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RNA, um protagonista desconhecido na origem da vida

Após cerca de 4 bilhões de anos do início da vida na Terra, uma hipótese sobre sua
origem parece avançar além do plano especulativo. Apesar do DNA ser a molécula central
da informação genética e da transmissão da hereditariedade, responsável por armazenar
o código que comanda a síntese das proteínas que compõem os seres vivos, a própria
síntese do DNA depende da ação de proteínas com funções enzimáticas. Daí, surge uma
espécie de paradoxo “o ovo ou a galinha”: se o DNA armazena a informação necessária para
sintetizar proteínas, mas proteínas que são responsáveis por catalisar a replicação do DNA,
qual desses surgiu primeiro? Curiosamente, a resposta pode não ser nem o ovo e muito
menos a galinha: o RNA, muitas vezes considerado – erroneamente – como um mero
transmissor da informação genética, apresenta uma ampla variedade de funções
biológicas, e é exatamente essa versatilidade que pode ser a chave para explicar de onde
viemos, por meio da Hipótese do Mundo de RNA.

Os personagens da vida à nível molecular


Para explicar essa teoria, é
necessário primeiro entender quem são
os personagens dessa complexa
maquinaria. DNA, RNA e proteínas são
macromoléculas biológicas, ou seja,
moléculas formadas por inúmeros
“bloquinhos”, com o nome de
monômeros, que têm funções
essenciais em organismos vivos. Tanto
o DNA quanto RNA são ácidos
nucleicos, macromoléculas formadas
por monômeros chamados
nucleotídeos, que são compostos por
um fosfato, uma pentose e uma base
nitrogenada. Dentre essas, o segredo do Figura 1: Estrutura do DNA e do RNA
armazenamento está na última: existem
4 bases nitrogenadas, Adenina, Timina (ou Uracila, no RNA), Citosina e Guanina, e é a
sequência dessas bases que define tudo, desde qual o ponto de replicação do DNA até a
estrutura de proteínas essenciais a serem sintetizadas. O DNA tem a famosa estrutura de
dupla-hélice e se localiza no núcleo celular em eucariotos (como é o nosso caso), e sofre
processo de replicação em divisão celular, garantindo que a célula filha tenha o mesmo
material genético da parental. Diferente dele, seu primo químico, o RNA, se comporta como
um camaleão, assumindo diferentes funções essenciais na célula, como RNA mensageiro
(mRNA), transportador (tRNA) ou ribossomal (rRNA).
Por ser tão importante para a célula que sua informação genética não seja alterada,
transportar a molécula inteira de DNA para o citoplasma sempre que essa quiser produzir
alguma proteína de interesse não parece uma ideia muito prática, e é nesse sentido que
RNA, um protagonista desconhecido na origem da vida

surge o RNA mensageiro: essa molécula copia o trecho de interesse do DNA no processo
chamado de transcrição, e então o mRNA que é transportado até o citoplasma e dá a ordem
de qual proteína deve ser produzida, diminuindo drasticamente os riscos de corromper o
código genético celular, processo que poderia gerar danos irreversíveis à célula e torná-la
disfuncional, mecanismo de formação de células tumorais, por exemplo.
Já as proteínas, diferentemente dos ácidos nucleicos, são formadas a partir de
aminoácidos e são as macromoléculas mais abundantes no organismo. Diferente das bases
nitrogenadas dos ácidos nucleicos, existem 20 aminoácidos com grupos laterais diversos,
variando em estrutura, tamanho, polaridade e interações intermoleculares que podem
realizar. E é exatamente essa diversidade que confere às proteínas as mais variadas
funções celulares, incluindo funções estruturais, como o tão desejado colágeno, hormonais,
como a insulina e o glucagon, de transporte, como a hemoglobina, e de defesa, como a
imunoglobina. Assim, torna-se claro o porquê da manutenção da síntese proteica na célula
ser um processo essencial para que o organismo se mantenha vivo, e esse processo é
conhecido como tradução.
Para isso, devemos voltar para o mRNA, que acabou de ser formado no núcleo,
transportado para o citoplasma da célula e será o molde para indicar qual proteína deve
ser sintetizada, por meio de uma espécie de
sistema de tradução “bases nitrogenadas →
aminoácidos” chamado código genético. O
processo de tradução ocorre pela ação dos
ribossomos, complexos compostos por
proteínas e rRNAs, e pela ação dos tRNAs,
que conseguem ler o código genético
codificado no mRNA e sabem qual
aminoácido deve encaixar em cada posição.
Após essa “atuação tripla” do RNA na
tradução, você tem uma proteína saindo do
forno (ou da célula, para ser mais exato),
Figura 2: Dogma Central da Biologia Molecular
pronta para exercer sua função biológica e
te manter vivo e funcional.
No entanto, por mais lindo que seja esse processo de transmissão da informação
genética, não foi sempre assim. Essa complexidade de funções e processos moleculares é
resultado de um processo evolutivo de bilhões de anos, cujo início se deu, de acordo com a
Hipótese de Oparin-Haldane, a partir dos compostos presentes na química prebiótica.
Segundo essa teoria, formulada na década de 1920 pelos cientistas Aleksandr Oparin e John
Haldane, a organização molecular se deu a partir da existência de estruturas precursoras
inorgânicas que foram capazes de se organizarem e originarem formas mais complexas.
Em princípio, havia uma mistura chamada de sopa primordial, composta por
substâncias orgânicas simples, como amônia, metano, água e hidrogênio molecular, que,
pela ação de descargas elétricas e raios ultravioletas, podem ter originado formas mais
complexas, com o surgimento das primeiras moléculas orgânicas e, com sorte, das
primeiras moléculas com capacidade de replicação. A partir disso, essas formas primitivas
de vida devem ter passado por processos de adaptação e evolução, diferenciando-se e
formando a vida como é hoje.
RNA, um protagonista desconhecido na origem da vida

Curiosamente, apesar dessa hipótese ter se consolidado no século XX, Charles Darwin,
cientista notável e autor de Origem das Espécies, descreveu, em uma carta de 1871,
exatamente o que foi proposto no século seguinte, chamando de “pequena lagoa quente”
(warm little pond, na versão original) o que seria a sopa primordial:
“É dito frequentemente que todas as condições para a produção inicial de um organismo
vivo estão presentes e sempre poderiam estar presentes. Mas se (e Oh! esse é um grande “se”)
nós pudéssemos conceber em alguma pequena lagoa quente, com todo tipo de sais de amônia
e fósforo, luz, calor, eletricidade etc, todos eles presentes de forma que um composto proteico
fosse quimicamente formado pronto para sofrer alterações ainda mais complexas. No tempo
presente tal composto seria instantaneamente devorado ou absorvido, o que não seria o caso
no período anterior a formação dos seres vivos.”

Apesar da teoria de Oparin-Haldane não ter tido aceitação inicial no meio acadêmico,
isso mudou completamente após a experiência de Miller-Urey em 1953, com o objetivo de
testar essa hipótese, que se tornou um marco nos estudos sobre a origem da vida. Nessa
experiência, os cientistas Stanley Miller e Harold Urey simularam as condições prebióticas
da Terra, criando um sistema fechado composto por hidrogênio, amônia, metano e água,
realizando ciclos de aquecimento e descargas elétricas no sistema. Como resultado desse
processo, foram obtidas moléculas orgânicas, incluindo aminoácidos e ácidos orgânicos,
comprovando que a produção abiótica de biomoléculas seria de fato possível.

De olho no currículo: o que faz do RNA o candidato ideal para a vaga de


molécula primordial da vida?
Partindo da sopa primordial, é necessário então pensar em como se deu a evolução das
macromoléculas de DNA, RNA e proteínas. Como já citado antes, o DNA é capaz de
armazenar informação que codifica proteínas, e proteínas são capazes de catalisar a reação
de replicação do DNA, deixando o questionamento sobre qual seria o precursor do outro.
O conceito de RNA como molécula primordial foi inicialmente proposto na década de 60,
pelos pesquisadores Carl Woese, Leslie Orgel e Francis Crick, mas passou a ganhar maior
aceitação pelos estudos do bioquímico Thomas Cech, em 1982.
Cech fez a descoberta da propriedade catalítica do RNA, macromolécula que, até então,
tinha sua função restrita a transportador passivo de informação genética. Essa descoberta
rendeu a Cech um Nobel de Química e culminou no cunho do termo “Mundo de RNA” por
Walter Gilbert em 1986, consagrando essa hipótese da origem da vida. A importância da
descoberta de atividade catalítica pelo RNA mudou completamente a visão acerca da
função biológica desse, uma vez que, com a dupla função do RNA, agindo tanto como
armazenador de informação quanto como catalisador, essa macromolécula poderia então
ser capaz de se auto-replicar, característica essencial para esse se qualificar como a
possível molécula primordial da vida.
A propriedade catalítica do RNA se deve pela descoberta das ribozimas, que são
enzimas de RNA, com grande importância no sentido da quebra do paradigma das
proteínas sendo as únicas moléculas que podem ter atividade enzimática, apontando as
ribozimas como possíveis fósseis do Mundo de RNA. O plot twist da história é que aqui no
texto já foi citada uma ribozima: lembra do ribossomo, complexo formado por proteínas e
RNA, um protagonista desconhecido na origem da vida

rRNAs que tem função de produzir proteínas? Então, no


ribossomo de procariotos quem realmente tem atividade
catalítica aí é o rRNA (23S rRNA, mais especificamente), que
nada mais é do que uma ribozima. Outro exemplo interessante
são RNAs que podem catalisar seu próprio splicing, que apesar
do nome complicado, é basicamente um processo de remoção de
alguns trechos da fita de RNA. Tanto a capacidade de sintetizar
proteínas quanto a de auto-splicing dão uma profundidade
maior aos processos em que o RNA pode estar envolvido, como
um figurante que começa a brilhar mais que o personagem
principal. E daí surge a ideia: e se foi o RNA que estrelou o Figura 3: 23S rRNA
espetáculo de 4 bilhões de anos atrás?

Figura 4: Exemplo de ação de ribozima na clivagem de mRNAs

Em adição, outro ponto que fornece uma pista sobre o RNA como fóssil molecular é a
existência de diversas biomoléculas com ribonucleotídeos ("blocos" que compõem o RNA)
presentes em sua estrutura. Entre essas biomoléculas, incluem-se algumas coenzimas
(moléculas que atuam em conjunto com enzima na ação catalítica) como NADH e FAD, que
podem parecer nomes desconhecidos, mas te acompanham a todo momento, como no
processo de respiração aeróbica, e a própria molécula de ATP, uma espécie de moeda
energética celular. Assim, isso seria como um show cujo palco não foi completamente
desmontado mesmo depois de entrar em cartaz o (nosso) Mundo de DNA, uma vez que a
presença de ribonucleotídeos em tais processos metabólicos essenciais à vida dá pistas
sobre possíveis produtos remanescentes de um mundo baseado em RNA, que se
consolidaram e foram conservados durante a evolução.

Figura 5: Estruturas de NAD+, FAD e ATP comparadas com os 4 ribonucleotídeos do RNA.

Além dessas coenzimas, outra evidência que suporta a hipótese do Mundo de RNA é a
existência de viróides, sistemas genéticos compostos por fita simples de RNA que se
assemelham a vírus, porém têm maior simplicidade biológica. O que é interessante sobre
esses chamados “agentes sub-virais” é a existência de atividade auto-catalítica, de forma
RNA, um protagonista desconhecido na origem da vida

que o viróide é capaz de catalisar a própria replicação de seu genoma, sem presença de
proteínas, o que levou o patologista Theodor Otto Diener, em 1989, a apontar os viróides
também como fósseis vivos do Mundo de RNA, representando uma possível explicação
para passos cruciais na evolução da vida a partir de matéria inanimada.
Apesar do DNA ser, atualmente, a macromolécula responsável pelo armazenamento de
informação, essa molécula não tem capacidade de auto-replicação, ou seja, necessita da
presença de outras moléculas para poder se reproduzir. Todavia, o RNA cumpre essa
demanda, tornando possível a existência de uma vida baseada em RNA que antecede a
atual. Assim como, ao longo da evolução, os organismos foram tornando-se mais complexos
e especializados, é lógico supor que, no aspecto molecular, ocorreu o mesmo processo.
A capacidade de síntese de DNA a partir de RNA é um indício de que o papel do DNA no
armazenamento de informação genética pode ter surgido posteriormente ao surgimento
de moléculas de RNA. Isso vai de acordo com o fato que o DNA é uma molécula muito mais
estável, em função de sua dupla-fita com as bases nitrogenadas menos acessíveis para
possíveis reações paralelas e da ausência de um grupo hidroxila (-OH) na pentose de seu
nucleotídeo, enquanto o RNA, de fita simples e com maior reatividade em função desse
grupo, pode sofrer reações em meio biológico, como hidrólise. Essa maior reatividade
acarretaria em mutações na informação genética armazenada, podendo ser deletérias e
comprometer a transmissão da hereditariedade, de forma que, em termos evolutivos, a
mudança para DNA como armazenador de informação genética permitiria maior fidelidade
na cópia e na transmissão dos genes, sendo benéfica e adaptativa para os organismos.

Implicações da Hipótese do Mundo de RNA na origem da vida


Hipóteses alternativas para explicar a origem da vida são várias, incluindo a existência
de um Mundo pré-RNA, com menor grau de complexidade e com capacidade de evoluir
para o mundo de RNA (não excluindo por completo essa hipótese); um Mundo de RNA-
Peptídeo, que aposta na co-evolução de RNAs e proteínas em vez de uma evolução
independente do RNA, argumentando ser um modelo mais funcional para explicar o
processo de origem da vida com alta fidelidade de replicação; e até mesmo a hipótese de
um Mundo Ferro-Enxofre, na qual a evolução inicial da vida teria ocorrido em superfícies
de minerais de sulfeto de ferro em fontes hidrotermais, de forma que houvesse fonte de
energia para catalisar reações que levassem ao desenvolvimento de sistemas biológicos.

Figura 6: Modelo de evolução do ribossomo por associação entre rRNAs e proteínas


RNA, um protagonista desconhecido na origem da vida

Ainda existem muitas lacunas e questionamentos atrelados à hipótese do Mundo de


RNA, que devem ser explicados ou refutados por novos estudos. O artigo “A hipótese do
mundo de RNA: a pior teoria da evolução inicial da vida (exceto todas as outras)” já aponta,
desde o título, essa interessante dualidade. Apesar de dar uma solução plausível para o
dilema entre DNA e proteínas, a existência de um mundo baseado em RNA encontra
dificuldades na questão de RNA ser uma molécula instável e com alto grau de
complexidade, de forma que imaginar um processo evolutivo a partir desse torna-se mais
improvável, e também que a propriedade catalítica do RNA não é regra, mas sim exceção a
alguns poucos RNAs que se classificam como ribozimas.
Outro questionamento pertinente sobre a existência de um Mundo de RNA é a
capacidade de síntese de RNAs com dobras, uma vez que muitas ribozimas têm atividade
em função de uma conformação estrutural específica, chamada de estruturas secundárias.
Todavia, um grupo de pesquisadores do Reino Unido, em um artigo publicado em 2018,
conseguiu sintetizar RNAs com estruturas secundárias a partir de mecanismos de síntese
em trincas, adicionando 3 nucleotídeos por etapa e tornando o produto mais estável.
Apesar dessa reação não ser observada em processos moleculares da atualidade, essa
descoberta já é um grande passo na comprovação do Mundo de RNA, uma vez que pode ter
sido o mecanismo de replicação de RNA há bilhões de anos atrás.
Em síntese, sem evidências que confirmem ou refutem cada teoria da origem da vida,
todas devem ser consideradas e estudadas no meio cientifico. A questão que se destaca
desse ponto é que, dessas teorias, mesmo que imperfeitas, o Mundo de RNA é o modelo que
mais se desenvolveu e aprofundou o mecanismo proposto para explicar como surgiu a vida
da forma que conhecemos, apresentando argumentos e evidências que indicam que esse
pode ser o caminho certo para entender por completo, no futuro, um passado remoto.
Sejam os avanços do Mundo de RNA ou de outras hipóteses para explicar o surgimento
da vida, é inegável a complexidade e a beleza dos inúmeros mecanismos e processos da
biologia molecular, desde bilhões de anos atrás até os dias atuais. Ao longo dessa explicação
sobre a Hipótese do Mundo de RNA foram citados inúmeros cientistas e pesquisadores, os
quais correspondem a uma parcela minúscula do total que contribuiu e continua
contribuindo até hoje com novas descobertas, hipóteses e dúvidas (os verdadeiros motores
do conhecimento) para o avanço da ciência. Nas palavras de Sam Kean, autor de O Polegar
do Violinista, “não há tema mais ousado na ciência que a genética”.

Para saber mais


• The RNA Origin of Life - NOVA
• The RNA World and the Origins of Life
• Non–coding RNA genes and the modern RNA world
• The RNA World: molecular cooperation at the origins of life

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