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OLIVEIRA, T. L. Imagens e Narrativas LGBT em João Pessoa. UFPB, 2012.

(mimeo)

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA


PRÓ-REITORIA DE PÓS GRADUAÇAO E PESQUISA
COORDENAÇAO DE INICIAÇAO CIENTÍFICA

RELATÓRIO FINAL DE ATIVIDADES PIBIC


VIGÊNCIA 2011/2012

BOLSISTA
Thiago de Lima Oliveira – UFPB
(petraiospb@yahoo.com.br)

ORIENTADORA
Silvana de Souza Nascimento (DCS/ CCAE/ UFPB)
(silvana@ccae.ufpb.br)

TÍTULO DO PROJETO
Variações entre masculino e feminino: olhares transitivos sobre sexualidade e gênero na
Paraíba

TÍTULO DO PLANO
Imagens e narrativas LGBT em João Pessoa

João Pessoa – PB
2012

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OLIVEIRA, T. L. Imagens e Narrativas LGBT em João Pessoa. UFPB, 2012. (mimeo)

Resumo:

O presente relatório é resultado das atividades realizadas pelo projeto “Variações entre
masculino e feminino: olhares transitivos sobre sexualidade e gênero na Paraíba”,
desenvolvido entre o segundo semestre de 2011 e primeiro semestre de 2012 de modo a
compreender a dinâmica da militância LGBT na Paraíba, tomando como lócus prioritário de
análise o município de João Pessoa. O objetivo então estipulado para o plano de trabalho
relacionava-se à construção de um banco de dados da memória dos militantes e personagens
envolvidos nos 20 anos de história de luta pela cidadania e dignidade para homossexuais de
diversos segmentos no estado. A partir de uma metodologia de pesquisa eminentemente
antropológica, a etnografia, a prática e experiência de campo nos levaram a reelaboração de
tais metas, apresentando-se aqui algumas notas sobre a dinâmica do movimento LGBT na
cidade, inserindo a memória de seus atores, mas sem nos restringirmos a ela. Pensando a
prática etnográfica como um exercício cuja finalidade é sensibilizar-se a uma realidade outra,
apresentamos uma analítica da militância LGBT que buscou envolver-se nos emaranhados
políticos e sociais característicos da atuação de grupos nesse segmento, para daí entender seu
processo de constituição histórica como um produto-processo marcado por iniciativas e ações
coletivas que articulam setores e espaços diversos. Nossa hipótese é de que as redes de
militância são organizadas segundo valores, normas e moralidades diversos, que estabelecem
relações hierárquicas verticalizadas, possibilitando a existência de ações subversivas dentro de
espaços parciais que se apagam frente à norma de uma macrorrede LGBT.
Palavras-chave: Militância – Movimento LGBT – antropologia urbana.

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Índice

Introdução – um leviano rubi poliescarpado

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Introdução – um leviano rubi poliescarpado

Qualquer curso de qualquer destino


que desfaça o curso de qualquer certeza
(Qualquer, Arnaldo Antunes)

O que apresentamos nas páginas seguintes consiste nas narrativas decorrentes da pesquisa de
iniciação científica desenvolvida entre os meses de agosto de 2011 e agosto de 2012 na cidade de João
Pessoa com o objetivo inicial de compreender a dinâmica do movimento LGBT (lésbicas, gays,
bissexuais, travestis e transexuais – doravante LGBT) nesta cidade.
Este trabalho inexoravelmente perpassa dois campos: um primeiro relativo aos movimentos
sociais no Brasil como formas de atuação e agenciamento dos indivíduos com o Estado e por
consequência indireta, do Estado com os mesmos indivíduos; um segundo diz respeito às identidades
coletivas, partindo da forma como essa “substância” é manipulada e negociada por estes mesmos
movimentos sociais. O que desenvolvemos e apresentamos aqui não pretende ser um estudo
aprofundado de nenhum destes dois campos, antes, pretende ser um esboço, um conjunto de notas em
perspectiva etnográfica sobre as formas como ambos os campos se conectam para compor os cenários
e as narrativas de militância LGBT na Paraíba a partir da capital, João Pessoa. Assim, propomos uma
leitura do movimento LGBT onde pontos de tensão, frestas e redes de parceria funcionem como
pontos de partida para construção de uma narrativa. Uma leitura do processo de construção e da
dinâmica do fazer movimento LGBT. Ao considerar o movimento como um acontecimento deleuziano,
optamos aqui por uma leitura integradora, não ingênua e pacífica, uma leitura que reconhece a
militância como um espaço marcado pela polifonia, pela reverberação e extensão de discursos sociais
diversos e com diferentes graus e níveis de reconhecimento e aceitabilidade.
O trabalho de campo que orienta esta pesquisa, utilizando-se de diversas técnicas e
ferramentas auxiliares à pesquisa etnográfica, como entrevistas em profundidade, observação
participante, fotografias e registros em vídeo e áudio, buscou mesclar as narrativas de militantes na
dinâmica do movimento LGBT na Paraíba e, de forma geral, compreender a dinâmica dos grupos na
cidade de João Pessoa. Nesse aspecto, buscamos, durante o segundo semestre de pesquisa, refinar os
objetivos específicos de modo a compreender como as ações são negociadas e realizadas no contexto
da segmentação dos movimentos em busca do reconhecimento de demandas próprias, que se inicia a
partir de início dos anos 2000 na Paraíba.
Fugindo às tradicionais analíticas que pensam as instituições, e aqui nos referimos de maneira
especializada ao(s) movimento(s) LGBT, como estruturas sociais apartadas da dimensão subjetiva,
estando esta outra centrada nos indivíduos, propomos uma leitura que busca romper com estas divisas
na medida em que acreditamos que tanto a subjetividade quanto o social são construções
interdependentes (DELEUZE; GUATTARI: 1996).

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Na Paraíba, o movimento LGBT é composto por diversos grupos e indivíduos que atuam
coletiva ou individualmente com propósitos semelhantes de reivindicação e promoção da cidadania,
respeito e combate às variadas formas de violência contra os segmentos que representa, mais
especificamente, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e homossexuais. Aqui contemplamos de
forma mais específicas os grupos mais antigos em atividade durante o desenvolvimento da pesquisa, o
Movimento do Espírito Lilás (MEL), o Grupo de Mulheres Lésbicas e Bissexuais Maria Quitéria e a
Associação de Travestis e Transexuais da Paraíba (ASTRAPA). Além destes grupos que representam
a si mesmos enquanto movimentos sociais e organizações não governamentais (ONG ou OCIP),
observamos também a existência de outras instâncias de militância que podem ser organizadas em dois
níveis: instâncias ligadas ao Estado e outros Órgãos Públicos, sob a forma de coordenadorias e
comissões, tais como a Coordenadoria de Direito Homoafetivo da OAB ou a Secretaria do Estado da
Mulher e da Diversidade Humana; e novas formas de militância em geral engendradas por setoriais
jovens, ligados a alguns deles ligados a partidos políticos, mas a maioria ligado à academia, como o
NUDAS (Núcleo Universitário de Diversidade Afetivo-Sexual), que se constitui como uma rede
nacional vinculada a estudantes geralmente homossexuais que atuam na construção de novas formas
de militância, eventualmente em parceria com os movimentos sociais localmente instituídos, mas que
se caracterizam por uma visão mais libertária de suas experiências sexuais onde a intervenção do
estado é questionada, mas simultaneamente exigida1.
O estudo desenvolvido mostrou-se particularmente importante por ser um esforço de
apreensão e reconhecimento da atividade de grupos e indivíduos que há duas décadas vem lutando na
Paraíba pela legitimidade de suas experiências afetivas, sexuais e corporais contra moralidades
fortemente vinculadas a valores tradicionalistas e religiosos comprometidos ideologicamente com uma
visão de sexualidade reprodutiva e disciplinadora dos corpos e do desejo, oprimindo e subalternizando
formas de ser e estar no mundo que difiram dos modelos hegemônicos.
É necessário lembrar os meandros históricos em que os homossexuais estão envolvidos no
nordeste. Na região, frequentemente caracterizada pela valorização de uma masculinidade hiperbólica,
os dados sobre violência contra mulher e homossexuais são alarmantes. Em geral as agressões
homofóbicas2 estão vinculadas a comportamentos que se manifestam não apenas por agressões
individuais no padrão 1-1, ou seja, agressor e vítima.De acordo com dados do relatório anual de
crimes homofóbicos de 2011 (BRASIL, 2012), entre janeiro e dezembro, em todo o país foram
registradas 6809 violações contra direitos humanos da LGBT, destas violações resultaram 1.713

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Em outros termos isso implica dizer que do Estado é exigido sua atuação enquanto esfera de manutenção dos
direitos civis e sexuais, mas são rejeitadas formas de regulação sobre as experiências subjetivas, por se entender
que estas seriam formas limitadoras de expressão das identidades individuais.
2
Aqui entendemos como homofobia qualquer forma de preconceito, discriminação ou agressão contra pessoas
em função de sua orientação sexual ou identidade de gênero presumidamente homossexual, onde também
incluímos outras categorias e formas de violência hoje classificadas como lesbofóbica, transfóbica ou bifóbicas.

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vítimas às quais correspondem 2.275 suspeitos. Ou seja, há um evidente caráter coletivo nas agressões
contra LGBT em todo o Brasil. Considerando esse ethos machista nordestino já mencionado é possível
inferir, com base nos casos de agressão contra LGBT reportados em esfera local e regional nos últimos
anos, que estes crimes ocorrem não só em caráter grupal, mas também vinculados muitas vezes a
expressões de ódio e repulsa, como o caso da travesti Lynette, ou Daniel, como anunciado pela mídia,
brutalmente assassinada nas ruas da cidade de Campina Grande no ano de 2010 a tiros e pedradas por
três agressores. Diferente de outros crimes que sequer vêm à tona, graças às gravações do sistema de
segurança de estabelecimentos comerciais da região, o crime veio a ser publicamente exposto – mas
ainda assim os agressores não foram punidos.
Todavia haja avanços e conquistas - alguns dos quais certamente não poderíamos ter visto ou
tampouco veríamos tão cedo sem a atuação incisiva dos(as) militantes - é necessário lembrar que a
condição de vida para os segmentos que fogem a estes padrões sociais heterocentrados, especialmente
na Paraíba mostra-se vulnerável.Hoje este Estado sustenta-se como um dos mais homofóbicos do
país.. De acordo com dados do Centro de Referência LGBT, órgão criado pela Secretaria da Mulher e
do Desenvolvimento Humano do governo estadual, entre junho de 2011 e março de 2012, 164
usuários(as) foram atendidos no espaço, dos quais 40% sofreram algum tipo de discriminação na rua
e/ou na família, 32% sofreram violência psicológica e 18% física. Assim, mais do que registrar a
atuação destes grupos no estado, o que este trabalho pretendeu foi um esforço no sentido de dar
visibilidade e reconhecimento às ações e iniciativas desenvolvidas em 20 anos de militância na
Paraíba.

1.1 O sexo exposto: a dimensão política da sexualidade


Sexo e política nunca estiveram tão próximos como na sociedade ocidental do século XIX aos
dias atuais. A aparente dissociação existente entre ambas as esferas na verdade manifestam-se,
segundo o filósofo francês Michel Foucault, a partir de mecanismos de exclusão e interdição que são
estabelecidos através de um jogo velado que busca reproduzir a ordem do discurso.

Em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada,


selecionada, organizada e redistribuída por certo número de processos que
têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento
aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade (FOUCAULT, 1996,
p.8-9).

Nessa perspectiva, os procedimentos de exclusão e interdição dos discursos malditos, dos


discursos impossíveis, bem como suas figuras caricaturadas são elaborados de forma velada, ainda que
matérias, para construir uma suposta naturalidade ou manifestação aleatória. Enfim, como conclui,
“não se pode falar de qualquer coisa”. Ao analisar o contexto de sua época, meados do século XXI e o

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período de dois séculos que o antecedem, Foucault aponta que, neste intricado e complexo tecido que
é o discurso, dois pontos potencialmente problemáticos são constantemente eclipsados por estes
dispositivos de exclusão: a sexualidade e a política. E acresce: “por mais que os discursos sejam
aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação
com o desejo e o poder” (Ibidem, p.10).
É no contexto de um movimento maior de criação de categorias e espécies ligadas a
comportamentos sexuais que por sua vez estão inseridas nos âmbitos do controle sanitário,
especialmente a psiquiatria e o discurso médico, e também das instituições jurídicas que a partir do
século XIX emerge uma figura perversa e doentia: o homossexual. Diferenciando-se da concepção
mais simplificada presente no imaginário social contemporâneo do homossexual como aquele que
mantém relações sexuais com outro(s) do mesmo sexo fisiológico, o homossexual de Foucault é um
ser de outra ordem. Certamente o filósofo reconhece a existência de práticas sexuais entre iguais
anteriores ao século XIX, como atesta, por exemplo, a proibição das práticas de sodomia em algumas
regiões da Europa durante a Renascença, bem como os castigos e as proibições cristãs por meio da
Igreja. Todavia, a diferença crucial entre estas formas de regulação do desejo, da prática sexual está
naquilo que Foucault reconhece como uma forma de “especiação” do homossexual3. Tal personagem é
uma forma aberrante, um anormal no vocabulário foucaultiano, caracterizado por uma sexualidade
perversa: este é o invertido (FOUCAULT: 1998a, p.42).
De certa forma é possível pensar que o homossexual de que fala Foucault e o homossexual
de que falam os grupos que compõem o que aqui será conceituado como “movimento LGBT”, em
princípio, eram entidades diferentes. Com o tempo e com a apropriação das categorias médicas, a
“homossexualidade”, como tantas outras formas de classificar o humano, transformou em vocabulário
comum, e inevitavelmente, com o processo de apropriação do termo, houve também o processo de
reprodução do estigma. Ainda assim é preciso estar atento à ordem do discurso advertida por Foucault
e ter em mente que até mesmo esta incorporação natural e aleatória de um jargão específico ao
vocabulário e imaginário da população ocidental não são levianas coincidências. São processos de

3
Foucault reconhece que o homossexual patológico não é tão somente criminoso, doente ou perverso pela sua
inversão sexual, pelo desejo mantido pelo mesmo, antes é um conjunto maior de características que se limita a
tal aspecto, e tampouco à posição sexual durante o coito. Assim, nem todas as práticas “homoeróticas” seriam
“homossexuais”. Como o autor coloca, “Nos textos do Século XIX existe um perfil-tipo do homossexual ou do
invertido: seus gestos, sua postura, a maneira pela qual ele se enfeita, seu coquetismo, como também a forma e
as expressões de seu rosto, sua anatomia, a morfologia feminina de todo o seu corpo fazem, regularmente, parte
dessa descrição desqualificadora; a qual se refere, ao mesmo tempo, ao tema de uma inversão dos papéis
sexuais e ao princípio de um estigma natural dessa ofensa à natureza”.(1998b, p.20). O homossexual é não
apenas aquele que mantém relações sexuais com o mesmo sexo, mas essencialmente o que inverte os papéis
sexuais, e com isso, coloca em jogo a distribuição das funções. É essencialmente uma figura perigosa,
contestadora de um ideário onde o gênero e o sexo seriam manifestações naturais determinadas pela natureza e
não construções.

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interdição de uma moral diferente desta que é apregoada pela ordem compulsória4 do sistema sexo-
gênero-desejo (BUTLER, 2003).
Corolárias e inimigas dessa perspectiva social sobre a homossexualidade que tem estimulado
a violência e perseguições ao longo da história, as primeiras organizações e associações formais de
combate ao preconceito, discriminação, ainda na década de 1920 pelo continente europeu buscam dar
conta da homossexualidade como uma categoria natural, presente na natureza não só na espécie
humana, mas também em outras espécies. Assim, inicia-se uma série abundante de produções
científicas, especialmente na Alemanha, que elaboram a homossexualidade como um “terceiro sexo”,
como uma natureza. Da mesma forma, multiplicam-se os trabalhos que criticam esta perspectiva e
reiteram o caráter perverso e doentio do homossexual. A naturalização do sexo e o reconhecimento da
homossexualidade como uma “condicionalidade”, não como uma escolha, mas como algo inato à
estrutura orgânica e biológica dos seres é uma estratégia muitas vezes adotada e visibilizada como
forma de exigir publicamente sua afirmação.
Atualmente, o empreendimento no qual o ativismo LGBT moderno está envolvido consiste na
desvinculação da homossexualidade atrelada a modelos ou referenciais patológicos da sexualidade,
construindo assim formas de ser e estar no mundo aceitáveis e positivas. Desde o advento da AIDS, no
Brasil, a estratégia adotada pelos organismos para desvincular-se dessa imagem de perversão, sujeira e
criminalidade na qual a homossexualidade esteve envolta tem sido a elaboração de uma imagem
positiva da homossexualidade, que constantemente se faz representar na reprodução de modelos
hegemônicos de família e casamento, por exemplo, onde a existência de um par homem-mulher é
substituída por um par homem-homem, ou mulher-mulher. Todavia, esse modelo de ativismo não é
único, outros, a exemplo do movimento de transexuais, tem optado ou se orientado para uma
abordagem que reconheça a condição transexual como uma condição de patologia e distinta da
homossexualidade, em busca assim do atendimento pelo Estado de suas demandas e necessidades
próprias. Sobre o processo de constituição histórica do movimento LGBT no Brasil e a forma como a
homossexualidade tem sido abordada no período 1970-2000 discutiremos no tópico a seguir.

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Em “Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade” a filósofa Judith Butler argumenta que há
uma concepção heterocentrada sobre a “natureza” do sexo a organizar as relações entre os corpos e também as
relações de poder. Nesse aspecto a existência de uma “ordem compulsória” funcionaria como uma verdade a
controlar a verdade sobre os sexos. Essa ordem compulsória é formada por três elementos no sistema de sexo-
gênero-desejo: 1- o sexo é material, ou seja fisiológico e estes não são alteráveis, biologicamente só há machos e
fêmeas; 2 – Havendo dois sexos, só há duas verdades sobre o gênero, uma segundo a qual os machos devem
performativizar o masculino e as fêmeas o feminino; 3 – só há um único desejo, o heterossexual, onde o macho
tem o desejo orientado para a fêmea e a fêmea para o macho. Mais do que uma concepção do sexo baseado numa
suposta naturalidade ou natureza dos sexos, Butler argumenta que esta ordem compulsória também alimenta
mecanismos de hierarquização, dominação e violência entre os sexos. (BUTLER, 2003).

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1.2 Do Movimento LGBT: delineamento e histórico no Brasil


LGBT parece ser uma cartilha-alfabeto controversa ao pensar a experiência homossexual5. Ser
lésbica, gay, bissexual, travesti ou transexual é apenas uma entre tantas outras possibilidades
disponíveis para ser e estar no sexo. Ainda assim, o movimento de homossexuais, tal como
conhecemos hoje, é um movimento de LGBT’s.
Como observa Isadora Lins França (2006, p.8), o que aqui é apresentado como movimento
LGBT compreende um sujeito político complexo, marcado por uma contínua atualização de si mesmo
– enquanto formas políticas de apresentar-se - no que concerne ao “enquadramento” próprio dos
sujeitos a que se relaciona. Assim, estamos falando de um sujeito e um lugar político onde convivem
“diversos discursos e estratégias políticas, que passam por constantes reacomodações, de acordo com
o cenário social apresentado”. Seguindo orientação, aqui abordamos movimento LGBT não apenas
como os grupos formalmente instituídos, mas sim amplas formas de militância geralmente coletivas,
mas que podem manifestar-se também de forma individual em prol de um segmento. Na dinâmica
econômica, jurídica e também devido às precárias condições de acesso à educação em algumas regiões
da Paraíba poucos são os movimentos formalmente instituídos, apesar de algumas dezenas de cidades
apresentarem alguma forma de militância, na maioria das vezes materializada por indivíduos ou
pequenos grupos de indivíduos.
O surgimento de um movimento organizado de homossexuais, e posteriormente outras
categorias identitárias sexuais subalternizadas, no Brasil está relacionado a um panorama maior que se
localiza mundialmente com as campanhas contra a criminalização da homossexualidade na Europa de
forma potencial nos início do século XX, especialmente na Alemanha, e nos Estados Unidos em
meados do mesmo século (SIMÕES; FACCHINI: 2009). No Brasil, o mesmo só ocorreria a partir da
década de 1970 com o afrouxamento da ditadura militar e início de um processo mais amplo de
abertura. Nesse mesmo período observa-se o surgimento de novos atores políticos em espaços que
tradicionalmente não eram contemplados pelas pesquisas acadêmicas ou que não estavam no
mainstream dos discursos políticos – que então privilegiavam as disputas baseadas em marcadores
sociais como classe.
Não é nosso propósito aqui apresentar um estudo completo sobre isso que se chama de
“movimentos sociais” em suas amplas e múltiplas acepções, todavia, faz-se importante dissertar sobre
alguns elementos, especialmente (i) no que diz respeito a esta categoria de ação política no período de
1970 e efeitos posteriores e (ii) no que tange a um movimento social específico: o movimento
homossexual ou LGBT. O processo de abertura política durante o regime militar neste período
instaura um clima social de possibilidades onde indivíduos envolvem-se no processo de construção e

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LGBT é a sigla empregada atualmente para denominar o movimento homossexual no Brasil. Como aponta
Regina Facchini (2005), esta sigla não está alheia ao processo de constituição histórica e ideológica do grupo,
revelando em suas facetas e transformações demandas internas por reconhecimento e promoção de visibilidade
de certos segmentos.

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ação local. Nesse ínterim, começam a aparecer pelo país uma diversidade de grupos baseados em
ações coletivas com o objetivo de suprir as demandas do Estado naquilo que nas esferas locais eram
entendidas como necessidades: enfrentar a violência nos ambientes domiciliares, reconhecer a
cidadania de negros, mulheres, homossexuais; combater o avanço de indústrias em detrimento da
degradação ambiental.
Assim, sob a pecha de “movimentos alternativos” o surgimento de um movimento
homossexual no Brasil está atrelado também aos movimentos negro, feminista e ecologista. Em
comum, a bibliografia sobre o tema, contempla que em relação aos outros, estes movimentos teriam se
originado na “esfera da cultura”, enquanto elementos apartados das questões relacionadas aos conflitos
de classe (FACCHINI: 2005, p.55). O marco inicial desse suposto movimento alternativo de
homossexuais está situado no ano de 1978 na cidade de São Paulo com a criação do Grupo Somos de
Afirmação Homossexual.
Todavia o período de abertura, o processo de atuação dos movimentos não é pacífico ou sem
conflitos. Em uma analítica deste período, faz-se urgente distinguir as disparidades entre um processo
lento e gradual de liberalização proposto pelo governo militar e as ações desenvolvidas por estes
grupos “alternativos”. Sobre esse aspecto no que se refere especialmente ao movimento homossexual,
o historiador James Green (2000, p.455) argumenta:

Apesar da censura governamental, as influências contraculturais que permearam os


movimentos de jovens e estudantes nos anos 60 propiciaram uma discussão limitada
na sociedade e na mídia sobre a sexualidade, os papéis de gênero e a
homossexualidade. Mesmo com as medidas repressivas exarcebadas dos militantes,
algumas publicações no início dos anos 70 conseguiram escrever sobre o “Gay
Power” e sugerir caminhos para a organização política de homossexuais. Quando o
regime militar resolveu evitar uma explosão social ao implementar um processo de
liberalização “lento e gradual” em meados dos anos 70, alguns grupos
imediatamente se uniram para questionar as noções hegemônicas de
homossexualidade, que a consideravam um comportamento pervertido e doentio.
Embora os grupos que se formaram de fins dos anos 70 em diante não evoluíssem
para movimentos de massa, eles conseguiram provocar debates nacionais sobre
temas como parceria civil, discriminação e violência social contra homossexuais.

Assim, o que se desenvolveu no Brasil durante o período de 1970 não foi propriamente o que é
hoje conhecido como movimento LGBT. Tratava-se de um complexo projeto de questionamento dos
papéis de gênero e reposicionamento da homossexualidade nas convenções sociais, bandeiras que até
hoje permanecem, mas que na época eram desenvolvidas sobre uma variedade de formatos e frentes de
atuação diversas. Atualmente – e certamente na época também – o próprio enquadramento do
movimento LGBT como um movimento alternativo é problemático tendo em vista que

o “alternativo” não é mais uma referência tão marcante e, além disso, porque,
conservadas as características do alternativo presentes naquele período [de 1970] de
forte ímpeto antiautoritário (...) seria difícil imaginar a sobrevivência desses
movimentos ao período de “redemocratização”. (FACCHINI: 2005, p.57).

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No período pós-70, o movimento homossexual apresenta um potencial desenvolvimento


enquanto movimentos marcados por outros segmentos passam por um processo de enfraquecimento.
Colaborou para isso uma série de mudanças arroladas nas décadas seguintes, além da magnitude
alcançada pela pandemia da Aids. A primeira delas é a adoção de uma postura mais pragmática, em
relação ao radicalismo do período anterior. Uma segunda mudança também fundamental e que se
reflete ainda hoje é a adoção de uma variável de formatos pelos grupos. Outro elemento fundamental
para a compreensão da dinâmica de crescimento e expansão dos grupos pelo Brasil é a amplitude
alcançada da pandemia de HIV-aids, especialmente a partir de meados dos anos 1980. As perigosas
relações estabelecidas por Estado e sociedade da pandemia como uma “peste rosa”, como uma praga
de homossexuais por muito tempo estimulou uma postura omissa do Estado, que via na pandemia uma
forma de livrar-se de um segmento há muito mal quisto. Ainda neste período, com o processo de
publicização da epidemia em muitos personagens não reconhecidos como homossexuais – como
grandes artistas nacionais e até mesmo homens casados que mantinham secretamente relações sexuais
com travestis, prostitutas e outros grupos na época identificados como portadores da “peste” – faz
emergir do estado a necessidade de adotar políticas para evitar a expansão e o crescimento das mortes.
Nesse sentido, o antropólogo espanhol Esteban García (2009, p.544-545) coloca:

A “homossexualização” da aids somada à des-homossexualização da atenção


sanitária teve como corolário histórico um efeito social impressionante: a
visibilização e “homossexualização” de muitos homens que teriam sexo com
homens. Nos grupos populacionais dizimados pela epidemia, conformou-se
uma “comunidade no desastre” que fortaleceu a identidade homossexual. (...)
Os laços comunitários e identitários se afiançaram e os ativismos
homossexuais deram seus primeiros passos importantes no reconhecimento
político latino-americano nesse contexto particular em que convergiram
historicamente a vitimização dos homossexuais por aparatos estatais
repressores em vias de transformação e a vulnerabilidade sanitária da
população homossexual.

Assim, as campanhas sanitárias para controle da AIDS e de incentivo ao uso do preservativo e


demais medidas de “sexo seguro” constituem-se como um capítulo sumário e central na agenda dos
grupos que surgiram neste período. Em busca de apoio e financiamento do Estado para seus projetos e
iniciativas, há um grande incentivo ao registro formal dos grupos. Neste período, apesar da
formalização, observa-se ainda uma grande variedade de formatos no que tange às formas de
ativismos. Multiplicam-se associações, grupos especializados em busca ativa à “populações de risco”,
equipes de educação sexual especializados em instruir sobre uma etiqueta sexual para a população
homossexual. O que se desenvolve então é um conjunto de parcerias entre o Estado e os grupos no
âmbito de combater o avanço da aids; mais que isso, a historiografia dessas relações, conforme explica
Garcia (Ibidem, p.545) mostra que há nestas relações uma barganha onde os movimentos em troca do
reconhecimento da homossexualidade como uma orientação não patológica ou pervertida, e assim, o
estabelecimento de uma imagem positivizada dos homossexuais, oferecem seu esforço no controle da

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epidemia. E o que se verificou foi “uma das mais rápidas estâncias de transformação do
comportamento massivo na história da promoção sanitária: a maioria dos homens gays começou a usar
preservativo e a maioria continua usando-os até hoje” (HAIG, 2006 apud GARCÍA: 2009, p.545).
O que hoje (re)conhecemos no Brasil como movimento homossexual LGBT, entendendo as
demandas políticas inerentes a este sujeito político, como apresentadas no começo deste tópico, é
resultado de: (i) um processo inicial de representação social de indivíduos subalternizados por suas
identidades sexuais que por sua vez se localiza num cenário maior e mais complexo de afrouxamento
de medidas repressoras durante a ditadura militar; (ii) de um complexo processo de negociação entre
Estado, nas suas instâncias sanitárias e jurídicas, e movimentos sociais no estabelecimento de políticas
de reconhecimento e positividade da homossexualidade no período de enfrentamento de epidemia da
aids; e por fim, (iii) de um complexo mecanismo de negociações de identidades sexuais internas no
movimento, responsável pelo estabelecimento de fissuras e segmentações de ações no interior dos
grupos, como se verá mais adiante.

Metodologia
O itinerário pelo qual passou a construção deste trabalho é um inventário de técnicas e
expectativas. Pensada inicialmente como uma investigação que utilizaria de técnicas como pesquisa
documental e pesquisa de campo, estes instrumentos mostraram-se muito pouco férteis para apreensão
da dinâmica da militância LGBT aqui na Paraíba. Durante o processo de preparação para o campo
observamos que muito pouco havia sido produzido sobre o tema em âmbito regional, e esta realidade
era um aspecto não apenas estadual, mas espalhava-se por outros estados da região nordeste e do país.
Em termos exatos, só encontramos uma bibliografia sobre o movimento homossexual organizado nos
estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás e Bahia. Há nesses textos um marcador
comum de serem pesquisas produzidas ou desenvolvidas por homossexuais, algumas das vezes, sendo
os próprios militantes.
Assim, a pesquisa da memória dos movimentos organizados na Paraíba exigia uma leitura do
que os próprios grupos falavam de si, dessa forma, para fomentar os poucos dados de preparação para
a pesquisa em campo, nos dirigimos aos acervos mantidos pelo Movimento do Espírito Lilás.
Pensando a pesquisa documental como uma forma de extrair e restaurar artefatos de uma história
pouco mencionada, inclusive pelos próprios militantes, nos colocamos frente e dentro dos documentos
que nos foram disponibilizados para a empreitada. Toda a história de um grupo depositada em uma só
estante onde sobrepunham-se seis prateleiras: vídeos, recortes de jornais, relatórios incompletos,
recibos, notas fiscais, ofícios também incompletos, atas esparsas, cartazes avulsos de campanhas
preventivas de saúde. Um verdadeiro relicário de vazios.
Todos estes documentos poderiam ser agrupados em dois grandes grupos, ambos pouco
produtivos para um empreendimento que não fosse contabilístico da atuação do movimento
homossexual na Paraíba. O primeiro grupo era composto por documentos com funções meramente

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OLIVEIRA, T. L. Imagens e Narrativas LGBT em João Pessoa. UFPB, 2012. (mimeo)

burocráticas e que se destinavam à prestação de contas em relação a gastos e investimentos oriundos


de projetos e financiamentos principalmente federais, mas alguns também estaduais. Um segundo
grupo de documentos forneciam vestígios sobre uma suposta história do movimento, porém, eram
vestígios que muito pouco falavam na forma como se apresentavam: dispersos e deslocados – sem
qualquer aparato ou paratexto que pudesse remeter à sua história implícita. Eram fotos onde se viam
mobilizações públicas ou militantes, ofícios e relatórios não finalizados ou apresentados incompletos,
umas poucas atas de reunião organizadas caoticamente e pouco legíveis. Como uma pista esburacada,
todo o material apresentado nos apresentava mais lacunas do que possibilidades de ligação.
Impressionava-nos não só o pouco volume de material produzido em vinte anos, mas
especialmente a forma como tais documentos são dispostos: amontoados uns sobre os outros,
espalhados. Em uma de nossas visitas de campo pudemos observar onde boa parte destes documentos
esteve depositada durante aproximadamente os últimos anos, desde 2008. Um velho depósito aos
fundos do antigo Teatro Cilaio Ribeiro no centro da capital paraibana. Pavimento subsolo, com pouca
luz e muita poeira e sujeira, misturada a materiais de outros grupos e atividades desenvolvidas ali,
amontoavam-se livros, cartazes, documentos e outros vestígios sobre algumas mesas, tão frágeis
quanto qualquer outro “documento” ali depositado. Se como é repetido no falar cotidiano documentos
referem-se a identidades, então o que estava ali era um processo de escorrimento da identidade do
movimento LGBT na Paraíba, um grande delete em alguns anos de história que muito pouco
provavelmente seria reversível, mesmo que com apoio dos profissionais adequados, como
restauradores e arquivistas. Esse enfrentamento nos levou a primeira percepção material sobre a
realidade dos grupos. Antes de estarmos com eles, participando de fato de sua dinâmica cotidiana já
prendemos que, a memória, assim como um hard disk de um computador qualquer, não é apenas uma
realidade concreta, é antes de tudo uma projeção. As histórias, narrativas e todo o inventário de causos
não se restringiriam a um número limitado de arquivos, que, aliás, distribuíam-se entre propriedades
privadas e empréstimos não estornados. Esboçava-se um mosaico que remetia não apenas à fragilidade
e dispersão dos documentos físicos, mas às memórias. Para acessar os documentos e vislumbrar as
memórias era necessário chegar às pessoas. Como? Pelo campo, pela experiência.
Dando andamento sequência, buscamos então participar de uma série de atividades e projetos
desenvolvidos com ou em conjunto com os grupos, tais como reuniões, seminários, audiências
públicas e passeatas; ainda assim, esse tipo de inserção mostrava-se insuficiente. Na nossa
interpretação não bastaria tangenciar o movimento para lhe perceber, dado o caráter personalizado da
instituição, como explicaremos adiante, seria necessário chegar de fato às pessoas, envolver-se com
elas, e como descobrimos mais tarde, nos deixar “afetar” por suas experiências e histórias. Dessa
forma, pudemos durante algum tempo participar também dos círculos de amizade e atividades de
sociabilidade com alguns militantes, a exemplo de festas particulares, piqueniques e outros espaços e
momentos de sociabilidade onde a pauta principal não fosse a política, ainda que esta estivesse

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OLIVEIRA, T. L. Imagens e Narrativas LGBT em João Pessoa. UFPB, 2012. (mimeo)

presente nas performances e forma como tais militantes eram percebidos por alguns de seus
companheiros.
O propósito inicial dessas iniciativas era desenvolver uma observação participante como
técnica de coleta de dados que nos permitisse dados qualitativos sobre a atuação dos membros
militantes e suas relações com outros espaços políticos, bem como com outros segmentos do
movimento LGBT e com os outros membros, podendo assim revelar fissuras, redes de solidariedade e
pontos de tensão. Como auxílio à observação participante, realizamos também entrevistas
semiestruturadas e em profundidade no período de dezembro de 2011 a junho de 2012 com alguns
militantes que se posicionavam como “informantes” chave para a compreensão de alguns momentos
particulares da história dos grupos. Na Tab. 1 são listados os entrevistados bem como o tratamento
dado às entrevistas:

Tabela 1 – Relação de Entrevistados e andamento dado ao material


Entrevistado Data da Forma de Tempo de Manipulação do
entrevista registro Registro material
Luciano Bezerra* 26.07.2011 Fotográfico 1h: 31’: 32” - Áudio transcrito
Vídeo -Vídeo processado,
Áudio editado e publicado
em fragmentos.
Malu Morenah* 27.07.2011 Fotográfico 1h:04’:35” Áudio Transcrito
Vídeo - Vídeo processado e
Áudio publicado em partes
Fernanda Benvenutty 18.08.2011 Áudio 18’:45”
Gel Laverna 05.12.2011 Áudio 44’:04” - Áudio Transcrito
Henrique Magalhães 27.07.2012 Vídeo 49’:22” -Áudio Transcrito
Áudio
Alcemir Freire* 14.08.2012 Vídeo 1h:14’:32” -Áudio Transcrito
Áudio
Fotográfico
Fonte: Autor
* Entrevistas realizadas no âmbito de outros projetos6 nos quais também estive envolvido e que foram
utilizados na captação, leitura e avaliação dos dados.

Essas entrevistas tinham por motivo mais um controle dos dados coletados durante a parca pesquisa
documental ou durante a observação participante. Contribuíram com alguns elementos mas não
constituem dados fundamentais para o desenvolvimento da proposta, razão pela qual encontram-se tão
dispersas numa relação de escala cronológica e em número reduzido.
No período de um ano de realização da pesquisa pudemos participar de 32 eventos, sendo boa
parte deles organizados ou com participação dos grupos que compõem o Fórum de Entidades LGBTs

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Aqui estamos nos referindo ao projeto de extensão “Olhares sobre a diversidade: imagens e narrativas LGBt na
Paraíba”, edital PROBEX 2011, e ao Programa de Extensão Diversidade Sexual e Direitos Humanos na Paraíba:
nos olhares e ações entre movimentos sociais, agentes públicos e universidade”, edital PROEXT 2012.

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OLIVEIRA, T. L. Imagens e Narrativas LGBT em João Pessoa. UFPB, 2012. (mimeo)

da Paraíba, mas alguns também que estão no âmbito da (homo)sociabilidade sem ter a pauta política
como foco prioritário de discussão – em alguns deles isso se quer apresentado de forma explícita, por
mais que pudéssemos observar nas conversas e comentários uma micropolítica caracterizada pela
oposição e da desqualificação das lutas empreendidas pelos grupos organizados. Já com relação às
entrevistas realizamos seis entrevistas com duração média de uma hora cara, totalizando assim, mais
ou menos seis horas de gravação. Ainda como aparatos e técnicas de pesquisa o registro de algumas
entrevistas em áudio e vídeo foi empregado, bem como a fotografia de alguns eventos e atividades
desenvolvidas no período.
Os métodos que então se estipularam para coleta e análises dos dados durante o período de
elaboração do projeto mostraram-se pouco produtivos para a construção da etnografia nos moldes que
pretendíamos. Percebemos que para apreensão de uma dinâmica da militância, não bastaria um
instrumento de comunicação com os colaboradores tão pouco abertos como eram as entrevistas e na
observação participante. Um certo posicionamento estéril por parte do pesquisador precisaria ser
reelaborado, não em favor de uma “crença (....) mas do afeto. Não de afeto no sentido da emoção que
escapa da razão, mas de afeto no sentido do resultado de processo de afetar, aquém ou além da
representação” (GOLDMAN: 2005, p.150). Seria preciso sensibilizar-se para assim poder estabelecer
um meio de comunicação mais eficaz e menos verticalizado, como haviam se mostrado ser a
observação participante.
Por muito tempo a construção do campo havia sido realizada de maneira pouco sistemática e
esparsa. Estar no campo significava muitas vezes estar a par da agenda do movimento e poder inserir-
se nas discussões, sendo estas, geralmente cansativas e pouco produtivas. Assistindo a duas ou três
sessões uma sensação de previsibilidade para as próximas seria inevitável. Foi em parte devido a este
estafo programado que, certo dia, dediquei-me a buscar por uma forma menos tradicional de pesquisar
a política. Se jamais havia levado o caderno de campo para as ocasiões que não fossem de entrevistas,
e agora, eu definitivamente não iria fazê-lo. Esse seria um momento de recolhimento, de decantação
das percepções e vivências desenvolvidas no campo. Em parte devido ao cansaço de assistir os
reinterados debates, e por outra parte atraído pelo burburinho que vinha do “mundo de trás”, julguei
que uma boa forma de perceber o que se dizia seria o de adentrar as discussões pelos bastidores, ou
seja, estar com aqueles que fazem a discussão acontecer, os que se escondiam nas cochias, esperavam
nas mesas de recepção, com os que conversavam nas portas dos auditórios. Ali encontrei os primeiros
rastros do que seria o movimento LGBT e pude construir dados realmente sólidos para a construção da
etnografia.

2.1 Problemas do método


A intenção de trazer para a reflexão um dispositivo tão complexo em seu funcionamento
quanto mostra ser o movimento LGBT, especialmente em contextos não centrais, como é o caso
paraibano, trazia consigo a dificuldade de pensar a historicidade dos grupos que compunham este

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OLIVEIRA, T. L. Imagens e Narrativas LGBT em João Pessoa. UFPB, 2012. (mimeo)

panorama sem, contudo fragmentá-lo em retratos pessoais e dispersos, mas também sem reduzir as
diversas falas e posicionamentos diferenciados a uma lógica de nivelamento – que em termos práticos,
nunca existiu. Assim, era preciso, em termos teórico-metodológicos, estabelecer referenciais
minimamente fixos onde apoiar-se. A primeira solução encontrada foi buscar a história dos grupos nos
documentos que compunham seu acervo, iniciativa frustrada, como já dissemos acima, não só pela
precariedade dos documentos, mas também pelo fato de boa parte dos documentos estarem em mãos
de outros militantes, especialmente alguns envolvidos nas atuais e antigas gestões dos grupos. Vale
lembrar que, no caso de João Pessoa, nenhum dos grupos possui sede fixa, o que impossibilita a
manutenção de um acervo estável, tendo em vista a diversidade de espaços ocupados e também a (falta
de) infraestrutura desses locais, em geral improvisados sobre casas antigas do centro ou espaços
comerciais apertados e com horários de funcionamento pré-determinados na lógica de uma cidade de
médio porte do nordeste brasileiro, como é a nossa.
O período de trabalho de campo e contato direto e constante com os militantes foi
desenvolvido no período de setembro de 2012 até a redação deste texto, em meados de agosto. De
certa forma, a prática etnográfica que tentamos desenvolver frequentemente se fazia como uma
experiência, conforme as distinções estabelecidas por Magnani (2009, p.136). A estruturação do
campo e programação das atividades a serem observadas dava-se de modo muito esporádico, de modo
que, durante o ano de vigência do projeto operamos em intervalos de muito trabalho e outros de
completo ócio no que se refere ao acompanhamento das atividades dos grupos. Nem sempre a razão
para isso era a falta de atividades, mas antes a emergência com que as atividades eram programadas,
muitas das vezes contanto com muita pouca divulgação. Sobre esse aspecto, essa é uma característica
que muitas vezes faz-se regular tendo em vista que as políticas que operam na regulação das atividades
muitas vezes envolvem complexas negociações de trocas e concessão dos grupos com segmentos dos
governos estadual e municipal, e de forma pouco frequente, mas ainda assim possível, com segmentos
privados e pessoas físicas que apoiam os grupos.
Assim, pudemos perceber no período de finalização do trabalho de campo, a partir de maio de
2012, certo comprometimento ou defasagem dos dados coletados por meio de entrevistas ou
observações de campo. De alguma forma, para nós, pareciam em certa medida esvaziados de
significado para além de informações históricas e datações imprecisas. A nosso ver, parecia haver
certa barreira de ambos os lados da pesquisa: pesquisados e pesquisador. Barreira em certa medida
compreensível. Durante as entrevistas observamos, de modo repetitivo em cinco das seis entrevistas,
uma certa frustração dos grupos para com a academia, como se esta, não tivesse de fato contribuído
em nada para com a melhoria ou a legitimidade da experiência nativa, ao nosso ver, contribuindo mais
com a desqualificação desses discursos, ou com uma analítica que não se manifestava de forma
discursiva. Em resumo, os pesquisadores apossavam-se de um dispositivo que prestava bons serviços
para seus interessados, mas em retorno, nada lhe devolviam. Assim, por que alimentar esta relação

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OLIVEIRA, T. L. Imagens e Narrativas LGBT em João Pessoa. UFPB, 2012. (mimeo)

desleal? Para ter acesso ao que se desenvolvia pelos nossos interlocutores de pesquisa, era preciso,
repetimos, deixar-se afetar.
Trata-se de entender a observação participante, seja na sua acepção clássica como forma de
representação do outro, seja para o gênero quase autobiográfico no qual vem se convertendo nas
últimas décadas, mas sim, por meio de “uma espécie de desvio etnográfico” (GOLDMAN: 2003,
p.468) operar com um sistema de comunicação menos precário do que aqueles possíveis por meio da
observação ou de entrevistas.

A atividade da fala – enunciação – é escamoteada, não restando mais do discurso


nativo do que seu resultado, isto é, os enunciados são impropriamente tratados como
proposições e a atividade simbólica reduz-se a emitir proposições falsas. (FRAVRET-
SAADA: 2005, p.156)

Tratava-se então, de buscar entender o fenômeno nativo não como representação ou como uma
crença, mas como uma experiência. Tentar vivê-lo. Para isso não há parâmetros ou receitas, mesmo
nos mais elaborados e recentes manuais de pesquisa etnográfica disponíveis nas prateleiras. Assim,
meio que atrasado, mas ainda em tempo, dei-me a oportunidade de esquecer por alguns instantes a
posição de pesquisador e entrar no jogo do nativo, deixar-me afetar. Fazendo uso do vocabulário do
mundo do funk, fazer uma etnografia de perto e de dentro (MAGNANI, 2002) significava “estar junto
e misturado”, sentir o mesmo tipo de efeito a que os nativos sentiam, ou tentar experimentá-los, pelo
menos.
A proposta aqui esboçada é de uma reflexão sobre a militância de homossexuais numa cidade
de médio porte no nordeste brasileiro, com um dos índices de violência homofóbica mais altos do país,
sendo a capital do estado que se encontra em primeiro lugar no ranking de assassinatos de
homossexuais na região a que pertence no ano de 2011. Não temos pretensão de ser uma etnografia de
antropologia da política, por mais que em alguns momentos o diálogo com esta seja exercitado.
Tomando a etnografia como uma dimensão relacional da construção do conhecimento, os
resultados que apresentamos a seguir são um experimento tradutório. São orientados não apenas pelas
experiências e falas dos militantes com os quais pudemos nos envolver e relacionar durante a
construção do projeto, mas, como uma tradução, é substancialmente uma possibilidade. É uma
possibilidade de apresentaçã-interpretação do fenômeno sobre o qual nos debruçamos, considerando
antropologicamente as especificidades do local em que se realiza. Assim, nos aproximamos do
antropólogo francês Michel Agier (2011) na perspectiva de elaborar a presente etnografia numa
perspectiva de investigação urbana, onde
A coexistência de uma prática de pesquisa microssocial e pessoal , por um
lado, e por outro de um quadro de questionamento (ou mesmo de um objeto)
inacessível empiricamente apesar de sua aparência de realidade que se impõe
colocam o problema das noções intermediárias que permitem fazer a
passagem de uma [os saberes urbanos do/sobre o citadino] para outra [as
construções teóricas da (ou à escala da) cidade]. (p. 60)

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OLIVEIRA, T. L. Imagens e Narrativas LGBT em João Pessoa. UFPB, 2012. (mimeo)

Na tentativa de abordar esta passagem da experiência dos militantes LGBT na cidade de João
Pessoa, e as implicações que são reservadas por isto, até um conhecimento etnográfico sobre os
aspectos da militância nesta cidade buscamos elaborar uma analítica que considera estas experiências
sociais na perspectivas de redes sugeridas pelo autor supracitado. No que se refere à reconstituição da
história do movimento na Paraíba, buscamos como alternativa a construção de uma narrativa que
embora linear considerando a ordem temporal dos fatos, considera as permanências, atualizações, bem
como o caráter heteroglota das fontes que nos servem a este empreendimento.

Resultados e Discussões
Nesta seção, apresentamos e discutimos alguns dos resultados obtidos pela investigação.
Optamos aqui por segmentar o texto em tópicos de modo a prestigiar aspectos suplementares e pontos
diversos sobre os mesmos. Os resultados são apresentados em dois eixos. O primeiro tenta criar uma
cartografia narrativa do processo de construção histórica do movimento LGBT a partir de João Pessoa
no período entre 1980 e 2010, tomando como base depoimentos, documentos e entrevistas coletados e
oferecidos pelos colaboradores. O segundo momento debruça-se sobre o acontecimento movimento
LGBT, de modo a apresentar alguns elementos da dinâmica do fazer movimento LGBT na cidade de
João Pessoa, considerando suas especificidades.

3.1 Itinerários
Escrever a história do movimento LGBT no contexto sobre o qual nos encontramos é
debruçar-se sobre estilhaços. Inevitavelmente a tarefa remete a reunir fragmentos, buscar nas
desconexões e irregularidades repetidas qualquer lógica, qualquer registro de possibilidade. A
narrativa que tentamos estabelecer a seguir é composta por registros fracionados da memórias de
alguns colaboradores, colhidas em sua maioria durante entrevistas e algumas delas em pequenas
conversas informais e depoimentos de curta duração coletados durante eventos e situações diversos. .
Os colabores e colaboradoras deste texto não tem suas identidades preservadas em torno de uma idéia
de anonimato que, como denuncia Marcio Goldman (2003, p470 – nota 3) “no limite, (...)
descaracterizaria completamente o valor etnográfico do texto” tendo em vista que, de fato, não
estabelece ou garante um anonimato confiável, eliminando também a contribuição que o texto pode vir
a dar no diálogo com outras etnografias e projetos similares, bem como ao reduzir o caráter polifônico
e heteroglota no qual a narrativa se estabelece a uma narrativa única e linear. Assim, sigamos às
apresentações.
 Fernanda Benvenutty é parteira e funcionária pública do governo do estado, trabalhando no
serviço de saúde. Foi presidenta da ASTRAPA durante sete anos e também pleiteou os cargos
de- vereadora em 2008 e deputada estadual, em 2010. Além de seu envolvimento político com
partidos de esquerda, também coordena uma escola de samba na capital paraibana e tem se
envolvido na militância de forma estável aproximadamente desde início dos anos 2000.

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OLIVEIRA, T. L. Imagens e Narrativas LGBT em João Pessoa. UFPB, 2012. (mimeo)

 Gel Laverna, funcionária pública contratada, atualmente é membro do Centro de Referência


LGBT, atuando como conselheira . Desenvolve um trabalho de busca ativa à travestis e
transexuais em situação de vulnerabilidade social. Desde a adolescência tem se aproximado do
movimento LGBT relacionando-se de forma mais efetiva nos últimos 14 anos.
 Henrique Magalhães, 54 anos, professor universitário, atualmente é colaborador do
movimento LGBT na cidade de João Pessoa, tendo também participado na década de 1980 do
grupo “Nós Também”, primeiro grupo de militância organizada na cidade. Atualmente não
está vinculado formalmente a nenhum grupo LGBT.
 Luciano Bezerra, 53 anos, é um dos membros fundadores do Movimento do Espírito Lilás
(MEL) e também fez parte do grupo Beira de Esquina, na década de 1980. É um dos
militantes mais reconhecidos e atuantes no estado. Antes de iniciar-se no movimento LGBT,
na década de 1980, participou também de outros movimentos sociais, como as pastorais,
movimento sem terra e também relacionou-se com partidos da esquerda, notadamente o PT.
Atualmente sua ocupação está para o ativismo, exercendo a função de presidente do MEL.
 Malu Morenah, ou Marcone, atualmente divide-se entre o ensino, o canto e o teatro.
Relaciona-se com o movimento LGBT desde a adolescência e de forma mais efetiva enquanto
militante e colaboradora desde fins da década de 1980. Participou de alguns cargos de chefia
dentro do MEL e nos últimos anos colaborou com a administração da ASTRAPA, Associação
de Travestis e Transexuais da Paraíba.

Além dos colaboradores acima citados, também contribuíram com o estabelecimento desta
narrativa de forma menos sistemática, mas não menos importantes, com seus comentários, sugestões e
depoimentos: Renan Palmeira, Adneuze Targino, Alcemir Freire, José Mariano Neto, Saulo Gimenez,
Chico Noronha e outros e outras.
*
***

Assim como em outros estados, na Paraíba a pré-história do movimento LGBT está vinculada
ao desconforto de um segmento da população com as moralidades sexuais então vigentes no país
durante a década de 1970. Durante os primeiros anos da década de 1980 a circulação de uma espécie
de jornal informal, um fanzine, o conhecido Jornal Gaia, produzido por jovens universitários, entre
eles Sandoval Fagundes e Chico Noronha, estimula em alguns jovens pessoenses, um sentimento de
representatividade, e ao mesmo tempo, de possibilidade de luta que se mistura ao clima de abertura e
liberalismo em voga no momento. O Jornal Gaia, diferente de outros jornais em circulação no país
naquele momento, que “abertamente” tratavam a questão homoerótica ou que tinham um fundo
contestatório, não era um jornal sobre homossexualidade exclusiva ou explicitamente. Antes era um
espaço artístico onde a “liberação” era colocada como uma marca daqueles tempos. A influência de
outros veículos, como o Lampião da Esquina, é percebida na leitura de alguns textos, mas de forma
mais enfática o tônica ainda é o ideal de liberdade e livre expressão que se manifesta especialmente
nas artes locais. A libertação sexual é anunciada como a liberdade para e pelo amor, influência
também do movimento hippie dos anos 60 e da vida noturna nas grandes metrópoles, com a disco e
outros ritmos nos anos 1970.

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OLIVEIRA, T. L. Imagens e Narrativas LGBT em João Pessoa. UFPB, 2012. (mimeo)

Teatro, música, literatura eram os temas onde em geral as sexualidades ditas dissidentes
manifestavam-se nas páginas do Gaia. Como fanzine, a circulação do Gaia era restrita a pequenos
números mimeografados e em geral era distribuído e lido entre conhecidos. Era um material que
circulava essencialmente entre alguns jovens universitários da classe média pessoense, notoriamente
residindo entre os bairros de Bancários, Castelo Branco e outros seguindo em direção à praia, nos
bairros de Tambaú e Cabo Branco.
Influenciados pela leitura do Gaia, do Jornal Lampião da Esquina e também por uma série de
eventos que estão acontecendo no nordeste e reunindo jovens homossexuais para discutir estratégias
de militância ou de descoberta de sua própria sexualidade, na Paraíba começa a esboçar-se um
primeiro grupo de jovens preocupados, ou no mínimo interessados, em por em pauta essa sexualidade,
descobri-la e construir o que se também se projetava nas capitais vizinhas: um grupo de militância.
O primeiro grupo de militância homossexual da Paraíba inicia seu processo de estruturação no
ano de 1981, influenciados pela experiência desenvolvida por outros grupos de militância já instituídos
e em atividade na época, tais como o Grupo Gay da Bahia, GGB, (BA) e o grupo Somos (SP). O
surgimento do grupo “Nós Também”, em 1981 está estritamente vinculado às experiências de jovens
universitários e professores da Universidade Federal da Paraíba em grupos de discussão ocorridos
durante o Encontro da SBPC daquele ano. Estimulados por uma amiga, um grupo de jovens gays e
lésbicas paraibanos presentes durante o evento ao participar de um grupo de discussão sobre
sexualidade teve sua inscrição estimulada sob o nome de “Nós Também” (NT) em relação os demais
grupos ali presentes, especialmente o grupo Somos:
Nós também SOMOS. Então se existem esses grupos, nós também somos e
queremos fazer um grupo. (Henrique Magalhães)

Na volta do evento, o grupo afetado pelas experiências e debates compartilhados então iniciou
a projetar a organização do grupo. Diferente dos grupos em atividade naquele momento no país, o
grupo NT apresentava duas particularidades, uma primeira ligada ao caráter misto dos seus membros e
um segundo ao formato de sua intervenção, geralmente mais artísticas e performáticas do que as
desenvolvidas pelos grupos seguintes. Os membros, em geral na faixa etária dos vinte ou trinta anos
eram em sua maioria oriunda dos centros acadêmicos dos cursos de artes e comunicação social da
UFPB. O perfil pode ser elaborado em torno de jovens de classe média, residentes nos bairros de
Castelo Branco e outros no sentido da praia, Tambauzinho, Miramar, Tambaú e Cabo Branco. A
atuação do NT era caracterizada por intervenções mais artística e menos “políticas” nos moldes a que
se convencionou nos anos seguintes por outros grupos. Reunidos geralmente no antigo Bar da
Xoxota7, as atividades realizadas envolviam saraus poéticos, produção e distribuição de cartões postais

7
O bar da Xoxota era um espaço de subversão e integração de diferentes tipos na cidade durante a década de
1980. Estava localizado na região da praia de Tambaú na rua Ozório Paes Carvalho da Rocha, região que
também concentrava outros espaços de homossociabilidade na cidade nos anos seguintes, como a boate
Sanatórios, a conhecida Tapiocaria e atualmente o bar Empório Café.

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OLIVEIRA, T. L. Imagens e Narrativas LGBT em João Pessoa. UFPB, 2012. (mimeo)

temáticos, desenhos, e também exibição de curta-metragem em documentário e ficção. Além destas


intervenções, o NT era um grupo de estudos de jovens em torno de suas sexualidades. A tônica da
descoberta e do compartilhamento de experiências pessoais era recorrente nas reuniões, geralmente
organizadas nas casas dos professores Lauro Nascimento ou Sandra craveiros. As reuniões envolviam
além do núcleo comum de atividades outros jovens interessados que eventualmente apareciam em um
encontrou ou outro, mas que não tinham uma freqüência regular ou que se envolviam de forma efetiva
nas intervenções.
A atuação do NT durou até o ano de 1983, mantendo como núcleo consistente de atividade
professores e alunos da UFPB, onde se destacaram: Lauro Nascimento, Sandra Craveiros, Gabriel
Bechara, Germana Galvão e Henrique Magalhães. Após dois anos de atividades o grupo começou a
diluir-se e as atividades foram reduzindo-se frente a outras atividades pessoais dos militantes e à
expansão de novos formatos de militância mais basilares e orientados para públicos diferentes.
Em meados de 1984 outro grupo aparece no cenário pessoense, o grupo Beira de Esquina
(BE). Formado por jovens universitários geralmente vinculados aos centros acadêmicos da UFPB e de
classes populares, a atuação do Beira de Esquina tem um caráter menos acadêmico e mais voltado à
formação das comunidades de base, reunindo homossexuais no sentido do centro aos bairros
periféricos na zona oeste e norte. Os membros do grupo, em geral estavam vinculados a outros
movimentos sociais, a exemplo do movimento sem terra e das pastorais ligadas à igreja católica em
crescimento durante o período militar. A teologia da libertação também fora um componente
importante e que contribuiu para a formação ideológica e que corroborou com a seleção do público
prioritário e os modos de atuação dos militantes.
A partir do BE e com a colaboração de outros militantes, alguns dos quais vindos do antigo
NT e com auxílio de outros militantes vindos de outras esferas do movimento social e de partidos de
esquerda, no ano de 1992 é fundado o Movimento do Espírito Lilás (MEL), com o objetivo de
combater a discriminação e violência contra homossexuais na Paraíba. Congregava gays, lésbicas e
algumas poucas travestis e durante os anos iniciais sua atuação seguiu os moldes do antigo “Beira de
Esquina”, buscando trazer e discutir demandas e políticas públicas entre o Estado e os homossexuais
da cidade em bairros da capital paraibana.
Nos anos iniciais a atuação do MEL esteve voltada à formação das comunidades de base,
trabalhando muitas vezes junto a associações de moradores ou pequenos grupos de homossexuais nos
bairros no sentido de formação e prevenção contra a AIDS e outras doenças sexualmente
transmissíveis. A relação que se estabelece entre os MEL e as políticas de saúde todavia não foram
harmoniosas. Hoje, boa parte dos recursos que financiam as atividades desenvolvidas pelo grupo são
oriundas de fundos da saúde pública municipal e estadual destinado à ações de formação, algumas
delas realizadas pelos grupos. Nos anos iniciais a tensão está localizada numa dificuldade estratégica
em conciliar o legado popular de trabalho em comunidades de base com as questões particularmente
relacionados à AIDS:

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OLIVEIRA, T. L. Imagens e Narrativas LGBT em João Pessoa. UFPB, 2012. (mimeo)

Sim, porque de fato, ultimamente alguém tava falando que tem nessa
militância nova do movimento LGBT tem figuras que se tornaram militante a
partir da AIDS e eu acho que é um militante diferente do militante que, como
eu e outros, vem de movimentos sociais, dessa questão da Igreja, ou de
outros campos... então eu acho que é outro... outro tipo de militância e tal...
mas isso aí... (Luciano Bezerra)

O tom biográfico da fala de Luciano aponta para uma outra dimensão constitutiva da atuação
do movimento que é o quadro extremamente reduzido de militantes. Todavia a existência de algumas
centenas de sócios nos dias atuais, nos anos iniciais e ainda hoje o que se observa em termos práticos é
a “individualização da instituição”. Personagens pontuais respondem pelo desenvolvimento e
militância de todo o grupo que se aglutina sobre a insígnia do MEL.
Assim como na estrutura do Beira de Esquina, os militantes estão fortemente vinculados a outras
esferas de atuação política como os movimentos estudantis, outros movimentos sociais e partidos de
esquerda. Entre os militantes atuantes neste período destacam-se a atuação de Luciano Bezerra, Breno
Silva, Fernando do Peixe, dentre outros.
Como muitos outros grupos pelo país, a pauta inicial é o combate à aids e a criação ou
reprodução de modelos preventivos. Na Paraíba este embate inicial é resolvido pelas questões
financeiras. O Estado, antes visto como um executor, passa a ser observado desconfiadamente como
um financiador, uma espécie de mecenas do sanitarismo. É neste período que o Ministério da Saúde
inicia a abertura de editais que financiariam a atividade de muitos grupos de militância LGBT no
Brasil. O investimento do MS nas atividades de formação de multiplicadores, quase sempre militantes,
e o financiamento de projetos menores por parte dos grupos são tomados como uma medida
compensatório que se relaciona a outros projetos, em geral com vistas à construção de uma imagem
positiva do segmento gay na cidade de João Pessoa.
Aí eu sempre fazia esse babado; a questão da saúde, da multiplicação, da
prevenção, aí vem AIDS, hepatites, como usar o preservativo... Sempre
gostei. (...) [Em 2005], a gente ensaiou Fidelidade, que era um texto
totalmente voltado pra prevenção a AIDS. Na época a gente tava com a
história do AIDS Em Cena, que era um projeto do Ministério da Saúde, para
grupos de teatro de instituições voltados pra causa da AIDS, do preconceito e
da discriminação. (Malu Morenah)

Em parcerias com órgãos ligados às secretarias municipais e estaduais de saúde, durante


alguns anos, especialmente os oito primeiros anos, até aproximadamente os anos 2000 as ações do
MEL consistiam na formação de agentes multiplicadores de combate à epidemia do HIV – aids,
especialmente junto à população gay. Essas atividades estendiam-se desde atividades junto a pequenos
grupos de homossexuais militantes ou não em cidades de pequeno e médio porte em outras regiões até
projetos que utilizavam de linguagens mais lúdicas ou de entretenimento com o teatro. No plano
interno, a militância concentrava-se também em reunir esforços no sentido de impedir o avanço do
crescente número de assassinatos de homossexuais – o que hoje classificamos como crimes

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OLIVEIRA, T. L. Imagens e Narrativas LGBT em João Pessoa. UFPB, 2012. (mimeo)

homofóbicos – e também de estabelecer ações afirmativas junto a grupos socialmente vulneráveis,


como profissionais do sexo, especialmente travestis.
Estes formatos e focos de atuação se manifestam naquilo que o antropólogo Esteban García
(2009) analisa como “relações de conveniência” e troca com o Estado. Aqui as trocas, no sentido
maussiano, repetem o modelo “dar-receber-retribuir”, todavia não estão fecham em si mesmas, e
realizam formas diversas de retribuição. As campanhas de sexo seguro financiadas pelo Estado e
desenvolvidas pelos grupos de militância contribuíram para a criação de um valor comunitário entre a
população homossexual. A ideia de que todos precisam unir-se e usar preservativo em suas relações
sexuais de alguma forma transformou-se numa grande campanha de higienização do sexo entre iguais
onde o uso de preservativos acabou por convencionar-se nos dias atuais entre boa parte dos
homossexuais como uma norma da comunidade. Diferente de outras instâncias de movimentos sociais
que tiveram seus horizontes de atuação expandidos ou transferidos, a exemplo do movimento
feminista e de mulheres, ainda hoje há um foco de atuação militante no que concerne à saúde,
especialmente a saúde sexual.
Contrapondo o modelo de troca proposto por Mauss (2003) ao analisar as sociedades ditas
primitivas, ou arcaicas, à atuação movimento LGBT no Brasil observamos haver uma relação de troca
que se relaciona explicitamente com uma ideia de reciprocidade, que todavia não é a reciprocidade
observada por Mauss. Na relação do movimento LGBt com o Estado parece haver uma dívida pré-
existente à dádiva, e assim as trocas são perpassadas por uma dispositivo diferenciado de retribuição..
Na maioria dos casos, como demonstra a historiografia, a retribuição tem sido no sentido de manter
longe de uma dita população sadia uma peste que por muitos anos convencionou-se ser
exclusivamente sadia. Nos últimos anos com o crescimento e expansão da aids, principalmente entre
mulheres heterossexuais e casadas, as campanhas têm alcançados múltiplos públicos e linhas de
atuação, mas a atuação de entidades LGBTs ainda é constantemente requisitada, talvez por uma
suposta ideia que assegura a experiência destes grupos no controle da pandemia. Essas novas
configurações proporcionam por sua vez, novas formas de retribuição, que não se relacionam
frequentemente com a consciência ou a visualização desta como resposta a uma dádiva específica. As
lógicas de troca em geral estão vinculados à prestação de um trabalho especializado como qualquer
outro, visão da qual nos particularmente descordamos, por ver aí justamente um novo ou a atualização
de um dispositivo de trocas.
Ainda com a ação do Estado, não podemos negligenciar que consoante a atuação dos grupos
no combate à aids, houve também a tentativa de criação de uma imagem positiva da população
homssexual, imagem essa que forçou os grupos a rever significativamente o comportamento de seus
grupos e também a constantes redefinições e reflexões sobre os sujeitos aos quais visa incluir. Assim,
as políticas de identidades sexuais começam a entrar em pauta, e na Paraíba não deixa de ser diferente.
Todavia nos dez primeiros anos de atuação o MEL mantivesse-se como um grupo misto, demandas
internas e conflitos de opinião e estratégias de atuação contribuíram para o processo de fragmentação

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OLIVEIRA, T. L. Imagens e Narrativas LGBT em João Pessoa. UFPB, 2012. (mimeo)

do movimento. Durante este período a entrada de uma nova leva de militantes comprometidos ou
preocupados com demandas próprias de suas categorias, tais como lésbicas e travestis, que não
estavam se sentindo contempladas nas estratégias ou focos de atuação desenvolvidos pelo movimento
estimulou em princípio a iniciativa de formações e atividades específicas para estes segmentos
internos dentro do próprio movimento. Nesse período começam a despontar dentro do movimento
outros nomes importantes que nos anos seguintes desempenhariam um importante papel na criação do
que seriam a ASTRAPA e o Grupo de Mulheres Maria Quitéria. Entre estes nomes é preciso destacar
Fernanda Benvenutty, Gel Laverna, Lumara Vilar, Marly Joaquim, Lúcia Bezerra e Ana Clara Maia8.
A formação de novos segmentos está relacionado à crises e tensões dentro do movimento. Ao
que parece, apesar de um certo encorajamento para a criação destes novos grupos, os questionamentos
realizados por jovens militantes para os quais se dirigiam olhares inquisidores em alguns momentos
tensiona o projeto de segmentação. Em 2002, no seio dos debates já em desenvolvimento sobre
segmentação ou não do MEL surgem os dois grupos que ainda hoje atuam na cidade, orientados
especificamente para mulheres lésbicas e bissexuais e o segundo para travestis e transexuais. A
segmentação ainda assim parece não ter sido consensual, o que no discurso de alguns militantes
aparece sob a forma de um saudosismo:
É que a ASTRAPA saiu do MEL, o Maria Quitéria saiu do MEL – eu tava
nessa época quando a Fernanda [Benvenutty] (...) apareceu, e deu essa ideia
de criar um núcleo só pras trans... um movimento que fizesse só pras trans. Aí
quem? Fernanda. Fernanda apareceu, saiu de dentro do MEL e fundou a
ASTRAPA. A mesma coisa foi o Maria Quitéria, né? O das lésbicas. Porque
até então o MEL englobava tudo, as trans, os gays, né? As lésbicas... tinha
umas palestras que toda quarta-feira a gente fazia que era maravilhosa, a gente
pegava um tema particular e discutia. Passava um vídeo -era como se fosse
cinema e pipoca- aí toda quarta tava lá: as pessoas iam, assistiam, recebia
preservativo, discutiam e saiam. (...) Eles gostavam muito, e eu sinto falta
desse trabalho. E a gente gostava muito de fazer. Aí foi daí que surgiu a
ASTRAPA. Aí a ASTRAPA aluga uma sala na frente. Aí foi a Fernanda pra
lá, foi Gel [Laverna], a Pedrita (que faleceu assassinada) que é da gestão da
ASTRAPA, né? Aí o Maria Quitéria era a Ednelze, era a Dulce, a Sheila, aí
foram pra outro local. Aí eu sempre achei meio louco. Eu sempre achei que
devia estar todo mundo; eu nunca achei que devia estar separado não. Eu sei
que cada um tem suas especificidades, mas aí tem a questão assim... sei lá...
eu acho que tudo junto fica melhor, embora tenha os seus entraves, mas eu
acho que fica bem melhor. Acho que tem uma força maior, o movimento todo
junto. Nunca achei muito interessante esse negócio da ASTRAPA estar num
canto, a Maria Quitéria no outro, o MEL noutro... o MEL só de Gay, o Maria

8
Trabalhando com a memória dos militantes, muitas vezes tornou-se complexo a identificação de nomes e
situações. É preciso acrescentar também muitos outros personagens que se mostraram atuantes e importantes,
mas que todavia não tivemos conhecimento deles além dos pré-nomes, como é o caso das travestis Karla e Aline,
ou das mulheres lésbicas como Eulália, Sheila. Dulce e Selma. Além de outros militantes homossexuais
masculinos que desempenharam importantes funções junto ao MEL e outras instâncias como é o caso de
Mazureik, Ibanez e Aderivam. Salientamos também que num esforço de compor um panorama mais detalhado
do movimento LGBT no estado, as pesquisas para descobrir e conversas com essas pessoas tem sido
desenvolvidas pelo programa de extensão “Diversidade Sexual e Direitos Humanos na Paraíba”, durante o ano
de 2012 do qual também tenho participado.

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OLIVEIRA, T. L. Imagens e Narrativas LGBT em João Pessoa. UFPB, 2012. (mimeo)

Quitéria só de lésbica... depois só... nunca gostei dessa história! (Malu


Morenah)

Nesse clima de tensão entre as mobilizações internas ao MEL e os questionamentos das


militantes travestis, algumas recém-chegadas, para criação de um setorial ou um grupo dentro do
movimento que pudesse atender devidamente as demandas de travestis e transexuais em João Pessoa
e no interior do estado, surge em 19 de outubro de 2002 a Associação de Travestis e Transexuais da
Paraíba, a ASTRAPA:
Essa associação, esse grupo organizado existe desde 2002, tem dez anos.
Antes existia o Movimento do Espírito Lilás, que o é o MEL, que tem um
público e objetivo específicos que é tratar dos homossexuais masculinizados
e afeminados, mas a gente sentiu uma falta de uma pessoa que tratasse
também da questão das políticas das travestis. Então a ASTRAPA partiu
desde a ideia, ainda dentro do grupo do MEL. E aí nasceu a Associação das
Travestis, em 2002, no dia 19 de Outubro de 2002. Essa associação foi
criada com cerca de 12 travestis - algumas profissionais do sexo e algumas
no mercado de trabalho regular - que resolveram se articular pra poder
fundar esse grupo. (Gel Laverna)

Em sua ata de fundação, a ASTRAPA demonstra um comprometimento em vista de “articular,


mobilizar, propor e monitorar políticas públicas de superação e enfrentamento à discriminação e à
violência homofóbica e fortalecer a autoestima e promover a cidadania plena de travestis e
transexuais”. Entre as travestis presentes na fundação da ASTRAPA destacamos a atuação de
Fernanda Benvenutty, Gel Laverna e Lumara Vilar.
Atualmente, devido a problemas com disponibilização de recursos, bem como a presença de
espaço físico para organização, planejamento, capacitações e desenvolvimento de atividades a
ASTRAPA se encontra momentaneamente desativada, ainda assim, algumas travestis e transexuais,
atuando junto a outros grupos do movimento LGBT ou junto ao Estado tem desenvolvido algumas
atividades de modo a suprir as necessidades do público, a exemplo do trabalho de busca ativa de
travestis e transexuais profissionais do sexo desenvolvido pelo Centro de Referência dos Direitos de
LGBT e Combate a Homofobia da Paraíba.
Ainda em 2002, fruto do mesmo projeto de fortalecimento e especificação de demandas de
segmentos internos ao MEL, sob iniciativa das militantes Marly Joaquim e Lucia Bezerra é fundado
no mês seguinte o Grupo de Mulheres Maria Quitéria. O nome do grupo faz menção e homenagem à
soldada brasileira Maria Quitéria, que lutou junto a outros militares durante o século XIX pela
Independência do Brasil. A esse pretexto, ficou conhecida como “mulher-soldado”. Durante o
processo de reestruturação do Maria Quitéria observamos um intenso fluxo de estabelecimento de seu
sujeito, ou seja, do público que lhe circunscrevia. Inicialmente com o objetivo de acolher mulheres
lésbicas e transexuais femininos, e posteriormente de mulheres lésbicas e bissexuais, atualmente o
grupo adota uma denominação mais abrangente visando contribuir com políticas públicas pró-
Diversidade e fortalecer a cidadania de mulheres lésbicas, bissexuais e transexuais.

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OLIVEIRA, T. L. Imagens e Narrativas LGBT em João Pessoa. UFPB, 2012. (mimeo)

Sob coordenação dos três grupos, no ano de 2002 foi organizada a I Parada do Orgulho Gay de
João Pessoa, também primeira parada do estado da Paraíba, reunindo na ocasião cerca de duas mil
pessoas. Durante seu processo a parada teve seu formato e circuito constantemente alterado e
reformulados. No ano de 2012, onde foi realizada no mês de agosto, teve seu percurso estabelecido na
beira-mar da praia de Cabo Branco no trecho que se estende entre o Centro de Lazer do SESC Paraíba
até o Busto de Tamandaré, onde a festa foi finalizada com shows reunindo drag queens, cantores
locais e nacionais. Atualmente também a parada em sua 11° edição, encontra-se sob a denominação de
Parada pela Diversidade Sexual, embora o foco persista nos LGBTs.
É também em 2002 que começam a surgir os primeiros frutos das atividades de formação
desenvolvidas pelo MEL nos anos anteriores. No interior do estado começam a surgir formalmente
pequenos grupos de militância gay por todas as sub-regiões.. Assim, na cidade de Itabiana na região da
zona da mata, é fundado o grupo Gayrreiros do Vale do Paraíba, contando como principal
representação o militante “Ferreirinha”, ainda em 2002, em 2004 é fundada a Associação dos
Homossexuais de Campina Grande, ainda como um núcleo localizando dentro do CIPIMAC (Centro
Informativo de Prevenção, Informação e Mobilização de Profissionais do Sexo). Em 2004 também é
fundado a Associação do Orgulho LGBT de Cajazeiras, no alto sertão do estado da Paraíba.
É preciso, todavia, entender que, muitas vezes, considerando as condições sociais e
econômicas dos militantes, muitos grupos de militância não se encontram juridicamente registrados
sob qualquer forma legal, ou estão juridicamente restritos de pleitear grandes projetos ou editais
nacionais por estarem em débitos na prestação de contas. A atuação desses grupos ainda sem registro é
esporádica e muitas vezes circunscritas à intervenções públicas ou eventos pontuais. Exemplo disso
são as cidades da região do brejo paraibano, notoriamente as cidades de Araçagi, Guarabira, Sapé,
Mari e Alagoinhas que apresentam importantes e atuantes representantes na militância em suas
cidades e localidades, mas que não apresentam qualquer movimento instituído legalmente. Além
disso, acreditamos ser importante também compreender a importância e emergência de novos
formatos de militância, especialmente entre jovens, que constantemente e por veículos que lhe são
mais acessíveis, tais como a internet e redes sociais provocam movimentos representativos e
significativos, sem contudo vincularem-se aos modelos tradicionais de militância, tais como os
movimentos sociais/ONGs.
A distribuição dos grupos catalogados durante o projeto pelo estado pode ser melhor
visualizada na Fig. 1, onde são apresentados não apenas os grupos formalmente instituídos, mas
também municípios onde pôde ser registrada a atuação de pequenos grupos de militância não
oficializados.

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OLIVEIRA, T. L. Imagens e Narrativas LGBT em João Pessoa. UFPB, 2012. (mimeo)

Figura 1 – Grupos e Movimento Organizados de Militância LGBT pelo Estado da Paraíba


Catolé do Rocha
Fórum LGBT de Catolé do Rocha João Pessoa:
MEL, ASTRAPA, Maria Quitéria.

Campina Grande
AHCG, ARCIDES, CIPIMAC

Cajazeiras
Associação do Orgulho LGBT de Cajazeiras Itabaiana
Gueyrreiros do Vale do Paraíba.

Fonte: Mario Wilson (ARCIDES – Campina Grande) com modificações nossas9.

De acordo com o mapa, elaborado por representantes dos vários grupos militantes na Paraíba,
os pontos em cor mais forte (laranja, azul escuro, amarelo, verde, vermelho e amarelo e lilás)
representam as cidades com movimentos já consolidados ou registrados formalmente, a saber:
Cajazeiras, Catolé do Rocha, Campina Grande, Itabaiana e João Pessoa (que engloba também toda a
região metropolitana). De acordo com este mapa a cidade de Guarabira, marcada com uma estrela,
representaria um polo, sem contudo haver um movimento organizado conhecido. Ainda no mapa as
cores médias (azulados, amarelados, esverdeados e arroxeados) representam as cidades com
representatividade, onde se encontram militantes ou grupos de militantes não organizados, a exemplo
de Cabedelo, Santa Rita, Alhandra, Rio Tinto, Mari, Sapé, Alagoinha, Dona Inês, Santa Luzia,
Pombal, Cacheira dos Índios, Lagoa Seca e outras cidades. As demais cidades em tom esfumaçado são
aquelas onde se percebe uma potencialidade sem que haja, contudo algum grupo ou militante
conhecido. Como nos explica Mario Wilson, responsável pela elaboração do mapa:

9
A ARCIDES – Associação pelo Respeito à Cidadania e Diversidade Sexual é uma organização de militância
pela Diversidade Sexual fundada em campina Grande no ano de 2011. Nos últimos meses desde sua fundação
tem desenvolvido um intenso trabalho de mobilização junto a outras instituições na região da Borborema e
Sertão. Devido seu período de surgimento ser posterior ao período que nos propomos a estudar (1980 – 2010)
não nos deteremos muito sobre sua atuação no que tange à historiografia delineada, ainda que a contemplemos
como parte do processo atual de militância que se desenvolve atualmente na Paraíba.

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OLIVEIRA, T. L. Imagens e Narrativas LGBT em João Pessoa. UFPB, 2012. (mimeo)

As cores indicam nos mapas indicam INSTITUIÇÕES LGBT


ORGANIZADAS (MAIS ESCURAS), MOVIMENTOS EM FORMAÇÃO
(TONALIDADE MÉDIA) E POTENCIALIDADE DE MOBILIZAÇÃO
(TONALIDADE MAIS CLARA). As cidades em XADREZ possuem apoio
(contato) de mais de uma área de articulação portanto um potencial
diferenciado e fortalecido de mobilização. (Comunicação pessoal, 2012).

Em meados de 2008 começa a esboçar-se um projeto de congregação entre os diversos grupos


de militância sob o nome de Fórum de Entidades LGBTs do Estado da Paraíba. O objetivo do fórum
seria reunir as forças locais num empreendimento estadual que pudesse representar o movimento
LGBT de uma forma coesa e assim, prover o movimento como uma força estadual que atualmente ele
não tem. Em 2009 iniciaram-se as discussões sobre o processo de estruturação, organização e atuação
do Fórum, que se estende até hoje sem grandes avanços. A ideia de reunir o movimento LGBT no
estado sob o formato de um Fórum em si esboça uma ideia que será melhor desenvolvida no próximo
tópico, mas que pode ser resumida sob o princípio de que, na Paraíba as estratégias de militância, além
das tradicionais ideias de fragmentação – que de fato existem e se materializam sobre as ações
desenvolvidas – estabelece-se também num esforço maior de afecção, ou “afeto”, onde, todavia as
divisões, tensões e brechas, há uma rede maior e sensível de relações e solidariedade que une os
movimentos sob as formas de militantes.

3.2 Caminhando sobre as frestas: a política como um rútilo


Nossos interlocutores de pesquisa estão situados. Desenvolvem sua performance política de
militância e contestação de preconceitos em um lugar específico e em um espaço de tempo - que não é
apenas o do agora, mas também ecos de passados vários que reincidem, naturalmente ou evocados,
nos tempos de agora. Performance, discurso e ideologias – as várias e conflitantes que observamos – e
os próprios sujeitos estão histórica, geograficamente, e temporalmente situados. Esta é uma relação
sem possibilidades de fuga. No mais, o que há, em termos político, é uma tentativa de avanço que é
logo sucedida por um recuo: um jogo de ir e retornar. Como sair deste solo, destes momentos de
agora? Como sair da cidade?
Nossos interlocutores falam a partir de uma cidade de médio porte, que apesar de seu clima
litorâneo e ares de desenvolvimento recente, está situada no nordeste do Brasil, lugar a que se atribui
socialmente o estima de aridez, de sertão. Equívocos geográficos ou paradoxos conciliáveis postos de
lado, a situacionalidade de tais falas e atuação é um elemento importante na compreensão da dinâmica
e atuação dos grupos e sujeitos que estabelecem o que por nós é chamado de “movimento LGBT”,
pois, como sugere Magnani

a cidade, mais do que um mero cenário onde transcorre a ação social, é o resultado
das práticas, intervenções e modificações impostas pelos mais diferentes atores
(poder público, corporações privadas, associações, grupos de pressão, moradores,
visitantes, equipamentos, rede viária, mobiliário urbano, eventos, etc.) em sua
complexa rede de interações, trocas e conflitos. Esse resultado, sempre em

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OLIVEIRA, T. L. Imagens e Narrativas LGBT em João Pessoa. UFPB, 2012. (mimeo)

processo, constitui, por sua vez, um repertório de possibilidades que, ou compõem


o leque para novos arranjos ou, ao contrário, surgem como obstáculos.
(MAGNANI: 2009, p.132)

De acordo com dados do relatório anual elaborado pela Secretaria dos Direitos Humanos do
governo federal em parceria com diversos pesquisadores, movimentos sociais, associações e ONGs
que lidam como a temática da homossexualidade, a Paraíba está entre os estados mais violentos do
país quando falamos em crimes “homofóbicos”, ou seja, crimes cuja motivação ou marcador de
crueldade é o ódio contra homossexuais. De acordo com este relatório, no ano de 2011 foram 20
homicídios e 123 violações de espécies variadas registradas contra homossexuais, de acordo com
dados da imprensa nacional (BRASIL, 2012, p.97). Todavia, como sempre, é preciso alertar para a
precariedade oferecida pelas fontes: nem sempre a orientação sexual da vítima é registrada, ou
tampouco é sabida ou informada pela vítima, da mesma forma, em muitos casos a possibilidade da
motivação para os crimes ser a conduta sexual pode ser questionável, ou seja, 1 – a orientação sexual
da vítima muitas vezes é presumida, e 2 – nem sempre a motivação dos crimes é de fato a orientação
sexual. Além disso, os dados têm origens ou em fatos registrados pela mídia impressa e televisiva, ou
em em denúncias registradas pelo números oficiais, desconsiderando assim os casos em que a vítima,
por vergonha, medo ou outras razões não procura as formas de assistência disponibilizadas. Ainda
assim, nos dados que foram disponibilizados uma condição que se pode ver repetida em vários
relatórios e que é também evocada pelos militantes é que, mesmo não tendo vinculação com a causa
mortis, a orientação sexual é um fator que corrobora para com a crueldade da execução.
O exercício de práticas sexuais não normatizadas, ou seja, a vivência da transexualidade,
travestilidade ou homossexualidade, condições em geral vistas como “patológicas ou criminosas” para
evocar a história da sexualidade ocidental de Foucault (1988) é visível em vários níveis de uma
micropolítica da violência e da sexualidade, desde estes extremos que levam ao homicídio e à tortura,
bem como nas situações menores do dia a dia, a exemplo dos xingamentos. “Veado, fresco, puta”,
xingamentos dos mais comuns pelo nordeste brasileiro ofendem não apenas pelo contexto em que se
inserem socialmente, como práticas vinculadas à comercialização do corpo, ao uso do baixo corpóreo
como forma de prazer, desvinculando-se assim de uma sexualidade que não tem finalidade
reprodutiva; talvez possamos dizer que ofendem por corresponderem dentro das expectativas sociais
ao que é tido como anormal, o sujo: o homossexual e a prostituta (FOUCAULT, 2001).
O fazer militante em João Pessoa inicia-se, como vimos, como um movimento vinculado a
uma performance artística, de questionamento das moralidades sexuais presumidas como sadias e
centradas, um movimento, nos dizeres do colaborador Henrique Magalhães, “anarquista”. A arte é
usada não só como espaço para discussão de novas sexualidades, ou de visibilidades para formas de
sexualidade e afeto então recriminadas. As trocas afetivas e sexuais então tinham de espalhar-se por
becos sujos e lugares escuros onde predominavam as práticas de pegação e sexo descompromissado,
quando não a lugares escondidos e que possibilitavam a sensação de alguma liberdade e segurança,

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OLIVEIRA, T. L. Imagens e Narrativas LGBT em João Pessoa. UFPB, 2012. (mimeo)

como bares mais afastados ou incrustados em ruas e bairros labirínticos de regiões mais afastadas do
centro e da praia da cidade.
Essas mobilizações, inicialmente limitadas a espaços e círculos pequenos, na academia e entre
amigos de classe média passa então a disputar visibilidade na ordem do dia por meio de muros
pichados e em outdoors clandestinamente violados pelas ações do grupo Nós Também na cidade.
Como nos relata Henrique Magalhães, na noite de réveillon do ano de 1981 militantes do grupo Nós
Também motorizados e acompanhados de algumas latas de tinta dedicam-se a romper com a pacata
tranqüilidade da cidade provinciana pichando nos muro da Avenida Beira Rio, Epitácio Pessoa e
próximo à praia de Tambaú frases afirmativas e contestatórias, reivindicando para si a legitimidade de
seus afetos. A moralidade cristã e recatada da pequena cidade então com pouco mais de 400.000
habitantes começa a ser maculada ou territorializada por novos sujeitos que exigiam para si o
reconhecimento da legitimidade de suas experiências e a possibilidade de descobrirem a si mesmos
enquanto sujeitos providos de uma sexualidade diferente daquela normatizada pelos discursos
provincianos de uma João Pessoa que se caracterizava por uma miscelânea de migrantes de regiões do
interior (IBGE: 2011). Sobre esse processo é curioso notar que as primeiras gerações de pessoenses de
fato nascidos e criados na cidade começa a surgir a partir da década de 1990. Até então, a cidade era
constituída em grande parte por pequenas colônias de migrantes de pequenas cidades do interior que
vieram para cá em busca de trabalho, educação ou outras oportunidades de vida. Nesse sentido, as
primeiras contribuições do grupo Nós Também está relacionada à mobilização de jovens para tornar
público formas de sexualidade e questionamento que estavam até então submissos às moralidades
religiosas campesinas que se distribuíam pela pequena João Pessoa.
Nos anos seguintes o impacto da pandemia do HIV e as primeiras manifestações públicas de
mortes em decorrência da AIDS no estado dão espaço para formatos de militância mais
comprometidos com uma ação social vinculados às comunidades de base e ao enfrentamento da
pandemia. O foco assim é transferido da cultura como núcleo de discussão para os discursos médicos e
sanitários através de campanhas de saúde , primeiro de controle e minimização da aids, e segundo,
posteriormente, de estabelecimento de uma melhor “qualidade de vida” para os víveres soropositivos.
Em ambos os momentos, por distintos que sejam, é importante notar que as mobilizações estão
relacionadas a círculos de amizade, especialmente entre jovens homossexuais, que em comum têm a
pretensão de estudar e conhecer melhor os possíveis significados de suas experiências pessoais, direito
até então negado pelos discursos heteronormativos.
Nossa perspectiva é que a militância LGBT em João Pessoa, dada as relações que esta
estabelece com o espaço onde se desenvolve, pode ser melhor compreendida a partir da categoria
“rede” proposta por Michel Agier (2011, p. 77) como forma de apreensão antropológica sobre a
cidade. A categoria rede estabelece junto com as categorias “indivíduo” e “situação” formas de
compreender a cidade, ou seja, o espaço urbano, provendo referências e descrições espaciais e morais
dos sujeitos sociais – no caso destas últimas. Diferente destas duas formas de apreensão, a rede suporia

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OLIVEIRA, T. L. Imagens e Narrativas LGBT em João Pessoa. UFPB, 2012. (mimeo)

as articulações entre situações e indivíduos, permitindo assim apreender com um pouco mais de
profundidade situações e interações. Assim, uma abordagem reticular sobre o movimento LGBT em
João Pessoa significaria entender esta instância enquanto um amplo conjunto de relações e interações
entre sujeitos heterogêneos que comungam de determinadas características ou propósitos comuns,
organizando-se sobre a forma de redes sociais que coexistem e se relacionam em níveis diversos.
As redes diferenciam-se mais ou menos segundo o seu principal critério de
cooperação, ou, em outras palavras, segundo a natureza da relação social que
se está na base de sua existência, a qual não ocorreria também sem uma
função ou um uso. (...) Nessas redes circula um conjunto de valores, ideias e
normas que permitem o seu funcionamento. (AGIER: 2011, p79-80)

A categoria rede é aqui utilizada, aquém de seu caráter metafórico, pela contribuição potencial
que pode dar à descrição do funcionamento dos grupos que estudamos. Como elabora Agier, as redes
também contribuem para enfatizar e chamar atenção para fenômenos de proximidade ou distância
social, dessa forma corroborando aqui para a apreensão e visualização das relações estabelecidas
dentro do movimento LGBT e do movimento LGBT com outras instâncias. As diversas manifestações
de homossexualidade (masculina, feminina, travesti,transexual) são os marcadores que organizam as
redes internas da grande rede que é o movimento LGBT em si, e simultaneamente estabelecem
relações de proximidade ou distanciamento com outras categorias identitárias que não estão no
discurso LGBT, mas que tampouco se enquadram nos discursos heteronormativos ou heterocentrados.
De forma esquemática, estas configurações são melhor apresentadas na Fig.2, abaixo:

Figura 2 – Esquema Conceitual da Rede LGBT em João Pessoa

Fonte: O Autor, 2012.

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OLIVEIRA, T. L. Imagens e Narrativas LGBT em João Pessoa. UFPB, 2012. (mimeo)

No esquema de redes proposto, podemos ver que a rede LGBT é composta pela relação que os
militantes enquanto sujeitos localizados na cidade estabelecem com outras instâncias, desenvolvendo
funções diversas, bem como sendo reconhecidos ou acionados por estas e outras funções. Dentro desta
rede podemos visualizar uma macrorrede LGBT que em seu funcionamento apresenta algumas
possibilidades de gênero e identidade sexual disponíveis na cartilha do “L-G-B-T”.Desta forma,
podemos visualizar a existência de microrredes gay, lésbica, bissexaul e trans.
Aquém da matriz compulsória heteronormativa que produz suas verdades sobre o sexo, o
movimento LGBT enquanto instância que representa, por meio das identidades enquanto dispositivos
simbólicos, certos indivíduos produz também suas verdades sobre os sexos, regulando certas práticas e
regimes da sexualidade. Até mesmo dentro do assim chamado “universo homossexual”, se
entendermos os modos diferenciados de produção e interpretação do discurso que se estabelecem aí,
podemos observar a existência de uma gramática dos gêneros tão reguladoras quanto às do mundo
heterossexual. Essa produção de gêneros inteligíveis está também relacionada à produção de verdades
sobre o sexo:
A matriz cultural por intermédio do qual a identidade de gênero se torna
inteligível exige que certos tipos de “identidade” não possam “existir” - isto
em é, aquelas em que o gênero não decorra do sexo, e aquelas em que as
práticas do desejo não “decorrem” nem do sexo, nem do “gênero”. Nesse
contexto, “decorrer” seria uma relação política de direito instituído pelas leis
culturais que estabelecem e regulam a forma e o significado da sexualidade.
(BUTLER: 2009, p. 39).

O funcionamento das redes está relacionado à manutenção e atualização de um precário


sistema de comunicação entre os sujeitos que também é uma característica não só da natureza das
redes, mas também de seu funcionamento. A debilidade comunicativa é não apenas um traço
característico, como elemento instaurador e mantenedor das redes. Retornando ao esquema, podemos
ver de que formas as microrredes relacionam-se umas com as outras. De forma específica, as linhas
contínuas representam as formas de comunicação mais freqüentes e eficazes, enquanto as linhas
tracejadas as comunicações mais precárias ou pouco acionadas. As redes, assim como a militância,
incorporam em seu funcionamento um caráter misto, o que implica que (i) envolve não apenas os
militantes, mas suas relações com outras instâncias, e (ii) também é integrada por sujeitos que têm
orientações sexuais diferentes destas especializadas pela sigla LGBT.
Assim, a rede LGBT que observamos desenvolve-se não apenas segundo critérios de
cooperação, mas segundo valores, ideias e normas que regulam a pertinência ou não de um indivíduo
participar ou ser inserido nas políticas que se estabelecem em seu interior. Esse processo, acreditamos,
está relacionado a um processo político mais amplo que inclui não apenas o reconhecimento de
demandas internas nos segmentos que o grupo nomeia, como observado por Regina Facchine (2005),
mas também um conjunto maior de “técnicas” que envolvem o compartilhamento ou identificação
com temas e costumes, hábitos de lazer, freqüentar determinados espaços de sociabilidade, bem como

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OLIVEIRA, T. L. Imagens e Narrativas LGBT em João Pessoa. UFPB, 2012. (mimeo)

o reconhecimento de um certo código lingüístico que se materializa não apenas pela fala, mas também
pelo gestual, pelo olhar e pelas elipses e textos10 implícitos.
De forma simplificada, poderíamos dizer que a rede LGBT em João Pessoa é composta por
uma série de redes que determinam cada uma valores e normas reguladores que instituem suas
verdades sobre os sexos, os gêneros, os desejos que, de forma verticalizada, se submetem às verdades
da rede maior. Essas verdades não necessariamente são excludentes, mas apontam para concepções
micro do mundo social em que os sujeitos que lhes circunscrevem estão inseridos. Vejamos alguns
fragmentos extraídos dos diários de campo onde estas situações são articuladas:

FRAGMENTO 1
[Reunião para organização da Xi Parada pela Diversidade Sexual da
Paraíba] São quase quinze horas, em volta da mesa encontram-se reunidos
estudantes e professores da Universidade Federal da Paraíba, militantes e
representantes de autoridades. Em volta da mesa uma divisão muito rígida
se repete à semelhança de outros eventos: lésbicas agrupam-se de um lado,
travestis e transexuais em outro lado, exceto por uma mais jovem que se
“perde”, atrasada que chegou, entre outros homossexuais masculinos. Mais
ao fundo observo dois homossexuais conversando: “Tem trans demais,
melhor se segurar aí. Na hora da festa é só o que aparece, mas aqui, cadê?”
– o outro responde: “é mesmo, só aparece pra ficar no trio, mas na hora de
ir atrás das coisas. Ei, vai pra onde esse fim de semana? Fosse na Ana11
sábado?” (Maio, 2012)

FRAGMENTO 2
[São João da Diversidade, promovido pelo Centro de Referência
LGBT] Com pouco mais de uma hora do início da festa são poucas pessoas
que se distribuem pelo salão do Centro de Referência. Exceto por
funcionários e alguns nomes da militância LGBT, quase todos muito
jovens, a festa está esvaziada. Empolgado e animado o jovem trans Diego
conversa com outra trans, que provavelmente faz parte do grupo de terapia
para jovens trans. Empolgado, fala sobre a festa, comentando a decoração,
enquanto a outra trans, tentando esboçar interesse, comenta sobre as
tentativas de conseguir emprego realizadas na última semana. Ele responde:
“De fato, pra gente não é tão fácil”. (Junho, 2012)

FRAGMENTO 3
[Piquenique realizado com alguns militantes mais próximos] Renan
[Palmeira] muito solicito chega e apresenta seu namorado, aproxima-se de
mim e apresenta seu namorado. Cumprimentando os outros amigos na
ocasião, começa a falar sobre o projeto do Colméia com Ricardo e
Karenine, dois colaboradores voluntários do projeto de reedição do jornal.
Afastando-se um pouco do grupo, Karenine comenta: “tenho a impressão
que as vezes eles não sabem o que nós queremos”. (Setembro, 2011)

10
Entenda-se aqui texto em sua concepção macro como potencial de produção de sentidos (ARROJO, 2005)
envolvendo assim não apenas a produção escrita, mas todo um conjunto de códigos e símbolos que permitem a
comunicabilidade ou mediação comunicativa entre sujeitos ou entre um artefato e outros sujeitos.
11
Ana ou Casa da Ana é como a Boate Vogue, localizada em um casarão do centro de João Pessoa é chamada
por alguns homossexuais.

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FRAGMENTO 4
Tem que tomar cuidado que as travas são truqueiras! (Março, 2012)

FRAGMENTO 5
Luciano em tom diferente do habitual aparece à porta e convida a todos que
estão ao lado de fora do auditório da Faculdade de Direito. “Vem gente,
vamos entrar, a televisão já foi embora, temos que tomar parte no debate,
ouvir o que eles [os candidatos a prefeito de João Pessoa, Renan Palmeira e
Estelizabel] tem a dizer pra gente”. (Agosto, 2012)

No fragmento 1 podemos ver uma espécie de segregação que se estabelece entre os


segmentos, em geral devido a estereótipos e ideias pré-concebidas de um segmento sobre o outro que
se instalam na sociedade e que não fogem ao movimento LGBT. Esses estereótipos tomam a mesma
forma no fragmento 4 e revelam também mecanismos de diferenciação e expectativa que as
microrredes estabelecem umas sobre as outras. São estes estereótipos repetidos e reiterados como os
comentários foucaultianos, que em sua função não fazem senão dizer o que estava ardilosa e
silenciosamente articulado num primeiro texto social (FOUCAULT, 1999, 25).
Nos fragmentos 2 , 3 e 5 são reiteradas as lógicas de classificação e distinção das redes: o nós,
o grupo é apresentado como aquilo que foge ao conhecimento do outro, sendo assim, só é possível
representar categoria X quando se faz parte das experiências e tem-se domínio dos códigos que essa
experiência supõe. O que se sabe sobre o “nós, lésbicas”, ou sobre o que o “nós, trans” queremos são
dispositivos distintivos daquele apresentado por Luciano ao falar sobre “a gente”, segmento LGBT,
conclamando aí o que há de similar em todas estas experiências ‘desviantes’ da norma heterocentrada.
A partir das lógicas e símbolos operados pela militância LGBT a ancoragem social das
microrredes está relacionada à orientação sexual dos sujeitos envolvidos. É este princípio geral que
orienta a composição de uma rede LGBT, ou uma macrorede LGBT em João Pessoa. Todavia, este
não é o único critério organizador das redes; estas são estruturas dinâmicas e concêntricas, de modo
que, dentro das microrredes são reorganizadas outras microrredes e assim por diante. As microrredes
são estabelecidas a partir da experiência ou identidades sexuais assumidas pelos indivíduos de acordo
com as opções “disponíveis” para ser gay. Assim, temos uma microrrede gay onde os sujeitos
envolvidos identificam-se a si mesmos pela atribuição de uma identidade homossexual masculina,
operando o mesmo com as outras redes lésbica, bissexual, e trans (englobando as categorias de travesti
e transexual).
Analisando a microrrede gay [homossexuais masculinos], com a qual pudemos nos deter mais
tempo, pudemos observar alguns aspectos particulares de seus indivíduos, funções e desenvolvimento.
Tendo a homossexualidade masculina como ponto de ancoragem social desta rede, os grupos são
compostos por militantes de origens, idades, posicionamentos ideológicos e estratos sociais diversos.
Esta microrrede está segmentada em outras redes onde o vínculo a reforçar a ancoragem são diversos
(performance de gênero, julgamento de honestidade, estrato social, afinidade ideológica, enfim), sendo
o recorte geracional aquele que melhor podemos abordar e perceber.

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O princípio de comunicabilidade que torna possível, por precária que seja, a existência das
redes é pautado numa relação de afeto-afecção a unificar situacionalmente as redes de lésbicas,
bissexuais, trans e homossexuais em uma rede LGBT. Esse afe[c]to deve ser entendido não apenas
como os sentimentos de amizade e parceria que se estabelecem entre e no espectro maior do
movimento que é caracteristicamente fragmentado sobre os indivíduos, mas também como uma
relação de afetação, onde situações, moralidades e discursos são compartilhados e podem afetar
indivíduos semelhantes. O que possibilita essas relações de afeto seria um devir-homossexual que
tornaria o ativismo em si, possível:
A homossexualidade que os homossexuais constroem não é algo que os
especifique em sua essência, mas algo que fala diretamente com a relação
com o corpo, a relação com o desejo do conjunto das pessoas que estão no
entorno dos homossexuais. Isso não quer dizer que os homossexuais queiram
fazer proselitismo ou instaurar uma ditadura da homossexualidade. Quer
dizer, simplesmente, que a problemática que eles singularizam em suas
experiências não é do domínio do particular, menos ainda do patológico, mas
que esta problemática se refere ao domínio da construção de uma
subjetividade que se relaciona e conecta com outros campos, como o da
literatura, ou o da infância. (GUATTARI; ROLNIK, 2006, p.93 – tradução
minha).

No nível estrutural das redes, esses afe[c]tos remetem a experiências compartilhadas e à


possibilidade de determinados afetos afetarem militantes diversos, que se organizam não apenas por
interesses políticos, mas também por laços de amizade e cooperação. Na estrutura das redes, como
apresentado pela Fig. 2, estes laços unificadores das redes, ou simplesmente, os pontos sensíveis, ou
pontos conectores das redes são representados pelas circunferências vazias. Estas circunferências
significam militantes mais ou menos nômades, o que por nós, no decorrer deste texto, foi apresentado
como ‘militante-chave’, que segundo técnicas e interesses diversos conseguem estabelecer relações
com outros militantes-chave de outras redes. De forma alguma essa parceria estabelecida reduz ou
minimiza o aspecto fractal do movimento. Como dito anteriormente, a relação de afetação dentro do
movimento inclui constantes estados de tensão, dada a precariedade com que as redes se estruturam. A
título de exemplo, observamos as relações tensoras entre Fernanda Benvenutty, uma das militantes-
chave e representantes da microrrede trans, e Luciano Bezerra, um dos militantes mais antigos e
atuantes, com uma notável habilidade de caminhar entre as frestas que compõe a rede. Esta relação é
marcada por conflitos constantes, acentuada por uma certa divergências de formas de atuação e
opiniões na forma de militar estabelecidas por cada um: Fernanda no plano da visibilidade política,
buscando uma candidatura LGBT, e Luciano no plano da viabilidade política, buscando com
instâncias políticas parceiras recursos e meios de materialização dos projetos do grupo que integra.
A possibilidade de uma macrorrede LGBT, onde coexistem várias sub-redes: homossexual,
lésbica, bissexual, travesti e transexual é possibilitada pela existência de códigos diversos que
orientam valores, normas e moralidades presentes no interior de cada uma dessas redes. Essas sub-
redes lésbicas, gays e enfim, podem também ser lidas como redes parciais dentro de uma rede também

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parcial que é a macrorrede LGBT João Pessoa. Dado o caráter situacional e interativo, diversas
macrorredes locais estabelecem mecanismos diversos de comunicação e trocas, pelas quais partilham
códigos, experiências e modelos de funcionamento.
A ancoragem das redes LGBT encontra-se no universo da sexualidade, o que, parodiando
Agier, não significa um fechamento na esfera sexual, mas pelo contrário, manifesta-se sobre uma
multiplicidade de espaços que vão desde os territórios de sociabilidade, até técnicas corporais,
reprodução de discursos, entre outros. A socialização dos militantes nessa atmosfera está relacionada à
promoção de dispositivos que estimulem outros homossexuais a tornarem-se também militantes. Isto
pode ser vislumbrado no propósito de muitos eventos em atrair novos membros ou militantes
potenciais. Nesse aspecto é preciso abrir um parêntesis no que tange ao marcador social geração/idade
dentro do movimento. Entre os militantes com quem pudemos travar contato no último ano, a faixa
etária está em torno dos 35-40 anos e esta faixa etária se reflete não apenas em diferenças de idade
entre militantes veteranos e recém-chegados, mas também num impasse de comunicação.
Acreditamos que, similar à eclosão dos movimentos sociais na década de 1970 como formas
diferentes de fazer política, vindas das classes mais diversas e partindo dos indivíduos, o que
presenciamos hoje, especialmente com relação à juventude, é a popularização de militâncias que
fogem às instituições e manifestam-se em espaços não tradicionais, como a internet e a mídia. Como
exemplo, podemos observar a realização da Marcha das Vadias, em junho de 2012, em João Pessoa. O
movimento realizado em diversas cidades e capitais espalhadas pelo país constituiu-se como uma
manifestação iniciada no espaço virtual que proporcionou, na capital paraibana, com que quase 600
pessoas das mais variadas idades, gêneros, orientações sexuais, classes e etnias fossem às ruas do
centro para protestar contra o machismo e os sistemas de regulação do corpo feminino, defendendo
assim o direito do indivíduo, especialmente da mulher, sobre sua sexualidade e sobre seu próprio
corpo. Analisando as listas de associados dos grupos com que trabalhamos mais a fundo em João
Pessoa – MEL, ASTRAPA e GM Maria Quitéria – e também a presença nos eventos promovidos pelo
movimento, mas também eventos que não se vinculavam às pautas políticas de militância, mas que
estabeleciam alguma relação com o exercício da cidadania de gays, lésbicas, travestis, transexuais e
bissexuais, pudemos observar um crescimento relativo maior na presença de lésbicas, travestis e
transexuais jovens do que de jovens gays. Ainda que estes sejam maioria, observamos cada vez menos
a atuação destes, o que pode se referir, como já dissemos a uma deficiência de comunicação entre os
militantes, já que, como anunciamos no início deste relatório, o movimento é composto por uma
diversidade heteroglota de discursos com diferentes valores, prestígio e poder de verdade.

***
*****
Para encerrar a discussão aqui apresentadas, podemos dizer que, a organização do movimento
LGBT sob redes de relacionamento não implica a incomunicabilidade entre as redes. Antes, apesar de

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haver sim graves falhas de comunicabilidade especialmente no que se refere à adoção de novas formas
de ativismo, as ações se tornam possíveis e viáveis por meio de uma relação de afetos e afecções
múltiplas que possibilitam as trocas, negociações e barganhas com diferentes instâncias, desde os
indivíduos espalhados por locais diversos da cidade que são conclamados a contribuir com o
movimento, até diferentes espaços políticos tradicionais, como partidos, secretarias de estado e outros.
As redes apontam para a existência de moralidades, normas e valores diversos que dentro de si,
organizam a experiência de sexualidades diversas que se reúnem sobre uma sigla única, mas que de
forma alguma, representa uma verdade total sobre os sexos. Antes, a possibilidade de enxergar o
movimento como uma macrorrede parcial nos oferece elementos para entender a diversidade de
discurso que circulam e são negociados aí.

Conclusões
A expressão “a política como um rútilo”, subtítulo da sessão anterior representa bem a
imagem por nós observada e reconstruída durante o desenvolvimento do projeto. A militância, esse
falso brilho, ou brilho até real, mas ardiloso, mostrou-se a nós como uma complexa relação
estabelecidas entre “pessoas-movimento”. Em um universo tão marcado pelos grupos de
particularidades e pelas particularidades grupais, ainda nos perguntamos onde está, para além dos
segmentos, uma militância para a diversidade, que inclua não apenas uma cartilha fechada de
possibilidades de estar no mundo, ou de “habitus de gênero”, como coloca a socióloga Berenice Bento,
que se materializada na constante alteração de siglas: homossexual, de gays e lésbicas, GLS, GLBT,
GLBTT, LGBT. O que essas siglas dizem na verdade? O que elas movimentam e para onde, qual
fluxo ou para qual vestígio de brilho essas “pessoas” são levadas ou orientadas? Como questiona
Foucault,
Como se poderia razoavelmente comparar a força da verdade com
separações como aquelas, separações que, de saída, são arbitrárias, ou ao
menos se organizam em torno de contingências históricas; que não são
apenas modificações, mas estão em perpétuo deslocamento; que são
sustentadas por todo um sistema de instituições que as impõem e
reconduzem; enfim, que não se exercem sem pressão, nem sem ao menos
uma parte de violência. (FOUCAULT, 1999, p13-14)

Se nos seus anos vinte anos de trabalho, muito se lutou na Paraíba pela cidadania de
“pessoas”, sejam elas homossexuais ou não, não foi sem violência ou coerção sobre esses sujeitos
também. Ainda que sejam louváveis muitas das contribuições angariadas para a pessoa, para os
sujeitos, no campo dos Direitos Humanos, não se pode deixar de lado os preços pagos por esta
tentativa de garantir unicamente à pessoa, o direito à vida.
Apreender as narrativas de todos estes personagens-pessoas, controversos em sua natureza,
mas apenas humano-demasiado-humanos consistiu em compilar narrativas, histórias de vida e
experimentos, submeter-se à uma intensa torrente de versões, expor-se aos estilhaços e deixar-se afetar
por tantas possibilidades de narrativa. O que dizer? Por onde começar a contação de uma história em

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constante mutação? O que compreender e o que fixar destas experiências? De qualquer forma a
militância LGBT, aquém de seus rompantes, de suas burocracias e potencial iminente de tragédia e
frustração tem qualquer coisa de desejo, de sensual.
Na busca daquilo que o antropólogo Márcio Goldman (2003, 464) chama de “devir-nativo”
nossa prática etnográfica procurou ressignificar a si mesma enquanto experiência, pois o devir está nas
economias do desejo, e o desejo não pode ser interpretado, apenas experimentado (DELEUZE;
PARNET: 1998, 111). Experimentar aqui não implica, como adverte o autor, semelhança,
identificação ou imitação, mas antes “o movimento através do qual o sujeito sai de sua própria
condição por meio de uma relação de afetos que consegue estabelecer com uma condição outra”.
Assim, a prática etnográfica necessitaria negociar a si mesma como regime da observação,
reconhecendo as limitações dessa “ciência do observado” nas palavras de Lévi-Strauss. Fazer uma
etnografia sobre o movimento LGBT na busca de um devir nativo implicaria engendrar no pesquisador
um devir-militante, um devir-movimento LGBT.
Nesse ínterim é preciso reconhecer que, enquanto pesquisador, a postura muitas vezes adotada
de endurecer o corpo na busca de um estranhamento constituiu-se como um impedimento a esta
abordagem que defendemos. Pudemos apreender mais sobre os cenários e dinâmica da militância
pelos seus contrastes, pelas suas brechas e pontos de encontro do que pelas visões e espetáculos
oferecidos em pronunciamentos agenciados. Pelas conversas jogadas fora, à pelas conversas nas redes
sócias, pelo papear nas tardes de fim de semana, algumas nas mesas de bar: a experiência e momentos
de sociabilidade inoportunos. A guarda baixa como abertura para a experimentação.
A utilização de uma abordagem reticular do movimento LGBT, acreditamos, mostrou-se uma
ferramenta válida, pois possibilita entender a narrativa aqui esboçada como estando sujeita a diversos
interesses e também imersa num movimento onde a memória é fragmentada e dissipada. Como disse a
transexual Carolina Almeida, em entrevista concedida recentemente “eu represento a mim mesma”. É
neste representar a si mesmo que o movimento LGBT na Paraíba, ou ao menos em João Pessoa, onde
pudemos analisá-lo com maior cuidado, está envolvido. Este é um movimento feito por muitos
indivíduos, quase singularizados, mas onde a força das redes de solidariedade e afe[c]to constroem a
imagem que durante 20 anos está sendo visualizada.

*
***
Os resultados apresentados aqui, ou as histórias narradas não acabam em si, pois como devir e
como memórias de um futuro, são construções em processo de execução. Não acabam em si,
deságuam em outras narrativas, em outras subjetividades e seguem seus cursos vários. Assim mesmo
esse experimento-experiência, como não começou isolado, também não seguirá isolado ou como
pretérito imperfeito. Em busca de preencher algumas brechas que se apresentaram durante a execução
deste projeto, seja por limitações cartográficas, seja por falta de informações a pesquisa seguirá por

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meio do projeto de Iniciação Científica (2012-2013) “Poéticas e Políticas da Sexualidade” e do projeto


de Extensão “Diversidade Sexual e Direitos Humanos na Paraíba”. Ambos têm foco no movimento
LGBT, sendo o primeiro orientado para as relações entre movimento e mercado GLS e o segundo para
as relações entre memória e formação política dos movimentos LGBT pela Paraíba, expandindo o
horizonte geográfico deste empreendimento.

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