolau, Anaxágoras, Arquelau, Melisso, sem falar nos atomistas, Leucipo e
Demócrito, e em Diógenes de Apolonóia. Como dá pra ver, parece que Sócrates não inventou
a roda. Mas eu vou pular esses caras, os pré-socráticos, e vou direto para Platão/Sócrates. O
motivo dessa minha malandragem é cronológico. Porque essa sistematização só vai acontecer
em Aristóteles, e portanto depois de Platão. Da maneira como aparece nos diálogos, quando
um pré-socrático aparece (caso do diálogo Parmênides) é pra fazê-lo contemporâneo de
Sócrates, o que nos permite, por enquanto, pensar tudo junto e misturado (com Sócrates, com
Platão, mas sem uma história da filosofia que se estenda para antes ou depois deles).

É muito difícil pensar numa única filosofia de Platão, portanto não vou falar aqui pra
vocês d’A filosofia de Platão, eu não vou levantar nenhuma hipótese que se pretenda
universal, extensiva a toda obra platônica, a menos que cheio de ressalvas. É cada vez mais
vigoroso o esforço para afirmar Platão como um filósofo multifacetado, plural, e até mesmo
assistemático. Sua filosofia, seus diálogos, suas cartas, seja o texto autorizado ou apócrifo –
vocês sabem, a autoria de muitas de suas obras, hoje em dia sobretudo das cartas, vem sendo
posta em cheque pela tradição – cada um de seus textos dá conta de um empreendimento
cheio de desvios e retomadas, onde os conceitos vão sendo reelaborados conforme são
escritos, até mesmo repensados no curto intervalo de uma fala, ou mesmo na distância ideal
de um diálogo ao outro, de um texto ao outro (motivo pelo qual a ordenação cronológica da
obra sempre foi um campo de batalha). É importante lembrar que não se pode falar num estilo
platônico, já que a escrita dele vai mudando porque é insistentemente performática: muitas

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vozes, muitos discursos, muitas retomadas... (quem, dentre os filósofos, deu voz a tantas
personagens?).

E, no entanto, tem essa figura central: Sócrates. Sócrates é uma obsessão de Platão.
Acontece, às vezes, vocês sabem, alguns escritores ficam muitos livros com uma mesma
personagem, como se ela fosse insistentemente “textual”, como se ela não coubesse na
finitude e na circunstância do livro, do texto acabado. Eu poderia pensar em vários: Antoine
Doinel (nos filmes do Truffaut), Hercule Poirot (nos romances policiais da Agatha Christie),
os heróis de histórias em quadrinhos, em geral... Toda uma literatura de personagens que
sobrevivem, que ultrapassam os livros individualmente. Mas o problema em Platão é que nós
estamos falando de dois mil e quinhentos anos atrás. Vocês fazem ideia de que caminhos uma
escritura, uma carta, um tratado, um texto, uma mensagem precisam tomar pra chegar até
aqui? Que isso tenha sobrevivido, esses diálogos todos de Platão, é, de certa forma, um
milagre (ou um plano diabólico muito bem calculado – mas vamos tentar evitar os delírios).

Por exemplo: Eu me lembro de ter escutado na faculdade, logo no primeiro período,


numa aula de filosofia antiga, que o Aristóteles era um grande escritor, que alguém teria dito
em algum lugar que ele escrevia muito bem. Eu lembro de ter ouvido isso, era uma aula de
Filosofia Antiga I, nós estávamos com a Metafísica do Aristóteles sobre a carteira pra ler a
parte em que ele fala dos pré-socráticos, e quando a professora falou que ele escrevia bem eu
tomei um susto. Aquilo era escrever bem? Então a tradução devia ser uma bosta (ou eu não
entendia rigorosamente nada do que era escrever bem). Mas aí ela explicou: é que não sobrou
nada do que ele escrevia para os leitores em geral. Isso são anotações de aula, cadernos, coisas
que ele escrevia pra discutir dentro do Liceu, com os alunos dele, ou mesmo pra outros
filósofos acostumados com o tipo de linguagem que eles costumavam operar... Os tratados e
os diálogos que ele escreveu para além dos muros do Liceu, se perderam. O tratado do riso,
quem já leu o nome da rosa?, o Umberto Eco imagino um livro envenenado num mosteiro:
seria uma parte da Poética do Aristóteles que se perdeu: a parte que falaria da comédia.
Enfim, Platão teve essa sorte (esse destino) de chegar até nós literalmente em excesso (o
problema em Platão, pra muita gente, é saber o quê no meio de tudo que está sob seu nome é
rigorosamente dele – a questão da autoria). Quando com os outros filósofos da antiguidade, o
problema parece ser justamente o contrário. O que chega é já distorcido, fragmentado, isso
quando chega.

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O tratado do amor escrito pelo Aristóteles a gente não conhece. Nem o de Antístenes,
nem o de Diógenes, nem o de Teofrasto. Do Platão, falando alguma coisa do amor, temos o
Banquete, o Fedro, o Lísis... É desproporcional. Sobrou muito pouca coisa de tudo que se
escrevia nessa época, e sobrou essa dupla: Sócrates e Platão. A tal ponto Sócrates e Platão
estão vinculados um com o outro, em parte pelo que Platão escreveu, em parte pelo que não
sobrou do que foi escrito sobre Sócrates, que muitos pesquisadores não diferenciam as duas
figuras. Para os estudiosos de Platão, em geral, a fala de Sócrates nos diálogos é tomada como
aquela que guarda a maior dosagem de platonismo. Muitas vezes, em detrimento das outras
personagens, dos tempos mortos no texto...
Mas nós não faremos isso, meus queridos, porque nós somos leitores de prazer. Por
falar nisso, quem aqui escolheu o Fedro e já começou a ler? Então esses eu quero que me
contem, um a um, até onde chegaram na leitura e o que perceberam até agora.

[FAZER O MESMO COM OS OUTROS DOIS LIVROS E FAZER


COMENTÁRIOS AO FINAL DA DESCRIÇÃO DOS ALUNOS]

Bom, é chegada a hora, meus queridos. O segundo capítulo da nossa novela: Tristão e
Isolda. O capítulo passado terminou com Tristão vitorioso e ferido (mortalmente), pela espada
envenenada do gigante. Como vocês podem imaginar, Tristão pega o barco de volta, da ilha
para a margem onde estão seus compatriotas e é recebido com muita alegria. Mas com o
tempo, a ferida vai apodrecendo, Tristão vai ficando adoecido e seu corpo cheira mal, ao que
ninguém mais o visita em seu quarto, senão um ou outro amigo mais fiel, e o rei, que o visita
de vez em quando. Decidido a acabar com aquele sofrimento, Tristão pede autorização para
partir, sozinho, num barco sem remos. Ele já havia escutado histórias de homens que se
entregaram ao mar sem esperanças e que saíram dele vivos. O rei acaba consentindo,
contrariado, e Tristão embarca acompanhado somente de sua harpa e de sua espada (aquela
com a qual ele havia ferido o Morholt e que por isso tem uma rachadura na ponta). Depois de
dias no mar, à deriva, ele aporta na Irlanda, terra da feiticeira que preparou o veneno da
espada que lhe feriu. Ele é encontrado por uns pescadores, que logo se interessam pelo
estrangeiro enfermo. Tristão inventa uma história qualquer (não quer que descubram que ele é
o guerreiro que havia matado o irmão da rainha) e desconversa. Quando os pescadores veem a
harpa, ficam curiosos pra ouvir alguma música. No instante em que Tristão toca pela primeira
vez, os pescadores ficam tão encantados pelo que ouvem que logo Tristão é convidado para

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dormir na casa de um, para jantar na casa de outro. Com o tempo, a fama desse músico
estrangeiro, virtuoso, vai ganhando corpo, até que um dia o rei da Irlanda, familiarizado com
os boatos, convida Tristão para tocar no palácio. Quando isso acontece, o rei fica tão
maravilhado que diz: Estrangeiro, só pode ter sido um bom presságio o que te trouxe até aqui.
Você vai ficar nesse palácio e vamos cuidar de você. Minha esposa é uma feiticeira muito
poderosa, ela certamente conhece o antídoto para o seu mal. A sorte de Tristão é que ele
definhou tanto com a doença, que está irreconhecível, ninguém do exército o reconhece. A
rainha então inicia seus cuidados e aos poucos Tristão vai melhorando. Quando ele já está um
pouco melhor, a rainha o deixa então aos cuidados da filha, Isolda, que é bastante gentil com
o hóspede estrangeiro. Só que assim que o Tristão se sente um pouco melhor, ele foge do
palácio, sem avisar a ninguém, toma um barco e segue de volta para a Cornualha, afim de
levar as boas novas. Quando ele chega, é recebido com muita festa e muita alegria por todo o
reino. O rei Marcos não se contém de felicidade ao ver seu sobrinho curado, vivo, e em pouco
tempo começa a se espalhar o boato de que Tristão seria o futuro herdeiro do trono. Mas os
governadores do reino, invejosos, marcam uma audiência com o rei para forçar-lhe a casar
(não é possível, esse garoto deve ter feito um pacto com o diabo, como é que alguém que
estava daquele jeito volta curado, depois de ser lançado ao mar sem remo nem vela?). Usam
todos os tipos de argumento, mas o rei parece irredutível. Mas Tristão acaba sabendo da
desconfiança dos governadores, e como ele é um cavaleiro honrado, não quer que pensem que
é sua intenção herdar o trono da Cornualha. Um dia, testemunhou uma conversa entre os
governadores e o rei, novamente interessados em arrumar uma esposa para o rei Marcos.
Tristão da força para que o rei case, mas ele parece irredutível. Até que o rei, vendo entrar na
sala dois pássaros trocando um fio-de-cabelo entre si, quando o fio de cabelo cai no chão o rei
Marcos caminha até ele, pega, dá um sorriso irônico e fala: Está bem, está bem. Vocês me
convenceram. Eu quero me casar. Acho que acabei de receber um sinal divino. Eu quero me
casar e eu quero que seja com a dona desse fio de cabelo. Os governadores ficam logo
enfurecidos, achando que o rei estava pregando uma peça (ora, qual a probabilidade de se
encontrar a dona de um fio de cabelo trazido por pássaros). Mas Tristão, ao ver o fio, tem uma
ideia: Rei Marcos, eu conheço a dona deste fio de cabelo e, se me deres permissão, trago-a
para o senhor. Todos ficam espantados. É de Isolda, a loura. Ela é filha da rainha da Irlanda.
Esse fio de cabelo, brilhando feito ouro, só pode ser dela. Ao ouvir isso, os governadores se
alegram (se o Tristão voltar a Irlanda, ele certamente vai ser morto. Dessa vez, com o corpo
novamente esguio, recuperado, ele não passará desapercebido). Tristão insiste e então rei lhe

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dá permissão para partir. Tristão pede um barco com alguns homens, bastante variedade de
alimentos e parte então, de volta à Irlanda, de onde pretende trazer a futura rainha da
Cornualha. Chegando lá, Tristão consegue permissão, por meio de uma maracutaia qualquer,
a ficar vendendo seus alimentos no porto. Ele se declarou um desses comerciantes que
compram mercadorias em um reino e vendem em outro. Ele e seus homens passam um tempo
vendendo produtos e especiarias, e quando seus estoques estavam quase acabando, surge a
notícia de um dragão terrível, de um dragão que veio para destruir todo o reino. Desesperado,
o rei da Irlanda promete que aquele que matar o dragão, terá como recompensa a mão de sua
filha, Isolda, em casamento. Era a oportunidade que o Tristão estava esperando. Ele pega a
sua espada e segue em busca do dragão. Encontra o monstro numa colina e trava uma difícil
batalha com ele. Quando Tristão estava quase perdendo, ele atira a espada do coração do
dragão, que cai, morto. Tristão corta-lhe a língua, para servir-lhe de prova, enrola na sua
cintura e caminha em direção ao palácio. Mas o que ele não sabia é que a língua do dragão
tinha um veneno letal. E mal Tristão começa a caminhar e seu corpo desacorda, no meio do
mato. Enquanto isso, um homem que passava por ali, por acaso, ao ver o dragão morto e não
encontrando ninguém por perto para reivindicar a autoria, nem pensa duas vezes: corta a
cabeça do dragão e vai direto ao palácio anunciar que havia matado o monstro e que exigia a
recompensa prometida pelo rei. No próximo capítulo, grandes reviravoltas.

Por hoje é só. Eu ouvi a maioria dos áudios, tive algumas ideias. Eu queria pedir pra
quem não enviou, por favor, faz um esforço porque semana que vem a gente vai tentar fazer
uns vídeos com esses trechos que vocês escolheram (ou então, se eu conseguir trazer o
projetor, vemos logo um filme). Espero que o diário de leitura esteja seguindo. Boa semana
pra todos.

QUARTA AULA98

Bom, eu queria começar conversando sobre o filme da semana passada, o Anticristo,


do Lars Von Trier que é um cineasta dinamarquês, dirigiu Medéia, Dançando no Escuro,
Dogville, Melancolia, só pra citar os que me ocorrem agora. Imagino que alguns de vocês já
tenham escutado falar dele (mesmo que não necessariamente dos seus filmes). Ele é um cara
bastante “polêmico”: virou persona non grata no festival de Cannes depois de declarações

98
A terceira aula foi exibição do filme O Anticristo, do diretor dinamarquês Lars Von Trier.
84
supostamente anti-semitas. Mas como diretor ele fez coisas interessantes. Por exemplo, o
Dogma 95, um movimento de vanguarda que ele iniciou com o Thomas Vinterberg, outro
cineasta dinamarquês, autor de um filme indispensável, eu tenho certeza que vocês
concordariam comigo: Festa de Família (ou Festen, para os puristas). Já viram esse filme? Os
desdobramentos do aniversário de 60 anos do patriarca de uma família, uma mãe áspera, o
conflito com o filho, na frente de todo mundo, aquele jantar indigesto, tenso... eu acho que a
gente tem que assistir. Mas enfim, junto com esse cara, o Thomas Vinterberg, o Lars Von
Trier escreveu um manifesto, que são, nas palavras deles, o “voto de castidade” que um filme
tem que fazer pra integrar o movimento. Leio para vocês os itens:

1. As filmagens devem ser feitas no local. Não podem ser usados


acessórios ou cenografia (se a trama requer um acessório particular, deve-se escolher
um ambiente externo onde ele se encontre).
2. O som não deve jamais ser produzido separadamente da imagem ou
vice-versa. (A música não poderá ser utilizada a menos que ressoe no local onde se
filma a cena).
3. A câmera deve ser usada na mão. São consentidos todos os movimentos
- ou a imobilidade - devidos aos movimentos do corpo. (O filme não deve ser feito
onde a câmera está colocada; são as tomadas que devem desenvolver-se onde o filme
tem lugar).
4. O filme deve ser em cores. Não se aceita nenhuma iluminação especial.
(Se há muito pouca luz, a cena deve ser cortada, ou então, pode-se colocar uma única
lâmpada sobre a câmera).
5. São proibidos os truques fotográficos e filtros.
6. O filme não deve conter nenhuma ação "superficial". (Homicídios,
Armas, etc. não podem ocorrer).
7. São vetados os deslocamentos temporais ou geográficos. (O filme
ocorre na época atual).
8. São inaceitáveis os filmes de gênero.
9. O filme final deve ser transferido para cópia em 35 mm, padrão, com
formato de tela 4:3. Originalmente, o regulamento exigia que o filme deveria ser
filmado em 35 mm, mas a regra foi abrandada para permitir a realização de produções
de baixo orçamento.

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10. O nome do diretor não deve figurar nos créditos.
(fonte: Wikipédia)

É óbvio que o Anticristo já se desvia desse documento, em diversos itens. Mas eu


queria ressaltar que esse movimento, iniciado por esses dois cineastas dinamarqueses, parece
se contrapor justamente aos dogmas que governam o cinema dos grandes circuitos (que é o
cinema que chega com mais eficácia até nós). Essas produções, muito custosas (privilégio de
grandes estúdios) já em 1995, ano do manifesto, estavam caminhando (e eu penso aqui em
Waterworld, por exemplo, com Kevin Costner interpretando um pirata do mar num futuro
apocalíptico, mas também no Gasparzinho, alguém viu? Ambos são de 95) pro tipo de filme
que leva hoje multidões aos cinemas (atores bonitos, muitos efeitos especiais, cortes rápidos,
tudo para distrair o espectador, sem falar no investimento maciço em publicidade, todos os
meios são mobilizados pra fazer a população ficar sabendo do lançamento de um filme – já
que é nas primeiras semanas que ele costuma determinar seu fôlego nas bilheterias). É um
cinema marcadamente voltado para o mercado e desenvolvido por grandes produtoras,
especialmente as norte-americanas, embora ele encontre eco em vários cantos do mundo:
basicamente, é uma produção que tende a ver o espectador como aquele cara que vai ao
cinema procurando uma boa distração pra vida banal que ele leva, e que no entanto é pouco
disponível a ser contrariado, pouco paciente pra um filme que exija alguma elaboração
também dele que está assistindo (em geral, é o filme que deve se ocupar em entregar o sentido
ao espectador, tudo certinho, na boquinha das crianças, sem deixar faltar nada. Tudo deve
ficar claro pro espectador, mais cedo ou mais tarde. Como se ele não pudesse conviver com o
fato de que um filme, assim como a vida, pode não dar todas as respostas. Por exemplo, qual
o motivo dessa resistência com os filmes de gênero? Eles dizem aqui: 8 – São inaceitáveis
filmes de gênero. Ora, esses filmes de grande circuito são “formatados” sem a menor sutileza.
São filmes de “gênero” e remeto aqui à nomenclatura empobrecida dos gêneros fílmicos
(comédia, drama, terror...), que acaba sendo regulado por leis bem semelhantes as da
sexualidade (quero dizer, do gênero sexual): é bom estar bem-definido: filme de comédia tem
que ter piadas do começo ao fim, filme de terror tem que me dar susto e me provocar medo,
filme de ficção científica tem que me fazer fantasiar com um mundo possível, cheio de
invenções mirabolantes. Os filmes que performatizam os gêneros (trans-filmes99) e os filmes

99
O diretor espanhol Pedro Almodóvar seria o exemplo mais óbvio (já que ele performatiza ao máximo a
formulação dos gêneros cinematográficos e não é possível dizer que um filme de Almodóvar pertença somente a
este ou aquele gênero específico, já que eles são construídos do entrecruzamento de muitos desses gêneros e se
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que neutralizam os gêneros (assexuados ou hermafroditas: penso no Nosferatu, do Murnau, e
no Mal dos Trópicos, de Apichatpong Weerasethakul), são filmes que por não estarem
formatados (por não seguirem, de saída, uma cartilha que facilite a leitura), costumam ter uma
publicidade mais direcionada, quero dizer, participar de um circuito mais restrito, de modo
que a informação sobre o filme deve chegar em nichos, sob códigos que dizem respeito
somente aos iniciados (esse medo de escandalizar o espectador médio, de colocá-lo em
contato com um imaginário problemático, híbrido). Enfim, poderíamos explorar cada um dos
itens desse manifesto, mas, para resumir, podemos dizer que é pra aproximar a produção
cinematográfica da vida, para distanciá-la do jogo mercadológico que entende o espectador
como mercadoria (não podendo, portanto, contrariá-lo, sob o risco de perder o cliente), é
contra esse tipo de programa que o “voto de castidade” parece ter sido escrito pelos dois
cineastas dinamarqueses. Filmes mais baratos, filmados de um ponto-de-vista dinâmico (uma
câmera na mão) e comprometidos com as próprias circunstâncias de escrita (sem falseamentos
e truques). Não é a primeira vez que acontece na história do cinema (podemos falar desses
manifestos, dessas retomadas de um cinema à margem do sistema de mercado) e vocês verão
essa proposta do Dogma muito bem explorada em Festa de Família, mas, por hora, voltemos
a esse filme recente do Lars Von Trier, o Anticristo. Eu revi o filme em casa e fiz algumas
anotações. Vou ler pra vocês:

Prólogo
Tudo começa com um prólogo em slow-motion: uma mão abre uma torneira (é a
primeira imagem, a água sendo liberada em seu fluxo, primeiro algumas gotas – não
esqueçamos que em psicanálise a água é o elemento por excelência do inconsciente), os pais
transam pela casa, a certa altura vemos um desses aparelhos que capta o áudio do quarto de
um bebê registrando ruídos (é gráfico, nós vemos o visor acusar os ruídos, mas um outro
símbolo com uma caixa de som e uma barra cortando-a pela metade, aceso, indica que o
aparelho foi posto no silencioso). O bebê pula do berço, um dos pés, durante o sexo, derruba
uma garrafa d’água. A água escorre da garrafa para o chão e sobre os corpos dos dois. O bebê
então vê os pais transando. Empurra uma cadeira para perto da mesa da sala, em frente à

dão na passagem entre eles – trans filmes). Mas pensemos também em certos filmes de Derek Jarman (O
Jardim, Blue...), de Gus Van Sant (Mala Noche, Até as vaqueiras ficam tristes...), Wong Kar Wai (em Um beijo
roubado ele chega literalmente a passear pelos gêneros cinematográficos a partir de um road movie), Paul
Thomas Anderson (Jogada de risco, O mestre...), Terrence Malick (Badlands) só pra ficar com os que me
ocorrem agora...
87
janela aberta (é louco porque os gestos levam a crer que o bebê é um suicida). Ele se joga. A
última imagem do prólogo é a máquina de lavar roupas (há um plano no prólogo dos dois
fazendo sexo diante dessa mesma máquina) interrompendo seu programa.

Primeiro Capítulo: O Sofrimento


Seguimos então para o enterro da criança, onde vemos o desmaio da mãe. E então, o
hospital. Ela de cama, o “luto anormal”, segundo o médico (não o vemos – tudo é relatado nas
conversas do casal: nada além de Adão e Eva). O marido interfere, acha que o médico está
dando muitos remédios e a esposa reclama da petulância do marido.
Em outro momento, revisitando a cena da morte, ela diz: “Foi minha culpa”. O marido
tenta relativizar, dizendo que ele também estava lá. Mas só ela sabia que o bebê acordava de
repente.
O marido por fim convence o médico a levar a esposa para casa. Mais uma vez uma
discussão sobre a prepotência do marido. A cena termina com um zoom em direção a um vaso
de plantas, cheio d’água. A água está cheia de “impurezas”, está contaminada pelos resíduos
da planta.
Em casa, a mãe vive momentos de apatia, alternando-os com períodos de choro:
“Quero morrer também” ela exclama, a certa altura.
Cena de uma conversa entre os dois na cama. Ela reclama de uma suposta ausência do
marido (como pai e como esposo) no último verão. Ao dizer isso, ela percebe a relação tênue
entre paciente e esposa e então fica na dúvida se deveria estar falando sobre isso, ao que o
marido prontamente responde: “não há nada que você não possa falar”.
Ela menciona uma tese que não teria terminado (o marido nem sabia que ela não havia
terminado) porque pareceu desinteressante para o departamento e o marido teria dito que o
tema era “superficial” (ele diz que não disse isso).
Imagens do corpo. Ela treme, ofegante, na cama. O marido tenta acalmá-la. “Imagine-
se soprando suas flores”.
Ela quer sexo. O marido tenta evitar. “Nunca faça sexo com o seu terapeuta”.
“Faremos uma lista dos seus medos”. Ela não sabe. Take your time. Então ela pergunta
se o medo “precisa ser de algo específico?”
No banheiro. Ela bate com a cabeça contra a privada. Ele socorre. É físico. Os
sintomas estão no corpo. Ela quer transar. Eles transam. Ao final, o marido murmura: “Não
vai dar certo. Foi a coisa mais idiota a se fazer”.

88
“Onde seria o pior lugar?”. A floresta. “O que a assusta na floresta?”. Tudo. “É alguma
floresta em particular”. O éden. O psicanalista se volta pra pirâmide dos medos, “no topo da
pirâmide?”. Não tão ao topo.
Bom: aqui façamos um desvio. A fala da Claire nos remete a uma cena bíblica, a esse
local paradisíaco onde um homem e uma mulher teriam sido postos por Deus durante a gênese
(a criação) do mundo. Esse lugar é o Jardim do Éden (Jardim do Éden vem do hebraico Gan
Eden, onde Eden significa planície ou estepe). A ordem (ou ordenação) de Deus era que eles
podiam comer qualquer fruto, exceto os da árvore do conhecimento do que é bom e do que é
mal. Eva come o fruto proibido oferecido pela serpente e desse pecado nasce a vergonha (e
com ela o reconhecimento dos dois em estarem nus). Como castigo, Deus expulsa ambos do
paraíso (eis então a nossa realidade decaída).
De volta ao filme: ele e ela no trem, em direção à floresta. O marido faz exercícios
com ela, tentando preparar a esposa para o que está por vir. Pede que ela “imagine que chegou
ao Éden pela floresta”. “O que você vê?”, ele pergunta. Então a vemos caminhando, em step
printing, em cima de uma ponte, numa cena bastante fantasmagórica. Vemos o trajeto dela até
a cabana. O marido pede que ela não entre, mas que ao invés disso se deite no gramado e se
misture com o verde.
Cena dos dois caminhando pela floresta. Ela está cansada. Pede pra deitar um pouco.
Ele parece feliz com a audácia da esposa e, enquanto ela descansa, deitada sobre a mochila,
ele sai pra dar uma volta. Ele está sozinho na floresta. Ouve um ruído vindo do mato. As
folhas tremem. Quando ele se aproxima, um veado foge parindo uma cria morta.

Segundo Capítulo: O Caos Reina


Os dois caminham, pela floresta, em direção à cabana. Ela atravessa a ponte com
muito medo e sai correndo. Ela chega antes à cabana. Ele chega depois e a encontra deitada,
sobre a cama. Ele vê algumas fotos do filho com a esposa e depois dorme ao lado dela.
Quando amanhece, a mão dele, que tinha ficado estendida pra fora da janela, amanhece
cravejada de sementes. Eles as tira, com algum desespero. Corta pra ele preparando um
exercício onde ela deve caminhar, de uma pedra a outra, no mato do lado de fora da cabana.
Ele a leva nas costas até a primeira pedra e a ajuda a caminhar até a segunda. Quando ela
finalmente consegue, um pássaro recém-nascido, morto, cai de uma árvore bem alta e é
devorado por dezenas de formigas.

89
“Já tive medo nesse lugar antes, só não sabia que era medo”, ela revela. Então vemos
um flashback muito importante no filme. Ela está na cabana, trabalhando na tese (é sobre
femicídio), até que começa a escutar um choro muito forte de criança. Ela sai à procura do
filho, o choro não para um minuto, mas quando ela o encontra, ele não chora: brinca
tranquilamente embora o barulho persista. Ela olha pra cima (vemos uma floresta – o éden?).
Essa floresta chora.
O marido interrompe: “os gritos eram irreais”. Ela parte pra cima dele: “você não
deveria ter vindo! É tão arrogante!”. Num outro plano vemos ela explicar um dado científico
sobre os carvalhos (que eles costumam crescer por centenas de anos e que nesse meio tempo
eles tem que gerar uma árvore). O conhecimento disso a ajudou a suportar essas sementes
caindo e caindo (“o choro de tudo o que vai morrer”). “Tudo que costumava ser bonito no
éden agora parece horrível”, ela afirma. É uma citação ao momento em que Eva come o fruto
proibido e toma conhecimento do mal, do pecado e da nudez dos corpos.
No dia seguinte, ela encontra o marido sentado na varanda da cabana. “Dormiu bem?”.
Ele diz que sim, exceto por uns sonhos estranhos. Ela então debocha: “Sonhos não são
interessante para a psicologia moderna. Freud está morto”.
Ela sai andando pelo mato. Passa pelo rio. Corre entre as árvores. “Estou curada!”. O
marido fica sozinho no meio do mato. Se aproxima de umas plantas, que mexem. Encontra ali
uma raposa toda suja de sangue, mutilando o próprio corpo. O caos reina.

Terceiro Capítulo: Desespero (Femicídio)


O marido pega uma escada no quintal. Chove. Ele usa a escada pra subir ao sótão.
Encontra lá uma série de anotações da esposa, do período em que ela escrevia a tese. Imagens
de femicídio, comentários, anotações numa caligrafia que vai se tornando, página a página,
ininteligível.
Corta pra mais um exercício. Ele fará o papel do medo e ela deve fazer o papel da
razão. Eu sou a natureza, ele diz. Ok, Sr. Natureza, o que você quer? Ele responde: Machucá-
la o quanto puder.
Eles fazem sexo. Ela chora muito. Ela pede que ele bata nela. Ele se recusa. Ela sai
correndo no meio do mato, deita diante de uma árvore e começa a se masturbar. Ele chega,
eles voltam a transar. Ele bate nela. Vemos então as raízes da árvore, misturadas a braços
mortos.

90
“O bem e o mal não tem nada a ver com terapia. Sabe quantas mulheres morreram por
essa crença, porque eram consideradas más?”, ele diz, razoavelmente. Ela confessa que às
vezes se esquece disso.
Claire encontra a autópsia. Uma pequena deformidade no osso dos pés. Ele mostra as
fotos: os sapatos trocados. E aqui façamos mais um desvio: eu estou com os dedos cruzados
pra encontrar alguma cumplicidade no rosto de vocês, ao menos daqueles que estão lendo
Édipo. Vou torcer pra encontrar alguma relação no diário de leitura, no comentário que eu
pedi ao filme. Mas pra aqueles que não estão lendo Sófocles, Édipo é abandonado, com os pés
amarrados, no Monte Citerão, e Laio tenta matá-lo pregando um ferro em cada pé do bebê.
Édipo vem do grego Edipodos, o de pés-furados. Vocês podem procurar as ligações do filme
com a tragédia de Sófocles, por exemplo, quando a Claire prega um ferro na canela do marido
ou quando o marido encontra a resposta para a pergunta da esfíngie (o nome a ser colocado no
topo da pirâmide): o homem, ela mesma, “eu”.
Ele escreve “eu” no topo da pirâmide e ela aparece, iniciando uma luta. Eles começam
a fazer sexo, mas Claire interrompe e vai buscar um tronco de madeira que ela usa pra bater
no sexo do marido. Ele desmaia. Ela o masturba e, ao invés de sêmen (no dicionário de latim,
entre outras figuras para a palavra, encontramos: sangue, raça, posteridade, prole, filho, filho
dos animaes100) ele goza sangue (figura que, como vocês podem perceber, ainda permanece
no campo de sentidos da palavra, o sangue também seria uma das faces do sêmen, a sua face
no limite com a morte, talvez – Claire não para de ver crias mortas, sem falar nas sementes
que caem sobre o telhado da casa e que não vão germinar, ele também vê crias mortas – ele
faz parte disso). Então ela perfura a canela do marido (desacordado) e atarraxa um
instrumento pesado, uma roda de ferro. Ela sai pela floresta e joga a chave inglesa debaixo da
casa. Ele acorda, cheio de dor, e tenta tirar o peso das pernas. Sem a chave inglesa é
impossível. Ele sai da cabana, se arrastando, ela volta e procura por ele, ele entra no buraco
sobre a árvore, tenta se esconder nesse buraco, nesse útero? Mas ele o divide com um outro
animal, um animal aparentemente morto. É um corvo, que ao ser desenterrado, começa a
gritar.

Quarto Capítulo: Os três mendigos


Claire se arrepende. O feminino é ambíguo porque comeu o conhecimento do bem e
do mal, o fruto proibido (vocês devem lembrar que para ele não interessa, ele sublimou o bem

100
P.1082, Dicionário Latino-Português F. R. dos Santos Saraiva
91
e o mal: “o bem e o mal não tem nada a ver com terapia”, ele exclama, à certa altura, tentando
manter a lei do tratamento). Claire desenterra o marido, temos que tirar isso da minha perna,
ele diz. Depois, deitados na cabana, você quis me matar!. “Não ainda. Os três mendigos ainda
não estão aqui”.
Se na narrativa bíblica, os três reis magos vão visitar o filho do casal ou a prole divina,
diante da morte, do sêmen em sua face morta, virão os três mendigos. Agora ela usa a mão
dele para se masturbar. Ele está desacordado, outra vez. E é aí que ela se lembra, que ela se
lembra de ter visto o filho ver, ela testemunhou a morte, ela sabia que a criança ia morrer, ela
estava ciente do mal. A lembrança incorpora sua face maligna, mantendo a ambiguidade. Ela
conhece o bem e o mal. Ela procura então uma tesoura e opera, nela mesma, uma castração.
Chove granizo (as irmãs: quando eles transavam embaixo da árvore ela havia dito: “as irmãs
podem fazer feitiços, podem começar uma chuva de granizo”). E, finalmente, os três
mendigos: dor, desespero e sofrimento.
Eles lutam. Ele enforca Claire até a morte e depois queima seu corpo em uma enorme
fogueira (femicídio).

Epílogo:

Na floresta, ele come frutos. Várias pessoas sobem a colina. A morte não está em
oposição com a vida.

Capítulo rápido hoje da nossa novela: Tristão e Isolda. Na última aula Tristão
consegue matar o dragão que atormentava a Irlanda, mas acaba desmaiando com a língua do
animal, que lhe serviria de prova da vitória. Um outro homem passa por lá, vê o dragão morto
e corta a cabeça. Segue então para o palácio para reclamar a mão da princesa Isolda em
casamento. Mas Isolda e a mãe conheciam esse homem e sabiam que ele não poderia ter
matado o dragão. Era um covarde, um desonrado, alguém que jamais teria tido a bravura de
enfrentar um dragão tão poderoso. Então as duas vão em direção ao local da morte para tentar
entender o que aconteceu. No caminho, encontram Tristão desmaiado. As duas o levam para o
palácio, afim de tratá-lo. Tristão vai se recuperando do veneno, a rainha era uma feiticeira
como poucas e logo arrumou o antídoto. Isolda ficou encarregada de cuidar do rapaz. Um dia,
enquanto Tristão tomava banho, Isolda, por algum motivo, encontra a espada de Tristão e
repara na lâmina cortada. Vai direto até o quarto da mãe. Ela havia guardado o pedaço de

92
metal que havia atravessado o crânio do Morholt, seu irmão, tio de Isolda. O pedaço de metal
se encaixa, perfeitamente, na fenda da lâmina de Tristão. Isolda fica enfurecida. Procura
Tristão e no momento em que levanta a espada para matá-lo (aqui há muitas divergências
entre as versões) ela percebe a beleza do rapaz (ou então ele a interrompe, dizendo que veio
para levá-la ao rei da Cornualha, que ele desejava casar com ela e que, portanto, esta seria
uma oportunidade de evitar seu casamento com o homem covarde que estava anunciando ter
matado o dragão). O fato é que Isolda amolece, Tristão é reconhecido como aquele que matou
o dragão e então Isolda embarca com ele, rumo à Cornualha, para se casar com o rei Marcos.
A rainha feiticeira havia confiado a uma criada que seguia com eles, chamada Brangia, um
frasco que a princesa deveria tomar, junto com o rei, na primeira noite que passassem juntos.
Era um remédio ou um veneno, percebam que isso sempre passa pelas histórias de amor ou
sobre o amor (o boticário de Romeu e Julieta, o phármakon do Fedro...) e numa noite de calor
no barco, quando Brangia está procurando algo para Isolda beber, a criada troca os fracos, ela
leva para Isolda a poção da rainha e os dois, Isolda e Tristão, que estava ao seu lado naquela
hora, bebem o líquido para matar a sede e acabam hipnotizados um pelo outro. É o início da
paixão.

Pra próxima aula eu quero que vocês me respondam a pergunta: Qual é o animal que
tem quatro patas de manhã, duas ao meio-dia e três à noite? De resto, um aviso: fui aprovado
numa residência artística, vou passar o mês de abril em Salvador, fazendo uma interferência
em um dos muros da cidade. Eu virei sempre pra essa aula de segunda, mas nas duas últimas
semanas (que é quando o trabalho vai ser exibido) eu não vou conseguir deixar Salvador e
então vou ser substituído pela Carmen, que é a outra professora dessa matéria, nas aulas dos
dias 22 e 29. Ela é ótima e a gente está pensando em alguma atividade coletiva que misture
essa turma com a dela. Mantenho vocês informados.
Não se esqueçam de trazer a resposta à pergunta que eu fiz, por escrito, no diário de
leitura. Até a próxima aula!

QUINTA-AULA

Tebas está sob a desgraça, o povo está de joelhos, velhos e jovens, e o sacerdote
explica que há uma onda mortífera: os frutos da terra, a sobrevivência do rebanho, a gestação

93
das mulheres, tudo parece estar sob o signo da morte. Há um deus por trás disso: Apolo, deus
da peste, mas também o deus da profecia. Há uma profecia em jogo: um filho que vai matar o
pai e casar com a mãe. Édipo salva Tebas da desgraça, ao aceitar o desafio e responder à
esfinge, o homem, mas é também ele que a condena: quando o cunhado traz a resposta de
Apolo, que era preciso expulsar o culpado pela morte de Laio para que a peste fosse embora
de Tebas, Édipo sai em busca de uma resposta que não era outra senão ele mesmo. Aquilo que
o vidente Tirésias já dissera no início da tragédia, Édipo será o último a admitir. Ele não havia
escapado de seu destino: depois de ter tido os pés pregados, Édipo é entregue por um servidor,
que se apieda dele, a um pastor que o leva para Corinto. Lá ele é entregue ao rei, que não
podia ter filhos e que o cria sem nem mencionar que eles não tinham o mesmo sangue. Mas ao
perguntar ao Oráculo de Delfos sobre a própria origem, Édipo escuta a profecia: está
condenado a matar o pai e desposar a mãe. Foge então de Corinto e em suas andanças
encontra quem? Laio, seu verdadeiro pai. Laio o maltrata e Édipo mata o rei e toda a sua
comitiva, formada por alguns homens. Apenas um sobrevive. Então, na entrada de Tebas,
vence o desafio da esfinge e livra a cidade daquele mal. É recompensado por Creonte com a
mão de Jocasta, viúva de Laio, sua verdadeira mãe. Sem saber, acreditando fugir de seu
destino, Édipo cumpre a profecia, ele a cumpre (é ele quem mata o pai, é ele quem desposa a
mãe). Quando descobre a armadilha que ele mesmo havia tramado, a fatalidade de seu
destino, é obrigado a ferir os próprios olhos: não quer ver.
Eu queria fazer agora algumas observações, pra aproximar vocês de uma leitura deste
mito. A leitura freudiana não é a única, existem muitas. Procurem, por exemplo, o livro
Estruturas Elementares do Parentesco, de um antropólogo francês, o Claude Lévy-Strauss.
Lá vocês vão encontrar outra leitura do mito. Sem falar no Vernant, que compara o Édipo a
um phármakon: remédio e veneno, ora remédio, ora veneno... O pessoal que está lendo o
Fedro já está familiarizado com esta questão. Talvez por isso mesmo, por ser uma leitura entre
outras, para evitar um efeito totalizante de leitura do Édipo, que é afinal, a leitura que nos
interessa, eu proponho a vocês que cheguemos ao Freud por outro lado, ainda sem Édipo,
quero dizer, fazendo um longo desvio. Édipo cega os olhos porque não quer ver, eis como eu
terminei de contar pra vocês o a tragédia (ao menos até o segundo livro da trilogia tebana, que
é o Édipo Rei, que estamos lendo). Mas agora eu vou contar pra vocês uma história sobre o
que é isso que se passa entre ver e não ver, entre a vidência e a cegueira. É um conto policial,
mas não exatamente, vocês vão ver (ou quase-ver). É de um escritor norte-americano muito

94
conhecido, boa parte de vocês já deve ter ouvido falar: Edgar Allan Poe. O conto chama A
carta roubada (The purloined letter).
A história começa numa pequena biblioteca escura, aos fundos de um apartamento,
onde dois homens meditam e fumam cachimbo em silêncio. Já anoiteceu e nenhum dos dois
se ocupa em acender a luz, apenas sopram as baforadas de um cachimbo turco chamado
meerschaum, em alemão, a espuma do mar. O narrador nos conta que, embora
permanecessem em silêncio, de sua parte ele estava ocupado revisando mentalmente um caso
de assassinato. É nesta hora que o chefe de polícia invade a pequena biblioteca de fundos e
Dupin, dono do apartamento, levanta para acender a luz. Mas Dupin não o faz, quero dizer,
ele não acende a luz, porque o chefe de polícia conta que está lá para consultá-lo sobre um
caso de polícia, um assunto oficial. Dupin desiste de acender a luz: Se é alguma coisa que
requeira reflexão, vamos examiná-la melhor no escuro.
O chefe de polícia é engraçado, mas um pouco ingênuo. Ele chega no apartamento
querendo que o Dupin desvende pra ele o caso, mas não dá o braço a torcer, “não tenho a
menor dúvida de que poderemos resolver satisfatoriamente sozinhos, mas aí eu pensei que
Dupin poderia gostar de ouvir os detalhes do caso, porque a coisa toda é tão singular”. O
chefe de polícia chamava de singular tudo o que ele não conhecia, tudo que estava além de
sua capacidade de compreensão.
“Simples e singular”, comenta Dupin. E é a própria simplicidade da questão que
parece confundir o chefe de polícia. O mistério é simples demais. Aos poucos, ele nos
informa e informa a Dupin do caso: um documento de extrema importância, uma carta, havia
sido roubada dos aposentos reais, sendo o ladrão conhecido, visível (ele havia roubado à olhos
nus do verdadeiro dono). Mas isso teria ocorrido diante da cegueira de uma personagem
central, o Rei – ou a polícia –, de quem a carta deve ser mantida em segredo, todos trabalham
no conto para desviar a carta desse lugar, para afastá-la da visibilidade do Rei, da polícia, da
lei, enfim: The purloined letter é também a carta não reclamada, a carta extraviada de seu
destino. O ministro intercepta uma carta que a Rainha, constrangida, tentava omitir ou desviar
da visão do Rei. O próprio ladrão, no caso, o ministro, faz desviar a carta, a torna invisível,
precisa torná-la invisível, já que seu poder de manipulação depende do desconhecimento do
Rei sobre o conteúdo da carta e do insucesso da polícia em sua vocação de busca. O chefe de
polícia chega a casa de Dupin após ter esquadrinhado a casa (inclusive o interior da trabessa
entre as madeiras e o tecido de cada uma das cadeiras, o interior das almofadas, entre cada
uma das páginas de cada um dos livros da biblioteca, debaixo do calçamento da propriedade

95
do Ministro, tudo executado minuciosamente) sem ter encontrado nem vestígio da tal carta.
Ele chegou a assaltar o ladrão, três ou quatro vezes, para ver se a carta estava em sua posse.
Mas nenhum sinal da carta roubada, embora todos saibam que a própria circunstância
delicada da situação exige que o ministro possa dispor da carta sempre que precisar. Dupin
escuta tudo atentamente e diz que não pensa em dar outro conselho ao chefe de polícia que
não seja “examinar novamente todos os aposentos com o maior cuidado”.
Um mês se passa desde o ocorrido e a situação se repete: o Narrador e Dupin estão
sentados na pequena biblioteca de fundos quando o chefe de polícia os interrompe. Quando
questionado sobre o paradeiro da carta, ele afirma ter empreendido uma nova busca,
minuciosa, sem, no entanto, ter obtido algum sucesso.

[Continuar escrevendo]

96
Roteiro: Fedro

Personagens:

Sócrates: Mulher de mais ou menos 50 anos, professora de filosofia do ensino fundamental de


uma escola pública. É casada com uma mulher, Xantipa, com quem vive uma relação
conflituosa. Parece que não toma banho. Anda com umas roupas bem largadas, leves. Tem
uma bolsa grande onde ela traz as xícaras de chá, as ervas, alguns frascos com líquido dentro,
um caderno velho, livros, e um lenço de pano.

Fedro: Jovem, bonito, aristocrático. Um pouco ingênuo. Cursa filosofia.

Roteiro:

[Fedro está na faculdade, em uma sala de aula. Corta para Sócrates dando aula no ensino
médio de uma escola estadual. O professor de Fedro termina a aula. Fedro sai da sala, desce
as escadas. Muitos planos de passos descendo as escadas. Planos de Sócrates descendo as
escadas do colégio estadual. CRÉDITOS. Fedro esbarra com Sócrates no meio da faixa de
pedestre de uma larga avenida. As pessoas atravessam pela faixa. A cidade ao redor é
barulhenta: motores de carro, pessoas falando, vendedores...]

Sócrates – Tá vindo de onde, Fedro? E indo pra onde?

Fedro – Que susto, Sócrates!Eu tava na aula do Lísias. Terminou agora. [Olha para o sinal,
impaciente. As pessoas passam. Plano-detalhe do Fedro escondendo um caderninho no bolso
enquanto fala] Ele deu uma aula sobre o amor hoje.

Sócrates – Sobre o amor?

Fedro – (olha outra vez para o sinal de trânsito e responde impaciente). Sobre o amor. E agora
eu to indo fazer uma caminhada por aí... Quero pensar nas coisas que ele disse... Aliás, o
sinal... (aponta para o sinal)

Sócrates – (colocando a mão no braço de Fedro, ao mesmo tempo impedindo que ele vá
embora e conduzindo seu corpo para a calçada. O sinal abre. Fedro acelera o passo. Sócrates
acelera o passo, mas fica um pouco atrás. Os carros buzinam. Sócrates pisa na calçada e
coloca a mão no tronco de Fedro) Faz bem.

Fedro – O quê?

Sócrates – Andar.

Fedro – É. Faz bem... Eu li que pelo menos duas vezes por semana.

Sócrates – [irônico] Leu? Onde?


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Fedro – Meu Deus [sarcástico com a curiosidade do Sócrates)... (com sorriso no lábio) Numa
revista acadêmica de biologia. Foi escrito por um médico alemão. Te passo depois, se você
quiser. Deixo lá na escola qualquer dia desses.

Sócrates – [nem aí, olhando pro sol] Sabe, Fedro, está um dia tão bonito ,acho que eu vou
fazer essa caminhada com você... Aí você aproveita e me fala um pouco dessa aula do Lísias
de hoje.

Fedro – (Sem graça) Não, mas eu nem lembro direito, eu não tenho nada da aula...

Sócrates – Ah, Fedro, como se eu não te conhecesse... Você deve ter anotado palavra-por-
palavra do que ele disse... E agora devia estar indo caminhar com aquele teu caderninho em
punho, tentando decorar as coisas que ele disse. Só que no caminho a gente se encontrou,
você sabe que eu não perco uma boa conversa por nada, e agora tá se fazendo de rogado, só
pra fazer um charme pra mim...

Fedro – Não, eu esqueci o caderno. [sério] Aqui, eu só estava indo dar uma volta. Se você
quiser vem comigo e eu te conto o que eu me lembrar. Mas eu to com fome, preciso comprar
um sanduíche antes, alguma coisa. Você tem alguma comida aí com você?

Sócrates – Posso preparar um chá.

Fedro – Um chá?

Sócrates – É, ué. [Começa a mexer na bolsa] Nunca experimentou meus chás, Fedro? [Olha
algumas sacolinhas com ervas, coloca de volta na bolsa] O problema é a água. Mas se a gente
for pra margem de algum rio, LIMPO E COM A ÁGUA BEM FRESCA, eu posso preparar
um chá gelado que é a minha especialidade!

Fedro – (rindo) Eu não acredito que você carrega ervas de chá na bolsa.

Sócrates – [Irônica] E duas xicarazinhas lindas que eu comprei na feira de antiguidades e que
eu peço pra Xantipa deixar sempre aqui, enroladas num pano, lavadinhas, para o caso de eu
encontrar o Fedro, quem sabe, por acaso, no meio da rua, depois de ele ter saído de uma aula
sobre o amor [olha pro sol] [se apressa] Fedro, vamos, vamos procurar um rio, o dia está lindo
e eu quero ouvir o que você tem pra me contar.

Fedro – Você está louca, você é louca... Sócrates, pra achar um rio limpo a gente vai ter que
pegar um ônibus, sair da cidade, sei lá, caminhar muito. Não tem nenhum rio limpo aqui
perto, olha (rindo) eu achei engraçada a ideia do rio, do chá, mas vamos deixar pra outro dia.

Sócrates – Ué, mas o problema é a distância? Até parece que eu não estava falando com um
rapaz que disse que era importante fazer caminhadas, que leu que fazia bem pra saúde...

Fedro – (Ri) Você é ridícula, Sócrates. [Pausa. Fedro fica olhando pra cara da Sócrates] Tá,
vambora. A gente pega um ônibus na rodoviária. Eu costumo acampar numa cidade aqui
perto. Acho que você vai gostar.

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[Os dois caminham pela larga avenida. Se perdem no meio da multidão]

[Sócrates e Fedro entregam a passagem ao motorista. Entram no ônibus, procuram o lugar,


sentam, se arrumam nas cadeiras. Sócrates vai na janela]

Sócrates – E como é que foi a aula do Lísias, me conta. [diz isso procurando alguma coisa na
bolsa. Durante a resposta do Fedro, ela começa a tirar coisas da bolsa, vários vidrinhos. As
xícaras enroladas em um pano. As ervas].

Fedro – Eu não sei se eu lembro de cor. Ele falou muita coisa. E de um jeito muito bonito.
Mas vou tentar expor os argumentos em ordem, os que eu me lembrar.

Sócrates – [levantando o olho da bagunça que estava fazendo sobre o colo e de um jeito
irônico-engraçado] Ah é, meu amor? Mas antes de começar a expor os argumentos, pega
aquele caderninho que você escondeu no bolso de trás quando a gente se encontrou lá no
sinal...

[Fedro se constrange, ela olha pra ele, sarcástica, ele pega o caderninho, abre e começa a ler
as anotações. Durante todo o tempo de leitura do Fedro vemos o ônibus de fora. Vários cortes
do ônibus em várias pontos do ônibus e do trajeto – planos-detalhe das mãos do motorista na
marcha, no volante, o pé no acelerador, a roda na estrada...]

Fedro – Ele falou uma coisa engraçada, mas que faz todo o sentido. Que vale mais a pena
você... [Improvisação do ator com base no texto]

[Fedro termina. Câmera dentro do ônibus. Sócrates entrega um vidrinho pro Fedro. Fedro
guarda na mochila]

Fedro – Você nem prestou atenção, né? Ficou aí... mexendo nessas coisas...

Sócrates – [Sério] Claro que prestei... [Termina de guardar os frascos de volta na bolsa. Mas
fica em silêncio, “fecha a cara” e vira o rosto para a janela. Fica olhando a paisagem em
silêncio. Fedro já parece acostumado. Tira um ipod da mochila e coloca o fone no ouvido.
Escolhe uma música. Fecha os olhos. A viagem segue]

[Fedro e Sócrates no mato. Vários cortes. Planos individuais de Fedro e Sócrates no mato.
Fedro e Sócrates numa estrada de terra. Vários cortes. E então Fedro aponta com a cabeça, um
pouco cansado. Sócrates olha. Um pasto, um rio e uma árvore].

Fedro – Chegamos.

Sócrates – O Ilisso...

Fedro – Você conhecia?

Sócrates – [Olha pro Fedro com cara de “macaca-velha” e segue andando] Tem uma pedra, lá
embaixo da árvore, onde a gente pode se deitar. [vai andando] Cuidado com os bois.

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[Fedro segue. Plongée do pasto: o rio, a árvore, os bois, Sócrates um pouco à frente, em
direção à árvore, e Fedro um pouco atrás, seguindo]

[Plano mais próximo dos dois, ainda no caminho, Sócrates um pouco na frente. Fedro com
medo dos bois.]

Sócrates – Sabe, Fedro. Eu acho que eu consigo fazer um discurso ainda mais bonito que a
aquele do Lísias.

[Fedro, um pouco atrás]

Fedro – Você não gostou do discurso do Lísias?

Sócrates – É demoníaco...

Fedro – Não sei, pra ser sincero eu saí da aula pensando que aquela era a melhor explicação
do amor que eu já ouvi...

Sócrates – [ri] Você que é lindo, Fedro. E leu muito bem.

Fedro – [mudando de assunto, corre um pouco mais para alcançar Sócrates. Quando está a seu
lado, pergunta] Sócrates, não foi aqui que se passou aquela história da Orítia? Não foi aqui
que o Bóreas capturou a Orítia quando ela brincava com o...enquanto ela brincava com o
remédio.

[Sócrates como que se lembra do que ele está dizendo e completa a fala, falando ao mesmo
tempo que o Fedro quando diz “enquanto ela brincava com o remédio”. Sócrates diz, quase
em sincronia]

Sócrates – enquanto ela brincava com o veneno.

[Os dois sorriem]

Fedro – Você acredita nisso?

Sócrates – Não sei, Fedro... Não sei... É muito grande, eu teria que tratar de muita coisa. Você
sabe, essas histórias podem ir pra qualquer lugar. A gente começa nisso e termina em
monstros, quimeras, hipocentauros, lutas mitológicas... E eu ainda nem me conheço...

MITO DE ORÍTIA

[O mito será todo filmado em stop-motion]

Orítia está num pasto de manhã bem cedo. Colhe ervas. Alguns focos de névoa, as plantas
úmidas, o chão úmido... Barulho dos passos dela, descalça. Ela está carregando um punhado
de ervas. Ela no rio, exatamente para onde estão indo Sócrates e Fedro, preparando um chá.
Ela bebe o chá, calmamente. Ela caminha pelo rio, na parte rasa. O vestido está molhado nas
pontas. Ela vai de um lado pro outro. Corta para ela fazendo o mesmo num ponto abaixo do
rio. Corta pra ela fazendo o mesmo num ponto acima do rio. Agora vários planos fechados do

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corpo dela, desesperado, tremendo, suando. Ela dança. Se debate na água. Escuro: só a
respiração dela. Imagem do corpo dela, em silêncio. Pensar se é mesmo uma Ofélia na água.

[Sócrates chega, encosta na pedra. Tira um lenço da bolsa. Venda o rosto]

Sócrates – [Tem alguma coisa de brincadeira infantil no modo como Sócrates está agindo] Eu
vou falar um discurso mais bonito do que o do Lísias, mas preciso ter o rosto coberto. Olha,
Fedro, que lugar lindo. Essa árvore. Essa pedra. O rio...

Fedro – Eu nunca tinha te visto sair da cidade.

Sócrates – Eu nunca saio. É difícil... (brincando) Mas sabe cachorro, quando você pega um
pedaço de carne e vai conduzindo ele, pra onde você quiser. (ri) Com esse papinho de aula
sobre o amor, ou só com essas folhas de anotações, Fedro, você me leva pra onde quiser.

Fedro – Mas você não gostou do que ele disse...

Sócrates – Não, eu não disse isso. Eu achei repetitivo. Ele repete, duas ou três vezes as
mesmas coisas. Não se demora em nada. (ri) Não sei... fiquei com a impressão de que era um
adolescente querendo se exibir.

Fedro – Então vai lá, diz, onde você ouviu um discurso sobre o amor mais bonito que esse?

[Fedro tira o lenço de Sócrates e deixa cair. Sócrates pega e mantém na mão]

Sócrates – Difícil dizer, assim... Talvez de uma poeta, a Sáfo. Ou de um sábio: Anacreonte...
Mas não sei...

Fedro – Tá bom, não precisa dizer onde. Mas você vai cumprir o que prometeu. Vai fazer o
seu discurso... um discurso mais bonito que o do Lísias.

Sócrates – Mas logo eu, Fedro, que não sei nada...

[Fedro empurra Sócrates contra a árvore]

Fedro – Você insistiu pra que a gente viesse até aqui, eu peguei um ônibus, eu vim pra puta
que o pariu pra te contar a aula que eu EU TIVE...

Sócrates – [Se desvencilhando do Fedro] O chá!

Fedro – [Sócrates vai caminhando em direção ao rio. Fedro, um pouco atrás, tem uma ideia]
Eu vou parar de te repassar os e-mails da faculdade.

[Sócrates pára. Ri]

Sócrates – Vai parar de repassar o quê?

Fedro – Os e-mails que a gente troca na faculdade, entre os alunos, entre os alunos e os
professores... Você não vai ler mais nenhuma discussão nossa, você não vai receber as
ementas dos cursos, as questões dos alunos, o resumo das aulas, os artigos... isso tudo que
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você fica insistindo a mim e aos meus amigos pra que a gente te repasse, eu vou cortar...
[Fedro entrega pra Sócrates o frasco que ele havia lhe dado no ônibus]

Sócrates – (interrompendo) Olha, olha... (ri, uma gargalhada longa) Tudo bem, tudo bem: eu
faço o discurso. [bebe o conteúdo do frasco] Mas vamos comigo pra beira do rio. Assim eu
preparo um chá enquanto te faço o discurso.

[Imagens dos dois sentados na beira do rio. Sócrates tira da bolsa um recipiente maior. Enche
de água. Tira as ervas da bolsa. Vai colocando sobre a terra. Cobre o rosto com o lenço]

Sócrates - Não quero ter que olhar pra você.

[Enquanto fala, vários cortes: a mão dela pegando as ervas, ela às vezes cheirando as ervas,
por dentro do pano, ela esfregando as ervas entre as mãos, friccionando. Ela despedaçando e
colocando no recipiente, não necessariamente nessa ordem. Sócrates não como um filósofo,
mas como um pagé]

PRIMEIRO DISCURSO DE SÓCRATES – [Improvisação com a atriz em cima do texto]

[Sócrates derrama água no recipiente com ervas. Mexe, derrama nas xícaras de chá de
porcelana – de tipos diferentes – e enche as duas até quase as bordas. Fedro pega a sua chícara
e dá um gole. Olha com cara de aprovação. Sócrates bebe um gole e cospe]

Fedro – Que isso Sócrates? Pirou?

[Sócrates se levanta com a xícara, pega a xícara de Fedro, arremessa o líquido das duas ao rio,
reúne suas coisas]

Sócrates – Vou embora.

Fedro – Que isso Sócrates? O que está acontecendo? Vai embora pra onde essa hora, com esse
sol...?

[Sócrates caminha pra perto da árvore, o sol atravessa os galhos e incidem sobre seu rosto]

Sócrates – É monstruoso, Fedro, e eu me arrependo. Eu recebi agora aquele sinal divino que
me costuma chegar. Eu cometi uma falta contra uma divindade e isso é muito grave.

Fedro – Do que você está falando?

Sócrates – Eros não é filho de Afrodite e também, ele mesmo, um deus?

Fedro – É o que dizem.

Sócrates – Mas não foi o que Lísias afirmou em seu discurso, nem o você afirmou depois de
ter encantado a minha boca. Lembra quando Estesícoro perdeu a visão por ter enjuriado
Helena?

Fedro – Quem?

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Sócrates – Ele fez uma palinódia, Fedro. E imediatamente recuperou a visão.

Fedro – Uma palinódia?

Sócrates – É. Uma retratação. A retratação de um discurso em outro. E é o que eu vou fazer


agora, meu caro. E com a cabeça descoberta. Sem a vergonha que me obrigou a cobri-la para
enunciar aquilo que você me ordenava. Foi mentira quando eu disse...

SEGUNDO DISCURSO DE SÓCRATES – [Improvisação com a atriz em cima do texto]

MITO DA PARELHA ALADA – [Pensar como fazer]

Fedro – É lindo seu discurso Sócrates. Mais bonito que o anterior e muito mais que o do
Lísias. Você escreve muito bem.

Sócrates – E o que é isso, Fedro, escrever bem? (ri)

MITO DE THOT – [Tudo escuro. Uma criança acorda o pai, acende o abajur, e fala que
inventou a escrita. O pai apaga outra vez a luz e explica porque não gostou. Os dois aos
sussurros, nenhuma imagem, exceto no momento em que a criança acende o abajur para
anunciar sua invenção].

[Continuar]

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Vídeos-postais

Os vídeos-postais serão exibidos durante a defesa da dissertação.

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