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Recensão crítica

Francisco Fontes | Ceis20 – Universidade de Coimbra | cardosofontes@gmail.com |


ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3778-5377

O capital no século XXI


de Thomas Piketty

ISBN: 9789896443047
Ano de edição ou reimpressão: 10-2014
Editor: Temas e Debates | Círculo de
Leitores
Páginas: 912
Tipo de Produto: Livro Classificação
Temática: Livros em Português >
Economia, Finanças e Contabilidade >
Economia

O Capital no Século XXI de Thomas Piketty desafia os leitores a uma abordagem crítica
sobre a distribuição dos rendimentos e dos patrimónios desde o século XVIII. A intenção
do autor foi a de facultar uma panorâmica histórica – com um conjunto de fontes que não
foram acessíveis para estudos anteriores –, apresentar as suas leituras e apontar alguns
caminhos para uma sociedade mais justa.

Mais do que apresentar soluções, o autor pretendeu fomentar o debate sobre temas tão
determinantes para a qualidade das democracias. Diríamos que intentou impulsionar
esferas públicas locais e globais, temáticas, segundo o modelo normativo de Jürgen
Habermas (2012), de confronto de ideias e de pontos de vista, sem constrangimentos, de
modo racional e democrático.

A obra é o resultado de 15 anos de investigação. Está dividida em quatro partes, que por
sua vez se desenvolvem em 16 capítulos que apresentam, interpretam, interrogam e
traçam algumas conclusões sobre as dinâmicas de acumulação do capital privado e
distribuição da riqueza ao longo de três séculos nos principais países desenvolvidos da
Europa e, ainda, de modo menos exaustivo, no Japão e nos EUA. No seu conjunto, são
mais de duas dezenas de países estudados por Piketty e seus colaboradores.

Quase a abrir a obra, pergunta: “Que sabemos realmente sobre a evolução da distribuição
do rendimento e do património desde o século XVIII, e que ensinamentos podemos daí
retirar para o século XXI?” (p. 15). Esta é a questão central sobre a qual se estrutura a
obra.

Utilizando dados de três séculos, Piketty consegue realizar uma análise histórica de um
longo período e encontrar padrões que lhe permitam conclusões mais fundamentadas.

Passando à enunciação da estruturação das quatro partes da obra:

Na Primeira Parte – “Rendimento e Capital” – o autor introduz conceptualmente


Rendimento Nacional, Capital e Capital/Rendimento, dotando o leitor de ferramentas
orientadoras para os propósitos da sua análise nos capítulos seguintes.

A Segunda Parte – Dinâmica da Relação Capital / Rendimento – apresenta historicamente


as relações entre rendimentos, riqueza e crescimento económico, “da velha Europa ao
Novo Mundo”.

Na Terceira Parte – A Estrutura das Desigualdades – contém o argumento teórico do


autor, naquilo que ele define como a estrutura da desigualdade nas sociedades capitalistas

Na, derradeira, Quarta Parte – Regular o Capital no Século XXI – apresenta possíveis
soluções para inverter a tendência crescente do acentuar das desigualdades a partir da
reconstrução de um novo Estado Social e de renovadas estratégias de tributação da
riqueza.

Apreciador de soluções político-ideológicas social-democratas para a sociedade, aponta


o falhanço do modelo de autorregulação do capitalismo como fator de crescimento das
desigualdades.

As dinâmicas do capitalismo, salvo o período das guerras mundiais, tendem a perpetuar


as desigualdades, e os indicadores do tempo presente sugerem uma tendência para se
atingir o seu pico histórico.
Fundamenta essa sua apreciação ao comparar a taxas de rendibilidade do capital ( r ) com
a taxa de crescimento ( g ). Na primeira contemplou os lucros, juros, dividendos, rendas.
Na segunda, a taxa anual de rendimento e produção.

Procedendo à análise da dinâmica dessas duas taxas ao longo da história, põe em


evidência que a acumulação de capital é muito superior à evolução dos rendimentos do
setor produtivo. No Reino Unido e na França (países que dispõem de maior volume de
dados neste estudo) nos anos 2000-2010 a relação entre o capital e o rendimento atinge
valores correspondentes a 5/6 anos de rendimento nacional.

Piketty, a este respeito, convoca o princípio marxista de “acumulação infinita”, que


considera ainda hoje muito útil para a análise económica. No entanto, o economista
francês prevê que a dinâmica da acumulação cessará num ponto finito, mas esse ponto
poderá estar muito distante.

Recorda que nos períodos em que se registaram maiores reduções de desigualdade de


rendimentos, das duas guerras mundiais, influiu mais o impacto económico causado pelos
conflitos do que as políticas públicas empreendidas.

Na perspetiva do economista francês, quando as taxas de rendibilidade do capital superam


de forma acentuada e continuada as taxas de crescimento, da produção e do rendimento,
o sistema capitalista gera desigualdades incompatíveis com os valores matriciais das
sociedades democráticas.

Um dos mecanismos de crescimento da riqueza que identificou nos estudos foi o das
heranças, e verificou que quanto mais elevada é, mais contribui para aumentar os níveis
de rendibilidade, e por consequência o crescimento do património acumulado.

Essa tendência aconteceu até ao século XIX, e parece voltar a “ser norma” no século XXI
se as democracias não puserem em prática os instrumentos de que dispõem em favor do
interesse geral, e na contenção de interesses privados e de certas práticas do capitalismo.

Um dos instrumentos de que as sociedades dispõem é similar ao que David Ricardo já


propunha para evitar a acumulação acentuada de rendimentos fiduciários – imposto sobre
o capital. Piketty sugere, como uma das vias, um imposto mundial sobre o capital, embora
anteveja grandes dificuldades de aplicabilidade.
Ao longo da obra, Piketty faz um apelo à interseção dos estudos económicos com outras
disciplinas das Ciências Sociais, mas se em O Capital no Século XXI já se apresentasse a
análise às realidades complexas, e de períodos históricos tão distintos – de três séculos –
seria mais completa, e a propostas de solução apareceriam mais bem fundamentadas.

No encerramento de O Capital do Século XXI, diz-nos que as conclusões a que chegou


“são frágeis e merecem ser questionadas”, porque as fontes a que teve acesso “são
imperfeitas e incompletas”. A essas duas razões acresce a vocação e natureza intrínseca
à investigação em ciências socias, de não produzir resultados inquestionáveis.

Um dos grandes méritos do autor foi o de compilar na obra um vasto conjunto de dados
sobre os rendimentos e a riqueza, e introduziu-lhe uma dimensão histórica, abarcando
cerca de três séculos, e de os trazer à discussão para a sociedade, através de uma escrita
relativamente acessível ao leitor que se convenciona de cidadão medio.

Como refere na abertura O Capital do Século XXI, visou um debate controvertido, ou


seja, capaz de sustentar controvérsia, remete para um tendencial envolvimento de todos,
sem exclusões por ausência de ferramentas cognitivas básicas sobre os temas.

Deste modo, os debates sobre Economia Política deixaram de ficar remetidos às elites,
em gládios ininteligíveis para o cidadão comum, que tem lugar cativo entre os 90 por
cento dos desafortunados no mundo na distribuição da riqueza.

Ao colocar online um anexo técnico, em atualização permanente, para leitura


complementar ao livro, dotou a obra de uma dimensão que lhe permite abordagens mais
aprofundadas por académicos e especialistas, rebatendo, assim, uma das críticas que lhe
apontaram, da simplicidade da escrita.

Outra das frequentes críticas a O Capital no Século XXI é a de não avançar com soluções.
Na nossa leitura, isso é uma das grandes virtudes da obra. No ideal habermasiano de
Esfera Pública, os consensos atingidos levam à deliberação democrática. O mundo
precisa de renovar as utopias, as crenças de que através do envolvimento dos cidadãos se
podem encontrar as melhores soluções para o interesse geral.

Dois dos objetivos de Thomas Piketty foram atingidos: a sua obra provocou debate, sem
constrangimentos, e democrático. Ocorreu em diversos pontos do globo, em ambientes
académicos, da política, da economia, em movimentos sociais, com vozes concordantes
e discordantes. Em espaços formais e informais, perante públicos e audiências, cara-a-
cara ou através do ciberespaço. Nem sempre o debate foi racional, por vezes a
reflexibilidade deu lugar à emoção.

Temas com a densidade da desigualdade – que é central na sua obra – confrontam as


convicções ideológicas e de justiça social e estão sempre presentes, de forma direta ou
indireta, explícita ou implícita, na conversação pública.

Bibliografia

Habermas, J. (2012). A Transformação Estrutrural da Esfera Pública. Lisboa: Fundação


Calouste Gulbenkian.
Piketty, T. (2014). O Capital no século XX. Lisboa: Temas e Debates | Círculo de Leitores.

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