Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Cultura Jurídica Europeia PDF
Cultura Jurídica Europeia PDF
EUROPEIA
Síntese de um milénio
Prefácio / 1 7
1. A história do direito na formação dos ju rista s/21
1.1. A história do direito como discurso legitimador/ 22
1.2. A história critica do direito/33
1.2.1. A percepção dos poderes "periféricos" / 35
1.2.2. O direito como um produto social/ 38
1.2.3. Contra a teleologia/41
2. A importância da história
jurídico-institucional como discurso histórico/4 5
3. Linhas de força de uma nova
história política e institucional / 49
3.1. O objecto da história político-institucional.
A pré-compreensão do "político" / 49
3.1.1. A crise política do estadualismo/ 49
3.1.2. A pré-comprensão pós-moderna do poder/52
3.1.3. Contra uma história
político-institucional actualizante / 54
3.1.3.1. A política implícita da ideia
de "continuidade" (Kontinuitàtsdenken) / 54
3.1.3.2. A crítica do atemporalismo/ 56
3.1.4. A descoberta do pluralismo político/62
3.2. Uma leitura densa das fontes/ 69
3.2.1. Respeitar a lógica das fontes/ 70
3.2.2. A literatura ético-jurídica, como fonte
de uma antropologia política
da Época pré-Contemporânea / 75
3.2.3. "Cálculos pragmáticos" conflituais
e apropriações sociais dos discursos / 82
3.2.4. Texto e contexto. Modelos políticos
e condicionalismos práticos.
A sociologia histórica das formas políticas/85
3.2.5. Interpretação densa dos discursos,
história dos dogmas e história das ideias / 88
3.3. Uma nota sobre "relativismo metodológico"
e "relativismo moral" e sobre o papel dos
juristas, neste contexto/89
4. O imaginário da sociedade e do p o d e r/99
4.1. Imaginários políticos/ 99
4.2. A concepção corporativa da sociedade/101
4.2.1. Ordem e criação/101
4.2.2. Ordem oculta, ordem aparente/104
4.2.3. Ordem e vontade/105
4.2.4. Ordem e desigualdade /108
4.2.5. Ordem e "estados" /111
4.2.6. Ordem e pluralismo político/ 114
4.3. A dissolução do corporativismo
e o advento do paradigma individualista/116
5. A formação do "direito comum" /121
5.1. Factores de unificação dos direitos europeus/123
5.1.1. A tradição romanistica /123
5.1.1.1. Direito romano clássico,
direito bizantino e direito romano vulgar /123
5.1.1.1.1. Súmula das épocas
históricas do direito romano /127
5.1.1.1.2. Sistematização e método
de citação do Corpus luris Civilis/ 129
5.1.1.1.3. Sistematização e método
de citação do Corpus luris Canonicis /131
5.1.1.1.4. Os estudos romanísticos no
quadro da formação dos juristas /132
5.1.1.1.5. Súmula cronológica da
evolução do direito romano/139
5.1.1.2. O direito romano na história
do direito português/140
5.1.1.3. A recepção do direito romano/141
5.1.1.4. A influência do direito romano
na própria legislação local /147
5.2. A tradição canonística/148
5.2.1. O lugar do direito canónico
no seio do direito comum/152
5.2.2. O direito canónico como limite
de validade dos direitos temporais /153
5.2.3. O direito canónico na
história do direito português /155
5.2.4. Direito recebido e direito tradicional/158
5.3. Resultado: uma ordem jurídica pluralista /160
5.3.1. Uma constelação de ordens normativas/163
5.3.2. Direito canónico e direito civil/166
5.3.3. Direito comum e direitos dos reinos/166
5.3.4. Direitos dos reinos
e direitos dos corpos inferiores /168
5.3.5. Direito comum e privilégios/171
5.3.6. Direito anterior e direito posterior /172
5.3.7. Normas de conflito de "geometria variável" /173
5.3.8. Uma ordem jurídica flexível / 174
5.3.8.1. Flexibilidade por meio da graça/175
5.3.8.2. Flexibilidade por meio da equidade/179
5.4. Direito do reino em Portugal.
Épocas medieval e moderna /183
5.4.1. Direito visigótico/183
5.4.2. Feudalismo e direito feudal/183
5.4.2.1. Bibliografia/189
5.4.3. O costume/189
5.4.4. A legislação/190
5.4.4.1. Bibliografia/196
5.5. A unificação pela "cientificização".
As escolas da tradição jurídica medieval /197
5.5.1. A Escola dos Glosadores/197
5.5.2. A Escola dos Comentadores/ 209
5.6. O modelo discursivo do direito comum europeu/220
5.6.1. Génese do modelo do
discurso jurídico medieval / 220
5.6.1.1. Factores filosóficos / 222
5.6.1.2. Factores ligados à natureza
do sistema medieval das fontes de direito/ 226
5.6.1.3. Factores institucionais/ 228
5.6.2. A estrutura discursiva/229
5.6.2.1. A oposição do "espírito" à "letra" da lei/230
5.6.2.2. A interpretação lógica/231
5.6.2.3. A utilização da dialéctica aristotélico-
escolástica e, especialmente, da tópica / 233
5.6.2.4. Conclusão/242
. A crise do século XVI e as
orientações metodológicas subsequentes/ 245
6.1. Uma nova realidade normativa/ 245
6.2. O desenvolvimento interno
do sistema do saber jurídico / 251
6.3. As escolas jurídicas tardo-medievais e modernas/255
6.3.1. Escola culta, humanista ou
"mos gallicus iura docendi" / 255
6.3.2. Escola do "usus modernus Pandectarum" / 259
6.4. Ius commune e common law/ 262
6.5. A cultura jurídica popular / 270
6.6. A doutrina em Portugal
(épocas medieval e moderna) / 279
6.6.1. Bibliografia/ 286
7. As escolas jurídicas seiscentistas e setecentistas:
jusnaturalismo, jusracionalismo,
individualismo e contratualismo / 289
7.1. Os jusnaturalismos / 289
7.1.1. O jusnaturalismo da escolástica tomista / 289
7.1.1.1. A Escola Ibérica de Direito Natural/291
7.1.2. O jusnaturalismo
racionalista (jusracionalismo) / 293
7.1.3. O jusracionalismo moderno/ 296
7.2. Algumas escolas jusnaturalistas / 297
7.2.1. Os jusnaturalismos individualistas/ 301
7.2.1.1. A teoria dos direitos subjectivos/306
7.2.1.2. Voluntarismo/310
7.2.1.3. Cientificização/ 318
7.2.2. A tradição do jusnaturalismo objectivista/ 320
7.2.3. A ciência de polícia/325
7.2.4. A ideia de codificação/329
7.3. A prática jurídica / 332
7.4. O direito racionalista e as suas repercussões / 336
7.5. O direito racionalista em Portugal/338
7.5.1. Bibliografia / 339
8. O direito na Época Contemporânea / 341
8.1. O contexto político/341
8.2. Entre vontade e razão/ 345
8.2.1. Democracia representativa e legalismo/ 345
8.2.I.I. "Razão jurídica" vs. "razãopopular"/351
8.2.1.2. Tradição/353
8.2.1.3. Direitos individuais / 356
8.2.1.4. Elitismo social/ 362
8.2.1.5. Estadualismo e "direito igual"/365
8.2.1.6. O "método jurídico"/366
8.2.1.7. "Positivismo’conceitual"
e "Estado constitucional"/369
8.2.2. Positivismo e cientismo/ 373
8.3. As escolas clássicas do século XIX/376
8.3.1. A Escola da Exegese. A origem do legalismo/ 376
8.3.2. A Escola Histórica Alemã.
A vertente organicista e tradicionalista / 383
8.3.2.1. A cultura jurídica portuguesa
da primeira metade do séc. XIX/ 388
8.3.3. A Escola Histórica Alemã. A vertente
formalista ou conceitualista. A jurisprudência
dos conceitos (Begriffsjurisprucknz)
ou Pandectística (Pandektemvissenscluift) / 391
8.3.3.1. Os dogmas do conceitualismo/ 399
8.3.3.2. O conceitualismo em Portugal/400
8.4. As escolas anti-conceitualistas e anti-formalistas.
Naturalismo, vitalismo e organicismo / 402
8.4.1. A jurisprudência teleológica/ 405
8.4.2. A Escola do Direito Livre/406
8.4.3. A jurisprudência dos interesses/ 408
8.4.3.1. A jurisprudência
dos interesses em Portugal / 410
8.4.4. O positivismo sociológico
e o institucionalismo / 411
8.4.4.1. Positivismo sociológico
e institucionalismo em Portugal/ 427
8.4.5. A reacção anti-naturalista.
Valores e realidade/432
8.4.6. O apogeu do formalismo.
A Teoria pura do direito / 435
8.4.6.1. A reacção
anti-sociologista em Portugal/437
8.5. As escolas críticas / 442
8.5.1. O sociologismo marxista
clássico no domínio do direito / 443
8.5.2. O marxismo ocidental dos anos sessenta/449
8.5.3. A "crítica do direito"/451
8.5.4. O "uso alternativo do direito"/453
8.5.4.1. As correntes críticas em Portugal/462
8.6. As escolas anti-legalistas / 466
8.6.1. Sentidos gerais do
anti-legalismo contemporâneo / 467
8.6.2. Em busca de uma "justiça material" / 469
8.6.3. Os jusnaturalismos cristãos / 479
8.6.3.1. O jusnaturalismo em Portugal/484
8.6.4. O pós-modernismo jurídico / 486
8.6.4.1. Direito do quotidiano/492
8.6.4.2. O direito como universo simbólico/496
8.6.4.3. Um direito flexível/499
8.6.4.4. O pluralismo jurídico/ 502
8.6.4.5. Construtivismo auto-referencial/507
9. Bibliografia/513
P r e f á c io
1Outros sistemas de legitimação da ordem são: a religião (o que Deus [os deu
ses] quis), a tradição (os "bons velhos tem pos"), a natureza (o que tem que
ser), a rotina (o que sem pre se faz), o contrato (a "p alavra dada").
24 António Manuel Hespanha
4 /.e., relacionado com o de outros conceitos próximos que ocorram numa cer
ta época da história do discurso (v.g., "liberdade" com "escravidão", ou com
"despotism o", ou com "anarquia"; "dem ocracia", ou com "m onarquia", ou
com "aristocracia", ou com "d itadu ra", ou com "anarquia", ou com "totali
tarism o").
5Cf. Hespanha, 1984b.
28 António Manuel Hespanha
6Barberis, 1999.
7 Cia vero, 1982.
8Cf. Grossi, 1992.
Cultura Jurídica Europeia 29
9 Cf. Grossi, 1998, 274, referindo-se a uma obra clássica de Emílio Betti, Diritto
romano e dogmatica odiema, 1927, hoje publicada em Betti, 1991.
Cultura Jurídica Europeia 33
mo. Debaixo dos nossos olhos, a instituição Estado, tal como ti
nha sido construída pela teoria política liberal, dissolve-se e de
saparece. E, com ela, uma série de modelos exemplares de vi
ver a política ou de ter contacto com o poder (o sufrágio, os par
tidos, a lei, a justiça oficial) 2S. Mesmo o imaginário ligado ao
paradigma Estado está em crise: a igualdade, como objectivo
político, vê-se confrontada com as pretensões de garantia da di
ferença; o interesse geral tende a ceder perante as pretensões
corporativas ou particularistas; o centralismo debate-se com to
das as espécies de regionalismo; o império da lei é atacado, tan
to em nome da irredutibilidadç de cada caso e da liberdade de
apreciação do juiz a isso ligada, como em nome das ideias de
concertação e de negociação, que fazem com a lei seja, cada vez
mais, um contrato pactado entre o Estados e grupos particula
res; a intenção "racionalizadora" capitula diante das pretensões
liberais mais radicais 29. O próprio Estado, a braços com crises
de eficiência e de legitimidade, parece que não pode, não care
ce de, e não quer, manter a sua missão ordenadora30. Em suma,
o Estado abandona progressivamente o imaginário político.
Este modelo Estado tinha sido desenhado de acordo com
uma arquitectura precisa 31, que previa:
(i) a separação rigorosa entre a "sociedade política" (a po
lis, i.e., o Estado e as suas instituições munidas de impe-
riurti) e a "sociedade civil" (o quotidiano e os seus arran
jos "privados", contratuais, de poder);
MLim itando-m e a exem plos dos últimos anos, vindos de cantos opostos da
reflexão sobre a política: P. Legendre, no âmbito de um a já longa reflexão
sobre a forma estatal (desde L'amour du censeur, 1974, até Les enfants du texte.
Étude sur la fonction parentale des États, 1992, até ao Trésor historique de l'État
en France. L'administration classique, 1992), prognostica "a sua dissolução do
interior, deixando lugar a outra coisa" (Trésor..., 13). Do lado das teorias do
management - cujo papel dogm ático (i.e., legitimador das relações políticas
estabelecidas) é colocado p o r P. Legendre ao lado do direito dos Estados
contem porâneos - , tom am os o exem plo de A. Toffler (Toffler, 1990) que vê
nas actuais deslocações do poder (pozvershift) o sinal do advento de uma nova
época civilizacional, dom inada por formas moles e flexíveis de organização
(flex-organisations).
54 António Manuel Hespa
das por todo o lado na história. Não podiam, por isso, deixar de
ser formas contínuas e necessárias da razão jurídica e política. Que
esta continuidade fosse o próprio produto do próprio olhar do
historiador era questão de que não se parecia estar consciente.
Mas, além de poder ser lida neste registo da "perm anên
cia", a continuidade também pode ser lida no registo da "evo
lução". Neste caso, trata-se de assistir ao nascimento e secular
aperfeiçoamento de um conceito ou de um instituto. A "conti
nuidade" é concebida como a continuidade dos seres vivos, que
crescem e desabrocham, em flores e, finalmente, em frutos. A
sabedoria político-jurídico da Humanidade, justamente porque
continuaria o passado e não perderia os seus ensinam entos,
aperfeiçoar-se-ia - i.e., progrediria linearmente por acumulação.
A partir desta ideia, institui-se uma visão progressista da histó
ria do poder e do direito, que transforma a organização institu
cional actual num ómega da civilização política e jurídica. O
Estado liberal-representativo e o direito legislado (ou, melhor
ainda, codificado) constituiriam o fim da história, o termo últi
mo de todos os processos de "modernização".
A visão histórica, ainda aqui, servia para documentar essa
saga, essa contínua luta pelo direito (Kam pfum Recht). Os dog
mas do direito histórico não são já, como no caso anterior, teste
munhos da justeza dos do presente. Mas testemunhos da acti
vidade de libertação da Razão jurídica em relação à força, aos
preconceitos e às doenças infantis 3S.
Pressuposto deste uso legitimador da história era, num caso
ou noutro, a ideia de continuidade. Ou seja, a ideia de que o sa
ber do presente se enraizava no saber do passado e que recebia
deste as categorias fundamentais sobre as quais trabalhava. De
facto, a chave do sucesso da tradição romanística, desde os glo-
sadores até à pandectística alemã, foi sempre o mascarar do ca
rácter inovador da "recepção", o facto de esta repousar sempre
sobre uma duplex interpretatio.
Com efeito, ficcionava-se que o sentido pelo qual se tomavam
36 O preço pago por esta orientação foi uma inevitável "historicização" das cor
rentes romanísticas e a sua perda de peso nas Faculdades de Direito. Por isso,
alguns sectores rom anistas propuseram um estudo "jurídico" (actualizante) do
direito rom ano, reactivando as intenções dogmáticas da pandectística (zurück
zu Savigny, zu dem heutigen System des römischen Rechts). V., neste último senti
do, o "m anifesto" de Cruz, 1989b, 113-124. Para a crítica, v. infra, 5 .I.I.I.4 .
Cultura Jurídica Europeia 57
37V., no m esm o sentido, em bora com diferente argum entação, Levi, 1998.
38 Indicações bibliográficas, avaliação global e nota sobre os precursores, Hes-
panha, 1984b, 31 ss.
39A fortuna que este autor veio a ter na historiografia da época m oderna (sécs.
XV-XVIII) deve bastante à sua recepção pela historiografia político-institu-
cional crítica (m as, desta vez, "d e esquerda") italiana dos anos '70 e ao des
taque que é dado à sua obra nos prefácios de duas antologias que então es
tiveram muito em voga, a de Schiera-Rottelli e a de A. Musi (Rottelli, 1971;
Musi, 1979). O mesm o destaque lhe foi dado por mim, em H espanha, 1984b.
40 V. Blockmans, 1993.
58 António Manuel Hespanh;
wMais tarde (cf. 8.4.6. O apogeu do form alism o. A Teoria pura do direito.), vere
m os com o a "ideia de sep aração" estava de acordo com teorias jurídicas qu
propunham um a nítida separação entre o estudo do "s e r" (Sein; a socieda
de) e o "d ev er ser" (Sollen; o direito).
44 As propostas metodológicas de J.-M. Scholz dirigiam -se, antes de tudo, con
tra a história dos dogm as (Dogmengeschichte). Mas era claro que elas nã-
se dirigiam menos contra a história "m ilitan te" dos anos sessenta, politi
cam en te com p rom etid a, pronta a denunciar, em nom e dos valores do pre
sente, as aberrações do passado, sobretudo aquelas que se p rolon gavar
no presente, ou de que se podia fazer u m uso, directo ou m etafórico, ri
luta cívica ou política.
60 António Manuel H espanha
'■'Sobre o tema, muito expressivo, Clavero, 1991; sobre a estratégia da sua de<
truição, no nível do imginário e no nível da prática, v. Bauman, 2001, 7-39
50 Sobre isto, v., em síntese, Hespanha, 1993b, 122 ss.
Cultura Jurídica Europeia (x
55 A influência deste m odelo - que tam bém foi proposto, ainda que de forma
menos sistem ática, em Itália, por historiadores contem porâneos de Clave-
ro, com o P. Schiera - é hoje grande em Itália, Espanha e Portugal, sobretudo
entre os m odernistas (cf. apreciação, em Levi, 1998). A historiografia ingle
sa sem pre lhe esteve mais próxim a, com o tam bém certas correntes da histo
riografia alem ã. Em todo o caso, tanto na A lem anha com o em Fran ça, o
m odelo estatalista ainda dom ina. P ara um a panorâm ica dos pontos de vista
mais recentes sobre o "E stad o m od ern o", v. Blockmans, 1993.
36 Os efeitos desta leitura da história jurídico-política são chocantes para os
partidários de um a história jurídica, institucional e política centrada sobre
o Estado e que insista na ideia de centralização, com o característica das m o
narquias europeias da Época M oderna. E m Espanha, esta im agem era tri
butária do centralism o político da época de Franco (Espana, una, grande, li
bre). Mas algum a da historiografia pós-franquista não deixa de com ungar
desta visão centralizadora. O que explica, em certa m edida, o tom polémi
co que envolve, ainda hoje, a obra de C lavero no seu próprio país.
Cultura Jurídica Europeia 65
67"E v ery individual necessarily labours to render the annual revenue of the
society as great as he can. H e generally neither intends to prom ote the pu
blic interest, nor knows how m uch he is prom oting it...He intends only his
ow n gain, and he is in this, as in m any other cases, led by an invisible hand
to prom ote an end which w as no part of his intention. N or is it alw ays the
w orse for society that it w as no part of his intention. By pursuing his ow n
interest he frequently promotes that of the society m ore effectually than when
he really intends to prom ote it. I have never know n m uch good done by those
w ho affected to trade for the public good ." (An Inquiry into the Nature and
Causes of the Wealth of Nations, 1776)
Cultura Jurídica Europeia 69
3 . 2 . 1 . R e sp e ita r a ló g ica d as fo n te s
83Cf. Levi, 1985; Curto, 1994. As posições dos dois autores - que tom am os ape
nas com o exem plo de correntes mais vastas - são diferentes. Levi insiste no
"casu ísm o"(ou "m icro-h istória") porque acha que, em bora existam valores
ou visões do m undo gerais e estruturadas (por exem plo, um a visão católica
da política, na época m oderna, cf. Levi, 1998), elas são sem pre funcionaliza-
das ou relativam ente deform adas funcionalizadas pelos agentes, em função
de conflitos sociais concretos. C urto, pelo seu lado, acha que as situações
concretas são tão estruturantes das sensibilidades, dos interesses e das raci
onalidades, que a referência a quaisquer modelos gerais de sensibilidade ou
de com portam ento reduz inaceitavelm ente a com plexidade do m undo.
Cultura Jurídica Europeia 81
115M as que, por exem plo, exclui um a discussão do m esm o género sobre a pre
ferência do estado "n ob re" e do estado "m ecânico".
86 O u as estratégias opostas de dois jogadores não dessoram o patrim ónio co
m um das regras do jogo.
84 António M anuel Hespanha
87 Dumont, 1966.
88 V.g., a oportunidade ou eficácia do ponto de vista do interesse da coroa,
deixando inatendidos os pontos de vista de outros interesses, cuja conside
ração conjunta e equilibrada constituía, precisam ente, a justiça.
89C om o acontece com o "direito dos rústicos", ignorado ou referido depreci
ativam ente com o os usos dos ignorantes ou dos rudes; cf. H espanha, 1983.
90N ote-se que se inverte aqui a costum ada relação entre "interesse" e "rep re
sentação" (a representação é considerada com o gerando os interesses, e não
o contrário ...) (cf., infra, 3.2.3. "C álcu los pragm áticos" conflituais e apropri
ações sociais dos discursos.).
Cultura Jurídica Europeia 85
3 . 2 .4 . T e x to e c o n te x to . M o d e lo s p o lítico s e c o n d ic io n a lis m o s
p rá tic o s . A so cio lo g ia h is tó r ic a d a s fo rm a s p o lítica s
3 . 2 . 5 . I n te r p r e ta ç ã o d e n s a d o s d is c u rs o s ,
h is tó ria d o s d o g m a s e h is tó ria d a s id e ia s
' “ P a ra utilizar u m expressão de B oaventura Sousa Santos, prom ove u m a " ra
zão màoYetvte" (Santos, 2000).
Cultura Jurídica Europeia 93
101Com empobrecido quer-se dizer qualquer meio que não corrija o desenraiza-
mento, a atom ização, a desorientação, a superficialidade, dos indivíduos
na actual sociedade massificada, im ersa no excesso e consequente relativi-
zação e indiferença da inform ação. Neste sentido, pobres são os referen
dos ou eleições partidocráticos, as sondagens de opinião, a m edida das
audiências televisivas. Ricos serão, em contrapartida, todas as formas de
discussão política substancial, informada, que coloque as pessoas face a face
e as provoque a um a discussão política profunda sobre temas que abar
quem, mas dos quais se possa partir conscientemente para generalizações.
94 António Manuel Hespar
variety is the beginning, not the end, of the m atter; It is but a starting point
for a long and perhaps tortuous, but in the end beneficial, political process"
(Baum an, 2 0 0 1 ,1 3 5 /1 3 6 ). Não creio que isto ande muito longe, na intuição
e nos resultados, do processo proposto por G. Zagrebelsky, em II diritto mite,
2000): "L'insiem e dei principi costituzionali [...] dovrebbe costituire u n so rta
di "senso com une" dei diritto. II terreno d'intesa e di reciproca com prensi-
one in ogni discorso giuridico, la condizione per Ia risoluzione dei contras-
ti attrav erso la discussione invece che attra v e rso la sopraffazione. Essi
dovreb-bero svolgere il ruolo degli assiom i nei sistemi dom inati dalla ló
gica form ale. Ma, m entre questi ultimi restano quelli che sono, fino a tanto
che si resta nel medesimo sistema, nelle scienze pratiche i loro assiomi, com e
il senso com une nella vita sociale, sono soggetti al lavorio dei tem -po [...]
La pluralità dei principi e dei valori cui rinviano è 1'altra ragione di im pos
sibilita di un formalismo dei principi. Essi non si strutturano, di regola, se-
condo una "gerarch ia dei valori" [...] La pluralità dei principi e 1'assenza di
una gerarchia formalmente determ inata com porta che non vi possa essere
una scienza delia loro composizione ma una prudenza nel loro bilanciamen-
to. La "p ratica concordanza" cui si è falto cenno, o la "pesa dei beni giuri-
dici indirizzata al princípio di proporzionalità" (Güterabwügung ausgerichte-
te am Verhãltnismassigkeitgrundsatz) di cui parla Ia dottrina tedesca rientra-
no in questa prospettiva. Ma, per quanti sforzi le giurisprudenze costituzi
onali abbiano fato per form alizzare i procedim enti logici di questo bilanci-
am ento i risultati - dal punto di vista di una scientia juris - sono deludenti.
Forse, 1'unica regola formale di cui si può p arlare è quella delia "ottim izza-
zione" possibile di tutti i principi; m a com e ottenere questo risultata è ques
tione em inentem ente pratica e "m ateriale" (Zagrebelski, 1 9 9 2 ,1 7 0 -1 7 1 '.
96 António M anuel Hespanha
lw A diferença é que os "restan tes grupos" não form ulam a sua reivindicação
num sentido generalizável, que possa incluir m esm o o grupo visado. Por
exem plo, podem ser opostos aos hom icidas os valores de todos os que o
não são, porque estes valores aproveitaram aos próprios hom icidas. Podem
ser opostos aos que fogem ao fisco os valores dos que p ag am impostos,
porque o p agar im postos reverte a favoT de todos. ]á os valores racistas da
maioria não p odem ser opostos a um a m inoria, porque esta n ão aproveita
ria deles.
1(6O zapping dos valores tem u m a certa similitude com o zapping dos canais de
televisão ...
Cultura Jurídica Europeia 97
106 " a tom ada de consciência de que os factos jurídicos são fabricados e não
n ascem assim , são socialm ente co n stru íd o s, com o diria u m an tro p ó lo
go, p or tod o um conjunto que inclui reg ras de p ro v a, a etiqueta do tri
bunal e as tradições de acertam en to do d ireito, até às técnicas de a leg a
ção, a retó rica dos juizes e a escolástica da form ação nas F acu ld ad es de
D ireito [...] [O direito com o] um a form a de im ag in ar o real [...] u m m u n
do em que as descrições jurídicas têm um sen tid o " (G eertz, 1986b , 2 1 4 /
215).
107 Sobre este im portantíssim o sociólogo do direito dos nossos dias e a sua con
cepção do direito com o um sistem a "au to-poiético", v. A m au d , 1993.
'“ Tam bém no sentido da im portância da história dos im aginários políticos,
v., por último, Albuquerque, 2002. A divergência que o A. nota com posi
ções minhas (cf. p. 19 ss.) - quando eu valorizo a dim ensão institucional, a
ponto de dizer que, perante ela, certas questões teóricas podem perd er a
sua relevância - não é tão significativa com o isso,. Apenas quis então dizer
que, se nas práticas institucionais (do Estado m oderno) certos princípios
doutrinais (com o, por exem plo, o de um a nítida suprem acia do p oder real)
não obtém tradução, estas princípios são inúteis p ara o traçado do m odelo
institucional (do Estado m oderno). Em bora a sua perm anência a nível dou
trinal se possa sem pre vir a enraizar em instituições (com o, de facto, veio a
acontecer neste caso).
Cultura Jurídica Europeia 101
4 . 2 . 1 . O rd e m e c r ia ç ã o
112Villey, 19 6 8 ,4 2 8 -8 0 .
104 António Manuel Hespanha
4 . 2 . 2 . O rd e m o c u lta , o rd e m a p a re n te
113 " O direito é a arte do bom e do equitativo. Pe\o que h á quem nos [aos juris
tas^ cham e sacerdotes sobre este carácter quase sacerdotal da profis
são \und\ca, d . Kyt\\o, 1 9 7 6 a , M l s., com citações muito im pressivas (u.g.,
" m agistratus a O eo positi sunt, düque vocantvir” Vos m agistrados são pos
tos por D eus e cViamam-se àeu se s\ ,N .T o p iu s,1 6 5 5 y
Cultura Jurídica Europeia 105
4 . 2 .4 . O rd e m e d e sig u a ld a d e
4 .2 . 5 . O rd e m e “e s ta d o s ”
huns dos tres estados, que Deus quis, per que se mantivesse o
mundo, ca bem assy como os que rogan pelo povo se llaman
oradores, e aos que lavran a terra, per que os homes han de vi
ver, e se manteem, são ditos mantenedores, e os que han de de
fender são llamados defensores", pode ler-se nas Ordenações ajbn-
sinas portuguesas (1446), inspiradas nas Partidas (I, 2, 25, pr.).
Mas esta classificação das pessoas podia ser mais diversifi
cada e, sobretudo, menos rígida. De facto, ela era apenas uma fór
mula, muito antiga na cultura occidental (G. Dumézil, La réligion
archaïque romaine, Paris, 1967), de representar a diversidade dos
estatutos jurídicos e políticos das pessoas. No domínio da repre
sentação em cortes, manteve-se basicamente a classificação tripar
tida até aos finais do Antigo Regime. Já noutros planos da reali
dade jurídica (direito penal, fiscal, processual, capacidade jurídi
ca e política), os estados eram muito mais numerosos. Nos dis
tintos planos do direito, constituiam-se, assim, estatutos pessoais
ou estados, correspondentes aos grupos de pessoas com um mes
mo estatuto jurídico (com os mesmos privilégios).
A concepção do universo dos titulares de direitos como um
universo de "estados" (status) leva à "personificação" dos esta
dos. Ou seja a considerar que uma mesma pessoa tem vários
estados e que, como tal, nela coincidem várias pessoas. Fenóme
no tornou-se conhecido, para a realeza, depois do célebre livro
de Kantorowicz sobre os vários corpos do rei (Kantorowicz,
1957). Mas esta pluralidade de pessoas num só indivíduo era
algo de muito mais geral. Como escreve o jurista português
Manuel Álvares Pegas (Pegas, 1669, XI, ad 2,35, cap. 265, n. 21),
"nem é novo, nem contrário aos termos da razão, que um e o
mesmo homem, sob diferentes aspectos, use de direitos diferen
tes". O exemplo teológico deste desdobramento da personalida
de era o do mistério da Santíssima Trindade, em que três pesso
as distintas coexistiam numa só verdadeira. O mesmo se passa
va no exemplo, bem conhecido e já evovcado, dos "corpos do
r e i". N a mesma pessoa íísica do monarca coexistiam a sua "pes
soa privada" e a sua "pessoa publica". Ou ainda mais pessoas,
como, D.g., se o rei íosse, como toi, a certa altura, em Portugal,
Cultura Jurídica Europeia 113
Homem que não tenha estado não é pessoa. De facto, há pessoas que,
por serem desprovidas de qualidades juridicamente atendíveis, não
têm qualquer status e, logo, carecem de personalidade. Tal é o caso dos
escravos ("Quem não tenha nenhum destes estados [civil, de cidadania
ou familiar, status civilis, civi-tatis, familiae] é havido, segundo o
direito romano, não como pessoa, mas antes como coisa", escreve
Vulteius (Vulteius, 1727, cit. por Coing, 1985,1,170).
121 Um a análise fundam ental das im plicações políticas e m orais desta revolu
ção do im aginário social foi magistralm ente feita por Zygm unt Baum an (,
1987,1995).
118 António Manuel Hesp
certa autonomia da Natureza emface da Graça e, consequentemente,
do saber temporal em face da fé. Mas foi, paradoxalmente, uma
recaída no fideismo, na concepção de uma completa dependência do
homem e do mundo em relação à vontade absoluta e livre de Deus
que levou a uma plena laicização da teoria social. Se Deus se move
por "impulsos" (teoria do impetus, de raiz estóica), se os seus
desígnios são insondáveis, não resta outro remédio senão tentar
compreender (racionalmente ou por observação empírica) a ordem
do mundo nas suas manifestações puramente externas, como se
Deus não existisse, separando rigorosamente as verdades da fé das
aquisições intelectuais. É justamente esta laicização da teoria social -
levada a cabo pelo pensamento jurídico e político desde Hugo
Grócio a Tomás Hobbes (v. infra, 7.1.) - que a liberta de todas as
anteriores hipotecas à teologia moral, do mesmo passo que liberta os
indivíduos de todos os vínculos em relação a outra coisa que não
sejam as suas evidências racionais e os seus impulsos naturais.
A partir daqui, este não pode mais ser tido como fundado numa
ordem objectiva das coisas; vai ser concebido como fundado na
vontade. Numa ou noutra de duas perspectivas. Ou na vontade
soberana de Deus, manifestada na Terra, também soberanamente,
pelo seu lugar tenente - o príncipe (providencialismo, direito divino
dos reis). Ou pela vontade dos homens que, levados ou pelos perigos
e insegurança da sociedade natural, ou pelo desejo de maximizar a
felicidade e o bem estar, instituem, por um acordo de vontades, por
um pacto, a sociedade civil (contratualis-mo). A vontade (e não um
equilíbrio - ratio - preestabelecido)122é,
123 Mas, já antes dele, Marsílio de Pádua a definira como "preceito coercitivo" e
Samuel Puffendorf com o "com ando proveniente da vontade do legislador"
124 Note-se, no entanto, que a ideia de um pacto na origem das sociedades civií
não era estranha à teoria política tradicional. Só que, com o vim os, este pactc
apenas definia a forma de governo (que Aristóteles considerara mutável); nãc
já a forma do poder. E mesmo aquela, uma vez estabelecida, consolidava-se
em direitos adquiridos (iura radicata) impossíveis de alterar.
120 António M anuel H espanha
115 Sobre estas correntes, com bibliografia suplem entar, X avier, 1 9 9 3 ,1 2 7 . So
bre as escolas do pensam ento político m oderno, ibid., 127 ss.
5- A FORMAÇÃO DO “ DIREITO COMUM”
Por outro lado, o sentimento de unidade do direito foi -em grau não menor
- suscitado pela homogeneidade da forraa-ção intelectual dos agentes a
cargo de quem esteve a criação do saber jurídico medieval - os juristas
letrados. Tratavam-se de universitários com uma disposição intelectual
comum, modelada por vários factores que se verificavam em toda a área
cultural europeia centro-ocidental. Primeiro, o uso da mesma língua
técnica - o latim -, o que lhes criava, para além daquele "estilo" mental que
cada língua traz consigo, um mesmo horizonte de textos de referência
(numa palavra, a tradição literária romana). Depois, uma formação
metodológica comum, adquirida nos estudos preparatórios universitários,
pela leitura dos grandes "manuais" de lógica e de retórica128utilizados
nas Escolas de Artes de toda a Europa. Finalmente, o facto de o ensino
universitário do direito incidir unicamente - até à segunda metade do
século XVIII - sobre o direito romano (nas Faculdades de Leis) ou sobre o
direito canónico (nas Faculdades de Cânones), pelo que, nas escolas de
direito de toda a Europa central e ocidental, desde Cracóvia a Lisboa, desde
Upsala a Nápoles, se ensinava, afinal, o mesmo direito. O mesmo direito,
na mesma língua, com a mesma metodologia. É do trabalho combinado
destes factores - a unificação dos ordenamentos jurídicos suscitando e
possibilitando um discurso jurídico comum, este último potenciando as
tendências unificadoras já
128 Dos quais, o principal foi, até ao século XVI, as Summae logicales do
português Pedro Hispano (depois, papa João XXI, m. 1272).
Cu\tura ] uri dica Europeia 123
5 . 1 . 1 . A tr a d iç ã o r o m a n ís tic a
129 N ote-se, desde já, que o direito comum é um fenóm eno mais de natureza
doutrinal do que legislativa. Isto é notório quando, a p artir da Baixa Idade
Média (séculos XIII e ss.) se cria um a espécie de costume doutrinal (opinio
communis doctorum) que passa a ser decisivo - mais do que as próprias fon
tes dos direitos dos reinos - na orientação da jurisprudência. Em Portugal,
por exem plo, apesar de as Ordenações conferirem ao direito rom ano um lu
gar apenas subsidiário no quadro das fontes do direito (O rd.fil, III, 64), na
prática ele era o direito principal, sendo m esm o aplicado contra o preceito
expresso do direito local (Cruz, 1 9 5 5 ,1 0 ; Costa, 1 9 6 0 ,2 5 ; e M erêa, 1939, 539
ss.). Com o o direito rom ano constituía a base da form ação dos juristas e
juizes de então e era o direito veiculado pela doutrina vigente e aceite nos
tribunais, forma-se um costum e doutrinal e judicial contra legem, mas d o
tado de verdadeira opinio iuris (i.e., sentido com o obrigatório).
130Sobre a história do direito romano, suas épocas e principais características, v.
Gilissen, 1988,80-100. Para maiores desenvolvimentos, D'Ors, 1973; Kaser, 1959.
124 António M anuel H espanha
131 Existiam ainda, com o fonte de direito, alguns resíduos de direito consue-
tudinário e as determ inações legislativas do Senado, os senatusconsulta, al
guns dos quais com certa relevância em m atéria jurídica.
132 O rdens deste tipo são: as stipulationes praetoriae [efectivação de prom essas
forçadas pelo pretor], as restitutiones in integrum [ordem de reposição do
estado anterior], as missiones in possesionem [entregas forçadas], os interdic-
ta [proibições de agir ou ordens de exibir, restituir]. C om elas, o pretor cri
ava situações de facto que alteravam os pressupostos de aplicação do di
reito.
Cultura Jurídica Europeia 125
É p o ca a rc a ic a • O p rim a d o d o c o s tu m e .
(753 a.C . - 1 3 0 a .C ) A n a tu re z a a p e n a s
e x p lic ita d o ra d a s leis.
In d istin ção ius-fas-mos. • O c a rá c te r s a c ra l d o d ire ito :
• R itu ais ju ríd ico s - a emptio
A Lei das X II Tábuas (c. 4 5 0 a.C ) venditio fu n d i.
(ex. S .C ., p . 185) • F ó rm u la s m á g ic a s -
a stipulatio.
• In d e rro g a b ilid a d e e
fo rm a lis m o d o s in s tru m e n to s
ju ríd ico s - a s legis actiones.
• O s a b e r ju ríd ico p ru d e n c ia l
• A n a tu re z a o ra c u la r d o
d iscu rso ju ríd ico - pontífices
(pontem facere) e ju ristas.
• A a p re n d iz a g e m do
d ire ito p e la p rá tic a
ju n to d o s p erito s.
(cont.)
134 A tal ponto que, até aos inícios do século XIX - data em que se descobre um
manuscrito das Institutiones de Gaio, um jurista dálm ata do século III - , não
se conhecia nenhum a obra completa, dos milhares das provavelm ente es
critas por juristas rom anos.
128 António M anuel Hespanha
(cont.)
(cont.)
(cont.)
5Na Idade M édia, o Digesto aparecia dividido em Digestum Vetum (livs. '
24,3,2); Digestum novum (livs. 39-50) e Digestum Infortiatum (livs. 24,3,3-38)
6Primeira palavra da "lei".
7 O nome grego do Digesto com eçava pela letra P (pi) que, m anuscrita se a
semelhava a dois f. E foi assim que os copistas m edievais a copiaram .
“Epígrafe do título.
9E fragmento não dividido em parágrafos.
5.1.1.1.3. Sistem atização e método
de citação do Corpus Iuris Canonicis
É certo que o direito actual é o herdeiro, nas suas palavras, nos seus
conceitos, nas sua instituições, de uma longa tradição na qual os
textos de direito romano tiveram um lugar central. Mas a primeira
coisa que é preciso dizer é que, ao longo dessa longa tradição, os
textos romanos sofreram reinterpretações contínuas, ao mesmo tempo
que, da imensa mole de textos disponíveis, os que. protagonizavam o
discurso jurídico iam sucessivamente mudando. Pode mesmo dizer-se
que, se não fosse essa contínua alteração silenciosa do direito romano
invocado pela
Cultura Jurídica Europeia 135
138"O principal objecto da nossa docência deve ser libertar o jurista moderno
da servidão do positivismo legalista e instruí-lo nos hábitos mentais de uma
jurisprudência cuja independência continua a ser exem plar" (D'Ors, 1973).
139Derecho privado romano, 1973, 3 ss.
138 António Manuel Hesp
5 .2 . A t r a d i ç ã o c a n o n í s t i c a
155 Sobre o direito canónico, v., em síntese, Gilissen, 1988,133-160; para maio
res desenvolvim entos, v. Le Bras, 1955; Berm an, 1983.
156Sobre a história da Igreja, realçando estas oposições entre profetismo e dis
ciplina, v . o fundam ental ü v t o à e H ans K üng, O Cris ticmismo. Essên cio e his-
tória[1994], trad. port., Lisboa, Ciclo de Leitores, 2002, nom eadam ente, cap.
C.1L.
Cultura Jurídica Europeia 149
Extravagantes comuns
(séc. XV).
• divididas em títulos; sigla -
Extrav. Comm.
152 António M anuel Hespanha
160Sobre o direito canónico medieval, v., por último, Berm an, 1983, maxime 199
ss.
,£>i A fonte são duas decretais, uma de Alexandre III, outra de Inocêncio III,
Ajello, 1976b, 333.
'62Fundanvse na aequilas\ a interpretação não literal da lei (u.g., a partir da ra
tio legis), a exigência da culpa nos delitos, a valorização da boa fé e da in
tenção das partes no direito negociai, a adm issão do carácter verdadeira
mente jurídico e accionável dos nuda pacta (i.e., dos contratos informais).
Cultura Jurídica Europeia 153
163A "trad ição " é constituída pelo conjunto de costum es ou de escritos dos
Padres da Igreja que vão interpretando a verd ad e revelada nas Sagradas
Escrituras.
lwO auge desta luta é constituído pela contenda entre o Im perador Henrique
IV (1056-1106) e o Papa Gregório VII (1073-1085), a propósito das investi
duras, que termina pela submissão, embora apenas tem porária, do Impe
rador.
165Dictatus Pape: "Só o Pontífice Romano se díz, por direito, universal" (c. 2);
"Só ele pode depor bispos e readm iti-los" (c. 3); "O legado do Papa presi
de a todos os bispos nos concílios"; "A s causas mais importantes de qual
quer igreja devem ser trazidas à Sede Apostólica" (c. 21); "A Igreja Roma
na nunca errou" (c. 22); "N ão é católico aquele que não estiver de acordo
com a Igreja R om ana" (c. 23).
154 António Manuel Hespa
171 Por exem plo, pela adopção por via legislativa de u m código estrangeiro,
com o o que aconteceu co m o C ódigo Civil G erm ânico de 1 9 0 0 no Japão.
172Cf. Calasso, 1 9 7 0 ,5 1 ss..
171 Cf. C alasso, 1 9 7 0 ,4 0 -4 9 ).
Cultura Jurídica Europeia 161
174 Note-se que, também no seio do direito canónico se podem distinguir di
reito com um (as norm as em anadas de uma jurisdição geral, com o o Papa e
os concílios ecuménicos) e direitos próprios (em anados de autoridades ecle
siásticas regionais com o os concílios regionais, os bispos, etc.
175Sobre o tema da arquitectura do ordenam ento jurídico medieval, exem plar
mente, Grossi, 1995; Costa, 1999.
176A unidade e exclusividade do direito oficial corresponde à unidade e indi
visibilidade do poder político (soberania), tal com o o concebe o im aginário
estadualista.
162 António Manuel Hespanhol
diferente natureza de cada coisa, da sua diferente relação, quer com
o todo, quer com as outras coisas: e (ii) Exprimem-se através de
diferentes níveis de sensibilidade (intelectual, racional, animal ou
natural).
Esta ideia central de uma ordem global, auto-sustida por impulsos
naaturais e plurais constitui a chave para entender o lugar do direito
nos mecanismos da regulação do mundo.
Explica, desde logo, a proximidade e estreita relação entre
mecanismos disciplinares que hoje são vistos como muito distantes
(direito, religião, amor e anizade).
Uma vez que a Ordem é um acto de amor e que as criaturas estão
ligadas umas às outras por afectos, o direito humano (civil) constitui
apenas uma forme externa, rude e grosseira, de corrigir défices
ocasionais dessa simpatia universal. Para os níveis mais elevados - e
menos externos - da ordem, existem mecanismos mais subtis, como
a fé ou as virtudes, que disparam sentimentos (de amizade, de
liberalidade, de gratidão, de sentido de honra, de vergonha)
ordenadores. Num certo sentido, estes macanismos estão ainda mais
próximos da justiça, como virtude que "dá a cada um o que é
seu" (ius suum cuique tribuit), ou do direio natural, como aquele que
a natureza ou Deus ensinaram a cada animal (quod Natura [gl. id est
Deus] omnia animalia docuit). E por isto que os tee-ólogos e os
juristas definem este conjuntode deveres como quase legais (quasi
legali) (cf. Clavero, 1991; Hespanha, 1993c), esbatendo as fronteiras
entre os respectivos territórios normativos.
Os juristas são os guardiões deste mundo multi-ordenado, auto-
ordenado.
O seu papel não é o de criar ou rectificar a ordem. Nem tão pouco o
de declarar o justo de uma forma autoritária e dogmática. Mas antes
o de sonddear o justo a partir da natureza, tirando partido de todos
os recursos (virtus) da sensibilidade humana ((amor, bonitas,
intellectus, sensus), numa época em que os métodos intelectuais de
encontrar o direito ainda não estavam expurgados de perspectivas
trans-racionais.177
177Cf. Hespanha, 1992f, 1997b (v. os ensaios incluídos em Petit,
1997).
Cultura ]urídica Europeia
179M esm o aqui, a regra não era absoluta: a prostituição em bora pecado, era
perm itida para evitar um a difusão ainda m ais prom íscua e desregulada da
sexualidade (coítus uugus).
180Cf. Hespanha, 1988b.
m Hespanha, 19% g;, Hespanha, \994e').
Cultura Jurídica Europeia 165
182Ou seja, valores políticos eram transform ados em valores jurídicos porque
o direito permitia que valores externos fossem recebidos em nome de con
ceitos genéricos [vazios, indeterm inados], com o "utilidade pública", "bem
com um "; ou porque o direito reconhecia com o jurídicos os valores já ad
mitidos pelos dados da vida social ("posse de estado"); ou ainda porque o
direito incorporava os com andos de um a razão natural acerca das relações
humanas.
166 António Manuel Hespanhol
185 "Plures sunt casus quam leges" (os casos da vida são mais do que as leis);
"n em as leis nem os senatusconsultos podem ser redigidos de forma a com
preender todos os casos que algum a vez ocorram ; basta que contenham
aqueles que ocorrem o mais das vezes", pode ler-se em D.,1,2,10.
168 António M anuel Hespanha
194 "L ex est sanctio sancta, sed consuetudo est sanctio sanctior, et ubi consue-
tudo loquitur, lex m anet sopíta" [a lei é um a sanção santa, m as o costume
ainda é mais santo, e onde fala o costum e, cala-se a lei] (Consuetudines amal-
fitenscs); Hespanha, 1989, 291 ss.
195 Cf. H espanha, 1989, 399 ss.
Cultura Jurídica Europeia 173
196Outros princípios (por vezes contraditórios entre si!): "lex superior derro-
gat inferior"; "lex tendens ad bonum publicum praefertur tendenti com -
modo privatorum "; "lex specialis derrogat generali" (D .,50,17,80); "lex pos
terior d errogat priori"; "leges in corpore pareferuntur extravagantes" (cf.
Coing, 1 9 8 9 ,1,128 s.).
174 António Manuel Hespanhol
''“ Sobre o carácter estruturante da religião católica nos países da Europa me
ridional, justam ente no dom ínio do direito, Levi, 2000.
Cultura Jurídica Europeia 177
201 Cf., com mais detalhes, Hespanha, 1993f; Dios, 1994, 264 ss..
205Sobre o tem a, v. ainda S. Tom ás (Summa theologica, Ila.IIae, qu. 80, art. 1, to
ns. 4 and 5; Ila.IIae, qu. 120, art. 2).
Cultura Jurídica Europeia 181
A Lei Mental (Ord. man, II, 17; Ord.fil., II, 35) fixa, desde os inícios do
séc. XV, o regime das concessões vassálicas, em termos muito próximos
do regime das concessões feudais do direito comum.
5.4.2.1. Bibliografia
5.4 .3 . O costume
5.4.4. A legislação
A nos CCL IC h r.
1 6 0 3 -1 6 0 7 6 ,4 -
1 6 3 3 -1 6 3 7 1,3 1 3 1 ,2
1 6 6 3 -1 6 6 7 0,6 8 4 ,4
1 6 9 3 -1 6 9 7 3 ,8 87
1 7 2 3 -1 7 2 7 0,4 7 6 ,2
1 7 5 3 -1 7 5 7 - 3 1 4 ,8
1 7 8 3 -1 7 8 7 - 1 5 7 ,6
196 António M anuel Hespanha
5.4.4.1. Bibliografia
214Sobre os "glosadores" v., por todos, Calasso, 1954, 503 ss.; W ieacker, 1980,
38 ss. e 45 ss.; Bellomo, 1988; síntese, Clavero, 1979, 34 ss. Para Portugal, v.
por todos, Silva, 1 9 9 1 ,1 8 1 ss. P ara o seu pensam ento político e jurídico,
Brugi, 1915, 41-9; Calasso, 1957; Cavanna, 1982,1 0 5 -1 3 6 ; Dolcini, 1983.
198 António Manuel Hespanhol
217 Sobre todos estes géneros literários, cf. Calasso, 1954, 531-536; Mortari, 1958,
78 ss.; e, W eim ar, 1 9 7 3 ,1 4 0 ss., Berm an, 1 9 8 3 ,1 2 9 ss.. (que transcreve o iní
cio de um curso de Odofredus: "Prim eiro, dar-vos-ei um sum ário de cada
título [do Digesto], antes de prosseguir com o texto. Depois, porei tão clara
e explicitamente quanto possa exem plos das leis [fragm entos] contidas nc
título. Em terceiro lugar, repetirei o texto, com uma opinião que corrija este
E m quarto lugar, repetirei brevm ente o conteúdo das Ieies. Em quinto lu
gar, resolverei as contradições, adicionando princípios gerais comumente
cham ados brocardos, bem com o distinções ou questões delicadas e úteis,
com as respectivas soluções, tanto quanto a Divina Providência m e-lo per
mita. E se algum a lei pareça m erecer, pela sua celebridade ou dificuldade,
um a repetição [uma liçaõ especial], reservá~la~ei para uma rcpetito da tar
d e". Todo este processo expositivo é intim am ente inspirado pela estrutura
usada na dialéctica, com o verem os adiante, onde a exposição (cf. 5 . 6.2.3) ia
e vinha entre afirm ação e contrdição, dúvidas e soluções, proposições par
ticulares e form ulações gerais.
200 António Manuel Hespanha
por virem dele, e basta". Frederico fitou-o, e depois disse a Reinaldo: "E ste
rapaz diz as coisas melhor que vós todos! Se estas palavras fossem postas
em bom latim, seriam adm iráveis!. "Quod princuitl habet legts habet vigorem,
o que agrada ao príncipe tem vigor de lei", disse Reinaldo de Dassel. "Sim ,
soa muito sábio, e definitivo. Mas seria preciso que estivesse escrita no
Evangetho, senão com o se pode persuadir todos a aceitarem esta belíssi
ma ideia? "B em vim os o que aconteceu em R om a", disse Frederico, "se me
fizer ungir pelo papa, adm ito ipso facto que o seu poder é superior ao rneu,
se agarrar o papa pelo pescoço e o atirar ao Tibre, torno-m e um flagelo de
Deus que nem Atila que Deus tem ".."O n d e diabo arranjo alguém que pos
sa definir os m eus direitos seni pretender pôr-se acim a de m im? N ão exis
te no m u n do". "T alvez não exista um poder assim — disse-lhe então Bau-
dolino. M as existe o sab er"."O que queres dizer?". "Q uan d o o bispo Otão
me contou o que é um studium, disse-m e que estas com unidades de m es
tres e alunos funcionam por sua própria conta: Os alunos vêm de todo o
m undo e não im porta quem é o seu soberano, e pagam os seus m estres, que
assim depen d em só dos alunos. Assim se passam as coisas com os m estres
de direito em Bolonha, e assim tam bem já acontece em Paris onde p rim ei
ro os m estres ensinavam na escola catedral, e portanto dependiam do bis
po, depois um belo dia foram ensinar para a M ontanha de Santa G enove-
va, e tentam descobrir a verdade sem darem ouvidos nem ao bispo nem ao
rei". "Se fosse o rei deles, eu é que os ensinava...". "M asm esm o que assim
fosse? Seria assim se fizesses uma lei a reconheceres que os m estres de Bo
lonha são de facto independentes de qualquer outra autoridade, tanto de
ti com o do papa e de todos os outros soberanos, e estão só ao serviço da
Lei. U m a vez que estão investidos desta dignidade, ünica no m undo, eles
afirma que de acordo com a recta razão, a luz natural e a tradição a ünica
lei é a rom ana e o único que a representa é o Sacro Rom ano Im perador e
que, naturalm ente, com o tao bem disse o senhor Reinaldo, quod principi pia
quit legis habet vigorem". "E porque deveriam des dizê-lo?". "Porque tu em
troca lhes dás o direito de poderem dizê-lo, ejá não é pouco. Assim ficas
satisfeito tu, ficam satisfeitos eles, e como dizia o meu pai G agliaudo, es
tais os dois na m esm a barca", "Eles não aceitarão fazer uma coisa do géne
ro", resm ungou Reinaldo. "Pelo contrário, sim — ilum inou-se o rosto de
Frederico —, digo-te eu que aceitarão. Salvo que antes têm de fazer aquela
declaraçãso, e depois dou-lhes eu a independência, senão todos pensam que
o fizeram para pagar uma doação m inha"."N a minha opinião, nem que seja
para virar o bico ao prego, se alguém quiser dizer que combinastes tudo,
204 António Manuel Hespanha
di-lo-á na m esm a", com entou corn cepticism o Baudolino. ''M as sempre
quero ver quem se levanta a dizer que os doutores de Bolonha não valem
nada, depois de até o próprio im perador ir hum ildem ente pedir-lhes um
parecer. Nessa altura o que eles tiverem dito é Evangelho". E foi assim que
correu tudo, nesse m esm o ano em Roncaglia, onde pela segunda vez hou
ve uma grande dieta. Para Baudolino foi acim a de tudo um grande espec
táculo. Com o Rahewino lhe explicou — para que não pensasse que tudo o
que via era apenas um jogo circense com bandeiras desfraldadas por toda
a parte, insígnias, cortinas coloridas, m ercadores e jograis, Frederico man
dara reconstruir, num a m argem do Pó, um típico acam pam ento romano,
para recordar que era de Roma que provinha a sua dignidade. No centro
do cam po estava a tenda imperial, com o um templo, e a fazer-lhe de coroa
as tendas dos feudatários, vassalos e vassalos destes. Do lado de Frederico
estavam o arcebispo de Colónia, o bispo de B am berga, Daniel de Praga,
C orrado de A ugusta, e outros mais. Do outro lado do rio, o cardeal legado
da cadeira apostólica, o patriarca de Aquileia, o arcebispo de Milão, os,bis
pos de Turim, Alba, Ivrea, Asti, N ovara, Vercelli, Terdona, Pavia, Como,
Lodi, C rem ona, Placência, Reggio, M odena, Bolonha e sabe-se lá quantos
mais. Presidindo a esta assembleia majestosa e realm ente universal, Fre
derico deu início as discussões. Em resum o (disse Baudolino p ara não en
fastiar Niceta com as obras-prim as da oratória imperial, jurisprudencial e
eclesiástica), quatro doutores de Bolonha, os mais fam osos, alunos do gran
de Irnério, haviam sido convodados pelo im perador a exprim ir um insin-
dicável parecer doutrinal sobre os seus poderes, e três deles, Búlgaro, Jaco-
po e U go de Porta R avegnana, exprim iram -se com o Frederico queria, ou
seja, que o direito do im perador assentava na lei rom ana. De opinião dife
rente tinha sido apenas uum tal M artino. "A que Frederico deve ter man
dado arrancar os olhos", com entou Niceta. "D e m odo nenhum , senhor Ni
ceta — respondeu-lhe Baudoino —'vos rom eus arrancais os olhos a este e
aquele e já não percebeis onde está o direito, esquecendo o vosso grande
Justiniano". Logo a seguir Frederico prom ulgou a Constitutio Habita, em que
se reconhecia a autonom ia do estudo bolonhês, e se o estudo era autóno
mo, M artino podia dizer o que quisesse e nem sequer o im perador podia
tocar-lhe num pêlo. Que se lho tivesse tocado, então os doutores já não se
riam autónom os, se n ão fossem autónom os o seu juízo n ão valeria nada, e
Frederico arriscava-se a passar por usurpador" (trad. p ort., Lisboa, 2002).
Cultura Jurídica Europeia 205
231 "N ão é de ad m irar que estas coisas [os poderes de "g ra ç a "] apenas sejam
concedidas ao príncipe, pois elas são quase com o m ilagres e contra a natu
reza [...] costum a dizer-se que o príncipe, um a v ez que é a lei viva, pode
transform ar os quadrados em círculos e dispor de tudo enquanto senhor,
salva a violação da fé [...]" (cit. por Pennington, com u m a tradução que me
parece mais fiel ao pensam ento do H ostiense, 54).
Cultura Jurídica Europeia 209
232Lê-se no prefácio dos estatutos de Gaeta: "Se as próprias leis são contingen
tes, em virtude de se m odificar o m odo de ser das épocas (temporum quali-
tate), porque adm irar-se se os estatutos de vez em quando requerem m odi
ficação de algum as disposições particulares?". V. Calasso, 1954, 492.
233Sobre isto v. Villey, 1968, 540; W ieacker, 1980, 78 ss.
210 António Manuel Hespi
234Sobre a escola dos com entadores, v., por todos, VVieacker, 1980, 78 ss.; Ca-
lasso, 1954,469-563. Para Portugal, Silva, 1991,181 ss. Para o seu pensamento
jurídico e político, além de algum as das obras já referidas, v. VVoolf, 1913 e
1901; a bibliografia citada por W iduckel, 1979, 63 ss. e Dolcini, 1983.
212 António M anuel Hespanha
242O texto de arranque era C., 1,1,1, Cunctos populos ...: "Q uerem os que todos os
povos, regidos pelo império da nossa clemência Este princípio partia
ainda da identificação entre conflito de leis e conflito de poderes políticos,
embora definisse doutra forma (segundo critérios pessoais e não territoriais)
o âmbito do poder político. Sobre este tem a v . Coing, 198 9 ,1 ,1 0 6 -1 0 7 .
243 Coing, 1 9 8 9 ,1 ,1 3 8 ss. E m P ortu gal, a teoria estatutária vigorou até ao sécu
lo XIX. Cf. Ord. fil„ 11 ,5 5 ,1 -3 .
Cultura Jurídica Europeia 217
244Também Bártolo sublinha este carácter público (i.e., relacionado com interesses
colectivos) do poder político acrescentando à definição a expressão "enquanto
pessoa" pública (tanquam persoria publica), o que excluiria da iurisdictio os po
deres que alguém detêm sobre outro, em vista da consecução de interesses
privados (v.g., o poder do pai sobre os filhos, do senhor sobre os servos). E
daqui que decorre a distinção entre iurisdictio, coertio e dominium, a primeira
visando interesses colectivos, os segundos interesses privados, v., sobre a
distinção entre iurisdictium e dominium, Grossi, 1992, 3 16,323. Sobre iurisdic
tio e coertio [domestica, herilis], Hespanha, 1984,8-9; 1995, cap. 4.4.
218 António Manuel He;
252Sobre as teorias jurídicas de Santo Agostinho, v., por todos, Villey, 1961, 69 ss.
233O augustinianism o está na origem do pensam ento filosófico e filosófico-ju-
rídico dos franciscanos Duns Scotto e Guilherme d'O ccam , os quais, como
muito bem nota Villey, estão na origem do pensam ento jurídico m oderno,
concretam ente, das orientações positivistas dos dois últimos séculos; ain
da nesta direcção, a filosofia jurídica da Reforma (Lutero e Calvino). Sobre
todos estes autores, Villey, 1961.
224 António Manuel Hespanha
254 Abelardo (século XII), um dos arautos do pensam ento "escolástico", na sua
célebre obra Sic et non, dá-nos um dos exemplos mais vivos do que acaba
mos de dizer. Aí, partindo do princípio de que "a prim eira chave da sapi
ência é uma assídua ou frequente interrogação [...] pois pela dúvida che
gam os à interrogação e, pela interrogação, aprendem os a v erd ad e", orga
niza uma colectânea "d e opiniões opostas contidas em diversos textos" ('pro
qua quidem contrarietate, haec compilatio sententiarum 'Sic et Non' appellatur"
[pela qual contradição, esta com pilação de proposições se cham a "Sim e
N ão"]) a fim de exercitar os seus leitores em busca da verdade. E seguem-
se vários títulos em que, depois de enunciada a questão, se coligem vários
textos contraditórios, sem se tirar qualquer conclusão (ex., XXXII, Quod
omnia possit Deus, et non; XXXIV, Quod Deus non habeat liberum arbitrium, et
contra). Como se vê, trata-se m enos de form ular soluções do que de convi
d ar o leitor a continuar esta obra social de construção do saber. A mesma
organização por questões (quaestiones) ou problemas surge na Summa The-
ologica, de S. Tom ás de Aquino, em bora aí o autor não perm aneça neutro.
Cultura Jurídica Europeia 225
257 Isto não quer dizer que os Glosadores - mas não decerto os prim eiros - nãc
tenham iniciado um im portante trabalho de organização dos m ateriais ju
rídicos rom anos. Aliás, tinham sido eles próprios a dar à com pilação justi
nianeia a designação,de "co rp u s", pelo que lhes competia actuar de aco r
do com esta ideia, debruçando-se sobre as contradições que povoavam o
Corpus am is. Npus iuris. Na sua fase incipiente, tal tarnte, tal tarefa consis
tia na elaboração de aboraç de concordsncia e discordância textuais (Ca-
lasso, 1954, 531); depois, à m edida que o trabalho de exegese ia progredin
do e a capacidade lógica dos exegetas ia crescendo, surgiam as definitio-
nes, as regulae, os brocarda e, num período já de transição para os novos
tempos, as sum m a. Sobre estes tipos d 4 ,531-536 e V.P. Morta ri, 1958, 78 ss.
228 António M anuel Hespanha
5 .6 .2 . A estrutura discursiva
5 .6 .2 .2 . A interpretação lógica
262 Mais tarde, nos fins do século XVI, haverá já quem escreva, anunciando
novas épocas do pensam ento jurídico, que "o m odo de ser do nosso tempo
e dos nossos tribunais é, na verd ad e, muito diferente do dos romanos..."
Tiberio Deciani, cit. por M ortari, 1 9 5 8 ,7 2 .
Cultura Jurídica Europeia 233
263Na verdade, o com plexo norm ativo conhecido, a partir do século XIII, por
"direito com u m ", era constituído por norm as de várias origens, animadas,
por vezes, por princípios contraditórios.
264Por exem plo, da oração (oratio) - a que vulgarm ente cham am os "discurso"
- , a cuja regulam entação se dedica a retórica, ou da demonstração, cujas re
gras são estudadas pela analítica. Enquanto a oração se caracteriza por ter
em vista a obtenção de efeitos estéticos, a discussão e a dem onstração vi
sam o acréscim o do saber; distinguindo-se entre si porque, na primeira, a
base de que se parte são afirm ações somente prováveis, não necessárias,
num a palavra, susceptíveis de discussão (v.g., os hom ens têm uma alma
imortal; o direito é a arte do bem e do equitativo), enquanto que, na segun
da, o raciocínio desenvolve-se a partir de afirm ações indiscutíveis (u.g., o
homem é u m anim al racional, o direito é um facto social).
234 António M anuel Hesps
265Arte de encontrar (os argum entos que servirão de base à argum entaçãi
Cultura ]urídica Europeia 235
278 "D epois de relem brar os escritos de muitos, ensinei a minha doutrina", Cino
de Pistóia, século XIV; "d a au toridad e dos doutores deriva um a presun
ção de verdade porque se presum e que o doutor é probo e perito", Cora-
tius, século XVI.
Cultura Jurídica Europeia 241
279"A quilo que a Glosa determ inar deve ser mantido, pois nas decisões das glo
sas raram ente se encontram erros"; "a o aconselhar sobre os casos o melhor
é seguir a glosa" (Baldo, séculos XIII-XIV). Cf. Ermini, 1 9 4 6 ,1 8 6 e Mortari,
1954, 462. Raffaele Fulgusius (início do século XIV) escrevia: "C ino dizia
que a Glosa era de tem er pela condenável idolatria que lhe era tributada
pelos ad vogados, significando que, assim com o os antigos ad oravam os
ídolos em vez de Deus, assim os advogados adoram os glosadores em vez
dos evangelistas. Ora eu antes quero ter por mim o glosador do que o tex
to; é que, se alego o texto, dizem os advogados da outra parte e m esm o os
juizes-. Julgas tu que a Glosa não viu esse texto com o tu e que o entendeu
tão bem com o tu?" (citado por Ermini, 1946).
280Só assim , gozando dum a autoridade lim itada, é que o argum ento da au
toridade desem p enh ava a sua função. De facto, sendo as exigências da
vida m u táveis, um apego e xag erad o às au toridad es tradicionais daria
origem a um a doutrina disciplinada, é certo, m as divorciada das aspira
ções n orm ativas do seu tem po. Só um a contínua ren ovação da opinio com-
munis garan tiria um a direcção da doutrina consoante com a vida. Como
verem os mais tarde, um dos m ais frequentes m otivos de critica do mos
italicus tardio foi, precisam ente, a sua aceitação passiva dos grandes ju
ristas de quatrocentos (nom eadam ente de Bártolo) que, tendo reflectido
nas interpretações que propunham os anseios norm ativos da sua época,
estavam com pletam ente ultrapassados em relação às exigências n orm a
tivas d os séculos XVI e XVII; disciplinada por estes m estres, a doutrina
logo perdeu o contacto com a vida.
242 António M anuel Hesf
5.6.2.4. Conclusão
281 C alasso, 1954, 594 e Viehweg, 1953 (trad. italiana, 81). Confronte-se com c
m étodo descrito por Odofredo (cf., supra, 148).
282 Os juristas de hoje ainda utilizam - mas já m aquinalm ente e, por vezes, sen
a consciência da sua historicidade - o aparelho lógico e conceituai forjade
pelos C om entadores. Quer os argum entos, quer os conceitos e princípio:
gerais (dogm as), quer o m odo de os extrair apresentam , na verdade, um;
im pressionante continuidade.
6. A CRISE DO SÉCULO XVI E AS ORIENTAÇÕES
METODOLÓGICAS SUBSEQUENTES
6.2. O d e s e n v o l v i m e n t o in t e r n o d o s i s t e m a d o s a b e r j u r í d i c o
294Ou, numa terminologia mais m oderna, o desenvolvim ento da sua e s tra té
g ia . De facto, em cada mom ento da sua história, as disciplinas cientificas
são orientadas por um a intenção (ou estratégia) geral - aquilo que nós cha
m am os "teorias" ou "tem as" - que implica um certo sen tid o de evolução
do seu discurso (cf., sobre este conceito, Foucault, 1969, 85 ss.). O sentido
(ou estratégia) do saber jurídico da Baixa Idade Média era, já o vim os, o da
construção da co erên cia in tern a ou "sistem aticíd ad e" do direito.
295De que com eçam , agora, a ap arecer as colecções: em Portugal, das prim ei
ras são as de Agostinho Barbosa, D e a x io m alib u s. D e sig n ific a tio v erboru m .
D e locis co m m u n ibu s (ed. 1699) e de Simão Vaz Barbosa, A x io m a la et loca com -
m u n ia (ed. 1686).
^ S u rg in d o , portanto, os primeiros dicionários jurídicos, sob o modelo daquele
esboçado no Digesto (D., 5 0 ,1 6 ).
252 António Manuel Hespanha
301Sobre a época do "jusracionalism o", v. por todos, W ieacker, 1980, 279 ss.
254 António M anuel Hespai
6 .3 . A s e s c o l a s j u r í d i c a s t a r d o - m e d i e v a i s e m o d e r n a s
-vuSobre a Escola hum anista, para m aiores desenvolvim entos, v., por todos,
W ieacker, 1980, maxime, 87 ss e 179 ss. e bibliografia aí citada: Villey, 1968,
507 ss.; Cavanna, 1982,172-192; Silva, 1 9 9 1 ,3 2 9 ss. Para Portugal, Silva, 1964.
256 António Manuel Hespanha
305De notar, em todo caso, que a elaboração destas obras teria sido impossível
sem o trabalho de sistem atização das anteriores escolas medievais.
306Com o teria sido feito por Cícero (v. supra).
258 Antórvio Manuel Hespa
■’"'’Sobre o "u su s m odernus", v., por todos, W ieacker, 1980, 225 ss. Para E spa
nha, v., por último, Valiente, 1980, 298 ss.; para Portugal, v. adiante.
260 António M anuel H espanha
310 Nom eadam ente, tribunais fiscais, tribunais da C âm ara Real, cf. Th. Pluc
nett, A concise history ofthe common law, ed. cit., Boston, Little, Brown an Ce
1 9 5 6 ,1 7 4 ss..
311 Sobre esta evolução, v. Th. Plucknett, A concise history [ ...] , cit..
Cultura ]urídica Europeia
312 Sir W illiam Blackstone, Knt., Commentaries on the laws of England. In four
books. Notes Selected from the editions of Archbold, Christian, Coleridge
[etal.], Philadelphia, Published By George W . Childs, Ledger Building, Sixth
& C hestnut Sts., 1869.
264 António M anuel Hespanha
They are the depositaries of the law s; the living oracles, w ho m ust decide
in all cases of doubt, and w ho are bound by an oath to decide according to
the law of the land. The know ledge of that law is derived from experience
and study (W. Blackstone, Com m entaries [...], I, 62) [...] it is an established
rule to abide by form er precedents, w here the sam e points com e again in
litigation: as well to keep the scale of justice even and steady, and not lia
ble to w aver with every new judge's opinion; as [so because the law in that
case being solemnly declared and determ ined, w h at before w as uncertain,
and perhaps indifferent, is now become a perm anent rule, w hich it is not
in the breast of any subsequent judge to alter or vary from recording to his
private sentim ents:f...] Yet this ule adm its of exception, w here the form er
determ ination m ost evidently contrary to reason; m uch m ore if it be clear
ly contrary to the divine law. But even in such cases the subsequent judges
do not pretend to make a new law, but to vindicate the old one from m isre
presentation". (W. Blackstone, Com m entaries [...], I, 62).
516 "I shall there-fore only add, that (besides the liberality of sentim ent with
which our com m on law judges interpret acts of parliament, and such rules
of the unwritten law as are n o t of a positive kind) there are also peculiar
courts of equity established for the benefit of the subject: to detect latent
frauds and concealm nts, w hich the process of the courts of law is not ad ap
ted to reach; to enforce the execution for such m atters of trust and confi
dence, as are binding in conscience, though not cognizable in a cou rt of law;
to deliver from such dangers as are ow ing to misfortune or oversight; and
to give a m ore specific relief and m ore adapted to som e circum stances of
the case, than can alw ays he ohtained by the generality f the rules of the
positive or com m on law. This is the business of our courts of equity, whi
ch how ever are only conversant in m atters of property. For the freedom of
our constitution will not permit, that in criminal cases a pow er should be
lodged in any judge, to construe the law otherwise than according to the
letter (ibid.).
317 "F ro m this method of interpreting laws by the reason of them, arises w hat
w e call equity, w hich is thus defined by Grotius "th e correction of that
w herein the law (by reason of its universality) is deficient." For, since in
law s all cases cannot be foreseen or expressed, it is necessary that, when
the general decrees of the law com e to be applied to particular cases, there
should be somewhere a lower vested of defining those circumstances, which
(had they been foreseen) the legislator himself would have expressed. And
these are the cases which, accordlngto Grotius, "lex non exacte definit, sed
arbitri boni viri perm itit" (W. Blackstone, Commentaries [...], I, 62).
268 António M anuel H espanha
318Havia quarto tipos de tribunais em que era permitido o uso dos direitos canóni
co e civil, embora com restrições: "1. The courts of the archbishops and bishops,
and their derivative officers, usually called in our law courts Chris-Tian, cunAe
Christianitatis, or the ecclesiastical courts. 2. The military courts. 3. The courts of
admiralty. 4. The courts of the two universities. In all, heir reception in general,
and the different degrees of that reception, are grounded entirely upon custom,
corroborated in the latter instance by act of parliament, ratifying those charters
which confirm the customary law of he universities [...] the courts of common
law have the superintendency over these ourts; to keep them within their juris
dictions [...] (W. Blackstone, Commentaries [...], 1,84).
319"These are - resume Blacstone - the etem immutable laws of good and evil, to
which the Creator himself, in all his Jispensations, conforms; and which he has
enabled human reason to discover, so far as they are necessary for the conduct
of human actions. Such, am ong thers, are these principles: that w e should live
honestly, should hurt nobody, and should render to every one his due; to which
three general precepts ]us-tinian(a) has reduced the whole doctrine of law ".
Cultura Jurídica Europeia 269
C O N T E N T S
OF THIS
A N A L Y S I S .
I N T R O D U C T I O N .
O f the S t u d y o f the Law . S e c t i o n i .
T h e Nature o f L a w s in general. 2,
T he Grounds and Foundation o f th e Laws o f E n g l a n d . 3.
T h e Countries fubject to thofe Laws. 4,
T he Objects o f the Laws o f E n g l a n d ; v iz ,
“ I. T h e R i g h t s o f Perfonsj which are B ook I.
f l t, Natural
Nat Perfons ; whoie Rights are C h a p T I R I#
^ i . Abfolutej viz* the Enjoyment o f
r 1. Perfonal Security.
< 2. Perfonal Liberty,
i: i 3. Private Property.
R e la tm ; a# they fcand in Relations
" Public j as
11,
6 .5 . A c u l t u r a j u r í d i c a p o p u l a r
121Santos, 1 9 6 0 ,1 7 .
Cultura Jurídica Europeia 273
324Por exem plo, a fixação definitiva do objecto do proceso de acord o com a Ii-
tis co n testatio ; a existência de critérios pré-estabelecidos de apreciação da
prova; a perda de direitos materiais por prescrição de prazos ou por viola
ção de certas form ali-dades processuais.
325Cf. Hespanha, 1983b; 1993(iii).
326Por exemplo, a obra de Richard H. Kagan (Kagan, 1981) - embora incida prin
cipalmente na prática judicial de um tribunal superior (a C han célleria d e Valla-
dolid) - testemunha também um a oposição, ainda no século XVIII espanhol,
entre form as tradicionais e m odernas de resolução de conflitos: entre o
"pleyto" que corria num tribunal oficial e erudito, submetido às regras do
direito escrito, e os antigos juízos ex aequ o et bono (juicios de a lvedrio) proferi
dos pelos juizes tradicionais e honorários dos municípios e aldeias, submeti
dos ao direito tradicional parcialmente contido nos antigos "fueros".
327Literatura sobre os rústicos (privilégios, ,u d icia ): Andreas Tiraquellus, T rac-
tatus de p riv ileg iis ru sticoru m , CoIoni~ Agrippin~ 1582; Renatus Chopinus,
D e p riv ileg iis ru sticoru m , Pansus 1575; D es p riv ilèg es des p erso n n es v iv a n t au x
cham ps. Paris 1634 (trad. franc.); Iohannis Albini, O p u scu lu m de reg im in i ru s
ticoru m , M oguntiae 1601; Iustus H enning Boehmer. De lib erta te im p erfecta
ru sticoru m in G erm an ia, Halliae, 1733; Siculus Flaccus, De ru sticoru m regim en ,
Moguntiae, 1601: Joh. Wilh. Goe-bel, D e ju r e & iu d icio ru sticoru m f o r i G er-
m an iae, H elm stadt 1723; Benedictus C arpzovius, D is p u ta tio d e p ra ec ip u is
ru sticoru m privilegia. Lipsiae 1678; Iohannis Suevi, T ra ctatu s de p riv ile g iis
ru sticorum . Coloniae 1582; e outras obras que focam, sobretudo, as obriga
ções feudais dos rústicos e dos cam poneses.
274 António Manuel Hespa
328BartoIus, Comm. ad Dig. infort. (D. 2, 29, 7, 8, 2j; idêntica definição é dada
Baldo: "rusticus dicitur quolibethabitans extra muros civitatis, vel habi
in castro, in quo est hom inum penúria" [diz-se rústico aquele que hí
fora dos muros da cidade, ou de um castelo, onde haja poucos home
(Comm. D. de iure codic., 1. conficiantur, § codicilli. cit., t. III, p. 170).
329A lexander de Imola, Consilia, Lugduni 1563, vol. 6 co n .l. n.3.
330Sobre esta aproxim ação, à qual voltarem os, v. Prosperi, 1996, 551 ss.
Cultura Jurídica Europeia 275
333Baldus, Opera ..., cit. (in D. De negotiis gestis, 1. Nessonis, n. 6), vol. I, p. 120.
33J Cf. Iac. Menocchio, De arbiitrariis iudicum quaestionibus ..., c. 194, n. 2 /3 2 .
335V. o já citado Menochio e, ainda, R. Choppinus, De privilegiis rusticorum, cit,
1.1, p. 2, c. 5.
Cultura Jurídica Europeia 277
338Sobre o papel das elites cultas judaicas, M anuel A ugusto R odrigues, "A
cultura jurídica medieval e os incunábulos hebraicos", A cta s do C o n g resso
In te rn a c io n a l do IX C en ten á r io da D ed ic a ç ã o d a S é d e B rag a, 3(1990), Braga,
Universidade Católica, 231-261.
280 António M anuel Hespanha
6 .6 .1 . Bibliografia
7.1. Osjusnaturalism os
340Não era esta a única interpretação cristã das relações entre Deus e o m un
do; Santo Agostinho tinha pensado as coisa doutra maneira, dando mais
lugar ao arbítrio de Deus do que à ordem do m undo; e os seus discípulos
franciscanos da Baixa Idade Média retom arão os seus pontos de vista, como
veremos, substituindo à teoria "d a s causas segundas" a teoria do impetus.
290 António Manuel Hespanh
341 Sobre o "jusnaturalism o" de São Tom ás v., por todos, e dentro desta inter
pretação do seu pensam ento, Villey, 1961 e 19 6 8 ,1 2 4 -1 3 1 .
342A Escola Ibérica de Direito N atural desenvolveu-se sobretudo à volta das
universidades hispânicas da C ontra-R eform a, especialm ente Salam anca,
Valha-dolide, Coim bra e Évora. Os seus representantes são, quase todos,
religiosos jesuítas ou dom inicanos. Eis os nom es principais: De Soto (1494-
1560), especialista em questões coloniais; Afonso de C astro (1495-1558),
penalista; Francisco de Vitória (1486-1546), dom inicano, um dos mais ilus
tres representantes da escola, autor do com entário De iustitia; Luis de Mo-
lina (1535-1600), o mais fiel à tradição do tom ism o e autor de uma filosofia
m oral - que será o alvo dos ataques de Pascal -, durante muitos anos pro
fessor em Portugal (Évora); e, finalmente, o mais fam oso, Francisco Suarez
(1548-1617), professor em Alcalá, M adrid, Rom a, Salam anca e Coim bra,
onde publica a sua obra mais fam osa, um tratado sobre a lei, onde aborda
os problem as fundam entais da teoria do direito, o Tractatus de Legibus ac
Deo Legislatorc (1612) e procede a um a reinterpretação, embora m oderada,
das posições de S. Tom ás sobre o tem a. Bibliografia: Melía, 1977; Costello,
1974; Villey, 1968.
343 Pelo que lhe é dada a designação de Segunda Escolástica.
292 António Manuel Hespanha
w Também para Aristóteles e São Tomás não havia um a completa oposição entre
o direito natural e o direito positivo; mas a sua conjugação era de um outro tipo. O
direito positivo, longe de representar o coroam ento da realização do direito
natural, constituía apenas uma tentativa da sua realização, tentativa possivel
mente fruste, mas cujos resultados deviam ser tidos em conta por qualquer
investigação posterior, tal como os de uma experiência já feita o devem ser nas
experiências subsequentes; por outro lado, o direito positivo era um elemento
a ter em conta no achamento da solução justa, pois criava expectativas.
296 António M anuel Hespanha
355M ed ita çã o so bre o co n ceito com u m de ju s tiç a (c. 1702-1703), publ. em G. M ollat,
R ech tsp h ilo so p h isch es au s L eib n izen s U n g ed ru ckten S ch riften , Leipzig, 1885. Ou
" [ ...] a justiça segue certas regras de igualdade e de proporcionalidade que
não são menos fundadas na. natureza im utável das coisas do que os princí
pios da aritm ética e da geom etria", O p in iã o so b re os p rin c íp io s de P u ffe n d o r f
(1706), publ. em Louis Duttens, G od. G u il. L cibn itii, O pera om n ia , T oum es,
Genève, 1768, IV. V. in fra.
300 António M anuel H espanha
356"É no governo que se encontram as forças interm édias, cujas relações com
põem a relação do todo ao todo, do soberano ao Estado. Pode representar-
se esta última relação pelo dos extrem os [a, c] de um a proporção contínua
[a /b = b /c ], cuja m édia proporcional é o governo [b]. O governo recebe do
soberano as ordens que dá ao povo; e para que o Estado esteja em bom equi
líbrio, é preciso que haja igualdade entre o produto ou potência [= b2] do
governo tom ado em si m esm o e o produto ou potência dos cidadãos, que
são soberano de um lado e súbditos de outro [a x c]" (Contrato social, 111, 1 ).
J. G. Leibniz é ainda mais ousado na utilização de m odelos matemáticos.
357 V.g., em John Locke (Two treatises of govemm ent, 1690, II, 7, 96) e Jean-Jac-
ques R ousseau (Du contrat social, 1 7 6 2 ,1, 6).
C ultura Jurídica Europeia 301
7 .2 .1 . Os jusnaturalism os individualistas
J59 Enquanto que a filosofia clássica dava existência real ao h o m em "situ a d o " e
certas estru tu ra s so ciais (com o "p a i", com o "cid ad ão ", com o "filho"), e, po
tanto, considerava com o reais ou naturais os direitos e deveres decorre:
tes de tal situação, a filosofia social nom inalista considera os indivídui
isolados, sem outros direitos ou deveres senão aqueles reclam ados pela si
natu reza in d iv id u al, ou pela sua vo n ta d e (e eis aqui o pendor "voluntarist«
do nominalismo, que está na base do positivismo m oderno). Sobre isto,
síntese de Villey, 1 9 6 8 ,1 9 9 ss.
360Ideia que é de raiz estóica e que aflora, por várias vezes, no D ig esto (as inc
nações n atu rais do hom em com o an im al [D .,1 ,1 ,3 ]; a legítim a defe:
[D.,43,16,1,27], etc.).
Cultura Jurídica Europeia 303
362Sobre Hobbes, cf. B um s, 1997; Z arka, 1995. Sobre o pensam ento político in
glês da sua época, Bum s, 1997; Harrisson, 1995; Burgess, 1992; Carrive, 1994,
Álvarez Alonso, 1999, 89 ss..
Cultura Jurídica Europeia 305
363Samuel Pufendorf (1632-1694) é mais jurista do que filósofo e, por isso, de
sem penhou um papel de extraordinário divulgador das novas correntes de
pensam ento político entre os juristas. A sua obra ( E lem en ta iu risp ru d en tíae
universalis, 1660; D e ju r e n a tu rae e t g en tiu m , 1672; D e o fficio h o m in is e t civis
secu n d u m legem n atu ralem , 1673) teve edições sucessivas durante o séc. XVIII
e serve de base ao despotism o ilum inado europeu, desde a Prússia e a Áus
tria até Portugal. Cf. Denzer, 1972; Solari, 1959, 62 ss; Bum s, 1997, 509-533.
306 António Manuel Hespanl
Todo o direito privado vai, então, ser visto como uma for
ma de combinar e harmonizar o poder que cada um tem de de
senvolver a sua personalidade.
Recordemo-nos, de facto, que a premissa básica do jusna-
turalismo individualista era a existência de um direito inato de
cada homem ao desenvolvimento da sua personalidade (raci
onal ou instintiva, não interessa agora). O contrato social visa
ra, mesmo, garantir esse direito na vida social, criando uma en
tidade (o Estado) que assegurasse a cada um a satisfação dos
seus direitos em toda a medida em que tal satisfação não pre
judicasse os direitos dos outros. Assim, se pelo contrato social
se criava o direito objectivo, não se criavam direitos subjecti
vos: estes existiam antes da própria ordem jurídica objectiva,
sendo o seu fundamento e a sua razão de ser. A origem da sua
legitim idade está no carácter naturalm ente justo do poder de
vontade (W illensmacht), através do qual o homem desdobra a
sua personalidade.
No entanto, tendo em vista a sua própria garantia, o Esta
do e o direito podem comprimir um tanto os direitos de cada um,
na medida em que isso seja exigido pela salvaguarda dos direi
tos dos outros. O direito objectivo aparece, então, como um se
máforo, dando luz verde ou vermelha aos "poderes da vonta
de" (que se movem por si), conforme as necessidades do tráfe
go jurídico.
Portanto, na base de todo o direito civil vêm a estar os di
reitos subjectivos, definidos como "poderes de vontade garan
tidos pelo direito" ,366 São de tal natureza o direito do credor de
exigir a prestação do devedor e de executar o seu património
no caso de incumprimento; o direito do proprietário de usar e
abusar da sua propriedade com total exclusão de terceiros; o
direito de exigir do outro cônjuge, quer abstenções (v.g., o di
367A influência das doutrinas ética e jurídica de K ant sobre a "teoria da von
tad e" (Willetheorie) foi muito im portante e contribuiu para o seu definiti
vo estabelecim ento na dogm ática civilista. K ant realçou, de facto, a au to
nom ia da vontade e o seu papel criad o r de valores universais, ao mesmo
tem po que fez da von tad e (ou da liberdade) o esteio da personalidade
m oral. O direito consistia na form a da relação entre os arbítrios das pes
soas, da relação entre dois arbítrios que, exteriorizando-se se encontram ;
a acção justa (ou jurídica) seria, então, a que, segundo um a lei universal,
coexistisse com o livre-arbítrio de cad a um. V., sobre os fundam entos da
"ra z ã o p rática" e mais concretam ente, sobre os seus ideais ético-jurídicos,
Solari, 1959, 202 ss.
368O institucionalismo (cf. infra, 174 ss.) desenvolve-se já nos inícios deste sécu
lo; trata-se de um transpersonalismo, i.e., de um a doutrina que radica o di
reito, não nas pessoas individualmente consideradas, m as em realidades
englobantes (os grupos hum anos ou certas ideias norm ativas próprias e
necessárias). São estas realidades ("instituições", v.g., a família, a proprie
d ade, o Estado) que, dispondo de um a norm atividade em si, atribuem a
cad a um o "su u m " (seu). O direito de cada um é, portanto, derivado e não
próprio ou subjectivo (ou seja, radicado ou sujeito). A herança tomista é aqui
bem clara; e a sua ligação com a vaga anti-dem ocrática e totalitária do seu
tem po (a que forneceram cobertura teórica) não o é menos. Principais re
presentantes: Otto Gierke (1841-1921), H auriou (1856-1929) e Santi Roma
no (1875-1947).
310 António M anuel Hespanh;
digos civis do século passado369e que está escrita uma boa parti
dos nossos manuais de direito privado.370371
7.2.1.2. Voluntarismo
369O Código Civil português de 1867 é um exem plo frisante. Logo o art° I o podf
ler-se: "Só um hom em é susceptível de direitos e obrigações..."; e no art° 2
define-se "d ireito" como a "faculdade moral de praticar ou deixar de pra
ticar certos factos".
370A "teoria dos direitos subjectivos" ou "teoria da von tad e" tem sido subme
tida a um a crítica cerrada pela "jurisprudência dos interesses" (R. v. Jhe
ring, 1818-1892), pelo institucionalismo e pelas concepções socialistas nc
domínio da filosofia social e do direito. As críticas que lhe têm sido feita:
são de três tipos: teóricas, pragm áticas e éticas. As prim eiras centram -se n£
falsidade da correspondência entre o direito e a vontade (haveria, na ver
dade, direitos a que não corresponderia qualquer vontade válida, v.g., a doí
menores ou a dos interditos) ou na inviabilidade de explicar através delí
as relações constituídas em certos sectores do direito (v.g., o direito da fa
mília ou o direito penal). As segundas baseiam-se na alegação de que a vi
são subjectiva do direito im pede a adequada apreensão das verdadeira:
realidades jurídicas, isolando as relações de direito privado da realidadf
social. As terceiras insistem em que o direito subjectivo é a expressão de
um individualism o exagerado, para o qual o hom em só tem direito e não
também, deveres. Por isso, a sua sobrevivência em m uitos sectores da dog
mática privatística está hoje de todo com prom etida. Sobre isto, v. a síntes«
de Coing, 1964.
371 W iederkesr, 1965, 234 ss., maxime 245-246.
Cultura jurídica Europeia 311
372 "6. Porém , em bora este estado seja um estado de liberdade, não o é de licen
ça; embora o hom em tenha, neste estado, um a liberdade incontrolável para
dispor da sua pessoa ou possessões, todavia não tem liberdade para se des
truir a si m esm o, ou qualquer criatura na sua posse, a não ser que algum uso
mais nobre do que a sua m era conservação o exija. O estado de natureza tem
uma lei da natureza para o governar, que obriga todos, e a razão, que é esta
lei, ensina a toda a hum anidade que a queira consultar que os seres são to
dos iguais e independentes, nenhum devendo fazer m al a outro, na sua vida,
saúde, liberdade ou posse" (JohnLocke, Two treatises o f govemm ent,ll, 2); "63.
A liberdade de todos os homens e a liberdade de agir de acordo com a sua
própria vontade, baseia-se no facto de ter razão, a qual é capaz de o instruir
naquele direito pelo qual ele tem que se governar a si m esm o e de lhe fazer
saber de quão longe está da liberdade da sua própria vontade [...]" (ibid., 11,4).
Cultura Jurídica Europeia 313
375"O direito natural, a que os autores geralmente chamam ju s natu rale, é a liber
dade que cada homem possui de usar o seu próprio poder, da maneira que
quiser, para a preservação da sua própria natureza, ou seja, da sua vida; e
consequentemente de fazer tudo aquilo que o seu próprio ju lg a m en to e razão
lhe in diqu em com o m eios a d eq u ad o s a esse fim " (Th. Hobbes, Leviathan , cap. 14).
314 António Manuel Hespanha
374O poder de a maioria impor a sua vontade à minoria era explicado por urr
raciocínio mecanicista, im portado da dinâm ica, segundo o qual a vontade
do m aior núm ero tem mais força do que a vontade da minoria, arrastande
esta quando se forma a vontade do corpo. Locke explica isto nos seguintes
termos: "96. [...] Quando qualquer núm ero de homens, por meio do con
sentim ento de cada indivíduo, constituiu um a com unidade, eles transfor
m aram por isso mesmo essa com unidade num corpo, com o poder de agii
com o um só corpo, o qu e a co n tece a p en a s p e la v o n ta d e e d eterm in ação da m aio
ria. U m a v ez q u e a qu ilo qu e p õem em m o v im en to u m a co m u n id ad e é a p en as o con
sen tim en to dos in d iv íd u os d ela e, u m a v ez qu e co n stitu in d o ela um ú n ico corpo, sc
d ev e m ov er n u m a ú n ica direcção, é n ecessá rio qu e o co rp o se p o ssa m o v er nessa
d irec çã o com a m aio r fo r ç a qu e h a ja nele, a q u al e o co n sen tim en to da m aioria. De
outro m odo seria impossível que ela agisse ou perm anecer com o um sc
corpo, com o um a com unidade, com o cada indivíduo que a constitui con
cordou que fosse; e por isso cada um está limitado por aquele consentimento
a ser concluído pela m aioria" (Locke, T w o treatises o fg o v e m m e n t, II, 7, p. 165).
Partilhando ainda de certos traços tradicionais (a vontade colectiva como
som a das vontades individuais, o soberano com o rep resen ta n te dos cida
dãos), Hobbes, L eviathan , cap. 17.
375" [ ...] estar subordinados, m esm o assim , sendo o legislativo apenas um po
der fiduciário para agir no sentido de certos fins, continua a perm anecer
no povo um p od er suprem o p ara rem over ou alterar o legislativo, quan
do ach ar que o legislativo age con trariam en te à confiança que se lhes deu
[...]. E assim a com unidade retém perm anentem ente o poder suprem o de
se libertarem dos atentados e desígnios de qualquer um , m esm o dos seus
legisladores, desde que eles sejam tão estultos ou danados para form ar
ou levar a cabo desígnios contra as liberdades e propriedades dos súbdi
tos" (II, 13).
Cultura Jurídica Europeia 315
376Cf. Bum s, 1997, 511 ss. Segundo Pufendorf. a causa rem ota destas pessoa e
vontade públicas é Deus, sendo pacto social (a vontade hum ana) apenas a
condição (ou causa próxim a) da sua instituição. Daí que o governo político
e as suas leis tenham um carácter sem i-sagrado, não podendo ser desobe
decidas. Já Francisco Suarez tinha encontrado um a form ulação próxim a
desta ao origem divina m ediata do poder político (a Dco, per populum, de
Deus, por meio do povo).
316 António M anuel Hespanha
377 H á, por isso - com o nota C attaneo, 1966 um a grande diferença entre o
despotism o de Hobbes e o despotism o de tipo oriental: é que o Estado de
Hobbes constitui um d esp o tism o leg a l, em que a vontade do príncipe é ex
pressa através de n orm as gerais, salv ag u ard an d o os súbditos, senão do
absolutism o, pelo menos da arbitrariedade. Assim , o princípio “ n u llu m cri
m en sin e lege" e " n u lla p o en a sin e lege" são por ele claram ente estabelecidos
("no law , m ad e a fter a fa c t d on e, can m a k e it a crim e" , L ev ia th a n , cap. 27). A con
cepção política de Hobbes vem , assim , pôr as bases teóricas do despotis
m o ilum inado: por um lado, com a afirm ação de um forte poder central do
qual em anam as leis; e, por outro, pela instauração do princípio da legali
dade e da certeza da aplicação das m esm as leis (cf. C attaneo, 1 9 6 6 ,1 9 ss.).
Cultura Jurídica Europeia 317
378"L ogo que vários hom ens reunidos se consideram como um único corpo, eles
não têm senão um a vontade que se dirige à conservação com um e ao bem-
estar geral. Então, todos os com andos do Estado são vigorosos e simples, as
suas m áxim as são claras e luminosas; não há interesses envolvidos, contra
ditórios; o bem com um m ostra-se por todo o lado com evidência, apenas
exigindo bom senso para ser percebido" (Do contrato social, IV, 1, p. 148).
379 A oposição entre liberais e democratas costuma ser feita nestes termos: en
quanto os primeiros concebiam as garantias individuais com o um a esfera de
acção dos indivíduos liberta da intervenção estadual, com o limite posto à
acção do Estado; os dem ocratas (de que se salienta a facção jacobina) enten
dem-nas como o direito de participar na gestão do Estado, assim tom ado um
govem o do povo (dem ocracia). Dentro desta última perspectiva, os limites
postos pelos indivíduos à acção estadual perdem todo o significado, pois o
Estado e a sua acção são o produto da vontade dos próprios cidadãos; limi
tar o Estado seria, então, venire contra factum proprium. Deste modo, as demo
cracias jacobinas põem termo à oposição entre indivíduo e Estado, dando
curso à ideia de "disciplina dem ocrática". V., sobre isto, Duverger, 1966.
318 António Manuel Hespanha
7.2.1.3. Cientificização
380 Tanto Hobbes com o R ousseau têm um a idêntica concepção da lei com o
vontade do soberano. A diferença está no m odo de conceber o soberano.
Hobbes identifica-o com o um hom em , o rei. Rousseau com o povo, com a
com unidade no seu todo.
Cultura jurídica Europeia 319
389"[A justiça] é um termo fix o , c o m um determ inado sentido [...] este termo
ou palavra justiça deve ter certa definição ou certa noção inteligível, sendo
que de qualquer definição se podem extrair certas consequências, usando
as regras incontestáveis da lógica. É isto precisam ente o que se faz ao cons
truir as ciências necessárias e dem onstrativas - as quais não dependem de
quaisquer factos - mas apenas da razão, tal com o a lógica, a metafísica, a
aritm ética, a geom etria, a ciência do movim ento e, tam bém , a ciência do
direito. As quais não se fundam na experiência dos factos, antes servindo
para raciocinar acerca dos factos e para os controlar antes de se darem . O
que tam bém aconteceria com o direito, se não houvesse lei no m undo. O
erro daqueles que tornam a justiça dependente do poder deriva, em parte,
de confundirem direito com lei. O direito não pode ser injusto, seria uma
contradição; m as a lei pode. Pois é o poder que cria e m antém a lei: E se
esse poder falha de sabedoria e de boa vontade, ele pode criar ou m anter
leis bastante m ás" [...] (em M ed itaçã o sobre o con ceito com u m de ju stiç a (c. 1702-
1703), publ. em G. Mollat, R ec h tsp h ilo so p h isch es au s L eib n iz en s U n g ed ru ck ten
S ch riften , Leipzig, 1885, cit. por Riley, 1988, 49-50).
390Em D e T ribu s ju r is n a tu rae e t g en tiu m g ra d ib u s (cit. por Solari, 1959, 65 ss.).
324 António Manuel H espanha
capariam, por isso, ao arbítrio dos cidadãos .391 Por isso, seria pos
sível, por exemplo, estabelecer-se uma relação objectiva entre a
dimensão do Estado e liberdade, do tipo:
Estado _ governo
governo soberano
392Cf. Solari, 1959, 298. A fundam entação do direito justo na utilidade remon
ta ao ep ic u rism o da Antiguidade (cf. Villey, 1968, 4 9 5 ss.). M as, na Idade
M oderna, é visível a influência desta ideia nas obras de Hobbes e Locke e,
em geral, na teoria jurídico-política do despotismo iluminado que, não acei
tando ser um "govern o do p ovo", afirm ava ser um "governo para o povo".
Todavia, o traço distintivo do epicurism o (ou utilitarismo) de Bentham é o
facto de a utilidade a prosseguir não ser a dos indivíduos isolados, mas a
utilidade geral, podendo a prossecução desta im plicar algum a limitação do
bem estar dos indivíduos u ti sin gu li. As raízes próxim as desta correcção feita
por Bentham ao utilitarismo são Beccaria (que, na introdução a D ei delitti e
delle p en e [1764] fala da " m a s s im a fe lic ità d iv isa n el m a g g io r n u m ero" ) e Pries-
tley (A n E ssa y o n the F irst P rin cip ies o f G o v ern m en t [1771]).
393René Chopin escreve, em 1662, um T ra ité d e la p o lice ecclésiastiq u e.
394Sobre o tem a, clássico, Schiera, 1968; Stolleis, 1988; Sordi, 2001.
326 António Manuel Hespanh;
593Em Portugal, as m atérias "d e polícia" são já consideradas nas obras de Pas
coal de Melo ( in stitu tio n es iu ris civ ilis lu sita n i, 1789) e de Francisco de S o u s e
e Coelho Sampaio (P relecções d e d ireito p á trio , 1793. Sobre eles v. Seeländer
2001, M arcos, 2001.
396 Adam Smith, L ectu res on Ju r is p ru d en c e (Glasgow Edition of W orks, vol. 5
1762-1766), ed. R. L. Meek, D. D. Raphael and P. G. Stein, Indianapolis, Li
berty Fund, 1982), ed. electr.: h ttp ://o lI.lib erty fu n d .o rg /T o C /0141-06.p h p )
397 Lição de 24.12.1762.
Cultura Jurídica Europeia 327
398"T h eir idle and luxurious life in ease and plenty w hen with their masters
renders them altogether depraved both in m ind and body, so that they nei
ther are willing nor able to support themselves by w ork, and have no w ay
to live by but by crim es and vices"
399 Even colour, the m ost flimsy and superficial! of all distinctions, becomes
an object of his regard. H ence it is that diam onds, rubys, saphires, em erall-
ds and other jewels have a t all times been distinguished from the m ore pe
bbles of less splendid hues. Figure also is a distinction which is of no small
w eight in directing the choice of m an in m an y of his pursuits. A so rt of
uniform ity mixed at the sam e time with a certain degree of variety gives
him a certain pleasure, as w e see in the construction of a house or building
w hich pleases w hen neither dully uniform nor its parts altogether angu
lar" (ibid., p. 283 s.).
400"C om m erce is one great preventive of this custom . The m anufactures give
the p oorer sort better w ages than any m aster can afford; besides, it give<s>
the rich an opportunity of spending their fortunes with fewer servants,
w hich they n ever fail of em bracing. H ence it is that the com m on people of
England w ho are altogether free and independent are the hones test of their
rank an y w here to be m et w ith."
401 "I took notice of the great disorders and confusion of the feudal govern
ments, w hich in a great m easure proceeded from the numbers of retaints
and dependents am ongst them " (ibid., p. 284 ).
328 António M anuel Hespanha
402Seelánder, 2001.
403Sobre a codificação: Tarello, 1976: mais recente e interpretativo (no sentido
de um a relacionação da codificação com a absolutiza,cão da lei), Clavero,
1991 (e, ainda, a sua com unicação inédita ao colóquio C om p arin g L egal T ra
d it io n s : R ig id a n d F le x ib le L e g a l S y s tem s in th e H is t o r y o f M e d ite r r a n e a n
S o cieties (V e n ic e , 26-27 April 1999): "L a loi et la paix. Rigidez y laxitud como
crédito y descrédito constitucionales").
330 António M anuel Hespanha
7 .3 . A prática jurídica
410 Assim o júri é instituído pela Constituição de 1822 ainda com m aior am j
tude do que em França (causas crim inais e civis), a "rev ista" (ou seja, o
curso invocando ilegalidade da sentença já estava previsto na Ordenaçc
I.,4,l) e é reafirmado pela Lei de Boa Razão (§§ 1 a 3) que institui, també
um a espécie de référé legislatif (§ 11), tam bém com tradições anteriores.
411 Num docum ento que acom panha um a das cartas, Verney, propõe a refi
ma de todos os Tribunais, reform a essa que, ao lado da m udança dos se
próprios nomes, devia "proibir tantas autoridades legais, mas aduzir o te>
da lei, com dois únicos doutores, ou intérpretes, ou tratadistas". Cf. Mc
cada, 1950, 405.
41:2Sobre a qual, v. Silva, 1991, 360 ss.
Cultura Jurídica Europeia 335
4,3Não contradição da lei positiva; conform idade à "boa razão " e vigência pro
vada igual ou superior a cem anos.
4,4 As propostas de um ensino textualista rem ontam à Escola H um anista (cf.
supra, 174).
415 Cf. Silva, 1991, 365 ss.; H espanha, 1972.
336 António M anuel Hespanha
7.5.1. Bibliografia
421 Sobre a ordem jurídica liberal, v . , em geral, Arblasten, 1984, Arnaud, 1973,
Costa, 1 9 7 4 ,1 9 8 6 , e C lavero, 1991. Para Portugal (aspectos político-ideoló-
gicos), Vieira, 1992; (aspectos constitucionais e jurídicos), J. G. Canotilho,
"A s constituições", e Mário Reis M arques, "E struturas jurídicas", em Tor-
gal, 1994, respectivam ente, 149-165 e 176-181; H espanha, 1990 (aspectos
estruturais do sistèma político).
422 Cf. Carta constitucional, a rt°145, § 5.
423 Cf. Carta constitucional, art° 145, §§ 23 e 24.
424 Antes interditas pelo instituto da "lesão en orm e".
Cultura Jurídica Europeia 343
425 C o n stitu içã o de 182 2 , art0 6o; C arta co n stitu c io n a l, art0 145°, § 21°.
426 C o n stitu içã o de 1 8 8 2 , art0 9o; C arta co n stitu cio n a l, art° 145, §§ 12° e 15°.
427Questão que virá a ser central na crítica m arxista e pós-m arxista ao direito
liberal (cf., in fra , 8 .5 .1 .).
344 António M anuel Hespanha
431Julio Vilhena, Problemas do direito moderno, Coimbra, 1873, cit. por Scholz,
1976,7 45.
432Sobre tudo quanto se segue, de m odo conciso e exem plar, Fioravanti, 1999
ou A lvarez Alonso, 1999. V. ainda, para pontos de vista "fortes", Cia vero,
1991; exposição de conjunto, Renault, 1999.
346 António M anuel Hespanha
8 .2.1.2. Tradição.
“ E m Portual, por exem plo, é esta a linha de ataque de Pascoal de Melo Freire
às críticas, de sentido proto-liberal, apresentadas por António Ribeiro dos
Santos ao seu projecto, ainda assim francam ente reform ista, de um Novo
Código de Direito Público (1796) (cf., por último, H espanha, 2001).
448Burke está a referir-se à constituição tradicional inglesa, para a qual ele pro
punha - um tanto paradoxalm ente - uma reforma de sentido parlamenta
rista; cf., sobre a consttituição tradicional inglesa e a história da sua evolução
de um modelo de governo "equilibrado" (expresso na conjunção do princí
pio monárquico [rei], aristocrático [Câmara dos Lordes] e democrático [ Câ
mara dos Comüns]) para um modelo parlamentarista, com o apagamento do
poder autónomo do rei e a instauração do principio da responsabilidade ex
clusivamente parlamentar do governo, v. Fioranvanti, 9 7 -9 8 ,1 9 9 9 ,1 0 0 .
449Langford, 1989, vol. 8. Sobre Burke, Fioravanti, 1 9 9 9 ,1 1 8 .
Cultura Jurídica Europeia 355
451Sobre o liberalismo clássico, C lavero, 1991; 1997; muito boa sínttese, Fiora-
vanti, 87 ss.
452Sobre o constitucionalismo nnorte-am ericano, v. Clavero, 1997.
453Publicam, em com um , The Federalist, 1788.
358 António M anuel Hespanha
454Realçada, sobretudo, por Thomas Paine (1737-1809; Rights ofman, I-II, 1791-
1792). Por sua vez, as concepções sociais de A dam Smith (1723-1790) - ao
inisistirem nos mecanism os naturais da convivência - nom eadam ente no
domínio da econom ia (a famosa "M ão invisível") - reconstruíam de uma
forma nova ideias antigas sobre a auto-regulação da sociedade e sobre os
perigos de um dem asiado intervencionismo governativo. A o contrário dos
teorizadores iluministas do Estado de Polícia (Polizeistaat) - que preconiza
vam uma detalhada regulam entação da sociedade pelo Estado - as corren
tes fisiocráticas e liberais propunham um modelo diferente de governabili
dade, em que o Estado deixava livres os mecanismos naturais de regulação,
contando com a eficácia do controlo social de que estes dispunhma.
Cultura Jurídica Europeia 359
471Cf. Fioravanti, 1 9 9 9 ,1 3 9 .
472Dado que os actos não legislativos do Estado deviam , em virtude do prin
cípio da legalidade, ser actos de execução das leis, o problema da inconsti
tucionalidade só se punha em relação às leis. Quanto aos "actos de gover
n o", as decisões m eram ente políticas do Estado, nas suas relações internas
ou externas, esses pertenceriam à pura política, domínio de afirmação li
vre do Estado, sendo juridicam ente insindicáveis. Este princípio - que, na
verdade, é característico de um Estado autoritário - continua a vigorara
quase indiscutido nos dias de hoje.
370 António M anuel Hespanha
477O co n tro lo ,co n situ cio n a l d as leis p re ssu p õ e a d istin çã o e n tre "p o d ei
constituinte"e "p o d er legislativo", distinção p ara a qual foi decisiva a evo
lução do pensam ento político de de Em m anuel-Joseph Sieyès (1748-1836)..
Sieyès m anteve posição oscilantes: num a prim eira fase d a sua obra ppo-
lítica (Qu'est-ce que le Tiers État, 1789), foi um defensor da plena sobera
nia da assem bleia, que m anteria, em perm anência, u m p o d er constituin
te, podendo elaborar, m oddificar e substituir livrem ente a constituição.
Neste sentido, o p oder constituinte não se distinguia do p o d er legislati
vo ordinário. P orém , num a segunda fase - que corresp on d e à Constitui
ção francesa do ano III [1795], ela m esm a reacção con tra o radicalism o jac-
cobino an terior - e de que Sieyès foi inspirador, ele in trodu z a ideia de
que o p od er constituinte não perm an ece sem pre nas m ãos do parlam en
to, sob pena de se d estruir a m ínim a estabilidade política (Opinions de Si
eyès sur les attributions et l'organisation du Jury Constitutionnel, 3.10.1795).
C om isto, Sieyèes distingue de form a clara o p oder constituinte do podei
legislativo ordinário, subordinando o segundo ao p rim eiro, e proponde
(sem êxito) a in trodução de u m em brião de tribunal constitucional, para
avaliar a observância da constituição pelas leis. Sobre a história recentí
do controle da constitucionalida, A m aral, 1998 e Fiorovan ti, 1999.
Cultura Jurídica Europeia 373
481 Era este, com o já vim os (supra, 258), o sentido da Lei da Boa Razão.
Cultura Jurídica Europeia 377
482Sobre o projecto de Novo Código, v. Silva, 1 9 9 1 ,3 7 0 ss.; ou, para maiores de
senvolvim entos, M arques, 1987; Vieira, 1992. Em todo o caso, é prom ulga
do, u m pouco mais tarde (1823), um Código penal militar. Os restentes códi
gos aparecerão ao longo do século XIX - Código administrativo, 1 8 3 6 ,1 8 4 2 ,
etc.; Código comercial, 1833; Código penal, 1837 e 1852; e, por fim, a coroa da
codificação, o Código civil de 1867, ou Código de Seabra, elaborado por Antó
nio Luis de Seabra, Visconde de Seabra, após 17 anos de preparação. Sobre
o movim ento da codificação em Portugal, Gilissen, 1988, 461 (nota do tra
dutor); A ndrade, 1946. O Código de Seabra manteve-se em vigor até 1966,
data em que é substituído por um novo código, que vinha sendo prepara
do desde os anos '40. Sobre ele, v. M endonça, 1982, 29 ss.
483Sobre todos estes códigos, v. Gilissen, 1988, 451. Sobre a sua difusão m un
dial, v. ibid., 456 s.
484Cf. Arnaud, 1969.
378 António Manuel Hespanha
488V. tam bém Jean-M arie Étienne Portalis, "D iscours prélim inaire du Code Ci
vil", em Discours et rapports sur le Code civil, ed. F. Portalis, Paris, 1 8 4 4 ,4 ; cf.
ainda, "D iscou rs de présentation du Code civil", ibid., p. 91 ss..
Cultura Jurídica Europeia 381
503 Os "estilos" ou praxes de julgar deixam de ter força vinculativa. Quanto aos
"assen tos", norm as de aplicação vinculativa estabelecidas por u m tribunal
a propósito de um caso concreto (cf. O rd .fil, 1,5,5), restringem -se agora aos
do prim eiro tribunal de justiça do Reino, a Casa da Suplicação (Lei da Boa
Razão, 18.8.1769). E, em bora não aplicada, m antinha-se a ordenação que
m andava recorrer ao rei no caso de dificuldade na interpretação ou inte
gração das lacunas (L. 18.8.1769, § 11; O rd.fil., III, 64, 2).
Cultura Jurídica Europeia 389
" A m assa com plexa do direito ap arece ag o ra, não com o um sistema de
normas, de pensamentos, m as com o um conjunto de existências, de potên
cias jurídicas. C onsideram os a im agem de um corpo jurídico com o a
mais sim ples e natural. C ad a u m destes corpos tem o seu m odelo p a r
ticular, a sua n atu reza e as suas características, graças às quais é cap az
de p rod u zir os seus efeitos. A nossa tarefa perante isto assu m e p o r
tanto o carácter de uma investigação histórico-natural [...] D evem os, p o r
tanto, m edir as características e a força do corpo jurídico [i.e., de um
instituto jurídico], m o strar o m od o em que nasce e m orre, as con di
ções e situações em que ele p ode influir, as influências que, em co n
trapartid a, sofre, as m etam orofoses de que é cap az; devem os indicar
a sua relação com outros corp os jurídicos e as ligações que tece com
eles ou os conflitos em que com eles cai; assim , devem os com p reen
der num conceito, com o n um ponto focal lógico, obtido co m base de
todas as anteriores investigações, a n atu reza do m esm o, a sua indivi
dualidade jurídica e, enfim , d evem os ord en ar, do m esm o m odo que o
cientista classifica os objectos h istórico-naturais, todos os corp os jurí
dicos em e p ara um sistem a" (Rudolf v. jhering, Unsere Aufgabe, 1857
[em Rudolf von Jhering, La lotta per il diritto e altri saggi, M ilano, Giu-
ffrè, 1989, 9Y).
Cultura Jurídica Europeia 393
La lotta per il diritto e altri saggi, Milano, Giuffrè, 1989, 7). A partir
daqui, desenvolver-se-ia a "jurisprudência superior" que produ
ziria, por destilação e síntese da matéria prima antes obtida, "uma
matéria absolutamente nova" (ibid.), o conceito. A função dos con
ceitos é, ao mesmo tempo, (i) facilitar a apreensão do direito, já
que eles se tomam sintéticos e intuitivos,512e (ii) tomar possível a
produção de novas soluções jurídicas por meio do desenvolvi
mento conceituai, do chamado "poder genético dos conceitos".
Ao proceder deste modo, o jurista estaria a adoptar um
método semelhante ao dos cientistas da natureza que, a partir
da observação do real e da elaboração lógica dos resultados des
sa observação, extraem princípios gerais subjacentes aos factos
empíricos (como a lei da atracção universal, a velocidade da luz,
as leis que presidem às combinatórias químicas). Princípios que,
por sua vez, não apenas explicam as observações feitas, mas
podem ser ainda logicamente combinados, produzindo novos
princípios e teorias que, por seu turno, produzem conhecimen
tos novos sobre a realidade.513 Ou seja, princípios que não são
apenas verdadeiros do ponto de vista formal, mas ainda onto-
logicamente fundados.
No caso do direito, os princípios e conceitos, obtidos pelo
tratamento formal do material histórico514e legislativo de um
512" [ ...] a configuração plástica, adquirida de tal m odo [pela síntese conceitu
ai] pela m atéria jurídica to m a-a acessível à capacidade intuitiva jurídica e,
por tanto, evita à m em ória a fadiga de im prim ir mecanicam ente um a quan
tidade enorme de norm as positivas isoladas" (ibid, 10). Jhering insiste na
im portância deste elem ento plástico e estético da construção conceituai
como pedra de toque da sua aderência aos elementos espirituais mais ele
vados do direito. O apuram ento jurídico-construtivo produziria um a sen
sação de gozo estético equivalente - que se experim entaria, por exem plo,
na jurisprudência rom ana -, no plano espiritual, à beleza das mais sofisti
cadas formas de vida natural (ibid, 11 ).
5131.e., permitem antecipar realidade até aí ainda não em piricam ente dem ons
trada, com o a existência de Plutão ou dos buracos negros.
514 Dentre este material histórico, destaca-se o direito rom ano, que a pandec-
tística volta a tratar com o um cam po fértil de quadros conceituais e dog
máticos aproveitáveis transtem poralm ente. Sobre o rom anism o da pandec-
tística, v. Wieacker, 1 9 9 3 ,4 7 5 ss.
Cultura Jurídica Europeia 395
517 A crítica do formalismo jurídico feita pelo m arxism o clássico (K. M arx, nc
m eadam ente; v. infra, 8 .5 .1 .) tinha em vista a pandectística.
518 Sobre este código, v., por todos, F. W ieacker, 1993, 536 ss.
5,9E, por exem plo, inegável a influência da doutrina alem ã, de raiz pandectís
tica, no Código civil português de 1967, nom eadam ente através do magisté
rio, na sua comissão redactora, de Adriano Vaz Serra, Antunes Varela e Pire
de Lima. V. M endonça, 1981.
520Os "cinco códigos" da República de Nanquim (1925-1929) são bastante in
fluenciados pelo B.G.B..
521 V. Rõhl, 1959; Kigatawa, 1966.
522Sobre a expansão mundial da pandectística, v. Schw artz, 1935, 425 ss.
Cultura Jurídica Europeia 399
8 .3 .3 .2 . O conceitualismo em Portugal
533 l.e., um a explicação que tem em conta a finalidade dos acontecim entos e
não os antecedentes. A im agem científica inspiradora é a de struggle for
life, do evolucionism o darw inista - a evolução biológica é com andada pela
finalidade da sobrevivência e explicáveis por ela. O acaso genético (que
obedece a um a causalidade m ecanicista, do tipo da das ciências físicas)
é, no m undo da vida, subordinado a um a cau salid ad e finalista em que o
patrim ónio genético é utilizado p ara a finalidade de vencer na co n co rrên
cia biológica.
404 António M anuel Hespanha
536Sobre Jhering, v., por todos, W ieacker, 1993, 514-518; Kaufmann, 1994,1 4 4 .
406 António Manuel Hespanl
538É clara a consonância de alguns destes pontos de vista com a filosofia, críti
ca do racionalismo e exaltadora da acção, de Friedrich Nietszche f I 844-1900
ou de H enri Bergson (1859-1941). Sobre N ietszche e o direito, Kaufm ann
1994, 86; Valadier, 1998; Litowitz, 1995, 56-57.
408 António M anuel Hespanha
5WSobre a Escola de Direito Livre, por todos, W ieacker, 1993, 670 ss. e Kauf
mann, 1 9 9 4 ,1 4 6 ss.
Im portante, neste sentido, H erm ann Isay (1873-1938), Rechtsnorm und Ents
cheidung, 1923.
541 N om eadam ente, o decisionism o político e jurídico de Carl Schm itt (1888-
1985), o mais brilhante e mais cnsistente dos juristas desta corrente, para o
qual o direito consistia num a afirm ação dos valores dos com patriotas (Vo
lksgenossen) contra os estranhos (Fremde). Ao Estado, com o "n o v o Prínci
p e", cabia a afirm ação destes valores, por meio da lei, mas eventualmente
contra a lei, se esta estorvasse conjunturalem ente os interesses colectivos
(v., em síntese, Kaufm ann, 1994, 96 s.).
542Cf. infra, 8.5.1. .
Cultura Jurídica Europeia 409
543Cf. supra, 8.3.3. A crítica dirigida pela jurisprudência dos interesses à juris
prudência dos conceitos era a de que ela p raticava um "m étodo da inver
são" - ou seja que colocava no princípio do processo de achamento da so
lução jurídica (Rechtsfindung) os conceitos, quando estes deviam ser ape
nas sínteses finais dos resultados justos obtidos
410 António M anuel Hespanh
547 Cf., sobre esta ideia de estádios histórico-jurídicos em Puch ta, W ieack er,
1 993, 455. N a A lem an ha, o principal rep resen tan te do organ icism o jurí-
d ico-político é, no en tan to, O. v. G ierke (1 8 4 1 -1 9 2 1 ), v. W ieack er, 1993,
518 ss.
412 António M anuel Hespanha
tido. Pois nem o homem se podia propor outra coisa que não
decorresse dos seus factores determinantes, nem lhe podia ser
dirigida qualquer censura moral pelos seus actos. A sociologia
deixa-se, assim, descrever como uma "fisiologia social", comple
tamente depurada de intenções normativas (religiosas, éticas).550
O positivismo sociológico de A. Comte - depois desenvol
vido por discípulos seus, dos quais se destaca E. Littré (1801-
1881)551- constitui (não tanto pelo seu "positivism o",552 mas so
bretudo pelo seu organicismo) uma crítica directa ao indivi
dualismo, voluntarismo e contratualismo da pandectística.
O indivíduo não era um ser livre e autodeterminado, mas
um ser dependente e que só sobrevivia em virtude da solidarie
dade social.
A sociedade não era um conjunto de indivíduos autónomos
e auto-regidos, mas uma constelação de relações interindividu-
ais forçosas e indisponíveis, justamente porque baseadas nesse
carácter incompleto e fraco do indivíduo e na necessidade, daí
decorrente, de especialização, divisão e complementarização do
trabalho.
A ordem social e política não se fundava num acordo de
vontades que melhor garantisse os direitos naturais e prévios dos
indivíduos, mas nas condições e exigências objectivas da vida
social concretizadas em instituições (transindividuais e indispo-
550H averia, em todo o caso, espaço para uma disciplina norm ativa externa como
o direito, pois, ao contrário do com portam ento instintivo dos animais, o
com portam ento do h om em não era absolutamente determ inado. Júlio de
M atos, um dos representantes da psicologia positiva em Portugal, conclui
" I o. - Que o livre arbítrio e a espontaneidade dos actos voluntários são uma
quimera, porque a Fisiologia dem onstrou a subordinação destes fenóme
nos a leis; 2o. - Que os m ovim entos da vontade não são fatais, m as simples
m ente condicionados, porque nós podem os intervir neles e modificá-los
num a direcção p redeterm inada" (cit. por F. Catroga, 1977, 53 n. 1).
551 E. Littré combina o com tism o com o positivismo inglês (de orientação demo-
liberal) de S. Mill e H. Spencer. Obras principais: Conservationi, révolution,
positivisme, 1852; revista Philosiphie positiviste - revue (décadas '60 e '70 do
século XIX).
552Cf. supra, 8 .2 .2 ..
414 António Manuel Hespanl
557Sobre este ponto, para o país europeu em que o positivismo teve um m aior
im pacto sobre o direito, cf. Grossi, 1999, 2000 (sobre os quais, v. as minhas
recensões alargadas, em Themis, 3(2001), 457 ss.).
558Cf. W ieacker, 1993, 662 ss.
559 Cf. W ieacker, 1993, 658 ss.
420 A ntónio M anuel Hespanha
560Sob a influência das teorias antropológicas de C esare Lom broso, que filia
va a prática do crim e em características físicas (v.g., bossas cranianas) dos
indivíduos, criando a figura do "crim inoso n ato" e aproxim ando o trata
mento penal da psiquiatria (Uuomo delinquente, 1871).
561 Sob influência de escolas positivistas italianas e francesas (Ferri, Garofalo,
Lacassagne, Tarde). Sobre o elenco destes factores, com elementos estatísti
cos comprovantes, Caeiro da Matta, Direito criminal português, Coimbra, 1911.
Cultura Jurídica Europeia 421
565 N a origem do nazism o estão m ovim entos ideológicos mais especificam en
te alem ães, mas igualm ente m arcados pela crítica ao individualism o con-
tratualista em nom e da ideia de organicism o e de um a ordem material de
valores ("ord in alism o co n creto ", O. Spann; C. Schm itt), d eclarad a pelo
Führer (decisionismo).
424 António M anuel Hespanha
566 N ão todos. Por outro lado, alguns faziam -no por razões tácticas, com o a de
recear o peso co n serv ad o r do voto feminino. Cf., sobre o fem inism o e o
sufragismo no ideário positivista, F. C atroga, 1991, II, 287.
567 A própria ideia evolucionista e biologista fornecia im agens adequadas: a
do "n egro infantil", a do "tu rco am olecido e sensual", a do "ind ian o efe
m inado" e a da "C h in a doente e adorm ecida".
568É certo que esta desigualdade não é irrem ediável, com batendo-se pela edu
cação e pela civilização.
Cultura Jurídica Europeia 425
571 Como o Estatuto judiciário português de 1928 (dec.-lei 15344, dec. 10.4), que
estabelece que o juiz não pode recusar a aplicação da lei com o fundam en
to de que ela lhe pareça injusta ou im oral (art° 240°).
372Como os Assentos portugueses, reintroduzidos em 1926.
Cultura jurídica Europeia 427
Código civil de 1867 (no seu art° 16o)585 dispor que as questões
sobre direito e obrigações seriam resolvidas "pelo texto da lei,
pelo seu espírito, pelos casos análogos previstos noutras leis" ou,
na sua falta, "pelos princípios de direito natural, conforme as circuns
tâncias do caso". Todos estavam de acordo que esta referência nãc
podia ser entendida no sentido de aceitar o jusnaturalismo clás
sico ou o jusracionalismo, completamente destronados pelas
ideias positivistas. Mas, enquanto que, sob a influência combi
nada do legalismo e da pandectística, a opinião dominante in
terpretava esta referência ao direito natural como equivalendo
a uma remissão para os "princípios gerais de direito",586 outros58:
viam nesta expressão um reconhecimento da existência de fon
tes não legislativas de direito, embora vinculadas às manifesta
ções sociais espontâneas de criação ou de reconhecimento dc
direito.588
A influência das escolas realistas e institucionalistas fran
cesas e italianas, nomeadamente de L. Duguit, G. Jèze, M. Hau-
riou e Santi Romano foi mais tardia (a partir da segunda déca-
5)19L. Duguit esteve em Coimbra, em 1910 e em 1923 (testem unho sobre a sua
influência em Jaime G ouveia, Direito civil, Lisboa, 1939, 23; mas o persona
lismo de M. H auriou estava mais de acordo com o fundo neo-tom ista da
ideologia política do Estado Novo.
590Traços explícitos de influência em muitos publicistas: Lobo d'A vila, Lições
de direito político, Coimbra, 1911-1912 (influência de Durkheim e de Duguit);
Rocha Saraiva, Lições de direito administrativo, 1914-1915 (um eclético, que
procura com binar o m étodo indutivo [histórico-sociológico] com o método
dedutivo [racional-dogm ático, jurídico] nos quadros de um a orientação as
sum ida com o "p o sitiv a" [anti-especulativa, m as atenta às conexões das
norm as jurídicas entre si]); Fézas Vital, Acto jurídico, 1914; M agalhães Co-
llaço, Concessão de serviços públicos, 1914 (com binação de realismo com dog
m atism o). H istoriadores com o Paulo M erêa, L. Cabral de M oncada e M ar
cello Caetano, apesar de pertencerem basicamente a outras orientações, não
escaparam tam bém a algum a influência positivista; cf. A. M. Hespanha,
"L 'h istoire juridique et les aspects politico-juridiques du droit (Portugal,
1 900-1950)", Quaderni ftorentini per la storia dei pensiero giuridico moderno,
10(1981), 425-428.
591 Em Portugal, leis do divórcio (3.11.1910) e da família (25.12.1910); abolição
do dever de obediência ao m arido (cf. art 01185° do Código civil de 1867).
592V., para uma panorâm ica, H espanha, 1981, M endonça, 1981, Gilissen, 540-
5 42 ("nota de tradu tor").
432 António M anuel H espanha
596 Sobre o neokantismo e a "filosofia dos valores", v. W ieacker, 1993, 679 ss.
597 V., supra, 8.3.3.I.
398 V., supra, 5.6.2.3.
Cultura Jurídica Europeia 435
599É esta última ideia que está na base da interpretação teleológica ou finalista,
que procura interpretar os actos jurídicos (tam bém os actos legislativos) de
acordo com as suas finalidades sociais.
600Lim itam o-nos a esta brevíssima alusão a correntes diversas da m etodolo
gia do direito (desde a "teoria da argu m en tação" (Th. Viehweg, Ch. Perel-
m an) à herm enêutica (H. G. G adam er, E. Betti), passando pelos desenvol
vim entos da lógica jurídica (G. Kalinowski, U. Klug, K. Engisch): cf. Kauf
m ann, 1 2 2 ,1 2 4 ,1 0 5 , respectivam ente.
Obras principais: Allgemeine Staatslehre (1925), Reine Rechtslehre (1927); re
ferência bibliográfica básica: La torre, 1978,159-164; Wieacker, 1993, 682-683;
Kaufm ann, 1 9 9 4 ,1 5 0 ss..
436 A ntónio M anuel Hespanha
604 Do livro fazem ainda parte duas outras intervenções, um a de crítica à teo
ria dos direitos subjectivos de Duguit (em nome, ainda, de um hum anis
mo que vê na luta individual pelos direitos a raiz do direito subjectivo) e
outro, de crítica à escola penalista positiva. V., ainda, um a apreciação a
H auriou, "O "pluralism o" no direito público. (A propósito de um livro de
H au riou)", em Dionysios, sér. 1(5), 1912, 277-282. Esta última revista consti
tui o órgão de um grupo (integrando outros professores de direito com o
M am oco e Sousa, Cabral de M oncada, Caeiro da M ata, M agalhães Colla-
ço) com prom etido na luta anti-positivista e na afirm ação vigorosa da "exis
tência irredutível da nossa individualidade, tão deprim ida e apagada pelo
cientismo”, v. Simeão Pinto de M esquita, "Positivism o e idealism o", Dio
nysios, 2(1912), 68. Outra revista com o m esm o sentido é a Águia, de Leo
nardo Coimbra. Sobre este m ovim ento, v. Ribeiro, 1951; Teixeira, 1 9 8 3 ,1 1 1
ss. Sobre todo este movimento, v., por último, Torgal, 1996.
Cultura Jurídica Europeia 439
605V. Manuel Paulo M erêa, "O "pluralism o" no direito público", Dyonisios, sér.
1(5), 1912,277-28 2 .
440 António M anuel Hespanha
606Tais são os pontos de vista do "Integralism o lusitano", sobre o qual v., por
todos, Cruz, 1982; Pinto, 1989.
607 V., sobre a história político-ideológica do Estado N ovo, Rosas, 1994.
608 V., sobre o tema, C ruz, 1988.
609 Cf., Caetano, 1941, 6 ss.: a justiça com o meio de coordenar as acções hum a
nas em vista de um a finalidade últim a, a ordem .
610 V.g., a dita reform a do C ódigo civil de 1867, em 1930, cf. sobre o seu real
alcance, Manuel de A ndrade, "Sobre a recente evolução do direito privado
p ortu gu ês", Boi. Fac. Dir. Coimbra, 22(1946) 286 ss.; a reintrodução dos "a s
sentos" do S.T.J., com o m eio de disciplinar a jurisprudência, em 1926, bem
com o as m edidas tendentes a a u m e n ta ra rapidez e eficácia da justiça ("R e
forma judiciária", de 1926; Código de processo civil, de 1939). Cf., sobre a po
lítica da justiça do Estado N ovo, M anuel Rodrigues, A justiça no Estado Novo,
Lisboa, 1933.
Cultura Jurídica Europeia 441
611 Sobre ele, Cruz, 1 9 7 5 ,1, 613 ss. e bibl. aí citada (v. 639, n.1400).
612"Elogio do Prof. João Tello de M agalhães C ollaço", em Boi. Fac. Dir. C oim
bra, 13(1932-1933), 335.
613Cf. M anueí de A ndrade, "Sobre a recente e v o l u ç ã o d o d i r e i t o p r i v a d o p or
tuguês ", B oi..F ac. D ir. C oim bra, 22(1946), 284 ss.; Manuel Rodrigues, "D is
curso proferido na sessão com em orativa do centenário do S.T.J.", P olítica,
d ireito e ju s tiç a , Lisboa, 1934, 77 ss.
442 António Manuel Hespanha
8.5. A s e s co la s críticas
619 Sobre o pensam ento jurídico m arxista v., além da m inha nota "A lgum as
indicações sobre a cultura do direito na obra de M arx e E ngels", em Hes
panha, 1978a, 64-69; Guastini, 1973; C erroni, 1962; Reich, 1972; Meireles,
1990. Panoram a sinóptico sobre o m aoism o e o direito em H espanha, 1996.
620 De facto, a pandectística oitocentista continuava (com o herdeira da Escola
H istórica) a aceitar im plicitam ente que o sistem a dos conceitos jurídicos
decorria de um a certa cultura ou de um certo direito positivo históricos.
Cultura Jurídica Europeia 445
foram contratados prim eiro, vindo a seu turno, creram que se lhes daria
m ais, mas não receberam além de um a m oeda cada um; e, ao receber, eles
m u rm uravam contra o pai de família, dizendo: Estes últimos não trabalha
ram senão um a hora e vós os tom ais iguais a nós que carregam os o peso
do dia e do calor. Mas em resposta, ele disse a um deles: M eu am igo, eu
não vos fiz injustiça; não acertastes com igo um a m oeda pela vossa jorna
da? Tom ai o que vos pertence e ide; por mim quero dar a este últim o tanto
quanto a vós. N ão me é, pois, perm itido fazer o que quero? e os vossos olhos
são m aus porque eu sou bom? Assim , os últimos serão os prim eiros, e os
prim eiros serão os últimos, porque há muitos cham ados e poucos escolhi
dos (São M ateus, cap. XX, v. de 1 a 16). Independentem ente de outros sen
tidos, aborda-se aqui a crítica da desigualdade: o pai de família estava a tra
tar desigualm ente os trabalhadores ao pagar igualmente trabalho desigual.
No entanto, a sua resposta aponta para valores diferentes da m era igual
dade: consideração das circunstâncias de cada caso (nom eadam ente, im
possibilidade de alguns trabalhadores de terem encontrado trabalho mais
cedo); bem com o a ideia dessa justiça suprem a que é a justiça distribuiva
face à simples justiça com utativa.
Cultura Jurídica Europeia 449
623 Sobre estas escolas, a m elhor síntese é a dos artigos "C ritique du droit"
(Michel Miaille) e "Criticai legal studies" (R. Abel), em Arnaud, 1988. Ou
tras sínteses: sobre o ram o am ericano (talvez o mais interessante), "C riti
cai legal studies sym posium ", S ta n fo rd law review , 36 (1-2), 1984; Unger, 1983;
sobre o ram o francês, P ou r u n e critiq u e du d roit, Paris, PUG-M aspéro, 1978.
Revistas: P rocès, K ritisch e Ju stiz , C ritica dei d iritto.
452 António M anuel H espanha
624 Sobre a crítica do direito em M ichel Foucault, v. M áiz, 1978; Serrano Gon-
zález, 1987b; Fitzpatrick, 1985. Sobre a valorização foucaultiana do direito
e do Estado liberais, v. Goldstein, 1993, C aputo, 1993; Barry, 1996.
Cultura Jurídica Europeia 453
625 Tal com o o pretor, em Roma, auxiliava, corrigia e supriu os defeitos do di
reito civil em vista da utilidade pública (adjuvandi, corrigendi vel supplendi
ius civile propter utilitatem publicam).
626 A expressão foi cunhado num congresso d e 1972, ein Catania, na Sicília;
actas, Barcellona, 1973.
Cultura Jurídica Europeia 455
627 Em que, por um lado, as forças de esquerda (nom eadam ente, o Partido
C om unista Italiano) viam bloqueado o seu acesso ao poder político pela
hegem onia da D em ocracia Cristã e pelos constrangim entos da política in
ternacional (a Itália era um pilar fundam ental da OTAN). Mas em que, por
outro, a esquerda hegem onizava o meio intelectual e universitário, poden
do, por isso, condicionar as novas gerações de juristas e juizes. A cresce que
os juizes italianos se distinguiram , durante os anos '80 e '90, - por vezes
com sacrifício da própria vida - na luta contra a Mafia e a corrupção, o que
os tornou em heróis (matti pulite, m ãos limpas) da opinião pública.
C ultura Jurídica Europeia 457
628Cf. Coturri, 1978. V. ainda, sobre este tema, do mesmo, Cotturi, 1974.
458 António Manuel Hespanha
629 Cf. Blankenburg, 1980; Cappelletti, 1984; H espanha, "Lei e justiça: história
e prospectiva de um parad igm a", em H espanha, 1993a, 7-58.
Cultura Jurídica Europeia 459
652Cf. a bela síntese de Am aral, 1998, maxime, 314 ss.; A m aral, 2002.
653Sobre um a interpretação sócio-juridica deste novo constitucionalismo, Fer-
rarese, 2002 (cf. a minha recensão e com entário, em Themis, IV.7(2003).
Cultura Jurídica Europeia 469
653 Cari Schmittt (1888-1985), por exemplo, organizou, em 1936, uma conferên
cia sobre "A judiaria e o direito alem ão", onde, para além de enaltecer o "m ag
nífico com bate" de Julius Streicher, delegado de Hitler para a questão judai
ca e condenado à forca por crimes de guerra no Tribunal de Nuremberga, fez
aprovar uma moção no sentido de omitir qualquer referência a académicos
judeus. Numa série de seis volumes destinados a identificar as nefastas in
fluências da "judiaria" sobre o direito alemão, era expressam ene assinalada
a origem judaica de Hans Kelsen, o que explicaria o carácter abstruso da sua
teoria pura. Quando a Faculdade de Direito de Colónia pediu, em 1933, que
Kelsen fosse poupado à política de arianização do direito, Schmitt agiu em
conformidade com o seu anti-semitismo, tendo sido o único professor a re
cusar-se a assinar a petição (cf. Detlev F. Vagts, 2002, 2157 ss.). A sequência
da vida de Kelsen sob o nazismo é assim contada por um seu biógrafo" Te
mendo o resultado se a polícia o encontrasse em sua casa, o professor de di
reito envolveu o seu velho revolver do serviço militar numa casca de banana
e deitou-o ao Reno. Fugiu com a família para Praga, onde, na sua primeira
liçao, fascistas apinhados no hall gritavam: "Tudo menos judeus e comunis
tas ! Rua !". Ele continuou a ensinar, sob a protecção da polícia. No entento,
tendo sido descobertis planos para o assassinar [...]. fugiu com a família para
os EUA, em que lhe foi dada uma cátedra de ciência política, mas não de di
reito" (Stewart, 1990. 273).
CuVUira^UT\à\c&'Europeia
656 Cit. por Gõrlitz, 1972, II, 276; sobre as posições jusnaturalistas dos tribunais
superiores alem ães, v. síntese em W ieacker, 1993, 701 s.
657O entendim ento mais corrente - e não de todo arbitrários - Teoria pura do
direito orienta-se neste sentido (cf. Stewart, 1990, 297 ss..).
472 António Manuel Hespanha
662 Cf. E. Kaufm ann, K ritik d er n eok a n tisch en R ech tsp h ilo so p h ie, 1921, 684; sobre
a sua crítica ao formalism o ético de Kant, v. W ieacker, 1993, 684 ss.
663 V., sobre isto, W ieacker, 1993, 712 (referindo, com o exem plo, as perplexi
dades e discussões em tom o do aborto, da esterilização, do auxílio ao sui
cídio, do divórcio, dos poderes parentais, das relações entre os sexos). V.
ainda, Kaufm ann, 2002, C.3.
664Foi a posição defendida, nomeadamente, pelo jusfilósofo marxista Em stB lo-
ch (N a tu rrech t u n d m en sch lich e W ü rd e [Direito natural e dignidade hum a
na], 1961). H á reflexos disto na ideia de "acquis constitucional", que subja
zia à teoria de não revisibilidade de certos artigos da Constituição portu
guesa de 1976 (relativos às então cham adas "conquistas revolucionárias").
474 António Manuel Hespanha
665 Neste sentido, já M ax Scheler, Der Formalismus in der Ethik und die materiale
Wertethik, 1927; v. W . W ieacker, 1993, 685 ss., 700 ss.; textos significativos
dos propugnadores desta ética material em A. Kaufm ann e W . Maihoffer,
Die ontologische Begründung des Rechts, D arm stadt, 1965.
666/.e., do hom em concreto em situações existenciais de relação tam bém con
cretas. Cf. Kaufm ann, C., 2.2.4.4.3.
667V. Arthur Kaufmann, Analogie und Natur der Sache, 1965; E. Maihofer, Recht
und Sein. Prolegomena zu einer Rechtsontologie, 1954; Vom Sinn menschlicher
Ordnung, 1929. Com um sentido ligeiramente diferente, outros autores (H.
Welzel, Naturrecht und materiale Gerechtigkeit, 1962) falam de "estruturas 16-
gico-materiais" (i.e., de exigências de um a lógica, objectiva dos valores jurí
dicos que se imporia a todo aquele que quisesse pensar ou falar sobre o di
reito); cf. Wieacker, 1993, 688 ss.;103 s., 226 ss; Kaufmann, 2002, C., 2.2.4.4.3.
668Esta observação pretende problem atizar os pontos de vista daqueles que
acham que o pensam ento da "n atu reza das coisas" é, por natureza, conser
vador.
Cultura Jurídica Europeia 475
676Obras clássicas da orientação tópica: Th. Viehweg, Toptk u n d Jurispru denz, 1953;
J. Esser, G ru n dsatz u n d N orm in der rechtlichen F ortbildu n g des P rivatrechts (Prin
cipio e norm a no desenvolvimento jurídico do direito privado), 1956. A teo
ria da arg u m en tação 'd ev e muito, tam bém , a Ch. P erelm an ( T r a ité de
Vargu m en tation , 1958 [em colaboração]); cf. sobre a teoria da argum entação,
no âmbito da teoria de aplicação das normas, Kaufmann, 2002, F.14. Para o
mundo jurídico americano, v. as notáveis obras de Jam es Boyd White (Whi
te, 1 9 7 3,1984,1990) sobre o carácter argum entativo e retórico do direito.
Cultura Jurídica Europeia 479
679 Cf., em Portugal, a proibição do uso do direito canónico nos tribunais civis
decretada pela Lei da Boa Razão (cf. su p ra , 174).
“ "C om excepção das correntes "integristas" (que se conservaram até hoje, quer
no m undo católico, quer no m undo protestante). Estas continuam a defen
der que a dimensão religiosa cobre, p o r in teiro , na ín teg ra, a vida hum ana,
nada lhe sendo alheio e, portanto, nada se podendo alhear do magistério
divino. Daí que condenem todas as form as de "liberalism o" (v.g., a liber
d ade religiosa, o carácter laico e a-confessional do Estado) e que conside
rem que o direito está limitado pelos princípios da religião.
681 O liberalismo foi condenado pelo Syllabus e pela encíclica Q uanta cu ra (1864),
de Pio IX, ratificados pelo concílio do Vaticano I (1869-1870), o que não impe
diu o desenvolvimento de um movimento católico liberal (La Mennais, Lacor-
daire, Montalembert), que está na origem da democracia cristã. O modernis
mo - ou seja, tudo o que, desde a exegese bíblica até ao darwinismo e, em ge
ral, o cientismo, passando pelo liberalismo, pela democracia e pela liberdade
religiosa, fosse contrário ao ensinamento tradicional da Igreja, baseado no neo-
tom ism o - foi condenado na encíclica P a s cen d í D om in ici G reg is, de Pio X
(8.9.1907), que o definiu como "a síntese de todas as heresias". A situação só se
inverte com o concílio do Vaticano II (1962-1065). Sobre o modernismo católi
co e a reacção que suscitou, por parte da hierarquia, cf. Schoof, 1970; Daly, 1980.
Cultura Jurídica Europeia 481
682Com o a Igreja não reconhece clara e abertam ente a liberdade religiosa se
não com o Concílio Vaticano II, a sua posição não era a mesma nas situa
ções em que os poderes tem porais eram católicos e a dissidência não cató
lica. Aí, as concordatas não apenas ou torgavam privilégios à Igreja como
im portavam frequentemente restrições à liberdade de outras confissões. V.,
sobre o tem a da liberdade religiosa, M achado, 1996.
683A expressão é retirada do título de um livro que fez época, L. Chamont, La
renaissance du droit naturel, 1910.
684 Sobre o jusnaturalism o protestante, cf. W ieacker, 1993, 695 ss.
482 António Manuel Hespanha
688E, por isso, se condenava o divórcio, m esm o para os casam entos civis. Em
Portugal, o divórcio "civil" não existiu, para os casam entos católicos, entre
1940 (Concordata com a Santa Sé) e 1975.
689 E, por isso, a ilegitimidade de quaisquer políticas públicas de planeam ento
da natalidade.
690O que explica a contínua luta da Igreja pelo reconhecim ento do direito ao
ensino particular; mas tam bém , a sua reacção contra as organizações de
juventude de conteúdo ideológico totalitário ou dirigista (com o as organi
zações de juventude nazis ou fascistas, condenadas por Pio XI, em 1931 (Non
abbiarno bisogno) e 1937 (M it brcnncnder Sorgc); em Portugal, a Igreja não viu
com bons olhos a criação da M ocidade Portuguesa, em 1936.
6,1 D urante o pontificado de Pio IX. Mas foi muito menos nítida a oposição
prática da Igreja aos regimes totalitários (fascismo, nazism o) e autoritários
conservadores (nomeadamente, franquismo e salazarismo), durante o longo
pontificado de Pio XII. Alguns deles reclam avam -se abertam ente da pro
tecção e apoio da Igreja. Era o caso das ditaduras ibéricas e de muitas dita
duras conservadoras latino-am ericanas.
484 António M anuel Hespanha
705É contra este tipo de indiferença cultural a que se dirige a crítica de Z. Bau-
m an em Comrnunity, quando denuncia a nova trahison des clercs, que con
sistiria na indiferença (ou no quietismo) éticos, na demissão de um papel
crítico do senso com um e orientador do diálogo sobre os valores na socie
dade contem porânea (cf. Baum an, 2001).
C ultura ]u rídica Europeia 491
707Em vários sentidos: no de que aplana (tom a plana, norm alizada) a realida
de; e tam bém no de que a planifica (i.e., lhe im põe fins, em nom e de um a
evolução racional).
708Para um útil p anoram a, com referência, sobretudo, à literatura am ericana,
Schepelle, 1994.
709Cf. Sarat, 1993.
710Cf. Sarat, 1993, 2 ss. (conceito de quotidiano).
Cultura Jurídica Europeia 493
711Cita Yngevsson, quando este afirma "o espírito do direito, embora corpori
zando as preocupações de um a elite profissional poderosa e dominante, não
é simplesmente inventado neste topo, mas transform ado, desfiado e rein
ventado em práticas locais".
712Referimo-nos aqui às múltiplas refracções que o direito oficial sofre na prá
tica.
494 António Manuel Hespanha
714Sherwin, 2000, 6.
n5 Id, ibid., 19.
716Cf. A rthur Austin, The Empire Strikes Back. Outsiders and the struggle over le
gal education, New York, NYU Press, 1998
496 António Manuel Hespanha
718 V.g., a m aior parte das leis que proíbem o aborto, a mendicidade, a prosti
tuição; ou as que reconhecem um direito à habitação, à saúde, etc. Num caso,
com o no outro, a sua efectiva aplicação, no sentido directamente regulati-
vo, é nula.
7,9 V., ultimamente, Sarat, 1994.
498 António Manuel Hespanha
720Cf. a crítica de Adam'Thurschwell ("Reading the law ", in Sarat, 1 9 94,275 ss.)
ao reformismo - que ele classifica de ingénuo ou contraditório - dos C.L.S.
721 Austin Sarat & Th. Kearns, "Beyond the great divide: forms of legal scho
larship and everyday life", em Sarat, 1994, 21 ss.
Cultura Jurídica Europeia 499
8 .6 .4 .3 . Um direito flexível
725 Até porque, com o Toffler salienta com base nas técnicas japonesas de orga
nização (dokhikai system) e no modelo doméstico tradicional (cf., Toffler, 1990
182 ss.), o envolvim ento afectivo facilita e fluidifica a comunicação.
726V., sobretudo Toffler, 1 9 9 0 ,1 6 5 ss.
502 António Manuel Hespanha
730Cf., sobre este "direito das favelas", indicações em Santos, 1980b; cf., tam
bém, H assem er, 1976.
731 Cf. H espanha, 1996.
732 Com o, por exem plo, a disciplina, mais "tecnológica" do que jurídica, do uso
dos bancos autom atizados (cartões de crédito, dinheiro "d e plástico"); as
"racionalidades" (regulae artis, códigos de conduta) profissionais; os meca
nismos burocráticos de produção de norm as; as teias normativas do am or
e da am izade; etc.
506 António Manuel Hespanha
/33Sobre este tema, v., muito característico, uma das figuras de proa da antro
pologia contem porânea, Clifford Geertz, nom eadam ente em Local knowled
ge. Further essays in interpretative anthropology, New York, Basic books, 1983
(nomeadamente, III.8, "C ivilização e saber: facto e direito em perspectiva
com parada"). Cf. também, num a perspectiva mais clássica, Geertz, 1963.
7wCf. o interessante balanço da questão feito em Sarat, 1996 (sobretudo na
"Editorial introduction" e no artigo de P. Schlag, [Schlag, 1996]).
Cultura Jurídica Europeia 507
735V. Entrevista vídeo com Hum berto M aturana sobre a conceito de "sen tido"
e de "realidade" (c. 25 min.) em h ttp :// aragorn.reun a.cl:8080/ ra m g e n /5 6 /
hum bertom aturana56.rm .
736A bibliografia sobre o tema é hoje vastíssima. Destacamos, em português, o
prefácio (de José Engrácia Antunes), à obra d G. Teubner, O direito corno sis
tema auto-poiético, Lisboa, Gulbenkain, 1993. As principais obras de Luh
m ann, para as perspectivas aqui abordadas, são Soziale System. Grundriss
einer allgemienen Theorie, F ran k fu rt/M ain , Suhrkam p, 1984; e, renovando
pontos de vista anteriores sobre o direito, Das Recht der Geselschaft, Farnk-
fu rt/M ain , Suhrkam p, 1995. Uma boa introdução a esta corrente (e à críti
ca a ela dirigida) é A rnaud, 1993; ou Kerchove, 1988.
737Neste sentido, o sistema cria o ambiente (ou seja, define o ambiente que é
relevante para ele e o m odo com o o é).
508 António M anuel Hespanha
dos outros seres vivos à sua volta e, bem assim, que define o
modo como este ambiente externo se reflecte internamente (ou
seja, tem sentido interno; v.g., é a fisiologia da visão de cada ser
que define o que é que ele vê do mundo exterior). Por outro lado,
é esta mesma regra de organização biológica que atribui funções
aos vários órgãos, ou seja, que os define (que lhes dá sentido)
do ponto de vista do organismo de que fazem parte. Finalmen
te, é também o código genético que determina o modo como es
tas funções orgânicas evoluem, quer, por exemplo, com a ida
de, quer com as transformações ambientais.
A ideia mais interessante neste modelo da auto-poiésis é,
como se vê, a ideia de fechamento (closure) sistémico. Ela desa
fia, por um lado, o senso comum, que tem dificuldade em con
ceber esta vertigem paradoxal de um sistema que se cria e regu
la a si mesmo, prescindindo de uma qualquer causa inicial ex
terna. Este paradoxo reserva-o o senso comum para "mistérios"
como o de Deus, criador não criado. Por outro lado, desafia um
outro senso comum instalado no pensamento científico contem
porâneo, o da "influência" ou "determinismo" do ambiente so
bre cada indivíduo ou cada fenómeno. Claro que a ideia de fe
chamento não quer dizer que o sistema crie os seus elementos
ou ambiente no sentido mais forte da palavra. O que se quer di
zer é que tudo aquilo que o sistema recebe do exterior (v.g., nos
sistemas vivos, a energia), ao ser integrado no sistema, é redefi
nido, transformado, recriado em função da gramática do siste
ma. Assim, embora haja uma abertura no sistema (que permite
que receba elementos "em bruto" do exterior), a própria existên
cia de um sistema dotado de uma gramática própria, implica o
seu fechamento. Pode dizer-se, portanto, que a uma abertura
infra-sistémica corresponde um fechamento sistémico.738
759P o r exem plo, a "realidade" exterior apenas pode ser transcrita num progra
m a, sob a forma de variáveis (numéricas, alfanuméricas, lógicas, tabelas,
etc.) adm itidas pela linguagem de program ação.
740 Os valores religiosos são (hoje) estranhos ao mundo da comunicação jurí
dica. O mesmo se diga dos valore estéticos ou políticos.
510 António Manuel Hespanha
basta formular uma norma para que esta seja aceite e pratica
da. Como se pudesse directamente determinar o conteúdo de
normas que pertencem a otitros sistemas normativos. Ora a
teoria da auto-poiésis mostra que a causalidade inter-sistemá-
tica (entre sistemas diferentes e fechados entre si) nunca é di
recta, mas antes mediada. Um sistema apenas pode "irritar",
"com prim ir" outro, provocando nele reacções internas que,
segunda a sua lógica interna, responderão a estas "irritações".
Tudo o que um sistema pode fazer é disparar um processo de
reajustamentos in ternos de ou tro cujas consequências finais lhe
escapam todavia. Daí que, se o político do direito quiser pro
vocar modificações, digamos, no sistema das relações entre os
géneros, tem que ter em conta a gramática interna deste últi
mo sistema, procurando produzir-lhe as "irritações" que dis
parem um processo de restruturação que tenha as consequên
cias desejadas. Ou seja, a política do direito terá que ser dupla
mente reflexiva: tem que ver as consequências de uma inova
ção jurídica sobre o exterior de um sistema diferente e, depois,
tem que saber ver o resultado desta acção em face da arquitec
tura e gramática internas deste último.
Quanto ao último aspecto (o do "local" dos sistemas jurí
dicos), a ideia de auto-poiésis explica bem: (i) porque é que não
há nem pode haver um sistema jurídico global onde não haja um
único sistema de comunicação jurídica; (ii) as dificuldades de
transcrição de normas e conceitos de um sistema jurídico no seio
de outro; (iii) a vinculação de um sistema jurídico aos dados fun
damentais de uma cultura.
O primeiro ponto não precisa, aqui, de grandes explicações.
Saliente-se, apenas, que os sistemas de comunicação jurídicos
são definidos empiricamente (quem, na prática e de facto, comu
nica com quem em termos de direito) e não formalmente Isto é,
não é pelo simples facto de um sistema de direito oficial decla
rar que o direito se aplica igualmente a todos os cidadãos que,
de facto, todos os cidadãos compartilham dos mesmos valores
jurídicos, observam as mesmas práticas jurídicas, resolvem da
mesma forma os seus conflitos; numa palavra, comunicam, de
512 António Manuel Hespanha
LEVI (1998), Giovani, "The Origins of the Modern State and the
Microhistorical Perspective", in Jurgen Schlurnbohrn (ed.), M i
krogeschichte — Makrogeschichte: komplementär oder inkommensu
rabel ?, Göttingen, WaUstein-Verl., 1998.
LEVI (2000), Giovanni, "Reciprocidad mediterrânea", Hi span ia
60/1(2000), 103-126.
LITOWITZ (1997), Douglas E., Postmodern philosophy & law, Kan
sas, University Press of Kansas, 1997.
LOBÃO (1828), Manuel de Almeida e Sousa de, Tratado das ac
ções recíprocas [...] I. Dos pais para com os filhos [...]. I. Dos fi
lhos para com os pais [...], Lisboa, 1828.
LOMBARDI (1975), Luigi, Saggio sul diritto giurisprudenziale, Mi
lano, Giuffrè, 1975.
BOLTANSKI (2000). Luc et Eve Chiapello, Le nouvel esprit du ca-
pitalisme, Editions Gallimard, NRF, 2000.
LUHMANN (1982), Niklas, "Autcpoiesis handlung und kom
munikative Verstãndig-ung", em Zeitschriftf. Soziologie, 11(1982),
366-379.
LUHMANN (1984), Niklas, Soziale System. Grundriss einer allge
meinen Theorie, Frankfurt/M., Suhrkamp, 1984.
LUHMANN (1990), Niklas, Essays on self-reference, New York,
Columbia Univ. Press, 1990.
LYOTARD (1979), La condition postmoderne, Paris, Minuit, 1979;
versão inglesa, 1984.
LYOTARD (1984), Jean-Francois & Massumi, Brian, The Postmo
dern Condition: A Report on Knowledge (Theory and History of Li
terature, Vol 10), Minneapolis, Univ. Minnesota Press, 1984.
MACHADO (1996), Jónatas Eduardo Mendes, Liberdade religio
sa numa comunidade constitucional inclusiva — Dos direitos da ver
dade aos direitos dos cidadão, Coimbra, Coimbra Editora, 1996.
MACPHERSON (1962), C. B., The political theory o f possessive in
dividualism, Oxford, Clarendon Press, 1962.
536 António M anuel H espanha
SHERWIN (2000), Richard K., When laiv goes pop. The Vanishing
Line betiveen Law and Popidar Culture, Chicago, The University of
Chicago Press, 2000
SILVA (1964) Nuno Espinosa G. da, Humanismo e direito em Por
tugal no sécido XVI, Lisboa, 1964.
SILVA (1991), Nuno Espinosa Gomes da, História do direito por
tuguês. Fontes de direito, Lisboa, Gulbenkian, 1991; nova ed.,
muito revista, Lisboa, Gulbenkian, 2000.
SILVA (1780), José Veríssimo Alvares da, Introdução ao novo co-
digo ou dissertação crítica sobre a principal causa da obscuridade do
nosso codigo authentico, Lisboa, 1780.
SOLARI (1959), V. G., Individualismo e diritto privado, Torino,
1959.
SOROS (2000),George, Open Society: Reforming Global Capitalism,
Public Affairs, 2000
SOROS (2002),George, George Soros on Globalization, Public
Affairs, 2002.
SPITTLER (1980), Gerd, "Streitregelung im Schatten des Levia
thans. Eine Darstellung und Kritik rechtsethnologischer Unter
suchung", Zeitschrift fü r Rechtssoziologie, 1(1980), 4 ss.
SPITTLER (1980), Gerd, "Abstraktes Wissen als Herrschaftsba
sis. Zur Entstehungsgeschidite bürokratischer Herrschaf im Bau
ernstaat Preussen", Kölner Zeitsch. f. Soziologie und Sozialpsydso-
logie, 32 (1980).
STERN (1914),}., Thibaut et Savigny, 1914.
STEWART (1990), Ian, "The Critical Legal Science of Hans Kel
sen" Journal o f Law and Society 17(3), 273-308.
STOLLEIS (1, Geschichte des öffentlichen Rechts in Deutschland, vol.
1,1600-1800, Munich, C.H. Beck, pp. 334-394Schiera (1985), Pie-
rangelo, "Lo Stato moderno e il rapporto disciplinamento/legit-
timazione", em Problemi dei socialismo, 5(1985), 111-134.
Cultura Jurídica Europeia 54: