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Após cerca de 4 bilhões de anos do início da vida na Terra, uma hipótese sobre sua
origem parece avançar além do plano especulativo. Apesar do DNA ser a molécula central
da informação genética e da transmissão da hereditariedade, responsável por armazenar
o código que comanda a síntese das proteínas que compõem os seres vivos, a própria
síntese do DNA depende da ação de proteínas com funções enzimáticas. Daí, surge uma
espécie de paradoxo “o ovo ou a galinha”: se o DNA armazena a informação necessária para
sintetizar proteínas, mas proteínas que são responsáveis por catalisar a replicação do DNA,
qual desses surgiu primeiro? Curiosamente, a resposta pode não ser nem o ovo e muito
menos a galinha: o RNA, muitas vezes considerado – erroneamente – como um mero
transmissor da informação genética, apresenta uma ampla variedade de funções
biológicas, e é exatamente essa versatilidade que pode ser a chave para explicar de onde
viemos, por meio da Hipótese do Mundo de RNA.
surge o RNA mensageiro: essa molécula copia o trecho de interesse do DNA no processo
chamado de transcrição, e então o mRNA que é transportado até o citoplasma e dá a ordem
de qual proteína deve ser produzida, diminuindo drasticamente os riscos de corromper o
código genético celular, processo que poderia gerar danos irreversíveis à célula e torná-la
disfuncional, mecanismo de formação de células tumorais, por exemplo.
Já as proteínas, diferentemente dos ácidos nucleicos, são formadas a partir de
aminoácidos e são as macromoléculas mais abundantes no organismo. Diferente das bases
nitrogenadas dos ácidos nucleicos, existem 20 aminoácidos com grupos laterais diversos,
variando em estrutura, tamanho, polaridade e interações intermoleculares que podem
realizar. E é exatamente essa diversidade que confere às proteínas as mais variadas
funções celulares, incluindo funções estruturais, como o tão desejado colágeno, hormonais,
como a insulina e o glucagon, de transporte, como a hemoglobina, e de defesa, como a
imunoglobina. Assim, torna-se claro o porquê da manutenção da síntese proteica na célula
ser um processo essencial para que o organismo se mantenha vivo, e esse processo é
conhecido como tradução.
Para isso, devemos voltar para o mRNA, que acabou de ser formado no núcleo,
transportado para o citoplasma da célula e será o molde para indicar qual proteína deve
ser sintetizada, por meio de uma espécie de
sistema de tradução “bases nitrogenadas →
aminoácidos” chamado código genético. O
processo de tradução ocorre pela ação dos
ribossomos, complexos compostos por
proteínas e rRNAs, e pela ação dos tRNAs,
que conseguem ler o código genético
codificado no mRNA e sabem qual
aminoácido deve encaixar em cada posição.
Após essa “atuação tripla” do RNA na
tradução, você tem uma proteína saindo do
forno (ou da célula, para ser mais exato),
Figura 2: Dogma Central da Biologia Molecular
pronta para exercer sua função biológica e
te manter vivo e funcional.
No entanto, por mais lindo que seja esse processo de transmissão da informação
genética, não foi sempre assim. Essa complexidade de funções e processos moleculares é
resultado de um processo evolutivo de bilhões de anos, cujo início se deu, de acordo com a
Hipótese de Oparin-Haldane, a partir dos compostos presentes na química prebiótica.
Segundo essa teoria, formulada na década de 1920 pelos cientistas Aleksandr Oparin e John
Haldane, a organização molecular se deu a partir da existência de estruturas precursoras
inorgânicas que foram capazes de se organizarem e originarem formas mais complexas.
Em princípio, havia uma mistura chamada de sopa primordial, composta por
substâncias orgânicas simples, como amônia, metano, água e hidrogênio molecular, que,
pela ação de descargas elétricas e raios ultravioletas, podem ter originado formas mais
complexas, com o surgimento das primeiras moléculas orgânicas e, com sorte, das
primeiras moléculas com capacidade de replicação. A partir disso, essas formas primitivas
de vida devem ter passado por processos de adaptação e evolução, diferenciando-se e
formando a vida como é hoje.
RNA, um protagonista desconhecido na origem da vida
Curiosamente, apesar dessa hipótese ter se consolidado no século XX, Charles Darwin,
cientista notável e autor de Origem das Espécies, descreveu, em uma carta de 1871,
exatamente o que foi proposto no século seguinte, chamando de “pequena lagoa quente”
(warm little pond, na versão original) o que seria a sopa primordial:
“É dito frequentemente que todas as condições para a produção inicial de um organismo
vivo estão presentes e sempre poderiam estar presentes. Mas se (e Oh! esse é um grande “se”)
nós pudéssemos conceber em alguma pequena lagoa quente, com todo tipo de sais de amônia
e fósforo, luz, calor, eletricidade etc, todos eles presentes de forma que um composto proteico
fosse quimicamente formado pronto para sofrer alterações ainda mais complexas. No tempo
presente tal composto seria instantaneamente devorado ou absorvido, o que não seria o caso
no período anterior a formação dos seres vivos.”
Apesar da teoria de Oparin-Haldane não ter tido aceitação inicial no meio acadêmico,
isso mudou completamente após a experiência de Miller-Urey em 1953, com o objetivo de
testar essa hipótese, que se tornou um marco nos estudos sobre a origem da vida. Nessa
experiência, os cientistas Stanley Miller e Harold Urey simularam as condições prebióticas
da Terra, criando um sistema fechado composto por hidrogênio, amônia, metano e água,
realizando ciclos de aquecimento e descargas elétricas no sistema. Como resultado desse
processo, foram obtidas moléculas orgânicas, incluindo aminoácidos e ácidos orgânicos,
comprovando que a produção abiótica de biomoléculas seria de fato possível.
Em adição, outro ponto que fornece uma pista sobre o RNA como fóssil molecular é a
existência de diversas biomoléculas com ribonucleotídeos ("blocos" que compõem o RNA)
presentes em sua estrutura. Entre essas biomoléculas, incluem-se algumas coenzimas
(moléculas que atuam em conjunto com enzima na ação catalítica) como NADH e FAD, que
podem parecer nomes desconhecidos, mas te acompanham a todo momento, como no
processo de respiração aeróbica, e a própria molécula de ATP, uma espécie de moeda
energética celular. Assim, isso seria como um show cujo palco não foi completamente
desmontado mesmo depois de entrar em cartaz o (nosso) Mundo de DNA, uma vez que a
presença de ribonucleotídeos em tais processos metabólicos essenciais à vida dá pistas
sobre possíveis produtos remanescentes de um mundo baseado em RNA, que se
consolidaram e foram conservados durante a evolução.
Além dessas coenzimas, outra evidência que suporta a hipótese do Mundo de RNA é a
existência de viróides, sistemas genéticos compostos por fita simples de RNA que se
assemelham a vírus, porém têm maior simplicidade biológica. O que é interessante sobre
esses chamados “agentes sub-virais” é a existência de atividade auto-catalítica, de forma
RNA, um protagonista desconhecido na origem da vida
que o viróide é capaz de catalisar a própria replicação de seu genoma, sem presença de
proteínas, o que levou o patologista Theodor Otto Diener, em 1989, a apontar os viróides
também como fósseis vivos do Mundo de RNA, representando uma possível explicação
para passos cruciais na evolução da vida a partir de matéria inanimada.
Apesar do DNA ser, atualmente, a macromolécula responsável pelo armazenamento de
informação, essa molécula não tem capacidade de auto-replicação, ou seja, necessita da
presença de outras moléculas para poder se reproduzir. Todavia, o RNA cumpre essa
demanda, tornando possível a existência de uma vida baseada em RNA que antecede a
atual. Assim como, ao longo da evolução, os organismos foram tornando-se mais complexos
e especializados, é lógico supor que, no aspecto molecular, ocorreu o mesmo processo.
A capacidade de síntese de DNA a partir de RNA é um indício de que o papel do DNA no
armazenamento de informação genética pode ter surgido posteriormente ao surgimento
de moléculas de RNA. Isso vai de acordo com o fato que o DNA é uma molécula muito mais
estável, em função de sua dupla-fita com as bases nitrogenadas menos acessíveis para
possíveis reações paralelas e da ausência de um grupo hidroxila (-OH) na pentose de seu
nucleotídeo, enquanto o RNA, de fita simples e com maior reatividade em função desse
grupo, pode sofrer reações em meio biológico, como hidrólise. Essa maior reatividade
acarretaria em mutações na informação genética armazenada, podendo ser deletérias e
comprometer a transmissão da hereditariedade, de forma que, em termos evolutivos, a
mudança para DNA como armazenador de informação genética permitiria maior fidelidade
na cópia e na transmissão dos genes, sendo benéfica e adaptativa para os organismos.