Você está na página 1de 3

Escola E.B.

2,3/S de Caminha 12º Ano


Ano Lectivo 2011/12

Fernando Pessoa

A dor de pensar

O pensamento é a faculdade que permite ao ser humano ter um


conhecimento intelectual do universo que o rodeia. Porém, a inteligência culmina,
para Pessoa, na constatação de que, efectivamente, é impossível ao ser humano
alcançar o conhecimento absoluto e provoca, no poeta, a "dor da universal
ignorância"í]] que obsta à sua felicidade, pelo reconhecimento das limitações que
caracterizam a nossa espécie.
Fernando Pessoa vive a dicotomia que consiste na necessidade de
percepcionar o mundo de forma racional, inteligível e a certeza de que essa forma
de captação do real não lhe permitirá desvendar o segredo, a razão da existência
da realidade que se apresenta ao ser humano, de acordo com a sua capacidade
de percepção dessa mesma realidade, o que provoca o seu sofrimento e a sua
angústia metafísica.
Apesar de reconhecer que só a ausência de interrogação conduzirá à
felicidade, porque o conhecimento da essência das coisas é inacessível, Pessoa
não renuncia à sua lucidez, ainda que tenha consciência de que a questionação e
a capacidade analítica não o conduzirão à verdade. E esta evidência que surge no
célebre poema "Ela canta, pobre ceifeira".

"Ela canta, pobre ceifeira,


Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz (,..)

Ondula como um canto de ave


No ar limpo como um limiar,
(...)

Ouvi-la alegra e entristece,


Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão!


O que em mim sente 'stá pensando."|2'

Representando o instinto, a ceifeira, associada ao canto natural da ave,


sente a plenitude que advém da felicidade de existir sem recorrer à interrogação e
à consequente intelectualização das percepções e dos sentimentos.
É a incapacidade de ter a inconsciência da ceifeira e, portanto, a sua alegria, que
motiva o pedido do poeta, enfatizado pela utilização do modo imperativo e pela
frase de tipo exclamativo.
Derrama no meu coração
A tua incerta voz. ondeando!"
'"Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa, Lisboa, Editorial
Verbo, 1982, p. 97.
121
Fernando Pessoa, Poesias - Ortónimo, Col. Mundo das Letras, Porto, Porto Editora,
2007, p. 26.

Profª Cristina Pereira 1


Escola E.B. 2,3/S de Caminha Ano Lectivo 2011/12
12º Ano

A expressão do desejo do sujeito poético de ter a inconsciência da ceifeira,


que canta "como se tivesse / Mais razões pra cantar que a vida", mantendo,
porém, a consciência da sua inconsciência, ou seja, não abdicando da sua
capacidade de racionalização e da sua lucidez surge nos versos seguintes:
"Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! (...)" |2'

Pessoa escreveu outros poemas em que a temática da dor de pensar está


subjacente à construção do sentido das composições poéticas.
No poema "Gato que brincas na rua", a felicidade do gato é associada ao instinto,
pois este é o princípio "das leis fatais / Que regem pedras e gentes". Sentir opõe-
se ao acto que leva o poeta a ver-se, ou seja, à autoconsciência, sinónimo de
perda da identidade: "Eu vejo-me e estou sem mim, / Conheço-me e não sou eu. "

No poema "Cansa sentir quando se pensa", a dor de pensar resulta da


ausência de respostas, o que motiva a solidão ontológica, simbolizada pela
"noite", pelo "negro astral", pelo "silêncio surdo", pelo "frio", pelo "negror sem fim"
e pelo "silêncio mudo", e origina a incapacidade do sujeito poético de aceitar a sua
própria condição humana, porque o conhecimento é algo interdito ao Homem.

"Cansa sentir quando se pensa.


No ar da noite a madrugar
Há uma solidão imensa (...)

Tudo isto me parece tudo.


E é uma noite a ter um fim
Um negro astral silêncio surdo
E não poder viver assim.

(Tudo isto me parece tudo.


Mas noite, frio, negror sem fim,
Mundo mudo, silêncio mudo —
Ah, nada é isto, nada é assim)."

O poeta só encontra silêncio na sua demanda. Porém, o verso final deste


poema traduz a sua certeza de que existe uma realidade para além daquilo que
lhe é permitido percepcionar, o "informe real", numa reminiscência da tradição
platónica que estabelece a dicotomia entre o mundo da aparência e o mundo da
essência.
A poesia de Fernando Pessoa ele-mesmo reflecte, essencialmente, a
preocupação com o mistério da existência. Pessoa acredita num mundo para além
do mundo das aparências, o que o leva a encarar as realidades perceptíveis pelo
ser humano como irreais, como uma ilusão. A própria vida é, para ele, um sonho.
O poeta acredita que existe uma vontade superior ao Homem, que constrói o seu
destino e que tudo se harmoniza segundo uma paralógica que escapa ao ser
humano. A vida na terra é encarada como uma vivência necessária, para se
estabelecer uma harmonia que não temos capacidade de captar. O
pressentimento da existência do mistério que envolve o mundo sensível, aliado à
constatação do paradoxo que governa a existência - a vida e a morte -, motivou a

Profª Cristina Pereira 2


Escola E.B. 2,3/S de Caminha Ano Lectivo 2011/12
12º Ano

interrogação; a ausência de respostas provocou a consciência da tragicidade da


vida.
A interrogação sobre o destino do Homem está sempre presente nos
poemas de Pessoa, impregnando-os de uma nostalgia persistente, reflexo
imutável do reconhecimento dos limites que caracterizam a liberdade humana e da
fatalidade que atingirá o Homem, enquanto ser transitório. E, aliás, esta forma de
estar no mundo que o leva a distanciar-se dos acontecimentos e a escrever:
"Assisto ao que me acontece, de longe, desprendida-
mente, sorrindo ligeiramente das coisas que acontecem na
vida.

(...) Eu não tenho rancores nem ódios.


Esses sentimentos pertencem aqueles que têm uma opinião, ou uma profissão,
ou um objectivo na vida. Eu não tenho nada dessas cousas."1
e

"O meu pior mal é que não consigo nunca esquecer a minha presença metafísica na vida."

Foi este o objectivo de Fernando Pessoa - a sua vida foi uma incessante
procura de respostas (o que o levou a tentar encontrar no ocultismo aquilo que a
religião não lhe podia facultar); a sua poesia é um caminho para, através da arte,
reencontrar uma linguagem primordial, esquecida pelos homens e que o poeta
acreditou que o colocaria mais perto da Verdade.
'" Fernando Pessoa, Páginas Intimas e de Aufo-lnterpretação, Lisboa, Edições Ática, s/d,
p. 65. 121 Ibidem, p. 27.

Profª Cristina Pereira 3

Você também pode gostar