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JAEGER, W. The Theology of the Early Greek Philosophers. Trad. Edward S.

Robinson. Oxford: Oxford University Press, 1947.

Trad. Prof. Evaniel Brás; para uso em sala de aula.

Capitulo 2: “A Teologia dos naturalistas milésios”. (pp. 18-21)

No pórtico da filosofia levantam-se três figuras veneráveis, Tales, Anaximandro e


Anaxímenes. Desde os tempos de Aristóteles encontramos estes homens juntos como
físicos ou filósofos da natureza. Se é verdade que em tempos posteriores houve outros
pensadores com inclinações semelhantes, estes três seguem como preeminentes em seu
gênero e, obviamente, formam um grupo unificado. Até por seu lugar de origem se
encontram juntos: todos são filhos de Mileto, a metrópole da Asia Menor Grega que
alcançou o auge de seu desenvolvimento político, econômico e intelectual durante o
século VI. Foi aqui, no solo colonial da Jônia, que o espírito grego obteve as duas
concepções gerais do mundo que viabilizaram, por um lado, a épica homérica e, por
outro lado, a filosofia grega. Podemos, é obvio, mostrar que os gregos da Asia Menor
estabeleceram contato muito estreito com as velhas culturas do Oriente no comércio, na
arte e na técnica; e sempre haverá alguma disputa sobre o quanto desta influência
contribuiu para o desenvolvimento intelectual grego. Não é difícil imaginar como
profundamente deve ter impressionado as mentes sensitivas dos gregos os vários mitos
Orientais sobre a criação e a tentativa Babilônia de conectar todos os eventos terrestres
com as estrelas. Talvez possamos até traçar na teologia de Hesíodo certas reações às
especulações teológicas dos Orientais, especialmente em seus mitos sobre a primeira
mulher e como o pecado e o mal vieram para terra.
A despeito de tudo isso, a Teogonia de Hesíodo já é inteiramente grega, tanto no
conteúdo quanto no espírito; e o impulso que faz os filósofos Jônicos da natureza a
buscar compreender o mundo em termos universais adquire uma forma que é totalmente
e inequivocamente sua. O tipo hesiódico de racionalismo, com suas interpretações e
sínteses dos mitos tradicionais, tinha dado um passo para uma nova e mais radical forma
de pensamento racional, que não extrai seu conteúdo da tradição mítica, nem, na
verdade, de nenhuma outra [tradição], mas estabelece como seu ponto de partida as
realidades dadas na experiência humana – τὰ ὄντα, “as coisas que existem”. Aqui temos
uma expressão que foi usada um tanto comumente, mesmo em tempos posteriores,

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denotando os bens domésticos e as propriedades dos homens; em linguagem filosófica,
seu escopo agora é ampliado para incluir tudo o que é encontrado no mundo da
percepção humana. Ao definir assim de modo geral seu objeto de estudo, a filosofia
mostra que havia alcançado um novo nível, até em matéria de teologia; pois entre estes
ὄντα não encontrará lugar algum as forças celestes devotamente apresentadas nos
primeiros mitos, e não poderiam continuar sendo consideradas conforme os antigos
mitos, como pode ocorrer quando a presença real das coisas exige como as estrelas e o
ar, a terra e o mar, os rios e os montes, as plantas, os animais e os humanos. O trovão e
o relâmpago são fatos dados; todavia, isso pode ser dito de Zeus, o deus que os envia?
Em todo caso, ele não pertence ao reino das coisas que alcançam os sentidos; e, além
desse reino, não podemos ir. Mesmo se reconhecemos que os olhos e os ouvidos não
chegam muito longe e que a imaginação percorre distâncias imensuráveis, além dos
limites da percepção direta, os ὄντα que a imaginação encontra sempre serão do mesmo
tipo de coisas que se apresentam aos sentidos, ou pelo menos muito semelhantes.
Uma atitude intelectual tão alta implica uma profunda alteração no estado da
mente humana quando comparada com a etapa mitológica. Sua atitude em direção ao
próprio mito mudou. É verdade que os pensadores filosóficos mais antigos não
deixaram para nós afirmações diretas sobre suas concepções quanto aos mitos
tradicionais; porém, é inconcebível que eles pudessem deixar de considerar suas
próprias ideias como manifestamente antitéticas quanto ao modo de vida baseado sobre
a suposição segundo a qual todo conto mítico aceito em geral deve ser verdadeiro. Em
especial, deve haver sentido que, para eles, os μῦθοι não podem intrometer-se em
nenhum conhecimento autêntico sobe o mundo. Pois bem, a palavra μῦθοι foi
originalmente uma designação inócua para qualquer discurso ou narração; porém, no
tempo dos milésimos, quando os homens começaram a dirigir-se para uma fonte mais
imediata de conhecimento, a palavra indubitavelmente começou a adquirir o sentido
negativo que receberia de modo quase universal nos tempo de Tucídides e que é
expresso com uma conotação particularmente clara no adjetivo μυθώδης: aqui temos o
mítico no sentido do fabuloso e do inautêntico, em contraste com qualquer verdade ou
realidade verificável. Tucídides usa a palavra “mítico” para desacreditar os relatos
tradicionais em verso e prosa a respeito dos antigos períodos da história grega; e
seguramente um filósofo jônico da natureza como Anaximandro deve ter experimentado
sentimentos não menos depreciativos quando considerou o que os mitos diziam sobre os
deuses e a origem dos mundo. Seria de se esperar que alguém com tal ponto de vista

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lave as mãos as mãos sobre tudo o que temos chamado de teologia, banindo-o para o
reino do imaginário. Na verdade, o fato segundo o qual estes novos homens sejam
referidos como filósofos naturais ou φυσικοί (o termo é relativamente tardio) pode
parecer expressar que na própria ideia de φύσις ocorre uma delimitação de interesse que
automaticamente descartaria toda a preocupação com os θεοί. Ao confinar-se nos fatos
assegurados pelos sentidos parece que os jônicos assumiram uma posição ontológica
que é francamente não teológica.
Todavia, os testemunhos conservados, mesmo sendo escassos, mostram
claramente que este modo de interpretar a atitude intelectual dos primeiros filósofos é
uma falsa modernização. Mesmo excluindo todo testemunho, esta falsidade deve ser
evidente para o filólogo, pois ele só precisa refletir que traduzir a palavra φύσις pela
nossa palavra “natureza” ou φυσικός por “filósofo natural” não faz justiça ao
significado grego e é definitivamente errada. Φύσις é um destes termos abstratos
formados com o sufixo σις que se tronou bastante frequente após o período da última
épica. Ele denota com muita evidência o ato de φῦναι – o processo de surgimento e
desenvolvimento; esta é a razão pela qual os gregos usaram o termo com um genitivo,
como em φύσις τῶν ὄντων – a origem e o desenvolvimento das coisas que encontramos
ao nosso redor. Entretanto, o termo também inclui sua fonte de origem – aquilo a partir
do que se desenvolve e a partir do que seu desenvolvimento é constantemente renovado
– com outras palavras, a realidade subjacente nas coisas de nossa experiência.
Encontramos o mesmo duplo significado no termo γένεσις, um sinônimo de φύσις, que
é tão velho como φύσις, talvez ainda mais velho. Na passagem homérica relativamente
tardia na qual o Oceano é nomeado como a origem de todas as coisas, o termo já é
empregado nesse sentido. Dizer que o oceano é a genesis de todas as coisas é
virtualmente o mesmo que nomeá-lo como a physis de todas as coisas. Pois bem, Tales
sustenta que a Água é a origem de todas as coisas. Isto não parece muito diferente,
porém, se está diante de uma diferença inquestionável, a saber: o fato segundo o qual o
filósofo dispensa toda expressão alegórica ou mitológica para comunicar sua intuição de
que todas as coisas vem ao ser a partir da Água. Sua água é uma parte visível do mundo
da experiência. Todavia, sua visão sobre a origem das coisas como relatadas pelos mitos
teológicos da criação é diferente, ou melhor, há uma competição com eles. Pois, se sua
teoria parece ser puramente física, ele evidentemente pensou sobre ela como possuindo
o que podemos designar como característica metafísica. Este fato é revelado na única de
suas sentenças que chegou até nós em sua forma verbal (se é que, na verdade, pertence a

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ele de fato): πάντα πλήρη θεών, “tudo está pleno de deuses”. Duzentos anos mais tarde,
no final deste primeiro período do pensamento filosófico, Platão cita este apotegma com
ênfase especial, quase como se fosse a palavra primeira e a própria quinta essência de
toda filosofia. Platão encontra um profundo significado histórico naquela filosofia da
natureza, considerada por muito tempo como fonte de ateísmo, podendo ele, em sua
própria doutrina sobre os deuses estelares, retornar à mesma verdade fundamental da
qual ele havia partido. E seu discípulo em teologia, Filipo de Opus, cita estes termos em
sua Epinomis como a fórmula última do estudo filosófico sobre o Ser, suportando
substancialmente pelas mais modernas teorias astronômicas sobre os corpos celestes.

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