Você está na página 1de 4

O VELHO BRANCO

Daniel Galera

Quero ser como o Velho Branco. Não sei quase nada sobre o Velho Branco, mas o pouco
que sei é tudo que é necessário saber para ter certeza de que quero ser como ele. O Velho
Branco não é muito velho. Tem cinqüenta e dois ou cinqüenta e quatro anos. Sua barba e
bigode ainda volumosos e os cabelos parcialmente ceifados pela calvície são brancos e
lhe fazem aparentar uma idade maior que a verdadeira. Sei o nome dele, mas não vou
contar. Ele é de origem alemã. Para mim ele foi desde o primeiro momento o Velho
Branco. É complicado descrever o pouco que sei sobre o Velho Branco e por que esse
pouco me dá vontade de ser como ele. O Velho Branco nada na mesma academia de
natação em que nadei durante dois dos três anos que acabei de passar em São Paulo. Na
verdade, passei a interagir com o Velho Branco só nos últimos seis ou sete meses de vida
paulistana, até que minha mudança voluntária para uma praia de Santa Catarina me
afastou da academia em questão. E acho que foi apenas no último ou nos dois últimos
desses seis ou sete meses que percebi com clareza tudo que o Velho Branco significava e
que é tão complicado de descrever.
Não sei o que o Velho Branco faz da vida, mas ele não é atleta profissional. Como
eu, ele apenas nada. Seu desempenho nas raias é extraordinário para uma pessoa de
cinqüenta e dois ou cinqüenta e quatro anos que não é atleta profissional. O Velho Branco
faz parte de uma equipe que treina todos os dias ao meio-dia e meio na supracitada
academia. Essa equipe tem cerca de uma dúzia de pessoas e é formada em sua maior
parte por triatletas e pessoas com cerca de trinta anos. Há um homem integrante da
equipe que é ainda mais velho que o Velho Branco – tem cinqüenta e seis anos – e atinge
marcas superiores nas séries de velocidade e também nas de resistência. Ou seja, não
estou querendo insinuar que admiro o Velho Branco por ele ser um super-atleta ou algo
do tipo – embora haja um quesito em que o Velho Branco é simplesmente insuperável, o
braço sem palmar. Ninguém da equipe nada mais rápido que ele fazendo braço sem
palmar, modalidade de treino que consiste em colocar uma bóia entre as pernas para
imobilizá-las e ao mesmo tempo fornecer flutuação extra na parte inferior do corpo,
deixando toda a propulsão a cargo dos braços. Mais do que força, o bom rendimento no
braço sem palmar depende de uma braçada bem desenhada e um bom “giro”, ou seja,
uma freqüência elevada de movimentos. Fazer força é importante, mas não desperdiçar
força é o que realmente faz diferença no braço sem palmar. O Velho Branco não
desperdiça força.
Foi dividindo uma raia com o Velho Branco numa série de braço sem palmar que
senti pela primeira vez a força de sua presença. Essa sensação teve início como uma
banal manifestação de inveja e admiração motivada pelo fato de que eu, cerca de vinte e
cinco anos mais jovem que o Velho Branco e praticante da natação desde os catorze anos,
descobri-me incapaz de ultrapassá-lo ou sequer acompanhar seu ritmo numa série
qualquer de braço sem palmar, por mais que me esgoelasse em explosões de esforço
tamanhas que me acarretavam ânsia de vômito. Naquele dia passei a prestar atenção no
Velho Branco e ao longo das semanas recolhi evidências diversas de sua esmagadora
superioridade diante de todos os seres humanos que já existiram, existem e virão a existir.
A primeira dessas evidências, talvez a mais importante de todas, foi a descoberta do
segredo por trás do milgaroso desempenho do Velho Branco na técnica do braço sem
palmar. Quando lhe perguntei como ele conseguia ser tão bom no braço sem palmar, a
resposta foi: “Porque eu gosto de fazer braço sem palmar”. Dificilmente vou conseguir
explicar a grandeza metafísica dessa resposta para quem não a identificou de cara. Além
disso, nesse texto não há como reproduzir a voz do Velho Branco – o som de algo sólido
tornado quebradiço em condições inesperadas, como o estalo final do tronco de uma
sequóia centenária que está começando a tombar depois de ter sido seccionada na base
por uma motosserra – tampouco a expressão facial que ostentava ao me responder – a
mesma expressão de absolutamente todos os momentos em que o flagrei, olhos
arregalados numa face relaxada e quase inerte, a expressão de um ser totalmente à
vontade numa vida que sabe que jamais vai dominar – ou sua postura geral naquele
momento – aprumada e velha, parecendo conter o potencial infinito dos gestos letais de
uma arte marcial particular. Posso dizer apenas que naquele instante me vieram à mente
todas as coisas de que gosto justamente porque sou bom nelas, e não o contrário. Me senti
pequeno e ignorante, mas um ser pequeno e ignorante para o qual a salvação estava ao
alcance.
Depois foram os banhos frios. Nas várias dezenas de ocasiões em que tive
oportunidade de testemunhar os procedimentos do Velho Branco no vestiário masculino
antes de iniciar um treino ou após o treino, ele tomou um banho gelado de vários
minutos. Quero dizer com “banho gelado” que o Velho Branco gira apenas o registro da
água fria, até a potência máxima, e entra embaixo da água fria ou gelada ou congelante –
depende da estação do ano – e fica ali embaixo por vários minutos. O Velho Branco não
bufa. Ele não geme. Ele fica em silêncio mesmo nos dias mais frios, sob a água mais
mortalmente congelante. Em algumas ocasiões, em pleno inverno, eu o escutei cantarolar
enquanto se esfregava sob a ducha glacial, um canto capaz de vaporizar a alma de
eventuais banhistas presentes no vestiário. Saliente-se que o Velho Branco jamais
chamou a atenção de ninguém para esses banhos brutais, assim como nunca se vangloriou
de sua supremacia no braço sem palmar. Ele fica na dele, mas é claro que outros
freqüentadores do vestiário acabam notando. Nos dias mais frios, o boxe do Velho
Branco – os boxes da academia não tinham porta e davam todos para um único corredor –
irradiava uma mortalha de frio paralisante que não tinha como passar despercebida.
Questionado, ele alegava “gostar” dos banhos frios e que alegava que eles “faziam bem”.
Todos sabiam que o Velho Branco tinha razão, mas poucos se atreviam a tentar imitá-lo.
Eu tentei uma vez. Tolero e até aprecio banhos gelados no verão, mas no inverno eles são
violentos demais para mim. Um dos maiores nadadores da equipe, um sujeito jovem, alto
e muito forte, experimentou a ducha fria do Velho Branco no outono. Suportou mais ou
menos um milionésimo de segundo e recuou quase em prantos, completamente
aniquilado.
Há diversos outros aspectos do comportamento do Velho Branco que contribuem
para sedimentar a força de sua presença, e o mais importante é que ele quase não fala.
Quando fala, é sempre perfeitamente breve, direto e cordial. Todo dia, ele nada no
mínimo três mil metros, invariavelmente. Se o treino do dia não alcança essa distância
total, ele permanece na piscina sozinho e completa os três mil nadando braço sem palmar,
não importa quão destruidor tenha sido o treino. Várias vezes olhei para trás antes de
entrar no vestiário após um treino forte, me sentindo desossado e desprovido de qualquer
traço de energia vital, e vi o Velho Branco deslizando numa raia da piscina vazia e
malcheirosa, a bóia entre as pernas, os braços furando e empurrando a água para cumprir
seus três mil metros de praxe.
Tenho saudade do Velho Branco. Lembro dele com freqüência quando nado no
mar, quando sinto medo do mar apesar de ter optado por nadar nele de novo, dia após dia.
Ele é a encarnação de uma verdade muito escorregadia. Seu silêncio, disciplina, elegância
de movimentos, humildade e total ausência de vaidade são facetas de um tipo grandioso e
muito raro de resignação diante do destino. O Velho Branco lembra de tudo e antevê
tudo. Ele sabe que vai morrer e sabe que nem o entendimento mais profundo da vida nos
poupa de experimentá-la. Ele sabe que podemos contemplar infinitos caminhos e
escolhas alternativas para a vida que nos acontece, mas que no fundo há apenas um
caminho e que nossas escolhas são inevitáveis e que essa visão permanente, latente, de
tudo que poderia ter sido ou poderá ser não passa de uma história que contamos para nós
mesmos. Sabe que é possível compreender a trama do tecido da vida, decifrar seus
padrões até um certo ponto, e sabe também que nossas reações ao desenrolar da trama
independem dessa compreensão. Sabe que podemos ser compassivos mesmo sem agir.
Sabe que ser virtuoso é fácil, difícil é lidar com as conseqüências da virtude. Num mundo
onde o Velho Branco existe, não pode haver vítimas. Suas braçadas de bóia e sem palmar
nos dizem que a probabilidade do que acontece é absoluta. Ao vê-lo nadando, você
saberá que ele sabe disso tudo e saberá que ele sabe de outras coisas, coisas impossíveis
de compartilhar, pois falta linguagem.

Conto de Daniel Galera publicado originalmente no mailzine "Cardosonline" ed.


999, 5 de outubro de 2008, e depois na antologia "Geração Zero Zero" (Língua Geral,
2011).

Você também pode gostar