Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Retratos
de Diplomatas
Revista Negócios Estrangeiros
N.º 21 | Retratos de Diplomatas
Edição Digital
Revista Negócios Estrangeiros
N.º 21
Edição Digital
Direção
Embaixador José Freitas Ferraz
Direção Executiva
Joana Gaspar
Design Gráfico
Marco Rosa
Revisão Editorial
Francisco de Oliveira, Joana Gaspar, Joana Gonçalves Pereira, João de Almeida Dias e Joaquim Matos
Periodicidade
Semestral
Edição
Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE)
Palácio das Necessidades, Largo do Rilvas – 1350-2018 Lisboa
Tel. +351 213 932 040 | E-mail: idi@mne.pt
Número
Diplomacia e Política Externa
18 de outubro de 2021
Índice
Nota introdutória
José de Freitas Ferraz .................................................................................................... 6
Missão em Paris
O célebre secretário de D. João V nasceu em Santos, então um pequeno
porto de São Paulo. Filho de um português de Guimarães, cirurgião do
“presídio” local, e de uma senhora de família com raízes antigas na capitania.
Após estudos elementares na Bahia, foi com 13 anos para Portugal,
acompanhando seu irmão mais velho, Bartolomeu de Gusmão, o “padre voador”.
Estava completando seus estudos de Cânones em Coimbra, quando, aos 19 anos,
foi convidado para ser secretário do novo embaixador luso em Paris. Iniciava
uma carreira de quinze anos como diplomata, a que se seguiria outra de vinte
no círculo íntimo do rei. Lancemos um olhar sobre a situação política que ele ia
encontrar em Paris.
Em 1713, Portugal e França assinaram o acordo que punha fim às
divergências com relação à Guerra de Sucessão na Espanha. Foi um dos acordos
Embaixador jubilado do Brasil
7
Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021
de Utrecht e foi benéfico ao Brasil: o limite extremo norte, disputado pela
França, era fixado no rio Oiapoque. Por outro acordo, este com a Espanha, em
1715, Colônia do Sacramento, no rio da Prata, era restituída aos portugueses.
O apoio inglês rendia frutos a Portugal; o hábil embaixador, D. Luiz da Cunha,
também teve seu papel. O fato a guardar, entretanto, é que nenhum dos dois
países, França e Espanha, sentia-se justiçado; assinaram premidos pelas
circunstâncias.
A França voltaria a contestar a fronteira pelo Oiapoque, assunto que
só seria resolvido com o laudo arbitral de 1900 (“Questão do Amapá”). A
Espanha, com seu novo rei, agora da dinastia dos Bourbons (Filipe V, neto de
Luís XIV), continuava descontente com a existência de uma fortaleza lusa —
base de um possível ataque – bem em frente a Buenos Aires; e mais ainda —
agora, pura realidade, não remota hipótese – porque por ali passava um intenso
contrabando, especialmente da prata de Potosí. O controle do grande rio era,
ademais, um objetivo geopolítico (para usar um termo de hoje) incontornável.
Os espanhóis haviam assinado o acordo que devolvia Colônia, sim, mas o
governador de Buenos Aires interpretava as palavras “território e Colônia” do
seu texto como se toda a possessão portuguesa fosse contida no pequeno círculo
de um tiro de canhão dado do centro da fortaleza. Ao contrário de Portugal, que
interpretava “território e Colônia” como abrangendo toda a área do Uruguai
dos nossos dias.
Era o final do reinado de Luís XIV, e os tempos não estavam tão róseos
para a França. Ela continuava a ser, entretanto, a maior potência da Europa, e
o reinado do rei sol — modelo de tantos reis, em especial de D. João V — foi
considerado por futuros historiadores como um dos grandes períodos da
História. Não é sem razão que o século XVII é chamado por alguns Le siècle de
Louis XIV, para lembrar o título de uma célebre obra de Voltaire, talvez o mais
importante pensador da época. A língua de Molière, Racine, Corneille e La
Missão em Roma
Terminado o período parisiense, Gusmão volta a Lisboa, onde passa a
ser conhecido como intelectual e começa a ajudar Bartolomeu, que tinha tarefas
no paço real. Já no ano seguinte, o rei o nomeia para outra importante função
diplomática, esta na sede do catolicismo, ainda dominante na Europa.
Gusmão chegou a Roma em março de 1721 e lá ficaria até outubro
de 1728. Clemente XI (1700-20) havia morrido fazia pouco e o novo pontífice
era Inocêncio XIII (1721-24); seu sucessor seria Bento XIII (1724-30), para
mencionar os papas da estada do santista na cidade. Aproveite-se para dizer que
durante o longo reinado de D. João V houve um total de cinco: os três
mencionados e os que os sucederam, Clemente XII (1730-40) e Bento XIV
(1740-58). Não estão todos eles entre os mais poderosos pontífices e merecem,
por exemplo, apenas poucas linhas, e não particularmente elogiosas, na
prestigiada “Histoire des papes et du Vatican”, coordenada por Christopher
Hollis. Inclusive Bento XIV, um dos mais eruditos religiosos que ascenderam
ao trono de São Pedro. A maré era vazante, como explica o especialista
Ferdinand Maass: “Nenhum pontífice da época teve suficiente força para
defender seus direitos e suas possessões”. Não havia mais Papa capaz de obrigar
um rei a fazer penitência em Canossa (como fez Gregório VII com o imperador
*
Professor Auxiliar do Departamento de História, Estudos Políticos e Internacionais
da Universidade do Porto/Faculdade de Letras; Investigador integrado no CITCEM – Centro de
Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória” da Universidade do
Porto/Faculdade de Letras
E-mail: jribeiro@letras.up.pt
22
A troca de cônsules entre os dois países era algo que já vinha detrás,
estava prevista num dos artigos do tratado entre Portugal e os Estados Unidos,
assinado, em 1786, por John Adams e Thomas Jefferson, mas não pelo
embaixador português em Londres, Luís Pinto de Sousa Coutinho, por não ter
poderes para tal. Este acordo, contudo, nunca foi ratificado pelo gabinete de
Lisboa – na realidade, não existia nenhum acordo no respeitante ao nível da
representação diplomática. O governo português insistia em enviar para a
América do Norte um diplomata que o representasse e queria que o Congresso
nomeasse para Lisboa um de igual categoria.
Esta dificuldade dever-se-ia ao facto “de muitos americanos não
confiarem nos diplomatas e de alguns dos congressistas não quererem ter
representantes permanentes no estrangeiro” (Ribeiro, 1987, 365). Aliás, na
opinião de alguns dos Pais Fundadores, como George Washington, James
Madison e Alexander Hamilton os Estados Unidos não necessitavam de ter
mais do que cinco ou seis missões permanentes em países estrangeiros. As
outras potências, por seu lado, enviariam para a América diplomatas apenas
quando fosse necessário (Ribeiro, 1987, 365). Todavia, de acordo com Tiago
Moreira de Sá a razão para esta resistência era de política interna,
“nomeadamente a oposição a uma extensão do poder federal no quadro do
conflito dificilmente estabelecido entre os poderes da União, dos Estados e das
comunidades locais” (Sá, 2016, 39).
Nos inícios da última década do século XVIII, a jovem república tinha
apenas “quatro ministros e um encarregado de negócios na Europa” mais “dois
representantes pessoais” (Ribeiro, 1987, 365) de George Washington. A partir
de 1796 passaram a ter três ministros plenipotenciários em capitais do
Freire tem muito má opinião dos colonos que vão povoar os territórios
mais longínquos da América já que, embora os reconhecesse como aventureiros,
os descreve como gente “despojada de princípios” e “mais inclinada á perifidia,
do que jamais foram os mesmos indios”.
Além de tudo isto cometiam-se muitas outras arbitrariedades contra as
populações autóctones que poderiam ter consequências terríveis. Como
exemplo, menciona que nas fronteiras do estado da Georgia, milhões de acres
de terras pertencentes aos ameríndios tinham sido vendidas. Isto poderia levar
a uma guerra contra os antigos proprietários, ou até a um conflito com a
Espanha, pois os domínios deste país eram limítrofes dos territórios em questão
(Ribeiro, 1997, 398-399).
Conclusão
Cipriano Ribeiro Freire não é certamente hoje um dos nomes mais
conhecidos da História da Diplomacia Portuguesa. No entanto, foi o primeiro
diplomata nomeado pela corte de Lisboa para representar os interesses
portugueses nos recém-independentes Estados Unidos da América, onde parece
ter prestado um bom serviço. Senhor de uma vasta cultura, tinha já grande
experiência no campo da diplomacia quando empreendeu a sua viagem para a
então ainda pouco conhecida e longínqua América do Norte. Elemento fundador
da Academia de Ciências de Lisboa e membro das mais prestigiosas sociedades
de conhecimento de Londres, em Filadélfia conviveu com a elite intelectual e
política norte-americana, tendo a subida honra de ser um dos raros portugueses
que, até aos nossos dias, foi membro da prestigiosa American Philosophical
Society.
Toda esta bagagem intelectual reflete-se nos seus muitos, frequentes e
detalhados ofícios que enviava para o secretário de Estado dos Negócios
Estrangeiros e da Guerra, onde dá conta do ambiente e dos acontecimentos mais
relevantes da vida e política interna dos Estados Unidos, bem como de tudo
quanto se refere a Portugal. De facto, revela-se uma personalidade atenta aos
interesses do seu país e dos seus compatriotas, exercendo uma ação meritória e
humanitária, sobretudo no que diz respeito aos marinheiros portugueses, que
Bibliografia
(https://run.unl.pt/handle/10362/13889?mode=full)
KROM, Cynthia L., KROM Stephanie (2012). The Whiskey tax of 1791 and the
consequent insurrection: “A wicked and happy tumult”. Accounting Historian Journal,
40 (2), 109-110. Retrieved from (https://core.ac.uk/download/pdf/288025336.pdf)
(http://eventos.letras.up.pt/ivslbch/comunicacoes/62.pdf)
Sá, M.J.G. (1842). Elogio Historico do Ill.mo e Exmº. Senhor Cypriano Ribeiro Freire.
Lisboa, Academia Real das Sciencias. (http://purl.pt/34941)
Abreviaturas
*
Investigador do Centro de História da Universidade de Lisboa
E-mail: fbenvinda@campus.ul.pt
44
Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021
para a política externa russa. Era reconhecida a rivalidade comercial com
França no Levante, mas mais grave era a rivalidade com a Grã-Bretanha, que
Nicolau I temia que pudesse expandir-se para os Balcãs no caso de um
desmembramento do Império Otomano (Bushkovitch, 2012, p. 169).
Os revoltosos gregos estavam insatisfeitos com a manutenção do poder
do sultão sobre as suas comunidades. Além disso, o facto de serem cristãos
ortodoxos tornava-os potenciais aliados no aumento da influência russa
(Bushkovitch, 2012, p. 169-171).
A Rússia participou no conflito ao lado dos seus rivais, com o objetivo
de garantir a independência grega. Quando uma esquadra anglo-russa afundou
vasos turcos em Navarino em 1827, o Império Otomano declarou guerra. O
avanço russo realizou-se durante 1828-1829. O sultão viu-se obrigado a assinar
a paz em 12 de setembro de 1829, garantindo a independência da Grécia e as
autonomias da Sérvia, da Moldávia e da Valáquia (Bushkovitch, 2012, p. 169).
Em 1832, Nicolau I viu-se numa posição de defesa da manutenção do
Império Otomano. Nesse ano, o vice-rei do Egipto, Mohammed Ali (1769-1849)
ocupou parte da Síria e Anatólia. Reconhecendo a influência que poderia ganhar
no Império, o czar enviou tropas para o Estreito do Bósforo e para o Estreito
dos Dardanelos. Essa ação causou uma reação diplomática das grandes
potências, que levou o sultão e Mohammed Ali a assinarem o tratado de Unkiar
Skelessi em 8 de julho e 1833. O tratado incluía um artigo segundo o qual os
Estreitos eram fechados a vasos de guerra estrangeiros (Riasanovsky, 2000, p.
302). Este resultado aumentava a influência russa sobre o Mar Negro e permitia
a Nicolau I influir mais claramente na política otomana.
O imperador acreditava, de resto, na importância da manutenção das
monarquias europeias (Small, 2018, p. 17). Em 1848, depois de França ter
declarado a implantação da república e o ímpeto revolucionário se ter expandido
para Leste, o czar ajudou financeiramente a Áustria a combater revoltas
4. Conclusão
Em conclusão, embora Portugal não tenha participado militarmente na
Guerra da Crimeia, os contactos diplomáticos mantidos pelo Conde de Vila Real
demonstram que o exercício da neutralidade se pautava por uma atitude
cautelosa em relação à possibilidade de o país ser levado pela Grã-Bretanha a
participar na conflagração.
Fontes e bibliografia
Fontes
Conde de Vila Real. (1855, 12 de agosto). Ofício nº2. [Ofício do Conde de Vila Real
para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, a partir da Legação de Portugal em S.
Petersburgo]. Caixa Legação de Portugal em S. Petersburgo nº2 – 1843-1855
(PT/AHD/3/MNE-SE/CLPE/001/000268). Arquivo Histórico Diplomático,
Lisboa.
Conde de Vila Real. (1855, 16 de agosto). Ofício nº3. [Ofício do Conde de Vila Real
para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, a partir da Legação de Portugal em S.
Petersburgo]. Caixa Legação de Portugal em S. Petersburgo nº2 – 1843-1855
(PT/AHD/3/MNE-SE/CLPE/001/000268). Arquivo Histórico Diplomático,
Lisboa.
Conde de Vila Real. (1855, 12 de setembro). Ofício nº6. [Ofício do Conde de Vila Real
para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, a partir da Legação de Portugal em S.
Petersburgo]. Caixa Legação de Portugal em S. Petersburgo nº2 – 1843-1855
(PT/AHD/3/MNE-SE/CLPE/001/000268). Arquivo Histórico Diplomático,
Lisboa.
Conde de Vila Real. (1855, 16 de setembro). Ofício nº7. [Ofício do Conde de Vila Real
para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, a partir da Legação de Portugal em S.
Petersburgo]. Caixa Legação de Portugal em S. Petersburgo nº2 – 1843-1855
(PT/AHD/3/MNE-SE/CLPE/001/000268). Arquivo Histórico Diplomático,
Lisboa.
Conde de Vila Real. (1855, 2 de julho). [Carta do Conde de Vila Real para o Visconde
de Atouguia]. Caixa Legação de Portugal em S. Petersburgo nº2 – 1843-1855
(PT/AHD/3/MNE-SE/CLPE/001/000268). Arquivo Histórico Diplomático,
Lisboa.
Conde de Vila Real. (1855, 8 de julho). [Carta do Conde de Vila Real para o Visconde
de Atouguia]. Caixa Legação de Portugal em S. Petersburgo nº2 – 1843-1855
(PT/AHD/3/MNE-SE/CLPE/001/000268). Arquivo Histórico Diplomático,
Lisboa.
Edgerton, R. (2000). Death or glory – the Legacy of the Crimean War. Boulder,
Colorado: Westview Press
Esteves Pereira, J., & Rodrigues, G. (1915). Vila Real (D. José Luís de Sousa Botelho
Mourão e Vasconcelos, 1.º conde de). In Portugal - Dicionário Histórico, Corográfico,
Heráldico, Biográfico, Bibliográfico, Numismático e Artístico, 7 (pp. 562-563). Lisboa:
João Romano Torres.
Palmer, A. (1987). The Crimean War (2ª ed.). Nova Iorque: Dorset Press.
Ziegler, C. (2009). The history of Russia. Santa Barbara, California: Greenwood Press.
1. Introdução
A história da evolução do direito do conflito armado sempre se centrou
na humanização do mesmo, daí o conjunto das normas que o regulam ser hoje
designado de Direito Internacional Humanitário (DIH). O direito da guerra
moderno emergiu durante o Iluminismo, tendo sido promovido pelos escritos
de teóricos como Hugo Grócio e Emer de Vattel. Este último discorria já sobre
responsabilidade individual por violações das leis da guerra, e sobre a poupança
de soldados inimigos, na sua magnus opus “Le Droit des Gens de 1758” (Laird &
Witt, 2019). Foi, contudo, no século XIX que este ramo do Direito
Internacional conheceu o seu primeiro grande desenvolvimento, através de
inúmeros esforços multilaterais de codificação. Anteriormente, as normas
relevantes figuravam somente em tratados bilaterais e no direito interno dos
1
Esta Convenção, compreendendo 10 artigos, foi subsequentemente expandida em
várias Conferências Diplomáticas nos anos de 1906, 1929 e 1949.
67
Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021
o Lieber Code, albergaram normas consuetudinárias durante séculos,
constituindo, efetivamente, prática atribuível ao Estados.
Foi, portanto, adequado que o século XIX, no qual se verificou um
crescente reconhecimento e positivação das normas costumeiras de DIH, tenha
concluído, em 1899, com o primeiro tratado multilateral no qual estas regras
foram inseridas: a Convenção de Haia respeitante às Leis e Costumes de Guerra
em Terra (Haia II 1899)2. Foi precisamente no preâmbulo desta convenção que
a famosa Cláusula de Martens surgiu, ditando que:
2
A Convenção homónima de 1907 que a sucedeu codificou e exprimiu direito
costumeiro (Finch, 1943), incorporando o grosso dos artigos da sua antecessora sem mudanças
significativas (Bryant, 2021).
68
3
A proposta de Artigo Inglesa : “Nothing in this chapter shall be considered as
tending to lessen or abolish the right belonging to the population of an invaded country to
fulfill its duty of offering by all lawful means, the most energetic patriotic resistance against
the invaders”. Küntzli desistiu da sua proposta, optando por apoiar os esforços de Ardagh. Esta,
no entanto, estabelecia que “No acts of retaliation shall be exercised against the population of
the occupied territory for having openly taken up arms against the invader”. (Scott, 1920,
76
p.550)
3. Compreendendo a Discrepância
A linguagem utilizada por Martens não terá tido como intenção fincar
um desenvolvimento progressista do DIH, uma vez que o seu objetivo se
revelou contrário à expansão das normas esboçadas em 1874. Considerações
sobre os efeitos legais da Cláusula por si proposta terão sido secundárias face à
prossecução dos objetivos alcançados pela sua linguagem imprecisa e
conciliante. Com efeito, Jean Pictet lamentou a tendência observada em
4
Acresce que a Cláusula foi inserida no Preâmbulo da Convenção de Haia II, não
tendo feito parte das regulações a esta anexadas.
79
Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021
humano enquanto foco central dos princípios do Direito Internacional, isto é,
estabelecendo a moldura dentro da qual esta clarificação é operável. Destarte, a
Cláusula predispõe naturalmente para um futuro que desconhece, sujeitando os
princípios de Direito Internacional às “leis da humanidade” que, não sendo um
conceito legal na altura da sua introdução (United Nations War Crimes
Commission, 2006), devem ser entendidas principalmente como reflexão dos
sentimentos morais da consciência da Humanidade, à semelhança da sua
contraparte, “as exigências da consciência pública”. A Cláusula encontra-se,
assim, dependente dos tempos que a sucedem, e tal explica que os impulsos
humanitários que permearam a evolução do DIH no Século XX se tenham
servido desta para justificar evoluções normativas. Caso o Direito Internacional
tivesse permanecido centrado na larga consagração de soberania estatal
parcamente constrangida legal e institucionalmente, poder-se-ia conjeturar que
a Cláusula de Martens não seria hoje mais do que uma linguagem preambular
edificante, mas ineficaz juridicamente, seguindo consequentemente os desígnios
do seu criador e não dos seus futuros interpretadores.
Independentemente das intenções de Martens quanto à sua criação, a
verdade é que a sua introdução num documento legal amplamente ratificado
concedeu à Cláusula uma base legal suficiente para que, mais tarde, e através de
avanços e clarificações, consequências e normas legais mais precisas pudessem
ser derivadas da sua linguagem. Estes avanços dependeriam sempre dos
conteúdos da “moral internacional”, uma vez que, tal como Percy E. Corbett
explica, “whatever is considered ‘just’ in the sense of international morality has
at least a tendency of becoming international ‘law’” (Corbett in Bassiouni, 2011,
p.316). De facto, Keenan e Brown, comentando a Carta do Tribunal Militar
Internacional de Nuremberga, defendem uma posição semelhante ao
argumentar que “the international moral order must be regarded as the cause,
not the effect, of positive law” (Keenan & Brown in Bassiouni, 2011, p.316). Foi
4. Conclusão
Em suma, a Cláusula de Martens, com a sua linguagem moralizadora,
lançou o mote para o que seria o princípio orientador do desenvolvimento e
codificação do DIH no século seguinte: a Humanidade enquanto principal
interesse protegido pelas suas normas, e a sujeição da necessidade militar aos
seus imperativos. A pessoa humana é colocada no centro do desenvolvimento
das regras do conflito armado e é afirmada como portadora de direitos que se
sobrepõem à força bruta exercida pelos Estados Soberanos e atores não estatais.
O facto de Martens ter proposto a sua Cláusula com intuitos marcadamente
belicosos sob uma pretensão humanitária possibilitou, em consequência da sua
articulação, o seu desenvolvimento posterior numa direção manifestamente
contrária às intenções originais do seu proponente. Hoje o diplomata do
Império Russo é um household name do Direito Internacional, reconhecido como
um verdadeiro humanitário. Mas tal não seria possível em razão dos objetivos
por si almejados com a introdução da sua Cláusula homónima, mas sim em
consequência das sucessivas interpretações que a sua linguagem vaga e
humanitária propiciou. Inegavelmente, a Cláusula espelha ainda hoje o espírito
que inspira o DIH.
Bibliografia
Cassese, A. (2000). The Martens Clause: half a loaf or simply pie in the sky?. European
Journal Of International Law, 11(1), 187-216.
Cassese, A. (2008). The Human Dimension of International Law. Nova Iorque: Oxford
University Press.
Dubler SC, R., & Kalyk, M. (2018). Crimes Against Humanity in the 21st Century.
Boston: Brill Nijhoff.
Giladi, R. (2014). The Enactment of Irony: Reflections on the Origins of the Martens
Clause. European Journal Of International Law, 25(3), 847-869.
Keefer, S. (2016). The Law of Nations and Britain's Quest for Naval Security (pp. 63-
67). Gewerbestrasse: Palgrave Macmillan.
Laird, J., & Witt, J. (2019). Inventing the war crime: An internal theory. Virginia
Journal Of International Law, 59(3), 60-64.
Scott, J. (1920). The proceedings of the Hague peace conferences. New York: Oxford
University Press.
Sellars, K. (2013). 'Crimes against peace' and international law. Cambridge: Cambridge
University Press.
United Nations War Crimes Commission. (2006). History of the United Nations
War Crimes Commission and the development of the laws of war. Buffalo, N.Y.:
William S. Hein & Co.
William S. Hein & Co. (2006). History of the United Nations War Crimes
Commission and the development of the laws of war. Buffalo, N.Y.
Investigadora do CH-UL. Doutoranda em História Contemporânea na FLUL. Mestre
em História Contemporânea com a Dissertação “A Sociedade das Nações: Europa, Portugal e
Agricultura”. Estagiária do Arquivo / Biblioteca do Instituto Diplomático do MNE em 2017.
E-mail: soraiamilenecarvalho@campus.ul.pt
84
6. Conclusão
Fontes e Bibliografia
CHAM, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, FCSH, Universidade NOVA de
Lisboa
106
Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021
Apesar do desfasamento temporal no exercício de funções, César de
Sousa Mendes e Antero Carreiro de Freitas partilham várias circunstâncias
enquanto Encarregado de Negócio no Japão1. A primeira, e motivo que
despertou o interesse particular por estes dois diplomatas, é o facto de ambos
assumirem a função por um período mais alargado, para lá do momento de
transição entre a partida de um Ministro e a chegada do seu sucessor, sendo
que, aspeto não menor, esses períodos coincidiram com momentos
particularmente sensíveis da política internacional: Sousa Mendes esteve em
missão durante a Primeira Grande Guerra, enquanto Carreiro de Freitas, no
seu segundo momento em funções no Japão, assistiu à marcha da segunda
guerra sino-nipónica (1937) e ao adensar de uma conjuntura internacional
caracterizada por uma enorme tensão, prelúdio da Guerra do Pacífico (1941-
1945). Além disso, desde o estabelecimento da Legação em 1903 que Portugal
se fazia representar pela presença de um Ministro Plenipotenciário, regra geral
residente2. A transferência da sua administração para um Encarregado de
Negócios era por isso uma medida de exceção. Aliás, durante a sua primeira
estadia no Japão, Antero Carreiro de Freitas coincidiu com o Ministro
Plenipotenciário José Costa Carneiro (1925-1929). É de salientar que o Japão
não era apenas um território geograficamente longínquo. A comunicação com
Lisboa pautava-se pela irregularidade e por uma lentidão que parecia
acompanhar a distância, aumentando a responsabilidade dos representantes
diplomáticos. Além disso, sempre foi uma missão que contou com um número
exíguo de funcionários, tornando as exigências da função extenuantes. Assim o
exprimia Antero Carreiro de Freitas, em 1938, com eloquência: “O Chefe desta
1
Informações retiradas do Processo Individual de César de Sousa Mendes e Antero
Carreiro de Freitas, Arquivo Histórico Diplomático – Ministério dos Negócios Estrangeiros
(AHD-MNE).
2
Fernão Botto Machado foi uma exceção. Desembarca no Japão em 1919, em 1921
abandona o posto por motivos de saúde, e nunca chega a regressar nem é substituído até à data
da sua morte, em 1924. AHD-MNE, Processo Individual Fernão Botto Machado. 107
3
AHD-MNE, Processo Individual. Tóquio, 2.07.1938.
108
Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021
hoje não é já o noviço daquela civilização: do discípulo aplicado e inteligente
vai-se formando gradualmente o mestre autorizado, cujas lições podem já hoje
ser com vantagem aproveitadas”4. Cerca de três décadas volvidas, Antero
Carreiro de Freitas, num relatório que redigia da Europa, já depois da sua
partida do Japão resumia: “O Japão, assume nesse curto período de cinquenta
anos o papel de uma das mais agressivas, entre as Nações imperialistas do
mundo (….) Forçado a abandonar esse isolamento medieval em 1854 pelos
navios do Almirante Perry, depressa, porém, se familiarizou com o progresso
técnico das nações europeias, e, infelizmente para ele, com as ideias imperialistas
que são apanágio de algumas das grandes potências com quem entrou em
contacto”5.
Os registos citados de Sousa Mendes e de Carreia de Freitas, de 1914
e 1940, balizam o período da evolução imperialista do Japão. As informações e
os relatórios que redigiram durante o exercício de funções são por isso um
importante instrumento para avaliar os ideais e conceitos que conduziram ao
imperialismo nipónico, ao mesmo tempo que nos transmitem a avaliação
ocidental das vicissitudes nipónicas. Sousa Mendes e Carreiro de Freitas foram
homens do seu tempo.
Em 1914 o Japão apresentava-se, sem dúvida, como uma potência
económica, modernizada, equiparável às potências ocidentais. Mas não só. A
preocupação do Japão com a defesa nacional e em garantir a liberdade de ação
fora da esfera de qualquer intervenção estrangeira tinham servido de estímulo
à militarização. Além disso, o Japão percecionara a importância em prosseguir
uma política imperialista para a sua aceitação internacional enquanto nação. Em
1894 iniciara o conflito com a China pela hegemonia na Coreia (1894-1895); dez
4
AHD-MNE, Processo individual.
5
AHD-MNE, Antero Carreiro de Freitas, Relatório Formas de Imperialismo
Japonês, 1943.
109
6
AHD-MNE, Cx. 299, ofício 22 A, Yokohama, 20 de outubro de 1916; ofício 3A,
Yokohama, 10 de fevereiro de 1917.
7
AHD-MNE, Cx. 299, ofício 3A, Yokohama, 10 de fevereiro de 1917.
8
AHD-MNE, Cx. 299, ofício 11 A de 30 de março de 1915.
9
AHD-MNE, Cx. 299, Ofício 28 A, Tóquio, 4 de dezembro de 1917.
111
10
César de Sousa Mendes, Política Japonesa. Imperialismo e Democracia, Coimbra,
Coimbra Editora, s/d, p.39
11
AHD-MNE, Cx. 299, Ofício 2 A, Tóquio, 30 de janeiro 1915.
12
Commentaries on the Constitution of Japan by Count Hirobumi Ito, traduzida por
Ito, Miyoji, Tokyo, 1889.
112
13
AHD-MNE, Cx. 299, Ofício 2 A, Tóquio, 30 de janeiro 1915.
14
AHD-MNE, Cx. 299, Ofício nº 25A, Tóquio, 15 de junho de 1915; Ofício 35A,
Tóquio, 25 de agosto de 1915.
15
AHD-MNE, Cx. 299, Ofício 8A, Tóquio, 24 de fevereiro 1915.
16
AHD-MNE, Cx. 299, Ofício 22A, Yokohama, 20 de outubro de 1916.
113
17
AHD-MNE, Cx. 299, Ofício 4D, Tóquio, 21 de agosto de 1917.
18
César de Sousa Mendes, Política Japonesa. Imperialismo e Democracia, Coimbra,
Coimbra Editora, s/d.
114
19
AHD-MNE, Ofício de Antero Carreiro de Freitas, Tóquio, 22 outubro 1937.
S11.1.E15.P1 69930.
20
AHD-MNE, Ofício de Antero Carreiro de Freitas, Tóquio, 08 outubro de 1938.
S11.1.E15.P1 69930.
21
Veja-se, a título exemplificativo, os ofícios de Antero Carreiro de Freitas de Tóquio
a 8 dezembro de 1937 e de 22 maio de1938. S11.1.E15.P1 69930.
22
Sobre a ação destas sociedades patrióticas veja-se, por exemplo, ofício de Antero
Carreiro de Freitas de Tóquio, 10 de novembro de 1937. S11.1.E15.P1 69930.
23
AHD-MNE, Ofício de Antero Carreiro de Freitas, Tóquio, 20 de outubro de 1937.
115
S11.1.E15.P1 69930.
24
AHD-MNE, Ofício de Antero Carreiro de Freitas, Tóquio, 26 de outubro de 1938 e
27 de outubro 1938. S11.1.E15.P1 69930.
25
AHD-MNE, Ofício de Antero Carreiro de Freitas, Tóquio, 16 de outubro de 1939.
S11.1.E15.P1 69930.
26
AHD-MNE, Ofício de Antero Carreiro de Freitas, Tóquio, 02 de novembro de 1938.
S11.1.E15.P1 69930.
27
AHD-MNE Antero Carreiro de Freitas, Relatório Formas do Imperialismo Japonês,
1943, p.32.
28
AHD-MNE, Ofício de Antero Carreiro de Freitas, Tóquio,06 de novembro de 1939.
S11.1.E15.P1 69930.
29
HD-MNE, Antero Carreiro de Freitas, Relatório O Japão e o Problema do Pacífico, 116
1930, p.31 e p.36.
30
Idem.
31
AHD-MNE, Ofício de Antero Carreiro de Freitas, Tóquio, 19 de junho de 1939.
S11.1.E15.P4. 69980.
117
Bibliografia crítica
Peattie, Mark R., “The Japanese Colonial Empire” in Cambridge History of Japan.
The Twentieth Century, vol 6, ed. Peter Duus, (217-270), 2008.
Tipton, Elise Mark, Modern Japan. A Social and Political History, Nissan Institute –
Routledge Japanese Studies Series, 2016.
32
AHD-MNE, Ofício de Antero Carreiro de Freitas, Tóquio, 10 de dezembro de 1937.
118
Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021
João Guimarães Rosa e Aracy de Carvalho:
diplomacia, amor e literatura
Kamile Moreira Castro 33*
*
Magistrada Eleitoral Titular e Ouvidora Substituta do Tribunal Regional Eleitoral
do Estado do Ceará - TRE/CE. Doutoranda em Direito pela UFPE. Especialista em Direito e
Processo Eleitoral pela ESMEC-PUC/MG. Especialista em Direito Processual Penal pela
UNIFOR. Mestre em Direito pela UNINOVE e em Ciências Políticas pela Universidade de
Lisboa/ISCSP. Professora. Advogada. E-mail: castrokamilemoreira@gmail.com
1
João Guimarães Rosa morreu em 1967, com 59 anos. Aracy faleceu em 2011, com
102 anos. 119
2
Não entramos aqui na discussão da possível equivalência entre “Holocausto”,
“Shoa” ou “Solução Final”. Seja realçado, porém, o fato de que, além de judeus, outros foram
atingidos por esta solução de perseguição e extermínio, como ciganos, polacos, comunistas,
homossexuais, prisioneiros de guerra, Testemunhas de Jeová e deficientes físicos e mentais,
entre outros.
121
3
Mais tarde disse numa entrevista: “Eu falo: português, alemão, francês, inglês,
espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com
o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do
árabe, do sânscrito, do lituano, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do checo, do
finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras.
124
4
O outro brasileiro, que tem essa homenagem, é Souza Dantas, embaixador do Brasil
em França, no início da II Guerra Mundial.
5
A língua tupi era falada pelas tribos de povos tupis que habitavam a maior parte
do litoral do Brasil no século XVI.
126
6
Quem muito contribuiu para o conhecimento da ação de Aracy foi a sua amiga,
Margarethe Levy, cuja vida fora salva por ela em Hamburgo.
7
Esta homenagem é um reconhecimento que o Estado de Israel presta aos não judeus
que auxiliaram judeus a escapar do genocídio. O lugar também é conhecido como Alameda dos
Justos e Aracy Guimarães Rosa é a única funcionária consular (sem ser embaixador ou cônsul)
cujo nome está presente.
129
8
Elza Miné, da USP, e Neuma Cavalcante, da Universidade Federal do Ceará (UFC),
estudaram as cartas, ainda inéditas (Miné, Neuma, 2008).
130
9
Expressão atribuída a Públio Terêncio (cerca de 185 a.C – 159 a.C.), dramaturgo e
poeta romano, autor de várias comédias. Tradução: Sou humano, nada do que é humano me é
estranho.
131
Brito, Ronaldo Correia de (2005). Livro dos homens. São Paulo: Cosac Naify.
Brum, Eliane (2009). “O último desejo de Guimarães Rosa”. In: Revista Época, 18 set.
2009. Disponível em: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,ERT12760-
15220-12760-3934,00.html. Acesso em abril de 2021.
Camargo, Cláudio; Studart, Hugo (2008). “Uma heroína quase esquecida”. In: ISTOÉ.
São Paulo: Três Editorial Ltda., n.º 1994, ano 31, 23 jan, p. 34-37.
Hobsbawm, Eric (1997). A era dos extremos: o breve século XX 1914 1991. São Paulo:
Companhia das Letras.
Lorenz, Günter (1983). “Diálogo com Guimarães Rosa”. In: Coutinho, Eduardo F.
(Org.). Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. p. 62-100.
Napolitano, Marcos (2014). 1964: História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo:
Editora Contexto.
Pandolfi, Dulce (2003). “Os anos 30: as incertezas do regime”. In Ferreira, Jorge e
Delgado, Lucília (orgs.). O Brasil republicano. Vol. 2. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira.
Paulo Neto, José (2014). Pequena história da ditadura brasileira (1964-1985). São
Paulo: Editora Cortez.
Rosa, João Guimarães (2019). Grande Sertão: Veredas. Lisboa: Companhia das letras.
Schpun, Mônica Raïsa (2011). Justa. Aracy de Carvalho e o resgate de judeus: trocando
a Alemanha nazista pelo Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Silva, Hélio (1975). O Estado Novo: 1937-1938. São Paulo: Ed. Três.
*
Diplomata da Polónia
135
Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021
Ignacy Mościcki decidiram sair do país e atravessar a fronteira com a Roménia.
Contaram com a possibilidade de continuar as funções no exílio em França, um
país aliado. Todavia os romenos, sucumbindo às pressões e ameaças alemãs,
internaram os líderes polacos, não autorizando a sua saída para Oeste. Face à
situação, o Presidente Mościcki renunciou ao seu cargo e, ao abrigo das
disposições da Constituição, nomeou o seu substituto na pessoa de Władysław
Raczkiewicz, que permanecia em França. O Governo demitiu-se e o novo
Presidente designou o Conselho de Ministros em Paris sob a liderança do
General Władysław Sikorski. O Ministro dos Negócios Estrangeiros, Józef
Beck, internado na Roménia, foi sucedido por August Zaleski. Apesar da
derrota, a Polónia sempre manteve a continuidade do sentido de Estado e nunca
deixou de existir como entidade da lei internacional, enquanto os mais altos
cargos do país foram transferidos aos novos membros de forma constitucional.
No Governo criado em França, a posição do Ministério dos Negócios
Estrangeiros tornou-se única. O seu papel não foi determinado apenas pela
situação política em que se encontrava a Polónia na altura invadida. O
Ministério dos Negócios Estrangeiros era a ferramenta principal de realização
dos objetivos políticos do governo, no caso do primeiro governo – a reconquista
da Polónia livre e soberana. O Ministro Zaleski manteve à sua disposição um
potencial enorme do departamento dos tempos antes da guerra, nomeadamente
diplomatas que exerciam as suas funções no estrangeiro e uma rede de missões
em todos os continentes. Antes da eclosão da guerra o Ministério tutelava 10
embaixadas, 20 legações, 24 consulados gerais, 42 consulados e cerca de 128
consulados honorários. Naturalmente com o desenvolvimento da situação
militar e política estes números sofreram alterações. As missões que se
encontravam nos países conquistados ou dominados pelo III Reich e pela União
Soviética cessavam as suas funções, sendo que ao mesmo tempo eram criadas
novas missões nos países da coligação anti-hitleriana em vários países da
1
Telegrama nº 283 de 9.10.1939; Politisches Archiv, Archiv des Auswärtigen
Amtes, Berlin; Akten des Staatssekretärs - Krieg 1939, V, 143.
2
Drywa, D. (2020), Legação da República da Polónia em Berna, História não
mencionada. Ministério da Cultura e do Património Nacional
137
3
Atos da legação da República da Polónia em Berna nos anos 1939-1945, Arquivo
de Atos Novo, Varsóvia, ref. 317.
141
Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021
polaca atravessou a fronteira suíça no dia 19 de junho de 1940 e ficou internada.
Ładoś e a legação em Berna organizava para cerca de 12 mil soldados e oficiais,
atividades educacionais e formações profissionais durante todo o período da
Guerra.
Era por Berna que transitavam informações e dinheiro destinados para
o Comité de Cidadãos que cuidava dos refugiados polacos na Hungria que, à
data de setembro de 1939 eram cerca de 50 mil cidadãos naquele país. Em março
de 1944 continuavam cerca de 6 mil pessoas. A maioria era constituída por
judeus que conseguiram fugir da Polónia sob ocupação. Os telegramas e meios
financeiros provenientes das verbas do governo polaco em Londres e das
instituições judaicas mundiais eram transmitidos pela legação em Berna aos
responsáveis pelos trabalhos das organizações polacas na Hungria.
Durante as operações militares em setembro de 1939, cerca de 20 mil
civis polacos e cerca de 30 mil soldados do Exército Polaco encontravam-se na
Roménia. Foram detidos em vários campos para internados e até o ano de 1940
permaneciam sob tutela da Embaixada polaca em Bucareste. Quando esta teve
de ser encerrada sob pressão alemã, as informações e meios financeiros
destinados para os cidadãos polacos passaram a ser enviados da legação polaca
em Berna por intermédio da legação suíça na Roménia e através dos canais da
Cruz Vermelha Polaca. O mesmo papel foi desempenhado pela legação de Ładoś
perante os refugiados polacos permanecentes no território jugoslavo. Aqui,
após o ataque da Alemanha e o encerramento da legação polaca em Belgrado no
ano de 1941, a missão polaca na Suíça passou a ser um intermediário na ação de
ajuda polaca destinada aos Balcãs, em cooperação com o supramencionado
Comité de Cidadãos na Hungria.
A ação de auxílio aos cidadãos polacos na França constituiu um vasto
capítulo da história da missão polaca na Suíça. Após a derrota de França no
seguimento do confronto com a Alemanha em maio e junho de 1940, a
4
Kumoch, J. Grupo de Berna – diplomatas da República da Polónia ao auxílio dos
Judeus. Discurso do Embaixador da República da Polónia na Suíça dr. Jakub Kumoch do dia 4
de fevereiro de 2018. No Museu da Memória Shoah em Paris, Revista Diplomática Polaca 2
(73), 2018., ref. à vasta bibliografia, https://docplayer.pl/109300500-Grupa-bernenska-
dyplomaci-rzeczypospolitej-polskiej-z-pomoca-zydom.html; Potocki, M., Parafianowicz, Z.,
Polish Envoy in Bern saved hundreds of Jews from the Holocaust, Gazeta Prawna, 8.8.2017,
http://www.gazetaprawna.pl/artykuly/1063124,polish-envoy-in-bern-saved-hundreds-of-jews- 146
from-the-holocaust.html
“Grupo de Ładoś”
Sobre cada um dos membros do grupo que atribuía vistos aos
passaportes recaíam várias responsabilidades. Ładoś e Ryniewicz eram os
únicos do grupo que usufruíam de imunidade diplomática. Ładoś, na qualidade
do chefe de missão, detinha responsabilidades pelas atividades dos seus
funcionários. Ele aceitava, organizava e cobria de proteção diplomática toda a
operação ilegal de emissão de passaportes. Em virtude do seu cargo, mantinha
contatos com as autoridades suíças e os demais representantes da Confederação,
governo e os seus departamentos (ministérios), sendo da primeira linha o
departamento político, dos assuntos internos, justiça e da polícia. Informava,
sobre os progressos da operação, o governo polaco e o MNE em Londres e
colaborava com os principais representantes das comunidades judaicas nos
Estados Unidos, que por sua vez providenciavam meios para subornar os
cônsules sul-americanos. Tomou uma medida sem precedentes de disponibilizar
os meios de comunicação da legação para as necessidades das organizações
judaicas, bem como de lhes permitir a utilização de códigos criptográficos
diplomáticos polacos na sua correspondência, para assim poderem manter o
contato com os Estados Unidos. Quando em 1943 a polícia suíça detetou que a
missão polaca violava o protocolo diplomático, conseguiu de forma eficaz
encobrir o mesmo e levar ao arquivamento do processo. Já após o termo da
atividade ilegal conexa à produção de passaportes, no Verão de 1944 e a pedido
do governo polaco, tentou obter uma intervenção das autoridades suíças junto
5
Relatório de interrogatório de J.Kühl 18.01.1943, este e os outros atos do
processo em Schweizerisches Bundesarchiv, nº. B.23.22.Parag-OV, C 16/2032, 4320 (B)
1990/266; escolha online http://passportsforlife.pl
148
6
McKinnon, M., He should be as well known as Schindler’: Documents reveal
Canadian citizen Julius Kuhl as Holocaust hero, www.theglobeandmail.com, August 7, 2017.
150
Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021
em Berna o Relico (Relief Committee), um comité de auxílio à população judaica
afetada pela guerra. No início de 1942, após conversas com Ryniewicz e Rokicki,
Silberschein a atuar em nome da Relico tomou medidas em prol de limitar o
mercado negro de passaportes sul-americanos para os judeus em risco de vida
na Polónia ocupada. Comprava passaportes aos cônsules honorários do Peru,
Honduras e Haiti, e participava na transferência de dinheiro a favor do cônsul
honorário do Paraguai. Quando em 1943 a polícia suíça descobriu a operação de
falsificação dos passaportes, Silberschein ficou por algum tempo detido. No
interrogatório prestou declarações de como foi envolvido na operação de
falsificação de passaportes por Ryniewicz e Rokicki. Na altura, informou as
autoridades suíças que as verbas para a aquisição dos passaportes provinham de
várias fontes, entre outras, do Comité Palestiniano em Jerusalém, Congresso
Mundial Judaico de Nova Iorque, outras organizações judaicas de Nova Iorque
e Istambul, bem como de particulares dos Estados Unidos e da Suíça.
Stefan Ryniewicz atuou de forma eficaz em sua defesa perante as
autoridades suíças e por conseguinte Silberschein não sofreu nenhumas
consequências. Após o fim da guerra ficou em Genebra. Faleceu em dezembro
de 1951.
Os dados pessoais que configuravam nos documentos constituíram um
elemento indispensável na operação de passaportes. A aquisição desses dados
era da responsabilidade de Chaim Eiss, comerciante polaco-judeu de Zurique. O
membro mais velho do “grupo de Ładoś” nasceu no Sul da Polónia, em Ustrzyki
Dolne, em 1876. Desde 1900 que vivia na Suíça. Em 1912 pertenceu aos
fundadores da organização internacional dos Judeus ortodoxos Agudat Israel,
que funcionava como partido político em vários países, entre eles na Polónia.
Após a eclosão da guerra, utilizando os seus contatos nas comunidades
ortodoxas, Eiss conseguiu montar uma rede de correspondência clandestina
com guetos que se encontravam no território da Polónia sob ocupação. Isto
7
Kumoch, J., The Polish Holocaust hero you’ve never heard of, www.
timesofisrael.com, May 2, 2019.
8
The Ładoś List. (2020) Instituto de Pilecki,
https://instytutpileckiego.pl/public/upload/articles_files/The%20Lados%20List%202020_01%
20p53_152.pdf
154
* * *
Ao liderar a legação em Berna nos anos 1940-1954 Aleksander Ładoś
escreveu uma das mais louváveis páginas na história da diplomacia polaca nos
tempos da II Guerra Mundial. Ao coordenar oficialmente as atividades da
missão que englobavam no seu âmbito inúmeros países da Europa e fora da
Europa, liderou ao mesmo tempo a ação que excedia os quadros legais da
diplomacia. Atuando em nome de valores superiores, tomou, junto com os seus
colaboradores, medidas conspiratórias de uma ação que, num país ameaçado
pelas sanções alemãs, poderia ter consequências dramáticas, tanto legais, como
políticas, pessoais e profissionais. Em janeiro de 1945 Agudat Israel enviou para
Manfred Lachs, conceituado jurista polaco, futuro Presidente do Tribunal
Internacional de Justiça em Haia, uma carta de agradecimento pela atitude dos
diplomatas polacos. No documento consta uma frase que de forma sucinta
captou o significado do “grupo de Ładoś”:
“Without their co-operation this work which has been the means
of rescuing many hundreds of Polish Jews, would not have been
achieved.”9
9
H. Goodman do M. Lachsa, 2.01.1945, Atos da legação da República da Polónia
em Berna nos anos 1939-1945, Arquivo de Atos Novos, Varsóvia, AAN_2_495_0_562_0004.
155
Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021
Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 156
Tapani Brotherus: o diplomata finlandês que
desafiou o regime de Pinochet1
Joana Araújo Lopes*
1. Introdução
1
"Especial agradecimento ao Embaixador do Chile na Finlândia, Rodrigo Olsen,
pela amável disponibilidade em responder ao nosso pedido; ao Ministério dos Negócios
Estrangeiros da Finlândia pelos esclarecimentos prestados; e à Universidade de Helsínquia,
nomeadamente a Maija Roitto, Assistente Executiva da Reitora, e a Pia Vuorikoski,
Historiadora, pela amável disponibilidade em ratificar questões históricas.
*
Doutoranda em História, Estudos de Segurança e Defesa no Iscte e bolseira da
FCT. Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Nova de Lisboa
157
(2017). Os seus principais interesses de investigação incidem sobre a segurança internacional,
o terrorismo, o contraterrorismo e a diplomacia.
2
I Duque de Palmela (1781-1850) - Nascido Pedro de Sousa Holstein, foi Ministro
Plenipotenciário no Congresso de Viena (1814-1815). “Iniciou a sua carreira diplomática em
1802, como Conselheiro da Embaixada em Roma”. O seu nome “surge associado a algumas
rebeliões políticas”, tendo sido preso em 1824 “por apoiar as revoltas da Vila-Francada e da
Abrilada” (Portal Diplomático, s/data; AR, s/data), as contrarrevoluções da Revolução Liberal
de 1820. 158
3
A Circular n.º 14 - enviada aos postos no estrangeiro a 11 novembro 1939 - tinha
como finalidade “prevenir quanto possível abusos e práticas de facilidades que a PVDE
[Polícia de Vigilância e Defesa do Estado] entendesse inconvenientes ou perigosas” (iD, 2013).
Estabelece os casos excluídos da concessão de vistos sem aprovação prévia da PVDE,
nomeadamente os perseguidos pelo regime nazi, tais como polacos, judeus, russos e apátridas
(ANTT, 2021; iD, 2013).
4
Segundo a Embaixadora Manuela Franco (2018) “Teixeira Branquinho não está
nomeado como Justo” por “falta dos necessários documentos”. Porém a documentação
diplomática portuguesa atesta (…) que a sua ação [em 1944] foi absolutamente crucial”. Desde
2015, o Yad Vashem conta com o nome de quatro “Justos” portugueses: os diplomatas
Aristides e Sampaio Garrido; o emigrante português em França, José Brito Mendes; e o Padre
159
Joaquim Carreira, vice-reitor e reitor do Colégio Pontifício Português de Roma (Coelho, 2015).
Outros, não incluídos, também tiveram um papel importante como José Augusto Magalhães,
Ministro Plenipotenciário em Marselha.
5
“Os diplomatas portugueses terão salvado entre 60.000 a 80.000 refugiados do
regime nazi, maioritariamente judeus, durante o período da II Guerra Mundial, estimou a
historiadora Irene Flunser Pimentel em entrevista à agência Lusa.” (Lusa, 2020a).
6
A détente caracteriza-se pela distensão nas relações entre as superpotências,
através de um conjunto de negociações para a redução de armas nucleares e a melhoria da
comunicação diplomática. A data do seu início é imprecisa. Alguns autores, como Maurice
Vaïsse, marcam o seu começo em 1962, ano da Crise dos Mísseis de Cuba; outros, como Nick
Bisley, assinalam-no em 1969, ano da subida de Willy Brandt ao poder na República Federal
da Alemanha (RFA). A ostpolitik designa o nome da política externa de Brandt para os países
de Europa Leste, que visava promover a cooperação com a RFA, facilitando o caminho à 161
reunificação da Alemanha, concretizada em 1990.
7
“Military leaders who carried out the assassinations and mass murders looked to
the United States for technical assistance and strategic leadership” (Dinges, 2004, p. 16).
163
Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021
A nível interno, salientam-se as graves violações dos direitos humanos.
Milhares de indivíduos foram executados, torturados, forçados ao exílio e
outros dados como “desaparecidos”. Segundo a Comisión Presidencial Asesora
para la Calificación de Detenidos Desaparecidos, Ejecutados Políticos y
Víctimas de Prisión Política y Tortura (Comisión Valech)8 (2011), estima-se que
o regime de Pinochet tenha vitimado 32.452 pessoas9. Um estudo de Freire et
al (2017, pp. 9-10) atesta que “a maioria dos atos de violência ocorreu nos
primeiros dois meses após o golpe de Estado”, tendo sido perpetrados pela
“Caravana da Morte” (Caravana de la Muerte), um grupo de paramilitares
criado em 1973 para perseguir, torturar e executar os opositores do regime. Só
no mês de outubro contabilizaram-se 504 incidentes e 317 vítimas mortais. Com
o mesmo propósito, de deter e torturar dissidentes, Pinochet edificou “centros
de detenção”, como ilustra o caso paradigmático do Estádio Nacional do Chile,
classificado como um “campo de concentração e tortura” pela Biblioteca
Nacional chilena: “Os detidos encontravam-se amontoados, sendo sujeitos a
choques elétricos e torturas psicológicas” (Memoria Chilena, s/data). Entre os
detidos, regista-se o nome do Brigadeiro Alberto Bachelet (1923-1974), pai da
atual Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle
Bachelet (Cortázar, 2019). Consideradas “troféus de guerra” (Rocío, 2019), as
mulheres perseguidas foram sujeitas a várias atrocidades desde violações
sexuais individuais e coletivas, incluindo a grávidas, a outras agressões físicas e
psicológicas que incluíram a introdução de objetos estranhos no corpo; a injeção
8
A “Comisión Valech” reúne a “Comisión de Prisión Política y Tortura (Valech I)”
e a “Comisión Asesora para la calificación de Detenidos Desaparecidos, Ejecutados Políticos y
Víctimas de Prisión Política y Tortura (Valech II)”. Estas Comissões estão sob dependência do
Instituto Nacional de Direitos Humanos do Chile (INDH), criado em 2010 (INDH, s/data).
9
“Entre febrero y agosto de 2010, la Comisión recibió 32.453 declaraciones, de las
cuales 622 corresponden a casos de detenidos desaparecidos y ejecutados políticos y 31.831
164
fueron presentaciones de prisión política y tortura” (INDH, 2011, p. 15).
10
Informação gentilmente confirmada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros da
Finlândia. O diplomata era conhecido pelo nome de Heikki Brotherus.
11
Informação gentilmente confirmada pela Historiadora da Universidade de
Helsínquia, Sra. Pia Vuorikoski: “Robert (K. R.) Brotherus got a post as an Assistant of
Consistory in 1902 (until 1924). Consistory was a highest decision-making organ in the
university and constituted of professors, a rector as a chairman. Assistant’s role was to help the
secretary with different administrative tasks including keeping the minutes of the Consistory 165
and also help the notary in the finance section of the university”.
“There was a guy from the Chilean Foreign Ministry who came
– I think in the second day – knocking on the door saying that
his house had been burned down and the neighbours are going
to lynch him and can he stay for a night or two, I said ‘no
problem’.” Tapani Brotherus (CGTN America, 2018).
12
Exemplos: os deputados socialistas Fidelma Allende (1932-) e Luis Guastavino
(1931-); Eduardo Rojas, vice-presidente da CUT (Central Unitaria de Trabajadores do Chile,
1970-1973); e Francisco Miguel Argandoña, guarda-costas de Allende (Jara, 2018).
168
13
Contactado pela autora em abril de 2021. Foi nomeado para o posto referido em
2020.
173
Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021
1973”14. Em entrevista, Tapani Brotherus agradeceu o encontro, referindo que
sentiu “grande alegria” pelo gesto, mas reiterou que não se considera um “herói”
e não espera receber qualquer reconhecimento oficial pelo seu trabalho
humanitário (Galán, 2019).
É também em 2010 que o Museo de la Memoria y los Derechos
Humanos, fundado nesse ano por Michelle Bachelet em Santiago, agracia o
diplomata pelo distinto esforço humanitário; e que a Fundação privada Kansan
Sivistysrahasto (“Finnish People’s Education Foundation”) – uma organização
que trabalha junto de sindicatos e associações de trabalhadores – premeia
Tapani Brotherus com a medalha “Tammisaari 1918”, a homenagem mais
valiosa da Fundação, “pelo seu trabalho em prol dos direitos humanos,
especialmente durante o regime militar no Chile”15. É ainda neste ano que a sua
história é revelada ao grande público com a publicação do livro “Death Lists –
A ajuda secreta dos finlandeses aos perseguidos no Chile” da autoria de Heikki
Hiilamo, Professor de Sociologia. Três anos depois, em 2013, Tomi Brotherus
apresenta o documentário “Diplomacia Secreta” onde conta a história dos seus
pais desde a infância, incluindo testemunhos de sobreviventes.
Em 2015, o Ministério dos Negócios Estrangeiros do Chile organizou
uma cerimónia pública no intuito de homenagear os refugiados políticos bem
como aqueles que lhes prestaram auxílio durante a ditadura. Contactado via e-
mail, o atual Embaixador do Chile na Finlândia sublinhou algumas palavras do
discurso de abertura, referindo que, à época, “quase 200 mil chilenos se viram
forçados a deixar o país, e que mais de 50 nações e centenas de estrangeiros
estiveram envolvidos na ajuda humanitária aos cidadãos chilenos”: “Arriscando
14
Todas as informações em citação foram providenciadas pelo MNE Finlandês. O
encontro e a referência satírica de Tapani foram noticiados por vários órgãos de comunicação
(Galán, 2019; Rinta-Tassi, 2019; Via-X, 2020).
15
Informações gentilmente providenciadas pelo MNE Finlandês, que disponibilizou
também uma notícia sobre o prémio: https://www.sivistysrahasto.fi/ksr-palkitsi-tapani-
brotheruksen-ihmisoikeustyosta-vuonna-2010/ 174
Bibliografia
Aguilar, M. (2003). “Cardinal Raúl Silva Henríquez, The Catholic Church and The
Pinochet Regime, 1973-1980: Public Responses To a National Security State”. The
Catholic Historical Review. Vol. 89, Nº. 4. Pp. 712-731. Disponível em:
https://www.jstor.org/stable/25026464?seq=1 (Consultado a 29.03.2021)
BBC (2012). “Chile court confirms Salvador Allende committed suicide”. Disponível
em: https://www.bbc.com/news/world-latin-america-19567445 (Consultado a
12.04.2021)
Carrera, J. (2020) "Pinochet era como Trump": Tapani Brotherus, el diplomático que
inspiró la serie "Héroes Invisibles". Biblio Chile. Disponível
em:https://www.biobiochile.cl/noticias/nacional/chile/2020/09/11/pinochet-era-
como-trump-tapani-brotherus-el-diplomatico-que-inspiro-la-serie-heroes-
invisibles.shtml (Consultado a 30.03.2021)
CGTN America (2018). “Chileans living in Finland who fled a 1973 military coup.”
Disponível em: https://america.cgtn.com/2018/11/18/chileans-living-in-finland-
who-fled-a-1973-military-coup (Consultado a 15.04.2021)
Cortázar, N. (2019). “Confrontado com alta cifra de mortes por policiais, Bolsonaro
ofende Bachelet e defende regime Pinochet”. El País. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/09/04/politica/1567617364_180672.html?rel
=listapoyo (Consultado a 17.04.2021)
Dinges, J. (2004). The Condor Years: How Pinochet And His Allies Brought
Terrorism to Three Continents. The New York Press: New York.
El País (2020). “Richard Nixon: “Se houver uma forma de desbancar Allende, é
melhor fazer isso”. Disponível em: https://brasil.elpais.com/internacional/2020-11-
11/richard-nixon-se-houver-uma-forma-de-desbancar-allende-e-melhor-fazer-
isso.html (Consultado a 15.04.2021)
Finland Abroad (2019). “La historia y la actualidad de las relaciones entre Finlandia
y Chile”. Embajada de Finlandia, Santiago de Chile. Disponível em:
https://finlandabroad.fi/web/chl/actualidad/-
/asset_publisher/TV8iYvdcF3tq/content/suomen-ja-chilen-diplomaattisuhteiden-
historiaa-ja-nykyaik-1/384951 (Consultado a 10.04.2021)
Galán, J. (2019). “Brotherus, el héroe olvidado que salvó a 2.500 chilenos durante la
dictadura”. Disponível em: https://www.14ymedio.com/internacional/Brotherus-
heroe-olvidado-chilenos-dictadura_0_2741125868.html (Consultado a 30.03.2021)
Krohn, E. (2019). “Do arquivo KU: O diplomata Tapani Brotherus abriu as portas
aos perseguidos”. [página traduzida]. KU. Disponível em:
Lais (2020). “The Chilean Military Coup in 1973 - Diplomacy and Memories”.
Nordic Institute of Latin American Studies - Stockholm University. Disponível em:
https://www.lai.su.se/about-us/events/public-lectures/2.32699/the-chilean-
military-coup-in-1973-diplomacy-and-memories-1.513983 (Consultado a 11.04.2021)
Lusa (2020a). “Diplomatas portugueses salvaram entre 60.000 a 80.000 vidas durante
a II Guerra”. Público. Disponível em:
https://www.publico.pt/2020/01/20/culturaipsilon/noticia/diplomatas-
portugueses-salvaram-60000-80000-vidas-durante-ii-guerra-1900966 (Consultado a
30.03.2021)
NSA (2020). “Allende and Chile: “Bring Him Down”. National Security Archive.
Disponível em: https://nsarchive.gwu.edu/briefing-book/chile/2020-11-06/allende-
inauguration-50th-anniversary (Consultado a 15.04.2021)
Ratanen, K. (2019). “Tapani e Lysa Brotherus salvaram até 2.500 pessoas durante o
golpe no Chile - um truque engenhoso na fronteira salvou o transporte de alimentos”.
[página traduzida]. Disponível em: https://www.is.fi/kotimaa/art-
2000005957549.html (Consultado a 9.04.2021)
Shale, V. (2006). “Chapter 14 - Post Cold War Diplomatic Training: The Importance
of the Multiskaeholder approach to inter-and-intra state conflits”. In Kurbalija, J. e
Katrandjiev, V. (2006) (eds.). Multistakenholder Diplomacy: Challenges and
Opportunities. Disponível em:
https://www.diplomacy.edu/sites/default/files/Multistakeholder+Diplomacy_Part1
3.pdf (Consultado a 30.03.2021)
Valdivia, G. (2020). “La serie sobre Tapani Brotherus “el Oskar Schindler” del Golpe
militar chileno: “Él no quería la gloria”. LaTercera. Disponível em:
https://www.latercera.com/la-tercera-pm/noticia/en-los-pies-del-oskar-schindler-
del-golpe-militar-chileno-el-no-queria-la-
gloria/STOGY2NDOREJRI7IV7PETBYQHU/ (Consultado a 9.04.2021)
Via X (2020). Entrevista - “Tapani Brotherus: el “héroe invisible” que salvó 2.500
chilenos”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WsbvFNOc3FU
(Consultado a 8.04.2021)
*
O artigo é resultado da minha dissertação de Mestrado, apresentado no ISCTE-
Instituto Universitário de Lisboa, em 2016, com o título: “O Debate Político Português que
Conduziu ao Reconhecimento do Governo de Angola Formado pelo MPLA, 1975-1976”.
**
Doutorando em História Moderna e Contemporânea, especialidade em Defesa e
Relações Internacionais, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa; Investigador integrado não
doutorado do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE- IUL. 185
1
Entrevista com Fernando Rosas (1998). Online, Disponível em:
http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=tc1326. Consultado em 21.08.2019.
186
Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021
(Telo, 2007, pp. 92-169). Passados muitos anos desde o tempo em que esteve à
frente da Presidência da República, o papel de Costa Gomes na transição para a
democracia portuguesa é referenciado não apenas na literatura, mas também
nos meios de comunicação social, círculos políticos e diplomáticos, onde se
destaca a forma como interpretou e geriu os vários momentos políticos do
Portugal pós-25 de Abril (Rodrigues, 2008, op, cit).
2
Considera-se de primeira fase do processo de descolonização o período entre 25 de
abril e julho de 1974, caracterizado pelas posições antagónicas entre a Comissão Coordenadora
do MFA e a posição General Spínola, primeiro Presidente Português pós 25 de abril de 1974.
A Coordenadora do MFA defendia uma descolonização rápida e negociada apenas com os
movimentos de libertação nacional, ao passo que o General Spínola defendia uma
descolonização lenta, baseada num referendo. 187
3
As rivalidades entre os três movimentos remontam na década de 1960, num
primeiro momento, isto é, entre 1960 e 1965, o campo político angolano era disputado pela
FNLA e pelo MPLA. Em 1966 é constituída uma terceira força político-militar – a UNITA,
que passava a disputar com as demais forças a hegemonia político-militar. Reis, (2010).
189
Considerações finais
Tendo sido Presidente da República Portuguesa no período mais
quente da transição para a democracia, Costa Gomes é, sem dúvida, uma das
figuras de destaque da História contemporânea portuguesa. As suas habilidades,
no tocante à gestão da vida política do país durante o período revolucionário,
deram-lhe enormes valências e prestígio tanto a nível nacional como no domínio
internacional. No entanto, se a nível interno Costa Gomes teve considerável
sucesso, o mesmo já não pode ser dito em relação ao processo de transferência
de poder aos movimentos de libertação de Angola. Os Acordos do Alvor,
documento jurídico que definiu as regras do jogo entre Portugal e os três
movimentos de libertação nacional, viriam a redundar num fracasso cujas
consequências se fizeram sentir em novembro de 1975, com a proclamação
unilateral da independência de Angola pelo MPLA.
Portugal não legitimou o governo do MPLA. Todavia, o seu
representante em Angola, o alto comissário Leonel Cardoso, congratulou-se
com o feito e transferiu a soberania ao povo angolano. Iniciava-se, daí em diante,
um longo debate no seio do Estado português sobre a questão angolana. De um
Fontes e Referências
Fontes
Diário de Notícias, 1975-1976 (Biblioteca Nacional de Portugal)
Referências
Castaño, David (2013), Mário Soares e a Revolução, Lisboa, Dom Quixote, 1ª ed,
Fernando, Emídio., (2005), O último adeus português. História das Relações entre
Portugal e Angola – do Início da Guerra Colonial até à Independência. Lisboa,
Oficina do Livro – Sociedade Editora Lda.
Rezola, Maria Inácia (2013), Melo Antunes. Uma Biografia Política, Lisboa, Âncora
editora, 2ª ed
Westad, Odd Arne (2010) The Global Cold War, Cambridge University, 7ª ed
Introdução
Em todos os cargos que desempenhou, em todos os estatutos que
assumiu, Ernâni Rodrigues Lopes deixou sempre uma marca de esforço de
teorização permanente (nas palavras do próprio), de procura do essencial sobre
“a espuma dos dias” (os elementos conjunturais não estruturantes), e da busca
de uma visão de conjunto integradora das partes, permitindo a leitura holística
da realidade. Mas sobretudo a centralidade do interesse nacional naquilo que
eram as suas decisões: "O que desde sempre me preocupou e interessou é a nossa
existência como Nação e o conjunto de Portugal.” (Expresso, 1983: 16).
Ernâni Rodrigues Lopes foi Embaixador de Portugal em Bona (1975-
1979) e Embaixador e chefe da missão portuguesa às Comunidades Europeias
em Bruxelas (1979-1983), tendo conduzido as negociações de adesão do
*
CIEP-UCP
**
UL, ISCSP, EEE
198
Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021
Tratado de Adesão de Portugal às Comunidades, do qual seria um dos
signatários.
Multifacetado, foi Ministro das Finanças e do Plano no IX Governo
Constitucional da III República Portuguesa (1983-1985), uma altura
particularmente difícil para a economia nacional1 e fundador (e diretor) do
Instituto de Estudos Europeus da Universidade Católica Portuguesa, a primeira
instituição nacional de ensino superior especializada nesta área científica, criada
em 1978. Correspondendo à sua visão, e muito antes de a multidisciplinaridade
ser reconhecida e incentivada pelo valor que agrega ao estudo da realidade, o
Instituto foi estruturado numa base multidisciplinar e com flexibilidade para
acompanhar o fluir dos acontecimentos relevantes na Europa e no mundo.
Dessa abordagem resulta a formação de quadros superiores da administração
pública, para Portugal e para as instituições da EU, incluindo a diplomacia –
mas também para as empresas, como agentes interventivos na construção
europeia, com uma visão clara do interesse nacional e prevalecente em cada
ecossistema, uma linha de desenvolvimento que viria a perdurar até 2011.
A construção do futuro foi seu princípio norteador, alicerce sobre o
qual construiu uma visão de futuro para Portugal centrada na leitura estratégica
da geopolítica e da análise prospetiva das condições de desenvolvimento de
Portugal, onde a construção europeia aparece como elemento central no
contexto das condições de posicionamento estratégico nacional do último
quartel do século XX, visão que transportaria consigo quando assume funções
diplomáticas, primeiro, como embaixador em Bona; e depois, em Bruxelas, junto
da Comunidade Europeia.
1
Portugal apresentava à data uma estrutura económica e financeira muitíssimo
debilitada na sequência das graves crises que, num intervalo de 5 anos, levaram o país a dois
programas de assistência financeira por parte do FMI. É neste contexto que enquanto Ministro
das Finanças, Ernâni Rodrigues Lopes conduz um duro exercício de estabilização, mas com
resultados impressionantes, já que a economia portuguesa retomou uma trajetória de
crescimento, num modelo de desenvolvimento que se manteve até à viragem do milénio. 199
Conclusão
Refletir hoje sobre a vida de Ernâni Rodrigues Lopes é encontrar e
reconhecer a sua presença inspiradora numa multitude de cantos, de recantos e
de veredas sublimadoras, na Diplomacia, no Ensino, na Investigação Científica,
na Universidade, nas Políticas Públicas, nas Estratégias Empresariais, tudo isto
irmanado pela vocação de contribuir para um Portugal melhor e com maior
sustentabilidade.
A sua vida, norteada pela urgência da construção do futuro, foi uma
busca intensa e incessante da defesa do interesse nacional no contexto dos
desafios que a mudança estrutural que o 25 de Abril e a evolução internacional
provocaram no posicionamento e nas condições de desenvolvimento de
Portugal.
Referências e Bibliografia
*
Embaixador
**
Diplomata
1
Estuporado: estragado, liquidado
214
2
Routard, caminheiro, calcorreador.
215
Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021
fatalismo, com os cenários a que assistimos no 11 de Setembro, com Sérgio, em
Díli.
Assim, o Sérgio que conhecemos em Timor-Leste arribou, pelas
circunstâncias abertas pelos Acordos Tripartidos de Nova Iorque, de 6 de maio
de 1999, pelo Referendo de 30 de agosto e os desenvolvimentos subsequentes
que levaram ao estabelecimento da UNTAET e à sua designação como
Administrador da Transição e Representante Especial do Secretário-Geral.
O mandato político e o “enxoval” da UNTAET vinham evidentemente
bem guarnecidos a partir de Nova Iorque. Depois do Camboja e do Kosovo, no
início da década, Timor-Leste seria a nova experiência de administração direta
de um território, e em muito decalcou as anteriores receitas e instrumentos.
Esse enquadramento dispunha de um Administrador Transitório dotado de
plenos poderes, um dispositivo alargado a todo o terreno com componentes de
manutenção de paz, reabilitação, capacitação, reconciliação, legitimação da
representação política timorense e uma paralela articulação político-diplomática
com Nova Iorque (Secretariado e Conselho de Segurança), e contava também
com a comunidade de doadores, os contribuintes de forças militares e de
segurança e os Estados com interesses específicos no processo – nomeadamente
as antigas potências ocupante (Indonésia), administrante (Portugal), e a maior
potência vizinha (Austrália).
Nos primeiros meses, quem chegava com a Administração Civil das
Nações Unidas tinha guarida exclusiva nos barcos-hotéis atracados face ao
Palácio das Repartições e no espaço de aberto de trabalho da “grande tenda”,
instalada nas traseiras do edifício sede da administração ultramarina
portuguesa, que assim que recuperado albergou o Governo das Nações Unidas
até 20 de maio de 2002.
Díli, e em muito menor medida as vilas e cidades sedes das restantes
12 circunscrições administrativas, foram assim, nesses dois anos de transição,
3
Power, S. (2008). Chasing the Flame: Sergio Vieira de Mello and the fight to save
the world. New York: Penguin Press.
217
Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021
que também era necessário fazer e que ele dominava melhor do que ninguém,
nunca agradando inteiramente a nenhum dos lados.
A nau da UNTAET chegou razoavelmente apetrechada – uma força
de manutenção de paz com um efetivo superior a 9 mil militares, uma força de
polícia ultrapassando os 1.200 elementos, e algumas centenas de contratos civis
para guarnecer os Departamentos Centrais em Díli e as administrações
distritais. A esta nau juntavam-se as barcas coadjuvantes do Programa de
Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD), do Banco Mundial, da OIM, do
Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e,
naturalmente, os dispositivos nacionais a montante dos maiores doadores –
Portugal, Japão, Austrália –, e daquilo que sem perversão se poderia designar
como os “pequenos e médios parceiros” no terreno – como os Estados Unidos
da América (EUA), a Comissão Europeia, a Nova Zelândia e mesmo o Brasil. A
presença da República Popular da China era bem sinalizada com um
Embaixador cuja única língua estrangeira era o português, bem consolidado na
Universidade de Coimbra, e que cerimoniosamente era das poucas entidades
presentes em Timor-Leste, a par dos dois bispos, a quem se ouvia aludir ao
Administrador Transitório como “Senhor Doutor Vieira de Mello” (sic).
“Esta camisa de sete varas”4 do Administrador Transitório era
aconchegada no seu forro pelos timorenses – dirigentes históricos que
reemergiam das montanhas, da prisão, ou até mesmo da extinta administração
ocupante, a uma possante Igreja (católica, apostólica, romana, no sentido literal)
que se assumia no pico da transição como o tecido social mais presente em todos
os cantos do território, algumas vezes claramente sobreposta às redes da
resistência. Sérgio não era um santo (nem tinha essa pretensão), e embora
respeitasse a Igreja e o seu papel fundamental em Timor-Leste nunca nos
pareceu devoto, apesar do sem número de cerimónias religiosas a que todos
4
“Camisa de sete varas”, situação difícil de que se escapa ileso.
218
Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021
assistíamos naquela época. Política e religião viviam lado a lado, e Sérgio sabia
disso e tomava-o em conta nas suas decisões.
A “chama” de Sérgio ajudou, sem alguma dúvida, a cimentar uma
missão cujo elenco tinha de ser desenhado pela esquadria de Nova Iorque e que
ser repartida entre equilíbrios regionais e perfis mais ou menos aproximativos,
por vezes a fugir para o Cafarnaum, por vezes próximo do equilíbrio idealizado
no espírito do Administrador Transitório. “Coube-lhe em rifa”, como
Representante Adjunto, na primeira leva do mandato, Jean-Christian Cady, um
prefeito francês com uma experiência anterior no Kosovo, substituído a meio da
transição por Dennis McNamara, um antigo companheiro de caminho. Os
lugares imediatamente abaixo do Administrador – “Chief of Staff”, “Force
Commander” ou “Police Commissioner”, que recaíram sobre um embaixador
malaio, um general filipino e um superintendente-chefe da Polícia de Segurança
Pública portuguesa – escapavam naturalmente à sua escolha final, tal como os
chefes dos vários Departamentos da UNTAET, onde nos assuntos políticos se
destacavam o norte-americano Peter Galbraith, antigo embaixador na Croácia,
o canadiano Michael Francino ou a moçambicana Gita Honwana Welch.
Numa segunda linha, surgia um circuito de pessoas que partilhariam
maior proximidade de conselho e, quiçá, empatia com Sérgio, como Fabrizio
Hochschild Drummond (atual Enviado Especial do Secretário-Geral das
Nações Unidas para a Tecnologia), depois substituído por Jonathan Prentice.
Em segmentos particulares do processo encontrávamos outros conhecidos de
mais antigas andanças, como Nicola Darhendorf (consultora na reestruturação
das FALINTIL- Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor-Leste) ou
Carlos Valenzuela (coordenador eleitoral). Ainda neste excipiente surgiriam os
diplomatas portugueses colocados junto do Administrador Transitório – a
quem sem desprimor, mas com todo o mérito, competia “tapar buracos” [“fill
the gaps”] com o lado português no processo, como Carmen Silvestre, Pedro
5
Mello, S. V. de (19 de maio de 2002). Le Progrès.
222
Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021
que defendiam que a criação de Estados não devia tornar-se tarefa da ONU, se
as condições de Timor-Leste se repetissem ninguém mais o poderia fazer e
teriam de ser encontradas ainda melhores soluções. “As Nações Unidas não
podem ter a atitude de um Estado colonizador, mas têm o poder de apoiar a
edificação de um Estado quando este está numa situação de total colapso. É para
isso que as Nações Unidas servem, e é por isso que devem encontrar respostas
cada vez melhores”.
Para os diplomatas portugueses em Timor-Leste, quer os que
integravam a UNTAET, quer os da missão diplomática chefiada pelo Pedro
Moitinho de Almeida, quer os que estavam “emprestados” à liderança timorense
para os ajudar a construir as suas instituições, como o João Ribeiro de Almeida,
como para quase todos os outros que com ele se cruzaram, Sérgio era
simplesmente Sérgio. Não era o “Senhor Administrador”, o “Senhor
Representante Especial” ou o “Senhor Dr. Vieira de Mello”. Dele, todos temos
histórias e lembranças, palavras e exemplos que pretendemos replicar, passos
que nos esforçamos por seguir.
Não tendo sido, nem pretendendo ter sido, próximos de Sérgio,
esperamos que este testemunho do que observámos do homem e do profissional
inspire as gerações de diplomatas mais jovens, a que Sérgio era particularmente
sensível, a seguirem os seus princípios e valores, profundamente humanistas. Já
em Timor-Leste tínhamos a perceção de estar perante alguém que viria a ter
posições cimeiras na hierarquia “onusiana”. Quando foi para o Iraque, quase
todos apostávamos que se tornaria o sucessor de Kofi Annan.
Não será demasiado esperar que, em 20 de maio de 2022, quando
Timor-Leste comemorar o 20.º aniversário da sua bem-sucedida independência,
possa prestar algum tipo de reconhecimento e de homenagem a Sérgio, um
6
Gordon-Lennox, G. & Stevenson, A. (2010). Sergio Vieira de Mello: Un homme
exceptionnel. Genebra: Tricorne.
224
Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021
Uma forte presença no mundo: a diplomacia
portuguesa e a Rússia
Sandra Fernandes* e Luís Lobo-Fernandes**
Introdução
A diplomacia constitui uma das componentes mais visíveis do cenário
internacional, emergindo com especial projeção após os tratados de Vestefália
de 1648. É a institucionalização das relações regulares entre Estados que marca
o advento de uma nova fase nas relações internacionais (Chazelle, 1968). Esta
maior institucionalização remetia para a necessidade do emprego de
intermediários regulares – ou diplomáticos residentes - nos contactos entre
Estados.
*
Professora Auxiliar na Universidade do Minho
E-mail: sfernandes@eeg.uminho.pt
**
Professor Catedrático (aposentado) da Universidade do Minho
E-mail: luislobo@eeg.uminho.pt
225
1
O Testament Politique de Richelieu foi escrito em 1638 para o rei Luís XIII.
226
Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021
Rússia, plasmando assim a perceção portuguesa sobre o país mais extenso do
mundo e a relevância da perspetiva histórica na atuação diplomática.
Na primeira parte enquadramos as características da ação diplomática
na atualidade. Na segunda, identificamos a forma como a Federação Russa é
“decifrada” no âmbito do exercício dos representantes diplomáticos de Portugal.
Na terceira, salientamos a evolução do papel da diplomacia portuguesa na
vertente bilateral e multilateral do relacionamento com Moscovo.
2
Na terminologia corrente do Ministério dos Negócios Estrangeiros português, os
diplomatas designam-se de “funcionários” tout court - no sentido mais lídimo e também mais
nobre da função, sublinhe-se -, evidenciando o seu estatuto de quadros de topo dedicados ao
serviço do Estado.
228
3
No âmbito do MNE português, os relatórios que os representantes diplomáticos
remetem para a tutela continuam a ser comummente designados de telegramas.
229
Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021
2. A Rússia pós-soviética e o seu estatuto internacional
O estudo do período que se segue à implosão da União Soviética, em
dezembro de 1991, configurava um importante desafio teórico que implicou
ajustes consideráveis, quer na agenda de investigação, quer nos planos político
interno e externo. O curso dos acontecimentos tornou-se mais imprevisível. Em
particular, a consequente atomização do país gerará 15 novos Estados
independentes. Esta importante mutação que espoleta um ciclo mais aberto das
relações internacionais é acompanhada de um elevado grau de complexidade e
incerteza, com particular acuidade no grande teatro europeu. Como assinalou
Margaret Paxon (2004), a história não ia numa única direção. A metamorfose
das relações internacionais define-se doravante por um cenário difuso e mais
volátil, adensado pela aceleração da globalização financeira e comunicacional,
obrigando porventura a um maior esforço negocial, consensos e parcerias
flexíveis, que não resultam necessariamente nas chamadas “situações ótimas” de
Pareto (Lobo-Fernandes, 2008). As expressões de rivalidade no ciclo
internacional pós-Guerra Fria não desaparecem, mas operam numa gama
diversificada de dinâmicas interdependentes entre uma variedade significativa
de atores, cujo caso mais patente é a própria União Europeia.
No que concerne mais especificamente Portugal, em 1974 são
restabelecidas as relações diplomáticas entre o Estado português e a União
Soviética, uma das duas superpotências de então. No início do período pós-
soviético, que vai ser liderado pela forte personalidade de Boris Ieltsin (1991-
1999), emerge a convicção das vantagens em amplificar o diálogo político com
os países ocidentais, revelando um eixo de continuidade interessante com as
políticas de Gorbatchov e de Primakov. Andrei Kozyrev (Ministro russo dos
Negócios Estrangeiros entre 1991 e 1996) fazia inclusive apelo a uma “aliança
de Estados” que partilham princípios democráticos e à “unidade multipolar na
4
Cerca de 38% das importações russas originam na UE e cerca de 40% do gás e
36% do petróleo importados pela UE são comprados à Rússia (European Commission, 2021).
5
O Embaixador Paulo Vizeu Pinheiro foi Embaixador de Portugal junto da
Federação Russa desde setembro de 2017 até agosto de 2021. Foi Ministro-Conselheiro na
mesma Embaixada entre outubro de 1998 e o verão de 2002.
231
6
Refira-se que as visitas dos primeiros-ministros precediam tradicionalmente as
presidências da União Europeia; no caso português, foi a primeira vez que tal se fez.
239
Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021
igualmente Portugal em novembro de 2008, tendo-se verificado visitas mútuas
anuais dos respetivos ministros dos Negócios Estrangeiros entre 2004 e 2009.
Numa referência aos vários serviços da representação diplomática
Marcelo Curto refere que quando assumiu funções encontrou “uma Embaixada
bem estruturada”, que incluía já os conselheiros cultural e financeiro graças aos
esforços do seu antecessor – o Embaixador João Nunes Barata – algo que não
deixa de frisar. No seu tempo seriam nomeados o Adido Militar, o Conselheiro
técnico (para contacto entre serviços de informações), bem como o Assessor do
SEF. No seu entender foi, assim, possível lograr uma estrutura diplomática
“bastante capaz que permitiu trabalhar adequadamente, com resultados
mensuráveis”; sublinharia, ainda, a boa articulação com o Conselheiro
Comercial (cujas funções são desempenhadas pelo Delegado da AICEP) – na
sua ótica, algo indispensável no trabalho diplomático atual – em que se verificou
um aumento importante de visitas comerciais bem como de Comissões Mistas.
No plano multilateral, o facto de Portugal integrar a União Europeia
desde 1986 acrescentava ao perfil e à relevância internacional do país uma nova
dimensão europeia que se somava à de membro fundador da NATO. Neste
contexto, e segundo o Embaixador Paulo Vizeu Pinheiro, Portugal tem a
vantagem de se situar no extremo ocidental do continente europeu e de não ter
contenciosos históricos e geográficos com Moscovo. Somos encarados por
Moscovo como “a ponte de Lisboa a Vladivostok” e “vemos com distância física,
política e económica”, dando a possibilidade a Lisboa de ter um papel neutro ou
de honest broker. A nossa comunidade geoestratégica é a UE e a NATO mas
somos participantes ativos na ONU, no CdE, e na OSCE, o que é muito
relevante para a Rússia. Tendo leituras menos emocionais, elas são,
simultaneamente, interessadas.
A atuação de um diplomata português na negociação dos cinco
princípios orientadores da relação UE-Rússia no rescaldo da anexação da
Conclusão
As instituições internacionais são uma pedra angular para a ação
externa de Portugal, cujas elites promovem de forma continuada uma União
Europeia mais ativa na arena global. Esta orientação traduz-se no pragmatismo
e no diálogo com Estados poderosos. No entanto, no curso atual de regresso
dos autoritarismos, o que significa uma abordagem pragmática a uma Rússia
mais iliberal? No quadro de várias crises (resgate financeiro, migração,
pandemia Covid-19, etc.) Portugal continua a ver-se como um país empenhado
no aprofundamento da integração europeia e como uma força de ligação,
caracterizado pelos valores liberais e humanistas.
Referências
Bjola, C., & Holmes, M. (Eds.). (2015). Digital Diplomacy: Theory and Practice.
London: Routledge.
Council of the European Union. (2016). Foreign Affairs Council, 14 March 2016,
Main results, retrieved from
http://www.consilium.europa.eu/en/meetings/fac/2016/03/14/
Paxon, M. (2004). Bearing Russia’s Burdens. The Wilson Quarterly, 28 (3), 21-26.