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ANA FLÁVIA VALENTE TEIXEIRA BUSCARIOLO

ALFABETIZAÇÃO E
LETRAMENTO
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO
Ana Flávia Valente Teixeira Buscariolo

2021
CASA NOSSA SENHORA DA PAZ – AÇÃO SOCIAL FRANCISCANA, PROVÍNCIA
FRANCISCANA DA IMACULADA CONCEIÇÃO DO BRASIL –
ORDEM DOS FRADES MENORES

PRESIDENTE
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CAPA
Daniel Landucci

© 2021 Universidade São Francisco


Avenida São Francisco de Assis, 218
CEP 12916-900 – Bragança Paulista/SP
O AUTOR
ANA FLÁVIA VALENTE TEIXEIRA BUSCARIOLO
Doutoranda em Educação na área de Ensino e Práticas Culturais, pelo grupo LOED, na
Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Mestre em
educação na área de Psicologia Educacional (2015) pela Unicamp. Especialista em Neu-
ropsicologia aplicada à Neurologia Infantil (2009) pela Faculdade de Ciências Médicas da
Unicamp. Graduada em Pedagogia (2004) também pela Unicamp. Atualmente atua como
professora-alfabetizadora na EMEF Edson Luis Lima Souto, da rede Municipal de Cam-
pinas. Coordena o grupo de trabalho sobre Pedagogia Freinet nesta mesma escola. Atua
como professora convidada nos cursos de Pós graduação em Educação na FACP (Fa-
culdade de Paulínia). É membro da diretoria da REPEF - Rede de Educadores e Pesqui-
sadores da Educação Freinet, filiada à FIMEM - Federação Internacional dos Movimentos
da Escola Moderna. É também integrante da ABALF - Associação Brasileira de Alfabeti-
zação. Como pesquisadora, interessa-se pelos estudos que envolvem os processos de
aquisição e desenvolvimento da linguagem escrita, numa perspectiva histórico-cultural,
pelo trabalho sobre formação de professores e por práticas pedagógicas pautadas no
referencial freinetiano.
SUMÁRIO
UNIDADE 01: Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento..................................6
1. História da Alfabetização: conceito e sua historicidade.......................................................6
2. O surgimento do conceito de letramento e as correntes teóricas que o orientam ..........14
3. Alfabetização e Letramento - reconhecendo e diferenciando os conceitos.....................16
4. Freinet e a alfabetização......................................................................................................20
5. Paulo Freire e a alfabetização.............................................................................................31
UNIDADE 02: As bases teóricas................................................................................................42
1. As contribuições da psicologia para o processo de alfabetização....................................42
2. A psicogênese da língua escrita e o aporte teórico piagetiano.........................................45
3. Alfabetização como processo discursivo, pautado nos fundamentos da perspectiva
histórico-cultural do desenvolvimento humano......................................................................52
4. As contribuições da linguística para o processo de alfabetização e letramento..............62
UNIDADE 03: Os conceitos de alfabetização e de letramento nos documentos oficiais.......72
1. Letramento e gêneros textuais – conceitos de gêneros textuais, o trabalho
com gêneros no processo de alfabetização...........................................................................72
2. As prescrições oficiais para a alfabetização: Revisão histórica de do conceito
de alfabetização nas Leis e documentos oficiais: Constituição, LDB e PCNs,
RCNEI e BNCC. ......................................................................................................................84
3. Alfabetização e a criança com deficiência..........................................................................89
UNIDADE 04: Teoria e prática..................................................................................................100
1. Letramento e Métodos de alfabetização: descrever os principais métodos de alfabetiza-
ção a orientação teórica.........................................................................................................100
2. O ambiente material e social e o papel do professor na sala de aula: a importância do
ambiente alfabetizador...........................................................................................................107
3. A prática dos professores que atuam em classes de alfabetização ..............................114
4. Atividades práticas: a organização da sala para o trabalho com alfabetização.............115
Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento
UNIDADE 1
1
CONHECENDO OS CONCEITOS DE
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO

INTRODUÇÃO
Nesta unidade, visitaremos a história da alfabetização, para contextualizarmos histori-
camente esse conceito.

Também discorreremos sobre os temas letramento e alfabetização, buscando, para


além de conceituá-los, encontrar os pontos de aproximações e de divergências entre
esses termos tão em voga no campo educacional, trazendo ao diálogo importantes
referências sobre esses assuntos – Magda Soares, Angela Kleiman e Maria do Rosário
Mortatti são algumas delas.

Abordaremos, ainda, o construto teórico de outros autores, como o francês Célestin


Freinet e o brasileiro Paulo Freire, que, de lugares distintos, lançaram mão de estraté-
gias de trabalho para a aquisição da linguagem escrita que contemplam a ideia de que
alfabetizar é mais do que codificar e decodificar palavras.

1. HISTÓRIA DA ALFABETIZAÇÃO: CONCEITO E


SUA HISTORICIDADE
Compreendemos como alfabetização a capacidade de ler e escrever, codificar e deco-
dificar os símbolos de nossa língua escrita. Etimologicamente, a palavra alfabetização
significa “levar à aquisição do alfabeto”.

Sabemos que na discussão sobre esse conceito encontramos divergências entre os


defensores da alfabetização como um processo permanente – que se estende por toda
a vida do ser humano – e aqueles que defendem a alfabetização como a capacidade de
ler e escrever convencionalmente, dominar o código apenas.

Antes de entrarmos nessa “arena de lutas” sobre alfabetização, vamos conversar sobre “a
alfabetização e sua história”, e, para isso, retomar os primórdios da linguagem escrita.

A escrita representa um marco para a história da humanidade, partindo da necessidade do


homem de se comunicar, criar registros, marcas de sua história. Os mais antigos registros es-
critos foram encontrados na Mesopotâmia e atribuídos aos sumérios, há mais de 5.500 anos.

Essa primeira forma de escrita da humanidade foi a escrita cuneiforme, que tinha
como função manter o controle sobre a vida contábil dos palácios reais, era gravada em
grandes blocos de argila por intermédio de um instrumento pontiagudo chamado cunha.

6
Figura 01. Bloco de argila contendo registros mesopotâmicos feitos na escrita cuneiforme 1

Fonte: 123RF.

Existem também registros de escritas feitas pelos homens primitivos, muitos deles en-
contrados por arqueólogos em cavernas. Essa escrita se apresenta na forma de picto-
gramas, que se relacionam ao formato do objeto a ser representado, e ainda escritas
em ideogramas, nas quais cada ideograma corresponde a uma palavra. Assim, para
representar uma ideia, são usados vários ideogramas, o que torna a sentença escrita
bastante extensa e complexa.
Figura 02. Pintura rupestre, escrita pictográfica

Fonte: 123RF.

Alfabetização e Letramento 7
Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento

1 Com o passar do tempo, a escrita foi adquirindo valores fonéticos, ou seja, os símbolos
passaram a representar fonemas, o que reduziu a quantidade de símbolos usados para
comunicar uma ideia, simplificando a comunicação. Ainda hoje, algumas sociedades
utilizam a escrita pictográfica e ideográfica, como é o caso dos chineses.

Ao revisitarmos o desenvolvimento da linguagem escrita, é imperioso destacar que foi a


necessidade do registro que motivou o ser humano a criar a escrita, aqui se destacando,
o registro de sua memória. Em um longo processo de construção, a escrita, passou de
um processo de relatos e memórias, para aos poucos adquirir também uma função social
mais complexa. Dentre os povos na Antiguidade que podemos verificar essa transforma-
ção, é importante citar o Egito Antigo e a presença dos escribas, ou já na Idade Média
Ocidental, uma alfabetização restrita em grande parte ao Clero Católico e a Nobreza.

Quando olhamos processo educacional no Brasil, a escrita ainda é visto como um privi-
légio e um marco de divisão social, mesmo que hoje, a escrita seja premência e direito
de todos, observamos que em nosso país os índices de analfabetismo são ainda alar-
mantes em pleno século XX. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
Contínua (PNAD Contínua) 2019, a taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou
mais de idade foi estimada em 6,6% (11 milhões de analfabetos), como podemos ob-
servar na imagem abaixo:
Figura 03. Taxa de analfabetismo entre as pessoas de 15 anos ou mais de idade (2019)

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisa, Coordenação de Trabalho e Rendimento, pesquisa nacional por amostra de domicílio
contínuo 2012-2019. Disponível em: https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18317-educacao.html.
Acesso em: 5 jan. 2021.Adaptado.

Pensando no contexto brasileiro, vamos agora conhecer alguns estudos referentes à


História da Alfabetização. A história da alfabetização no Brasil mostra que o interesse
em estudá-la nasce da convicção de que esse processo de aprendizagem é um dos
pilares da educação escolar, um tema extremamente pertinente quando pensamos no
âmbito educacional. Não existe conhecimento que não passe pela leitura e pela es-

8
crita. Ao pensarmos na instituição escola, automaticamente nos remetemos à leitura 1
e à escrita enquanto conhecimentos basilares para o desenvolvimento cognitivo dos
educandos. Por isso, a história da alfabetização se entrelaça à história da educação.

Ao analisarmos a história da educação brasileira, podemos notar que o acesso


à educação era restrito a uma minoria até o final do século XIX. As práticas de
escrita e de leitura não faziam parte do cotidiano da população. Aos poucos, com
a universalização da escola, o acesso, gradativamente, foi ampliado. O ler e o es-
crever passaram a ser organizados, estruturados, sistematizados e ensinados por
professores nas respectivas instituições (MORTATTI, 2011, p. 72).

Nesse mesmo século XIX, muitos entraves relacionados às questões materiais e


também a divergências pedagógicas dificultaram a proposta de se implantar um
sistema educacional no Brasil.

Inúmeras foram as barreiras encontradas para implementar um sistema educa-


cional no país. Questões referentes a investimentos materiais e também embates
pedagógicos atrapalharam o processo durante o Segundo Império (1840- 1888). A
média de recursos investidos por ano no campo educacional correspondia a 1,8%
do orçamento do governo imperial, sendo que apenas 0,47% tinha como destino a
educação primária e secundária. Para que tenhamos ideia da dimensão do déficit,
em 1844, “a instrução primária” recebeu somente 0,11% de todo orçamento des-
tinado à educação. Essa falta de investimento na educação se tornou histórica e
perdura até os dias atuais.

Com relação aos embates pedagógicos, podemos dizer que o ideário educacional
carrega a noção de ser humano, a concepção de mundo e a compreensão do que
é uma sociedade. Assim, as posições ocupadas socialmente e politicamente pelos
sujeitos (sujeito-professor e sujeito-aluno) que pensam e propõem as concepções
educativas vão sendo afetadas por eles e para eles.

Especialmente nas últimas décadas do século XIX, a educação e, consequente-


mente, a alfabetização passaram por importantes transformações. As mais signifi-
cativas se referem às concepções educacionais e pedagógicas que balizam o fazer
do professor em sala de aula, surgem então métodos para o ensino da leitura e da
escrita. Com o nascimento da Psicologia, que ocorreu concomitantemente a essa
emergência dos métodos de ensino da leitura e escrita, passou-se a considerar e a
trazer para o debate o caráter psicológico dos processos de aquisição da linguagem
escrita, como nos mostra Mortatti: “Empreendida por educadores, essa discussão
prioriza as questões didáticas, ou seja, o como ensinar, com base na definição das
habilidades visuais, auditivas e motoras do aprendiz” (MORTATTI, 2011, p. 44).

No cenário educacional surge então um importante debate (para não dizer embate!),
encontrando, de um lado, a defesa ferrenha aos métodos tradicionais, conhecidos
como métodos sintéticos: métodos que se pautam no trabalho por meio do ensino
letra por letra e sílaba por sílaba e palavra por palavra e, de outro lado, os métodos
analíticos que partem do texto ou os métodos híbridos, como veremos a seguir.

Alfabetização e Letramento 9
Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento

1
Fique por dentro
Os métodos sintéticos podem ser divididos em três tipos: o alfabético, o fônico
e o silábico. No alfabético, o estudante aprende inicialmente as letras, quando
então passa a formar as sílabas – juntando as consoantes com as vogais –,
para, em seguida, formar as palavras que constroem o texto. No fônico, ou fo-
nético, parte-se do som das letras – o som da consoante com o som da vogal –,
pronunciando a sílaba formada. O silábico é pautado no trabalho sistemático de
silabação, que consiste em trabalhar as sílabas primeiramente, de forma isolada,
para depois construir palavras. Do outro lado, havia os que apostavam na poten-
cialidade do inédito e dito inovador método analítico para alfabetização, que será
explanado no decorrer desta seção.

Com algumas divergências na busca por tentar formatar o trabalho de alfabetizar, par-
tindo-se de métodos mais estruturados – como o sintético, que propõe que o trabalho
com as letras seja da parte para o todo, da unidade menor (letra) para a maior (sílaba
e, posteriormente palavra) – ou de métodos analíticos – cujo trabalho com a linguagem
escrita parte do todo para as partes –, ou ainda da defesa de métodos híbridos, deu-se
assim a largada para a concorrência dos métodos de alfabetização no cenário educa-
cional. Competição essa que permanece na contemporaneidade.

Frente a esse cenário, tomando como referencial teórico as pesquisas da professora Ma-
ria do Rosário Mortatti (2006), podemos dizer que as concepções de alfabetização se
dividem em quatro etapas – que cronologicamente se situam de 1876 até os dias atuais.

A metodização do ensino da leitura, que compreende o período de 1876 a 1890, é


definida pela autora como a primeira fase desse processo.

De acordo com a autora:


[...] para o ensino da leitura, utilizavam-se, nessa época, métodos de marcha
sintética (da “parte” para o “todo”): da soletração (alfabético), partindo do nome
das letras; fônico (partindo dos sons correspondentes às letras); e da silabação
(emissão de sons), partindo das sílabas. Dever-se-ia, assim, iniciar o ensino da
leitura com a apresentação das letras e seus nomes (método da soletração/
alfabético), ou de seus sons (método fônico), ou das famílias silábicas (método
da silabação), sempre de acordo com certa ordem crescente de dificuldade.
Posteriormente, reunidas as letras ou os sons em sílabas, ou conhecidas as
famílias silábicas, ensinava-se a ler palavras formadas com essas letras e/
ou sons e/ou sílabas e, por fim, ensinavam-se frases isoladas ou agrupadas.
Quanto à escrita, esta se restringia à caligrafia e ortografia, e seu ensino, à có-
pia, ditados e formação de frases, enfatizando-se o desenho correto das letras.
(MORTATTI, 2006, p. 5)

A fase posterior, segunda fase – que se iniciou com a organização republicana – foi
marcada pela guerra dos métodos, uma forte disputa pelos métodos de leitura e es-
crita no campo da alfabetização. As cartilhas ganharam os holofotes e se tornaram pro-
tagonistas enquanto instrumentos pedagógicos usados para alfabetizar. Nessa mesma
época, o acesso à escola, garantido pela proposta de universalização do ensino, empla-

10
ca como a grande ação em busca do progresso e da modernização da nação. Tempo 1
em que se institucionalizou o Método Analítico para alfabetizar. Novamente recorremos
à Mortatti (2006, p. 8), que nos alerta para a questão de que “[...] ao longo desse mo-
mento, já no final da década de 1910, o termo ‘alfabetização’ começa a ser utilizado
para se referir ao ensino inicial da leitura e da escrita”.

Revisitando dados históricos sobre o uso das cartilhas, descobrimos que os primeiros
exemplares de cartilhas datam do século XIX – ano de 1834, para se ser mais exato.
Apesar disso, a cartilha se tornou usual, passando a circular de maneira mais expres-
siva no século seguinte, século XX, sendo definida como: “uma primeira experiência
na área da alfabetização, o que permitiu que a sociedade atual experimentasse novos
métodos” (FARIAS, 2008, p. 3.829).
Figura 04. Método Castilho para o ensino rápido e aprazível do ler impresso,
manuscrito e numeração, e do escrever

Autores: António Feliciano de Castilho; Ilustração de Bordallo. (Obra tão própria


para as escolas como para uso das famílias). António Feliciano de Castilho. 2.e.
Lisboa: Imprensa Nacional, 1853. [A 1ª edição é, provavelmente, de 1850. Em
1855, António de Castilho veio ao Brasil divulgar seu “Método” de alfabetização.
Fonte: São Paulo ([s. d.], [n. p.]).

Criada no século XIX e difundida no século seguinte, a fama pode ter demorado a chegar,
mas quando se consolidou, a cartilha se popularizou, passou a ser muito divulgada e utili-
zada por inúmeros professores como instrumento pedagógico para alfabetizar as crianças.

Alfabetização e Letramento 11
Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento

Figura 05. Cartilha “Ensino-Rápido da Leitura”


1

Cartilha “Ensino-Rápido da Leitura”; 196.e. São Paulo: Melhoramentos, 1955.


[Publicada pela primeira vez em 1917, essa cartilha conheceu sucesso extra-
ordinário, atingindo 2.230 edições em 1996 e mais de 6 milhões de exemplares
vendidos. Conforme dados da editora Melhoramentos, até 1941 ela já havia
vendido mais de 1 milhão de exemplares, mantendo a média de tiragem por
ano acima dos 100.000 exemplares até 1969. A partir de 1970, a produção caiu
drasticamente para 40.000 exemplares e chegou em 1996 com a tiragem de
1.000 exemplares].
Fonte: São Paulo ([s. d.], [n. p.]).

Em meados de 1890, uma equipe de professores normalistas de São Paulo passou a


compor o quadro de funções diretivas na instrução pública. Esse grupo via nas cartilhas
um moderno recurso de trabalho, que tornava possível trazer às salas de aula a propos-
ta de alfabetização pautada no método sintético. Assim, as cartilhas foram adotadas em
todo o território nacional. A cartilha escolhida aqui no Brasil foi a “Cartilha da Infância”.

Utilizada até a década de 1990, as cartilhas vigoraram por quase cem anos em terras
brasileiras e até hoje, arriscamos dizer, são repaginadas e apresentam ares de moder-
nidade, as cartilhas sobrevivem “maquiadas” em páginas de “modernos” livros didáticos
em pleno século XXI. Porém, em tese, os contextos culturais, econômicos, políticos e
sociais sofreram mudanças com o passar dos anos, o que acarretou a emergência de
outras concepções de alfabetização, a fim de atender às necessidades de ensinar as
crianças a ler e a escrever.

12
Pensando ainda acerca da história da educação brasileira e dialogando com Mortatti, 1
que se tornou uma grande referência no campo da alfabetização, adentraremos a ter-
ceira fase de alfabetização, situada historicamente entre 1920 e 1970.

Esse período, que durou aproximadamente cinco décadas, foi marcado por métodos
mistos – o que hoje chamamos de híbridos. Os estudos de Lourenço Filho, importante
educador brasileiro do século XX, consolidaram-se e trouxeram conhecimentos sobre a
ciência psicológica no contexto da educação, além de estudos sobre o funcionamento
da Escola Nova europeia. Ele lançou ainda estudos ancorados em três importantes
áreas: biologia, psicologia e sociologia.

O educador Lourenço Filho, a partir de seus estudos que relacionavam a Psicologia


com a educação escolar, também desenvolveu “os testes ABC”: utilizados, principal-
mente, para “[...] medir a maturidade da criança para a alfabetização”, visando “[...]
diminuir os altos índices de repetência das crianças nos primeiros anos de escolari-
zação”, servindo, assim, para organizar as classes a partir de critérios (SGANDERLA;
CARVALHO, 2010, p. 2).

Frente a esses novos estudos, a alfabetização em nosso país passou a ser balizada
pelo nível de maturidade alcançado pelas crianças. O nível de maturidade possibilitava
a classificação das crianças e a organização em agrupamento de classes homogêneas
para a alfabetização. Dessa forma, as crianças eram agrupadas de acordo com suas
habilidades ou falta de habilidades. Surgiam as “classes dos fortes”, dos “médios” e
dos “fracos’’. Esse tipo de organização, que colocava a criança em exposição e, muitas
vezes, em situações vexatórias, causava um sério problema de evasão escolar: obser-
va-se que, na época, de cada mil crianças que ingressavam na 1.ª série, “[...] apenas
449 chegavam à 2.ª série, em 1964; em 1974 – portanto, dez anos depois – de cada mil
crianças que ingressavam na 1.ª série, apenas 438 chegavam à 2.ª série”.

Desse modo, nos anos 1980, a partir dos altos índices de crianças que desistiram da
escola, iniciou-se no Brasil a organização por ciclos, segundo os quais “[...] a 1.ª série
correspondia à série de alfabetização – só o aluno considerado ‘alfabetizado’ era pro-
movido à 2.ª série” (SOARES, 2012, p. 14).

O tema “fracasso escolar” ganhou visibilidade nos anos de 1980, passando a ocupar
um lugar de destaque nas discussões acadêmicas acerca da escolarização. Os ques-
tionamentos sobre os métodos e a forma de se alfabetizar ganharam força, o que abriu
caminho para o que se denomina o quarto momento da alfabetização: a desmetodiza-
ção do ensino.

Foi nessa época que o ideário construtivista para a alfabetização ganhou força no Bra-
sil. Muitos educadores passaram a usar como base do trabalho com alfabetização as
pesquisas sobre a psicogênese da língua escrita desenvolvidas por Emília Ferreiro,
discípula de Jean Piaget e de seus colaboradores.

Cabe a importante ressalva de que o construtivismo não é um método de ensino, mas


sim uma nova forma de entender a relação que a criança estabelece com seu pro-
cesso de aquisição da linguagem escrita. A leitura equivocada do construto teórico de
Ferreiro fez com que houvesse o processo de desmetodização da alfabetização e o

Alfabetização e Letramento 13
Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento

1 abandono das cartilhas. A década de 1980 se torna a fase da “alfabetização: constru-


tivismo e desmetodização”.

O construtivismo foi incorporado como “método” em grande parte do território nacional,


inclusive foi citado e referenciado nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) que
datam de 1996. Foi também nos anos 90 que o conceito de letramento passou a ocupar
lugar nas discussões acadêmicas sobre o ensino da leitura e da escrita. Alfabetização
e letramento são conceitos distintos no processo de ensino e aprendizagem, mas estão
dialogicamente ligados, especialmente ao pensarmos nos modos de ensinar a lingua-
gem escrita.

SAIBA MAIS
Métodos de alfabetização e Projetos para nação (Live no canal de Bárbara Cortella com a professora
Maria do Rosário Mortatti)

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BmaXgERAr7k. Acesso em: 11 nov. 2020.

2. O SURGIMENTO DO CONCEITO DE LETRAMENTO E AS


CORRENTES TEÓRICAS QUE O ORIENTAM
O conceito letramento nasce para referir-se à escrita em funcionamento, em movimen-
to, portanto, não restringe a essa escrita o caráter meramente escolar. Kleiman afirma
que: “letramento foi criado para referir-se aos usos da língua escrita não somente na
escola mas em todo o lugar” (KLEIMAN, 2005, p. 5).

As críticas referentes aos métodos de alfabetização calcados em práticas de trabalho


com a linguagem escrita totalmente desvinculadas do uso dessa escrita e de sua função
social fazem com que uma outra forma de pensar o ensino da escrita seja considerada,
assim surge a ideia de letramento. Numa sociedade em que a escrita ocupa um lugar de
destaque, não basta apenas saber ler e escrever para inserir-se em um mundo letrado.

Letramento vem do termo literacy, que se origina da língua inglesa e pode ser traduzido
como a condição de ser um sujeito letrado – considerado como letrado aquele que, para
além de saber ler e escrever, responde adequadamente às demandas sociais da leitura
e da escrita. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, embora a palavra literacy já constasse
do dicionário desde o final do século XIX, foi apenas na década de 1980 que passou a
reverberar nos estudos das áreas da educação e da linguagem.

Foi ainda nos anos 80 que os estudos no campo da Psicologia e da Linguística passa-
ram a afetar os estudos sobre alfabetização no Brasil. A influência da argentina Emília
Ferreiro sobre os processos de elaboração das crianças na aquisição da escrita, os
altos índices de analfabetismo e também a ideia de que a escrita tem a função de co-
municar, para além de mera codificação do alfabeto, fizeram com que as práticas de
alfabetização fossem questionadas.

Nessa mesma época, buscando atender à falta de um conceito que se referisse aos
aspectos sócio-históricos da escrita, surge no Brasil as discussões sobre letramento,

14
definido como: “um conjunto de práticas de uso da escrita que vinham modificando 1
profundamente a sociedade, mais amplo que as práticas escolares de uso da escrita,
incluindo-as, porém” (KLEIMAN, 2005, p. 21).

A obra de Mary Kato (1986), intitulada No mundo da escrita: uma perspectiva psicolin-
guística, é apontada como a primeira obra a versar sobre o tema em território nacional.
A autora defende que a função primordial da escola é introduzir a criança no mundo da
escrita, tornando-a uma cidadã funcionalmente letrada, ou seja, capaz de usar a lingua-
gem em contextos sociais, garantindo a comunicação. Cabe ressaltar que, nesse livro,
Kato (1986, p. 140) define o letramento como “processo ou efeito da aprendizagem da
leitura e da escritura” e alfabetização como “iniciação no uso do sistema ortográfico”.

Outras autoras, como Angela Kleiman e Leda V. Tfouni, também trazem o termo letra-
mento nos livros: Os significados do letramento, organizado por Kleiman, e Alfabetiza-
ção e letramento, de Tfouni – ambos publicados em 1995.

Como pioneira na propagação do conceito de letramento, Kato (1986) nos provoca a


olhar para o que aparece como primeira definição conceitual do termo. É importante
destacar que o conceito de letramento só foi dicionarizado em 2001 e, no decorrer dos
anos, redimensionado.

O termo letramento é definido, no Glossário Ceale1, como:


palavra que corresponde a diferentes conceitos, dependendo da perspectiva
que se adote: antropológica, linguística, psicológica, pedagógica. É sob esta
última perspectiva que a palavra e o conceito são aqui considerados, pois foi
no campo do ensino inicial da língua escrita que letramento – a palavra e o
conceito – foi introduzido no Brasil. Posteriormente, o conceito de letramento
se estendeu para todo o campo do ensino da língua e da literatura, e mesmo de
outras áreas do conhecimento, mas, neste verbete, letramento é considerado
apenas em sua relação com alfabetização. (SOARES, [s. d.], [n. p.])

Faz-se necessário destacar que, no dicionário Houaiss (HOUAISS; VILLAR, 2001), por
exemplo, a palavra letramento aparece como sendo “o mesmo que” alfabetização e sua
definição consta embutida dentro da própria definição de alfabetização. Esse movimen-
to de conceber alfabetização e letramento como sinônimos só aparece com a dicionari-
zação do conceito de letramento.

Essa dicionarização nos dá indícios do impacto desse termo, letramento, nos construtos
teóricos sobre alfabetização. Soares (2003, p. 18) afirma de forma enfática que:
letramento não é ‘alfabetização’, esta costuma ser um processo de treino para
que se estabeleça relações entre grafema e fonema. Trazer alfabetização e
letramento como tendo o mesmo sentido sem problematizar o significado de
cada palavra nos coloca na discussão sobre o que é alfabetização? O que é
letramento? Alfabetizar é letrar?

1
http://www.ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/

Alfabetização e Letramento 15
Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento

1 3. ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO - RECONHECENDO E


DIFERENCIANDO OS CONCEITOS
A multiplicidade de conceitos de alfabetização e letramento – que muitas vezes ocupam
um lugar de disputa teórica – nos impulsiona na busca de um refinamento conceitual,
considerando-se algumas abordagens teóricas que, de lugares distintos – Educação e
Estudos da Linguagem – marcam posição em relação aos referidos conceitos.

Magda Soares (2001), grande referência no âmbito educacional, alerta-nos sobre a


diferenciação entre os conceitos de alfabetização e letramento, definindo letramento
como “[...] resultado da ação de ensinar e aprender as práticas sociais da leitura e da
escrita (...) o estado ou condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como
consequência de ter-se apropriado da escrita e de suas práticas sociais [...]” (SOARES,
2001, p. 39).

Para a autora, a alfabetização não representa uma habilidade e sim um conjunto de


habilidades, complexas e multifacetadas. O ato de alfabetizar é definido por ela como:
ensinar a ler e escrever, compreender códigos e símbolos. Destacando ainda que: “[...]
ter-se apropriado da escrita é diferente de ter aprendido a ler e a escrever: aprender a
ler e a escrever significa adquirir uma tecnologia, a de codificar em língua escrita e de
decodificar a língua escrita [...], ou seja, é assumi-la como sua ‘propriedade’” (SOARES,
2001, p. 39).

Figura 06. Situação de letramento, a escrita em uso na sala de aula (a)

Fonte: 123RF.

16
Figura 07. Situação de letramento, a escrita em uso na sala de aula (b)
1

Fonte: 123RF.

Podemos dizer que Soares reconhece duas dimensões do letramento: a dimensão in-
dividual e a dimensão social – dimensões essas que balizam os estudos sobre o tema.

Enquanto alguns estudiosos priorizam a dimensão individual, na qual o letramento é


encarado como um atributo pessoal e reconhecido como tecnologia que engloba um
conjunto específico de habilidades linguísticas, tanto na escrita quanto na leitura, outros
teóricos destacam a dimensão social e argumentam na defesa do letramento como
prática social. Seria “[...] o que as pessoas fazem com as habilidades de leitura e de
escrita, em um contexto específico, e como essas habilidades se relacionam com as
necessidades, valores e práticas sociais [...]” (SOARES, 2001, p. 72). Afirmando ainda
que “[...] letramento não é pura e simplesmente um conjunto de habilidades individuais;
é o conjunto de práticas sociais ligadas à leitura e à escrita, em que os indivíduos se
envolvem em seu contexto social” (SOARES, 2001, p. 72).

Do lugar dos Estudos da Linguagem, Angela Kleiman afirma que: “Letramento não é
alfabetização, mas a inclui!” (KLEIMAN, 2005, p. 11), explicitando que letramento e alfa-
betização não são sinônimos, mas estão intimamente relacionadas.

A autora aponta os estudos do letramento como possibilidades de atribuir à prática da


escrita um lócus de poder, que possibilita ao educando acesso a outros mundos, “[...]
públicos e institucionais, como o da mídia, da burocracia, da tecnologia e, através deles,
a possibilidade de acesso ao poder [...]” (KLEIMAN, 1995, p. 8).

A concepção de letramento, defendida por Kleiman, está relacionada ao uso da escrita,


à sua função social “[...] não se limita aos eventos e práticas comunicativas mediadas
pelo texto escrito, isto é, às práticas que envolvem de fato ler e escrever. O letramento
está também presente na oralidade, uma vez que, em sociedades tecnológicas como a
nossa, o impacto da escrita é de largo alcance [...]” (KLEIMAN, 1998, p. 181).

Alfabetização e Letramento 17
Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento

1 A oralidade também ganha relevância para Kleiman (1995). Ela destaca o fato de al-
gumas crianças estarem expostas a “eventos de letramento” antes mesmo de ingres-
sarem na escola, apropriando-se e fazendo o uso de estratégias orais de letramento
em seu cotidiano, podendo, assim, ser consideradas letradas, antes de ler e escrever
(KLEIMAN, 1995). Por exemplo, um garoto que ainda não iniciou o processo de alfabe-
tização, mas que a família busca estimular à leitura ao ler histórias e apresentar algu-
mas letras que formam as palavras. É possível dizer que este é o início do letramento, já
que os pais estão estimulando a criança para que ela vá além da alfabetização básica,
melhorando sua compreensão de mundo e apreço pela leitura no dia a dia. Frente a
esse cenário, podemos dizer que a família letrada se torna uma eficiente agência de
letramento, em que as práticas e usos da escrita são fatos corriqueiros e permitem que,
antes de conhecer a escrita convencional, a criança passa a conhecer o seu sentido e
a sua função.
Figura 08. Cenas de leitura em família, o que nos remete à uma situação de letramento

Fonte: 123RF.

No que se refere à alfabetização, a autora a concebe como uma prática de letramento,


como “processo de aquisição de códigos (alfabético, numérico), processo concebido
em termos de uma competência individual necessária para o sucesso e promoção na
escola” (KLEIMAN, 1995, p. 20).

De acordo com Kleiman, podemos dizer que a alfabetização é uma das práticas de
letramento que compõe um conjunto de práticas sociais do uso da linguagem escrita
na escola. Outras práticas de letramento são: escrever um diário, ler uma receita, enviar
um cartão, ler a bula de um medicamento, enfim, situações nas quais usamos a língua
escrita dentro ou fora do espaço escolar.

Kleiman ainda se refere ao fato de que o meio acadêmico se apropriou do conceito le-
tramento “[...] numa tentativa de separar os estudos sobre o ‘impacto social da escrita’

18
dos estudos sobre alfabetização, cujas conotações escolares destacam as competên- 1
cias individuais no uso e na prática da escrita [...]” (KLEIMAN, 1995, p. 15).

A autora afirma que as práticas específicas de alfabetização passam a ser apenas um


tipo de letramento, que desenvolve alguns tipos de habilidades, mas não outros. A escola,
sendo uma importante agência de letramento, preocupa-se, não com o letramento, práti-
ca social, mas com apenas um tipo de prática de letramento, a alfabetização, o processo
de aquisição de códigos (alfabético, numérico), processo geralmente concebido em ter-
mos de uma competência individual necessária para o sucesso e promoção na escola.
Já outras agências de letramento, como a família, a igreja, a rua, assim como o lugar de
trabalho, mostra orientações de letramento muito diferentes (KLEIMAN, 1995, p. 20).

SAIBA MAIS
Uma pessoa não alfabetizada, mas que conhece a função de uma carta, de um rótulo, de um bilhete ou
de uma placa, participa das práticas letradas de sua sociedade, mesmo que de forma limitada, à mar-
gem… Essa pessoa é considerada um sujeito letrado.

Kleiman (1995) ainda critica a postura de alguns pesquisadores que se mostram contrários
ao uso do termo letramento, afirmando que os conceitos por ele designados estão implícitos
no termo alfabetização, que essa seria uma leitura rasa acerca do conceito de letramento.

A alfabetização é defendida como uma prática que se consolida em eventos que se cir-
cunscrevem no espaço e tempo da sala de aula, coordenada pelo professor, que ocupa
o lugar de quem ensina, sistematiza e instrumentaliza os alunos sobre o uso do sistema
alfabético da escrita. “O conceito de alfabetização refere-se também ao processo de
aquisição das primeiras letras e, como tal, envolve sequências de operações cognitivas,
estratégias, modos de fazer” (KLEIMAN, 2005, p. 13).

Nessa perspectiva, podemos dizer que a alfabetização é indissociável do letramento. A al-


fabetização é necessária para que o sujeito seja considerado letrado, mas não é suficiente.
Tabela 01. Síntese dos conceitos

ALFABETIZAÇÃO LETRAMENTO

• Ensinar a escrever e ler • Prática social da leitura e escrita

• Conjunto de práticas que denotam a capacidade


• Processo de decodificação de signos
de uso de diferentes materiais escritos

• É um processo que está dentro da prática de letra- • Fenômeno cultural, relativo às atividades que en-
mento, de acordo com Magda Soares volvem a linguagem escrita

• Compreensão do uso da escrita em diferentes prá-


• Se ocupa da aquisição da escrita pelos sujeitos
ticas sociais por meio de gêneros textuais

• Diz respeito à compreensão e ao domínio do cha- • Desenvolvimento de comportamentos e habilida-


mado código escrito des de uso competente da leitura e escrita

Fonte: elaborado pela autora.

Alfabetização e Letramento 19
Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento

1 4. FREINET E A ALFABETIZAÇÃO

Se não encontrarmos respostas adequadas a todas


as questões sobre educação, continuaremos a forjar
almas de escravos em nossos filhos.

Célestin Freinet

(Para uma escola do povo, 1978)

Em 15 de outubro de 1896, na cidade de Gars, sul da França, nascia Célestin Baptistin


Freinet. De raízes rurais, era filho de camponeses e vivia numa região considerada
“atrasada” culturalmente quando comparada a outras cidades francesas. Ainda na in-
fância, Freinet se ocupava com o trabalho na lavoura, pastoreando as cabras, ofício
comumente atribuído a crianças naquela época.

Sua condição de vida, de certa forma, vai se reverberar em sua concepção sobre a
infância, sobre o trabalho e sobre o desenvolvimento infantil, e, mais tarde, refletir-se-á
em sua prática pedagógica.
Figura 09. Freinet em Vence

Fonte: Institut Coopératif de l’Ecole Moderne (ICEM). Disponível em: https://www.fimem-freinet.org/pt-pt/node/3561. Acesso
em: 5 jan. 2021.

A luta do educador Freinet sempre foi em prol da construção de uma escola do/para
o povo e ele sabia que, para se implementar de fato essa escola popular, era preciso
muito mais do que teorias, era preciso trabalho!

Muito além de educador, Freinet exerceu papel militante na busca por uma escola
realmente “Para o povo”, tendo consciência do papel de reprodução social que a escola

20
representa. Em sua proposta pedagógica, Freinet elaborou instrumentos de trabalho e 1
propôs técnicas que explicitassem o papel libertário da educação

Influenciado por Karl Marx, sua proposta pauta-se na noção de trabalho como produção
humana, que traz ao sujeito realização por sua produção e não alienação. Foi fortemen-
te influenciado pelo pensamento dialético que conheceu no partido comunista francês,
do qual era membro atuante.

Sua primeira formação foi na escola primária; aos 15 anos de idade, ingressou na Es-
cola Normal Masculina de Nice/ França, porém, não chegou a concluir seus estudos,
pois foi recrutado para na Primeira Guerra Mundial. A vivência de guerra o afetou pro-
fundamente. Ferido nas trincheiras de batalha, teve seus pulmões comprometidos, o
que lhe deixou por um longo período em estado de convalescença. As feridas de guerra
também, posteriormente, irão impactar em seu fazer docente.

Touché. Memórias de um ferido de guerra foi um livro que ele escreveu e publicou logo no
pós-guerra – época também em que Freinet escreveu seus primeiros artigos sobre educação.

No ano de 1920, na pequena Le Bar-sur-Loup, na França, o jovem educador se torna


professor, assumindo sua primeira turma de alunos – o cargo por ele ocupado era de
professor-adjunto. Apesar das sequelas do período de guerra, como a voz debilitada,
ele inicia a sua carreira de professor primário, na ocasião, poderia ter se aposentado,
seguindo os conselhos de seus próprios companheiros, contudo, escolheu seguir com
a carreira docente.

Foi em uma classe multisseriada, com 35 alunos, que Freinet se fez professor. A maior
parte de seu alunado era formada de filhos de camponeses, o que trazia uma identificação
profunda entre professor e alunos. Apesar de não possuir experiências docentes anteriores,
sua prática era impregnada de um profundo compromisso com a educação de seus pupilos.
Ele registrava, diariamente, as observações que fazia sobre seus aprendizes, narrando os
diferentes tipos de comportamentos e vivências que observava em suas crianças, assim
como suas conquistas e suas dificuldades. O que explicita um profundo respeito pelo de-
senvolvimento de todos e de cada um (BUSCARIOLO, 2015, p. 51).

Em 1925, Freinet conhece Elise, professora de artes, que, com seu olhar aguçado e sen-
sível, por meio da arte, ajuda-o a aprimorar suas técnicas. Casam-se em 1926. Elise foi
uma grande parceira e esteve presente em sua vida afetiva e acadêmica, escrevendo livros
importantes sobre a proposta de Freinet, como O itinerário de Célestin Freinet: a livre ex-
pressão na pedagogia Freinet (1977) e O nascimento de uma pedagogia popular (1969).

Animado com suas descobertas, enquanto educador, passou a se corresponder com


professor Daniel, que compactuava com seus princípios pedagógicos, tendo assim um
interlocutor real para o seu fazer docente. O trabalho com a correspondência para ou-
tros educadores tinha como objetivo partilhar suas ideias e trocar experiências do chão
da escola com preceptores que compartilhavam de seus princípios. Partindo dessa tro-
ca, Freinet começa a publicar suas experiências em revistas e jornais de educação,
com a finalidade de estender a rede de educadores que estava se formando, ele acre-
ditava na força do coletivo de trabalho como modo de resistência e de possibilidade de
mudança (BUSCARIOLO, 2015, p. 52).

Alfabetização e Letramento 21
Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento

1 Logo sua experiência correu pelo continente e ele conseguiu atingir professores primá-
rios de outros países: Bélgica, Espanha, Portugal. Foi então que, em 1957, inaugurou a
Federação Internacional da Escola Moderna (FIMEM), que existe até hoje e conta com
a participação de professores de mais de 30 países de todo o globo – Europa, África,
Ásia e América Latina e Franco-Canadense.
Para Freinet, o ensino nunca foi um sacerdócio e sim uma militância, um en-
gajamento voluntário. [...] Militou para, na medida dos limites que lhe eram
impostos, transformá-la, encarando essa militância como parte de outra maior,
que visava a transformação das próprias estruturas da sociedade. (OLIVEIRA,
1995, p. 98)

A Cooperativa do Ensino Laico (CEL) – primeira cooperativa organizada para viabilizar


as publicações – nasceu em 1928. Sua divulgação se deu por intermédio de boletins
e circulares, publicações e artigos acerca de seus novos instrumentos pedagógicos. Foi
nesse ano ainda que Freinet, Elise e Madeleine (sua esposa e filha) partiram de mudan-
ça para Saint Paul de Vence, cidade próxima a Le Bar-Sur-Loup, solo onde a sede da
CEL se estabeleceu.

Outra frente que Freinet e seus parceiros do movimento abraçaram foi a campanha
“abaixo aos manuais”, que lutava contra os materiais didáticos veiculados na época.
Tais materiais eram considerados artificiais para as crianças. Freinet, então, em parce-
ria com os demais professores do movimento, passou a produzir os fichários escolares,
um material que se tornou referência pedagógica para o movimento da Escola Moderna.

Nos primórdios, o movimento era conhecido como: “L’imprimerie à l’école” (A imprensa


na escola), nome que traduz a importância que era atribuída à tipografia, evidenciando
o estatuto dado à palavra – em especial à palavra impressa, dado que a imprensa, que
tinha o tipógrafo como recurso material, era o maior meio de comunicação e dissemi-
nação de conhecimentos na época (BUSCARIOLO, 2015, p. 53).

O apreço e valorização da palavra, do registro escrito, e a necessidade de se comunicar


por meio de jornais e revistas, Freinet ganhou ao fazer parte do Partido Comunista, do
sindicato dos docentes, enfim, do lugar político, de luta e de militância (MUNHOZ, 2010
apud BUSCARIOLO, 2015, p. 53)

A escrita incessantemente teve uma grande relevância na vida de Freinet, que escrevia
com frequência para os jornais e as revistas de esquerda da época, mesmo antes de
se tornar educador. A materialização dos seus ideais marxistas, anarquistas e republi-
canos se dava pelo impresso, pela palavra, pela possibilidade de circulação da palavra
(MUNHOZ, 2010 apud BUSCARIOLO, 2015, p. 53).

O estatuto da escrita, especialmente da escrita em movimento, circulando, ocupou lugar


de relevância na obra do educador francês, pois ele tinha conhecimento de que, mais
do que dominar o código escrito, o sujeito se tornava capaz de entender o pano de fun-
do que sustenta a sociedade e assim questioná-la.

Para ensinar a ler e escrever, Freinet defende o método natural da escrita, legitimando
a alfabetização como prática social, dinâmica e discursiva, ou seja, vista como algo que
pressupõe o outro, interlocutores.

22
Existe entre os Métodos tradicionais e os nossos Métodos naturais uma dife-
rença fundamental de princípio, sem a compreensão da qual todas as apre-
1
ciações serão sempre injustas e errôneas: os métodos tradicionais são espe-
cificamente escolares, criados, experimentados e mais ou menos realizados
por meio escolar, que tem as suas finalidades, os seus modos de vida e de
trabalho, a sua moral e as suas leis, diferentes das finalidades, dos modos
de vida e de trabalho do meio não escolar e a que chamaremos meio vivo.
(FREINET, 1977, p. 39)

O Método Natural se tornou uma metodologia universal, de acordo com o ideário frei-
netiano, por isso, pode se estender para outras aprendizagens: matemática, ciências,
história, enfim, para todos os campos de conhecimento.
Com relação à aprendizagem, é particularmente interessante tentar analisar as
relações que Freinet estabelece entre ela e a natureza. Partindo da observação
e da maneira como, segundo ele, a natureza procede suas transformações
(por ensaio e erro, num imenso e constante “tatear”) e preconiza um ensino
baseado na pesquisa. É o que ele chama de “método natural”. A antinomia
aparente desses dois termos esconde toda uma concepção de aprendizagem:
para ele, por exemplo, a criança aprende “naturalmente” a falar (como que
movida por uma lei da natureza), sem aprender de cor regras prévias, sem mé-
todos preestabelecidos, autocorrigindo-se, a partir da observação dos modelos
que estão a sua volta e das intervenções de sua mãe. Esta não se preocupa
em estabelecer uma gradação na aprendizagem, deixa-a fluir “naturalmente”, a
partir das necessidades do quotidiano. (OLIVEIRA, 1995, p. 96)

Essa metodologia pautada no ensaio experimental, na relação da criança com a natu-


reza, com o objeto de conhecimento, proporciona aos alunos uma participação ativa
e consciente de seu processo escolar, contrariamente à escolástica, que pressupõe
alunos passivos e resilientes.

Apesar de parecer antagônico ao binômio “método natural”, acreditamos que Freinet


tenha escolhido as palavras para marcar uma posição contra a escolástica e reafirmar
que, em sua escola, os alunos seriam ensinados naturalmente, de acordo com as ne-
cessidades de vida.

Cabe aqui o destaque de que essa proposta de Freinet


não se configura em espontaneísmo, já que, para se trabalhar sob essa pers-
pectiva, faz-se necessário que o ambiente escolar seja bastante ativo, e que a
ação educativa seja intencional, planejada e responsável, tanto por parte dos
alunos como por parte do professor (BUSCARIOLO, 2015, p. 67).

Em defesa do método natural, ele afirma: “[...] foi com esta convicção e certeza que
realizamos os nossos métodos naturais, cujo valor os cientistas tentam contestar. To-
dos os progressos se fazem por este processo universal da tentativa experimental [...]”
(FREINET, 1977, p. 14-15).

Sobre o trabalho de alfabetizar, especialmente no processo de aquisição da linguagem


escrita, a defesa de Feinet é a de que toda produção escrita proposta aos alunos seja
permeada de significado e possa circular e ser lida por outros. A necessidade de se co-
municar – seja pela fala, pelo desenho, pela escrita – é inerente ao ser humano. É uma
necessidade natural, no sentido de fazer parte da natureza do sujeito.

Alfabetização e Letramento 23
Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento

1 Nessa perspectiva, o papel do professor é o de mediador, aquele que vai ajudar a criança
a aprimorar a técnica, ajustar a mecânica, mas sem interferir no que a criança tem a dizer.

A proposta de Freinet vai de encontro aos métodos tradicionais que criam linguagens
extremamente escolásticas, pautadas no discurso livresco, pensadas a partir da lógica
dos adultos, sem considerar o lugar de fala da criança. Defendendo que “a escrita só tem
sentido se somos obrigados a recorrer a ela para comunicar nosso pensamento além do
alcance da nossa voz, além das barreiras de nossa escola” (FREINET, 1978, p. 38 - 40).

Método Natural da escrita, em especial, tem como intuito a não-separação entre meca-
nismo, compreensão e sentido. Para Freinet, “ler é trabalhar com textos na perspectiva
da comunicação, da expressão, das práticas reais de vida que envolvem a escrita”
(BUSCARIOLO, 2015, p. 68).
Figura 10. Alunos de Freinet usando o prelo na década de 1920

Fonte: Institut Coopératif de l’Ecole Moderne (ICEM). Disponível em: https://www.fimem-freinet.org/pt-pt/node/3561. Acesso
em: 5 jan. 2021.

Ele defende que a leitura acontece pelo contexto, de forma global, pela tentativa expe-
rimental e não por silabação ou palavras soltas. Sobre esse processo, escreveu que as
crianças, na fase inicial da alfabetização:
[...] tentam ler globalmente alguns textos dos seus correspondentes. Distin-
guem algumas palavras, nem sempre de uma forma perfeita. Mas elas têm em
si, intimamente ligada, toda a sua vida psíquica e social, e a imagem de uma
multidão de palavras que, bruscamente, surgirão no seu sentido verdadeiro
e total. Nessa altura, a nossa criança saberá ler para sempre, porque essa
aprendizagem natural ligar-se-á fortemente à própria vida e ao processo de
evolução do indivíduo (FREINET, 1977, p. 52-53).

A fim de que a escrita seja realmente relevante para a criança, Freinet propõe alguns
instrumentos que estimulam o trabalho em sala de aula, como: livro da vida, jornal de

24
parede, ateliês de trabalho, plano de trabalho, roda de conversa (que dá lugar à lingua- 1
gem oral, que também faz diferença no processo de alfabetização), texto livre, como
podemos observar no quadro abaixo, que traz a função de cada um dos instrumentos
mencionados (BUSCARIOLO, 2015, p. 69).
Tabela 02. Síntese dos Instrumentos elaborados por Freinet

INSTRUMENTOS IDEALIZADOS POR FREINET

O QUÊ COMO PORQUÊ

Expõe-se na sala um mural


com 5 espaços (geralmente
envelopes), para que os alunos
depositem bilhetes para pos-
terior discussão, devidamente
assinados e datados. Em quatro
Entendemos que essa prática
deles, encontram-se os dizeres
favorece o diálogo e a resolução
“eu proponho”, “eu quero saber”,
de conflitos por meio da expo-
“eu critico” e “eu felicito”, e
sição dos fatos, argumentos e
JORNAL DE PAREDE em um dos espaços ficam os
opiniões. Também oferece a pos-
papeizinhos em branco para
sibilidade de a criança expressar
serem utilizados. Esse mural fica
seus sentimentos, emoções,
exposto na sala de aula para ser
dúvidas etc.
utilizado pelos alunos quando
quiserem. O desenrolar das
discussões se dá em uma reu-
nião, em formato de assembleia,
quando os bilhetes do mural são
lidos e discutidos coletivamente.

Além da rica possibilidade de


Caderno que fica em posse da
expressão, registro do vivido e
criança, para que ela escreva tex-
valorização da escrita, o caderno
tos livremente. Não existe qualquer
é utilizado com objetivos peda-
direcionamento para as escritas,
TEXTO LIVRE gógicos formais, como o trabalho
apenas a regra de que nele não
com estruturação textual, para-
poderão copiar textos. Muitos criam
grafação, coesão e coerência,
histórias, músicas, poemas ou
entre outros conteúdos do campo
relatam algo por eles vivido.
da alfabetização/letramento.

Os alunos são convidados a ler


Roda de leitura, na qual são
suas produções, que são ouvidas
apresentados e discutidos os
e apreciadas por seus pares.
textos escritos no caderno de
Mais uma vez, a possibilidade de
texto livre. Após a leitura, os
RODA DE TEXTO LIVRE expressão é vivenciada. A discus-
alunos podem fazer comentários
são sobre os textos favorece a
e sugestões sobre o texto lido. A
análise e a criticidade dos alunos
roda pode acontecer com alunos
em relação às produções (deles
de uma ou mais turmas juntas.
mesmos e as dos colegas).

Alfabetização e Letramento 25
Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento

1
INSTRUMENTOS IDEALIZADOS POR FREINET

O QUÊ COMO PORQUÊ

Grupos de trabalho divididos pelo


interesse em determinada ativida-
de. Em um momento específico
da aula, que dura cerca de uma
Nos momentos de trabalho com
hora, os grupos realizam ativi-
ateliês, os alunos exercitam a
dades diferenciadas, planejadas
escolha e a reflexão sobre seu
a partir das metas elaboradas
próprio saber/fazer. Nessas
pelos próprios alunos no plano de
ocasiões, conseguimos também,
trabalho ou pelas necessidades
nos pequenos grupos, olhar para
ATELIÊS de aprendizagem. Quem escolhe
as necessidades específicas de
o ateliê que participará é o próprio
cada aluno com mais proximida-
aluno, a partir da reflexão sobre
de. O fato de os alunos escolhe-
o que ele mais está precisando
rem o trabalho a ser realizado
naquele momento. A profes-
também os estimula a concluírem
sora pode passar por todos os
aquilo que se dispuseram a fazer.
grupos ou escolher um grupo que
perceba ter maior necessidade
de atenção, enquanto os outros
trabalham autonomamente.

Em uma folha própria impressa, Atividade que permite ao aluno


os alunos registram a meta que refletir sobre seu desenvolvimen-
gostariam de atingir naquela to escolar semanalmente. Após
semana, o que os direcionará pensarem em seus objetivos,
para os ateliês que correspondam compartilham com a turma, me-
a tais atividades. Nessa folha, diante conversa que os ajuda a
também registram os ateliês reelaborar o planejamento. O fato
PLANO DE TRABALHO
combinados para a semana e vão de registrarem o ateliê que parti-
marcando, dia a dia, de quais par- ciparam diariamente, exercita a
ticiparam. Um espaço dessa folha autonomia e o próprio replaneja-
é reservado à autoavaliação, à mento. O momento da autoavalia-
avaliação da família e à avaliação ção, da avaliação da professora e
da professora sobre o desenvolvi- da família também colabora para
mento daquela semana. a reflexão do próprio saber.

Diário de bordo da turma. Um livro


ou caderno onde alunos e pro-
fessora registram as atividades e Esse instrumento colabora com
LIVRO DA VIDA fatos importantes que acontecem a construção da identidade da
na turma durante o ano. Existem turma e a valorização do registro.
várias maneiras diferentes desse
registro acontecer.

É importante salientar que as descrições sobre os instrumentos apresentados nessa tabela apresentam a
forma de trabalho assumida em nossa prática pedagógica, podendo haver variações.

Fonte: adaptado de Fecchi (2020, no prelo, p. 178).

26
Abordaremos agora, com maior ênfase, os instrumentos que estão diretamente ligados 1
à aquisição da linguagem escrita pela criança.
Figura 11. Situações de escrita significativa: elaboração de texto livre

Fonte: 123RF.

O Texto Livre é definido como um texto que a criança pode escrever de forma livre.
É a ferramenta que conduz o trabalho com a linguagem escrita. É um texto sem um
tema pré-determinado, que dá espaço para que o imaginário produza. Assim, tateando,
colocando no papel as letras que julgam adequadas, testando hipóteses, as crianças
passam a escrever sem pressão, sem medo e com autonomia.
O texto livre é a materialização da livre expressão – tão defendida por Freinet.
Esses textos dão voz ao pensamento da criança, pois são escritos sobre o
assunto que ela elegeu como importante, no espaço escolhido por ela, inicial-
mente, sem preocupações com a estética e a estrutura do texto. (BUSCARIO-
LO, 2015, p. 69)

Nessa proposta de elaboração da escrita, observamos que a criança escreve com pra-
zer. Nas salas de aula freinetianas, a escrita dos textos livres não tem hora determinada
e podem acontecer nos momentos de ateliês de trabalho ou em casa, de acordo com a
necessidade da criança. É livre também essa forma de solicitação – não há obrigatorie-
dade, há o convite… É aconselhável que cada criança tenha o seu caderninho de texto
livre, que deve ficar em sua bolsa, para que, quando sinta vontade de escrever, tenha
o suporte sempre em mãos.

Alfabetização e Letramento 27
Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento

Figura 12. Exemplo de um texto livre de um aluno de 1º ano do Ensino Fundamental


1

Fonte: acervo da autora.

Como podemos observar na imagem acima, a criança coloca sua hipótese de escrita
no papel, sem ainda ter muita relação entre grafema e fonema, sem estar convencional-
mente de posse do código escrito, porém, já possui importantes conhecimentos sobre
a escrita: que usamos letras, que um texto em nossa cultura deve ser escrito sobre a
pauta do papel, da esquerda para a direita, enfim, se mostra imersa numa cultura letra-
da, mesmo não estando plenamente alfabetizada.

Depois de escreverem seus textos, no seu tempo, dentro do gênero que escolheram,
as crianças são convidadas a fazer a leitura em voz alta desses textos nas chamadas
“rodas de leitura”, para que os colegas conheçam suas produções. Dessa forma, a pro-
dução da criança ganha visibilidade, é vista pelo outro, torna-se comunicável.
Por trazerem a necessidade real de comunicação, esses textos produzidos
pelas crianças são muito ricos em informações, detalhes e vocabulário. São
cuidadosamente elaborados pelas crianças, pois elas se apropriam do texto
e sabem que ele será lido por muitos leitores em roda ou mesmo impresso.
(BUSCARIOLO, 2015, p. 69)

A criança se torna autora. Nas rodas, os textos lidos recebem sugestões e comentários
dos colegas e também são eleitos pela turma, por votação, aqueles que serão digitados
e depois impressos. Depois, passamos para a correção coletiva desse texto, pois, ini-
cialmente, a escrita segue o curso natural das hipóteses das crianças, mas como serão
publicados, o aprimoramento e a lapidação dessa escrita devem ser realizados.

Normalmente, os textos escolhidos em votação são transcritos na lousa, exatamente


da forma como a criança escreveu em seu caderno, então as outras, juntamente com o
auxílio da professora, começam a interferir na correção do texto, sugerem alterações,
verificam a ortografia, pontuação, coesão e coerência do texto, a partir da autorização

28
do autor e com o objetivo de garantir uma comunicação mais eficiente entre este e o 1
interlocutor (BUSCARIOLO, 2015, p. 70).

A correção coletiva é um trabalho que atinge todos os alunos, até mesmo os que ainda
não estão alfabetizados, pois as crianças, no momento de correção coletiva, vendo o
texto transcrito na lousa, observando a sua reelaboração, vão compreendendo as nu-
ances da escrita para as quais antes não se atentavam.

É comum que, após as correções, o texto circule em álbuns ou jornais da turma. Por
isso, a correção coletiva dá também ao texto livre um lugar de destaque.
[…] É preciso fazer do texto livre escolhido uma bela página, sem lhe fazer
perder nada da sua frescura e subtil expressão.

[…] Não nos contentamos, pois, em corrigir os erros de ortografia. Vivemos o


texto em conjunto. Aperfeiçoamos a construção da língua, e isto não por causa
de uma regra escolástica que a criança nem sempre compreenderia, mas por
uma motivação naturalmente humana de que se compreenderá todo o valor.
(FREINET, 1976, p.50 -51)

Freinet inovou ao levar a imprensa à sala de aula. Ele levou uma impressora de tipos
móveis para os seus alunos. Naquela época, a impressora era uma ferramenta de tra-
balho dos adultos, não deveria ser utilizada pelas crianças. O tipógrafo utilizado por
Freinet era totalmente manual, requerendo muita disciplina e atenção das crianças,
para que seus trabalhos alcançassem um produto final. Ele não foi o primeiro a usar
esse recurso tecnológico para fins educativos, mas foi pioneiro a imprimir textos escritos
pelas crianças (BUSCARIOLO, 2015, p. 70).
[...] Os alunos apaixonaram-se pela composição e pela impressão, coisas que
não eram, todavia, simples com o material ainda rudimentar de que dispúnha-
mos. Eles deixaram-se prender pelas novas tarefas, não porque a ordenação
dos caracteres nos componedores pudesse ser atraente, mas, sobretudo, por-
que tínhamos descoberto um processo normal e natural da cultura; a obser-
vação, o pensamento, a expressão natural tornavam-se texto perfeito. Esse
texto tinha sido vazado no metal, depois impresso. E todos os espectadores, o
autor em primeiro lugar, sentiam, realizado o trabalho, uma profunda emoção
perante o espetáculo do texto enaltecido, que se revestia agora do valor de um
testemunho (FREINET, 1975, p. 25).

A fim de valorizar a escrita e com o intuito de fazer com que as produções das crianças
circulassem, Freinet utilizou um tipógrafo que conseguiu na velha oficina de um colega.
Para trazer a prática para a contemporaneidade, usamos em nossas salas tablets, com-
putadores e impressoras, como se pode ver, o suporte de trabalho muda, mas continua
com a função de comunicar, de fazer com que as produções das crianças - especialmente
o texto livre - sejam lidas e, efetivamente, ganhem a materialidade do impresso, palpável.
O texto livre só tem valor quando se constitui em um documento autêntico,
uma vez que é socializado, que serve de pretexto e de argumento para um en-
riquecimento na direção da cultura e do conhecimento. (FREINET, 1975, p. 68)

Com a imprensa na sala de aula, Freinet trouxe a este local o trabalho como expressão
máxima da realização humana, trabalho que satisfaz e não aliena.

Alfabetização e Letramento 29
Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento

1 Assim, a imprensa escolar mostra aos alunos que eles também podem dominar esse
importante meio de comunicação, que, muitas vezes, é um instrumento de dominação.
A imprensa na sala de aula carrega uma posição política quando fornece às crianças
o acesso aos “bastidores” da produção de textos que circulam pela sociedade, quando
mostra as formas de se fazer de um jornal, por exemplo. Com isso, evidencia-se para
os estudantes que as palavras que circulam são produções humanas e, por isso, pas-
síveis a erros, equívocos e distorções. Freinet deseja mostrar aos alunos que matéria
impressa tem suas fragilidades e que também pode ser lugar de poder e doutrinação
(BUSCARIOLO, 2015, p. 72).

Nos relatos de Freinet e seus colaboradores, fica clara a empolgação das crianças
com a possibilidade de lerem seus textos impressos. Elas cuidavam das ferramentas
da tipografia e mostravam muito apreço pelo trabalho, fazendo o melhor que podiam,
aprendendo a manipular os tipos móveis, o prelo, e isso não era um trabalho fácil, pois
era preciso aprender a organizar a escrita “de trás pra frente”, para que as frases fos-
sem impressas corretamente. Mas como o objetivo era o de ver seus textos nas mãos
de outrem, o desafio valia a pena.

O texto livre conquista mais espaço dentre os instrumentos propostos por Freinet e
não deve ser considerado como um suplemento de nosso trabalho escolar, mas sim
como um elemento significativo que faz parte de um conjunto de práticas que amparam
o conceito de livre expressão, de forma a garantir que se ouça as vozes das crianças
(BUSCARIOLO, 2015, p. 74).

A produção imaginária é solidificada na/pela palavra, materializando-se nas tentativas


de combinar as letras, de organizar as ideias por meio das palavras, no confronto entre
elas, na articulação e produção de sentidos.

A alfabetização pelo método natural, para além de ensinar que B+A forma “BA”, tem
como objetivo dar a palavra à criança, para que ela entenda seu uso, questione as
palavras que circulam na sociedade, para que se torne autora e cidadã! Freinet não
conheceu o termo letramento, mas podemos seguramente afirmar que sua proposta de
alfabetização contemplava a ideia de letramento que hoje conhecemos.

SAIBA MAIS
Diálogos sobre Alfabetização: Perspectivas discursivas para Alfabetização - LIVE #9 (Live no canal
de Bárbara Cortella com as professoras alfabetizadoras pelo Método Natural da Escrita)

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rtg3VFai0lU. Acesso em: 12 nov. 2020.

30
5. PAULO FREIRE E A ALFABETIZAÇÃO 1

Se, na verdade, não estou no mundo para simplesmente a ele me adap-


tar, mas para transformá-lo; se não é possível mudá-lo sem um certo
sonho ou projeto de mundo, devo usar toda possibilidade que tenha para
não apenas falar de minha utopia, mas participar de práticas com ela
coerentes.

Paulo Freire
(Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos, 2000, p. 33)

O pernambucano Paulo Freire, ao defender sua proposta de alfabetização, destacou o


ensino da linguagem escrita e da leitura a partir das condições concretas de vida nas
quais o educando está inserido. O termo letramento surgiu tempos depois do trabalho
de Freire com alfabetização se consolidar. Porém, podemos afirmar que seu referencial
teórico deu subsídios para que os educadores repensassem os modos de ensinar con-
siderando a escrita em funcionamento.
Figura 13. Paulo Freire

Fonte: Instituto Paulo Freire. Disponível em: https://www.paulofreire.org/paulo-freire-patrono-da-educacao-brasileira. Acesso


em: 5 jan. 2021.

Paulo Regus Neves Freire foi o mais célebre educador brasileiro, com atuação e re-
conhecimento internacional. Nascido no Recife, em 19 de setembro de 1921, “leão do
norte”, de Casa Amarela, bairro tradicional da cidade, caçula de quatro irmãos, filho de
Edeltrudes Neves Freire, bordadeira, dona de casa e pernambucana, e de Joaquim
Temístocles Freire, sargento do exército e nascido no Rio Grande do Norte.

Alfabetização e Letramento 31
Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento

1 Filho de militar, teve uma educação rigorosa, mas não autoritária. Foram seus pais
que o apresentaram ao mundo da leitura e da escrita. Foi alfabetizado a partir de suas
próprias palavras, das palavras de sua infância, de seu quintal. E essa vivência, anos
depois, o influenciou enquanto educador. Ainda menino, foi para escola, uma escola de
educação infantil na rede privada em Recife. Lá encontrou uma professora que traba-
lhava de forma muito respeitosa em relação aos saberes das crianças.

A infância deu lugar a uma adolescência difícil: aos 10 anos, sua família precisou mu-
dar-se para Jaboatão, fugindo da crise de 1929 e buscando melhores condições de
vida. Aos 13 anos perdeu seu pai e acabou por adiar os estudos primários, ficando
atrasado na escola.

Católico, foi um jovem ligado ao movimento de Ação Católica. Tornou-se estudante de


direito com mais de 20 anos de idade. Nessa época, conheceu a professora primária
Elza, que se tornou sua esposa em 1944. Educadora, ela influenciou não só os estudos
de Paulo e, assim como Freinet, Freire também encontrou em sua companheira uma
aliada ao trabalho pedagógico, que revelou ser uma grande parceira e militante pela
alfabetização dos adultos de forma emancipatória.

O estudo da linguagem popular serviu de ancoragem para a elaboração pedagógica de


Paulo Freire. Ele foi um dos fundadores do Serviço de Extensão Cultural da Universida-
de do Recife e lá também se tornou diretor.

Com a emergência do regime ditatorial no Brasil, os trabalhos de Freire foram interrom-


pidos, já que o golpe militar reprimiu toda e qualquer mobilização popular.

Acusado de comunista, Paulo Freire foi preso. Precisou se exilar. Foram 16 anos fora
do país, foi exílio longo e difícil, mas foi nesse período que ele produziu grande parte
de seus trabalhos.

Esteve por cinco anos no Chile, como consultor da Unesco, no Instituto de Capacitação
e Investigação em Reforma Agrária. Em 1970 foi para Genebra, na Suíça, para traba-
lhar como consultor do Conselho Mundial de Igrejas, onde desenvolveu programas de
alfabetização para a Tanzânia e Guiné-Bissau, além de ajudar em campanhas no Peru
e na Nicarágua.

Em 1980, voltou ao Brasil, onde permaneceu e se tornou professor da PUC-SP e da


Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Uma das experiências mais relevantes
de Paulo Freire foi sua atuação como secretário da Educação da Prefeitura de São
Paulo, entre 1989 e 1991, na gestão Luiza Erundina (PT).

É autor de diversos livros, como: Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro,
Paz e Terra, 1967; Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1970; Extensão
ou comunicação? Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1971; Ação cultural para a liberdade e
outros escritos. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976; Cartas à Guiné-Bissau. Registros de
uma experiência em processo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977; Educação e mudan-
ça. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979; A importância do ato de ler em três artigos que se
completam. São Paulo, Cortez, 1982; A Educação na cidade. São Paulo, Cortez, 1991;
Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro,

32
Paz e Terra, 1992; Política e educação. São Paulo, Cortez, 1993; Professora sim, Tia 1
não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo, Olho D’Água, 1993; Cartas a Cristina. Rio
de Janeiro, Paz e Terra, 1994; À sombra desta mangueira. São Paulo, Olho D’Água,
1995; Pedagogia de autonomia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996; Pedagogia da indig-
nação. São Paulo, Editora da Unesp, 2000.

Em 2 de maio de 1997, aos 76 anos de idade, em plena atividade de educador e de


pensador, Freire faleceu, deixando um legado imensurável.

Sobre o ato de ensinar, Freire nos deixa a lição de que esse ato exige um profundo
conhecimento de mundo, para além dos conhecimentos acadêmicos.
[...] ensinar já não pode ser este esforço de transmissão do chamado saber
acumulado, que faz uma geração à outra, e aprender não é a pura recepção do
objeto ou do conteúdo transferido. Pelo contrário, girando em torno da compre-
ensão do mundo, dos objetos, da criação, da boniteza, da exatidão científica,
do senso comum, ensinar e aprender giram também em torno da produção
daquela compreensão, tão social quanto a produção da linguagem, que é tam-
bém conhecimento. (FREIRE, 1997, p. 5)

Defende que o ensino se dá num movimento dialético, poético de ir e vir: “[...] envol-
vendo o ensinar do ensinante, envolve também de um lado, a aprendizagem anterior
e concomitante de quem ensina e a aprendizagem do aprendiz que se prepara para
ensinar amanhã [...]” (Freire, 1993), afirmando que “não existe ensinar sem aprender”.

Faz-se necessário falar da vida de Freire antes de adentrarmos em sua proposta de


alfabetização, pois sua condição de vida, seu lugar de aluno, suas dificuldades, tão
semelhante às dificuldades de muitos meninos nordestinos, sua posição política, sua
militância e o tempo de exílio afetaram profundamente o seu fazer enquanto professor.

Muitos estudiosos da obra de Freire refutam a ideia de que ele criou um método de alfa-
betização ao considerarem o discurso pedagógico de que método se refere à um “como
fazer”, como aponta Soares (2012, p. 118):
fala-se em alfabetização, pensa-se logo no método para alfabetizar, no cami-
nho pelo qual se levará a criança ou o adulto a aprender a ler e escrever: em
um passado já distante a soletração; depois (e até hoje!) a silabação, ou a
palavração, o método global.

Analfabetismo:

Definido pelo Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (2010, [on-line]) como:
“estado ou condição de analfabeto”; analfabeto: aquele que não sabe ler e escrever.

Se um método, especialmente de alfabetização, é encarado como esse modo restrito e


prescritivo, é muito reducionista mesmo dizer que Paulo Freire é autor de um método de
alfabetizar. O que ele criou foi uma concepção de alfabetização, dentro de uma concep-
ção de educação libertária, como lugar de tomada de consciência, de resistência e de luta!

Para falarmos sobre o trabalho de Paulo Freire com a alfabetização, é fundamental


trazer o contexto em que o autor forjou sua proposta: Nordeste, Brasil, início dos anos

Alfabetização e Letramento 33
Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento

1 1960, quando grande parte da população era analfabeta. O acesso à escrita era muito
mais do que ensinar as letras, era a possibilidade de ampliar os horizontes, superação
da condição precária de vida de um povo marcado pela submissão.
Métodos de alfabetização têm um material pronto: cartazes, cartilhas, cadernos
de exercícios. Quanto mais o alfabetizador acredita que aprender é enfiar o
saber-de-quem-sabe no suposto vazio-de-quem-não-sabe, tanto mais tudo é
feito de longe e chega pronto, previsto. Paulo Freire pensou que um método
de educação construído em cima da ideia de um diálogo entre educador e
educando, onde há sempre partes de cada um no outro, não poderia começar
com o educador trazendo pronto, do seu mundo, do seu saber, o seu método e
o material da fala dele (BRANDÃO, 1981, p. 9).

O que chamamos de “Método Paulo Freire” nasceu em meados dos anos 60, com o
trabalho realizado por Freire em parceria com o Movimento Cultura Popular do Recife
(MCP), na região periférica da cidade, nos chamados centros de cultura. A experi-
ência inicial deu-se com um trabalho que atendia cinco educandos – no decorrer do
percurso dois desistiram e três permaneceram –, porém, o grande destaque veio com a
experiência realizada em Angicos, no Rio Grande do Norte, em 1962, onde, em 45 dias,
trezentos alunos foram alfabetizados (GADOTTI, 1996, p. 72).

SAIBA MAIS
Para saber mais, assista: Vídeo-documentário aqui que retrata a Revolução de Angicos – parte 1
e parte 2.

https://www.youtube.com/watch?v=ENks3CJeJ5E. Acesso em: 6 jan. 2021.

O sucesso de Angicos correu o país, tanto pela grandeza de alfabetizar trezentos alu-
nos, que eram trabalhadores rurais, quanto por Angicos ser a terra natal do então presi-
dente da República, João Goulart. O processo de alfabetização partia das expressões
e vocabulário da comunidade, dos dizeres dos trabalhadores e trabalhadoras. Utilizava-
-se do repertório conhecido pelos educandos, e, assim, ampliava a leitura de mundo, os
horizontes e as possibilidades daquele povo.

Considerar o repertório do educando e dar a ele vez e voz, enfatizando o quanto ele já
sabe para aprofundar conhecimento mais técnico da língua escrita é o que tornou a pro-
posta de Freire tão revolucionária, pois, para além de ensinar a codificar e decodificar
as letras, ele buscava empoderar seu povo.

Em 1963, o presidente João Goulart e seu ministro da Educação, Paulo de Tarso Santos fo-
ram convidados a representar nacionalmente a alfabetização de adultos. No ano seguinte,
se não fosse o Golpe de 64, teria sido realizada a instalação de 20 mil círculos de cultura,
com a perspectiva de atender dois milhões de analfabetos (GADOTTI, 1996, p. 72).

No ano de 1967, Freire apresentou sua proposta de alfabetização de forma minuciosa


em sua obra intitulada Educação como prática da liberdade. Essa obra versava sobre a
experiência de mais de uma década com o trabalho de alfabetização de adultos priori-
tariamente da área rural, e sobre algumas experiências em espaços urbanos também.

34
O autor se coloca terminantemente contrário ao que ele denominou como “educação 1
bancária”, que é a educação que pressupõe que o aluno é uma tábula rasa e que cabe
à escola depositar os conhecimentos socialmente construídos na mente dos discentes,
a fim de instruí-los. Nesse modelo, o professor ocupa o lugar de douto, detentor de todo
o saber a ser ensinado, enquanto o aluno, que, nessa concepção, não possui conheci-
mento algum, deve apenas receber, sem questionar o saber catedrático do professor.

A defesa de Freire é por uma educação libertadora, o oposto da educação bancária,


pois, como o próprio nome indica, ele identifica a educação como arma para a liberda-
de, para transformação da realidade.

Sobre seu método de alfabetização, como já anunciado neste texto, sua abordagem
teórica está muito mais para uma teoria do conhecimento, – abarcando um caráter fi-
losófico, social e político da educação – do que para um método de ensino, que acaba
por enquadrar o conhecimento em pacotes aplicáveis. Contudo, contrariando o próprio
autor, correu a fama de um “Método Freire de alfabetizar”.

Muito mais do que o trabalho com alfabetização, o método proposto por Paulo Freire
tem como objetivo conscientizar, ampliar a visão de mundo, de modo a formar cidadãos
críticos, conhecedores de suas realidades, instrumentalizando-os para superá-las! O
ideário freiriano busca mobilizar a transformação social. Freire (2002, p. 45) define que:
“aprender a ler, a escrever, alfabetizar-se, é, antes de tudo, aprender a ler o mundo,
compreender o seu contexto, não numa manipulação mecânica de palavras, mas numa
relação dinâmica que vincula linguagem e a realidade”.

Como já mencionado, o método de alfabetização concebido por Freire surgiu nos círcu-
los de cultura, no Movimento de Cultura Popular do Recife (MCP), que, de acordo com
o próprio autor: “não tinham uma programação feita a priori” (GADOTTI, 1996, p. 82). O
trabalho partia de uma escuta do grupo, que elencava os temas a serem debatidos de
acordo com as necessidades dos envolvidos. Nesse cenário, o papel dos educadores
era abordar a temática e orientar a discussão.

O educador também podia propor algum tema que julgasse pertinente, nunca se so-
brepondo ao saber popular – que nasce das e nas práticas sociais, do cotidiano –, mas
auxiliando na explicitação e compreensão de temas mais complexos.

As discussões e aprofundamento dos temas abordados no âmbito dos círculos de cul-


tura se mostraram tão fecundas que Freire acabou partindo desse mesmo princípio, o
da escuta, para propor um trabalho mais sistematizado com a alfabetização, trazendo
os educandos, os alunos das camadas populares, os trabalhadores, para dentro do
processo, tornando a escrita uma arma de luta e de desmistificação do mundo e não de
subordinação ao mundo letrado.

Esse trabalho de aproximar o aluno, o sujeito da aprendizagem, do processo de ela-


boração e aquisição do conhecimento tornou o processo muito mais democrático e efi-
ciente, visto que toda a aprendizagem passou a ter sentido real e a estabelecer relação
com a vida dos educandos, que se constituíam não apenas como leitores, mas como
sujeitos de direitos.

Alfabetização e Letramento 35
Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento

1 Contrariando a lógica dos métodos tradicionais escolares, Freire mostrou que professor
e aluno aprendem juntos na escola, em comunhão.

O trabalho de campo era o primeiro passo do educador, que se inspirava no método


freiriano de alfabetização, munido de um caderno de registro e com o coração aberto
ao que ia encontrar. O professor alfabetizador se lançava a campo, lado a lado com as
pessoas da comunidade na qual atuaria, como sociólogo que vai a campo para enten-
der a cultura, os costumes e hábitos de sua comunidade de pesquisa.
Figura 14. Exemplo do trabalho com a palavra geradora “TRABALHO”

Situação do baixo salário no campo

Valorizar o trabalho

Discussão sobre remuneração


TRABALHO

Direitos dos trabalhadores

Por que a gente trabalha?

Você se realiza no trabalho?

Discussão sobre as condições do trabalhador

O que deve exigir do empregador?

Fonte: elaborada pela autora.

Atento aos modos de vida da comunidade, sem perguntas estruturadas, roteiros ou


questionários, era a sensibilidade do olhar, a escuta apurada e minuciosa que daria ao
educador indícios, pistas, das palavras que circulavam na comunidade, palavras essas
que passariam a compor o rol de palavras a serem trabalhadas nos espaços educativos.

Esse primeiro contato tinha como objetivo aproximar o educador de seus educandos,
conhecer a realidade e as condições concretas de vida de todos e cada um dentro da
comunidade era combustível para o trabalho nas cadeiras da escola.

36
O contato com a vida dos educandos possibilitava a emergência das palavras e temas 1
geradores, o grande alicerce do método freiriano.

A escolha das palavras geradoras era um enorme trabalho a ser realizado pelo educa-
dor, pois, para além de sua importância de uso na comunidade, era preciso considerar
palavras que carregassem todos os fonemas da língua portuguesa. Sobre as palavras
geradoras, Gadotti (2001) afirma que:
Essas palavras deviam codificar (representar) o modo de vida das pessoas do
lugar. Mais tarde, elas seriam decodificadas, e a cada palavra seria associado
um núcleo de questões ao mesmo tempo existencial (questões ligadas à vida)
e político (questões ligadas aos determinantes sociais das condições de vida).
Assim, por exemplo, para a palavra geradora governo, podiam ser discutidos
os seguintes temas geradores: plano político, poder político, o papel do povo
na organização social, participação popular. [...] a palavra geradora funciona
como chave. Ela era apresentada no contexto concreto, como clássico exem-
plo da figura ao lado, em que a palavra tijolo aparece escrita sobre o tijolo de
uma parede. (GADOTTI, 2001, p. 35, grifos do autor).

Em sua experiência como professor alfabetizador, ele notou que, para se consolidar o
processo de alfabetização inicial na língua portuguesa, em média, vinte palavras gera-
doras são o suficiente.

O papel do coordenador do círculo de cultura era o de promover e instigar as discus-


sões, questionando e incentivando que todos participassem do debate acerca da pa-
lavra geradora, que deve estar destacada, para que fique bem visível. Esse processo
pode contar com recursos midiáticos e também com o uso da lousa.

Paulo Freire defendia que aprender era natural ao ser humano, que assim como o
homem precisa se alimentar, ele precisa aprender. Essa aprendizagem é mediada
pelo mundo.

A originalidade do educador pernambucano reside na visão libertadora que ele atribui


ao ato de educar. O trabalho educativo do professor era propiciar aos adultos em pro-
cesso de aquisição da língua escrita uma aprendizagem que fosse de fato significativa
e tivesse uso na prática cotidiana do educando.

Três etapas bem delineadas marcam a proposta do método freiriano, vejamos no qua-
dro a seguir:
Tabela 03. Etapas do método de alfabetização de Freire

ETAPAS DO MÉTODO DE ALFABETIZAÇÃO DE FREIRE

1ª. INVESTIGAÇÃO 2 ª. TEMATIZAÇÃO 3ª. PROBLEMATIZAÇÃO

Levantamento do vocabulário e defi- Num movimento dialético entre o


nição das palavras e temas gerado- Codificar e decodificar os concreto e abstrato e do abstrato
res relacionados ao contexto social temas elencados. para o concreto, retoma o concre-
no qual o educando está imerso. to problematizado.

Alfabetização e Letramento 37
Conhecendo os conceitos de alfabetização e letramento

1 ETAPAS DO MÉTODO DE ALFABETIZAÇÃO DE FREIRE

1ª. INVESTIGAÇÃO 2 ª. TEMATIZAÇÃO 3ª. PROBLEMATIZAÇÃO

As palavras geradoras são esco- Contextualizar e trabalhar a cri-


Busca uma ação concreta, com o
lhidas considerando a riqueza si- ticidade do tema gerador, avan-
intuito de superar a situação so-
lábica, valor fonético e relevância çando na compreensão muitas
cial, cultural e política.
ao grupo. vezes ingênua dos educandos.

Importante captar elementos da Desdobramentos do tema inicial Leitura e escrita ganham status de
cultura local em novos temas. objeto de luta.

Criação de fichas para trabalhar


Chega a conscientização, ob-
as “famílias” fonéticas que serão
- jetivo central do método, a
base para o trabalho com a leitu-
práxis transformadora.
ra e escrita.

Fonte: elaborado pela autora.

Pensando na alfabetização de crianças, Freire defende a mesma proposta didática,


porém, o processo busca no lúdico, no universo infantil, as palavras e temas geradores.
Foi sua filha, Madalena Freire, que, inspirada também no construto teórico de Emília
Ferreiro e ancorada no método de Freire, desenvolveu o trabalho para com as crianças.

Nas palavras da própria Madalena: “Se a prática educativa tem a criança como um de
seus sujeitos construindo seus processos de conhecimento, não há dicotomia entre
o cognitivo e o afetivo e sim uma relação dinâmica, prazerosa de conhecer o mundo”
(FREIRE, 1983, p. 15). Assim, o trabalho com a linguagem oral e escrita precisa respei-
tar o tempo e espaço da criança, como sujeito de seu percurso educacional.

Para Freire, a leitura do mundo precede a leitura da palavra (FREIRE, 1989), desse
modo, a alfabetização, enquanto decodificação do código escrito, teria apenas signi-
ficado se os sujeitos – crianças, jovens ou adultos – pudessem emergir de um estado
de “coisificação” e fossem capazes de “ler” a realidade. Sendo assim, o espaço da
educação infantil se faz essencial nesse trabalho de fazer com que as crianças possam
ler o mundo, desvelando-o, por meio da curiosidade – que é marca da infância e da
aproximação da natureza – por intermédio da arte, da literatura infantil, entre outras
possibilidades. Madalena Freire indica que: “O papel da professora, enquanto partici-
pante também, nesta atividade é o de coordenar a conversa. É o de alguém que, pro-
blematizando as questões que surgem, desafia o grupo a crescer na compreensão de
seus próprios conflitos” (FREIRE, 1983, p. 21).

Outro aspecto importante de mencionarmos ao nos debruçarmos sobre a obra de Freire


refere-se à crítica que ele teceu às cartilhas. Nos anos 50, o autor se dedicou ao estudo
das cartilhas que circulavam em território nacional, assim como também analisou algu-
mas cartilhas estrangeiras.

38
Seus apontamentos críticos versam sobre as questões: a escolha de palavras sem nenhu- 1
ma relação com a vida do educando, a decomposição dessas palavras em unidades sono-
ras menores, as sílabas, e no fato de que a combinação fonética fica nas mãos do profes-
sor, restando ao educando, à criança, o trabalho mecânico de decorar o exercício apenas.

Paulo Freire defende, sobretudo, a relação de ensino, a elaboração conceitual feita pelo
educando em parceria com o educador – que está junto nesse processo de aprendiza-
gem –, proporcionando que o aluno interaja com o objeto de conhecimento, experien-
ciando-o de forma concreta, para depois internalizá-lo e se apropriar dele.

Contrário ao modelo cartilhesco, ele criou um material de apoio coerente ao seu ideário
educacional, os Cadernos de Cultura. Para ele, a cartilha emudece o professor e o alu-
no, tirando do aluno a possibilidade de uma aprendizagem significativa e do professor o
lugar de autoria, de criatividade.

Trabalhar propostas descontextualizadas, como a famosa frase cartilhesca: “Eva viu


a uva. A uva é de Ivo”, seria até desrespeitoso, considerando que seus alunos eram
trabalhadores que já haviam passado o dia na labuta. Era mais do que necessário o
trabalho ligado à realidade do educando e partindo de seu interesse e refletindo sobre
a sua realidade. A respeito dessa frase sem contexto retirada de uma cartilha, o próprio
Freire afirmou: “Não basta saber ler que ‘Eva viu a uva’. É preciso compreender qual
a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e
quem lucra com esse trabalho” (GADOTTI, 1996, p. 72).

Cabe aqui destacar que partir do interesse não significa negar ao educando o acesso
ao conteúdo historicamente construído, ao contrário, é garantir que o conteúdo progra-
mático seja trabalhado de forma a afetar e transformar a vida do aluno, que se apropria
desse conteúdo e o leva para a vida.

SAIBA MAIS
“O legado de Paulo Freire para a Alfabetização” (Live no canal de Bárbara Cortella, com o professor
Mário Sérgio Cortella)

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zmV_ioJeDmM. Acesso em: 12 nov. 2020.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1. ANALFABETISMO. In: Dicionário Aurélio de crianças. 2015. 199 p. Dissertação (Mestrado) -
Língua Portuguesa. 5. ed. [S. l.]: Regis Ltda, 2010. Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de
[On-line]. Disponível em: http://aurelioservidor.edu- Educação, Campinas, SP. Disponível em: http://www.
cacional.com.br/download. Acesso em: 6 jan. 2021. repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/254002.
2. ANALFABETO. In: Dicionário Aurélio de Língua Acesso em: 6 jan. 2021.
Portuguesa. 5. ed. [S. l.]: Regis Ltda, 2010. [On-li- 5. FARIAS, G. F. et al. História de alfabetização: um
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Alfabetização e Letramento 39
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40
1

Alfabetização e Letramento 41
As bases teóricas
UNIDADE 2

2 AS BASES TEÓRICAS

INTRODUÇÃO
O presente texto discorre sobre importantes questões referentes à alfabetização. Iniciaremos
com uma discussão sobre as contribuições da psicologia para o processo de alfabetização.

Sabemos que a psicologia impactou profundamente o campo teórico da alfabetização, en-


tretanto, faz-se necessário destacar que apenas “aplicar” os conceitos da psicologia na es-
cola não “dá conta” de responder às questões que assolam o trabalho com a alfabetização.

Na sequência, explicitamos o trabalho da Psicogênese da língua escrita, proposto por


Emilia Ferreiro (2001) e Ana Teberosky (1985), discípulas de Jean Piaget. As autoras
foram responsáveis por uma grande mudança de paradigmas concernentes às elabora-
ções conceituais realizadas pelas crianças no processo de construção da escrita.

Na terceira parte, a conversa gira em torno da perspectiva da alfabetização enquanto


processo discursivo, que se sustenta teoricamente na perspectiva histórico-cultural pos-
tulada por Lev Vigotski. Essa proposta traz a dimensão das relações como constitutivas
para o desenvolvimento da escrita das crianças na fase inicial da alfabetização.

E, por último, abordaremos a influência da linguística para o trabalho com a alfabetização.

1. AS CONTRIBUIÇÕES DA PSICOLOGIA PARA O PROCESSO


DE ALFABETIZAÇÃO
Pensar sobre a relação entre Psicologia e Educação é algo de grande relevância para
o campo educacional. No Brasil, desde o início do século XX, entre os anos 20 e 30, a
ligação entre essas áreas vem se intensificando, ecoando até os dias atuais.

Na busca pela formação de “novos homens”, a psicologia foi ganhando espaço, es-
pecialmente por sua contribuição aos aspectos metodológicos do ensino, que eram
considerados inovadores, e versavam sobre o “como ensinar”. A necessidade de es-
colarizar e alfabetizar um grande número de pessoas era real. Naquele período, essa
questão revestia-se de importância fundamental frente à necessidade de escolarização
das massas, já que eram altos os índices de analfabetismo no país e os discursos mo-
dernizadores exigiam a sua erradicação (LOURENÇO FILHO, 1930, p. 4-5).

A alfabetização é essencial na educação escolar, não desmerecendo a importância da mate-


mática e demais áreas do conhecimento. Sem boas habilidades de leitura e de escrita também

42
não é possível avançar nos conhecimentos matemáticos – como a compreensão e resolução
de problemas de aritmética –, bem como avançar nos demais componentes curriculares.
2
Tanto as produções acadêmicas quanto o discurso pedagógico, chancelados pelas re-
formas curriculares que ganham força de lei, mostram-se fortemente afetados pelo de-
bate entre diferentes correntes psicológicas e suas possíveis “aplicações” na educação,
adensando a relação entre a psicologia e a alfabetização.

A psicologia impactou significativamente o campo teórico da alfabetização. Soares


(1989) foi uma pesquisadora que, entre os anos de 1956 a 1986, realizou uma im-
portante revisão crítica da produção acadêmica brasileira sobre a alfabetização. Suas
investigações apontam a predominância da Psicologia como referencial teórico em todo
o período estudado, por meio das seguintes correntes: a Associacionista, a Gestaltista,
a Psicogenética (SOARES, 1989, p. 53).

Para saber mais sobre a história da Psicologia no Brasil, consultar Lourenço Filho
(1994), Massimi (1990) e Pessotti (1988).

Esse trabalho de Soares nos dá indícios da contribuição dada pela Psicologia na confor-
mação das práticas de alfabetização. Porém, para que possamos compreender melhor
tal influência, tornam-se necessários estudos que explicitem como as diferentes corren-
tes teóricas influenciaram a prática pedagógica, o fazer do docente, o chão da escola.

Para além de identificar as correntes teóricas que balizam o fazer pedagógico, faz-
-se fundamental também adensar a análise a respeito das relações concretas entre as
concepções teóricas e a prática docente. Até porque muitos conceitos embasados em
concepções teóricas antagônicas são usados na prática pedagógica de forma comple-
mentar e associada, o que causa alguns equívocos.

Entender de que forma as teorias são interpretadas e apropriadas pelas professoras no


cotidiano escolar, especialmente no que se refere ao trabalho de alfabetização, é o caminho
que escolhemos para a presente discussão sobre a influência da psicologia no trabalho
com a alfabetização. Porque é na escola, na prática docente que vamos focalizar, buscando
entender o quê e como reverberam os estudos da psicologia no campo da alfabetização.

A perspectiva que norteia o fazer docente no trabalho de alfabetização, na maioria das


escolas, é prescritiva, com o intuito de orientar o trabalho pedagógico junto aos seus
alunos. Mesmo quando a proposta visa oferecer subsídios à prática pedagógica, ao ato
de ensinar, observa-se que muitos educadores acabam se voltando para os métodos,
para as atividades a serem desenvolvidas.

Isso se deve muito à formação docente, que não amplia o olhar sobre as possibilida-
des de trabalho que fujam de métodos pré-determinados, prescritivos e também pelas
condições concretas do fazer do professor que, muitas vezes, mal remunerado, vê-se
obrigado a “dobrar período”, trabalhando em mais de uma escola, com mais de uma
turma, o que o impede de buscar propostas teóricas mais densas e que necessitem de
um maior aprofundamento teórico.

Alfabetização e Letramento 43
As bases teóricas

A simples transposição dos constructos teóricos da psicologia para as práticas de al-


fabetização não garante um efetivo trabalho que considere de fato o desenvolvimento
2 infantil, as estruturas cognitivas e seus estágios de evolução e que tornem o processo
de aquisição da escrita mais significativo para a criança.

O trabalho do professor em sala de aula vai muito além da aplicação de técnicas. Ao


minimizar a ação docente, considerando-a uma aplicação técnica de conhecimentos cien-
tíficos, perde-se a capacidade de transformar e reelaborar as práticas escolares conside-
radas de pouca qualidade, visto que desconsidera que o que dá vida aos métodos e pro-
postas curriculares na sala de aula é a ação docente, seus modos de fazer, sua autoria.

A seguir, vamos elencar duas questões que polarizam tanto o debate acerca da alfabeti-
zação e da ação docente quanto a relação entre Psicologia e alfabetização e Psicolo-
gia e Educação, refletindo diferentes concepções de conhecimento e diferentes formas
de compreender o papel do professor.

A primeira posição – soberana na produção teórica da área ao considerar que o con-


teúdo básico de um currículo é o próprio processo de pensamento infantil – atrela o
processo pedagógico ao desenvolvimento das estruturas cognitivas da criança, deter-
minando que são as estruturas cognitivas já existentes que norteiam o processo de
aprendizagem. Nessa proposta, o papel atribuído ao professor alfabetizador é o de
observar, compreender e acompanhar a criança nas fases de elaboração da leitura e
da escrita, reorganizando didaticamente o material a ser trabalhado, buscando torná-lo
mais “assimilável’’, orientando-se pelos estágios do desenvolvimento em que a criança
se encontra, considerando que esse desenvolvimento acontece de forma linear.

A relação entre Psicologia e Educação se dá de forma assimétrica. A psicologia fica,


hierarquicamente, em vantagem, tendo na educação um mero campo de aplicação dos
conhecimentos produzidos.

Em contrapartida, nos deparamos com os defensores de que a escola deve ensinar


conteúdos científicos e socialmente relevantes – ou seja, possibilitar à criança o
domínio dos conhecimentos exigidos pela sociedade para o futuro e que não são apre-
endidos por ela de forma espontânea ou apenas no convívio social –, defendendo um
papel atuante do professor no processo de ensino-aprendizagem, pois considera que a
aprendizagem estimula o desenvolvimento e não é apenas resultado deste.

No caso da alfabetização, é necessário que o professor auxilie a criança a compreender


as nuances do sistema escrito, seu papel simbólico e sua função social, propiciando
situações de ensino que possibilitem tal aquisição. Por essa compreensão, as relações
entre Psicologia e Educação são complementares, sendo o conhecimento produzido na
educação fundamental à ampliação do conhecimento psicológico sobre a criança e o
seu processo de desenvolvimento.

Considerando-se que as teorias psicológicas podem ser (re)elaboradas pelos profes-


sores, de acordo com as necessidades do seu fazer cotidiano, cabe questionar se a
diversidade teórica observada no campo da psicologia se reflete na prática docente e
de que forma isso impacta no trabalho efetivo com as crianças.

44
Atentar aos modos como o professor alfabetizador reflete sobre o seu trabalho, o ela-
bora e o (res)significa, parece nos dar indícios para compreender como as ideias psico-
lógicas que circulam no meio educacional se fazem presentes na prática pedagógica. 2

Entendendo ou não de Psicologia, o professor alfabetizador enfrenta questões, que pre-


cisa encarar, envolvendo a criança, a compreensão que ele próprio tem da leitura e da
escrita e, ainda, do papel que a leitura e a escrita têm no desenvolvimento da criança.

No âmbito da Psicologia, uma das soluções para enfrentar a problemática é abordar


a alfabetização nas séries iniciais, partindo de teorias que, efetivamente, considerem
a indissociabilidade ensino-aprendizagem e tragam elementos teórico-metodológicos
capazes de afetar a prática docente.

As contribuições oriundas do campo da psicologia, sobretudo de Emilia Ferreiro (1937),


provocaram importantes mudanças paradigmáticas no campo da alfabetização, bem
como a obra dos autores soviéticos que constituíram a denominada Psicologia Históri-
co-Cultural, especialmente Lev S. Vigotski (1896-1934), Alexander R. Luria (1902-1977)
e Alexis N. Leontiev (1904-1979). Esses autores propuseram uma nova forma de com-
preender o desenvolvimento humano, bem como a própria ciência psicológica.

2. A PSICOGÊNESE DA LÍNGUA ESCRITA E O APORTE


TEÓRICO PIAGETIANO
Abordaremos agora a temática: A psicogênese da língua escrita, buscando aprofundar o
olhar sobre as contribuições ao processo de alfabetização que essa proposta teórica abarca.

Emilia Ferreiro e Ana Teberosky são grandes referências para o campo da alfabetiza-
ção. No final dos anos 1970, elas apresentaram o relato de uma pesquisa, no qual des-
crevem o processo de desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita em crianças
de 4 a 6 anos (FERREIRO; TEBEROSKY, 1984, p. 23).

O constructo teórico dessas pesquisadoras trouxe um outro olhar e transformaram os


modos de ensinar a ler e a escrever dos educadores nas últimas décadas – no Brasil,
mais precisamente a partir dos anos 80. O pano de fundo social é formado pelo grande
número de crianças que não aprendiam a ler e escrever, fato esse que, segundo as
autoras, se daria em razão da deserção escolar. Esta, por sua vez, seria fruto “mais de
um problema de dimensões sociais do que da consequência de vontades individuais”
(FERREIRO; TEBEROSKY, 1984, p. 18).

Considerando-se a relevância das pesquisas de Ferreiro e Teberosky, podemos inferir


que, ao olhar para as produções escritas das crianças sob a luz dessas autoras, há uma
mudança, um deslocamento no modo de conceber e entender as elaborações escritas
das crianças, trazendo a compreensão de que existem diferentes formas de se pensar
o processo de alfabetização.

Sabemos que a aprendizagem da leitura e da escrita é uma atividade muito complexa


para as crianças, requerendo um trabalho profundo e sistematizado. É preciso salientar
que o trabalho dos professores alfabetizadores é de crucial importância para que, nos

Alfabetização e Letramento 45
As bases teóricas

dois primeiros anos de escolarização, as crianças consigam aprender a ler e escrever


convencionalmente, assimilar o código escrito, a correspondência entre grafema e fone-
2 ma em movimento, em uso, sem perder de vista a função social da escrita.

Um ponto de grande relevância acerca da produção das autoras Emilia Ferreiro e Ana
Teberosky é a forte crítica aos principais métodos utilizados pelos professores para
alfabetizar. Para elas, a metodologia de ensino é outro aspecto essencial, pois, além
dos problemas sociais, atribuiu-se o fracasso escolar à ineficácia dos métodos tradicio-
nalmente usados, baseados na conversão da letra escrita em sons da fala.

Historicamente, de acordo com uma perspectiva pedagógica, todos os problemas rela-


cionados à aprendizagem da leitura e da escrita têm sido exteriorizados como questões
de método. Tradicionalmente, a alfabetização inicial é considerada em função da rela-
ção entre o método utilizado e o estado de “maturidade” ou de “prontidão” da criança
(FERREIRO, 2001, p. 9).

Há uma busca incessante do “melhor” ou “mais eficaz” método, que “dê conta” de sa-
nar todas as questões de alfabetização. Desse modo, consideram-se tradicionais os
métodos analíticos e sintéticos. A proposta desses métodos é a de que o professor
apenas transmita seus conhecimentos às crianças, não observando algumas de suas
dificuldades ao longo desse processo, ao optarem pelo método mais convencional, que
se restringe à junção das sílabas simples e memorização de sons. Isso faz com que a
criança se torne meramente espectadora das aulas, sem possibilidade de ser ouvida,
de se posicionar, de questionar, impedindo que a criança protagonize a elaboração de
seu próprio conhecimento, que ela entenda o verdadeiro sentido da leitura e escrita.

Ferreiro e Teberosky, em suas pesquisas, fazem uma densa análise do processo de


alfabetização com base nos postulados de Jean Piaget. Sabemos que o biólogo suíço
edificou um imponente escopo teórico sobre a psicologia do desenvolvimento, com en-
foque nas fases da infância à adolescência. Seu interesse principal era pela inteligên-
cia, pelo desenvolvimento humano, e, por isso, ele não chegou a elaborar sobre temas
mais específicos, por exemplo, a aquisição da leitura e da escrita.

Foi então que as pesquisadoras Emilia Ferreiro e Ana Teberosky encontraram terreno fér-
til para preencher essa lacuna. A investigação das autoras partiu do pressuposto de que
a aquisição do conhecimento se baseia na interação entre a atividade e o sujei-
to com o objeto de ensino, fazendo com que o sujeito, por meio de interações
e experimentações, construa suas ideias e hipóteses sobre o código da leitura
e escrita, acessando seus conhecimentos prévios, vivenciados antes de che-
gar à escola, sendo muito importante para suas novas aprendizagens (SILVA;
SILVA, 2020, p. 23).

No trabalho sobre a psicogênese da língua escrita, fica como métier do professor esta-
belecer a compreensão, bem como o entendimento de todo o processo de construção e
elaboração de conhecimento que é feito pela criança. Só assim o docente terá elemen-
tos para intervir nas produções apresentadas.

46
É também de suma relevância que o professor conheça as hipóteses de escrita elabo-
rada pelas crianças. Ferreiro e Teberosky defendem que “[a] teoria de Piaget não é uma
teoria particular sobre um domínio particular; mas sim um marco teórico de referência, 2
muito mais vasto, que nos permite compreender de uma maneira nova qualquer proces-
so de aquisição de conhecimento” (FERREIRO; TEBEROSKY, 1999, p. 31).

Pensando sobre o processo de construção da linguagem escrita, tendo como referen-


cial a psicogênese da língua escrita, há que se considerar o que Piaget entende como
erro. Na teoria piagetiana, o erro faz parte do processo de elaboração, portanto, é visto
como indicativo de dificuldades e de processos a serem apreendidos.

Para dissertarmos sobre a perspectiva piagetiana, recortando as questões referentes


à psicogênese da língua escrita, consultamos a densa bibliografia existente a respei-
to desse tema, buscando um adensamento teórico sobre seus aspectos linguísticos e
suas contribuições quanto ao processo de alfabetização.

Emilia Ferreiro, pesquisadora, psicopedagoga e psicóloga graduada em Buenos Aires,


nascida em 1937, na Argentina, fez seu doutorado na Universidade de Genebra sob a
orientação de Jean Piaget, onde tornou-se uma colaboradora da universidade a partir
de 1974. Mais tarde, em parceria com a pedagoga e psicóloga Ana Teberosky, iniciou
suas pesquisas em solo argentino, norteada por fundamentos linguísticos e significati-
vos para o processo de alfabetização, impulsionada pela realidade cruel do fracasso da
aprendizagem da leitura e da escrita na América Latina, como mostrado nos relatórios
publicados pela UNESCO na década de 1970 (SILVA; SILVA, 2020, p. 23).

Como já mencionado, foi na década de 80 que a teoria de Ferreiro e Teberosky chegou


em solo brasileiro. No ano de 1986: A Psicogênese da Língua Escrita passa a fazer
parte das referências de professores alfabetizadores de todo país. Essa obra versa sobre
os modos de apropriação pelas crianças das habilidades e técnicas de aprender a ler
e escrever. Nessa perspectiva, a criança ocupa o lugar de protagonista de seu próprio
desenvolvimento. Nas palavras das autoras-referência Ferreiro e Teberosky (1999, p. 7):
[...] pretende-se ainda demonstrar que, além dos métodos, dos manuais, dos
recursos didáticos, existe um sujeito buscando a aquisição de conhecimen-
to; sujeito este que se propõe problemas e trata de solucioná-los, seguindo
sua própria metodologia... insistiremos sobre o que se segue: trata-se de um
sujeito que procura adquirir conhecimento, não simplesmente de um sujeito
disposto ou maldisposto a adquirir uma técnica particular [...]. (FERREIRO; TE-
BEROSKY, 1999, p. 7)

Ao nos debruçarmos sobre o aporte teórico das pesquisadoras, observamos que elas
enfatizam o caráter de construção de conhecimento, descrevendo as etapas que a
criança elabora por meio da leitura do mundo ao seu redor, no qual estão presente
símbolos, imagens e palavras.

A seguir, dissertaremos a respeito de uma importante contribuição trazida por Ferreiro


sobre a definição das hipóteses de aquisição da escrita.

Alfabetização e Letramento 47
As bases teóricas

2.1. AS HIPÓTESES DE AQUISIÇÃO DA ESCRITA


2 Emilia Ferreiro e Ana Teberosky, em conjunto com uma equipe de pesquisadores, inau-
guraram uma ideia outra sobre Alfabetização. Para Ferreiro, a escrita pode ser conside-
rada como uma representação da linguagem ou como um código de transcrição gráfica
das unidades sonoras (2001, p. 10). A grande “sacada” da autora foi a ideia de conside-
rar o ingresso da criança no mundo da escrita, ou seja, voltar o olhar para a criança e
suas elaborações e não para os professores e métodos, como era a práxis.

Ferreiro e Teberosky (1999, p. 63) retrata os modos de apropriação dos conceitos pelas
crianças e também como elas se aproximam das habilidades de ler e escrever, explici-
tando que a aquisição desses eventos linguísticos segue uma trajetória muito próxima
àquela que a humanidade percorreu até chegar ao sistema alfabético, isto é, a criança,
gradativamente, constrói diferentes hipóteses acerca do sistema de escrita, partindo de
uma lógica que vai da não compreensão da relação entre a fala e a escrita, caminhando
pela compreensão, até elaborar a representação alfabética da escrita.
Ao percorrer essa trajetória ela precisa, então, responder a duas importantes
questões: o que a escrita representa e a forma que é feita a construção dessa
representação. Esse olhar sobre as hipóteses elaboradas pelas crianças re-
volucionou os conceitos em relação à alfabetização e aos processos de intro-
dução na leitura e na escrita, a proposta de Ferreiro desloca totalmente o eixo
da alfabetização passando de: “Como se ensina?” para “Como se aprende?”.
(SILVA; SILVA, 2020, p. 25-26)

Ferreiro e Teberosky defendem que a aquisição da escrita se ancora nas hipóteses


elaboradas pelas crianças, que se remetem a seus conhecimentos prévios, vivências,
assimilações, interações sociais e da leitura em seu entorno. Essa criança se coloca
problemas, constrói sistemas interpretativos, pensa, raciocina, buscando compreender
esse objeto social complexo que é a escrita (FERREIRO, 2001, p. 7).

Os conhecimentos das crianças, impregnados de sentido, portam informações cruciais


sobre as fases ou etapas psicogenéticas do processo de alfabetização, apontando dois
aspectos capazes de mudar a maneira que a criança é colocada no decorrer do proces-
so de alfabetização: primeiro, a sua competência linguística e, segundo, suas capaci-
dades cognitivas.

As autoras se ancoram teoricamente no trabalho de Piaget, como já afirmado ante-


riormente, para compreender as capacidades de cognição da criança em relação à
construção da linguagem escrita. Piaget defende que o sujeito cognoscente é ativo e
busca compreender o seu entorno, o mundo que o rodeia. É um sujeito que aprende
basicamente por meio de suas próprias categorias de pensamento, ao mesmo tempo
em que organiza seu mundo (FERREIRO; TEBEROSKY, 1999, p. 29).

O processo chamado de assimilação e de elaboração da escrita é marcado pela con-


cepção de sistemas e hipóteses realizadas pelo sujeito aprendiz. É mediante esses
sistemas que as informações serão interpretadas, fazendo com que a criança elabore
significado à linguagem escrita, o que posteriormente vai ser interpretado pelo profes-
sor. No curso do desenvolvimento, esses sistemas servirão de bases de conhecimentos
para os próximos conhecimentos e aprendizagens (SILVA; SILVA, 2020, p. 26).

48
O processo da escrita se dá por fase, nas quais a criança se apropria de conceitos que
darão subsídios para os próximos conceitos que ela irá elaborar de forma cumulativa.
2
Ferreiro (2001) acredita que as crianças são participantes ativos de seu próprio
conhecimento e enfatiza a importância da construção de hipóteses de escrita
das crianças. Assim, acredita que o processo de alfabetização não se restrin-
ge à repetição de letras, a alfabetização é um processo de construção e de
representação da linguagem. Toda criança em idade de alfabetização passa
por quatros fases distintas para completar o ciclo de alfabetização, sendo a
construção deste ciclo dividida pelas fases: fase pré-silábica; fase silábica; fase
silábico-alfabética e, por fim, a fase alfabética (SILVA; SILVA, 2020, p. 26).

Sobre a pré-história da linguagem escrita, os primórdios, a gênese, Ferreiro nos


conta que:
As primeiras escritas infantis aparecem, do ponto de vista gráfico, como linhas
onduladas ou quebradas (ziguezague), contínuas ou fragmentadas ou, então,
como uma série de elementos discretos e repetidos (séries de linhas verticais
ou de bolinhas). (FERREIRO, 2001, p. 18)

Figura 01. Primórdios da escrita de uma criança

Fonte: acervo da autora.

Seu constructo teórico defende que o processo de elaboração da escrita da criança em


processo de alfabetização é marcado por quatro fases: fase pré-silábica; fase silábica; fase
silábico-alfabética e pôr fim a fase alfabética. Como podemos observar no quadro abaixo:

Alfabetização e Letramento 49
As bases teóricas

Tabela 01. Fases de alfabetização

2
A criança não é capaz de relacionar as letras, a grafia, com os sons
da língua falada.

Preocupa-se em reproduzir os traços da escrita da forma que ela


identifica. Utiliza desenhos, garatujas, letras ou outros sinais gráficos
para representar a escrita do objeto a que se refere.
FASE PRÉ-SILÁBICA Escrita não se diferencia do desenho. Muitas vezes, a criança não
diferencia letras e números.

Supõe que a palavra representa o objeto, então usa, por exemplo,


muitas letras para escrever ELEFANTE e poucas para escrever
FORMIGA (realismo nominal). Utiliza as letras do próprio nome para
escrever tudo (recorrendo ao repertório de letras por ela conhecido).

A criança passa a entender que a escrita representa a fala.

Ocorre a interpretação da letra à sua maneira, atribuindo valor de


uma sílaba a cada uma das letras grafadas.

FASE SILÁBICA A criança utiliza uma letra para cada emissão sonora.

Pode usar muitas letras para escrever, mas, ao ler, aponta uma letra
para cada fonema.

Na escrita de frases, pode escrever uma letra para cada palavra.

Compreende que a escrita representa os sons da fala.

Mistura a lógica da fase anterior com a identificação de algumas sílabas.


É um período de conflito, transição entre a hipótese silábica e a
hipótese alfabética.

Atua simultaneamente com as duas hipóteses: em alguns momen-


FASE SILÁBICO-
tos, atribui a cada sílaba uma letra e, em outros, representa-as como
ALFABÉTICA unidades sonoras, os fonemas.

Percebe a necessidade de mais de uma letra para grafar uma sílaba.


Pode dar ênfase ao som só das vogais ou só das consoantes.

Atribui o valor do fonema a algumas letras, por exemplo, para


grafar “cabelo”, escreve: KBLO

50
Compreende o uso social da escrita: comunicação.
2
Conhece o valor sonoro de todas ou quase todas as letras do alfabeto.

Compreende que cada letra corresponde a valores sonoros menores


que as sílabas.
FASE ALFABÉTICA
Produz texto com a escrita convencional.

Desenvolve uma análise fonética, produzindo escritas com


hipóteses alfabéticas.

A ortografia pod’e ser trabalhada.

Fonte: elaborado pela autora.

A evolução da escrita passa por esses níveis até a criança consolidar o


processo de alfabetização.

O arcabouço teórico acerca da psicogênese da linguagem escrita possibilitou importan-


tes deslocamentos no fazer pedagógico do professor alfabetizador, ampliando o olhar
por parte dos educadores sobre como a criança vê o mundo a sua volta e como elas
refletem e elaboram suas hipóteses.

2.2. SOBRE O CONSTRUTIVISMO PIAGETIANO


Tanto Piaget quanto Ferreiro e Teberosky não focaram suas pesquisas em métodos de
aprendizagem e nem se debruçaram sobre a educação escolar, diferentemente de muitas
leituras equivocadas do arcabouço teórico proposto pelos chamados “construtivistas”.
Um ponto que precisa ser ressaltado é o de que o construtivismo de Emilia
Ferreiro é uma teoria psicolinguística (que explicita como os aprendizes organi-
zam psicologicamente a aprendizagem de um conteúdo de escrita) e não uma
teoria pedagógica sobre como ensinar. No entanto, mesmo que as práticas dos
professores construtivistas ainda não estejam devidamente organizadas para
configurar um método pedagógico, o chamado construtivismo parece adotar
princípios gerais dos métodos natural e de imersão, embora reconhecendo a
necessidade de abordar unidades menores de análise, como a letra, o fonema
ou a sílaba (FRADE, 2005, p. 41).

O recorte teórico feito por Piaget trouxe para o centro de seus estudos o sujeito epis-
têmico, o sujeito universal do conhecimento. Nesse sentido, investigou a fundo o de-
senvolvimento das mais variadas noções (número, classes, relações, substância, peso,
volume, proporções, combinatória, acaso etc.) e também a atuação de várias funções
psicológicas como: a percepção, a imagem mental, memória, linguagem, imitação etc.

Ferreiro e Teberosky, por sua vez, adensaram a pesquisa sobre o desenvolvimento es-
pecificamente da escrita – sobre o processo de aprendizagem desse saber. O método
construtivista, tão difundido no campo educacional, na verdade não existe.

Alfabetização e Letramento 51
As bases teóricas

Porém, sabemos que as ideias piagetianas influenciaram (e influenciam até hoje!) o


campo educacional, muitas vezes desvirtuadas, já que é comum encontrarmos escolas
2 que definem suas práticas como “construtivistas’’, defendendo o Construtivismo como
um método de ensino ou de alfabetização ou um conjunto de regras ou de técnicas a
serem aplicadas em sala de aula.

Não podemos negligenciar a importância da teoria para a educação, já que esta pos-
sibilita ao professor um estudo e uma compreensão acerca de questões educacionais,
fazendo-o repensar sua prática pedagógica e, assim, encarando a criança como um su-
jeito ativo no processo de aprendizagem, especialmente no que tange à alfabetização,
se considerarmos as pesquisas de Ferreiro.

O “Construtivismo piagetiano” não dá respostas sobre o quê ou como ensinar, mas permi-
te compreender de que modo a criança aprende, elabora suas hipóteses, fornecendo um
referencial teórico consistente para identificação de possibilidades e limitações da criança.

Ser construtivista é desenvolver práticas em sala de aula que pressupõem a existên-


cia de um sujeito ativo, que pensa sobre o que aprende a partir do que já sabe e vai
construindo o seu conhecimento em um processo dialético de interação – elaborando
e reelaborando, testando hipóteses – até que possa consolidar suas aprendizagens.

SAIBA MAIS
Emilia Ferreiro | Cisão entre alfabetização e letramento - entrevista

https://www.youtube.com/watch?v=WF5S9Ic4nmY. Acesso em: 1 dez. 2020.

3. ALFABETIZAÇÃO COMO PROCESSO DISCURSIVO,


PAUTADO NOS FUNDAMENTOS DA PERSPECTIVA HISTÓRICO-
CULTURAL DO DESENVOLVIMENTO HUMANO

“A história da escrita na criança começa muito antes da pri-


meira vez em que o professor coloca um lápis em sua mão e
lhe mostra como formar letras” (Luria, 2010, p. 143).

A proposta da alfabetização como processo discursivo nasceu por volta dos anos 1980,
dialogando com autores dos campos da Psicologia, da Educação e dos Estudos da
Linguagem e ao mesmo tempo em que se realizava um intenso trabalho empírico de
atuação e investigação com crianças na fase inicial da escrita.

O argumento basilar dessa perspectiva é o da natureza social ou da sociogênese do


desenvolvimento humano. Os modos de agir, pensar, falar, sentir das crianças ganham
sentido nas relações sociais. Dessa forma, a mediação e a participação de outros na
construção do conhecimento pela criança ganham relevo, assim como a concepção de
linguagem enquanto produção histórica e cultural, constitutiva dos sujeitos, da
subjetividade e do conhecimento.

52
Sustentada pelas contribuições teóricas de Vigotski e seus colaboradores – como Luria
e Leontiev – essa perspectiva considera o desenvolvimento da criança não apenas
em seu aspecto cognitivo, mas em seu aspecto discursivo, como nos mostra Smolka. 2
A linguagem, a palavra, torna-se meio/modo de interação, meio/modo de (inter e intra)
regulação das ações e objeto de conhecimento. A ênfase na relação social e na prática
dialógica caracteriza a dimensão discursiva. Vamos então visitar agora o constructo
teórico vigotskiano sobre esse processo de elaboração e apropriação da linguagem
escrita. Nos anos 1929 e 1930, em parceria com Luria, Vigotski investigou a pré-história
da linguagem escrita, salientando a função instrumental auxiliar que esta vai assumindo
no desenvolvimento da criança, e revelando as enormes transformações que ocorrem
no processo da linguagem e escrita (SMOLKA, 1993, p. 43).

De acordo com o arcabouço teórico da perspectiva histórico-cultural, defendemos que


a linguagem – mais do que essencial – é constitutiva para o desenvolvimento humano.
Com base nesse princípio, traremos aqui uma breve análise sobre as contribuições dos
estudos vigotskianos no que se refere à apropriação da linguagem escrita, ao processo
de alfabetização. Defendemos que a escrita é um sistema simbólico que tem um papel
mediador na relação entre o sujeito e o objeto de conhecimento. É um artefato cultural,
que funciona como suporte para certas ações psicológicas, isto é, como instrumento
que possibilita a ampliação da capacidade humana de registro, de memória e de comu-
nicação (OLIVEIRA, 1997, p. 63).

Nas palavras de Luria:


[...] o momento que uma criança começa a escrever seus primeiros exercícios
escolares em seu caderno não é, na realidade, o primeiro estágio do desenvol-
vimento da escrita, ou seja, quando a criança entra na escola, ela já adquiriu
um patrimônio de habilidades e destrezas que a habilitará a aprender a escre-
ver em um tempo relativamente curto. (LURIA, 2010, p. 143)

Considerando-se o cenário contemporâneo à educação, podemos dizer que uma gran-


de parte das escolas se preocupa em ensinar a criança a ler e a escrever seguindo
modelos predeterminados, não permitindo que a criança se expresse, realizando um
processo de alfabetização que “emudece e cala”, tolhendo a expressão da criança.
Vigotski já apontava criticamente para essa escola que “ensina as crianças a desenhar
letras e construir palavras com elas, mas não se ensina a linguagem escrita” (VIGOT-
SKI, 1998, p. 139). Ressaltando o fato de a escrita não ser ensinada em movimento,
em funcionamento.

A escola, que deveria valorizar as experiências socioculturais do educando, em muitos


casos, faz justamente o oposto: quer que a criança aprenda a ler e escrever a partir de
perspectivas pedagógicas baseadas no conhecimento do adulto, ignorando as experi-
ências vividas pelas crianças que antecedem seu ingresso na escola, como se a única
forma válida de comunicação fosse a linguagem escrita formal e escolar e como se a
criança, no início da escolarização, não dominasse esse instrumento. Assim, a escola a
trata como se ela não tivesse nada a dizer (BUSCARIOLO, 2015, p. 79).

Ana Luiza Smolka – uma grande referência no Brasil em alfabetização discursiva – dia-
logando com o constructo teórico vigotskiano, destaca que:

Alfabetização e Letramento 53
As bases teóricas

Da maneira como vem sendo feita, a alfabetização enfoca apenas o domínio de


habilidades formais e funcionais sem, no entanto alcançar o âmago do proces-
2 so, a razão profunda sócio-histórico-política da linguagem escrita. Ela tem sido
uma alfabetização meramente formal, em favor de um analfabetismo político, na
medida em que não é considerada como um instrumento, um meio, uma possi-
bilidade de comunicação e interação entre as pessoas, mas é vista com um fim
último da aprendizagem escolar e acadêmica (SMOLKA, 1989, p. 49).

Pensar nessa alfabetização que é totalmente desconectada da vida da criança, mos-


tra-nos que há um impedimento de que essa criança participe da construção de seu
conhecimento. Assim, o processo de aquisição da linguagem escrita pode tornar-se de-
sinteressante para a criança, que muitas vezes fracassa por não encontrar o real valor
de se aprender a escrever.

Vigotski (1989, p. 79) afirma que a linguagem escrita é constituída por um sistema par-
ticular de signos que designam sons e palavras da linguagem falada, os quais, por sua
vez, são signos de relações e entidades reais. Ele destaca ainda que o domínio desse
complexo sistema de signos não pode ser alcançado de forma mecânica e externa,
defendendo que a única maneira de nos aproximarmos de uma solução correta para a
‘psicologia da escrita’ é por meio da compreensão de toda a história do desenvolvimen-
to dos signos na criança. Nas palavras do autor, destacamos:
A escrita é uma função linguística, que difere da fala oral, tanto na estrutura
como no funcionamento. Até o seu mínimo desenvolvimento exige um alto
nível de abstração. É a fala em pensamentos e imagens apenas, carecendo
das qualidades musicais, expressivas e de entonação da fala oral. Ao aprender
a escrever, a criança precisa se desligar do aspecto sensorial da fala e substituir
palavras por imagens de palavras. Uma fala apenas imaginada, que exige a
simbolização de imagem sonora por meio de signos escritos (isto é, um se-
gundo grau de representação simbólica) deve ser naturalmente muito mais difícil
para a criança do que a fala oral. Os estudos mostram que o principal obstácu-
lo é a qualidade abstrata da escrita e não o subdesenvolvimento de pequenos
músculos ou quaisquer outros obstáculos mecânicos (VIGOTSKI, 1989, p. 85).

Vigotski dá relevo à abstração da linguagem escrita e essa dimensão do abstrato


exige da criança a capacidade de simbolizar, de entender que a letra grafada é
uma representação. A linguagem representa a mais alta forma de uma faculdade
que é inerente à condição humana, a faculdade de simbolizar. Entendemos por
simbolizar a capacidade de representar o real por um “signo” e de compreender
o “signo” como representante do real, de estabelecer, portanto, uma relação de
“significação” entre algo e algo diferente. Essa questão é apontada como a grande
dificuldade nessa etapa de apropriação da escrita, nela reside a dificuldade da
criança em compreender o mecanismo da escrita.

O autor destaca ainda a necessidade de se compreender o que leva a criança a es-


crever, revelando a pré-história da linguagem escrita, que é definida como o percur-
so trilhado pela criança no processo de aprendizagem dessa forma de linguagem.

O constructo histórico-cultural defende que a leitura e a escrita devem se construir


como algo que a criança necessite e não apenas ser ensinada pelo adulto simples-
mente como uma habilidade motora, descolada da sua função para a criança; devem
ser construídas como atividades culturais complexas e permeadas de significado.

54
Frente a isso, faz-se urgente questionar a visão de que a escola é apenas “trans-
missora de saberes” – como se a criança não participasse do processo de cons-
trução de conhecimento – possibilitando uma discussão referente aos métodos 2
utilizados no processo de alfabetização, os quais, na maioria das vezes, anulam
as experiências trazidas pelas crianças, mecanizando o ato de escrever, ofere-
cendo trabalhos voltados apenas à codificação dos sons, priorizando o ensino
da associação entre letras e sons, sem estabelecer relação com a função social
que a escrita tem para a criança. Pensar em métodos não afasta a discussão dos
processos pelos quais a criança se apropria da linguagem escrita, mas nos instiga
a olhar para as condições concretas e materiais pensadas para que esse desen-
volvimento da linguagem escrita aconteça.

As indagações e críticas relacionadas à alfabetização, aos diversos métodos de


se ensinar a ler e escrever, vêm sendo exaustivamente discutidas no cenário edu-
cacional brasileiro, em especial nos últimos trinta anos, tanto na academia como
no interior das escolas, mesmo que de forma precária, posto que no interior das
escolas, muitas vezes, os tempos pedagógicos reservados para a discussão cole-
tiva não garantem um debate mais contundente sobre questões educacionais tão
importantes, como mostram relevantes trabalhos de renomados pesquisadores
nessa área: Smolka (1988; 1993; 2010), Soares (1985; 2001), Nogueira (1991;
1993; 2013), Góes (1992; 2000), Mortatti (2011); Gontijo (1996; 2002), Pacheco
(1994; 1996), Goulart (2000; 2001; 2006), Di Nucci (2001), Frade (2005), Deciete
( 2013), entre outros.

Vigotski se colocava contrário ao ensino da língua escrita de forma arbitrária, po-


rém, isso não significa que não haja a intervenção do professor nesse processo
de aprendizagem. Mesmo fazendo parte de uma sociedade letrada, a escrita da
criança não desabrocha espontaneamente, a aprendizagem de um objeto cultural
tão complexo como a escrita está atrelada a processos deliberados de ensino, à
instrumentalização dessas crianças acerca da escrita. […] deixada sozinha com a
língua escrita, a criança não tem material suficiente para construir uma concepção
que dê conta de toda estruturação do sistema. A mediação de outros indivíduos
é essencial para provocar avanços no domínio desse sistema culturalmente de-
senvolvido e compartilhado (OLIVEIRA, 1997, p. 65).

Aqui podemos explicitar trazendo o vivido em sala de aula. Numa sala de 1º ano,
há alguns anos, experienciei o trabalho com a alfabetização norteado pelos princí-
pios discursivos. O caso a seguir nos dá pistas de como a relação, como o apren-
der com, impacta na elaboração da criança.

No início do 1º ano, as produções escritas de Paula eram as de uma criança em


fase inicial de alfabetização, como mostram seus textos livres abaixo, ambos es-
critos em fevereiro do ano corrente.

Alfabetização e Letramento 55
As bases teóricas

Figura 02. Textos de fevereiro

Fonte: acervo da autora.

Observa-se que, no primeiro mês de trabalho, suas produções já evoluíram. No primeiro


texto livre que ela escreveu, usava muitas letras para exprimir suas ideias – característi-
ca comum neste processo de alfabetização. No segundo texto, apesar de observarmos
o uso de letras “desconexas”, percebemos o uso repetitivo das letras que compõem o
seu nome, e podemos notar, também, algumas mudanças em sua escrita: ela já não
usa tantas letras para escrever, pois percebeu que não é o número de letras que faz
com que a escrita “faça sentido”. Esse tipo de descoberta, para a criança que está se
alfabetizando, mostra que ela está pensando sobre sua escrita.

Paula geralmente escolhia os ateliês de escrita, principalmente o de texto livre, porque,


para ela, não bastava escrever “palavrinhas”, ela queria escrever texto! E escrevia junto
com a Manu, sua amiga, que já estava alfabetizada.

Essa cooperação entre as crianças nesse processo de aquisição da escrita é bastante


fecundo e, tomando como ancoragem teórica a perspectiva histórico-cultural, conside-
ramos o processo de alfabetização como algo compartilhado, que pressupõe o “fazer
com ajuda”, numa relação não apenas entre a criança e a escrita em si, mas numa rela-
ção que passa pelo outro, seja esse outro o professor ou um colega “mais experiente”.

Podemos observar um intenso esforço da aluna em questão para aprender a ler e a escrever,
já que a mesma tinha pressa, queria escrever “igual à Manu”, e isso a impulsionava a tentar.
[...] os processos de mediação permitem que a criança opere e aprenda, graças a essa me-
diação, graças ao apoio dos demais e da cultura, acima de suas possibilidades individuais
concretas, em um determinado momento de seu desenvolvimento (DEL RÍO, 1996, p. 576).

Em agosto do mesmo ano, podemos notar que a escrita de Paula já estava alfabética
no texto a seguir:

56
Figura 03. Texto de agosto do mesmo ano, alguns meses separam
as primeiras hipóteses desta última
2

Fonte: acervo da autora.

O processo de alfabetização, tomando como ponto de partida a escritura de texto livre,


contribuiu para que Paula se aventurasse pelo mundo da palavra escrita – elaborando
suas hipóteses, errando, acertando, tornando-se protagonista de sua história de alfa-
betização e se constituindo enquanto autora. A inspiração da amiga possibilitou que
ela avançasse, aos poucos, fazendo, com ajuda, o que ainda não era capaz de realizar
autonomamente, o que nos remete ao conceito de zona de desenvolvimento proximal
postulado por Vigotski.

Vigotski ainda reafirma que: [...] da mesma forma que as crianças aprendem a falar, elas
podem muito bem aprender a ler e escrever. Métodos naturais de ensino da leitura e da
escrita implicam operações apropriadas sobre o meio ambiente das crianças. A leitura e
a escrita devem ser algo que a criança necessite (VIGOTSKI, 1998, p. 156).

O autor é enfático em ressaltar a importância de ensinarmos a escrita por meio de


“métodos naturais”, apesar de defender a escrita como produção humana e parte da
cultura, salientando que essa não “desabrocha” espontaneamente. Ele marca sua posi-
ção antagônica aos métodos tradicionais, cartilhescos, os quais, na maioria das vezes,
tiram o protagonismo do educando do processo de apropriação da linguagem escrita.

Essa fala de Vigotski sobre “métodos naturais” nos remete a uma importante dis-
cussão de sua teoria, na qual ele aborda a questão das necessidades e pos-
sibilidades como operações apropriadas sobre o meio ambiente da criança. O
sentido de natural aqui implica na criação de novas necessidades possibilitadas
pela cultura.

Alfabetização e Letramento 57
As bases teóricas

Abaixo temos um quadro síntese que aponta indícios sobre o que um professor, que
coaduna com o ideário vigotskiano, com a proposta de uma alfabetização discursiva,
2 deve considerar em seu trabalho educativo, em seu ato de ensinar:
Figura 04. Síntese – Alfabetização discursiva

ALFABETIZAÇÃO DISCURSIVA

Conhecer e levar em conta as experiências e a ambiência cultural das crianças

Encorajar a comunicação e ampliar as condições de interação na sala de aula

Conhecer os processos de desenvolvimento da criança e começar a observar


o processo de aquisição da escrita

Conhecer a Literatura Infantil para poder explorar seus valores, sua riqueza,
entre outros elementos.

Buscar novas formas de avaliação e desenvolvimento da criança e sobre a


aquisição da escrita

Fonte: elaborada pela autora.

Cabe aqui a ressalva de que nessa perspectiva vigotskiana, na proposta da alfabeti-


zação discursiva defendida por Smolka, não encontramos um método para alfabetizar.

Tanto Vigotski como Smolka nos oportunizam uma ampliação de horizontes no sentido
de dar visibilidade à escrita em movimento, em funcionamento, na relação com o outro,
mediada, dialogada e compartilhada.

SAIBA MAIS
Para saber mais sobre a perspectiva discursiva leia:

SMOLKA, A. L. B. A criança na fase inicial da escrita. São Paulo: Cortez Editora, 1988.

GOULART, C. M. A.; GONTIJO, C. M. M.; FERREIRA, N. S. de A. (Org.). A alfabetização como proces-


so discursivo: 30 anos de A criança na fase inicial da escrita. São Paulo: Cortez Editora, 2018.

58
3.1. A DIMENSÃO CULTURAL DA ESCRITA
Como já mencionado anteriormente, a linguagem escrita é compreendida pela psicolo- 2
gia histórico-cultural como uma técnica culturalmente desenvolvida pela humanidade.
“Essa corrente teórica reconhece que, no âmbito filogenético, a maneira de se comu-
nicar passou por diferentes fases ao longo de seu desenvolvimento histórico” (LURIA,
2010, p. 32).

Cada fase de comunicação estabelece relações com as necessidades humanas pró-


prias de um determinado período. Assim, o modo e o conteúdo dos registros gráficos
estão fortemente relacionados à organização de vida do homem para a manutenção de
sua sobrevivência, ao estágio de uso e criação de instrumentos e técnicas e, ainda, à
(con)vivência em comunidade, ou seja, às relações sociais estabelecidas.

Isso posto, podemos compreender que a linguagem escrita é produto de um longo e di-
nâmico processo, que reflete a própria luta da humanidade pela vida; que o desenvolvi-
mento de uma dada sociedade e dos indivíduos que a constituem estabelecem relações
entre si e que a apropriação, por parte de cada indivíduo, de um bem cultural como este,
possibilita a transformação não só de suas ações no mundo circundante, mas também
de suas próprias funções psicológicas (LURIA, 2010).
O desenvolvimento da linguagem escrita pertence à primeira e mais evidente
linha de desenvolvimento cultural, uma vez que está relacionado com o domí-
nio de sistema externos de meios elaborados e estruturados no processo de
desenvolvimento cultural da humanidade. Contudo, para que o sistema externo
de meios se convertam em uma função psíquica da própria criança, em uma
forma especial de comportamento, para que a linguagem escrita da humanida-
de se converta na linguagem escrita da criança, necessita-se de um complexo
processo de desenvolvimento que estamos tratando de explicar em linhas ge-
rais. (VIGOSTKI, 1995, p. 185)

Luria afirma que a escrita constitui o uso funcional de linhas, pontos e outros signos para
recordar e transmitir ideias e conceitos. A linguagem escrita permite a comunicação além
do tempo, daí sua função como mediadora da cultura para a apropriação pelos sujeitos.
Por essa razão, a escrita é um signo construído historicamente para mediar e registrar as
produções da humanidade além do tempo presente (ZUIN; REYES 2010, p. 68).

Frente a isso, podemos dizer que, no âmbito ontogenético, tal como na filogênese, o
processo de aquisição da linguagem escrita passa também por fases necessárias, de
modo que a pessoa que se encontra à margem de um mundo “letrado” passa, gradual-
mente, a fazer parte dele, externa e internamente, utilizando-se dessa linguagem como
meio para ampliar suas funções psicológicas, tais como memória, raciocínio lógico-lin-
guístico, percepção, atenção, concentração e planejamento.

De acordo com a teoria histórico-cultural, os bens culturais só fazem sentido para o


homem se aprendidos em seus usos sociais, e é dessa forma que a língua precisa ser
aprendida: em funcionamento.

É sobre a leitura e a escrita que recaem os usos mais significativos e fundamentais da


língua, o que leva a entender a importância dada à aprendizagem dessas habilidades
nas sociedades atuais. Isso porque aprender a ler e a escrever é um processo consi-

Alfabetização e Letramento 59
As bases teóricas

derado como uma espécie de “ritual de passagem” e representa uma das apropriações
das habilidades de maior valor para as práticas sociais dos dias atuais, considerando-se
2 a cultura letrada (BUSCARIOLO, 2015, p. 97).

Vigotski nos mostra que a escrita deve ter significado para as crianças, e, assim, a necessidade
de aprender a escrever deve ser despertada e vista como necessária e relevante para a vida:
“Só então poderemos estar certos de que ela se desenvolverá não como hábito de mãos e de-
dos, mas como uma forma nova e complexa de linguagem” (VIGOTSKI, 1989, p. 133).

A importância da mediação é explicitada por Smolka quando ele defende que: A criança se
apropria da escrita através dos processos de atividade mediada, em instâncias interrelacio-
nadas (a mediação pelo outro e a mediação pelos signos). Nesses processos, a atuação do
professor e a dos colegas são relevantes, no sentido da construção conjunta da atividade, a
partir das condições de produção no espaço escolar (SMOLKA, 1993, p. 31, grifos nossos).

Mais uma vez, podemos notar que o papel do professor é colocado como essencial no
processo. Faz diferença o ato de ensinar, apontar, instrumentalizar a criança sobre o
mundo letrado que a rodeia.

A apropriação desse sistema escrito não é espontânea, uma vez que exige a mediação
intencionalmente organizada, tal como podemos depreender das reflexões de Leontiev
(1983), possibilitando o desenvolvimento de funções psíquicas superiores.

Evidenciam-se as relações apontadas por Vigotski entre ensino, aprendizagem e de-


senvolvimento, relações essas que podem ser observadas nas imagens que se se-
guem, em que a sala de aula se torna o lugar de compartilhar a escrita com os outros,
com os pares e com a professora.
Figura 05. Textos escritos por alunos do primeiro ano

Na parede estão expostos os textos escritos pelas crianças do 1º ano – textos esses
que foram lidos em roda e posteriormente digitados e trabalhados pela professora.

Fonte: acervo da autora.

60
Vigotski traz a questão da necessidade da criança, que deve, sim, ser ensinada, afir-
mando que: Elas devem sentir a necessidade de ler e de escrever no seu brinquedo
[...]. É evidente que é necessário, também, levar a criança a uma compreensão interior 2
da escrita, assim como fazer com que a escrita seja desenvolvimento organizado mais
do que aprendizado.
Quanto a isso, podemos apenas indicar uma abordagem extremamente geral:
assim como o trabalho manual e o domínio da caligrafia são para Montes-
sori exercícios preparatórios ao desenvolvimento das habilidades da escrita,
desenhar e brincar deveriam ser estágios preparatórios ao desenvolvimento
da linguagem escrita das crianças. Os educadores devem organizar todas
essas ações e todo o complexo processo de transição de um tipo de lin-
guagem escrita para outro. Devem acompanhar esse processo através de
seus momentos críticos, até o ponto da descoberta de que se pode desenhar
não somente objetos, mas também a fala. Se quiséssemos resumir todas es-
sas demandas práticas e expressá-las de uma forma unificada, poderíamos
dizer que o que se deve fazer é ensinar às crianças a linguagem escrita, e
não apenas a escrita de letras (VIGOTSKI, 1998, p. 156-157, grifos nossos).

Aqui explicita-se a importância do ato de ensinar a linguagem escrita – essa invenção cul-
tural que é cada vez mais valorizada em nossa sociedade – trazendo, assim, o professor a
um lugar de destaque nesse processo, como o que organiza as ações para que a criança
aprenda a dominar o código escrito. Mostrando a importância da mediação, Luria (2010,
p. 144) afirma: “Em contraste com um certo número de outras funções psicológicas, a
escrita pode ser definida como uma função que se realiza, culturalmente, por mediação”.

A concepção histórico-cultural nos remete ainda à função transformadora


da linguagem escrita.
Porque não se “ensina” ou não se “aprende” simplesmente a “ler” e “escre-
ver”. Aprende-se (a usar) uma forma de linguagem, uma forma de interação
verbal, uma atividade, um trabalho simbólico. [...] é fundamental considerar a
concepção transformadora da linguagem, uma vez que não se pode pensar a
elaboração cognitiva da escrita independentemente da sua função, do seu fun-
cionamento, da sua constituição e da sua constitutividade na interação social.
(SMOLKA, 2012, p. 82)

Portanto, podemos destacar a função transformadora da escrita. Escrita essa que é ensi-
nada, uma atividade mediada, um trabalho simbólico carregado de sentidos, mas não se
trata apenas de ensinar pensando em “transmissão de saber”, mas sim de mostrar o seu
uso, fazer essa escrita funcionar, como interação, interlocução não apenas do professor;
a linguagem assim se cria, (trans)forma-se e se constitui como conhecimento humano.

SAIBA MAIS
Perspectiva discursiva para alfabetização.

Live no canal da professora Bárbara Cortella. Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=mrMmVXVBYeI&t=15s. Acesso em: 1 dez. 2020.

Alfabetização e Letramento 61
As bases teóricas

4. AS CONTRIBUIÇÕES DA LINGUÍSTICA PARA O PROCESSO


2 DE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO

A escola é talvez o único lugar onde se escreve


muitas vezes sem motivo…

(Cagliari, 1989)

Alfabetização é a aprendizagem da escrita e da leitura. Ler e escrever são atos linguísti-


cos, porém, é sabido que há pouca (ou nenhuma) participação de linguistas em projetos
educacionais voltados à alfabetização.

Compreender a natureza da linguagem escrita, seus usos e sua função, faz-se urgente
para pensar o processo de alfabetização. O maior problema da alfabetização refere-se
à maneira imprópria pela qual a escola aborda questões de fala: pela falta de entendi-
mento dos processos. Cagliari (1989, p. 87) defende que, antes de ensinar a escrever,
é preciso saber o que os alunos esperam da escrita, qual julgam ser a sua utilidade, e,
a partir daí, programar as atividades adequadamente.

Posto isso, pensar nas contribuições da linguística para a alfabetização nos reporta à
formação do professor alfabetizador. Para que haja impacto nos modos de ensinar, é
preciso entender que aprender a ler pressupõe não só decifrar o código escrito, mas
também interpretar e compreender os textos de diferentes gêneros. Da mesma forma,
aprender a escrever envolve não somente o escrito, estabelecendo correspondência
entre letra e som, mas também a capacidade de produzir textos em diferentes situa-
ções de comunicação.

De acordo com Cagliari (1989, p. 73), a maior referência na área da linguística e de


alfabetização, apesar da leitura e da escrita constituírem atos linguísticos ligados à
oralidade, é que a criança, ao entrar na escola, “perde” toda a consciência que tem da
linguagem oral, para dar lugar a ensinamentos escolares desvinculados das práticas de
uso da linguagem anterior que a criança tinha.

O autor afirma que, se a escola e o professor alfabetizador não tratarem a escrita e


fala adequadamente, a dificuldade para lidar com a leitura e de como interpretá-la trará
impactos negativos para esse aluno em toda a sua vida escolar. É sabido que a alfabe-
tização começa muito antes do ingresso da criança na escola.

A alfabetização compreende várias esferas e para que ela se processe com competên-
cia, o papel do educador e a noção de como se dá o processo de aquisição da escrita
precisam considerar que a língua está em constante evolução.

Estudiosos do campo da linguística tecem fortes críticas às atividades puramente me-


cânicas que muitas escolas adotam para alfabetizar. Ninguém escreve sem motivo, sem
motivação (CAGLIARI, 1989, p. 87).

62
Uma estratégia de intervenção proposta por Cagliari parte das expectativas das crian-
ças. Ouvir o que elas sabem acerca da escrita e, partindo disso, discutir aspectos que
talvez as crianças ainda não tenham percebido sobre a linguagem escrita. 2

Indagações sobre: para o quê serve a escrita? Por que a usamos? Em quais situações?
também compõem o rol de questões importantes a serem levantadas junto aos alunos
para que eles possam entender e refletir sobre o uso da escrita.

Cagliari também defende que, em vez de propor redações sem sentido, o professor so-
licite escritas espontâneas, nas quais as crianças possam expressar seus desejos, an-
seios, seu cotidiano, criar histórias da imaginação, enfim, experienciar a autoria. Pode
ser necessário que o professor se torne escriba dessas produções.
Quadro 01. Questões a serem trabalhadas após a escrita de texto espontâneo

 Essa história pode ser ampliada? Qual é a parte da história que você pode-
ria escrever mais?

 Você pode trocar alguma parte da história, inverter? Isso pode melhorar o
que foi contado ou não?

 Dá para diminuir o que foi escrito sem que “fique faltando parte” da sua história?

 Existe alguma parte da história que você esqueceu de contar?

 Você pode trocar alguma palavra dessa história? Isso pode melhorá-la?

 Quer criar um final diferente para sua história?

Fonte: elaborado pela autora.

Esse tipo de intervenção na escrita do texto da criança pode ajudá-la a refletir sobre sua
produção e aprimorá-la.

O domínio da escrita representa, na sociedade, a maior fonte de poder no que se refe-


re ao conhecimento humano. O desenvolvimento de uma escrita coerente – capaz de
comunicar uma ideia, defender um ponto de vista – deve ser o objetivo da escola para
a formação de escritores autônomos.

Apesar de escrever e ler serem inerentes ao trabalho da alfabetização, sabemos que a


escrita é muito mais valorizada do que a leitura. Ler é tão importante quanto escrever
textos espontaneamente de autoria, pois a escrita pressupõe leitura, assim como a fala
pressupõe a escrita.

Cagliari (1989, p. 148) propõe que repensemos as práticas de leituras escolares, que,
além de serem pouco estimuladas, quando acontecem, vêm ligadas a propostas para
avaliar a pronúncia ou a capacidade de decifrar as letras.

O autor argumenta que a leitura pode (e deve) ser ensinada até antes da escrita, visto
que quem escreve só é capaz de fazê-lo com autonomia se souber ler o que escreveu.

Alfabetização e Letramento 63
As bases teóricas

Enfatiza ainda que, para além da técnica de leitura estar intimamente atrelada ao pro-
cesso de alfabetização, que a mesma deve ser ensinada e estimulada, por ser fonte de
2 prazer, de deleite, o que pode motivar as crianças.

De tudo que a escola pode oferecer de bom aos alunos, é a leitura, sem dúvida, o
maior, o melhor, a grande herança da educação. É o prolongamento da escola na vida
(CAGLIARI, 1989, p. 160).

4.1. LINGUÍSTICA E FORMAÇÃO DOCENTE


A importância da linguística no processo de alfabetização e a formação do professor para
que se dê com efetividade a sua proposta de ensino da língua materna são incontestáveis.

A língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma enorme variedade de dialetos e


regionalismos – estes se diferenciam em cada grupo social – o que reafirma a necessi-
dade do embasamento linguístico na formação do professor alfabetizador, para que o
mesmo não assuma uma postura de verificar o “certo” e o “errado” na alfabetização de
seus alunos, já que a alfabetização é um processo de ensino-aprendizagem da língua
materna e tem como objetivo dar ao aluno mais uma forma para além da comunicação
verbal: a escrita.

Por isso, é muito importante que o professor alfabetizador tenha conhecimento das
variações linguísticas existentes, dado que os alunos já chegam à escola usando pelo
menos a variante familiar da língua. Torna-se fundamental formar um usuário compe-
tente da língua, que seja capaz de usar os diversos recursos, de modo adequado, na
elaboração de textos, produzindo efeitos de sentido pretendidos em situações variadas
e específicas de comunicação e, ao mesmo tempo, que seja capaz de compreender os
sentidos veiculados pelos textos que recebe.

Assim, é primordial desenvolver a habilidade do professor alfabetizador, para que ele


possa realizar um ensino efetivo na competência comunicativa desse aluno. É impor-
tante explicitar que não temos a pretensão de que a linguística consiga resolver o pro-
blema da alfabetização, entretanto, vemos nela um caminho possível para que o profes-
sor realize seu trabalho, tendo uma perspectiva linguística que fomente as dificuldades
de leitura e de escrita perceptíveis ao longo do processo escolar dos alunos.

Partindo dessa teoria, a linguagem amplifica a sua importância, pois, além de constituir
um instrumento de interação entre os falantes em idade de alfabetização, é um fator que
também determina o desenvolvimento psicológico desses iniciantes no mundo letrado.

Uma criança que entra para a escola chega carregada de conhecimentos oriundos das
relações sociais – nas quais adquiriu um conhecimento e uma habilidade linguística muito
desenvolvida –, ou seja, já tem um dialeto, refletindo e refratando a sua realidade linguística.

Cagliari (1989, p. 17) postula: um dialeto não é simplesmente um uso errado do modo
de falar de outro dialeto. São modos diferentes. Essa mesma criança tem outras neces-
sidades, enquanto que o professor alfabetizador – por sua formação – tem como dever
conhecer os vários níveis que englobam a alfabetização: nível fonético-fonológico, nível
sintático-semântico, nível textual.

64
Conhecendo essas estruturas e sabendo como usá-las, o docente tem mais elementos
para mediar às dificuldades dos alunos. Contudo, embasado apenas nesse conheci-
mento, o professor alfabetizador não realizará um trabalho tão eficaz, uma vez que se 2
faz necessário que ele leve em conta as variações dialetais que seus alunos apresen-
tam, pois uma classe ou comunidade escolar nunca é homogênea no dialeto. Há ainda
variações históricas, geográficas e sociais, e, para tanto, o professor alfabetizador deve
conhecer e respeitar a fala dos alunos que irá ensinar, entendendo sua realidade lin-
guística, já que fazem parte de culturas diversas socialmente.

De acordo com Cagliari, cabe à escola não apenas ensinar o português, mas também
desempenhar um papel imprescindível de promover a visibilidade dos menos favorecidos
pela sociedade. Desse modo, o professor alfabetizador tem a missão de contribuir para o
conhecimento dessas variações linguísticas e de conduzir o trabalho para que compreen-
dam o seu mundo e o dos que os rodeiam, desmitificando o estigma de que a cultura e o
saber são apenas daqueles que fazem o uso da “norma culta”, do dialeto padrão.

Para que essa desmistificação aconteça, o professor necessita ter um conhecimento lin-
guístico, ensinando aos seus alunos a verdade linguística. Dessa forma, almeja-se que a
sociedade possa aceitar as diferenças linguísticas da comunidade que a compõem.

Em certas regiões brasileiras, é comum pessoas letradas, doutores, médicos, usarem,


na linguagem oral, a palavra “vinhé”, em vez de “vier”. Imagine uma criança na fase
inicial da alfabetização escrevendo um convite ao amiguinho e escreve “VINHÉ NA
MINHA CASA”. Esse termo, é claro, precisa ser abordado, mas com todo o respeito
à pluralidade cultural que essa frase carrega, pois, a princípio, a criança usa a escrita
como representação da fala. Se essa fala carrega marcas da oralidade permeadas pela
variação linguística do entorno em que vive, é esperado que possíveis “erros” surjam.

Sabemos que, infelizmente, muitos alfabetizadores se preocupam muito mais com o en-
sino da gramática descontextualizada, estabelecida pela sociedade, e que ignoram as
variantes dialetais. Isso acaba por impor, muitas vezes, sem perceber, a norma da fala
da classe dominante, esquecendo-se do papel fundamental que a oralidade ocupa, o
que gera um desconforto aos seus alunos, fazendo com que muitos se calem por medo
de não atenderem ao que é considerado “correto”.

Os critérios que determinam os padrões de uma língua se estabelecem, essencialmen-


te, pela ação da escola e dos meios de comunicação, levando os falantes de um idioma
a aceitar como “correto” o modo de fala das camadas sociais mais privilegiadas, tanto
no aspecto econômico como no cultural.

O que ocorre é que a maneira segundo a qual esse grupo faz o uso da língua vai se im-
pondo como um padrão da gramática normativa para estabelecer os conceitos de “certo
e errado”. O professor pauta-se nesse padrão para o ensino da língua materna, sem ao
menos oferecer ao estudante possibilidades de interpretar, de maneira coerente, que
o modo de sua fala não é “errado”, mas diferente de certas situações. Cabe, então, ao
professor oportunizar o ensino, para que o aluno domine as estruturas, as normas da
língua culta, a fim de que, quando for conveniente, ele tenha condições de utilizá-la sem
perder sua identidade.

Alfabetização e Letramento 65
As bases teóricas

É muito importante que o professor, especialmente aquele que trabalha na fase de


alfabetização, não queira impor ao aluno o que a sociedade acha correto, mas mostrar-
2 -lhe maneiras de como usar a língua culta e, ainda, que existem contextos nos quais a
língua informal pode ser sim utilizada sem o preconceito linguístico.

Quando uma pessoa se comunica com outras, para que esse ato se concretize de for-
ma eficiente, é necessário que ela realize a adequação da linguagem. Isso posto, se o
professor alfabetizador tiver essa consciência, será muito mais fácil de ensinar a criança
sobre as regras gramaticais a serem utilizadas. Fiorin afirma que:
São inúmeros os fatores que, individualmente ou combinados, interferem no
modo como o falante ajusta sua linguagem às circunstâncias do ato de co-
municação. Entre esses fatores, destacam-se: O interlocutor – não se fala do
mesmo modo com um adulto e uma criança; O assunto – falar sobre a morte
de uma pessoa amiga requer uma linguagem diferente da usada para lamentar
a derrota do time de futebol; A relação falante-ouvinte – não se fala da mesma
maneira com um amigo e com um estranho; em que uma situação social infor-
mal e em uma formal. (FIORIN, 2004, p. 78)

Como o termo linguagem pode ter um significado abrangente, ele pode referir-se desde
à linguagem dos animais até outras formas de linguagens: música, dança, pintura, arte,
mímica etc. Faz-se necessário destacar que a Linguística se detém somente na investi-
gação científica da linguagem verbal humana. No entanto, é preciso salientar que todas
as formas de linguagens (verbais e não verbais) comungam de uma característica im-
portante: são sistemas de signos usados para a comunicação. A Linguística é, portanto,
uma parte dessa ciência geral; ela estuda a principal modalidade dos sistemas sígnicos,
as línguas naturais, que são a forma de comunicação mais altamente desenvolvida e de
maior uso (FIORIN, 2004, p. 17).

A educação linguística, de que tanto se fala, engloba um conjunto de fatores sociocultu-


rais que acompanham um indivíduo e possibilitam desenvolver seu conhecimento sobre
a língua materna.

Posto isso, podemos dizer que a educação linguística de cada indivíduo começa no
início da sua vida, nas relações com outros indivíduos: família, escola e comunidade
em que está inserido, formando um conjunto de dialetos que compõem uma sociedade.

A educação, neste contexto atual, necessita de uma análise no que se refere ao cená-
rio das relações entre língua e sociedade, visto que ainda há um equívoco acerca dos
modos como se ensina a língua materna, que desrespeita a fala e o dialeto de cada
falante. Frente a esse cenário, é de grande relevância que o professor alfabetizador
tenha como cerne a sua formação continuada, em busca de aprender a aprender, ou
seja, aprender como ensinar a língua materna, buscando uma formação integral, para
que possa ensinar com propriedade, superando as velhas práticas pedagógicas de um
ensino mecanizado da tradição normativa da língua.

Isso acaba por resultar em uma rejeição por parte dos educadores alfabetizadores e
de ensino da língua materna – bem como dos documentos que regem as políticas de
ensino, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de Língua Portuguesa e os
PCN do Ensino básico –, tendo esses educadores a dificuldade de dialogar com a ideia

66
de inovação, de interação com o novo, pois não foram apresentados a esse tipo de
reflexão em sua formação.
2
Corroborando com tal afirmação, temos alguns livros didáticos disponibilizados pelo
Ministério da Educação (MEC) que foram erroneamente interpretados. Um protótipo é
o livro didático para o ensino da Educação para Jovens e Adultos (EJA), lançado pela
Editora Global (Coleção Viver e Aprender1 – Para uma vida melhor), cuja proposta era
a de trabalhar as variedades linguísticas e estabelecer um novo modo de se ensinar
uma gramática mais reflexiva no que tange à linguística. O livro traz expressões como
“nós pega os peixe” ou “os menino pega o peixe” e é o único título de português que
circulou para esse segmento de ensino pelo Programa Nacional do Livro Didático para
a Educação de Jovens e Adultos do MEC.

Explicita-se a urgência na reflexão e ação de propostas que sejam capazes de suprir


uma demanda social com relação ao ensino da língua materna nos cursos superiores,
na formação de seus docentes e na formação de seus licenciados. Os professores pre-
cisam deixar essa concepção prefixada construída ao longo de sua vida estudantil que
marca o que é o certo e o que é o errado.

É evidente que a norma padrão precisa ser ensinada ao longo do processo de alfabeti-
zação, entendendo-se, num sentido mais amplo, que alfabetizar não é somente ensinar
a ler e a escrever, mas criar condições para que a formação desse sujeito seja plena
e participativa na sociedade na qual ele está inserido, considerando-se as variedades
linguísticas existentes.

Esse trabalho implica a formação desse docente, que deve alicerçar-se numa pedago-
gia que se coloque contra o tradicionalismo – que ignora a profundidade da educação,
na busca de ideias e técnicas mais eficientes para a alfabetização de seus alunos –,
tendo como tarefa principal propiciar a educação linguística, oferecendo propostas teó-
ricas e práticas que visem o interesse e a necessidade do aluno, adequando, portanto,
a suas variedades linguísticas.

Cabe às instituições de cursos superiores enfatizar e despertar em seus alunos o re-


conhecimento e entendimento das especificidades da língua portuguesa e o modo de
como isso poderá interferir na prática pedagógica, no que diz respeito ao ensino da
linguística dos falantes e/ou à fala dos sujeitos.

Com a compreensão dos modos pelos quais se processa a aprendizagem e sobre qual
modelo deve prevalecer para o pleno desenvolvimento dos sujeitos falantes, que fazem
uso de dialetos diferentes do português escrito, permite-se ao professor conhecer melhor

1
Viver, Aprender é uma coleção de livros dedicada à Educação de Jovens e Adultos (EJA) desenvolvida pela
ONG Ação Educativa, em parceria com a Global Editora. Voltadas à Alfabetização, ao Ensino Fundamental e
ao Ensino Médio, as obras trazem conteúdos atualizados e de acordo com as indicações presentes no PNLD,
definidas pelo Ministério da Educação. Vale ressaltar que o volume de Alfabetização pode ser adotado separa-
damente nas turmas do Programa Brasil Alfabetizado (PBA) e com alunos das escolas públicas que mantenham
turmas exclusivamente de alfabetização de jovens e adultos. O conteúdo desse volume e o do volume 1 do 1º
segmento – Cultura escrita, trabalho e cotidiano – é o mesmo.

Alfabetização e Letramento 67
As bases teóricas

seus alunos e seu universo linguístico, oferecendo materiais diversos, que não se restrin-
jam às variedades cultas, mas que ampliem o repertório de seus alunos. As instituições
2 formadoras desses alfabetizadores têm de rever as práticas desse profissional, para que
este tenha domínio da escrita e da linguagem para maior fonte de métodos e técnicas.

O professor alfabetizador não deve apenas satisfazer as necessidades do aluno, mas


também despertar novas necessidades, organizando métodos, conteúdos e modelos.
Dessa forma, faz-se necessário que a formação técnica do professor seja referência
(MEYER; BERTAGNA, 2006, p. 62).

No âmbito da formação docente, em 2011 o MEC deu início ao Programa de Formação


continuada em Alfabetização (PROFA) e, posteriormente, ofereceu o Pró-Letramento,
Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, cujos objetivos mais ampliados en-
globam a formação do professor do Ensino Fundamental.

Muitos estados e municípios foram contemplados por esses programas, contudo, ainda
há muita resistência em aderir a eles e muitos dos que aderem desistem por falta de
incentivo do próprio governo ao atrasar o valor da bolsa estipulada para a engajamento
do professor, por exemplo.

Na formação do professor alfabetizador, deveria ser dada mais ênfase à linguística,


para que, ao estar em sala de aula com os alunos falantes de formas diferentes, esse
profissional saiba respeitar a maneira deles se expressarem, ao considerar o contexto
onde vivem e a fala que trazem do seio familiar, mostrando as adequações na escrita
sem julgá-los pelo seu modo de falar. Conclui-se que o trabalho no campo da linguística
para os profissionais da educação pode favorecer um trabalho mais eficiente.

SAIBA MAIS
O renomado pesquisador Luiz Carlos Cagliari falou à TV Imago sobre sua trajetória de pesquisa, alfabe-
tização, publicações e futuros projetos.

Assistam:

https://www.youtube.com/watch?v=402VzZlINGU. Acesso em: 1 dez. 2020.

CONCLUSÃO
Nesta unidade, pudemos adensar a discussão sobre as contribuições da psicologia
para o processo de alfabetização, destacando a importância que as pesquisas da psi-
cologia trouxeram para o redimensionamento das práticas alfabetizadoras.

O trabalho de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky, A Psicogênese da língua escrita, repre-


senta um importante marco, pois foi a partir da pesquisa das duas autoras argentinas
que se passou a olhar para o quê as crianças produziam em seus processos de cons-
trução da linguagem escrita e a entender que havia intencionalidade – que mesmo as
letras grafadas no papel de forma desordenadas eram tentativas, elaborações, ensaio
e erro das crianças na busca pelo aprender a escrever.

68
A proposta de se pensar a alfabetização como um processo discursivo, que se sustenta
na teoria histórico-cultural postulada por Lev Vigotski e seus colaboradores, surge para
trazer as relações como constitutivas para o desenvolvimento da escrita das crianças 2
na fase inicial da alfabetização. Destaca-se o papel do outro, a mediação – dos pares e
dos professores – colocando em perspectiva o ato de ensinar, de se ensinar uma escrita
em movimento, atendendo à sua função social.

Por fim, ao versar sobre influência da linguística para o trabalho com alfabetização, evi-
denciou-se a importância da escrita de textos espontâneos e o lugar que a leitura deve
ocupar no trabalho com a alfabetização, bem como a formação docente pautada nas
questões próprias da linguística, especialmente no que se refere às variações linguísti-
cas que encontramos no extenso território brasileiro.

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70
2

Alfabetização e Letramento 71
Os conceitos de alfabetização e de letramento nos documentos oficiais
UNIDADE 3

OS CONCEITOS DE ALFABETIZAÇÃO E DE
3 LETRAMENTO NOS DOCUMENTOS OFICIAIS

INTRODUÇÃO
Iniciaremos falando sobre o tema Gêneros Textuais, que, em nosso país, entrou em cena
a partir da implementação, em todo o território nacional, dos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCNs), em 1998, que consistem em um documento de orientação materialista
histórico-dialética. Esse documento, com base nas teorias e concepções sobre a lingua-
gem, o aprendizado e o desenvolvimento do sujeito de Vigotski e de Bakhtin, indica ao
professor uma prática reflexiva em textos – sejam eles do aluno, sejam eles de outros
autores – baseada numa das teorias dos gêneros textuais e na gramática reflexiva.

O trabalho com texto desde a fase inicial da escrita é um desafio, porém, mostra-se
bastante fecundo.

Num segundo momento, abordaremos as prescrições oficiais para a alfabetização: revi-


são histórica do conceito de alfabetização nas leis e documentos oficiais; Constituição:
LDB e PCNs e BNCC, e como essas legislações impactam na prática docente.

Alfabetização e inclusão são temas que vêm para fechar esta unidade. Discorreremos.
Primeiramente. sobre o conceito de inclusão e o que esse conceito carrega em termos
de mudanças de práticas em sala de aula, na busca por uma educação de qualidade
a todos. Na sequência, traremos algumas possibilidades do trabalho de alfabetização
para crianças com deficiência.

1. LETRAMENTO E GÊNEROS TEXTUAIS – CONCEITOS DE


GÊNEROS TEXTUAIS, O TRABALHO COM GÊNEROS NO
PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO

Considero a produção de textos (orais e escritos) como ponto de


partida (e ponto de chegada) de todo o processo de ensino/aprendi-
zagem da língua. E isto não apenas por inspiração
ideológica de devolução do direito à palavra às classes
desprivilegiadas, para delas ouvirmos a história, contida e não conta-
da, da grande maioria que hoje ocupa os bancos escolares.

Sobretudo, porque é no texto que a língua – objeto de estudos – reve-


la-se em sua totalidade[...].

(GERALDI, 2013, p. 135)

72
Até o final da década de 80, pouco se falava sobre “gêneros textuais” em território brasi-
leiro. Apenas linguistas e pesquisadores especialistas se debruçaram sobre esse tema.
Em 1998, com os Parâmetros Curriculares Nacionais se tornando documento orientador
obrigatório em todo país, os gêneros textuais passaram a integrar o campo educacional. 3
Nas pesquisas a respeito do tema: gêneros do discurso realizados no Brasil, Bakhtin é um
dos autores mais citados. Porém, podemos observar uma grande diversidade conceitual
em estudos embasados por sua análise dos gêneros. Isso resulta de uma concepção não
hegemônica do conceito de gêneros. Existe ainda, a questão das diferentes interpreta-
ções e apropriação dessa noção pelos estudiosos desse campo de conhecimento.

No entanto, os PCNs (1998), documento oficial, até a chegada da Base Nacional Co-
mum Curricular (BNCC), sustenta-se nas teorias e concepções sobre a linguagem vi-
gotskiana e bakhtiniana – é o que norteia o fazer pedagógico docente sobre essa ques-
tão do trabalho com gêneros textuais na escola. Esse documento indica ao professor
uma prática reflexiva e um intenso trabalho com o texto – seja ele autoral do próprio
aluno, seja ele de outros autores como suporte para o trabalho com a leitura – pautado
numa das teorias dos gêneros textuais e na gramática reflexiva.
Figura 01. Cena de leitura em sala de aula

Fonte: 123RF.

Na sociedade em que vivemos, textos fazem parte de nosso cotidiano: placas, bulas,
letreiros, revistas, murais, panfletos, mensagens de celular, livros, revistas, rótulos, en-
fim, uma infinidade de textos nos rodeiam.

Os gêneros textuais surgem, situam-se e integram-se funcionalmente nas culturas em


que se desenvolvem. Caracterizam-se mais pelas funções comunicativas, cognitivas
e institucionais, do que pelas peculiaridades linguísticas e estruturais.

Alfabetização e Letramento 73
Os conceitos de alfabetização e de letramento nos documentos oficiais

Os gêneros estão relacionados à prática social, ao uso da linguagem de que é constituin-


te, por exemplo: uma receita é lida em momentos de culinária, uma bula é lida quando há
necessidade de se medicar, e, assim, sucessivamente. As práticas sociais de utilização da
3 linguagem são intimamente determinadas pela instância discursiva de que são originárias.

A ideia de gêneros textuais, postulada pelo linguista brasileiro Luiz Antônio Marcuschi
(2005), também referência, é a de que:
Fruto de trabalho coletivo, os gêneros contribuem para ordenar e estabilizar
as atividades comunicativas do dia a dia. São entidades sociodiscursivas e
formas de ação social incontornáveis em qualquer situação comunicati-
va. No entanto, mesmo apresentando alto poder preditivo e interpretativo das
ações humanas em qualquer contexto discursivo, os gêneros não são instru-
mentos estanques e enrijecedores da ação criativa. Caracterizam-se como
eventos textuais altamente maleáveis, dinâmicos e plásticos. Surgem apare-
lhados à necessidades e atividades socioculturais, bem como na relação com
inovações tecnológicas, o que é facilmente perceptível ao se considerar a
quantidade de gêneros textuais hoje existentes em relação a sociedades
anteriores à comunicação escrita. (MARCUSCHI, 2005, p. 20, grifos nossos)

Faz-se necessário destacar que os gêneros são dinâmicos e permeáveis, maleáveis, po-
dendo se moldar de acordo com as demandas sociais, bem como podem emergir gêneros
novos ao longo da história, muitas vezes substituindo gêneros anteriores, por exemplo, uma
mensagem de texto via celular ser a versão moderna do antigo bilhete. Novos gêneros não
são uma inovação absoluta, pois estão ancorados em outros gêneros já existentes.
Figura 02. Exemplos de gêneros que nasceram de outros gêneros

Alguns exemplos

 Telefonema - similaridade com a conversação que tem pré-existência a ele,


mas que se realiza com características próprias

 Diferenciação - conversação face a face e um telefonema – estratégias que


são peculiares

 E-mail gera mensagens eletrônicas – cartas e bilhetes são seus antecessores

 Gêneros emergentes - nova relação que se instaura com os usos da lingua-


gem; relação oralidade/escrita – desfaz-se mais suas fronteiras

Fonte: elaborada pela autora.

Outro fator relevante a ser analisado nos estudos sobre gêneros textuais é o fato de que
eles podem se misturar entre si, ou seja, há uma hibridização, fato que ocorre quando
um gênero assume a função de outro.

Temos como exemplos desse hibridismo: um texto publicado numa revista científica é um artigo
científico, enquanto mesmo texto veiculado em um jornal diário é um artigo de divulgação cientí-
fica. Embora seja o mesmo texto, não tem a mesma classificação para a comunidade científica.
Na hierarquia de valores da produção científica, ocupam lugares distintos. A priori, o “mesmo

74
texto” e “mesmo gênero” não são automaticamente equivalentes, por não estarem no mesmo
suporte. O suporte, esse portador que carrega o texto, é de extrema importância. Marcuschi
(2003, p. 10) definiu o suporte de um gênero como “um lócus físico ou virtual, com formato
específico, que serve de base ou ambiente de fixação do gênero materializado como texto”. 3

1.1. TIPO E GÊNERO TEXTUAL: O QUE SÃO?


Tipo textual é definido como a forma que um texto se apresenta, seu conteúdo e seu
padrão estético. É importante destacar também seu aspecto teórico e estabelecer a
distinção entre tipo textual e gênero textual.

Um texto se materializa por meio de uma seleção de palavras, vocabulários e frases e


de um modo de organização discursiva. Os tipos textuais (tipologia) são as classifica-
ções dadas à estrutura linguística padrão segundo a qual o texto é produzido. Os tipos
textuais mais usados são: narrativo, descritivo, dissertativo, expositivo e injuntivo.

Já os gêneros textuais referem-se às estruturas dos textos, sejam orais ou escritas. São so-
cialmente reconhecidas, pois são compostas por características comuns e intenções de co-
municação semelhantes. Os gêneros textuais são estruturas particulares que se formam a
partir dos diferentes tipos de texto. Essas estruturas dão forma aos textos e fazem com que
estes assumam um padrão. O que diferencia os gêneros textuais é o modo como cada um
cumpre sua função de comunicação de acordo com sua finalidade, estabelecendo um padrão.

É o gênero textual que nos dá pistas para que possamos distinguir um bilhete ou uma
carta de uma lista de compras ou um artigo, por exemplo.

Tabela 01. Gêneros textuais

GÊNEROS TEXTUAIS
Poesia

Reportagem

Resenha

Entrevista

Receita culinária

Tabela 02. Tipos textuais

TIPOS TEXTUAIS
Narrativo

Descritivo

Dissertativo

Expositivo

Injuntivo

Fonte: elaborado pela autora.

Alfabetização e Letramento 75
Os conceitos de alfabetização e de letramento nos documentos oficiais

Os tipos textuais são definidos como:


[c]onstructos teóricos definidos por propriedades linguísticas ou sequencias de
enunciados no interior dos gêneros e não são textos empíricos; sua nomeação
3 abrange um conjunto limitado de categorias teóricas determinadas por aspectos
lexicais, sintáticos, relações lógicas, tempo verbais; designações teóricas dos
tipos: narração, argumentação, descrição, injunção. (MARCUSHI, 2005, p. 23)

Isso posto, podemos entender que um gênero textual, tal como um e-mail, pode encon-
trar uma variedade de sequências tipológica textuais: narrativa, injuntiva, expositiva,
argumentativa, entre outras. Cabe a ressalva de que o inverso também pode acontecer,
ou seja, um tipo textual pode estar associado a diversos gêneros.

A comunicação humana se dá por meio de textos. Bakhtin trouxe, pela primeira vez, o
conceito de gênero discursivo, definindo-o como “tipos relativamente estáveis de enun-
ciados” (BRAIT, 2006, p. 24).

Na teoria bakhtiniana, temos a ideia de que os gêneros do discurso resultam em formas-


-padrão “relativamente estáveis” de um enunciado e são determinadas historicamente.
Só somos capazes de nos comunicarmos, seja pela fala ou pela escrita, por meio de
gêneros do discurso. Mesmo durante uma conversa informal, o discurso é moldado
pelo gênero em uso. De acordo com Bakhtin, os gêneros nos são ofertados “quase da
mesma forma com que nos é dada a língua materna, a qual dominamos livremente até
começarmos o estudo da gramática” (BAKHTIN, 2003, p. 282).

Para o autor russo, a língua é viva, e, portanto, deve ser vista por meio do enunciado.
Os gêneros primários referem-se a situações comunicativas do dia a dia, espontâneas,
mais corriqueiras e informais, que sugerem uma comunicação imediata, normalmente
no âmbito familiar, por exemplo a carta, o bilhete, o diálogo cotidiano.

Os gêneros secundários, por sua vez, estão intimamente ligados à linguagem escrita,
que será trabalhada, oficialmente e intencionalmente, na escola, circulando nas esferas
mais públicas da sociedade.

Os gêneros secundários se constituem a partir dos gêneros primários, que fazem parte
da vida de qualquer sujeito, independentemente de seu grau de conhecimento sobre a
linguagem escrita formal. Os gêneros secundários, na maioria das vezes, são mediados
pela escrita e se evidenciam em situações comunicativas mais complexas, como em
uma palestra, em uma apresentação teatral, por exemplo. Os gêneros são os mesmos,
o que os diferencia, é o nível de complexidade em que se apresentam.
Os gêneros não são entidades naturais como as borboletas, as pedras, os rios
e as estrelas, mas são artefatos culturais construídos historicamente pelo ser
humano. Não podemos defini-los mediante certas propriedades que lhe devam
ser necessárias e suficientes. Assim, um gênero pode não ter uma determina-
da propriedade e ainda continuarem sendo aquele gênero. Por exemplo, uma
carta pessoal ainda é uma carta, mesmo que a autora tenha esquecido de as-
sinar o nome no final e só tenha dito no início: querida mamãe (MARCUSCHI,
2005, p. 30).

Os gêneros são heterogêneos e representam possibilidades de comunicação, seja


oral ou escrita, e têm suas funções sociais, por isso se modificam, para atender

76
à demanda cultural, à tecnologia que surge, enfim, são plásticos, e atendem às
necessidades da sociedade.

1.2. GÊNEROS TEXTUAIS ORAIS 3

“É impossível se comunicar verbalmente a não ser por algum


gênero, assim como é impossível se comunicar verbalmente a
não ser por algum texto”.

(MARCUSCHI, 2001, p. 45)

Usamos muito mais a oralidade do que a linguagem escrita. Pela linguagem oral nos
comunicamos, pela fala é que participamos de uma roda de conversa na sala de aula,
por exemplo. É também por intermédio da fala que, muitas vezes, exigimos nossos
direitos como cidadãos, defendemos nosso ponto de vista, enfim, nos relacionamos.
“Quando falamos, fornecemos informações sobre a nossa identidade social e sobre as
nossas diversas competências em nos comunicar com pessoas/ públicos diferentes e
em situações distintas” (BENTES, 2012, p. 269).
Figura 03. Roda de conversa

Fonte: acervo da autora.

Pensando na relação entre as linguagens oral e escrita, podemos dizer que há uma
complementaridade: gêneros orais e gêneros escritos se intercruzam, fundem-se. A
linguagem oral é, relativamente, não planejável, ou seja, o planejamento e verbalização
acontecem de forma simultânea.

Alfabetização e Letramento 77
Os conceitos de alfabetização e de letramento nos documentos oficiais

É possível, portanto, afirmar que a oralidade está imbricada na escrita e “vice-versa”.


Marcuschi (2001, p. 56) propõe a noção de continuum oral-escrito, que organiza os gê-
neros de acordo com o modo de produção (se falado ou escrito) e com critérios outros
3 tais como a distinção entre certos aspectos tipológicos (textos instrucionais, exposições
acadêmicas) e discursivos (comunicação pública privada, diferentes gêneros textuais).

Podemos dizer que a fala e a escrita estão conjugadas nas práticas de oralidade e
letramento. Tanto o texto escrito carrega marcas típicas da oralidade como a oralidade
apresenta marcas do escrito.

A escola pode ensinar muito mais que comunicação ao desenvolver a oralidade, pro-
movendo situações nas quais o aluno tenha a necessidade de se expressar pela fala.
Figura 04. Exemplos de situações de oralidade que podem
ser trabalhadas em sala de aula

DEBATE ENTREVISTA

• Domínio de informações que sustentem


argumentos, de modo a favorecer posiciona- • Em geral, preparada por escrito, previamente;
mentos e “alimentar” polêmicas;

• Regras definidas previamente para que haja a • Pressupõe conhecimento prévio do entrevis-
participação dos interlocutores; tado e do interlocutor;

• Pode contar com os momentos de espontanei-


• Respeito às opiniões contrárias, “diferentes”
dade – os quais devem atender ao planejamen-
manifestadas pelos interlocutores;
to prévio estabelecido;

• Geralmente, apresenta um mediador que as-


• Uma entrevista oral pode se transformar em
segura o cumprimento das regras e reforça a
texto escrito para ser publicado.
necessidade de respeito entre interlocutores.

PALESTRA GENÊROS DA TRADIÇÃO ORAL

• Pode ser mais ou menos formal – importân- • Textos que se originam de práticas sociais e
cia da adequação da variante linguística ao circulam de geração a geração em sua modali-
público-alvo; dade oral. Exemplo: parlendas;

• Extremamente planejada no que diz respeito a


• Funções lúdicas e afetivas – fundamentais na
recursos linguísticos e multissemióticos (tom de
constituição da subjetividade;
voz, elementos visuais e gestuais);
• Em geral, pressupõe “monopólio da fala” • Material privilegiado para a reflexão sobre o
pelo palestrante, com eventuais interrup- sistema de escrita alfabética, devido a inúme-
ções (em geral, determinadas e regradas, ras características, dentre as quais o fato de
dos participantes). serem curtos, memorizáveis e sonoros.

Fonte: elaborado pela autora.

78
O trabalho com os gêneros orais também se mostra importante para o desenvolvimento
da criatividade. A capacidade de expressar suas ideias, defender seus pontos de vista,
argumentar, questionar, enfim, colocar-se enquanto sujeito de direitos, também faz
parte dos ensinos escolares. 3
Nas diversas situações sociais do cotidiano do indivíduo que se coloca fora dos muros
da escola – a busca de serviços, as tarefas profissionais, os encontros institucionaliza-
dos, a defesa de seus direitos e opiniões – os alunos serão avaliados (aceitos ou não),
à medida que forem capazes de responder a diferentes exigências de fala.

Cabe à escola ensinar o estudante a utilizar a linguagem oral no planejamento e reali-


zação de apresentações públicas: de entrevistas, debates, seminários, apresentações
orais, teatrais etc. Trabalhando essas situações de forma que façam sentido, em situa-
ção real de comunicação.

Marcuschi (2008, p. 18) afirma que – mais importante e urgente do que identificar prima-
zias ou supremacias entre oralidade e letramentos, e até mesmo mais urgente do que
observar oralidade e letramentos como simples modos de uso da língua – é a tarefa de
esclarecer a natureza das práticas sociais que envolvem o uso da língua, seja escrita
ou falada, de um modo geral.

Essas práticas determinam o lugar de relevância da oralidade e das práticas do letra-


mento numa sociedade e justificam que a questão da relação entre ambos seja posta
no eixo de um contínuo histórico-cultural de práticas. Assim, fica explicitado que não
basta ensinar oralidade, mas seu ensino deve ocorrer levando-se em consideração as
práticas sociais. É preciso saber falar adequadamente em diferentes situações comu-
nicativas, isto é, utilizar uma linguagem mais formal em uma entrevista de emprego e
mais informal em uma conversa com os amigos.

EXEMPLO
Vejam situações com gêneros orais

Vídeo do Gabriel Pensador na Hora da Leitura, com as crianças de EMEI em SP

http://youtu.be/z2_VVAe6EGI. Acesso em: 26 jan. 2021.

TV Piá: Menino brinca de boneca?

http://youtu.be/heCKfR83kQI. Acesso em: 26 jan. 2021.

Um pé de que – Formiga

https://www.youtube.com/watch?v=EoL4DKl9CmU. Acesso em: 26 jan. 2021.

Alfabetização e Letramento 79
Os conceitos de alfabetização e de letramento nos documentos oficiais

1.3. GÊNEROS TEXTUAIS E O ENSINO


Quando os PCNs recomendam que o trabalho com o texto seja feito com base dos
gêneros, orais ou escritos, é isso que ele prevê: a linguagem sendo posta em uso, cum-
3 prindo sua função social. Os textos se materializam por intermédio de um gênero textu-
al, assim, um conhecimento maior do funcionamento dos gêneros textuais é importante
tanto para a produção como para a compreensão do texto.

O ensino pautado nos gêneros textuais é uma oportunidade de lidar com a linguagem
oral e escrita nos seus mais diversos usos autênticos no dia a dia (MARCUSHI, 2005,
p. 73). O estudo dos gêneros nos permite compreender o que ocorre com a linguagem
quando a empregamos em uma determinada situação.

Os defensores dos gêneros textuais afirmam que usar os gêneros como instrumentos
de ensino na escola dá mais sentido ao fazer escolar, porque os aproxima da língua
que é usada em nosso cotidiano, da linguagem em movimento, seja em comunicações
formais ou informais.

As situações comunicativas nas quais os gêneros estão inseridos, mostram-se essen-


ciais para o ensino, especialmente por envolver um contexto, uma situação concreta,
vivenciada pelo indivíduo que compõe ou representa o discurso. Dessa forma, o gênero
se firma como uma ferramenta de aquisição de conhecimentos discursivos para profes-
sores e alunos em sala de aula, dialeticamente.
[...] é devido a essas mediações comunicativas, que se cristalizam na forma de
gêneros, que as significações sociais são progressivamente reconstruídas. Dis-
so decorre um princípio que funda o conjunto de nosso enfoque: o trabalho
escolar, no domínio da produção de linguagem, faz-se sobre os gêneros,
quer se queiram ou não. Eles constituem o instrumento de mediação de
toda a estratégia de ensino e do material de trabalho, necessário e inesgo-
tável, para o ensino da textualidade. A análise de suas características fornece
uma primeira base de modelização instrumental para organizar as atividades de
ensino que esse objeto de aprendizagem requer. (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004,
p. 51, grifos nossos)

De acordo com Schneuwly e Dolz (2004), os gêneros são mediadores das


situações de ensino.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais definem que todo texto se organiza dentro de um


determinado gênero. Os vários gêneros existentes, por sua vez, constituem formas re-
lativamente estáveis de enunciados, disponíveis na cultura, caracterizados por três ele-
mentos: conteúdo temático, estilo e construção composicional (BRASIL, 1997, p. 26).

Podemos ainda afirmar que a noção de gêneros se refere a “famílias” de textos que
compartilham algumas características comuns, embora heterogêneas, como visão ge-
ral da ação à qual o texto se articula, tipo de suporte comunicativo, extensão, grau de
literalidade, por exemplo, existindo em um número quase ilimitado.

É importante destacar que os gêneros são datados historicamente e as intenções comu-


nicativas impulsionam os usos sociais que determinam os gêneros que delineiam, dão
forma, ao texto, isso como parte das condições concretas de produção dos discursos.

80
As produções dos estudantes nos revelam muito sobre isso. Muitas vezes, as crian-
ças trazem em seus textos marcas como “era uma vez”, para iniciar o texto, ou “foram
felizes para sempre”, para finalizá-lo, o que nos remete, automaticamente, ao gênero
conto. Pensando nos gêneros orais, ao escutar a expressão “senhoras e senhores”, a 3
expectativa é a de ouvir uma apresentação de espetáculo, pois se sabe que nesses
gêneros essas marcas são características.

Dessa mesma forma, podemos reconhecer outros gêneros, como e-mails, cartas, re-
portagens, anúncios, poemas, notícias etc. O emprego dos gêneros textuais amplia
as possibilidades de trabalho com a língua em seus mais diversos usos e aponta para
novos caminhos possíveis para as práticas pedagógicas.

SAIBA MAIS
Leia: Os diferentes textos em salas de alfabetização. Ano 01; Unidade 05. In: Pacto Nacional pela
Alfabetização na Idade Certa Ministério da Educação Secretaria de Educação Básica Diretoria de Apoio
à Gestão Educacional Brasília 2012.

Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/obeducpacto/files/2019/08/Unidade-5.pdf. Acesso em: 27 jan. 2021.

1.4. O TRABALHO COM GÊNEROS NO PROCESSO


DE ALFABETIZAÇÃO
Ao pensarmos a alfabetização para além do processo de reconhecer e grafar códigos de
nosso sistema alfabético de escrita – assumindo a alfabetização numa perspectiva dis-
cursiva – a escrita deve ter sentido para a criança e sua principal função é a de comunicar.

Dessa forma, o trabalho com a produção de texto pode ser mais significativo para o estu-
dante, pois é mediante a contextualização da escrita no processo de alfabetização que a
criança se torna capaz de se apropriar da linguagem escrita em seus múltiplos contextos.

A alfabetização refere-se ao processo de aquisição de leitura e de escrita de determinada


língua. Um indivíduo alfabetizado é apto a ler e escrever de forma autônoma. Atualmente,
sabemos que ler e escrever não se restringe à capacidade de codificar e decodificar o signo
linguístico, mas sim a comunicar a sua escrita, bem como compreender o sentido do texto
lido, levando-se em conta o contexto de produção, tanto histórica, social quanto ideologica-
mente, já que a língua é constantemente afetada pela cultura na qual está inserida.

O ensino de leitura e escrita precisa considerar as práticas sociais. O conceito de letra-


mento emerge neste cenário: alfabetização com sentido, o ensino da língua escrita em
movimento, considerando-se a sua função social.

Soares ainda explica que:


Letramento é o estado em que vive o indivíduo que não só sabe ler e escrever,
mas exerce as práticas sociais de leitura e escrita que circulam na sociedade
em que vive: sabe ler e lê jornais, revistas, livros; sabe ler e interpretar tabelas,
quadros, formulários, sua carteira de trabalho, suas contas de água, luz e te-
lefone; sabe escrever e escreve cartas, bilhetes, telegramas sem dificuldade,
sabe preencher um formulário, sabe redigir um ofício, um requerimento. (SO-
ARES, 1998, p. 26)

Alfabetização e Letramento 81
Os conceitos de alfabetização e de letramento nos documentos oficiais

Segundo Bakhtin (2003),


a língua materna, seu vocabulário e sua estrutura gramatical não conhecemos
por meio de dicionários ou manuais de gramática, mas graças aos enunciados
3 concretos que ouvimos e reproduzimos na comunicação efetiva com as pesso-
as que nos rodeiam. (BAKHTIN, 2003, p. 326)

A linguagem escrita deve ser ensinada levando-se em conta as práticas sociais, prepa-
rando o educando para agir e entender diferentes situações de comunicação.

Por isso, o trabalho com o texto em sala de aula se torna essencial desde as etapas
mais iniciais de alfabetização – o texto como pretexto para que a criança se arrisque e
elabore suas hipóteses de escrita.

A escrita significativa – seja de uma lista de compras, um bilhete, uma receita para um
a culinária – torna-se o combustível para que a criança se interesse por essa apren-
dizagem e se alfabetize. Abaixo, temos uma lista elaborada durante uma aula-passeio
ao zoológico. Podemos observar que a escrita dos nomes dos animais encontrados
se torna significativa. A lista foi produzida a partir da proposta de se registrar o que se
observou na aula-passeio.
Figura 05. Aula-passeio e trabalho com gênero Lista

Fonte: acervo da autora.

Outro exemplo concreto é a escrita de correspondências propostas por Freinet (ano,


p. ), em que os alunos escrevem cartas para correspondentes reais e que serão
enviadas de fato.

82
Figura 06. Correspondência interescolar

Fonte: acervo da autora.

O texto livre, que pode ser compartilhado com a turma, como no caso a seguir, em que
o aluno escreveu seu texto, posteriormente, com a ajuda da professora, digitou-o, e o
mesmo foi disponibilizado a todos da turma para que fosse ilustrado.
Figura 07. Texto livre

Fonte: acervo da autora.

Alfabetização e Letramento 83
Os conceitos de alfabetização e de letramento nos documentos oficiais

Essa escrita que circula, o convite à experienciar diferentes gêneros, torna fecundo o
trabalho de alfabetizar. De acordo com Orlandi (1999, p. 56), “o texto é uma unidade
significativa”, sabemos que, para a criança em fase inicial de alfabetização, faz muito
3 mais sentido um texto do que palavras ou sílabas escritas “soltas”.

No material tradicional de alfabetização é comum encontrarmos muitas cartilhas e livros


didáticos que trazem “textos” contendo frases que não se articulam, e, por isso, não
formam uma unidade significativa.

O trabalho pedagógico a ser desenvolvido com textos em sala de aula pelo professor
exige esforço e tempo. O trabalho pedagógico com o texto requer idas e vindas, leituras,
releituras, reescritas, significações e ressignificações.

É preciso salientar ainda que, de acordo com o enfoque discursivo, um texto é pensado
à luz das condições concretas de produção, ou seja, a partir da consideração do con-
texto histórico-cultural e ideológico de maneira ampla, bem como a partir de condições
imediatas de enunciação.

Dessa forma, fatores como quem escreveu, quando escreveu, o que escreveu, como
escreveu, para quem escreveu e com qual finalidade escreveu são importantes para
o processo de atribuição, produção de sentidos e compreensão textual, uma vez que
assinalam o funcionamento da discursividade.

Alfabetizar a partir de textos oferece ao professor a possibilidade de trabalhar com um


recurso que possui historicidade, um objeto simbólico à espera de produção de sentidos.

2. AS PRESCRIÇÕES OFICIAIS PARA A ALFABETIZAÇÃO:


REVISÃO HISTÓRICA DE DO CONCEITO DE ALFABETIZAÇÃO
NAS LEIS E DOCUMENTOS OFICIAIS: CONSTITUIÇÃO, LDB E
PCNS, RCNEI E BNCC.

O texto da Constituição de 1988 não fala explicitamente de alfabetização, mas propõe


a erradicação do analfabetismo:
Art. 214. A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração pluria-
nual, visando à articulação e ao desenvolvimento do ensino em seus diversos
níveis e à integração das ações do Poder Público que conduzam à:

I - erradicação do analfabetismo;

II - universalização do atendimento escolar;

III - melhoria da qualidade do ensino;

IV - formação para o trabalho;

V - promoção humanística, científica e tecnológica do País. (BRASIL, 1988,


Art. 214)

84
Também na Legislação Educacional (pós/1988) notamos que as palavras alfabetiza-
ção e letramento não estão presentes no texto base da LDBEN/1996, mas estas ficam
subentendidas na forma da lei, pois, em seu artigo primeiro, parágrafo segundo, lemos
que: “A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social”, 3
e, em seu artigo 32, estabelece que
O ensino fundamental obrigatório, com duração de 9 (nove) anos, gratuito na
escola pública, iniciando-se aos 6 (seis) anos de idade, terá por objetivo a for-
mação básica do cidadão, mediante: (Redação dada pela Lei n. 11.274, de
2006) I - o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios
básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo. (BRASIL, 1996,
Art. 32)

Ao longo dos anos delineados após a Constituição Federal Brasileira de 1988, outros
caminhos foram trilhados no campo da política de alfabetização.

A LDB, aprovada em 1996, determinou aos entes municipais e também aos estados e
à União a obrigatoriedade da matrícula de todas as crianças a partir dos sete anos de
idade e, facultativamente, a partir dos seis anos no ensino fundamental (VIEGAS; SCA-
FF, 2015) – já nesse momento a intenção do governo era a de incluir os educandos na
faixa etária de seis anos no ensino obrigatório.

Em 2005, o governo federal altera a redação dos artigos 6º, 30, 32 e 87 da LDB, por
meio da Lei nº 11.114/2005, com o objetivo de tornar obrigatório o início do ensino
fundamental aos seis anos de idade.

Em 2006, a Lei nº 11.274 é aprovada, regulamentando e dispondo sobre a duração de


nove anos do ensino fundamental e reafirmando a matrícula obrigatória a partir da faixa
etária anunciada na lei anterior, o que causou grande desconforto no campo educacio-
nal, pois a luta sempre foi por garantia do acesso e valorização da educação infantil,
e, numa estratégia política, o governo “tomou” os alunos de seis anos para o Ensino
Fundamental, desconsiderando as especificidades e necessidades da criança.

No que se refere à qualidade da educação no ciclo de alfabetização, o aspecto da for-


mação continuada dos professores em exercício surge como elemento que compõe as
estratégias das políticas de alfabetização no Brasil, por meio de Programas que visam
a formação e o aprimoramento docente.

Em 2005, o Pró-Letramento – Mobilização pela Qualidade da Educação -– um progra-


ma de formação continuada que tinha como público-alvo os professores que atuam nos
ciclos I e II do ensino fundamental (1º ao 5º ano), tendo como ementa a alfabetização e
a matemática – foi desenvolvido em parceria com os sistemas de ensino e as universi-
dades da Rede de Formação Continuada e Desenvolvimento da Educação em todo o
território nacional (BRASIL, 2005, p. 43).

Em 2006, foi lançado o Programa de Apoio a Leitura e Escrita, chamado PRALER, que
tinha como objetivo principal a formação continuada para professores do ciclo I, de
forma a complementar as ações promovidas pelas secretarias de educação de cada
município ou estado (BRASIL, 2006, p. 27).

Alfabetização e Letramento 85
Os conceitos de alfabetização e de letramento nos documentos oficiais

Outro acontecimento correlato a isso foi a aprovação do Decreto nº 6.094, de 2007, que
implementou o “Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação”, pela União, em
regime de colaboração com municípios e estados, mediante programas de assistência
3 técnica e financeira. Com relação à educação infantil, este determina que:
I – estabelecer como foco a aprendizagem, apontando resultados concretos
a atingir;

II – alfabetizar as crianças até, no máximo, os oito anos de idade, aferindo os


resultados por exame periódico específico. (BRASIL, 2007, art. 2º)

Em consonância com essa ideia de antecipar e apressar a alfabetização, no ano de


2008 é aprovado o Parecer CNE/CEB nº 4, que orienta (e determina) os municípios
quanto à organização dos três anos iniciais do ensino fundamental, afirmando que:
O antigo terceiro período da Pré-Escola não pode se confundir com o primeiro
ano do Ensino Fundamental, pois esse primeiro ano é agora parte integrante
de um ciclo de três anos de duração, que poderíamos denominar de ‘ciclo da
infância’. Mesmo que o sistema de ensino ou a escola, desde que goze desta
autonomia, faça a opção pelo sistema seriado, há necessidade de se conside-
rar esses três anos iniciais como um bloco pedagógico ou ciclo sequencial de
ensino. (BRASIL, 2008, p. 2)

Em 2010, as orientações do Parecer com a Resolução CNE/CBE nº 7 são retomadas, e


são determinadas as novas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamen-
tal de Nove Anos “a serem observadas na organização curricular dos sistemas de ensi-
no e de suas unidades escolares” (BRASIL, 2010, p. 1), com destaque à alfabetização
infantil, ao ciclo de alfabetização:
I – a alfabetização e o letramento;

II – o desenvolvimento das diversas formas de expressão, incluindo o aprendizado


da Língua Portuguesa, a Literatura, a Música e demais artes, a Educação Física,
assim como o aprendizado da Matemática, da Ciência, da História e da Geografia;

III – a continuidade da aprendizagem, tendo em conta a complexidade do pro-


cesso de alfabetização e os prejuízos que a repetência pode causar no Ensino
Fundamental como um todo e, particularmente, na passagem do primeiro para o
segundo ano de escolaridade e deste para o terceiro. (BRASIL, 2010, p. 8, Art. 30).

A ideia de promoção automática ganha espaço e a defesa é a de que nenhuma criança


seja retida por insuficiência de aprendizagem, especificamente no ciclo da infância (1º
ao 3º ano do Ensino Fundamental), admitido como um bloco pedagógico não passível
de interrupção (VIEGAS; SCAFF, 2015, p. 56).

Frente a esse panorama, emergiram outras ações em relação ao trabalho de alfabetiza-


ção. A maioria das propostas se relacionavam à formação continuada dos professores
que atuam nessa fase de escolarização, o que denota uma situação bastante comple-
xa, pois, implicitamente a isso, veicula-se a ideia de que o problema do analfabetismo
no Brasil está atrelado a práticas ruins de ensino. A culpabilização do professor serve
como “nuvem de fumaça” para o fato de que a desigualdade social e econômica e as
condições concretas de produção nas quais os alunos estão inseridos fazem diferença
no processo de aprendizagem. “Para a concepção crítica, o analfabetismo não é uma

86
‘chaga’, nem uma ‘erva daninha’ a ser erradicada, nem tampouco uma enfermidade,
mas uma das expressões concretas de uma realidade social injusta”. (FREIRE apud
FERRARO, 2009, p. 7)
3
Na mesma toada, buscando “formar melhor” os professores, em 2012 é lançado o Pac-
to Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), agora com ações e diretrizes
gerais de abrangência nacional. A União (art.1º) reafirma e amplia a meta prevista no
Decreto nº 6.094/2007 e determina nos documentos posteriores: alfabetizar as crianças
até, no máximo, os oito anos de idade, por intermédio da verificação de resultados ava-
liativos periódicos, abrangendo:
I - a alfabetização em língua portuguesa e em matemática;

II - a realização de avaliações anuais universais, pelo Instituto Nacional de


Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - INEP, para os concluintes
do 3º ano do ensino fundamental;

III - o apoio gerencial dos estados, aos municípios que tenham aderido às
ações do Pacto, para sua efetiva implementação. (BRASIL, 2012, p. 1-2).

O PNAIC ainda traz, em seu art. 6º, um contingente de ações dimensionadas no sentido
de intensificar o processo: I – formação continuada de professores alfabetizadores; II
– materiais didáticos, literatura e tecnologias educacionais; III – avaliação, por meio da
Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA) e; IV – gestão, controle e mobilização social.

No campo das políticas públicas, temos a discussão da Base Nacional Comum Curricu-
lar (BNCC), que se iniciou em 2015 e foi oficializada e publicada em 2017.

Muitas questões foram levantadas sobre a BNCC: quanto tempo é necessário para al-
fabetizar? Qual a melhor maneira de ensinar a ler e a escrever? O que significa, no fim
das contas, estar alfabetizado?

Essas questões não foram totalmente resolvidas, apesar de o documento ter sido aprova-
do. O documento mantém os principais pressupostos presentes em diretrizes anteriores,
como os Parâmetros Nacionais Curriculares (PCNs), mas também incorpora mudanças.

Oficialmente, a BNCC não traz direcionamentos sobre as abordagens que devem ser
adotadas, mas existe uma perspectiva que está posta como “pano de fundo”: o trabalho
com algumas relações entre fala e escrita, a consciência fonológica, ganha relevo. O
documento justifica essa ênfase como um reconhecimento de que a apropriação do
sistema alfabético de escrita tem especificidades e colocando-a como foco principal
da ação pedagógica nos anos iniciais do Ensino Fundamental.

No que se refere ao ensino fundamental, ela traz um guia de orientações no sentido de


direcionar o currículo nesta etapa da educação básica: na fase de alfabetização:
[...] a ação pedagógica deve ter como foco a alfabetização, a fim de garantir
amplas oportunidades para que os alunos se apropriem do sistema de escrita
alfabética de modo articulado ao seu envolvimento em práticas diversificadas
de letramento. (BRASIL, 2017, p. 57)

Alfabetização e Letramento 87
Os conceitos de alfabetização e de letramento nos documentos oficiais

Os documentos anteriores, especialmente o PNAIC, considerava a faixa etária de seis


a oito anos como “etapa de alfabetização". A BNCC diminui um ano, defendendo que a
alfabetização deva ocorrer entre os seis a sete anos, ou seja, o final do ciclo da infância
3 passa do terceiro para o segundo ano do ensino fundamental.

Com relação ao método, a BNCC propõe a mescla de duas linhas de ensino: a primeira
indica para a centralidade do texto e para o trabalho com as práticas sociais de leitura
e escrita; a segunda, soma a isso o planejamento de atividades que permitam aos alu-
nos refletirem sobre o sistema de escrita alfabética (estudar, por exemplo, as relações
entre sons e letras e investigar com quantas e quais letras se escreve uma palavra, e
onde elas devem estar posicionadas ou como se organizam as sílabas)
[...] alfabetizar é trabalhar com a apropriação pelo aluno da ortografia do portu-
guês do Brasil escrito, compreendendo como se dá este processo (longo) de
construção de um conjunto de conhecimentos sobre o funcionamento fonológi-
co da língua pelo estudante. Para isso, é preciso conhecer as relações fono-or-
tográficas, isto é, as relações entre sons (fonemas) do português oral do Brasil
em suas variedades e as letras (grafemas) do português brasileiro escrito. Dito
de outro modo, conhecer a “mecânica” ou o funcionamento da escrita alfabéti-
ca para ler e escrever significa, principalmente, perceber as relações bastante
complexas que se estabelecem entre os sons da fala (fonemas) e as letras da
escrita (grafemas), o que envolve consciência fonológica da linguagem: perce-
ber seus sons, como se separam e se juntam em novas palavras etc. Ocorre
que essas relações não são tão simples quanto as cartilhas ou livros de alfa-
betização fazem parecer. Não há uma regularidade nessas relações e elas são
construídas por convenção. (BRASIL, 2017, p. 88)

Cabe a ressalva que, diferentemente dos PCNs, que ofereciam ao professor orienta-
ções didáticas e elementos para avaliação, a BNCC não trata dessa questão de ordem
prática. O documento se detém sobre a proposição das competências e habilidades
essenciais que todos os alunos devem desenvolver a cada ano da Educação Básica, ou
seja, o foco está em “o que ensinar”. A construção do “como ensinar” virá, futuramente,
nos currículos, cuja revisão está a cargo de redes, escolas e docentes.

Anterior à BNCC, o Plano Nacional de Educação (PNE), Lei nº 13.005 de 2014, vigente
até o ano de 2024, estabelece metas e estratégias para a alfabetização: “alfabetizar to-
das as crianças até o final do terceiro ano do ensino fundamental” (BRASIL, 2014, p. 57).

Nesse cenário, temos indícios de que as políticas de alfabetização no Brasil ainda têm
muitos desafios a enfrentar, especialmente com relação ao período compreendido
como ciclo da alfabetização. A “idade certa” é incompatível tanto com as metodologias
propostas quanto com as condições de trabalho docente, e, além disso, ela propõe um
ideal de aluno distante da realidade das periferias.

Há que se considerar o real da sala de aula, o vivido, as condições de vida das crianças,
a segurança alimentar, a saúde, o direito à moradia, a garantia de direitos, o acesso à
educação – que não é garantido apenas pela criança estar na escola –, a permanência
no espaço escolar. Para além da formação docente, as políticas públicas precisam olhar
para a valorização docente. O desmonte da educação é um fato.

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3. ALFABETIZAÇÃO E A CRIANÇA COM DEFICIÊNCIA

Ninguém ignora tudo. Ninguém sabe tudo. Todos nós sabemos


alguma coisa. Todos nós ignoramos alguma coisa. Por isso 3
aprendemos sempre.

(FREIRE, 1987, p. 33)

Para falar de alfabetização e a criança com deficiência, faz-se necessário abordar o


que seja inclusão. A proposta de inclusão surgiu na segunda metade da década de 80,
firmando-se na década de 90 e adentrando o século XXI. Essa proposta defende um
único sistema educacional para todos os alunos, sem exceções, responsável por ofere-
cer uma educação de qualidade que não segrega, nem discrimina.

Para nós, professores, a inclusão é um tema que nos inquieta. Incluir é lidar com nos-
sas próprias limitações, é nos assumirmos como professores capazes e especializados
em todos os alunos. Trabalhar com o diferente é encarar uma postura reflexiva sobre
nossas práticas, é lidar com o desconhecido (que muitas vezes nos assusta), é desafio,
é trabalho, é estudo, é busca!

Nos últimos anos, a inclusão escolar vem sendo bastante discutida no âmbito educa-
cional, visto que a educação é um fator de extrema importância para a formação do
indivíduo e da sociedade como um todo.

De acordo com Werneck (2000, p. 93), no cenário educacional, a busca de uma escola
que atendesse a todos foi documentada pela primeira vez no México, em 1979. Naquela
ocasião, por iniciativa da Unesco, foi assinado, por um grupo de países, o Projeto Princi-
pal de Educação. Esse projeto tinha por objetivo delinear e adotar medidas que fossem
capazes de combater a elitização da escola na América Latina.

Conforme afirma a autora, outros documentos, igualmente importantes, sucederam-se a


esse primeiro. O mais divulgado foi a “Declaração de Salamanca”, assinada em 1994, que
oficializou o ensino inclusivo de pessoas com deficiência no campo da educação comum.

A Declaração de Salamanca, documento sobre os princípios, a política e a prática da


educação para as pessoas com e sem deficiências, recomenda que as escolas se
ajustem às necessidades dos alunos, independentemente de suas condições físicas,
sociais e linguísticas, incluindo aquelas que vivem nas ruas, as que trabalham, as nô-
mades, as minorias étnicas, culturais e sociais. Defende ainda que, para se promover
uma educação inclusiva, os sistemas educacionais devem assumir que “as diferenças
humanas são normais e que a aprendizagem deve adaptar-se às necessidades das
crianças a assunções preconcebidas a respeito do ritmo e da natureza do processo de
aprendizagem” (BRASIL, Ministério da Justiça, 1994, p. 4).
O Brasil se abriu para esta proposta, que tem como princípios a aceitação das
diferenças, valorização da individualidade e identidade de cada pessoa, convi-
vência dentro da diversidade humana, aprendizagem por meio de cooperação,
por volta dos anos 90. (SILVA, SHIRLEY E MARLI VIZIM, 2001, p. 34)

Alfabetização e Letramento 89
Os conceitos de alfabetização e de letramento nos documentos oficiais

A proposta de inclusão ganhou força de lei com a aprovação da Constituição Federal


de 1988: “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida
e incentivada com a colaboração da sociedade(...)”, Capítulo II, Seção I, Art. 205. Assim
3 sendo, nossa visão inclusiva de educação é anterior à Declaração de Salamanca.

Além desse avanço, o Artigo 208, Inciso III, de nossa Constituição, assegura “[...] o
atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmen-
te na rede regular de ensino”.

O direito à inclusão de alunos com deficiência ao ensino comum, também está con-
templado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, 1994), na qual se
enfatiza também que o processo educacional desses alunos deve ocorrer “preferencial-
mente” na rede regular de ensino, buscando oferecer uma educação que seja capaz
de promover o desenvolvimento integral do educando, formando pessoas produtivas e
preparadas para viver em sociedade.

O objetivo da educação, numa perspectiva inclusiva, é incluir todos os alunos, garantindo-


-lhes um ensino de qualidade, sem distinção. É um trabalho para todos, a fim de que se
construa uma sociedade mais justa e igualitária, na qual as diferenças não sejam negadas e
sim reconhecidas, valorizadas e questionadas na sua produção, dentro e fora das escolas.

A proposta de inclusão traz contribuições para todos, pois, mesmo os alunos “normais”,
na escola inclusiva passam a ter acesso a papéis sociais distintos, perdem o medo e o
preconceito em relação ao diferente, desenvolvendo a cooperação e podendo adquirir
grande senso de humanidade, além de serem preparados para a vida, visto que, desde
cedo, assimilam que as pessoas, as famílias e os espaços sociais não são homogêneos
e que as diferenças são enriquecedoras para o ser humano em geral.

Já os alunos com deficiência aprendem e crescem com seus pares, sujeitos mais expe-
rientes, sentindo-se parte da sociedade, podendo encarar suas diferenças como algo
que nos aproxima, que nos faz crescer, entendendo que todos nós somos diferentes,
únicos, mas nunca inferiores.

Diferentemente da concepção de integração escolar, na qual o aluno é obrigado a adap-


tar-se à sala de aula comum, a inclusão defende uma reforma na escola como um todo
para atender todas as crianças, sem exceção, sendo um caminho oposto à padroniza-
ção dos alunos, que não respeita a diversidade humana. Na perspectiva inclusiva, a
diferença é encarada como parte integrante da complexidade humana.
Os vocabulários “integração” e “inclusão”, embora tenham significados seme-
lhantes, são empregados para expressar situações de inserção diferentes e
se fundamentam em posicionamento teórico-metodológicos divergentes. [...]
O uso do vocabulário “integração” refere-se mais especificamente à inserção
escolar de alunos com deficiência nas escolas comuns, mas seu emprego é
encontrado até mesmo para designar alunos agrupados em escolas especiais
para pessoas com deficiência ou mesmo em classes especiais, grupos de la-
zer, residências para deficientes. (MANTOAN, 2006, p. 194-195)

Sabemos que, atualmente, muitas escolas se preocupam unicamente com a aquisição


do saber científico pelo aluno, desconhecendo sua cultura, fazeres e saberes. O ensino
é seriado, fragmentado em disciplinas desarticuladas, segregadas.

90
Muitas escolas até defendem um discurso histórico-cultural que valoriza as potenciali-
dades do educando, mas, na prática, continuam a massificar o ensino, segregando os
indivíduos que “fogem do padrão” ideal.
3
A educação inclusiva é necessariamente “para” e “com” as diferenças. A inclusão esco-
lar é um projeto onde cabem todos!

A garantia de acesso à educação escolar implica esconder as diferenças, para que se


legitime o direito à igualdade de aprender em uma mesma turma, em escolas comuns
de ensino regular. Muitas vezes, deixamos de enxergar a pessoa para enxergar somen-
te a diferença, essa diferença que nos rotula. O aluno com deficiência, por exemplo, não
vai à escola apenas em busca de socialização, a escola é um espaço de aprendizagem
para todas as crianças. (MANTOAN, 2006, p. 80).

Cabe à escola permitir que o aluno participe ativamente do seu processo de aprendiza-
gem, capacitando-o a digerir as informações, questionando-as, criticando-as.

Incluir significa muito mais do que aceitarmos crianças com deficiências ou outras dificulda-
des de aprendizado em nossas salas de aula, a proposta de inclusão vem para descons-
truir os paradigmas que há séculos sustentam as escolas, rompendo barreiras, mudando
as estruturas desta escola que direciona olhares, prioriza o ensino frontalizado – no qual
o professor é o centro e detentor de todo o saber – que desconsidera a individualidade do
educando e todas as relações por ele estabelecidas para além dos muros da escola.

Apesar de a proposta de inclusão possuir respaldo legal, observamos que o preconceito


ainda é bastante presente, já que muitas escolas aceitam o aluno com deficiência em
suas salas de aula, mas não oferecem nenhum apoio para que ele possa se desenvol-
ver. O fato de a criança com deficiência estar na escola para “socializar-se” já basta
para muitos que consideram a inclusão um misto de caridade e de tolerância, desconsi-
derando o caráter educacional da escola.

O objetivo da educação inclusiva é, realmente, incluir todos os alunos, garantindo um en-


sino de qualidade a todos, sem distinção. É um trabalho que envolve todos na construção
de uma sociedade mais justa e igualitária, na qual as diferenças não sejam negadas e sim
reconhecidas, valorizadas e questionadas na sua produção, dentro e fora das escolas.

Os benefícios trazidos pela prática inclusiva de educação não se limitam aos alunos com
deficiência, ao contrário, criam condições para que os talentos e capacidades individuais
contribuam para o trabalho de todos os educandos. E ainda possibilita a todos o respeito
e a valorização dessa diferença como algo que nos aproxima, enquanto seres humanos,
além de promover o encontro entre todos, crianças com ou sem deficiência, mostrando
que todos têm talentos, habilidades e fraquezas. Diferentes somos todos nós!

A seguir, um breve relato de uma situação vivenciada em sala de aula:

Alfabetização e Letramento 91
Os conceitos de alfabetização e de letramento nos documentos oficiais

Quadro 02. Trecho de diário docente

Sobre os alunos “diferentes”


3
Tínhamos na turma de 1ª série, no ano de 2005, um aluno que, embora tivesse um
desenvolvimento normal, apresentava dificuldade em conter seus impulsos, gritava
com os colegas, batia, perdia a paciência quando era contrariado! Para facilitar
esse relato chamaremos a este de João (um nome fictício).

Quando chegou o mês de abril, recebemos na turma uma criança com síndrome
de Down (que chamaremos de Pedro), que, além do quadro característico da sín-
drome, também apresentava um comportamento impulsivo e agressivo. Em nossas
rodas de conversa e nas reuniões de Jornal de Parede, surgiam os comentários
das próprias crianças, questionando e até mesmo reclamando dessas situações.
Conversávamos muito sobre a importância de resolver os problemas por meio do
diálogo. Fizemos alguns combinados e o principal deles era de que o João, que
no início do ano mostrava dificuldades em lidar com suas emoções, passaria a ser
ajudante de Pedro.

Sua função enquanto ajudante era justamente mostrar para o amigo como deve-
mos fazer quando a gente fica bravo: que não podemos sair gritando, empurrando
e batendo nos outros. Com esse combinado, assumido com muita responsabilida-
de pelo João, ajudando o outro, ele estava na verdade se ajudando, crescendo e
aprendendo sobre si mesmo. Foi muito interessante ver esse movimento todo, o
esforço que ele fazia para se conter e dar “um bom exemplo” ao amigo. Seu em-
penho era nítido! Podíamos notar em seus olhinhos, no seu tom de voz, o quanto
ele se policiava, continha-se, para não deixar que a raiva, a braveza e a irritação
transparecessem para seu amigo.

Outra situação que explicita a importância dessa convivência entre crianças com
deficiências e crianças ditas “normais” também aconteceu nessa turma de 1ª série.

Durante os trabalhos em ateliês, um grupo estava fazendo uma lista de animais ma-
míferos. Pedro estava no ateliê de jogos, utilizando materiais variados para formar
sequências. Ele trabalhava nisso ajudado por um outro colega. Num outro ateliê,
o grupo trabalhava na elaboração de uma lista com nomes de animais mamíferos,
discutindo e anotando todas as informações que conseguiram sobre o tema.

Nesse momento, eu me encontrava ao lado desse grupo, ajudando-os com essa


lista. De repente, de lá de onde estava, o Pedro grita para nós: “Boi”. Paramos para
ver de onde vinha essa fala e nos demos conta de que, apesar de parecer que ele
não estava entendendo o trabalho que fazíamos, na verdade, ele estava bem aten-
to e foi capaz de entrar na discussão do trabalho e participar! Ele estava atento ao
movimento do grupo, às conversas, e foi capaz de entrar na discussão mesmo não
estando naquele ateliê, mostrando que está participando das situações de trabalho
que se referem à alfabetização.

92
Fiquei muito surpresa e feliz, pois ele me mostrou o quanto estava presente na turma!

São essas surpresas que nos fazem acreditar em nosso trabalho, acreditar no
quanto é urgente lutarmos para que a inclusão aconteça, rompendo barreiras, 3
transformando nossas práticas!

Em minha experiência docente, também pude notar que a inclusão escolar, a partir
de concepções freinetianas de educação, tem como base o trabalho, a cooperação, a
autonomia e a livre expressão, respeitando o caminho das descobertas, minimizando a
competitividade, reconhecendo e valorizando as habilidades de cada um, trabalhando
essencialmente com a diferença, como algo que nos identifica e nos aproxima.

Fonte: registros do diário docente da autora.

O relato acima nos mostra que as crianças com deficiência necessitam de ações me-
diadas, dos agentes mediadores, da postura de mediação do professor, sempre em
interação com crianças ditas normais. Na medida em que esse processo se consolida,
alunos “normais” tornam-se também mediadores para seus colegas com deficiência, e
a educação se redimensiona. A inclusão exige novas posturas, nas quais a interação
social é imprescindível.

3.1. ALFABETIZAÇÃO E INCLUSÃO


A alfabetização por si só já é um desafio! Pensar no trabalho de alfabetização para
crianças com necessidades especiais é ainda mais instigante.

É importante destacar que não há uma receita para que a criança com deficiência se
alfabetize, por inúmeras razões: existe uma gama de deficiências muito diversa em
nossas escolas – crianças surdas, cegas, com paralisia cerebral, autistas, síndrome de
Down, disléxicas – enfim, e ainda pensando no indivíduo, temos que considerar suas
especificidades, visto que nem todas as crianças autistas se alfabetizam da mesma ma-
neira, por exemplo. A deficiência não estabelece uma forma universal de aprendizagem,
ela deve ser compreendida frente às demandas culturais que as produzem.

A tecnologia pode dar novas condições às pessoas com deficiência, mas é importante
considerar também a pertinência dos instrumentos às especificidades da deficiência.
Proclamar a validade da ferramenta independentemente do caso é privilegiar a técnica
a despeito das condições da pessoa.

Vamos pensar em algumas situações que podemos encontrar em nossas salas de aula.
A primeira delas, a deficiência motora.
A deficiência motora caracteriza-se pelos impedimentos nos movimentos e na
coordenação de membros e/ou de cabeça, em que a pessoa necessitará de
adaptações que garantam a acessibilidade motora, ou seja, o seu acesso a
todos os espaços, serviços e instituições. Isso significa que é preciso permitir
tanto o acesso aos espaços físicos, com uma estrutura arquitetônica apropria-
da, garantindo a autonomia e independência da pessoa, como também de uma
prática pedagógica que considere as especificidades da criança. (BRASIL,
2012, p. 10)

Alfabetização e Letramento 93
Os conceitos de alfabetização e de letramento nos documentos oficiais

Nesse caso, para facilitar o trabalho com a leitura e escrita, algumas alternativas estão
disponíveis e podem ser construídas, por exemplo: o uso de pranchas de comunicação,
do computador, de lápis e canetas adaptados etc.
3
Figura 08. Teclado adaptado para escrever no computador

Fonte: http://emag.governoeletronico.gov.br/cursodesenvolvedor/introducao/tecnologia-assistiva-teclados-de-mouses-
adaptados.html. Acesso em: 25 jan. 2021.

Em situações de crianças não verbais, ou seja, que não se comunicam pela fala, o uso
de pranchas de comunicação alternativa pode ser um caminho para a comunicação da
criança, bem como pranchas alfabéticas e de palavras, a construção de cartões de co-
municação, símbolos de comunicação pictórica, vocalizadores e computadores.
A expressão “comunicação alternativa” e/ou “comunicação suplementar” vem
sendo utilizada para designar um conjunto de procedimentos técnicos e meto-
dológicos direcionado a pessoas acometidas por alguma doença, deficiência
ou alguma outra situação que impede a comunicação com as demais pessoas,
por meio dos recursos comumente utilizados, mais especificamente a fala. A
Tecnologia Assistiva tem se constituído como um recurso que pode contribuir
significativamente para a comunicação e interação dessas pessoas. Assim,
destacamos a Comunicação Aumentativa e Alternativa (CAA), que faz parte
da área da Tecnologia Assistiva, destinada à ampliação de comunicação de
pessoas sem fala ou sem escrita funcional ou em defasagem entre sua neces-
sidade comunicativa em falar e/ou escrever. (BRASIL, 2014, p. 22-23)

As pranchas de comunicação alternativa devem ser elaboradas de acordo com as ne-


cessidades de cada criança. As palavras a serem expressas precisam fazer parte do re-
pertório da criança e fazer sentido para ela. Essas pranchas são compostas por cartões
com fotos de objetos que representam as coisas ou situações que a criança necessita,
como: “beber água”, “comer”, “ir ao banheiro” ou “brincar”, os quais ajudam a criança a
comunicar tudo aquilo que precisar naquele momento.

94
Figura 09. Prancha de comunicação alternativa, material do acervo da autora

Fonte: acervo da autora.

Algumas atividades são possíveis de se realizar partindo das pranchas de comunicação


alternativa, como o pareamento de cartões com a imagem e a primeira letra do nome
dessa imagem, o uso do alfabeto móvel para trabalhar com as letras e a modelagem de
letras para trabalhar a questão motora.
Figura 10. Letras do alfabeto feitas em massa de modelar

Fonte: acervo da autora.

Atualmente, existem tablets com programas específicos para que a professora, junto
com a criança, selecione os ícones para que a comunicação entre ela e a turma se dê
de forma eficiente.

A escolha de recursos para trabalhar com as crianças com deficiência deve ser feita de
forma bastante criteriosa pelo professor, que precisa conhecer e avaliar as possibili-
dades físicas do aluno: acuidade visual e auditiva; habilidades perceptivas; habilidades
motoras – preensão manual, flexão e extensão, de membros superiores, habilidade

Alfabetização e Letramento 95
Os conceitos de alfabetização e de letramento nos documentos oficiais

para virar páginas; e também as habilidades cognitivas: compreensão, expressão, nível


de escolaridade, fase de alfabetização e sons, expressões faciais e corporais que os
alunos possuem. Entre os recursos que podem ampliar a comunicação das pessoas
3 com deficiência, vamos agora pensar no trabalho de alfabetização voltado às crianças
cegas ou com baixa visão.
[...] pode-se dizer que a baixa visão se caracteriza quando as pessoas não
conseguem enxergar caracteres em tinta ou objetos, pessoas, dentre outros,
necessitando de recursos ópticos, não ópticos e outras tecnologias para de-
senvolver atividades que exigem visão. Acrescenta-se ainda ao conceito citado
à necessidade de verificação não somente do campo visual, mas também da
acuidade visual como requisitos para a identificação da deficiência visual. Já a
cegueira está presente quando a pessoa não consegue enxergar nada ou ape-
nas luzes e vultos, necessitando do Sistema Braille para a leitura e a escrita,
bem como de outros recursos que possibilitem a sua interação com o mundo.
(LUCACHINSKI; TONDIN, 2006, p. 223)

A depender da funcionalidade visual, o professor pode propor recursos e estratégias


de acessibilidade ao currículo e ao ambiente escolar. Como exemplos, podemos citar
o tamanho de letras; a distância que o aluno demonstra enxergar melhor do quadro; se
necessita de ambientes bem iluminados ou ao contrário; se necessita de recurso para
aproximar o material a ser lido, dentre outros.

Assim como se dá a alfabetização de qualquer criança, o processo de alfabetização de


crianças com deficiência visual se sustenta nas elaborações conceituais que ela elabora
para aquisição do código escrito e não apenas pela codificação e decodificação das letras.

Faz-se necessário inserir às crianças com deficiência visual em vivências de leitura e a


escrita, situações reais de uso e funcionamento da escrita. Se para as crianças videntes
as ilustrações passam a ser mais um atrativo, para as com deficiência visual o uso de
descrições ou objetos/situações que possam dar vida às situações da leitura e escrita
precisa ser promovido (SEAL, 2012, p. 22). Dessa forma, a escola deve oferecer ma-
teriais e recursos que impulsionem o processo para alfabetização, tais como: objetos
em miniatura, ampliação de textos, bengala, essências de cheiros diversos, gravador,
reglete, punção, folhas de gramatura mais firme.
[...] soroban (ábaco para o ensino do sistema numérico), ferramentas de comu-
nicação, com sintetizadores de voz que possibilitam a leitura e a escritura pelo
computador, lupas manuais, eletrônicas, plano inclinado, jogos com letras e
palavras em tipo ampliado, cores contrastantes e sua representação em braile.
Além disso, no AEE, o aluno cego deve receber o ensino do braile, noções de
orientação e mobilidade e de atividades de vida autônoma e social. É preciso,
contudo, lembrar que a utilização desses recursos não substitui o currículo e as
aulas regulares. (SEAL, 2012, p. 25)

O aluno com deficiência demanda ações pedagógicas diferenciadas e, em vista disso,


a escola deve organizar seus espaços físicos e pensar na elaboração de materiais
pedagógicos de acordo com as especificidades da criança, decorrentes de suas neces-
sidades de comunicação e motora.
[...] não faz sentido falarmos sobre todas as coisas que falamos para garantir
os direitos de aprendizagem dos alunos, e não pretendermos – seriamente –
que a palavra “alunos” se refira a todos os alunos da nossa sala de aula! Então,

96
quando falamos do lúdico e de como ele é fundamental para a aprendizagem
das crianças, estamos pensando que as crianças surdas ou cegas também
devem brincar, jogar e explorar essas potencialidades do lúdico em suas vidas
e durante sua escolarização. Quando sugerimos que um tipo de material seja
usado, por exemplo, os Blocos Lógicos, então esse material deve ser usado 3
com todas as crianças, sendo proveitoso de diferentes maneiras para aquelas
com deficiência intelectual ou paralisia cerebral. De outro lado, quando nos
aprofundarmos nos recursos tecnológicos disponibilizados para a Educação
Inclusiva, é importante que o professor perceba o quanto esses materiais po-
dem ser úteis para todos os alunos, nas aulas do dia a dia. De fato, só quan-
do conseguirmos agir naturalmente dentro dessa via de mão dupla, sem nos
preocuparmos com estratégias especiais para a matemática ou a linguagem
ou a geografia... só então é que estaremos vivenciando, em nós mesmos, a
inclusão. (BRASIL, 2014, p. 6)

O trabalho pedagógico deve ser remodelado para favorecer efetivamente a aprendi-


zagem e o desenvolvimento das pessoas consideradas deficientes; os conceitos e as
atitudes devem ser mudados para que haja compreensão das formas diferenciadas que
os processos de aprendizagem assumem.

Na perspectiva histórico-cultural, a deficiência é entendida como uma construção social


e o sujeito é considerado na sua singularidade. Focar nas relações sociais, no processo
de construção da “deficiência”, não significa negá-la, mas entendê-la como um fenô-
meno que deve ser enfrentado por todos, já que as funções psicológicas superiores se
constituem por meio das atividades humanas no contexto cultural.

A deficiência, seja ela em que grau for, causa impacto no ambiente e poderá ser fonte
geradora de possibilidades ou limitações. Portanto, todo trabalho seria para superar as
dificuldades e encorajar o aluno para que se desenvolva ao máximo, respeitando os
seus limites, porém, não o deixando estagnado.

Segundo Vigotski (2009, p. 134), a experiência da criança deve ser ampliada para pro-
porcionar uma base sólida à atividade criativa. Quanto mais a criança aprende, quanto
maiores e expressivas forem suas experiências, mais capaz ela será de processar dife-
rentes aprendizagens.

Nessa perspectiva, a escola representa um papel importante. A capacidade imaginativa


se amplia pela experiência e é na relação com os outros, com o meio, com a cultura,
que a imaginação se manifesta e, simultaneamente, amplia o repertório imagético. Nesse
processo, a criança passa a ampliar a consciência de si, sua autoconfiança aumenta e a
linguagem assume um papel mediador por meio dos signos verbais, a comunicação ocor-
re pela via da linguagem, que, associada à imagem, possibilita o acesso ao significado.

Alfabetização e Letramento 97
Os conceitos de alfabetização e de letramento nos documentos oficiais

Figura 11. Aluno com síndrome de Down realizando atividades com sua turma

Fonte: 123RF.

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Alfabetização e Letramento 99
Teoria e prática
UNIDADE 4

TEORIA E PRÁTICA

INTRODUÇÃO
Nesta unidade, abordaremos, primeiramente, Letramento e Métodos de alfabetização,
discorrendo sobre os principais métodos de alfabetização e orientação teórica.

Depois, trabalharemos o conceito do ambiente material e social e o papel do professor na sala


de aula: a importância do ambiente alfabetizador para o ensino da linguagem escrita.

A prática dos professores que atuam em classes de alfabetização vem na sequência,


trazendo o real da atividade docente.

E, para finalizar esta unidade, dissertaremos acerca das atividades práticas, as possi-
bilidades de trabalho com as crianças na fase inicial da escrita, com o intuito de instru-
mentalizar os leitores sobre os modos de ensinar, de modo a enfatizar a organização da
sala para o trabalho com alfabetização.

1. LETRAMENTO E MÉTODOS DE ALFABETIZAÇÃO:


DESCREVER OS PRINCIPAIS MÉTODOS DE ALFABETIZAÇÃO A
ORIENTAÇÃO TEÓRICA
A discussão sobre métodos de alfabetização faz parte do contexto educacional, a busca pelo
método mais eficaz faz parte do cotidiano docente.

Os métodos clássicos de alfabetização são divididos em sintéticos e analíticos. Os métodos


sintéticos foram os pioneiros para o trabalho com as crianças em fase de alfabetização e,
até os dias de hoje, são utilizados em algumas escolas, entendendo que a compreensão do
sistema de escrita se dá pela síntese, agrupando unidades menores, que são analisadas para
estabelecer a relação entre a fala e sua representação escrita, a análise fonológica. As unida-
des de análise podem ser: letras, fonemas ou sílabas, e, para formar um todo, esse processo
recebe o nome de decodificação ou decifração.

Os métodos analíticos, também conhecidos como métodos globais, partem do todo para as
partes, numa busca por uma ruptura com a decodificação e decifração.

O protagonismo do sentido e o reconhecimento global da palavra ou do texto, utilizados como


estratégia inicial para que as crianças, posteriormente, elaborem um processo de análise de
unidades menores da língua, está presente nessa proposta metodológica de alfabetização.

Quando nos referimos às metodologias e didáticas de alfabetização, estamos falando de um


conjunto de práticas relacionadas aos modos de fazer, à organização do espaço físico da sala

100
de aula, ao chamado “ambiente alfabetizador”, à seleção de materiais de apoio e aos modos
de ensinar. A escolha sobre o melhor método refere-se aos procedimentos de ensino – são to-
madas de decisões pautadas nos conteúdos de alfabetização que se quer ensinar e no conhe-
cimento docente acerca dos processos de elaboração das crianças sobre a linguagem escrita.
4
1.1. MÉTODO ALFABÉTICO E DE SOLETRAÇÃO
Método alfabético é um dos mais antigos – usado desde a Antiguidade até o século XIX, em
diversos lugares que usam o sistema de escrita alfabética. Esse método se pauta no princípio
geral dos métodos sintéticos de centrar a atenção do aprendiz em unidades menores e abs-
tratas a serem combinadas progressivamente.

Sua proposta é aprender, primeiramente, os nomes das letras do alfabeto, identificar cada
letra fora da ordem que ela ocupa no alfabeto, decorar algumas sílabas, realizar a soletração
e, posteriormente, tentar redescobri-las em palavras ou textos, a partir da soletração – com
separação por hifens ou espaços que vão guiando a verbalização. Tradicionalmente, encon-
tramos o uso das expressões: Cartas de letras” ou “Cartas do ABC”, “Cartas de sílabas” e
“Cartas de nomes” em referência à sequência em que a soletração é trabalhada.

A prática de soletração consiste em dizer o nome das letras ao visualizar sílabas e palavras,
com o objetivo de traduzir em sons uma palavra visualizada. No entanto, a pronúncia do nome
da letra, desvinculada de um contexto, cria um gap entre a criança e o significado da palavra
que é soletrada.

Abaixo temos um trecho da canção que ilustra bem esse método:

ABC do Sertão
Compositores: Luiz Gonzaga / Zedantas

“Lá no meu sertão pro caboco lê


Tem que aprender um outro ABC
O J é ji, o L é lê
O S é si, mas o R tem nome de rê
O J é ji, o L é lê
O S é si, mas o R tem nome de rê
Até o Y lá é pissilone
O M é mê, e o N é nê
O F é fê, o G chama-se guê
Na escola é engraçado ouvir-se tanto: Ê
A, B, C, D [...]”.

Deixamos o convite a você, estudante, para conhecer o restante da canção, que


compõe o álbum A história do Nordeste na Voz de Luiz Gonzaga, lançado em
1995, pela gravadora RCA Victor. Disponível em: https://www.letras.mus.br/luiz-
-gonzaga/47079/. Acesso em: 5 jan. 2021.

Alfabetização e Letramento 101


Teoria e prática

O uso de silabários também é comum nesse método. Os silabários, que são tabelas
com diferentes sílabas escritas, variam de acordo com a região e o número de sílabas
que se quer apresentar aos alunos. As sílabas são aprendidas como uma sequência
de letras que são soletradas e, frequentemente, colocava-se os alunos para cantarem
as sílabas, tendo em vista um trabalho mais lúdico e menos maçante, já que as sílabas
4
eram trabalhadas fora de contexto real de uso.

O método da soletração, apesar de ser alvo de inúmeras críticas, continua vigorando


em salas de alfabetização de algumas escolas do Brasil.

Cabe destacar que ensinar o alfabeto é essencial para o trabalho com alfabetização,
porém, esse conhecimento pode ser abordado de outras maneiras menos mecânicas.

1.2. MÉTODO SILÁBICO


O método silábico consiste em trabalhar com sílabas prontas, sem destacar as partes
que compõem as sílabas. Faz parte do rol dos métodos sintéticos, que são métodos que
trabalham das partes para o todo, no caso, a parte destacada é a sílaba.

A ideia é a de que a consoante só pode ser enunciada se tiver a vogal como apoio. As-
sim, a sílaba serve como unidade linguística para o trabalho com alfabetização. A tarefa
com esse método consiste em escolher a ordem de acordo com o grau de dificuldade –
ou seja, das sílabas mais fáceis para as mais complexas – para apresentar às crianças.
Como podemos observar nas cartilhas, o trabalho se inicia com as vogais, depois, com
encontros vocálicos, para, então, partir para as sílabas simples.
Figura 01. Página da cartilha Caminho Suave, de Branca Alves de Lima

Fonte: Lima (2011, p. 20).

102
Na sequência do trabalho com as vogais e famílias silábicas, são apresentadas as famílias
silábicas compostas – primeiramente, pelas sílabas simples, formadas por consoantes e
vogais, como: BA, BE, BI, BO, BU. Aos poucos, frases curtas são introduzidas e depois
textos simples, partindo da combinação de sílabas que já foram trabalhadas anteriormente.

O sentido do texto parece pouco importar, o foco é a sílaba, uma professora disse: 4

“Quando eu era criança não me conformava com a ‘lição do GI’, o texto era:
‘Gina ganhou um gira-gira e Gigi ganhou uma girafa’, eu pensava: que foi
que a coitada da Gigi fez para ganhar uma girafa, que vai dar mais trabalho
do que diversão, legal é ter um gira-gira”.
* Relato retirado do Diário de Campo de Estágio da autora. Entrevista com pro-
fessora alfabetizadora realizada em 19 de junho de 2002.

O método silábico pode ser um facilitador da aprendizagem ao considerarmos que,


quando falamos, emitimos os sons das sílabas e não letras “soltas”, ou seja, esse méto-
do opera diretamente com o som da fala. Existem diversas sílabas que comportam mais
letras do que os sons quando expressas oralmente; letras que têm mais de uma repre-
sentação sonora; sons que são representados por mais de uma letra; há sílabas de uma
a cinco letras que podem ser decodificadas num bloco silábico único e não letra a letra.

1.3. MÉTODO FÔNICO


O método fônico faz parte dos métodos sintéticos, que enfatizam o trabalho com a cor-
respondência entre grafema e fonema, isto é, a ênfase na relação direta entre o som da
fala e a escrita.

Esse método nasce como uma reação às fortes críticas que o método de soletração
vinha recebendo. Ganha destaque quando passa a ser trabalhado por Montessori, na
Itália, em 1907.

O trabalho com o método fônico começa pela forma e som das vogais e, posteriormen-
te, das consoantes. Cada letra, conhecida como grafema, é ensinada como um som,
chamado de fonema, que se juntam a outros fonemas, formando sílabas e palavras. Os
sons também devem ser ensinados dos mais simples aos mais complexos.

Com o intuito de minimizar a descontextualização e proporcionar algum sentido, foram


elaboradas algumas remodelações do método fônico, com diferentes formas de apre-
sentação dos sons: partindo de uma palavra significativa, de um personagem associado
a um fonema ou de uma história trabalhada anteriormente.

Habitualmente, as lições do método fônico são apresentadas com palavras ou peque-


nos textos e é no Manual do Professor, bastante prescritivo, que se esclarece em que
momento serão apresentadas as letras e grafemas, assim como qual recurso vai servir
para a emissão dos fonemas.

Alfabetização e Letramento 103


Teoria e prática

Figura 02. Capa de cartilha. Método Misto de Ensino da Leitura e da Escrita e História da Abelhinha – Guia
do Mestre, de Almira Sampaio Brasil da Silva, Lúcia Marques Pinheiro e Risoleta Ferreira Cardoso, 1973

Fonte: acervo da autora.

Uma importante crítica a esse método refere-se ao fato de que, na língua portuguesa,
há poucas relações diretas entre letras e sons, pois uma mesma letra pode representar
diferentes sons, segundo sua posição, assim como um mesmo som pode ser represen-
tado por diferentes letras, também segundo sua posição. Desta forma, o sistema de
escrita é uma representação complexa e suas particularidades precisam ser compreen-
didas pela criança por meio de diversas abordagens e estratégias.

O entendimento da função que o fonema desempenha na palavra pode ser trabalha-


da quando as crianças distinguem as palavras que começam ou terminam da mesma
maneira e observam sua forma escrita, quando comparam o som de um fonema em
diferentes posições, por meio da fala e da escrita, como em rato, marco, brincar, em que
o R “muda” de som de acordo com a posição que ocupa na palavra, quando percebem
o que modifica ao se mudar apenas uma letra inicial em palavras como PATO, RATO,
GATO, por exemplo, entre outras estratégias de ensino acerca das correspondências
grafema-fonema.

1.4. MÉTODO GLOBAL


Entendemos como método global um conjunto de métodos analíticos que buscam o
trabalho com a linguagem escrita do todo para as partes, ou seja, partem, por exemplo,
do texto para depois chegarem às palavras, sílabas e letras. A ideia central é a de que
a criança entende a linguagem em seu aspecto global, que a leitura é uma atividade de
interpretação de ideias e que a análise de partes deve ser um processo posterior.

104
Nomes importantes, como Claparède (1933), Decroly (1932) e Freinet (1978), mostram-
-se a favor desse método global para o ensino da linguagem escrita.

Podemos encontrar ponto convergentes entre os defensores dos métodos globais,


como apresentamos na Figura 3, abaixo:
4
Figura 03. Pontos convergentes entre os defensores dos métodos globais

PONTOS DE CONVERGÊNCIA

A linguagem funciona como um todo e as partes somente têm sentido em


função de uma unidade.

Há um princípio de sincretismo no pensamento infantil: primeiro percebe-se o


todo e depois as partes.

Os métodos de alfabetização priorizam a compreensão.

O aprendizado da escrita não pode ser feito por fragmentos de palavras, mas
por seu significado.

Acompanham os interesses, a linguagem e o universo infantil e, portanto,


as palavras percebidas globalmente também devem ser familiares e fazer
sentido para as crianças.

Fonte: elaborada pela autora.

No geral, o trabalho com esse método parte de um texto em que a criança memoriza o
sentido global do que foi “lido” e, partindo disso, são analisadas as frases e encontradas
as palavras, comparando-se, então, as suas composições silábicas.

Na contemporaneidade, defende-se que os textos a serem trabalhados com as crianças


em fase de alfabetização precisam ser os que circulam efetivamente na sociedade e
não textos inventados para efeitos de ensino, visto que as crianças devem ler e escre-
ver na escola para desenvolver diferentes funções sociais.

Na prática docente, o que observamos são professores utilizando as metodologias glo-


bais, lançando mão de histórias, parlendas, adivinhas e outros textos para que as crian-
ças memorizem, montem e desmontem frases e depois identifiquem palavras que serão
decompostas, pois essa é uma estratégia de trabalho desse método.

Alfabetização e Letramento 105


Teoria e prática

1.5. MÉTODOS DE PALAVRAÇÃO E DE SENTENCIAÇÃO


Os métodos de palavração e sentenciação integram um conjunto de métodos analíticos
que partem de unidades de significação. É também enquadrado por alguns estudiosos nos
métodos globais. No método da palavração – como o nome já sugere – a palavra ganha
4 relevo e não o texto, já na sentenciação, o destaque pode ser dado à palavra ou à frase.

Normalmente, na proposta de palavração, as palavras são apresentadas em agrupamen-


tos e as crianças aprendem a reconhecê-las pela visualização e pela configuração gráfica.

Os autores, partidários da memorização pelo delineamento gráfico, defendem ser essa es-
tratégia cognitiva “natural” ao ser humano. Como estratégia de trabalho, são empregados
procedimentos tais como: cartões para fixação – com palavras de um lado e figuras de outro
– e atividades para o ensino do traçado de escrita de cada palavra, entre outros. Cabe a
ressalva de que o recurso visual de ilustração nem sempre é consensual entre os defenso-
res desse método, visto que preconiza a memorização de um conjunto de palavras. Alguns
autores defendem que o aluno deve ligar a ideia à forma e, assim, a palavra se desenhará.

Concomitantemente, são exploradas estratégias chamadas de leitura inteligente, por


meio das quais a atenção do aluno pode ser dirigida a pequenas unidades da palavra,
como: letras, sílabas e sons o que caracteriza esse método como analítico-sintético.
Essas duas estratégias reunidas garantiriam o enfrentamento de textos novos.

O método de sentenciação prioriza a sentença como unidade que, depois de reconhe-


cida e compreendida globalmente, será fragmentada em palavras e, finalmente, em sí-
labas. Um outro procedimento é a proposta de comparar palavras e separar elementos
nelas reconhecidos para ler e escrever palavras novas.

Como principais inconsistências desses métodos temos as lacunas na aprendizagem de


palavras novas, que ocorrem quando os professores mantêm apenas a visualização, sem
incentivar a análise e o reconhecimento de partes da palavra. Hoje em dia, é usual, nas
classes de alfabetização, quadro de palavras estáveis – como os nomes próprios, nomes
de personagens, listas, parlendas e outras mais frequentes – que mais tarde podem ser
usadas para análise e comparação de segmentos menores, como letras, sílabas e palavras.

1.6. MÉTODO NATURAL


Alguns autores apontam que existem relações entre método global e método natural,
com algumas diferenças: no segundo, haveria uma produção mais “espontânea” de
textos escritos pelas crianças, a partir de um repertório mínimo de palavras conhecidas
pela classe. Freinet (1977, p. 52-53)defende que seu método natural é uma mistura
entre método global e sintético, pois, apesar do trabalho partir do texto, as unidades
menores são trabalhadas, especialmente em relação ao uso dos tipos para escrita na
imprensa. A diferença está no valor de uso dessas unidades menores da escrita. O tra-
balho letra a letra acontece para compor um texto que será publicado, que irá circular na
comunidade, e isso confere um status à palavra escrita, que mobiliza sentidos e afetos.

Nas classes freinetianas, após discussões livres, aulas-passeio, leituras, os professores


propõem a escrita de um texto – que, no caso de crianças na fase inicial da escrita, pode

106
ser uma frase. Esse texto é lido, algumas vezes copiado no caderno ou no livro da vida
e, muitas vezes, impresso. Freinet usava um tipógrafo, atualmente máquinas de escre-
ver e impressoras são utilizadas. Muda-se o suporte, mas permanece a essência: a do
texto circular entre as crianças e na comunidade escolar.

O trabalho com o texto pode acontecer de outras maneiras, por exemplo, ser registrado em 4
uma folha grande e ser recortado em tiras, para ser remontado pelos alunos ou ser digitado
pelo professor, para, posteriormente, ser trabalhado pela turma, como veremos no quarto
tópico desta unidade ao abordarmos as práticas dos professores alfabetizadores.

O uso da imprensa em sala de aula ganha relevo no Método natural de Freinet. Nessa
pedagogia, as crianças escrevem porque é preciso – é a escrita em movimento – para:
um jornal escolar, uma correspondência, um texto livre que será impresso e não apenas
para cumprir uma atividade escolar, elas escrevem para interlocutores reais. Percebe-
-se, assim, que a produção de textos visava a cumprir uma função social, contribuindo
para uma vivência democrática na escola.

2. O AMBIENTE MATERIAL E SOCIAL E O PAPEL DO


PROFESSOR NA SALA DE AULA: A IMPORTÂNCIA DO
AMBIENTE ALFABETIZADOR
O conceito “ambiente alfabetizador” se refere a todo o espaço em que se estabelecem
relações e experiências, delimitado com a intencionalidade de propiciar aos alunos o
contato com a cultura escrita. Esse ambiente deve inserir a prática de leitura e escrita
no cotidiano do aluno e, nesse contexto, vale destacar a variedade de materiais, por
exemplo: livros, revistas, gibis, entre outros.
Figura 04. Alfabeto afixado na sala de aula para consulta dos alunos

Fonte: acervo da autora.

Esses materiais visam a possibilitar que as relações estabelecidas com a lingua-


gem escrita aconteçam de forma natural e tendo objetivos claros e específicos
para corroborar com a aprendizagem inicial da leitura e escrita, contribuindo, prin-
cipalmente, para que a criança se torne leitora e escritora autônoma.

O ambiente alfabetizador pode ser um facilitador para o aluno no processo de des-


coberta do mundo da leitura e da escrita e é definido como “[...] as condições mate-
riais e sociais em que se desenvolve a alfabetização” (TEBEROSKY, 2003, p. 37).

Alfabetização e Letramento 107


Teoria e prática

Faz-se necessário salientar que o papel do professor nesse processo é essencial.


Cabe a ele criar e colocar em prática todo esse material no dia a dia escolar, ins-
trumentalizando o aluno sobre o sistema de escrita alfabética. Não adianta lotar a
sala de aula de textos, alfabetos, e não fazer o uso desses recursos. O instrumen-
to por si só não garante que a criança aprenda!
4
Outro ponto importante a ser destacado é o de que o ambiente alfabetizador, os
estímulos, devem estar ao alcance da criança, o material precisa estar acessível e
pronto a ser usado a qualquer momento. Ana Teberosky (2003) afirma que:
em muitas salas de aula, verifica-se não apenas uma escassez de ma-
terial, mas também uma organização e uma posição tais que o material
fica fora da visão da criança: cartazes ou textos longe do alcance da
criança, acima do quadro-negro ou do armário, que a deixam sem a pos-
sibilidade de chegar a eles por seus próprios meios. Está demonstrado
que a proximidade física dos livros influi no interesse e no entusiasmo
das crianças. Por isso, é importante colocar as bibliotecas, as prateleiras
e os armários ao alcance da criança pré-escolar. (TEBEROSKY, 2003,
p. 110)

Novamente, torna-se relevante a criatividade do educador, já que é ele o res-


ponsável por criar esse ambiente e disponibilizar os materiais para o aluno. Em
relação à qualidade dos materiais, Teberosky (2003, p. 111) ressalta que é es-
sencial, no processo de aprendizagem da linguagem escrita e especialmente da
leitura, que os educadores estabeleçam critérios como: qualidade e clareza das
ilustrações, as características de previsibilidade do texto, sua extensão, o nível do
vocabulário e dos conceitos, o grau de repetição e de simplicidade da estrutura da
história, para selecionar materiais de apoio e livros de literatura infantil, jornais,
revistas, folhetos, que agucem a curiosidade da criança e também a aproxime do
universo da escrita.

Sendo assim, o ambiente alfabetizador deve ser modificado constantemente, ou


seja, quando o mesmo não se transforma, quer dizer que o educador não está
trabalhando com esse recurso da maneira adequada. Teberosky (2003) alerta que:
quando o material escrito exposto em uma sala de aula está relacionado
com as atividades da classe, as mudanças de material são um indicador
da sucessão e da duração das atividades. Assim, por um lado, se um
material permanece durante todo o curso escolar é sinal de que não foi
usado para o desenvolvimento das atividades: ele tem, nesse caso, um
valor mais de decoração do que outra coisa. Por outro lado, se o mate-
rial vai sendo substituído, significa que é funcional e que foi integrado
como conteúdo de ensino dentro das atividades de aprendizagem. (TE-
BEROSKY, 2003, p. 111)

108
Figura 05. Tabela com aniversariantes da turma

Fonte: acervo da autora.

O ambiente alfabetizador é um recurso muito importante, porém, é a mediação, a re-


lação de uso que o professor estabelece com os materiais selecionados, que faz a
diferença. Sendo assim, cabe a muitos educadores repensarem seu modo de trabalhar
com essa ferramenta e aprimorar seus conhecimentos sobre o ambiente alfabetizador,
usando-o não apenas como recurso técnico, mas como recurso semiótico, no sentido
de estabelecer sentidos.

A sala de aula com os materiais que contenham escrita mais explícitos para o ensino –
como livros, alfabeto, calendário, cartazes de atividades – é um ambiente alfabetizador,
mas não só, pois a escola pode ser toda pensada para oferecer estímulos à leitura e
escrita, por exemplo, o quadro no refeitório onde o cardápio do dia é escrito.
Figura 06. Cartazes de parlenda e também calendário

Fonte: acervo da autora.

Alfabetização e Letramento 109


Teoria e prática

A defesa de todos os espaços da escola como ambientes alfabetizadores parte do pres-


suposto de que a criança procura ativamente textos escritos que as cercam, de acordo
com um objetivo ou uma necessidade imediata em seu cotidiano. As crianças buscam
compreender o ambiente em sua volta, sempre que este tem sentido, levantando hipó-
teses sobre os escritos que encontram, estabelecendo sentido, tateando e aprendendo.
4
Figura 07. Livros ao alcance das crianças em sala de aula

Fonte: 123RF.

As palavras postas dentro de um contexto significativo, no entorno em que a criança


está inserida, são tão importantes quanto as encontradas dentro de um livro. Smith
(1999, p. 63) aponta que as placas, as embalagens, os rótulos, os símbolos publicitá-
rios, aumentam a percepção sobre a função da linguagem escrita.

Um texto não precisa ser extenso, podendo ser longo ou curto, desde um romance até
uma placa de trânsito, uma palavra pode ser um texto. A placa escrita “PARE” é um
texto, em que se tem uma função comunicativa de orientar uma ação.

Destacar a linguagem escrita nos espaços escolares é algo simples, por exemplo, a
identificação das salas de aula, banheiros, armários, utilização de cardápio, placas in-
dicativas, cartazes, horários, além, é claro, das produções das crianças, como mostram
as imagens abaixo:

110
Figura 08. Textos e desenhos elaborados pelas crianças pregados na parede da sala

Fonte: acervo da autora.

Figura 09. Painel de textos livres de autoria das crianças exposto no corredor da escola

Fonte: acervo da autora.

Alfabetização e Letramento 111


Teoria e prática

Os materiais expostos devem ser organizados de maneira que a criança tenha acesso
e manipule os materiais escritos com facilidade, bem como as letras precisam estar
visíveis para a criança.
Figura 10. Alfabeto para consulta e exploração ao alcance da criança
4

Fonte: 123RF.

Para as crianças em processo de alfabetização, é importante que a maior parte dos mate-
riais sejam escritos com letra maiúscula nos espaços escolares. Não que seja proibido ter
placas e informações com outros tipos de letras, porém, o tipo de letra bastão e em caixa
alta é o mais recomendado para crianças na fase inicial da escrita, como explicitaremos
mais adiante nesta unidade. Já o apoio das imagens em conjunto com a escrita auxilia nas
inferências que a criança fará frente ao texto, antecipando informações do seu conteúdo.

Outro aspecto relevante acerca da escolha dos materiais que circulam na escola se re-
fere à utilização de “textos do mundo”, “textos reais”, ou seja, aqueles textos que circu-
lam socialmente. A escola não deve se limitar a utilizar textos exclusivamente escolares,
mas sim ofertar textos encontrados nas ruas, lojas, supermercados, nos shoppings, na
feira, em espaços culturais, tal como Teberosky (2003, p. 57) sugere: a utilização de
textos autênticos auxilia em dois processos: contextualiza a aprendizagem e, em con-
trapartida, colabora para a interação da criança com a escrita fora da escola.

Para que a escola se torne efetivamente um ambiente alfabetizador, é relevante a es-


colha criteriosa de materiais que efetivem o propósito de tornar toda escola orgânica,
dinâmica, viva e convidativa para a criança que está se constituindo enquanto leitora.

Outra questão que merece destaque é o excesso. Muitas vezes nos deparamos com
uma diversidade de escritos em nosso cotidiano – como livros, jornais, revistas, cartazes,
panfletos –, entretanto, não fazemos o uso adequado dessa infinidade de estímulos. Mais
valia tem uma sala com menos recursos pendurados na parede – mas recursos que se-

112
jam de fato explorado pelo professor – do que uma sala lotada de cartazes com textos e
palavras que não são trabalhados pelo professor. Novamente, ressalva-se que a diferen-
ça é a qualidade da mediação feita pelo professor frente ao ambiente alfabetizador.
Figura 11. Mediação do professor
4

Fonte: 123RF.

É muito importante que os materiais fixados na parede como mera decoração, textos,
alfabetos, quadros informativos, calendários, sejam atrelados ao trabalho do professor
para se tornarem efetivamente materiais significativos de leitura. Esse material, escrito
com o propósito de instrumentalizar a criança sobre o sistema de escrita alfabético, só
é significativo se a criança puder interagir com ele, se procurá-lo constantemente com
um propósito ou uma necessidade.

Smith (1999, p. 53) salienta que, quando a palavra está dentro de um contexto significa-
tivo, a identificação ocorre de forma mais rápida e previsível. Por exemplo, ao consultar
o quadro com nome dos amigos da sala, uma criança que chama Mariana facilmente
encontra o nome Matheus, por reconhecer a primeira sílaba MA.

Dessa forma, a criança mobiliza seus conhecimentos prévios e tateia, testa hipóteses,
buscando elaborar o significado das mensagens escritas e compreender o texto. O de-
sejo para compreender o que está escrito é impulsionado pela necessidade real, seja
ela a de descobrir informação, seguir regras, recordar fatos ou por deleite.

Faz-se imprescindível destacar que apenas a construção de um ambiente alfabetizador


não garante que as crianças se apropriem da linguagem escrita. Como já apontamos, o
papel do professor é basilar nesse processo, uma vez que ele é a referência de leitor e
escritor mais experiente na escola e o mediador de situações de leitura e escrita.

Alfabetização e Letramento 113


Teoria e prática

A simples presença do objeto não garante conhecimento, mas a ausência do


objeto garante desconhecimento. Se eu quero que a criança comece a cons-
truir conhecimento sobre a língua escrita, esta tem de existir. [...] se proíbo a
língua escrita, crio um ambiente escolar no qual a escrita não tem nenhum
lugar, ao passo que no ambiente urbano a escrita tem seu lugar. (FERREIRO,
2001, p. 148)
4
Cabe ainda à escola levar em conta as diversidades sociais, culturais e econômicas
existentes entre os alunos, compreendendo que a aprendizagem da linguagem escrita
é uma construção pessoal e tornando possível o acesso à leitura significativa, espe-
cialmente para aquelas crianças que não têm a oportunidade de ter contato com esse
objeto social fora da escola. Conforme ressalta Ferreiro (2008, p. 33): “[...], quando as
crianças têm em suas casas outros materiais de leitura, não é tão grave que na escola
se use um único texto. Torna-se grave precisamente quando o ambiente escolar é pra-
ticamente o único ambiente alfabetizador existente”. A escola tem o dever de garantir
este direito de aprendizagem da leitura e escrita com qualidade e equidade.

3. A PRÁTICA DOS PROFESSORES QUE ATUAM EM CLASSES


DE ALFABETIZAÇÃO
Pensar em práticas de alfabetização nos remete à concepção metodológica adotada
pela escola ou pelo docente, ou seja, não existe uma prática única, existem práticas.

A questão que aparece em primeiro lugar refere-se aos métodos desenvolvidos no co-
tidiano escolar. No entanto, para que possamos tecer essa reflexão sobre a prática do
professor alfabetizador, parece-nos fundamental a compreensão de que a linguagem é
constitutiva do pensamento e, portanto, do desenvolvimento humano.

Abordaremos aqui a prática que se sustenta teoricamente no princípio da alfabetização


como processo discursivo.

Um argumento importante dessa perspectiva diz respeito à natureza social do desen-


volvimento humano, ou seja, os modos de pensar, de sentir, de falar e de agir das crian-
ças se constituem na relação com outro. Isso posto, a mediação se torna essencial, seja
a mediação docente, seja a mediação dos pares.

Outro ponto que sustenta a perspectiva discursiva de alfabetização é conceber a lin-


guagem como constitutiva para o desenvolvimento humano, como produção humana e
historicamente situada.

Considerar o processo de alfabetização como discursivo é considerar a palavra em


movimento, na relação, como elo entre o cognitivo e o social. Entender a alfabetização
como esse processo discursivo afeta o trabalho docente e as relações de ensino, visto
que os modos de ensinar dos professores e os modos de aprender das crianças se
tornam complementares, misturam-se, entrelaçam-se e se reconstroem cotidianamente
nas relações estabelecidas.

Nesta perspectiva, o professor instrumentaliza a criança, organizando o espaço, o tra-


balho, de modo a ofertar as mais diferentes formas de escrita, suportes, materiais, a fim
de que a criança se aproprie dessa linguagem de forma significativa.

114
O professor lê, escreve, aponta, nomeia, questiona, ajuda a elaborar e entender as
hipóteses, convida à escrita quando registra a rotina no Livro da vida, por exemplo, ou
escreve um bilhete. É apresentar a escrita em movimento, em sua função comunicativa,
fazendo sentido.

No mundo letrado em que vivemos, orientar o olhar da criança para a escrita, para essa 4
linguagem tão corriqueira, mas também tão cheia de encanto, torna-se o grande desa-
fio para o professor em sala de aula.

Outra prática muito importante para as salas de aula, especialmente de alfabetização,


é a leitura diária, seja de um texto de literatura, de uma notícia de jornal, de um conto,
uma poesia, enfim, o gênero textual pode variar, mas ler para as crianças diariamente
ajuda a criar hábito, aproxima a criança do mundo letrado, informa e instrumentaliza
para o trabalho com a escrita.

4. ATIVIDADES PRÁTICAS: A ORGANIZAÇÃO DA SALA PARA O


TRABALHO COM ALFABETIZAÇÃO
Pensar em atividades de alfabetização não é uma tarefa simples e não podemos cair na
armadilha de buscar receitas e prescrições, porque cada criança é única, cada turma
é única. Há que se olhar para cada aluno com um olhar atento e curioso, desvelar nas
sutilezas suas potencialidades e dificuldades, como bem aponta Freinet (1978, p. 21):
“[...] sob cada olhar uma alma”.

Contudo, podemos lançar mão de algumas propostas, ideias de trabalho, que tornam
possível acessar a criança e convidá-la a escrever, a se arriscar, encorajá-la… Porque
há de se ter coragem para escrever – a gente comunica, expressa sentimentos e ideias,
a gente se coloca em nossa escrita!

Faz-se necessário dizer que atividades descontextualizadas e sem intervenção do pro-


fessor se tornam sem sentido. Para além da atividade “certa”, precisamos investir na
qualidade da relação, da mediação entre professor e aluno, o instrumento em si não
garante, é preciso estabelecer sentido!
Em seus esforços de elaboração teórica, Vigotski propõe a emergência da di-
mensão semiótica, isto é, a produção de signos, o princípio da significação,
como chave para se compreender a conversão das relações sociais em fun-
ções mentais. Isso traz certas implicações, eu diria radicais, para o que chama-
mos relações de ensino. (SMOLKA, 2010, p. 5)

É a teoria vigotskiana que nos ajuda a sustentar esse argumento: para que as fun-
ções mentais se consolidem, é necessário significar. O domínio da linguagem escrita
aprofunda o processo de elaboração psíquica ao oportunizar à criança uma relação
de abstração e de operação de conceitos. A linguagem escrita tem papel fundamental
no desenvolvimento cultural da humanidade. Trata-se de um “[...] sistema particular de
símbolos e signos cuja dominação prenuncia um ponto crítico em todo o desenvolvi-
mento cultural da criança” (VIGOTSKI, 2007, p. 126).

Alfabetização e Letramento 115


Teoria e prática

A escrita deve ter significado para as crianças, que uma necessidade intrínseca
deve ser despertada nelas, e a escrita deve ser incorporada a uma tarefa rele-
vante para a vida. Só então poderemos estar certos de que ela se desenvolve-
rá não como hábito de mãos e dedos, mas como uma forma nova e complexa
de linguagem. (VIGOTSKI, 2007, p. 144)

4 Pensando nessa escrita vinculada à vida, que faz parte do universo das crianças, defen-
demos que, para além de atividades “soltas”, o trabalho com propostas de alfabetização
pode (e deve) estar relacionado a projetos maiores, pesquisas, propostas de trabalho com
potencial de engajar as crianças. Lançar mão do lúdico também pode ser uma boa ideia.
Figura 12. Papel do professor

Mobilizar o que a criança já sabe

Fazer com que a escrita tenha real função social


Pensando na prática de

Criar situações reais de escrita (comunicar)

Ler como prática diária

Encorajar os alunos

Lúdico estar presente

Conteúdo fazer sentido

Fonte: elaborada pela autora.

Mesmo quando a criança está em processo de aquisição da linguagem escrita, é preci-


so propiciar situações em que ela “leia” e “escreva”. São situações de “ler sem saber ler”
e de “escrever sem saber escrever”, convencionalmente, que exigem do aluno o uso de
diferentes análises e reflexão sobre a escrita (SOLIGO, 2015, p. 82).

Para que a criança elabore hipóteses de leitura sem ser leitora, ela faz o uso do reper-
tório que já tem sobre a escrita e faz inferências e suposições sobre o que pode estar
escrito. É comum nessa fase a criança imitar a leitura do adulto e, inclusive, passar o
dedinho sobre a palavra que está “lendo”. Isso mostra que ela já sabe muitas coisas
sobre o ato de ler: que a escrita na nossa língua é grafada da esquerda para direita, que
ler necessita de entonação, enfim, muitas vezes, a postura de leitor se apresenta antes
do domínio técnico, da codificação e decodificação da escrita.

A tentativa de leitura de textos que as crianças conhecem de cor pode ajudar a estabele-
cer relações entre letra e som. Temos como exemplo o trabalho com parlendas e cantigas.

116
Figura 13. Parlendas

Um, dois, feijão com arroz Corre Cotia, na Casa da Tia


4
Três, quatro, feijão no prato Corre Cipó, na Casa da Vó
Cinco, seis, falar inglês Lencinho Branco caiu no chão
Sete, oito, comer biscoitos 1, 2, 3 ...

Fonte: elaborada pela autora.

O trabalho com parlendas e cantigas possibilita a noção de consciência fonológica sem a


necessidade de se trabalhar com métodos sintéticos de alfabetização (que estabelecem
uma correspondência entre o som e a grafia, entre o oral e o escrito, mediante o apren-
dizado letra por letra ou sílaba por sílaba e palavra por palavra, fragmentando sentidos).

As parlendas são textos recitados e ritmados de forma lúdica. A criança passa a ter no-
ção das habilidades, como a observação, a dramatização e a oralidade, por meio delas.
Mas o que significa essa consciência fonológica?

Podemos dizer que a consciência fonológica é uma habilidade imprescindível, visto


que ela é responsável por estimular os sons de nossa própria língua. A consciência
fonológica é a capacidade de se perceber que uma palavra pode começar ou terminar
com o mesmo som. Além disso, é quando sabemos que existem termos grandes e pe-
quenos, que há frases (e uma segmentação nessas orações), e, ainda, que palavras
são compostas por sílabas e estas, por sua vez, de letras que se “agrupam” para formar
um som. As parlendas, então, atuam como importantes atividades que estimulam essas
práticas para as crianças. Por meio delas, as crianças passam a ter a consciência fono-
lógica tão necessária à compreensão da língua escrita.

Outra estratégia de trabalho para turmas de alfabetização são os agrupamentos, que


preferimos chamar de ateliês. Num passado nem tão distante (e por vezes ainda pre-
sente em algumas práticas), os “agrupamentos produtivos” eram formados entre os pa-
res, ou seja, reunia-se todas as crianças que não estavam alfabetizadas em um grupo,
as que escreviam com autonomia em outro e assim sucessivamente. Todavia, ao nos
atentarmos para o conceito de zona de desenvolvimento proximal (ou zona do próximo
desenvolvimento, como tem sido nomeada mais recentemente), podemos entender que
faz mais sentido (e dá mais resultado) reunir crianças em diferentes níveis com relação
à alfabetização, pois as trocas e as aprendizagens serão mais efetivas.

Alfabetização e Letramento 117


Teoria e prática

SAIBA MAIS
Ateliês são grupos de alunos que se juntam para trabalhar determinada atividade, na proposta de Freinet
(1978). O que une as crianças no ateliê é o trabalho e não o nível de saber da criança, portanto, uma
criança que não sabe escrever pode estar junto a uma que tem escrita autônoma.
4
Consultem em: BUSCARIOLO, A. F. V. T; LIMA, C. V. B; FECCHI, P. G. G. Por uma outra organização do
trabalho escolar. In: IX FALA OUTRA ESCOLA, 2019, Campinas. Anais eletrônicos... Campinas, Galoá,
2019. Disponível em: https://proceedings.science/fala-outra-escola-2019/papers/por-uma-outra-organi-
zacao-do-trabalho-escolar. 27 jan. 2021.

Figura 14. Situação de interação entre os alunos, semelhante aos ateliês de trabalho

Fonte: 123RF.

É comum presenciarmos crianças mais experientes ensinando outras, o que é positivo


para ambas as posições: pois quem ensina reelabora o que aprendeu para sistematizar
para o outro e o outro, menos experiente, esforça-se para “fazer como o amigo”.

SAIBA MAIS
Para saber mais sobre as trocas produtivas no processo de alfabetização, leia:

O texto livre como instrumento pedagógico na alfabetização de crianças. Dissertação de Mestrado de Ana
Flávia Valente Teixeira Buscariolo, publicada em 2015, no Repositório da Produção Científica e Intelectual da
Unicamp. Disponível em: http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/254002. Acesso em: 5 jan. 2021.

Vale dizer que zona de desenvolvimento proximal é aquilo que a criança ainda
não consegue fazer sozinha, mas faz com algum apoio ou com as pistas recebi-
das de outra pessoa mais experiente, que pode ser o professor ou algum colega.

118
Nas palavras de Vigotski:
ela é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma de-
terminar através da solução independente de problemas, e o nível de desen-
volvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a
orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes.
(VIGOTSKI, 1998, p. 56) 4

Os agrupamentos de crianças mais experientes, que já escrevem de forma autônoma,


com as crianças na fase inicial da alfabetização pode criar condições para novas apren-
dizagens e, consequentemente, para o desenvolvimento dos educandos. De acordo com
Vigotski (1998, p. 73), o bom aprendizado é aquele que se adianta ao desenvolvimento.

Nessa perspectiva, convidar as crianças para escreverem texto de autoria, o Texto livre,
em que a criança elabora suas hipóteses e, posteriormente, a professora faz a reescrita,
trazendo a referência da escrita convencional, como podemos ver na imagem a seguir:

SAIBA MAIS
Texto livre é um instrumento da pedagogia Freinet (1978) – em que a criança escreve livremente, livre
para escolher o tema, o gênero e o lugar que fará seu texto – e é o carro-chefe do trabalho com alfabeti-
zação na proposta pedagógica do autor francês.

Assista também:

Diálogos sobre alfabetização, Live 9, no canal da Bárbara Cortella

https://www.youtube.com/watch?v=rtg3VFai0lU&t=691s. Acesso em: 27 jan. 2021.

Figura 15. Escrita de texto livre

A hipótese de escrita da criança ainda sem relação entre letra grafada e o va-
lor sonoro e abaixo, em azul, a reescrita da professora, trazendo a referência da
escrita convencional.

Fonte: acervo da autora.

Alfabetização e Letramento 119


Teoria e prática

Outra forma de se trabalhar com produção de texto com crianças pequenas é a de, a
partir do que é narrado pela criança no momento da roda de conversa, registrar – nesse
caso a professora ocupa o lugar de escriba – o texto da criança e propiciar trabalhos a
partir deste texto de autoria da criança.
4 A professora fez uma cópia do texto para cada aluno. A primeira proposta foi a de ilus-
trar o texto, depois a de leitura de palavras, quando a criança, mesmo que não leitora
autônoma, poderia descobrir onde estava a palavra BICICLETA. Na sequência, há uma
atividade de preencher as lacunas da palavra. A professora colocou as consoantes e
deixou as vogais para que os alunos completassem, solicitando ainda que as crianças
contassem quantas letras tem a palavra. E, por fim, fez uma pergunta que remetia ao
campo semântico que o texto trazia. Abaixo temos um exemplo desse trabalho.

Campo semântico é relacionar tudo que é possível a uma palavra.

Campo semântico de BICICLETA: bola, boneca, carrinho, peteca etc.

Figura 16. Exemplo 1 de atividade de trabalho partindo do texto do aluno

Autora da proposta: Professora Mestra Viviani Domingos Castro (2019).

Fonte: acervo da autora.

120
Figura 17. Exemplo 2 de atividade de trabalho partindo do texto do aluno

Autora da proposta: Professora Mestra Viviani Domingos Castro (2019).

Fonte: acervo da autora.

Outras propostas de trabalho com crianças na fase inicial de alfabetização são possí-
veis, como a de encontrar palavras que fazem parte de seu repertório em textos conhe-
cidos, como podemos ver no poema abaixo, intitulado MAR, de Lalau e Laurabeatriz.
Após trabalhar com o texto, lê-lo e torná-lo conhecido pelas crianças, podemos pedir
que elas encontrem as palavras: SIRI e DOCE (que possuem sílabas simples, para em
um segundo momento passar para palavras com sílabas compostas).
Figura 18. Poesia sobre animais marinhos

Imagem cedida pela professora Aline Dantas.

Fonte: acervo da autora.

Alfabetização e Letramento 121


Teoria e prática

Nessa mesma poesia, podemos trabalhar “uma palavra dentro da outra”:


Figura 19. Atividade com palavras

OLHA SÓ: PALAVRA DENTRO DA PALAVRA


4

DENTRO DE MARISCO MAR TEM

AGORA VAMOS BRINCAR?

QUE PALAVRAS VOCÊ CONHECE QUE TEM OUTRA PALAVRA DENTRO?


Fonte: acervo da autora.

Abaixo, temos alguns exemplos de atividade de turmas de alfabetização ligadas ao


tema de pesquisa da turma “Fundo do mar”.
Quadro 01. Fichas de atividades de alfabetização

TEMA: ALFABETIZAÇÃO (PORTUGUÊS) FICHA 1


LIVRO: A ESCOLINHA DO MAR
AUTORA: RUTH ROCHA

SEMANA PASSADA INICIAMOS A LEITURA DO LIVRO E CONHECEMOS A


ESCOLA DA DONA OSTRA, RELEMBRE-A A SEGUIR:

A) FAÇA UMA LISTA COM TODAS AS CARACTERÍSTICAS QUE VOCÊ OB-


SERVA NA ESCOLINHA DA DONA OSTRA. ESCREVA DO SEU JEITO!

B) AGORA, FAÇA UMA LISTA DE COMO É A SUA ESCOLA. ESCREVA DO


SEU JEITO!

C) ALÉM DA DONA OSTRA, ESCREVA, DO SEU JEITO, O NOME DE TODOS


ANIMAIS MARINHOS QUE APARECERAM ATÉ A PÁGINA QUE LEMOS, A DE
NÚMERO 09. DICA: SÃO OITO.

122
D) ILUSTRE A PARTE QUE MAIS GOSTOU ATÉ O MOMENTO.

TEMA: ALFABETIZAÇÃO (PORTUGUÊS) FICHA 2


LIVRO: A ESCOLINHA DO MAR
AUTORA: RUTH ROCHA

VAMOS CONTINUAR EXPLORANDO O LIVRO. SEMANA PASSADA LEMOS


ATÉ A PÁGINA 15. VIMOS QUE DONA OSTRA LEVOU OS ALUNOS PARA UMA
EXCURSÃO EM UM ÔNIBUS MARÍTIMO, VEJAM:

A) NA NOSSA ESCOLA FAZEMOS AULA-PASSEIO. SE VOCÊ PUDESSE


ESCOLHER UM LUGAR PARA A NOSSA TURMA VISITAR ESTE ANO, QUAL
SERIA? ESCREVA DO SEU JEITO!

B) FAÇA UMA ILUSTRAÇÃO SOBRE A RESPOSTA ANTERIOR.

Alfabetização e Letramento 123


Teoria e prática

C) “AS BALEIAS SÃO DE OUTRA FAMÍLIA, APARENTADAS COM O HOMEM,


POR ISSO DÃO DE MAMAR AOS FILHOTES.”

O QUE VOCÊ ENTENDE POR “A BALEIA É PARENTE DO HOMEM”? TENTE


EXPLICAR POR QUÊ. PODE SER POR DESENHO OU ESCRITA.

TEMA: ALFABETIZAÇÃO (PORTUGUÊS) FICHA 3


LIVRO: A ESCOLINHA DO MAR
AUTORA: RUTH ROCHA

VAMOS CONTINUAR EXPLORANDO O LIVRO. SEMANA PASSADA LEMOS


ATÉ A PÁGINA 21.

A) O TUBARONETE APARECEU NA EXCURSÃO E COMEÇOU A CAÇOAR DE


TODOS, A IMITAR O JEITO DE CADA UM. O QUE VOCÊ ACHA DISSO? EXPLI-
QUE, TENTE ESCREVER DO SEU JEITO!

B) O PEIXOTO DECIDIU IR AO CASTELO DO TUBARONETE TENTAR RECU-


PERAR A PÉROLA QUE ELE PEGOU DA DONA OSTRA.

124
4

O QUE SERÁ QUE VAI ACONTECER?

USE A IMAGINAÇÃO E ESCREVA OU DESENHE A CONTINUAÇÃO DA HISTÓRIA.


Fonte: elaborado pela autora.

Para além de modelos de atividades, destacamos, faz-se essencial a instrumentaliza-


ção das crianças para o uso da escrita, partindo do que elas já sabem e ampliando o
seu repertório para que elas avancem em suas aquisições de linguagem escrita.

Algumas coisas simples do cotidiano da sala de aula podem fazer muita diferença nes-
se processo.

Por exemplo, a roda da chamada. Aqui, cabe ao professor chamar a atenção da turma
para aspectos como: a primeira letra de cada nome; posteriormente, pode solicitar, de
forma lúdica, que as crianças batam palma para cada “pedacinho” (sílaba) dos nomes
chamados; pedir que, em vez de responder “presente”, a criança responda dizendo o
nome de um animal que comece com a mesma letra do seu nome. Enfim, usando a
imaginação, desde os primeiros minutos em sala de aula, o professor pode aproveitar
para trabalhar noções de nosso sistema alfabético, sem que isso seja maçante e can-
sativo para a criança.

O educador pode também organizar a fila para ir ao recreio em ordem alfabética, de-
pois, na ordem inversa do alfabeto. No outro dia, inverte, indicando primeiro as crianças
que têm o nome com dois “pedacinhos”, por exemplo: Laura, Pedro e João, depois os
que tem três “pedacinhos”: Marina, Vinícius, Thiago. Enfim, é mais uma oportunidade
de trabalhar noções alfabéticas, consciência fonológica, sem ter que pegar no caderno!

Podemos lançar mão de jogos, como o jogo de tabuleiro do alfabeto riscado no chão,
em que a criança lança uma pedrinha e precisa falar uma palavra que tem determina-
da letra no começo, meio ou fim. A regra cabe ao professor elaborar junto aos alunos.
Jogos do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC): Caça rima, Quem
escreve sou eu?, Troca letra, Mais uma, Dado sonoro, entre outros.

Alfabetização e Letramento 125


Teoria e prática

PNAIC é um programa integrado, cujo objetivo é a alfabetização em Língua


Portuguesa e Matemática, até o 3º ano do Ensino Fundamental, de todas as
crianças das escolas municipais e estaduais, urbanas e rurais brasileiras,
criado em 2012.
4
Consulte: ALFERES, M. A. Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa:
uma análise contextual da produção da política e dos processos de recontextu-
alização. 2017. 246 f. Tese (Doutorado em Educação) — Universidade Estadual
de Ponta Grossa, Ponta Grossa, 2017.

Figura 20. Crianças trabalhando com os Figura 21. Um grupo de crianças trabalhando com
os jogos do PNAIC
jogos do PNAIC

Fonte: acervo da autora. Fonte: acervo da autora.

Temos ainda situações nas quais a escrita cumpre sua função de comunicar, como:
escrita de cartas reais, bilhetes, jornal de parede, lista de ingredientes culinária (e claro,
fazer a culinária com eles), escrever as etiquetas para os materiais da sala, ler nas ro-
das de leitura de texto livre, anotar no Livro da vida o nome de quem vai ler na roda ou
mesmo os acontecimentos do dia.

CURIOSIDADES
Jornal de parede: instrumento da pedagogia Freinet que contém 4 envelopes: eu felicito, eu proponho, eu crí-
tico e eu quero saber, assim, a criança escreve bilhetes para resolver questões referentes aos temas acima.

SAIBA MAIS
Jornal de parede: instrumento da pedagogia Freinet que contém 4 envelopes: eu felicito, eu proponho, eu crí-
tico e eu quero saber, assim, a criança escreve bilhetes para resolver questões referentes aos temas acima.

126
Figura 22. Aluno registrando no Livro da vida

Fonte: acervo da autora.

O trabalho com o nome próprio é outra proposta possível: reconhecimento das letras;
procurar objetos que comecem com cada letra do nome da criança e depois incentivá-la
a escrever o nome do objeto; fazer bingo de letras com as letras dos nomes das crian-
ças da turma; escrever lista de nome dos amigos; enfim, muitas possibilidades aprovei-
tando o repertório conhecido pelo aluno.
Figura 23. Exemplo de usos da letra bastão

Fonte: 123RF.

Alfabetização e Letramento 127


Teoria e prática

Por último, trago uma conversa sobre o tipo de letra mais adequado para se trabalhar em
classes de alfabetização. Apesar de não ser consenso, há, entre os educadores, uma forte
defesa sobre o uso da letra bastão, em caixa alta, para crianças em fase de alfabetização.

Os argumentos são os seguintes: o trabalho motor de traçar a letra cursiva, de dese-


4 nhar as letras, pode interferir no processo de elaboração das hipóteses de escrita das
crianças, afinal, escrever de letra cursiva exige atenção, coordenação motora, enfim,
um trabalho a mais para a criança que está pensando sobre as combinações de letras
que compõem as palavras. Outro argumento se refere ao fato de que, visualmente, é
mais fácil identificar as letras na escrita em letra bastão caixa alta, já que, na forma cur-
siva de escrita, as letras se juntam na composição de cada palavra. E por que o uso de
caixa alta? Em nosso alfabeto, temos algumas letras que têm a mesma forma, apenas
mudam de posição, vejamos:
Figura 24. Exemplo de letras cursas de mesma base

d b
q p
Fonte: elaborada pela autora.

Isso, com frequência, faz com que as crianças se confundam, o que é mais difícil acon-
tecer com as mesmas letras – P, B, D, Q – grafadas em caixa alta.

Cagliari defende a utilização da letra maiúscula no início do processo de alfabetização.


O autor faz uma crítica ao uso da letra cursiva, argumentando que nesse tipo é mais
difícil identificar onde começa e termina o traçado da letra, sendo enfático ao dizer que
“[...] as letras cursivas foram inventadas para o uso de quem já sabe ler e escrever e
precisa escrever muito rapidamente. Letra cursiva é ponto de chegada, não ponto de
partida” (CAGLIARI, 1999, p. 141).

Quanto ao ensino da letra cursiva, o mesmo não é descartado. Tão logo a criança con-
solida seu processo de alfabetização, parte para esse novo trabalho, o de aprender a
letra “de mão” – como as próprias crianças dizem. E aprender esse tipo de letra é algo
que as crianças desejam muito, é como uma conquista!

128
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Alfabetização e Letramento 129

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