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Escola: Colégio Estadual do Paraná


NRE: Curitiba
Autora: Vilma Luzia Dolinski de Lima
e-mail: vilma_luzia@seed.pr.gov.br
Nível de Ensino: Ensino médio
Título: O que é Filosofia?
Conteúdo estruturante: Mito e Filosofia
Conteúdo básico: Relação Mito e Filosofia
Conteúdo específico: O surgimento da filosofia a partir do mito.
Relação interdisciplinar: Literatura
Validador de disciplina Folhas: Prof. Leonardo Pellegrinello Camargo
Validador relação interdisciplinar: Profª Josane Aparecida França Buschmann

O QUE É FILOSOFIA?

GAUGUIN, De onde viemos? Que somos? Para onde vamos? (1897) óleo sobre tela.

Essa obra é de Gauguin (1848-1903), pintor francês que viveu no séc. XIX e
durante sua vida procurou uma forma de unir o pensar e o sentir. Foi morar no Taiti
e encontrou nos mitos dos povos nativos daquele lugar a inspiração para pintar em
suas obras o cotidiano mágico daquele povo e a sua maneira de pensar as grandes
questões que afligem a humanidade. Na obra aqui apresentada ele demonstra sua
preocupação com questões que chamamos de existenciais. O pintor quis mostrar
nesta obra a trajetória do ser humano na terra: vemos na direita um bebê, ao meio,
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pessoas adultas e por fim, à esquerda, uma anciã. É um questionamento da


condição humana, o que ele deixa bem claro com as questões: De onde viemos?
Quem somos? Para onde vamos? Essas questões estão sempre presentes não só
na história de nossa cultura, mas em outras também. Já foram elaboradas inúmeras
respostas, mas nenhuma é conclusiva, por isso elas sempre são repetidas por nós
em algum momento da nossa vida. E pode também acontecer de uma pessoa viver
sua vida toda sem se preocupar com essas questões ou aceitar com facilidade
respostas prontas, sem nenhum questionamento.
A filosofia é uma disciplina que se preocupa em responder essas perguntas.
Mas isso não é uma característica só da filosofia, conforme dito acima, Gauguin, que
era um artista, também se preocupava com elas, e, à maneira dele, ou seja,
pintando, pensou sobre essas questões. A filosofia, que surgiu na Grécia antiga,
aproximadamente no séc. VI a.C. também tem uma maneira própria para pensá-las.
Porém, antes do surgimento da filosofia essas questões já faziam parte das
preocupações dos seres humanos. Sabemos disso por meio das epopéias que são
os primeiros poemas da língua ocidental que relatam acontecimentos e lendas
daquela época. Contam principalmente as guerras de Tebas e de Tróia. Dos
inúmeros poemas que haviam apenas dois se conservaram: a Ilíada e a Odisséia de
Homero, escritos entre o século X e o VIII a.C.
E antes da invenção da escrita, será que as pessoas procuravam saber,
conhecer as causas e os porquês da vida e do mundo? Os estudos antropológicos
nos mostram que antes da invenção da escrita as pessoas aprendiam e ensinavam
de outras maneiras, utilizavam a linguagem falada para passar seus conhecimentos
de uma geração à outra até chegar o momento da criação da escrita. Os povos
antigos valorizavam o conhecimento e, assim como hoje, aprender era um momento
especial. Havia uma grande preocupação em preservar os conhecimentos e eles
sabiam que só conseguiriam isso passando para as próximas gerações. Então
aprender era conhecer as histórias que os mais velhos consideravam importantes e
vemos assim, que desde os tempos antigos, a linguagem era essencial para o
conhecimento. Mas não podemos afirmar que a linguagem seja uma característica
natural do ser humano, ela é um aprendizado. Temos capacidade fisiológica para
falar, que é o nosso aparelho fonador capaz de emitir sons que são os fonemas. O
importante é que os seres humanos organizaram esses fonemas, numa espécie de
sistema de códigos de fácil memorização criando assim a linguagem simbólica, que
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nada mais é senão signos, que por acordo entre as pessoas de uma determinada
cultura, representam algo. Cada cultura fez essa organização de maneira diferente e
assim surgiram as diversas línguas. Aprendemos a falar no convívio social. Para o
filósofo Heidegger (2002, p.218) a linguagem faz parte da constituição do ser
humano, para ele, o ser humano é um ser que compreende e articula a
compreensão na linguagem. Falar seria a interpretação ou apropriação do mundo
em que vivemos. Quando damos sentido ou significado às coisas a nossa volta
estamos nos apropriando delas, nos envolvendo com elas e dessa forma o mundo
se torna também parte de nossa constituição. Para que haja essa apropriação do
mundo, bem como a convivência, é necessária a linguagem, que para esse filósofo,
não é apenas a fala, mas também a escuta. Ficar em silêncio, escutar, também são
modos de compreensão e interpretação.
Existem muitos tipos de linguagens, os gestos corporais, as notas musicais e
quaisquer outros códigos que sejam organizados de forma que possamos realizar
comunicação bem sucedida, isso significa linguagem, em outras palavras: é um
fenômeno social que surge da necessidade de nos comunicarmos e se transforma
com as mudanças sociais e culturais de cada época. Chamamos de linguagem
verbal a esses sons que é a fala e podemos expressá-los oralmente ou por meio da
escrita.
No passado a linguagem falada era utilizada para comunicar o conhecimento
que era organizado em forma de histórias ou narrativas míticas. Muitos povos, ainda
hoje, conservam os seus conhecimentos dessa forma. O mito explica a origem do
mundo e das coisas e a filosofia surge da crítica a essa explicação. Por isso dizemos
que a filosofia é uma atitude crítica no sentido de perguntar: por que é dessa forma e
não de outra? É por isso também que dizemos que a filosofia é questionamento. Ao
questionar o filósofo conversa com alguém e surge outra característica: Filosofar é
conversar, dialogar ou debater. O debate filosófico acontece por meio da fala com
um interlocutor que está junto a nós, daí a necessidade de seguir o ensinamento de
Heidegger de que é tão importante falar quanto escutar, ficar em silêncio. O debate
filosófico não é só expressão de simples opiniões ou palpites, muito menos há o
interesse em agredir verbalmente. É busca da compreensão da questão que está
posta, para tanto é preciso estar atento ao sentido de cada palavra, valorizar a
nossa fala e a do outro, elaborar e, às vezes desconstruir nossos pensamentos.
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Outra forma de debate filosófico é a leitura dos textos filosóficos onde entramos em
contato com o pensamento dos grandes filósofos.

1. ATIVIDADE:

a) Quantos tipos de linguagem você conhece? Cite exemplos.


b) De que forma você se comunica com seus amigos?
c) O silêncio pode ser uma forma de comunicação? Justifique.

Por um longo período da história não se dava importância às narrativas


míticas dos povos antigos porque se pensava que eram historinhas, contos de fada
sem nenhuma importância. Conforme atesta o filósofo Mircea Eliade, importante
pesquisador dos mitos:

“Há mais de meio século, os eruditos ocidentais passaram a estudar o mito


por uma perspectiva que contrasta sensivelmente com a do século XIX, por exemplo.
Ao invés de tratar, como seus predecessores, o mito na acepção usual do termo, i.
é., como ‘fábula’, ‘invenção’, ‘ficção’, eles o aceitaram tal qual era compreendido
pelas sociedades arcaicas, onde o mito designa, ao contrário, uma ‘história
verdadeira’ e, ademais, extremamente preciosa e de caráter sagrado. (...) Todos
sabem que desde os tempos de Xenófones (cerca de 565-470) – que foi o primeiro a
criticar e rejeitar as expressões ‘mitológicas’ da divindade utilizadas por Homero e
Hesíodo. – os gregos foram despojando progressivamente o mytos de todo valor
religioso e metafísico. Em contraposição ao logos, assim como, posteriormente, à
história, o mytos acabou por denotar tudo ‘o que não pode existir realmente’. O
judeu-cristianismo, por sua vez, relegou para o campo da ‘falsidade’ ou ‘ilusão’ tudo o
que não fosse justificado ou validado por um dos dois Testamentos” (ELIADE, 2000,
p. 7 - 8)

A partir do século XX, muitos estudiosos passaram a considerar o mito


extremamente importante, como uma ferramenta de grande ajuda para
compreendermos as culturas diferentes da nossa, inclusive a nossa própria que, em
seus primórdios, era mítica. Para isso elaboraram uma pesquisa minuciosa de todas
as culturas que ainda hoje conservam esse modo de pensar. O mito é um modo de
pensar diferente do pensamento filosófico e científico. A principal contribuição
desses estudos está no fato de nos mostrar que é possível pensar de várias formas
e que uma não é inferior e nem superior à outra, apenas diferente. O pensamento
manifesta a compreensão do mundo em que vivemos. Podemos dizer que em nossa
cultura, de maneira geral, as pessoas valorizam mais o modo de pensar científico,
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mas é necessário sabermos e compreendermos que outras culturas podem valorizar


outras formas de pensar.
Para melhor compreendermos o pensamento mítico analisemos o conceito de
cultura. O termo cultura pode ter inúmeros sentidos como sugere o texto da filósofa
Hannah Arendt:

“A cultura – palavra e conceito – é de origem romana. A palavra ‘cultura’


origina-se de colere – cultivar, habitar, tomar conta, criar e preservar – e relaciona-se
essencialmente com o trato do homem com a natureza, no sentido de amanho e
preservação da natureza até que ela se torne adequada à habitação humana. Como
tal, a palavra indica uma atitude de carinhoso cuidado e se coloca em aguda
oposição a todo esforço de sujeitar a natureza à dominação do homem. Em
decorrência, não se aplica apenas a amanho do solo, mas pode designar outrossim o
‘culto’ aos deuses, o cuidado com aquilo que lhes pertence. Creio ter sido Cícero
quem primeiro usou a palavra para questões do espírito e da alma. Ele fala de
excolere animum, cultivar o espírito, e de cultura animi no mesmo sentido em que
falamos ainda hoje de um espírito cultivado, só que não mais estamos cônscios do
pleno sentido metafórico de tal emprego. (...)
O significado da palavra ‘cultura’, porém, dificilmente é esgotado por esses
elementos estritamente romanos. Mesmo a cultura animi de Cícero sugere alguma
coisa como gosto e, de maneira geral, sensibilidade à beleza, mas não naqueles que
fabricam coisas belas, isto é, os artistas mesmos, e sim nos espectadores, os que se
movem entre elas. E semelhante amor à beleza os gregos possuíam, é claro, em
grau extraordinário. Nesse sentido, compreendemos por cultura a atitude para com,
ou melhor, o modo de relacionamento prescrito pelas civilizações com respeito às
menos úteis e mais mundanas das coisas, as obras de artistas, poetas, músicos,
filósofos e daí por diante.” (ARENDT, 1972, p. 265-267)

Como aponta a filósofa, o sentido de cultura é cultivar a terra, cuidar da


natureza, e por natureza devemos entender não só a fauna, a flora e o solo, mas
também nosso corpo. Cada grupo humano age sobre a natureza de maneira
diferenciada conforme o clima, a vegetação e outros fatores que fazem com que a
maneira de preparar alimentos, de se vestir, o idioma e outras diferenças mais
aconteçam entre esses diversos grupos humanos. Pode acontecer de uns cuidarem
da natureza com carinho, que estaria mais de acordo com o sentido da palavra,
como atesta H. Arendt, e outros buscarem o domínio da natureza. A maneira de se
lidar com a natureza se constitui num conhecimento, costume ou tradição e é
passado de geração a geração.
Há um outro sentido que é dado à palavra cultura quando ouvimos a frase
“fulano é culto”. Voltemos ao texto de H. Arendt que nos diz sobre o uso metafórico
da palavra cultura para designar o cultivo do espírito. Nesse sentido temos que uma
pessoa que conhece as tradições, os costumes e o conhecimento de seu povo é
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culta. Mais recentemente a filósofa brasileira Marilena Chauí contribuiu para


compreendermos melhor esse sentido da palavra cultura. Segundo ela, “cultura é a
maneira pela qual os humanos se humanizam por meio de práticas que criam a
existência social, econômica, política, religiosa, intelectual e artística” (CHAUÍ, 1999,
p. 295). Conhecer essas práticas é conhecer a nossa cultura, para isso é importante
a formação cultural que exige trabalho mental e sensorial para podermos
compreendê-las, amá-las, criticá-las e superá-las. Daí surge uma outra característica
da cultura de um povo que é a transformação. A cultura não é algo fixo ou imutável,
mas em constante transformação.
Dessa forma temos as mais variadas culturas como a grega, persa, africana,
inca e muitas outras. Essas culturas, de uma forma ou de outra, acabam se
encontrando, se conhecendo e se influenciando mutuamente. O Brasil é um grande
exemplo disso. Sabemos que ele se formou a partir de diversas culturas que aqui
viviam quando os portugueses chegaram e, mais tarde, quando os africanos foram
trazidos como escravos trouxeram também a sua cultura, que apesar de todos os
esforços contra, sobreviveu e influenciou o modo de vida brasileiro.
Podemos dizer que os seres humanos, como todos os outros animais,
também tem características hereditárias, mas isso não determina seu modo de vida
porque eles tem a capacidade de transformar a natureza - até mesmo os traços
hereditários podem ser modificados por cirurgias ou outras técnicas - então dizemos
que o ser humano, ao transformar a natureza, cria uma segunda natureza que é a
cultura.
A Grécia, local onde surge o pensamento filosófico, também valorizava o mito
na antiguidade. Sabemos hoje que os mitos contam histórias sagradas. Mesmo
assim ainda é comum as pessoas confundirem mito com lendas ou folclore, porém
mito é uma história viva que ensina como as pessoas devem agir, ou seja, é um
modo de educação de culturas diferentes das nossas. Para eles o mito ensina como
surgiu o mundo, esses são chamados pelos estudiosos como mito de origem ou
cosmogônicos. Há também os mitos escatológicos que contam sobre o fim do
mundo. Os personagens do mito são entes sobrenaturais e divinos. Conforme nos
explica M. Eliade
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“O mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma


realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um
fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma
instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma ‘criação’: ele relata de que modo
algo foi produzido e começou a ser. (...) o mito é considerado uma história sagrada e,
portanto, uma ‘história verdadeira’, porque se refere a realidades. (...) o mito
cosmogônico é ‘verdadeiro’ porque a existência do mundo aí está para prová-lo; o
mito da origem da morte é igualmente ‘verdadeiro’ porque é provado pela
mortalidade do homem, e assim por diante”. (ELIADE, 2000 p. 11)

Há culturas em que o mito ainda está vivo, as indígenas, por exemplo, e


esses povos distinguem os mitos – que são “histórias verdadeiras” – das fábulas ou
contos, que chamam de “histórias falsas”. As “histórias verdadeiras” tratam das
origens do mundo e seus protagonistas são entes sobrenaturais ou deuses; os
contos falam das aventuras do herói nacional ou como determinado feiticeiro
adquiriu seus poderes, ou seja, tratam de coisas profanas e seus personagens são
seres humanos ou naturais. Um determinado mito pode ser aceito numa
determinada cultura, num povo, e pode não ser aceito por outro. Cada cultura tem
seus mitos.
Em nossa sociedade ocidental, que podemos chamá-la de industrial, os seres
humanos se consideram culturais e históricos, ou seja, dizemos que somos assim
como somos porque um antepassado descobriu a roda, a agricultura, inventou o
motor a vapor e hoje somos assim. Em outras palavras: fomos construídos através
da história, somos históricos. Ao passo que os seres humanos que acreditam no
mito pensam que são como são devido a eventos que foram provocados por seres
divinos em tempos imemoriais e esses fatos devem ser sempre lembrados por meio
de rituais para que o mundo continue a existir. Já o ser humano pertencente à
sociedade industrial atual, acredita na história e que ela não se repete mais. O que
passou, passou. Podemos estudar a história para nos compreendermos melhor,
para tomarmos decisões sobre o futuro de maneira mais acertada ou outro motivo
qualquer. Nas culturas míticas eles devem conhecer o mito a fim de saber como
fazer as coisas. Em nossa sociedade atual que é histórica, adquirimos conhecimento
principalmente através de instituições como a escola.
O mito tem por característica contar a história dos atos dos entes
sobrenaturais e divinos; por isso é verdadeiro. É uma História sagrada porque é
sobre deuses e se refere à realidade; conta como algo foi criado ou como se deve
fazer algo, daí serem considerados como modelos de todos os atos humanos;
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conhecendo o mito pode-se manipular ou dominar algo. Isso não é conhecimento


abstrato, mas conhecimento vivido ritualmente; o mito é vivo porque o ser humano
se deixa impregnar pelo poder sagrado que exalta o espírito ao realizar os rituais
que lembram os eventos passados tornando-os presentes e atuais. Viver o mito é
uma experiência religiosa. “Os mitos revelam que o mundo, o homem e a vida têm
origem e uma história sobrenaturais, e que essa história é significativa, preciosa e
exemplar.” (ELIADE, 2000. p.19)
A partir disso podemos dizer que o mito tem por função exprimir a crença do
povo, ditar as normas morais, assegurar a orientação, ou seja, o mito é uma
resposta a todas aquelas perguntas que aparecem na pintura de Gauguin
apresentada no início do texto. O mito é uma maneira de explicar a vida e o mundo.

2. ATIVIDADES:

a) Apresente as possíveis funções morais e de orientação do mito nas culturas


primitivas.
b) Elabore um texto explicando porque somos culturais ou históricos.

O CONCEITO DE FILOSOFIA
Na Grécia antiga, num dado momento o pensamento mítico passa a não
interessar a muitas pessoas que deixam de acreditar nos mitos, mas continuam a
acreditar nos deuses. Nessa época ocorreu um fenômeno cultural com
conseqüências incalculáveis: a desmitificação. A elite intelectual desse momento
não aceitava mais o mito como uma história divina e resolveu procurar de outra
maneira o instante primeiro da criação, de onde nasceu o real (tudo o que existe), de
onde surgiu o ser.
Os primeiros filósofos buscavam a fonte, o princípio, a arché como um
problema lógico. No lugar da cosmogonia que explicava a ordem do universo pelo
nascimento dos deuses (cosmo = ordem, gênesis = origem), queriam fazer uma
cosmologia (logia = estudo racional). A palavra logos da qual deriva a palavra lógica
significa fala racional. Um tipo de fala que segue uma coerência lógica, um discurso
ordenado pelo raciocínio, ou seja: os primeiros filósofos queriam explicar o
surgimento do mundo e dos seres humanos de maneira lógica. Iniciou-se nesse
momento e nesse lugar a valorização do raciocínio lógico ou do pensamento
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racional em nossa cultura e a conseqüente desvalorização do pensamento mítico


que é por imagens. A preocupação de ambos os modos de pensar é a mesma:
encontrar e compreender o “princípio absoluto”, por isso, dizemos que o pensamento
racional, isto é, a filosofia, deriva do pensamento mítico. A filosofia quer desvendar o
mistério da criação, ou seja, o aparecimento do ser e ganha muito destaque na
Grécia Antiga com filósofos como Sócrates, Platão e Aristóteles que ensinavam uma
maneira de pensar diferente da mítica, porém sem abandonar de todo esse
pensamento. A essência do pensamento mítico é a importância da origem ou arché,
o papel decisivo da memória, a visão cíclica da vida cósmica e humana que é o
eterno retorno das coisas, isso tudo permanece na filosofia e por isso afirmamos que
a filosofia não rompeu com o mito. Somente mais tarde, na modernidade com o
filósofo chamado Hegel é que podemos dizer que o processo de superação do mito
parece se concluir quando tomamos consciência de que somos seres históricos, que
nosso modo de ser no mundo é histórico, conforme as palavras de M. Eliade

“Foi somente devido à descoberta da História – mais exatamente, ao


despertar da consciência histórica no judeu-cristianismo e seu desenvolvimento em
Hegel e seus sucessores – foi somente devido à assimilação radical desse novo
modo de ser no Mundo que representa a existência humana, que o mito pode ser
ultrapassado. Hesitamos, contudo, em afirmar que o pensamento mítico tenha sido
abolido” (ELIADE, 2000, p.102)

Por isso dizemos que o mito não desapareceu, continua de formas


diferentes, como que escondido em certas atitudes e crenças que temos hoje.

O MITO HOJE
Uma característica do pensamento mítico é a valorização da origem porque
acredita-se que na origem havia a perfeição, tudo era certo e bom, era o paraíso.
Aos poucos os seres humanos foram distorcendo as coisas e corrompendo a
perfeição que havia no início com atitudes erradas e dessa forma destruindo o
paraíso. Os rituais religiosos geralmente são repetições do ato que aconteceu no
início e que era perfeito. O melhor exemplo atual disso é o ritual do ano novo.
Anualmente deve-se renovar o mundo. Fazer uma parada no cotidiano e voltar ao
começo que era perfeito fazendo o firme propósito de não errar mais e conservar
sempre o paraíso. O modelo é o mito cosmogônico ou de origem. O ritual de ano
novo expressa, além da idéia de renovação de um ciclo, a idéia de “perfeição dos
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primórdios” ou do paraíso perdido. O ritual de ano novo é uma tentativa de recuperar


esse começo paradisíaco. Há também a crença de que um dia não será mais
preciso repetir esse ritual porque voltaremos ao paraíso definitivamente e então será
o fim dos tempos.
www.artforumunif
uturobrasil.org/m
ediac/400_0/...
A queima de
fogos de
artifício faz
parte do ritual
de ano novo e
significa a
saudação a um
novo tempo,
sinal de alegria,
pois se espera
que o novo ano
seja melhor que
o anterior.

O mito mais comum atualmente é o chamado mito da imagem exemplar. É a


imposição de um comportamento, de um estilo para a coletividade através da mídia.
As histórias em quadrinhos são utilizadas para esse fim onde se mostra a figura de
um herói como modelo exemplar de comportamento por combater o mal e fazer
justiça. Certas pessoas, como políticos ou artistas também acabam sendo
mitificados pela mídia que divulga com ênfase exagerada seus feitos, a imagem
dessas pessoas aparece na mídia como se não fossem humanos e de maneira
irreal, pois é valorizado apenas um traço de suas personalidades, é importante dizer
que a mídia tem o poder também de desvalorizar uma pessoa se agir de maneira
contrária. Dessa forma a mídia como um todo acaba gerando o mito do “sucesso” e
faz com que as pessoas busquem de todas as formas alcançar “sucesso” em tudo o
que fazem.
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3. ATIVIDADE:
a) Identifique um mito de imagem exemplar em nossa sociedade atual. Aponte
um super-herói, artista, atleta ou político e explique por que ele representa
uma imagem exemplar.
b) Descreva o processo que o levou a se tornar um mito.
c) Faça uma pesquisa sobre o carnaval e procure identificar se há algum sentido
mítico nessa festa. Utilize como fonte para sua pesquisa a internet, procure
por vários sites, mas não deixe de visitar os seguintes:
www.meninomaluquinho.com.br; www.suapesquisa.com/carnaval.

LITERATURA, MITO E FILOSOFIA

Conhecemos o mito grego através de Homero e Hesíodo. Suas obras,


Odisséia e Teogonia, são obras literárias que fascinaram e influenciaram a cultura
grega e foram severamente criticadas pelos primeiros filósofos. As críticas se
dirigiam aos atos dos deuses considerados imorais e injustos. A idéia de Deus era
de supremo bem e não de um aventureiro como Zeus, que era ciumento, vingativo e
ignorante. Isso contribuiu para tornar o mito grego apenas uma ficção, que
sobreviveu até hoje como obra prima literária e artística e não como expressão de
uma experiência religiosa vinculada a um rito. Assim como a filosofia, as obras de
arte também tiveram sua origem no mito, aos poucos se separaram da religião, da
magia e do mito e sobrevivem por si só magnificamente. Mesmo assim é comum
pessoas pensarem que obras literárias, por não terem um compromisso com a
verdade, não tem a mesma importância que os textos científicos, por exemplo.
Assim como a arte a literatura não é feita para ter uma finalidade específica, como
dizer a verdade ou não, também não é feita com a intenção de ser “usada”. A fonte
da literatura e da filosofia é a capacidade humana de pensar, conforme nos ensina
H. Arendt que diz:

“O pensamento difere da cognição. Fonte das obras de arte, o pensamento se


manifesta, sem transformação ou transfiguração, em todas as grandes filosofias, ao
passo que a principal manifestação dos processos cognitivos, através dos quais
adquirimos e armazenamos conhecimento, são as ciências. A cognição sempre tem
um fim definido, que pode resultar de considerações práticas ou de ‘mera
curiosidade’; mas, uma vez atingido esse fim, o processo cognitivo termina. O
pensamento, ao contrário, não tem outro fim ou propósito além de si mesmo, e não
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chega sequer a produzir resultados (...). A atividade de pensar é tão incessante e


repetitiva quanto a própria vida; perguntar se o pensamento tem algum significado
equivale a recair no mesmo enigma irrespondível do significado da vida; os
processos do pensamento permeiam tão intimamente toda a existência humana que
o seu começo e o seu fim coincidem com o começo e o fim da própria existência
humana” (ARENDT, 2008, p.184).

Dessa forma dizemos que tanto a literatura como a filosofia são formas de
expressar nossos pensamentos. A filosofia se caracteriza por ser um pensamento
lógico que busca a razão de ser das coisas. Sua principal característica é a
abstração que significa criar idéia ou conceito separado do objeto a que está ligado.
A literatura, como toda arte, tem uma preocupação maior com a beleza, fala aos
nossos sentimentos e sobre eles. Os textos filosóficos também podem apresentar
essas características, por isso dizemos que há uma relação entre filosofia e
literatura.
Exemplo de texto literário:
“Seus olhos abertos e diamantes. Nos telhados os pardais secos. (...)
Enquanto isso era verão. Verão largo como o pátio vazio nas férias da escola. Dor?
Nenhuma. Nenhum sinal de lágrima e nenhum suor. Sal nenhum. Só uma doçura
pesada: como a da casca lenta dos elefantes de couro ressequido. A esqualidez
límpida e quente.” (LISPECTOR, 1998, p.23)

Clarice Lispector em vez de dizer que os olhos brilham usa a imagem do


diamante. Para dizer da intensidade do verão lembra as férias escolares e doçura
associa à imagem dos elefantes. Tudo isso demonstra como o texto narrativo se
utiliza de imagens e fala aos nossos sentidos.

Veja essa imagem


em:
www.tvcultura.c
om.br/.../index.h
tm
A obra de Clarice
Lispector é toda
impregnada de
filosofia. De
maneira geral,
busca
compreender e
dizer o ser. A obra
de maior cunho
filosófico é A
paixão segundo
G.H (1964)
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Exemplo de texto filosófico:

“Em sentido amplo, toda sociedade, por ser sociedade, é histórica: possui
data própria, instituições próprias e precondições específicas, nasce, vive e perece,
transforma-se internamente. O que estamos designando, aqui, como sociedade
propriamente histórica é aquela sociedade para a qual o fato mesmo de possuir uma
data, de pressupor condições determinadas e de repô-las, de transformar-se e de
poder perecer não é um dado, mas uma questão aberta. (...) A sociedade histórica é
aquela que precisa compreender o processo pelo qual a ação dos sujeitos sociais e
políticos lhe dá origem e, ao mesmo tempo, precisa admitir que ela é a própria
condição para a ação desses sujeitos.” (CHAUÍ, 2007, p.26-27) Grifo da autora.

Neste fragmento Chauí está explicando porque toda sociedade é histórica e


esclarecendo o significado de historicidade. Ao lermos esse texto podemos verificar
se ela está dizendo a verdade ou não analisando o objeto de estudo tal como a
autora fez, que é a sociedade, examinando também a coerência lógica de suas
palavras, para isso fazemos mais uso de nosso raciocínio que de nossos
sentimentos.
Veja essa imagem em:
br.geocities.com/mcr
ost02/index.htm
Marilena Chauí é filósofa
brasileira
contemporânea,
escreveu vários livros
entre eles “Convite à
filosofia”, “Repressão
sexual” e “A nervura do
real”.

Estudar a literatura, a filosofia e as obras científicas de todos os tempos é


conhecer nosso passado e nos tornarmos conscientes de nossa condição humana,
afinal somos históricos. M. Eliade vai mais longe e diz que além de nossa cultura é
necessário conhecer as outras também, em suas palavras: “Conhecer as culturas
desaparecidas ou não ocidentais é ‘despertar’ na profundeza de nosso ser a
situação existencial de uma humanidade pré-histórica e os comportamentos dela
derivantes” (ELIADE, 2000. p 21). Dessa forma vemos que não basta ler os jornais
diários e acessar a internet para se sentir incluso na sociedade e na história
universal, é necessário ir até os primórdios e se solidarizar e compreender como que
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seres humanos iguais a nós desenvolveram modos de vida e modos de pensar


diferente dos nossos, mas que de certa forma deram origem e até mesmo estão
presentes ainda em nosso modo de ser. É nisso que reside o sentido de ler e
estudar as obras filosóficas e literárias.
A filosofia desde seus primórdios estava muito ligada à literatura. Atualmente,
até mesmo a forma como algumas universidades inserem os conteúdos filosóficos
nos vestibulares é a mesma que utilizam para a literatura, ou seja, selecionam textos
sobre os quais elaboram questões de interpretação.
Pensando assim faremos agora uma breve análise de parte do poema de
Parmênides (530 a 460 a.C.). Essa obra é considerada uma das mais importantes
da cultura ocidental por ser a primeira que se preocupa em dizer o que é pensar e
como se deve pensar, por isso é um texto filosófico, mas escrito poeticamente. O
poema narra uma viagem e fala de seres sobrenaturais e divinos, tal como as
narrativas míticas. A razão disso é que, naquela época, para provar que se estava
falando a verdade devia-se recorrer aos entes divinos, dizer que foi inspirado por
deuses fazia com que o discurso fosse verdadeiro, tal como hoje apelamos para a
pesquisa científica, e o poeta da verdade gozava de grande credibilidade. O poema
descreve o caminho da verdade, podemos dizer o método para se chegar à deusa
verdade, narra o encontro do jovem, que no caso é o filósofo, com a deusa que lhe
transmite o conhecimento. As filhas do sol vão guiar o jovem até as fronteiras que
separam a noite do dia. A viagem ocorre durante a noite e lá no fim da noite é a
morada da deusa. É uma alegoria para nos dizer que o conhecimento traz a luz,
ilumina nossa vida. Alegoria significa um discurso acerca de uma coisa para fazer
compreender outra. O sol e a luz são alegorias para o ato de conhecer, significa
dizer que quando uma pessoa conhece algo, essa pessoa viu ou chegou até a luz. E
quando a deusa diz “é preciso que de tudo te instruas” ressalta a importância de
todos os tipos de conhecimentos, sem fazer separação por áreas ou qualquer tipo
de divisão do saber, valorizando a totalidade do saber que a filosofia representa. O
próprio título do poema “Sobre a natureza” indica a totalidade do ser. Quando os
filósofos antigos usavam esse termo “natureza” eles não se referiam ao meio
ambiente e sim ao elemento primordial de onde tudo vem e para onde tudo retorna
que eles chamavam de physys. A physys é a natureza eterna em perene
transformação. A physys é imortal e gera todos os seres infinitamente variados e
diferentes do mundo e que são perecíveis e mortais. O conhecimento filosófico não
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busca saber sobre uma parte das coisas, mas do todo. O poema de Parmênides
demonstra como os diversos tipos de conhecimento se completam formando uma
totalidade: o conhecimento mítico, que valoriza nossas crenças; o conhecimento
literário ou artístico, que valoriza nossos sentimentos e a filosofia que valoriza a
razão. E dessa maneira o poema enobrece o próprio ser humano.

SOBRE A NATUREZA

Fragmento 1

As éguas que me levam onde o coração pedisse


conduziam-me, pois à via multifalante me impeliram
da deusa, que por todas as cidades leva o homem que sabe;
por esta eu era levado, por este, muito sagazes, me levaram
as éguas o carro puxando, e as moças a viagem dirigiam.

O eixo nos meões emitia som de sirena


incandescendo (era movido por duplas, turbilhonantes
rodas de ambos os lados), quando se apressavam a enviar-me
as filhas do Sol, deixando as moradas da Noite,
para a luz, das cabeças retirando com as mãos os véus.

É lá que estão as portas aos caminhos de Noite e Dia.


e as sustenta à parte uma verga e uma soleira de pedra,
e elas etéreas enchem-se de grandes batentes;
destes Justiça de muitas penas tem chaves alternantes.

A esta, falando-lhe as jovens com brandas palavras,


persuadiram habilmente a que a tranca aferrolhada
depressa removesse das portas; e estas, dos batentes,
um vão escancarado fizeram abrindo-se, os brônzeos
umbrais nos gonzos alternadamente fazendo girar,
em cavilhas e chavetas ajustados; por lá, pelas portas
logo as moças pela estrada tinham carro e éguas.

E a deusa me acolheu benévola, e na sua a minha


mão direita tomou, e assim dizia e me interpelava;

Ó jovem, companheiro de aurigas imortais,


tu que assim conduzido chegas à nossa morada,
salve! Pois não foi mau destino que te mandou perlustrar
esta via (pois ela está fora da senda dos homens),
mas lei divina e justiça; é preciso que de tudo te instruas,
do âmago inabalável da verdade bem redonda,
e de opiniões de mortais, em que não há fé verdadeira.
No entanto também isto aprenderás, como as aparências
deviam validamente ser, tudo por tudo atravessando.
(PARMÊNIDES, 2000, p.121)
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4. ATIVIDADE
DEBATE: Formar pequenos grupos, eleger um orador e um escriturário e
desenvolver as seguintes questões:
a) Interpretar as frases: “âmago inabalável da verdade bem redonda” e
“opiniões de mortais, em que não há fé verdadeira”.
b) É possível uma verdade inabalável? As opiniões são confiáveis?
c) Parmênides, para provar que estava falando a verdade usou como
argumento a inspiração dos deuses. Que argumentos podemos usar para
provar que estamos dizendo a verdade e fazer com que todos acreditem?
d) Juntar os pequenos grupos e formar um único. Cada orador deve expor ao
grande grupo as respostas. O professor (a) fica encarregado (a), nessa
fase do debate, de anotar no quadro da sala as respostas. Comparar as
respostas de todos e anotar o argumento mais usado. A partir dessa
discussão, estabelecer os argumentos que são usados em nossa
sociedade em geral para comprovar a verdade e ganhar credibilidade,
principalmente pela mídia?
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REFERÊNCIAS:

ABRÃO, B. S. A história da filosofia. In: Pensadores. Nova Cultural. 2004.


ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo, Perspectiva, 1972.
__________. A condição humana. Rio de Janeiro, Forense universitária, 10ª ed.
2008.
ARGAN, G. C. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das letras, 1992.
CHAUÍ, M. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 12. Ed. –
São Paulo: Cortez, 2007.
________. Convite à Filosofia. S. Paulo. Editora Ática, 11ª ed. 1999.
EAGLETON, T. Teoria da Literatura – Uma introdução. M. Fontes, 2006.
ELIADE, M. Mito e Realidade. Coleção Debates. Ed. Perspectiva. S. Paulo, 2000.
HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrópolis, Ed. Vozes, 2002.
LISPECTOR, C. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Rocco,
1998.
PARMÊNIDES, Da natureza. In: Pensadores. Pré-Socráticos – Vida e obra. Nova
Cultural. 2000.
___________. Da natureza. Tradução: SANTOS, J. T. Coleção: Leituras filosóficas.
Edições Loyola, São Paulo 2002.
REALE, G. História da Filosofia. V.1. Paulus, 2006.

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