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NegóciosEstrangeiros

Outubro 2021 | número 21


Publicação semestral do Instituto
Diplomático do Ministério
dos Negócios Estrangeiros

Retratos
de Diplomatas
Revista Negócios Estrangeiros
N.º 21 | Retratos de Diplomatas
Edição Digital
Revista Negócios Estrangeiros
N.º 21
Edição Digital

Publicação do Instituto Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros

Direção
Embaixador José Freitas Ferraz

Direção Executiva
Joana Gaspar

Design Gráfico
Marco Rosa

Revisão Editorial
Francisco de Oliveira, Joana Gaspar, Joana Gonçalves Pereira, João de Almeida Dias e Joaquim Matos

Periodicidade
Semestral

Edição
Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE)
Palácio das Necessidades, Largo do Rilvas – 1350-2018 Lisboa
Tel. +351 213 932 040 | E-mail: idi@mne.pt

Número
Diplomacia e Política Externa
18 de outubro de 2021
Índice

Nota introdutória
José de Freitas Ferraz .................................................................................................... 6

Alexandre de Gusmão (1695-1753) – diplomata e estadista luso-brasileiro


Synesio Sampaio Goes Filho .......................................................................................... 7

A missão de Cipriano Ribeiro Freire, primeiro representante de Portugal nos


Estados Unidos (1794-1799)
Jorge Martins Ribeiro .................................................................................................. 22

O exercício de uma “neutralidade moderada”: D. José Luís de Sousa Botelho


Mourão e Vasconcellos e a guerra da Crimeia
Frederico de Sousa Ribeiro Benvinda ......................................................................... 44

Fyodor Fyodorovich Martens e a Conferência de Paz de Haia de 1899:


compreendendo a Cláusula de Martens à luz do seu criador, do seu tempo, e
da evolução do Direito Internacional Humanitário
Duarte Quadros Saldanha e Francisco Varela de Oliveira.......................................... 66

Da Monarquia Constitucional ao Estado Novo: Bettencourt-Rodrigues, o


diplomata republicano do Pan-Latinismo (1854-1933)
Soraia Milene Carvalho ............................................................................................... 84

As Políticas do Imperialismo Nipónico sob o olhar de César de Sousa Mendes


e Antero Carreiro de Freitas, diplomatas portugueses no Japão
Ana Fernandes Pinto ................................................................................................. 106

João Guimarães Rosa e Aracy de Carvalho: diplomacia, amor e literatura


Kamile Moreira Castro............................................................................................... 119

Aleksander Ładoś e a legação polaca em Berna em tempos da II Guerra


Mundial
Marek Pernal ............................................................................................................. 135

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Tapani Brotherus: o diplomata finlandês que desafiou o regime de Pinochet
Joana Araújo Lopes .................................................................................................... 157

O Papel de Costa Gomes no Nascimento das Relações Diplomáticas entre


Portugal e Angola, 1976
Domingos Marcos Cúnua Alberto ............................................................................. 185

Ernâni Rodrigues Lopes: da diplomacia como serviço e Portugal como missão


Sónia Ribeiro e Eduardo Lopes Rodrigues ................................................................ 198

De Vieira de Mello ao Sérgio


Jorge Lobo Mesquita e Florbela Paraíba................................................................... 214

Uma forte presença no mundo: a diplomacia portuguesa e a Rússia


Sandra Fernandes e Luís Lobo-Fernandes ................................................................ 225

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Nota introdutória
Este número da “Negócios Estrangeiros” é exclusivamente dedicado a
traçar retratos de diplomatas. Desde figuras cuja ação iria ter enormes reflexos
históricos – como Alexandre de Gusmão – o negociador português do Tratado
de Madrid que no século XVII logrou legalizar as atuais fronteiras do Brasil,
passando por Sousa Mendes e Carreira de Freitas, diplomatas colocados em
Tóquio nas primeiras décadas do século XX que analisaram com rigor e
presciência a política imperialista do Japão na Ásia. Na presente edição é
igualmente focada a vida e o trabalho diplomático de personalidades tão
diversas e marcantes como Sérgio Vieira de Mello, Ernâni Lopes, D. José Luís
Mourão e Vasconcelos, Bettencourt Rodrigues, mas igualmente Tapani
Brotherus, Fyodor Martens ou o Marechal Costa Gomes.
Integramos pois neste número da revista interessantes artigos de
autores portugueses, mas contamos igualmente com a valiosa contribuição de
diplomatas e académicos estrangeiros. A todos expressamos os nossos sentidos
agradecimentos.

José Freitas Ferraz,


Embaixador
Diretor do Instituto Diplomático

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Alexandre de Gusmão (1695-1753) – diplomata e
estadista luso-brasileiro
Synesio Sampaio Goes Filho

Resumo: Alexandre de Gusmão foi diplomata e secretário particular de D. João


V. No século XIX era mais conhecido como autor de ousadas cartas de ofício
escritas a grandes do reino e de irônicas cartas privadas, de crítica racionalista
à mentalidade prevalecente na Corte. Hoje é reconhecido como um importante
agente político dos últimos vinte anos do reinado. Desempenhou – para citar
sua grande obra -- o papel fundamental na concepção e negociação do Tratado
de Madri, que legalizou a ocupação luso-brasileira de dois terços do atual
território do Brasil.

“C’était peut-être l’homme au Royaume qui avait plus de génie”


Conde de Baschi, embaixador da França em Portugal

Missão em Paris
O célebre secretário de D. João V nasceu em Santos, então um pequeno
porto de São Paulo. Filho de um português de Guimarães, cirurgião do
“presídio” local, e de uma senhora de família com raízes antigas na capitania.
Após estudos elementares na Bahia, foi com 13 anos para Portugal,
acompanhando seu irmão mais velho, Bartolomeu de Gusmão, o “padre voador”.
Estava completando seus estudos de Cânones em Coimbra, quando, aos 19 anos,
foi convidado para ser secretário do novo embaixador luso em Paris. Iniciava
uma carreira de quinze anos como diplomata, a que se seguiria outra de vinte
no círculo íntimo do rei. Lancemos um olhar sobre a situação política que ele ia
encontrar em Paris.
Em 1713, Portugal e França assinaram o acordo que punha fim às
divergências com relação à Guerra de Sucessão na Espanha. Foi um dos acordos


Embaixador jubilado do Brasil

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de Utrecht e foi benéfico ao Brasil: o limite extremo norte, disputado pela
França, era fixado no rio Oiapoque. Por outro acordo, este com a Espanha, em
1715, Colônia do Sacramento, no rio da Prata, era restituída aos portugueses.
O apoio inglês rendia frutos a Portugal; o hábil embaixador, D. Luiz da Cunha,
também teve seu papel. O fato a guardar, entretanto, é que nenhum dos dois
países, França e Espanha, sentia-se justiçado; assinaram premidos pelas
circunstâncias.
A França voltaria a contestar a fronteira pelo Oiapoque, assunto que
só seria resolvido com o laudo arbitral de 1900 (“Questão do Amapá”). A
Espanha, com seu novo rei, agora da dinastia dos Bourbons (Filipe V, neto de
Luís XIV), continuava descontente com a existência de uma fortaleza lusa —
base de um possível ataque – bem em frente a Buenos Aires; e mais ainda —
agora, pura realidade, não remota hipótese – porque por ali passava um intenso
contrabando, especialmente da prata de Potosí. O controle do grande rio era,
ademais, um objetivo geopolítico (para usar um termo de hoje) incontornável.
Os espanhóis haviam assinado o acordo que devolvia Colônia, sim, mas o
governador de Buenos Aires interpretava as palavras “território e Colônia” do
seu texto como se toda a possessão portuguesa fosse contida no pequeno círculo
de um tiro de canhão dado do centro da fortaleza. Ao contrário de Portugal, que
interpretava “território e Colônia” como abrangendo toda a área do Uruguai
dos nossos dias.
Era o final do reinado de Luís XIV, e os tempos não estavam tão róseos
para a França. Ela continuava a ser, entretanto, a maior potência da Europa, e
o reinado do rei sol — modelo de tantos reis, em especial de D. João V — foi
considerado por futuros historiadores como um dos grandes períodos da
História. Não é sem razão que o século XVII é chamado por alguns Le siècle de
Louis XIV, para lembrar o título de uma célebre obra de Voltaire, talvez o mais
importante pensador da época. A língua de Molière, Racine, Corneille e La

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Rochefoucault era considerada a língua da cultura e dominava o mundo
europeu. Os tratados internacionais eram geralmente escritos em francês ou, se
em outra língua, tinham esta como a referência em caso de dúvida.
O novo embaixador em Paris deveria, pois, ser bem escolhido. E não
faltavam títulos a D. Luís Manuel da Câmara, conde da Ribeira Grande, moço
de apenas 29 anos. Prestigiado recentemente por proezas militares — fora o
bem-sucedido defensor de Campo Maior, numa das muitas guerras com a
Espanha —, era da alta aristocracia portuguesa. Ainda mais importante, sua
mãe era da família dos príncipes de Rohan, uma das primeiras da França, o que
seguramente lhe facilitaria contatos na Corte parisiense. Não se sabe se o conde-
embaixador conhecia pessoalmente Alexandre, que herdara do irmão
Bartolomeu importantes relações em Lisboa – o marquês de Fontes e o duque
de Cadaval, ambos do Conselho de Estado, para dar dois exemplos. A indicação
de alguém tão jovem, de família obscura, para tal função talvez viesse do próprio
D. João V, e nomeações futuras e outras benesses parecem bem avalizar esta
hipótese.
Em abril de 1714, o conde e seu secretário partiam de Lisboa com
destino a Paris. As viagens de então, a cavalo ou em carruagem, demoravam
semanas, meses, e esta incluiu uma estada de um quadrimestre em Madri. O
embaixador tinha também instruções de cumprimentar o novo monarca
espanhol, Filipe V, e passar em revista as relações diplomáticas entre os dois
países. Era a primeira oportunidade de Alexandre familiarizar-se com os
problemas bilaterais. E o maior deles chamava-se Colônia do Sacramento.
Para muitos de nós, hoje, ao se ver a pequena cidade de Colônia no
Uruguai, parece um exagero afirmar que aí estava o ponto sensível das relações
entre as potências ibéricas; que ela seria o assunto mais discutido, de longe, nas
futuras negociações de um acordo geral de fronteiras, que já se começavam a

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entrever. É que Colônia do Sacramento não era um núcleo isolado; era, na visão
portuguesa, a desejada fronteira platina.
Insistamos no tema. Colônia significava a possibilidade de Portugal
apossar-se da margem norte do rio da Prata e fazer dela a divisa sul do seu
império americano. Vinha de décadas um expressivo contrabando da prata
peruana pela fortaleza; mas a possibilidade de uma invasão a Buenos Aires —
não esqueçamos a velha aliança de Portugal com a Inglaterra, já então a maior
potência marítima do mundo e quase sempre inimiga da Espanha — não era
tema a descartar-se. Fazendo um pouco de futurologia, lembremos que Colônia,
com as dimensões que almejavam os lusos, ajudaria na formação territorial dos
estados do sul do Brasil, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná.
Criança que brincava nas ruas arenosas e alagadiças de Santos,
estudante aplicado, mas já irreverente na Bahia (constatação do diretor do
seminário), universitário brilhante de Coimbra, o recém-nomeado secretário do
embaixador chegava afinal a Paris, depois dos meses de Madri. Muita mudança
para pouca vida, mas certamente esta -- viver na capital da Europa — terá sido
a experiência mais marcante na formação de sua personalidade. Era outubro de
1714, Luís XIV estava no seu último ano de vida. Em tragédias sucessivas e mal
explicadas, perdera o filho, o neto e o bisneto mais velho, seus três herdeiros
sucessivos. O seguinte, o futuro Luís XV, era uma criança doentia de 3 anos,
que muitos achavam que não sobreviveria. A Guerra da Sucessão não fora boa
nem para a França nem para a Espanha: em Madri havia um rei francês, é
verdade, mas ambos os países estavam desgastados. Não era a melhor quadra
para a nação gaulesa, embora todos os reis da terra continuassem a olhar para
a Corte de Versalhes com admiração e deslumbramento. Viver em Paris, para
um jovem brilhante como Alexandre, era abrir os olhos para a cultura mundial.
Como o conde-embaixador tinha acesso à alta nobreza — tanto pela
situação familiar como pelo fato de que seu rei não media custos para prestigiar

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os representantes nas capitais europeias mais importantes –, é fácil imaginar
que o secretário também ficasse conhecendo as grandes personagens da fase
final da corte do “roi soleil” e inicial da regência. Exatamente o período em que
o duque de Saint-Simon, em suas celebradas “Mémoires”, pinta o quadro de um
realismo comportamental e uma sinceridade psicológica, que só encontraria
paralelo na obra ficcional de Balzac e de Proust (na opinião da especialista
Geneviève Manceron). O assunto mais importante da embaixada era a mediação
que Luís XIV estava tentando entre a Espanha e Portugal sobre a posse da
Colônia do Sacramento. Pelo Tratado de Utrecht (que seria negociado no
primeiro ano de Alexandre de Gusmão em Paris), a Espanha concordara em
restituir a fortaleza, vimos, mas dando a ele uma interpretação muito restritiva.
Queria no fundo que Colônia fosse um enclave bastante dispendioso, para que
Portugal um dia o abandonasse. O acordo era para os espanhóis uma solução
provisória, forçada pelo conjunto das negociações. Não há documentos que
registrem a participação de Alexandre de Gusmão nestas, mas é certo que ele,
já um conhecedor do assunto, com sua competência e seus dotes de redator, não
deixaria de ser acionado pelo chefe.
Da estada na França, o texto mais conhecido é sobre a “entrada oficial”
do seu embaixador em Paris, uma daquelas relações típicas do Portugal de D.
João V. Ocorrida após um ano de preparação, foi tão espetacular que está
mencionada nas memórias de Saint-Simon. Era 18 de agosto de 1715, e Luís
XIV — o mais “royal” dos reis — agonizava, entre intrigas cortesãs, com
malcheirosa gangrena em Versalhes (morreria em 1º de setembro). Carruagens
douradas, diplomatas de fardão, cocheiros uniformizados, fâmulos em ricas
librés, cavalos ajaezados... aqueles requintes que, em nossos tempos
democráticos, parecem tão descabidos. Sem falar nas moedas com a efígie do rei
português atiradas ao povo. Gusmão descreve tudo com vívidos pormenores, e,
se o texto parecer áulico e exagerado, é por não conhecer outros do mesmo tipo

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(há, aliás, um segundo relato, por pena diferente, dessa mesma “entrada” que
mostra a contenção da linguagem do primeiro).
Vamos reproduzir pequeno trecho do secretário: “Cinco magníficos
coches, cada um puxado por seis cavalos de cores diferentes; lacaios que
atiravam para o povo das ruas parisienses dez mil moedas de prata e duzentas
de ouro”. E fazer um comentário. O Museu Nacional dos Coches de Lisboa é um
dos melhores do mundo. Os seus mais bonitos exemplares são da época de D.
João V, e o mais luxuoso destes, o Coche da Coroa, é exatamente o que o conde
da Ribeira Grande estava utilizando. Estaria Alexandre de Gusmão num dos
coches da aparatosa “entrada”?
Procurando resquícios da presença de Alexandre na embaixada, Jaime
Cortesão encontrou um documento curioso, para dizer o mínimo: o boletim de
ocorrência de uma delegacia de polícia. Dizia respeito ao fechamento de uma
casa de jogos (“tripot”) do jovem secretário. O incidente é insólito e
seguramente seria inapropriado para um diplomata de hoje... Naquela época e
naquele local, existiriam elementos atenuantes. Tratava-se da famosa jogatina
que tomou conta de Paris em certa fase da regência de Filipe de Orléans (1715-
23. Até nas finanças públicas jogava-se, pois era o tempo das experiências
heterodoxas (e que terminaram mal) do financista escocês John Law. Sobre
assuntos mais edificantes, o historiador português não detectou vestígios de
Gusmão. Igualmente nada existe dos estudos jurídicos que o santista fez na
Sorbonne. Mas não há dúvida sobre a seriedade destes, logo reconhecidos pela
Universidade de Coimbra, quando da volta de Alexandre a Portugal, depois dos
cinco anos de Paris.
Um fato precisa ainda ser mencionado. Nesse período de sua vida,
Gusmão passou a ser amigo e correspondente de D. Luiz da Cunha, o grande
diplomata português da época. Consequentemente começou a ser considerado
um “estrangeirado”, como a nobreza que se achava “castiça” apelidava,

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depreciativamente, alguns intelectuais influenciados pelas “perigosas ideias
francesas” (lembremos que Montesquieu, Voltaire, Rousseau eram desse
tempo). Entre os “estrangeirados” havia vários cristãos novos, e Alexandre
passou também a ser suspeito de ser um deles. O sabido, com certeza, é que ele
era um crítico da Inquisição (então muito popular entre o povo, e tida como
necessária nas classes altas), tinha amigos judeus (como o dramaturgo Antônio
José, morto na fogueira) e seu irmão Bartolomeu se converteu ao judaísmo perto
da morte (o que foi um grande escândalo, pela proximidade que tinha com o rei).

Missão em Roma
Terminado o período parisiense, Gusmão volta a Lisboa, onde passa a
ser conhecido como intelectual e começa a ajudar Bartolomeu, que tinha tarefas
no paço real. Já no ano seguinte, o rei o nomeia para outra importante função
diplomática, esta na sede do catolicismo, ainda dominante na Europa.
Gusmão chegou a Roma em março de 1721 e lá ficaria até outubro
de 1728. Clemente XI (1700-20) havia morrido fazia pouco e o novo pontífice
era Inocêncio XIII (1721-24); seu sucessor seria Bento XIII (1724-30), para
mencionar os papas da estada do santista na cidade. Aproveite-se para dizer que
durante o longo reinado de D. João V houve um total de cinco: os três
mencionados e os que os sucederam, Clemente XII (1730-40) e Bento XIV
(1740-58). Não estão todos eles entre os mais poderosos pontífices e merecem,
por exemplo, apenas poucas linhas, e não particularmente elogiosas, na
prestigiada “Histoire des papes et du Vatican”, coordenada por Christopher
Hollis. Inclusive Bento XIV, um dos mais eruditos religiosos que ascenderam
ao trono de São Pedro. A maré era vazante, como explica o especialista
Ferdinand Maass: “Nenhum pontífice da época teve suficiente força para
defender seus direitos e suas possessões”. Não havia mais Papa capaz de obrigar
um rei a fazer penitência em Canossa (como fez Gregório VII com o imperador

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Henrique IV, em 1122). Após viver em Paris, a capital do absolutismo, mas
também do racionalismo, nada melhor do que um longo estágio em Roma para
quem quisesse uma completa aula de mundo, na primeira metade do século
XVIII.
Não faltavam assuntos para serem tratados na cidade papal a um
representante de um rei tão vinculado a temas religiosos como D. João V.
Vamos citar três, aos quais o monarca atribuía grande importância.
O primeiro, e mais urgente, pois o problema estava-se dando nesse ano
de 1721, era o capelo cardinalício automático aos núncios em Lisboa: ao
terminar sua missão em Portugal, desejava o rei que os representantes papais
fossem aquinhoados com o título de cardeal, como acontecia em Viena, Paris e
Madri. Uma questão de prestígio real, e nessas o monarca não cedia. O caso
específico era o do núncio D. Vicente Bichi, que estava deixando a capital
portuguesa e não recebera o capelo; o novo núncio, monsenhor Firrao, havia
sido nomeado e estava tendo dificuldades para entrar em Portugal.
O segundo assunto dizia respeito ao status e às vestimentas especiais
dos clérigos da Capela Real, a igreja diretamente ligada ao rei. D. João V queria
transformar seu local de culto privado numa igreja patriarcal, com padres que
parecessem altos dignitários eclesiásticos. Para isso deveriam ter vestes
condizentes, e os nomes específicos das partes destas permeiam os documentos
trocados entre Roma e Lisboa: batinas, manteletes, roquetes e — o mais citado
— fanones, como se chamam as duas tiras que pendem das mitras episcopais.
Em carta privada, Bento XIII ironizava os desejos do monarca luso, dizendo
que ele queria “distinções próprias de cardeais, para enfeitar os ridículos padres
de sua igreja patriarcal.” Concedeu, entretanto, muito do que o generoso rei
pediu...
O terceiro, mas não menos importante tema, era um título eclesiástico
a ser dado a D. João V. Ele já era chamado de “o magnânimo”, mas desejava

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outro, digamos mais internacional, que foi afinal conseguido: “o fidelíssimo”. Se
o rei da França era “cristianíssimo” e o da Espanha “católico”, não havia por que
o monarca de um período tão opulento da história lusa ficar por baixo.
Matérias assim podem parecer hoje fúteis, e é difícil imaginar que uma
mente tão aguda como a de Alexandre de Gusmão se ocupasse durante sete anos
de títulos, vestimentas, penduricalhos. E, ainda, sem ser dos representantes
mais graduados. Em Roma havia o embaixador, um grande fidalgo, André de
Melo e Castro, conde das Galveias; também integrava a missão, como enviado
especial, Pedro da Mota, irmão do cardeal João da Mota e Silva, então influente
ministro in petto de D. João V (o próprio enviado seria depois ministro); e
estavam lá igualmente os irmãos José Jorge e José Correa, que se ocupavam das
questões financeiras (o monarca tinha grandes despesas em Roma, algumas
confidenciais). Sem falar nos altos prelados portugueses que praticamente
viviam na cidade, a começar pelos cardeais D. Nuno da Cunha (inquisidor-mor
em Lisboa) e D. José Pereira de Lacerda, ricamente dotados pela Coroa.
Há fatos a ponderar, em favor da relativa relevância do nosso
biografado em Roma. Primeiro, os assuntos eclesiásticos eram fundamentais
para o monarca luso, o que valorizava todos os agentes que se ocupavam deles;
segundo, Alexandre já era um especialista nessas questões e sem dúvida
aperfeiçoou-se nelas e nas artes da negociação com a corte papal nos sete anos
nos Estados da Igreja. Formado em cânones em Coimbra, logo antes de viajar
a Roma, realizou — é uma curiosidade que damos aqui — algumas gestões para
ser padre, como o eram seis de seus irmãos (tinha ainda duas irmãs freiras).
Durante a vida, elaborou vários estudos sobre religião e as relações com o
Vaticano, uma de suas ocupações prioritárias, mais tarde, quando secretário do
rei.
Há quem diga — é o terceiro fato — que lhe foi oferecido pelo Papa
Bento XIII o título de Príncipe da Igreja, o que seria impensável se não tivesse

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alguma projeção. A fonte é Martins de Araújo, autor de seu elogio fúnebre em
1753, outros repetem e o embaixador Araújo Jorge, dos primeiros estudioso de
sua obra política, até explica que Gusmão não pôde aceitar a honraria por não
ter havido a necessária concordância de D. João V. Teve — isto é incontroverso
— amigos de relevo na cúria, como o cardeal Lambertini, mais tarde o Papa
Bento XIV, de quem Thomas Macaulay dizia ser o mais sábio dos duzentos e
cinquenta sucessores de São Pedro, e o cardeal de Tencin, seu correspondente
durante anos, futuro ministro de Luís XV (e irmão da marquesa de Tencin, a
personagem mais conhecida da família: amante do regente, tinha um célebre
salon e era a mãe do enciclopedista d’Alembert — bebê abandonado na escadaria
de uma igreja e nunca reconhecido).
As relações entre Lisboa e Roma eram intensas – lembremos que
vigorava no reino e nas colônias o padroado –, às vezes tensas, e foram rompidas
em 1728. O tal capelo cardinalício foi a causa principal. Todos os membros da
embaixada voltaram para Lisboa, e o rei não teria ficado satisfeito com a missão
como um todo, demorando para receber pessoalmente cada um deles. Se foi bem
isso, não duraram muito as ressalvas reais. É verdade que os irmãos financistas
nunca mais recobraram sua importância na Corte joanina (foram acusados de
desonestidade, com toda razão, segundo Alexandre), mas os outros, algum
tempo depois, receberam novas e importantes funções. A começar pelo nosso
biografado, que logo restabeleceu contato com o rei e, o mais importante, em
1730 foi nomeado secretário particular. Alguns autores falam secretário “da
puridade”, o que dá uma ideia de segredo; foi cargo havido no passado, mas que
não corresponde à notoriedade que Alexandre de Gusmão sempre teve.

O “Secretário d’El Rei” e o Tratado de Madri


Durante duas décadas Alexandre foi um dos principais assessores de
D. João V, “praticamente um primeiro-ministro”, diz o historiador A. G. de

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Oliveira Marques. Cuidou de vários assuntos: por exemplo, tem um importante
texto sobre as vantagens de uma aproximação estratégica com a França para
posicionar melhor Portugal nas suas relações com a Espanha e a Inglaterra. Foi,
também, o que se chamaria hoje encarregado do serviço secreto de D. João V, e
até autor do código de cifras de Portugal. Dois temas eram, entretanto, de sua
específica atribuição: a Igreja e o Brasil. Naqueles, havia a concorrência de
cardeais, núncios, confessores... nestes era o Papa, sobretudo depois que passou
a integrar o Conselho Ultramarino, em 1743. Nos parágrafos seguintes nos
concentraremos em suas atividades relacionadas com o grande acordo que
bipartiu o continente sul-americano, fato sem semelhante no mundo inteiro.
Pensemos e repensemos o tema.
Alexandre de Gusmão é personagem importante da história luso-
brasileira por ser o arquiteto e o construtor do Tratado de Madri, fundamental
para a formação do território brasileiro: multiplicou por três a área anterior,
estabelecida pelo Tratado de Tordesilhas. Era um “brasílico”, natural da “Villa
do Porto de Santos”, para usar expressões da época, que se tornara o poderoso
secretário particular de D. João V, rei de Portugal de 1706 a 1750, o período
mais intenso da produção de ouro no Brasil. Por ser também um intelectual, e
excelente escritor, esteve sempre presente nas histórias literárias,
especialmente pelas cartas, originais, divertidas, cortantes, que escrevia a
amigos ou, em nome do rei, a grandes do reino.
Sua fama no século XIX provinha das epístolas, mas, ao se conhecer
melhor seu papel político na Corte lusa, em defesa dos interesses territoriais do
Brasil, ela passou a ser apenas um atraente complemento de sua nova figura de
grande servidor público. Só pelas cartas, Alexandre não teria sido, já nos anos
iniciais do século XX, entronizado pelo Barão do Rio Branco numa galeria de
bustos de notáveis da política externa, na entrada do Palácio do Itamaraty no
Rio de Janeiro; nem suas cinzas teriam sido transportadas solenemente de

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Lisboa para São Paulo, em 1965, a fim de ficarem expostas na única urna fúnebre
que há no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.
O que era o Brasil, afinal, antes do Tratado de Madri? Uma colônia que
agregara a produção de ouro, de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso, à velha
de dois séculos produção de açúcar do Nordeste; que vira crescer a várias
dezenas o número de missões de religiosos portugueses no rio Amazonas e seus
afluentes; que começava a levar para a feira de Sorocaba, e daí às minas e outras
regiões, as mulas e os cavalos das vacarias do sul. Na primeira metade do século
XVIII, o Brasil tinha, pois, novas riquezas. O problema é que elas estavam fora
da área delimitada em Tordesilhas; em outras palavras, enriquecera, mas tinha
suas fronteiras completamente abertas. Não é difícil imaginar a insegurança que
tal fato provocava nos mais perspicazes administradores coloniais. Era óbvio o
conflito com o vizinho espanhol, que via suas possessões sul-americanas serem
invadidas por luso-brasileiros. E essas divergências coloniais tinham um centro
nevrálgico: a Nova Colônia do Santíssimo Sacramento, para dar seu nome
completo.
Fundada em 1680, Colônia objetivava a dar uma base concreta à velha
reivindicação lusa de levar os limites de suas possessões americanas até o grande
rio do sul. Situada bem em frente a Buenos Aires, representava não só um
possível perigo de invasão – lembre-se que Portugal sempre teve o apoio da
Inglaterra, a grande potência naval do mundo –, mas também um real prejuízo
para a Espanha, por ser a porta da saída ilegal da prata boliviana. Não se
esqueça, ademais, de que Colônia não era apenas a cidadezinha uruguaia de
nossos dias, mas, pelo menos na visão lusa, o ponto fulcral da posse de toda a
chamada Banda Oriental (o Uruguai). Cercos militares, houve cinco, ocupações
quatro, as três primeiras revertidas por decisões que vinham da Europa. A boa
diplomacia lusa contava, e o apoio inglês mais ainda.

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Alexandre sabia que seria necessário abandonar – e não apenas adaptar,
como queriam os espanhóis – o Tratado de Tordesilhas e procurar outras bases
para um novo tratado continental de limites, que preservasse a Amazônia,
garantisse as minas de ouro do oeste e estabelecesse uma fronteira segura no
sul, onde os espanhóis eram mais fortes. Condutor das negociações que se
iniciaram formalmente em 1746, acabou concluindo que o princípio diretor do
mega acordo só poderia ser a ocupação (o uti possidetis na linguagem diplomática
do século XIX). A fim de evitar as incertezas de Tordesilhas sobre onde
exatamente passaria a linha divisória – na época era imprecisa a marcação das
longitudes –, introduziu o princípio adicional de que os limites deveriam ser rios
e montanhas facilmente identificáveis (as “fronteiras naturais”).
Para que a Espanha consentisse em uma perda territorial de tal medida,
Alexandre trouxe o argumento da compensação mundial, já que no Oriente,
especialmente nas Filipinas, os invasores foram os hispânicos (pelo Tratado de
Saragoça, de 1529). Havia ainda uma permuta a ser feita, e esta era complicada,
pois versava sobre territórios estratégicos e habitados. Portugal nunca havia
conseguido ligar de forma segura Colônia a seus estabelecimentos mais ao sul
do Brasil, como o forte do Rio Grande de São Pedro e a povoação de Laguna. A
cidadela lusa nunca fora mais que um ponto isolado no meio de um território
onde os espanhóis predominavam, sobretudo a partir da fundação de
Montevidéu, em 1726. A manutenção era muito cara para Lisboa, e sua
conquista era o principal objetivo do governo madrileno. Significava o controle
do rio da Prata.
Conhecedor do alto valor de Colônia para nossos vizinhos, Gusmão
identificou uma excelente área de agricultura e pecuária, os Sete Povos das
Missões do Uruguai – a metade oeste do atual Rio Grande do Sul –, como a
ideal para trocar com Colônia. Não foi fácil convencer Madri, pois havia ali
povoações bem estruturadas, com belas igrejas, e cerca de 30 mil indígenas

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 19


catequizados por jesuítas espanhóis. Quando finalmente os negociadores
hispânicos aceitaram a permuta, nos derradeiros dias da negociação, ficou
assegurado que o Brasil, na sua parte crítica, a atual região Sul, teria limites
amplos e defensáveis. Lembre-se de que antes do tratado o que havia até ali era
uma estreita faixa litorânea de terra, “de umas 10 léguas”, que se estendia de
Paranaguá à lagoa dos Patos. Foram as novas fronteiras este-oeste
estabelecidas no extremo-sul pelo Tratado de Madri, uns 600 quilômetros do
litoral ao rio Uruguai (100 léguas), que permitiram a criação do futuro estado
federativo do Rio Grande do Sul, e, consequentemente, de Santa Catarina e do
Paraná.
Os artigos do Tratado de Madri descrevem, com a precisão possível no
tempo, a longuíssima linha de limites que, desde Castilhos Grandes (ao sul do
arroio do Chuí, no Rio Grande do Sul), e depois de percorrer mais de 17 mil
quilômetros, envolvendo o Centro-Oeste e a Amazônia, termina na foz do rio
Oiapoque (no Amapá). Tudo isso está igualmente indicado num mapa que é o
mais importante da cartografia brasileira. Concebido por Alexandre de
Gusmão, e enviado a Madri em 1749, serviu de base às negociações e às futuras
demarcações do tratado, tendo posteriormente tomado o nome de Mapa das
Cortes.
O mapa aproveitava cartas geográficas e roteiros de práticos e
especialistas, inclusive jesuítas espanhóis, e unia os dados num todo, coerente,
sim, mas habilidosamente apresentado. Diminuindo as longitudes, dava a
impressão de que a área ocupada era bem menor do que a verdadeira. Por ele o
território brasileiro duplicaria; na verdade triplicava. Apesar de seus defeitos,
era a carta geográfica que apresentava o Brasil, pela primeira vez, com a forma
que hoje nos é familiar: um grande triângulo, ocupando toda a metade leste da
América do Sul. Podemos dizer que foi o mapa que inventou o Brasil.

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 20


O Tratado de Madri foi assinado em 13 de janeiro de 1750. A ele deve
o Brasil a maior parte de seu território, o quinto do mundo, depois da Rússia,
Canadá, Estados Unidos e China. Apesar de sua relevância, Portugal concordou
com anulá-lo em 1763, por dificuldades de demarcação e, principalmente, pela
Guerra Guaranítica, que opôs os indígenas dos Sete Povos às potências ibéricas.
Os seus limites foram restabelecidos em 1777 pelo Tratado de Santo Ildefonso,
com exceção dos Sete Povos, que voltaram à soberania espanhola. Em 1801,
finalmente, durante nova guerra peninsular, a “das Laranjas”, luso-brasileiros
ocupam a área das missões, reestabelecendo o equilíbrio do Tratado de Madri.
A grande obra de Gusmão, que parecia ter fenecido na infância, na verdade
estava no começo de uma longa vida. As fronteiras estabelecidas em 1750, são,
basicamente, as fronteiras atuais do Brasil.
Concluamos com uma imagem e uma comprovação. Na Sala do
Tratados, a mais nobre do belo Palácio do Itamaraty em Brasília, há bustos de
três grandes da diplomacia brasileira: o patrono dos diplomatas do Brasil, Barão
do Rio Branco; o mais constante negociador das fronteiras do Império, Barão
da Ponte Ribeiro; e, simplesmente, Alexandre de Gusmão. Que bela viagem para
um menino pobre, de um pequeno porto, numa província longínqua da colônia
americana de Portugal!

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 21


A missão de Cipriano Ribeiro Freire, primeiro
representante de Portugal nos Estados Unidos
(1794-1799)
Jorge Martins Ribeiro*

Resumo: Cipriano Ribeiro Freire foi o primeiro representante de Portugal nos


Estados Unidos da América, entre 1794-1799, com a categoria de ministro
residente. A sua nomeação não foi isenta de dificuldades, porque os norte-
americanos, por razões de política interna, não estavam interessados em enviar
um diplomata de igual categoria para Lisboa. O governo português antecipou-
se, e perante o facto consumado, o Congresso teve de ceder aos desejos da corte
de D. Maria I. Freire foi membro de várias academias científicas de Londres,
Lisboa e Filadélfia. Assim, esta elevada craveira intelectual, aliada ao facto de
ser um diplomata experiente, fizeram com a que a sua estada na América fosse
bastante frutuosa, pois defendeu os interesses portugueses e o incremento das
relações bilaterais.

Palavras-chave: Diplomacia; Relações Bilaterais; Navegação; Comércio;


Corsários Berberescos.

1. A nomeação de Cipriano Ribeiro Freire


Neste artigo vamos estudar a forma como decorreu a missão do
primeiro representante diplomático português nos então recém-independentes
Estados Unidos da América, Cipriano Ribeiro Freire. Este diplomata nasceu em
Lisboa em 1749; e, dada a profissão do pai, ligado à atividade comercial, estudou
na Aula do Comércio, onde se revelou um excelente aluno e foi também
protegido do Marquês de Pombal, que nele reparara, aquando do exame final,
ao qual presidira como era hábito. Esta alta proteção levou a que fosse

*
Professor Auxiliar do Departamento de História, Estudos Políticos e Internacionais
da Universidade do Porto/Faculdade de Letras; Investigador integrado no CITCEM – Centro de
Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória” da Universidade do
Porto/Faculdade de Letras
E-mail: jribeiro@letras.up.pt
22

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021


“escolhido para Secretario do Ministro Portuguez em Londres, dando-lhe por
instrucção ficar escrevendo-se particularmente com elle, no que alli notasse
mais digno, em commercio, industria, finanças, e ainda politica geral.” (Sá, 1842,
2).
Cipriano Ribeiro Freire chegou a Londres em abril de 1774, ano difícil
para a diplomacia portuguesa devido às tensões internacionais e à querela luso-
espanhola, a propósito da fronteira sul do Brasil. Após Luiz Pinto de Sousa
Coutinho ter cessado funções, Freire foi, entre setembro de 1783 e setembro de
1785, encarregado de negócios da Legação Portuguesa em Londres.
Desempenhou de tal modo satisfatório as suas funções que foi nomeado oficial
da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra e recebeu “o
habito da Ordem de Santiago da Espada, com doze mil réis de tença”. (Sá, 1842,
6). Em 1788, quando Sousa Coutinho foi escolhido para Secretário de Estado
dos Negócios Estrangeiros, Cipriano Ribeiro Freire voltou a ser o
representante diplomático português junto da corte inglesa. Aí teve de fazer
face a situações delicadas que poderiam prejudicar o relacionamento luso-
britânico.
Entretanto as suas qualidades intelectuais garantiram-lhe a admissão
na Royal Society, na Society of Antiquaries e na Society for the Encouragement
of Arts, Manufacture and Commerce, bem como na Associação dos Amigos da
Humanidade. Entretanto, também foi feito membro da Academia de Ciências de
Lisboa (Sá, 1842, 8-9; Ribeiro, 1997, 386).
Ainda em 1790, quando ainda se encontrava no Reino Unido, foi
nomeado ministro residente nos Estados Unidos. Após o reconhecimento da
independência das 13 colónias britânicas pela corte de Lisboa, foi difícil
conseguir que o Congresso se decidisse a nomear um representante em
Portugal. Em 1791, antes de regressar a Lisboa casou com Agnes Frances

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 23


Hudson, abastada viúva do coronel inglês Ricardo Lohkyer (Sá, 1842, 9;
Carvalho, 2014, 54)

A troca de cônsules entre os dois países era algo que já vinha detrás,
estava prevista num dos artigos do tratado entre Portugal e os Estados Unidos,
assinado, em 1786, por John Adams e Thomas Jefferson, mas não pelo
embaixador português em Londres, Luís Pinto de Sousa Coutinho, por não ter
poderes para tal. Este acordo, contudo, nunca foi ratificado pelo gabinete de
Lisboa – na realidade, não existia nenhum acordo no respeitante ao nível da
representação diplomática. O governo português insistia em enviar para a
América do Norte um diplomata que o representasse e queria que o Congresso
nomeasse para Lisboa um de igual categoria.
Esta dificuldade dever-se-ia ao facto “de muitos americanos não
confiarem nos diplomatas e de alguns dos congressistas não quererem ter
representantes permanentes no estrangeiro” (Ribeiro, 1987, 365). Aliás, na
opinião de alguns dos Pais Fundadores, como George Washington, James
Madison e Alexander Hamilton os Estados Unidos não necessitavam de ter
mais do que cinco ou seis missões permanentes em países estrangeiros. As
outras potências, por seu lado, enviariam para a América diplomatas apenas
quando fosse necessário (Ribeiro, 1987, 365). Todavia, de acordo com Tiago
Moreira de Sá a razão para esta resistência era de política interna,
“nomeadamente a oposição a uma extensão do poder federal no quadro do
conflito dificilmente estabelecido entre os poderes da União, dos Estados e das
comunidades locais” (Sá, 2016, 39).
Nos inícios da última década do século XVIII, a jovem república tinha
apenas “quatro ministros e um encarregado de negócios na Europa” mais “dois
representantes pessoais” (Ribeiro, 1987, 365) de George Washington. A partir
de 1796 passaram a ter três ministros plenipotenciários em capitais do

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continente europeu; Londres, Paris e Madrid. No entanto, vozes influentes
como as de John Jay e de Thomas Jefferson eram favoráveis a que o Congresso
tivesse um representante na capital portuguesa. Além disto, Charles Pinckney,
que se mostrara favorável a que o país apenas tivesse legações nas capitais
francesa e britânica, em 1786, acabou por mudar de opinião e apresentar uma
moção ao Congresso solicitando a nomeação de um ministro residente para
Portugal. Por outro lado, a corte portuguesa queria um diplomata com a
categoria de Ministro Plenipotenciário, numa altura em que os americanos já
aceitavam enviar um encarregado de negócios. Contudo, como esta era a
categoria mais baixa das quatro classes de chefes de missão diplomática,
Portugal avisava que um simples encarregado de negócios não poderia exercer
as suas funções com eficácia, devido à etiqueta da corte (Ribeiro, 1997, 361, 363,
365-367).
Apesar destas opiniões divergentes, o governo português conseguiu
enviar um ministro residente para Filadélfia e ter um ministro residente em
Lisboa, dando, assim, corpo a uma pretensão que já vinha desde 1785, altura da
negociação do já referido tratado luso-americano (Ribeiro, 1997, 320, 366-367).
O primeiro representante diplomático em Portugal foi o coronel David
Humphreys. Nascido no Connecticut em 1752, frequentou o Yale College
(antecessor da Universidade de Yale), após o que ingressou no exército, onde
uma carreira brilhante lhe permitiu atingir o posto de tenente-coronel. Tornou-
se ajudante de campo de George Washington, de quem foi amigo pessoal. Entre
1784 e 1790 ocupou vários cargos, tendo sido secretário da Comissão
encarregada de negociar com as potências estrangeiras. Em 1790 foi enviado
para a Europa, sob o pretexto de negociar tratados com a Grã-Bretanha,
Espanha e Portugal. No entanto, o verdadeiro fim desta missão era o fazer
chegar instruções ao encarregado de negócios americano na capital espanhola,
por causa do conflito que se adivinhava vir a eclodir brevemente entre este país

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 25


e a Grã-Bretanha, a propósito do Nootka Sound. Assim, seguindo instruções de
Thomas Jefferson, Humphreys viajou para Londres, onde cumpriu a missão de
que estava encarregado, e aí, antes de embarcar para Lisboa, conforme o
planeado, tomou conhecimento que Cipriano Ribeiro Freire fora nomeado
ministro residente nos Estados Unidos.
De qualquer modo, o coronel David Humphreys viajou para a capital
portuguesa onde chegou a 18 de novembro de 1790. Refira-se, no entanto, que
a sua missão em Portugal à partida estava comprometida, pois um dos objetivos
era o de tentar persuadir o governo português a aceitar um representante
americano com a categoria de encarregado de negócios.
David Humphreys teve duas entrevistas com o Secretário de Estado
dos Negócios Estrangeiros, Luís Pinto de Sousa Coutinho. Na primeira, este
congratulou-se com a nomeação de Cipriano Ribeiro Freire, não só simpatizante
dos Estados Unidos como pessoa do conhecimento de vários notáveis
americanos, embora as posições de ambos, a este respeito, se revelassem
irredutíveis. No decurso de um segundo encontro as opiniões dos dois homens
tornaram-se mais flexíveis, tendo o coronel David Humphreys declarado que,
dadas as circunstâncias, só lhe restava dar conhecimento ao seu governo do
ocorrido.
Uma vez que era amigo pessoal de George Washington escreveu uma
carta confidencial a este estadista, aconselhando-o a aceitar as pretensões
portuguesas e, ao mesmo tempo, a enviar uma carta escrita, pelo seu próprio
punho, à Rainha D. Maria I agradecendo a amizade com os Estados Unidos e
por ter ordenado que a Armada portuguesa protegesse os navios mercantes
americanos dos ataques dos corsários argelinos. Finalmente, a 21 de fevereiro
de 1791, o Senado ratificava a nomeação do coronel David Humphreys, como
ministro residente em Lisboa, sendo esta a primeira vez, depois da entrada em

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 26


vigor da Constituição que tal facto ocorria (Ribeiro, 1997, 633, 639, 642; Sá.
2019, 40-41).
Em nosso entender, as razões que levaram os norte-americanos a
aceitarem as exigências lusas deve-se também ao facto de a capital portuguesa
ser um bom local para obterem informações sobre as regências norte-africanas.
De resto, tanto Thomas Jefferson, como David Humphreys achavam ainda
Lisboa o ponto ideal para os Estados Unidos estabelecerem comunicações com
Marrocos (Ribeiro, 1997, 633-638, 709; Ribeiro, 2016, 164).
Deste modo Cipriano Ribeiro Freire pôde tomar posse do posto para
que fora indicado. Apesar de nomeado em meados de 1790, apenas partiu para
a América do Norte em 1794, tendo chegado a Nova Iorque a 13 de setembro
desse mesmo ano (Ribeiro, 1997, 368-369; Sá, 2016, 42), em plena epidemia de
febre amarela, pelo que não pôde seguir imediatamente para Filadélfia. No
entanto, avisado pelo Secretário de Estado, Edmund Randolph, de que esta
doença já não constituía perigo, o representante português seguiu para
Filadélfia, onde chegou a 11 de outubro. Contudo, só foi oficialmente
apresentado a George Washington a 30 de outubro, pois este encontrava-se
fora da cidade Na sequência da denominada Rebelião do Whiskey participava
numa expedição militar no oeste da Pensilvânia, cujo objetivo era o de submeter
os rebeldes que se insurgiam contra as sanções que recaíam sobre quem não
satisfazia o imposto sobre o uísque, lançado em 1791. acrescido do facto da falta
de moeda para fazer os respetivos pagamentos. (Krom, Krom, 2012, 108-110).
Cipriano Ribeiro Freire foi cordialmente recebido pelo Presidente e os
contactos com as autoridades americanas e os diplomatas estrangeiros foram
um êxito. Isto não invalidou, no entanto, que o Secretário de Estado norte-
americano mostrasse algumas reservas acerca de Freire, pois pediu informações
a seu respeito ao coronel David Humphreys. Apesar de o diplomata português
aparentar ser uma pessoa conciliatória, temia que pudesse ser um fator de

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 27


desestabilização entre os dois países. Infelizmente não foi possível encontrar a
resposta de Humphreys a esta dúvida levantada por Edmund Randolph
(Ribeiro, 1997, 371).
Com o tempo, o diplomata português, passou a ser um admirador de
George Washington “que considerava "hum grande homem, com longa e
competente experiencia, constante observação e profunda reflexão e o juizo
mais seguro e consummada prudencia” (Ribeiro, 1997, 409-410). Aliás, em
vários dos seus ofícios, não lhe regateava elogios, salientando a "sua firmeza,
integridade, e princípios", afirmando que iria ser sempre uma referência para os
que se lhe seguissem. Entre os possíveis sucessores, Freire era a favor de John
Jay, embora soubesse que devido ao facto de ter assinado o famigerado Jay’s
Treaty nunca teria essa possibilidade. Assim, entre John Adams e Thomas
Jefferson, os mais bem posicionados para ganharem as eleições, as suas
preferências iam para o primeiro, dado não nutrir grande simpatia pelos
apoiantes do segundo, nem pela admiração deste para com os ideias da
Revolução Francesa (Ribeiro, 1997, 410, 412).
De referir ainda, que Cipriano Ribeiro Freire, em 1796, se tornou o
primeiro e um dos poucos portugueses a ter a honra de ser membro da ainda
hoje prestigiada American Philosophical Society, com sede em Filadélfia. A sua
passagem ficou assinalada pela oferta que fez àquela organização de 15 livros
em 1797 – uma das maiores dádivas recebidas naquela época (Ribeiro, 1997,
368).
A instalação de Freire em Filadélfia não esteve isenta de problemas,
pois teve dificuldade em encontrar uma casa digna da sua categoria e verificou
que o custo de vida era entre 40% a 50% superior ao de Londres. Tal como
muitos outros diplomatas, queixava-se do transtorno causado pelo atraso dos
seus vencimentos, mas como a fortuna da esposa lhe permitia viver
desafogadamente, apenas solicitava a sua nomeação como ministro-

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 28


plenipotenciário. Deste modo, ficaria ao mesmo nível dos diplomatas dos países
europeus e seria bom para a dignidade de Portugal, sobretudo numa cidade
pequena, como era o caso de Filadélfia. Como seria previsível, dadas as
dificuldades da sua indigitação e da filosofia do governo americano a este
respeito, Cipriano Ribeiro Freire, até ao final da sua missão nunca mudou de
categoria, embora tivesse de se ocupar de problemas graves que causavam
prejuízos ao comércio português (Ribeiro, 1997, 379),

2. Problemas com os corsários franceses e repatriamento de marinheiros


portugueses
Desde a sua chegada, Freire teve de se ocupar dos marinheiros
portugueses, que pelas mais diversas razões e contra a sua vontade
desembarcavam em portos dos Estados Unidos. Geralmente eram tripulantes
de navios portugueses apresados em alto mar, tanto quer por navios de guerra,
como por corsários. O diplomata deu-se conta de que esses navios mercantes
lusos eram alvo de sequestro por fragatas e corsários franceses.
Na sua correspondência, refere os nomes de algumas dessas
embarcações e as circunstâncias em que os incidentes ocorreram. Menciona, por
exemplo, o “hiate” Nossa Senhora da Encarnação e S. José, apresado a 30 de
abril de 1794, o Rainha dos Anjos, capturado e incendiado juntamente com duas
embarcações espanholas pela fragata gaulesa onde seguia Pierre August Adet,
nomeado embaixador pela Convenção junto do executivo norte-americano, em
1795, o S. Joseph Triumpho, em novembro de 1795 e o Nossa Senhora da Luz
e Santa Anna, em 1797. Além destes, também chegavam aos Estados Unidos
marinheiros portugueses de navios que, após sequestrados. tinham sido levados
para Caiena (Guiana Francesa), pois achavam que dos portos americanos
conseguiriam regressar mais depressa a Portugal. Assim, as despesas com o

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alojamento e alimentação e até de transporte corriam por conta do ministro
(Ribeiro, 1997, 372-377).
Além das embarcações lusas, os franceses também apresavam, sempre
que a ocasião se proporcionava, navios ingleses e até veleiros norte-americanos,
desde que se dirigissem ao Reino Unido. Freire, como seria de esperar, nos
ofícios que envia para Lisboa reprovava estes ataques franceses designando-os
por “inconsequências e injustiças” apenas com “parallelo nas suas mesmas
atrocidades e abominaçoens” (Ribeiro, 1997, 374). Contudo, nesta altura, os
Estados Unidos não possuíam uma marinha de guerra para sua defesa. Devido
a isto os norte-americanos viam-se obrigados a conciliar-se com os franceses,
pois no Tratado de Aliança – assinado em 1778 entre os EUA e a França –
estava consignado que “as marinhas de guerra ou os navios particulares
utilizados para fins bélicos de qualquer dos dois países podiam entrar livremente
nos portos do outro”. Dado este clausulado, seria muito difícil obter a libertação
de qualquer embarcação lusa apresada pelos franceses e levada para a América
do Norte, pelo que o diplomata pedia instruções sobre como atuar em casos
futuros (Ribeiro, 1997, 371, 375, 378-379).
Os repatriamentos, como referimos, eram custeados por Cipriano
Ribeiro Freire, pelo que este mencionava os exemplos da Espanha, França e
Grã-Bretanha, países que haviam dado créditos substanciais aos seus
diplomatas ou depositado uma importante quantidade de dinheiro nos Estados
Unidos para que estes pudessem pagar despesas deste tipo. Por outro lado, para
não envolver Lisboa no conflito que opunha as potências europeias, em 1795,
decidiu não aceitar a oferta do ministro de Espanha de repatriar os marinheiros
portugueses, juntamente com os espanhóis, a bordo de um navio parlamentário,
pois isso significaria admitir que Portugal e a França estavam em guerra. Como
consequência os homens ficaram mais tempo em Nova Iorque à espera de
transporte, pelo que para fazer face às despesas de alojamento, alimentação e

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 30


vestuário, alguns tiveram de trabalhar “à jorna”. A propósito, Freire queixava-
se de ser alvo de ingratidão por parte destes marinheiros, pois, apesar da
“grande despeza” que fizera por a “julgar indispensável ao serviço de Sua
Magestade” nada os satisfazia, considerando pouco tudo quanto fizera por eles
(Ribeiro, 1997, 375-376).

3. Salários e deserção de marinheiros


Um dos assuntos que o ministro português aflora nos seus ofícios tem
a ver com os salários praticados nos Estados Unidos, que considerava serem
excessivamente altos quando, obviamente, comparados com os portugueses.
Não deixa de ser curioso este facto se atendermos a que quando é feita
afirmação, aquela jovem república tinha iniciado a sua emancipação há cerca de
dezoito anos, após o que se seguira a guerra da Independência, que deixara
cicatrizes e consumira homens e bens, além de que as treze colónias tinham sido
formalmente reconhecidas como independentes pelo Reino Unido apenas 11
anos antes.
No entanto, o que mais preocupava Freire era o facto de estes elevados
vencimentos serem um atrativo para os marinheiros portugueses que, muitas
vezes, quando chegavam a portos norte-americanos, desertavam e
abandonavam os navios em que serviam. Como é óbvio, isto revelava-se um
quebra-cabeças para os capitães dos navios, pois para o regresso a Portugal
tinham de contratar pessoal norte-americano ou de outras nacionalidades aos
quais tinham de pagar salários altos. Além disto, não se podia contar com a
ajuda das autoridades judiciais norte-americanas, pois não existia um tratado de
comércio entre os dois países. A fim de evitar este inconveniente, o ministro
sugeria que os capitães dos navios celebrassem um contrato individual com os
seus tripulantes, pelo qual estes se obrigavam sob pena de uma multa pecuniária
a não abandonar o seu posto e a regressarem ao porto de partida. Com este

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 31


documento, devidamente autenticado pelos cônsules dos Estados Unidos,
poder-se-ia requerer às autoridades judiciais a sua captura e envio para a
embarcação que haviam deixado. Com este expediente evitar-se-iam as
deserções, pelo que os barcos portugueses poderiam continuar a fazer as
ligações marítimas entre Portugal e a América do Norte (Ribeiro, 1997, 379-
380).
Um dos assuntos que o diplomata acha importante informar o seu
governo tem a ver com as leis da naturalização de estrangeiros, apesar de a
emigração portuguesa para os Estados Unidos não ser nesta altura muito
significativa. Embora não haja dados numéricos para o período em estudo,
podemos fazer uma ideia do reduzido número de emigrantes legais, se
considerarmos os dados contidos na obra de Maria Baganha (Baganha, 1990,
19, 250, 256; Ribeiro, 1997, 380-381), relativos à década de 1820. Assim, entre
1820 e 1830, teriam entrado legalmente nos Estados Unidos, cerca de 256
pessoas, sendo impossível determinar a quantidade de ilegais (Ribeiro, 1997,
380).
As leis de naturalização tinham sido alteradas por volta de 1795,
tornando-se mais rigorosas. Na opinião do diplomata esta maior severidade
dever-se-ia ao facto de a emigração ter sido muito elevada, levando a que
chegassem elementos indesejáveis. Em ofício de agosto desse mesmo ano
escreve:

“A migração para estes Estados Unidos, tem sido tal, e de


homens de principios tão perniciosos, que este govêrno sentio a
necessidade de prevenir que elles tivessem o direito tão cêdo de
votarem nas eleiçoens de membros do Congrésso animados de
principios democraticos com que já nellas tanto influem"
(Ribeiro, 1997, 381).

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 32


O ministro, no entanto, tinha dúvidas acerca da legalidade desta
legislação “à luz do direito das gentes”, bem como “à luz do direito publico e
civil”, pois neste campo as leis dos vários países eram diferentes.
Freire dá o exemplo dos súbditos ingleses, que só perdiam a
nacionalidade se tivessem cometido crimes de traição ou de lesa-majestade. Esta
afirmação, aliás, prende-se com outro problema que preocupava os norte-
americanos, pois muitos marinheiros eram considerados súbditos da Grã-
Bretanha pelo governo inglês e, como tal estavam obrigados a servir a bordo de
embarcações da Grã-Bretanha. A fim de evitar este abuso, a Câmara dos
Representantes, além de legislar sobre este assunto, decidiu registar todos estes
homens e dotá-los de uma certidão que atestava a sua qualidade de cidadãos
norte-americanos. Já os ingleses que serviam a bordo dos navios americanos,
faziam-no não por imposição mas porque os salários eram mais elevados.
Porém, como a legislação lusa em relação à nacionalidade não era muito clara,
o diplomata português nos EUA pedia instruções acerca do que fazer com os
portugueses naturalizados americanos no que que dizia respeito à concessão de
passaportes e de atestados de nacionalidade.

4. Possíveis negociações de um Tratado de Comércio Luso-americano


Com a nomeação de Freire, pensou-se que este iria negociar um tratado
com os Estados Unidos, uma vez que o assinado em 1786 nunca ter sido
ratificado pela corte de Lisboa. No entanto, tal nunca se veio a verificar porque
o diplomata não achava necessária a negociação de um acordo formal. Em seu
entender, as mercadorias portuguesas usufruíam nas alfândegas norte-
americanas das mesmas condições que as das outras nações. Por outro lado,
temia que as cedências a fazer em troca de uma diminuição de pagamento de
direitos sobre os vinhos se mostrasse incompatível com os acordos existentes
entre Portugal e outros países. Na opinião do ministro seria suficiente negociar

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 33


a taxa de 10% dos direitos de tonelagem que incidiam sobre as mercadorias
transportadas pelas embarcações lusas. A anulação destes impostos não seria
fácil, pois os Estados Unidos teriam também de os revogar para todas as nações
com as quais tinham acordos que incluíssem a cláusula de nação mais favorecida.
Além disso, Freire manifestava-se pouco crente de que isto fosse muito
favorável.
Na opinião do diplomata Portugal tinha duas hipóteses: ou aceitava as
condições americanas no que dizia respeito aos impostos alfandegários, levando
a que o comércio entre os dois países fosse feito por navios norte-americanos,
tornando-se num mero fornecedor de géneros; ou passava a tratar todas as
embarcações da jovem república nos portos lusos do mesmo modo que as
portuguesas eram tratadas na América do Norte. O diplomata, contudo, não era
favorável a nenhuma destas opções, antes preferindo que no texto de um tratado
luso-americano viessem a contar apenas “estipulaçoens geraes de favor e
comércio”, dado ser de evitar cláusulas que no futuro pudessem vir a prejudicar
as relações bilaterais, ou com quaisquer outros países (Ribeiro, 1997, 381-384).
Além das preocupações relacionadas com os direitos alfandegários
pagos pelos vinhos portugueses nas alfândegas americanas, em especial os que
taxavam os vinhos da Madeira, também se inquietou com o contrabando que do
território norte-americano se fazia para o Brasil. Sabia que barcos dos EUA
negociavam diretamente com a América do Sul, o que era ilegal, por causa do
exclusivo colonial. Assim, existiam embarcações que levavam certos bens para
os portos brasileiros e de lá regressavam carregadas com pau-brasil e outros
produtos tropicais. Outros veleiros, e cita o caso concreto do Harmonia de New
Bedford, iam também pescar para águas brasileiras. A propósito, Freire comenta
ter sido a sua ação enquanto representante de Lisboa que evitara mais abusos
(Ribeiro, 1997, 384-385). O ministro interessava-se de tal modo pela atividade
comercial que em 1795 considerava Portugal como um dos mais importantes

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 34


parceiros comerciais dos Estados Unidos, a par da Grã-Bretanha, França,
Espanha, Províncias Unidas, Dinamarca e Suécia (Ribeiro, 1997, 276-277).

5. Proteção portuguesa da navegação americana, face à ameaça dos


corsários argelinos
Outro dos temas que vai ser objeto de vários ofícios de Freire é a
continuação da política de proteção das embarcações mercantes americanas que
operavam no Mediterrâneo, nomeadamente dos ataques dos corsários de Argel
e de Tunes, então nominalmente parte do Império Otomano. De facto, desde
que o Reino Unido reconheceu formalmente a independência dos Estados
Unidos em 1783, os navios norte-americanos deixaram de ter a proteção da
marinha britânica (Ribeiro, 2016, 161-162). No entanto, por volta de 1795,
Freire informava que os americanos estavam interessados em negociar com
Argel e conseguir a libertação dos prisioneiros detidos. Na realidade, estavam
dispostos a pagar a quantia pedida por esta regência, pois isso evitava-lhes as
despesas decorrentes da construção de fragatas. Aliás, estes vasos de guerra
revelavam-se desnecessários, pois não tinham nenhum tipo de conflito com a
Europa.
Por esta altura, ainda segundo o diplomata português, o ministro
residente coronel David Humphreys, tinha ido aos Estados Unidos informar o
seu governo do estado das negociações e receber instruções. Este estava de
acordo em ceder às exigências dos argelinos, fornecendo armas, munições e
dinheiro. De facto, de regresso a Portugal trazia consigo 200 mil dólares para
pagar os resgates. Por outro lado, tinham concordado em dar presentes a
funcionários argelinos e pagar uma contribuição anual de 24 mil dólares até à
assinatura de um tratado.
O diplomata não estava de acordo com o curso da política norte-
americana para o Mediterrâneo e criticava-a, pois em sua opinião umas vezes

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 35


estes lutavam contra as potências berberescos e outras vezes forneciam-lhes o
equipamento necessário para os seus empreendimentos predatórios. Assim,
enquanto o estado de paz entre argelinos e americanos estivesse em vigor, estes
fornecer-lhes-iam material de guerra, o qual poderia ser utilizado quer contra
eles próprios, quer contra as nações europeias. Freire pensando certamente na
ajuda dada pela corte de Lisboa, achava a atitude estadunidense de grande
ingratidão. Na realidade, os Estados Unidos preocupavam-se que os
compromissos internacionais de Portugal o impedissem de continuar a auxiliar
a sua navegação comercial, daí ter sido recebida com satisfação a notícia da
permanência de uma esquadra portuguesa no estreito de Gibraltar (Ribeiro,
1997, 387-389).

6. Portugal procura obter informações sobre as formas de cultivo e da


indústria americanas
Um episódio a nosso ver relevante da missão de Cipriano Ribeiro
Freire, tem a ver com o facto de ter recebido a visita de um luso-brasileiro,
Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça, então com cerca de 24
anos. Este jovem, formado “em Direito e Filosofia na Universidade de Coimbra,
em 1798”, foi encarregado pelo secretário de Estado da Marinha, D. Rodrigo de
Sousa Coutinho, futuro conde de Linhares” de “estudar questões econômicas
nos Estados Unidos”, onde chegou a 13 de dezembro desse mesmo ano (ABL).
Na realidade Hipólito José da Costa ia com o objetivo de aprender os métodos
de cultivo de certos produtos agrícolas, obter sementes de vegetais que
pudessem ser cultivados em Portugal e no Brasil, além de adquirir
conhecimentos sobre a extração de ferro e hidráulica. A missão completar-se-ia
com uma visita ao México, a fim de recolher dados sobre a cochonilha, então
produto de alto valor, bem como da extração do ouro e da prata. Além disto,
deveria também documentar-se sobre o cultivo de algumas plantas existentes

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nesta colónia espanhola. A conselho de Cipriano Ribeiro Freire, aguardou pela
primavera para viajar, visitou 16 e dos 14 estados da jovem república, dirigindo-
se para Montreal, de onde embarcou incógnito para o México. Apesar de todas
as diligências o diplomata português não lhe conseguiu um passaporte para
Vera Cruz; em vez disto, o representante de Madrid concedera cartas de
recomendação para os governadores de Havana e Nova Orleães que lhe
pareceram suspeitas (Ribeiro, 1997, 389-390). Manifestamente as autoridades
espanholas não tinham interesse que o jovem Hipólito José da Costa ficasse a
par das atividades económicas mexicanas. Sabemos que Cipriano Ribeiro Freire,
colaborou com Hipólito José da Costa, tendo enviado para Lisboa, a 20 de
janeiro de 1799, uma caixa contendo um “catálogo de árvores, arbustos e ervas”
devidamente numerados, num total de 192 espécies (Costa, 2004, 159-166).

7. Local para construção de um edifício para alojar a representação


diplomática portuguesa
O diplomata também teve de dar atenção à escola de um local para a
Embaixada de Portugal na cidade de Washington. Em 1797, os comissários da
nova capital americana, então em construção, contactaram o ministro português
com a oferta a Portugal de um lote para edificar uma residência para os seus
representantes. Neste sentido, recebeu ordens de Sousa Coutinho para aceitar a
oferta e se deslocar à nova cidade a fim de escolher o terreno em causa.
Assim, em maio de 1798, deslocou-se a Washington, onde foi
informado que o lote a escolher teria de ser de propriedade federal. Não lhe
agradou nenhum dos aspetos destinados às instalações diplomáticas, que não
achou serem salubres, além de que seria de esperar que após a construção de
edifícios circundantes deixasse de haver qualquer espécie de vista. Porém, após
ver vários locais que lhe foram propostos acabou por escolher um lote,
localizado ao lado da Casa Branca (Ribeiro, 1997, 390-392). De facto, o espaço

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 37


é, na atualidade, “um espaço verde incluído no quarteirão delimitado pela 17th
Street. Pela State Place, pela South Executive Avenue e pela E Street. A
sudoeste dos jardins da casa Branca.” “A localização era excepcional”, mas a
escolha foi aceite com a promessa de que não seria autorizada a construção de
qualquer edifício que impedisse a vista. Freire encomendou, então, um projeto
ao arquiteto inglês George Hadfield, que à altura “dirigia e superintendia as
obras do Capitólio”. Contudo, devido a fatores vários – como o regresso de
Freire a Portugal; o elevado custo da construção, cujo caderno de encargos
chegou até nós; e as vicissitudes político-militares do país na primeira metade
do século XIX – a construção não foi possível (Ribeiro, 2012, 4-7).

8. Política interna e externa norte-americana e relacionamento com as


populações ameríndias
Espírito curioso e informado, Cipriano Ribeiro Freire, na sua volumosa
e pormenorizada correspondência enviou inúmeras informações para Portugal
de tudo quanto se passava nos Estados Unidos. Assim, e até porque era um
problema que poderia afetar os marinheiros dos navios que se dirigiam à Europa
e ao território português, o diplomata não deixava de noticiar os surtos de febre-
amarela em território americano, como os que ocorreram em, 1795, 1797 e 1798
(Ribeiro. 1997, 393-395).
O relacionamento entre os americanos de origem europeia e os povos
indígenas vai ser também alvo da atenção do diplomata. De facto, Freire mostra
uma grande clarividência sobre este aspeto da política norte-americana. Em
ofício de janeiro de 1795, manda, em anexo, o texto de três tratados paz
assinados “com differentes tribus de indios limítrofes”. De acordo com eles o
governo parece querer estabelecer um bom relacionamento e ter “desejos
sinceros de civilisallos”. No entanto, escreve:

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 38


“Mas não he infelizmente quasi de esperar o estabelecimento de
huma amizade perfeita, e menos de longa duração; como tenho
podido comprehender, até dos mesmos plenipotenciarios que
assignáram as ditas convençoens: porque as horrorosas
crueldades commettidas contra os indios, suas terras e familias,
tem nutrido e approfundado huma animosidade e rancôr
individual e hereditario taõ propenso á vingança que só o longo
curso dos tempos, e o melhor procedimento dos americanos
poderám dissipar impressoens de semelhante natureza, e
estabelecer huma toleravel confiança. A ambição desmedida dos
novos habitantes destes estabelecimentos confinantes, produz
todos os dias aggressoens que mal se podem repremir a distancia
tal; commettendo usurpaçoens contra as terras dos indios, e naõ
escrupulizando em vexallos quando o podem fazer
impunemente.”

Freire tem muito má opinião dos colonos que vão povoar os territórios
mais longínquos da América já que, embora os reconhecesse como aventureiros,
os descreve como gente “despojada de princípios” e “mais inclinada á perifidia,
do que jamais foram os mesmos indios”.
Além de tudo isto cometiam-se muitas outras arbitrariedades contra as
populações autóctones que poderiam ter consequências terríveis. Como
exemplo, menciona que nas fronteiras do estado da Georgia, milhões de acres
de terras pertencentes aos ameríndios tinham sido vendidas. Isto poderia levar
a uma guerra contra os antigos proprietários, ou até a um conflito com a
Espanha, pois os domínios deste país eram limítrofes dos territórios em questão
(Ribeiro, 1997, 398-399).

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 39


Freire abordou temas como levantamentos ou rebeliões em território
da jovem república, as dificuldades ligadas à criação de uma marinha de guerra
norte-americana ou as intenções de anexação de territórios espanhóis.
Discordava destas últimas, temendo até pelo futuro da federação, quando
George Washington deixasse a presidência. Também informava o secretário de
Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra das relações diplomáticas e
negociações de tratados com as potências europeias mais importantes,
nomeadamente a Espanha, França e o Reino Unido (Ribeiro, 1997, 395-397,
399-409).

9. Regresso a Portugal e cargos que posteriormente como diplomata e no


aparelho de Estado
Cipriano Ribeiro Freire terminou a sua missão em meados de 1799,
viajando para Portugal, via Londres, cidade onde chegou nos finais de junho
(Ribeiro, 1997, 412). Regressou a Lisboa em 1800 e em 1801 foi nomeado
enviado extraordinário e Ministro Plenipotenciário para Copenhaga, cargo que
não chegou a ocupar devido às vicissitudes políticas da época, indo antes como
Ministro Plenipotenciário para Madrid. Em 1808 foi escolhido para inspetor e
presidente do Erário Público, bem como para secretário dos Negócios
Estrangeiros, funções das quais se demitiu em 1809. Esta decisão, porém, não
foi aceite pelo Príncipe Regente. Por outro lado, “por Decreto de 17 de
Setembro de 1810, foi nomeado Presidente do Tribunal da Junta de Commercio,
e Inspector da Fabrica de Seda e Obras das aguas livres”. Entre 1814 e 1816
ocupou o posto de enviado extraordinário e Ministro Plenipotenciário, em
Londres, após o que foi reintegrado nos cargos que ocupara antes da sua partida
para o Reino Unido e dos quais acabou por ser exonerado em 12 de junho de
1821 para em agosto desse mesmo ano, ser nomeado Inspetor do Real Colégio
dos Nobres. No entanto, em maio de 1820, D. João VI escolhera-o para

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Presidente da Junta dos Juros dos Empréstimos. Finalmente, em agosto de 1823
voltou a ser presidente do Tribunal da Junta de Comércio, e inspetor da Fabrica
de Seda e Obras das Águas Livres.
Morreu em Lisboa a 4 de julho de 1825, com cerca de 76 anos de idade,
devido a doenças causadas pelo excesso de trabalho – ele que, segundo Manoel
José Maria de Costa e Sá era “de compleição pouco robusta”. (Sá, 1842, 10-11,
15-17, Sá, 2016, 44).

Conclusão
Cipriano Ribeiro Freire não é certamente hoje um dos nomes mais
conhecidos da História da Diplomacia Portuguesa. No entanto, foi o primeiro
diplomata nomeado pela corte de Lisboa para representar os interesses
portugueses nos recém-independentes Estados Unidos da América, onde parece
ter prestado um bom serviço. Senhor de uma vasta cultura, tinha já grande
experiência no campo da diplomacia quando empreendeu a sua viagem para a
então ainda pouco conhecida e longínqua América do Norte. Elemento fundador
da Academia de Ciências de Lisboa e membro das mais prestigiosas sociedades
de conhecimento de Londres, em Filadélfia conviveu com a elite intelectual e
política norte-americana, tendo a subida honra de ser um dos raros portugueses
que, até aos nossos dias, foi membro da prestigiosa American Philosophical
Society.
Toda esta bagagem intelectual reflete-se nos seus muitos, frequentes e
detalhados ofícios que enviava para o secretário de Estado dos Negócios
Estrangeiros e da Guerra, onde dá conta do ambiente e dos acontecimentos mais
relevantes da vida e política interna dos Estados Unidos, bem como de tudo
quanto se refere a Portugal. De facto, revela-se uma personalidade atenta aos
interesses do seu país e dos seus compatriotas, exercendo uma ação meritória e
humanitária, sobretudo no que diz respeito aos marinheiros portugueses, que

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 41


mercê dos conflitos internacionais, se viam involuntariamente apeados em
território americano e com grandes dificuldades para sobreviver e voltar para
Portugal.
Além disto, o seu saber na área comercial está amplamente
documentado na sua correspondência oficial. Tentou sempre contribuir para um
aumento das exportações portuguesas para os Estados Unidos, nomeadamente
no que dizia respeito ao sal e aos vinhos, em especial os da Madeira e do Porto.
Além disto, não poupava críticas ao sistema alfandegário americano pelo modo
como registavam os produtos importados. Assim, muitas vezes não distinguiam
os vinhos das Canárias do da Madeira (Ribeiro, 1997, 127,105-106,162,238-
239,241,272, Sá, 2016, 43). Refira-se, por fim, que Cipriano Ribeiro Freire se
destacou pela sua cultura e craveira intelectual entre os diplomatas da época,
daí que os ofícios sejam claros, escritos num português elegante e onde se
percebe que o ministro sempre se preocupou com o incremento das relações
bilaterais.

Bibliografia

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Publicações Dom Quixote.

Abreviaturas

ABL: Academia Brasileira de Letras

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O exercício de uma “neutralidade moderada”: D. José
Luís de Sousa Botelho Mourão e Vasconcellos e a
guerra da Crimeia
Frederico de Sousa Ribeiro Benvinda*

Resumo: A participação portuguesa na Guerra da Crimeia (1853-1855) pautou-


se pela declaração de neutralidade em 9 de maio de 1855. O primeiro
representante português a apresentar a posição do país ao imperador Alexandre
II (1818-1881) foi D. José Luís de Sousa Botelho Mourão e Vasconcellos, Conde
de Vila Real (1785-1855), reconhecido diplomata que entre julho e setembro de
1855 exerceu o cargo de Ministro Plenipotenciário de Portugal em S.
Petersburgo. Transmitiu ao autocrata russo a posição de neutralidade
portuguesa no conflito e a importância da aliança com Inglaterra, mas informou
o imperador dos seus sentimentos pró-russos e antibritânicos ao defender que
a guerra servia as pretensões hegemónicas da Grã-Bretanha na Europa e no
Império Otomano, e que a Rússia combatia pela liberdade.

Palavras-chave: Neutralidade; Guerra da Crimeia; Diplomacia; Império Russo;


Conde de Vila Real.

1. Contextualização da guerra da Crimeia (1853-1856)


1.1 A “questão do Oriente” e a atuação de Nicolau I (1796-1855)
A “Questão do Oriente” refere-se aos problemas que eram colocados
aos estadistas europeus pela evanescente presença territorial do Império
Otomano, entendida conjuntamente com a cada vez menor autoridade do sultão,
cuja capacidade de manter o controlo sobre as províncias europeias do império
diminuía desde o século XVIII (Palmer, 1987, p. 3).
Nicolau I (1796-1855) chegou ao poder em 1825 (Palmer, 1987, p. 3) e
viu-se confrontado com a Guerra da Independência Grega (1821-1832). Neste
contexto, o colapso do Império Otomano poderia ter consequências negativas

*
Investigador do Centro de História da Universidade de Lisboa
E-mail: fbenvinda@campus.ul.pt

44
Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021
para a política externa russa. Era reconhecida a rivalidade comercial com
França no Levante, mas mais grave era a rivalidade com a Grã-Bretanha, que
Nicolau I temia que pudesse expandir-se para os Balcãs no caso de um
desmembramento do Império Otomano (Bushkovitch, 2012, p. 169).
Os revoltosos gregos estavam insatisfeitos com a manutenção do poder
do sultão sobre as suas comunidades. Além disso, o facto de serem cristãos
ortodoxos tornava-os potenciais aliados no aumento da influência russa
(Bushkovitch, 2012, p. 169-171).
A Rússia participou no conflito ao lado dos seus rivais, com o objetivo
de garantir a independência grega. Quando uma esquadra anglo-russa afundou
vasos turcos em Navarino em 1827, o Império Otomano declarou guerra. O
avanço russo realizou-se durante 1828-1829. O sultão viu-se obrigado a assinar
a paz em 12 de setembro de 1829, garantindo a independência da Grécia e as
autonomias da Sérvia, da Moldávia e da Valáquia (Bushkovitch, 2012, p. 169).
Em 1832, Nicolau I viu-se numa posição de defesa da manutenção do
Império Otomano. Nesse ano, o vice-rei do Egipto, Mohammed Ali (1769-1849)
ocupou parte da Síria e Anatólia. Reconhecendo a influência que poderia ganhar
no Império, o czar enviou tropas para o Estreito do Bósforo e para o Estreito
dos Dardanelos. Essa ação causou uma reação diplomática das grandes
potências, que levou o sultão e Mohammed Ali a assinarem o tratado de Unkiar
Skelessi em 8 de julho e 1833. O tratado incluía um artigo segundo o qual os
Estreitos eram fechados a vasos de guerra estrangeiros (Riasanovsky, 2000, p.
302). Este resultado aumentava a influência russa sobre o Mar Negro e permitia
a Nicolau I influir mais claramente na política otomana.
O imperador acreditava, de resto, na importância da manutenção das
monarquias europeias (Small, 2018, p. 17). Em 1848, depois de França ter
declarado a implantação da república e o ímpeto revolucionário se ter expandido
para Leste, o czar ajudou financeiramente a Áustria a combater revoltas

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internas, ocupou em julho de 1848 a Moldávia e Valáquia, apoiado pelo sultão,
para não permitir o avanço do movimento nacional romeno e interveio na
Hungria em 1849. Além disso, sustentou a Confederação Germânica à revelia
das aspirações prussianas e do Império Austríaco (Riasanovsky, 2000, pp. 303-
304). Contudo, a Guerra da Crimeia provou que a posição do Império Russo era
precária.

1.2 Antecedentes da guerra da Crimeia (1853-1856)


A Guerra da Crimeia (1853-1856) demonstrou a necessidade de
reformas sociais, políticas e militares no Império Russo (Ziegler, 2009, p. 77).
Além disso, pôs a nu a rivalidade entre a Grã-Bretanha e a Rússia, que se
manteve durante o século XIX. Durante o chamado Great Game, os impérios
competiram pelo domínio do Mediterrâneo, da Índia e do Médio Oriente: a
questão do controlo sobre os Estreitos, os receios ingleses de uma intervenção
russa na Índia e a posição comercial das potências foram centrais (Edgerton,
2000, p. 11). Era também central a preocupação de Nicolau I com o colapso da
potência que apelidava de “homem doente da Europa”. Esta levou-o a
desdobrar-se em aproximações diplomáticas a Inglaterra durante a década de
1840 para chegar a um acordo sobre a posição dos impérios caso o vaticinado
colapso do Império Otomano se desse (Edgerton, 2000, pp. 11-12).
O tratado de Unkiar Skelessi foi quebrado aquando o reinício das
hostilidades entre o Império Otomano e o Egipto em 1839-1840, de que
resultou o Tratado de Londres. Em 13 de junho de 1841, a Rússia, Prússia,
Áustria, Grã-Bretanha e França assinaram a Convenção dos Estreitos, que
firmava a garantia internacional do fecho do Bósforo e dos Dardanelos à
passagem de vasos de guerra estrangeiros em tempo de paz (Riasanovsky, 2000,
pp. 304).

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O pretexto de Nicolau I para afirmar a sua influência no Império
Otomano revelou-se em 1850, quando, através de uma justificação religiosa, foi
criado o embrião da Guerra da Crimeia (Pellistrandi, 2017, p. 106).
Uma das questões centrais relacionava-se com quem deveria ter em sua
posse a chave da Igreja da Natividade em Belém (Royle, 2010, p. 15). Por
tradição, a guarda dos Lugares Santos pertencia a França, como legado do
último rei de Jerusalém, nobre de nacionalidade francesa, Guido de Lusignan
(1150-1194). Contudo, grande parte dos lugares sagrados da Palestina eram
mantidos através dos investimentos do Estado russo e milhares de peregrinos
ortodoxos visitavam a região anualmente (Royle, 2010, pp. 15-17). Em
comparação, o número de peregrinos católicos era muito reduzido (Edgerton,
2000, p. 12).
Estava em causa uma competição entre os interesses franceses e russos,
cristalizada através destas questões religiosas. Napoleão III (1808-1873) havia-
se tornado Presidente de França em 1848 e desde 2 de dezembro de 1852 que
era Imperador dos Franceses. França tinha interesses comerciais no Império
Otomano e pretendia expandir as suas possessões no Norte de África para o
Egito (Edgerton, 2000, p. 12). Além disso, Napoleão III, antes de se declarar
imperador, reconhecia que necessitava de apoio católico interno para essa
decisão (Royle, 2010, p. 19).
Portanto, enviou o Marquês de Lavalette (1806-1881) para negociar
com a Sublime Porta conforme o acordo de 1740 entre a França e o Império
Otomano, que dava à primeira o papel de defensora dos interesses dos católicos
na Terra Santa. Em 9 de fevereiro de 1852, o governo otomano aceitou a posição
francesa, mas rapidamente decidiu dar primazia à Igreja Ortodoxa, tendo em
conta o papel do czar como protetor dos cristãos no Império Otomano,
supostamente firmado no tratado de Küçük-Kainarji de 1774 (Royle, 2010, pp.
19-20).

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 47


Em resposta, Napoleão III enviou o navio de guerra Charlemagne para
a região, que, contra a convenção de 1841, atravessou os Dardanelos. O sultão
Abd-ul-Medjid (1823-1861) deu primazia às pretensões latinas em dezembro de
1852 (Royle, 2010, pp. 19-20).
O príncipe Alexander Sergeyevich Menshikov (1787-1867) foi então,
na primavera de 1853, enviado por Nicolau I para pressionar o Império
Otomano a aceitar a posição russa (Small, 2018, p. 17), sob ameaça de guerra
(Edgerton, 2000, p. 11). Em 21 de maio, o sultão recusou-se a aceitá-la e, dez
dias depois, o czar enviou um ultimato em que prometia invadir as regiões
semiautónomas da Moldávia e Valáquia se o Império Otomano não aceitasse as
pretensões russas dentro de oito dias. Quando não obteve resposta, ocupou os
principados danubianos em julho de 1853, o que não provocou uma reação
violenta das grandes potências (Small, 2018, p. 18).
Pelo contrário, a Áustria, Prússia, França e Grã-Bretanha dedicaram-
se a produzir a Nota de Viena que, se aceite pela Sublime Porta, reconheceria a
posição do Império Russo como protetor dos cristãos no Império Otomano.
Porém, o Império Otomano não aceitou a nota e, em 4 de outubro de 1853,
enviou um ultimato à Rússia exigindo a retirada das tropas em catorze dias. A
18 de outubro de 1853, declarou guerra à Rússia. Em 30 de novembro, viu
grande parte da sua frota naval destruída em Sinope (Small, 2018, p. 21).
A Grã-Bretanha e a França aliaram-se ao Império Otomano em março
de 1854 e a Sardenha juntou-se à coligação europeia em 1855 (Riasanovsky,
2000, p. 305).

1.3 A guerra da Crimeia e a posição de Portugal


D. Pedro V (1837-1861) ascendeu ao trono depois da morte de sua mãe,
D. Maria II (1819-1853) mas, por ainda ser menor de idade aquando do início

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da guerra da Crimeia, D. Fernando (1816-1885) manteve-se como regente
(Soares Martínez, 2010, p. 542).
O período da Regeneração, iniciado em 1851, trouxe estabilidade
interna ao país mas, externamente, o poder de Portugal em África revelava-se
difícil de afirmar face aos interesses de outras potências, especialmente os da
Grã-Bretanha (Soares Martínez, 2010, p. 542).
No período em apreço, destaca-se a Questão do Ambriz, iniciada em 24
de novembro de 1846 quando, no contexto do apresamento de um navio
negreiro brasileiro a norte do Ambriz pelas autoridades portuguesas, o
embaixador inglês em Lisboa contestou a soberania de Portugal entre os
paralelos 5º12´S e 8ºS na costa ocidental de África, conforme o tratado de 28
julho de 1817 (Oliveira, 2010, p. 17-18). No mesmo ano, no contexto de situação
semelhante, o primeiro-ministro inglês, Henry John Temple, Visconde de
Palmerston (1784-1865), relembrou o tratado, adicionando que Inglaterra
reconhecia a soberania de Portugal até ao Ambriz (que se situava a norte do
paralelo 8ºS) (Oliveira, 2010, p. 18-19).
Não obstante o erro de Lord Palmerston, a nota de 9 de novembro de
1850 do embaixador inglês voltava a defender o texto do tratado de 1817. Esta
doutrina foi relaxada na nota de 26 de novembro de 1853. Admitia-se que
Portugal tinha soberania entre os paralelos em causa, mas argumentava-se que
a tinha abandonado por não existir ocupação efetiva. Neste contexto, capitães
de navios de guerra ingleses assinaram tratados com autoridades indígenas na
região, em violação da soberania portuguesa. Em resposta, o governo português
ocupou militarmente o Ambriz em 6 de junho de 1855, mas perante oposição
inglesa, não ocupou Cabinda (Oliveira, 2010, p. 19-21). A soberania de Portugal
nesta contenda deveria ter sido confirmada pelo tratado de 26 de fevereiro de
1884 com a Grã-Bretanha. Contudo, o tratado nunca foi ratificado e a discussão
da questão continuou na Conferência de Berlim (Oliveira, 2010, p. 21-22).

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Durante a Questão do Ambriz, o representante português em Londres,
Francisco Almeida Portugal, Conde de Lavradio (1796-1870), insurgiu-se nas
suas Memórias contra a violência britânica na condução da sua política externa.
Mesmo assim, a atuação inglesa fazia notar as dificuldades que Portugal tinha
em sustentar a sua posição internacional e portanto, recomendava a
neutralidade na guerra da Crimeia (Soares Martínez, 2010, p. 542).
Portugal declarou a neutralidade no conflito em 9 de maio de 1854.
Nesse dia, publicava-se no Diário do governo uma carta de 5 de maio de 1854
assinada pelo gabinete ministerial. Estando declarada a guerra “entre potências,
com quem temos antigas alianças, que importa conservar ilesas, e devendo a
Corôa de Portugal tomar todas as providências para que, por seu lado, se guarde
nesta contenda a mais severa neutralidade”, os ministros propunham ao rei que
aderisse às regras que competia às potências neutrais respeitar (Diário do
Governo, 9 de maio de 1854, p. 599).
O rei mandou publicar um decreto no mesmo dia em que a nação se
comprometia a manter boas relações com “todos os Governos da Europa”
(Diário do Governo, 9 de maio de 1854, p. 599). Ainda assim, o Conde de
Lavradio mantinha-se receoso que a Grã-Bretanha se dedicasse a pressionar
Portugal no sentido de alterar a sua posição (Soares Martínez, 2010, p.542 ).
Estes receios influenciaram a atuação do Conde de Vila Real em S. Petersburgo
e estavam conforme as instruções recebidas de António Aloisio Jervis de
Atouguia, Visconde de Atouguia (1797-1861), Ministro dos Negócios
Estrangeiros.
Iniciada a guerra, a Áustria expulsou a Rússia da Moldávia e Valáquia.
Os aliados atacaram praças fortes russas no Mar Negro e Mar de Barents
(Riasanovsky, 2000, p. 306), mas a recusa da Suécia de se juntar à sua causa
impossibilitou um avanço pelo Báltico (Pellistrandi, 2017, p. 107). Assim, a

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principal frente foi estabelecida em setembro de 1854: a cidade de Sevastopol
(Riasanovsky, 2000, p. 306).
Sevastopol foi bombardeada repetidamente durante onze meses e meio
por forças francesas, britânicas, turcas e sardas, que por várias vezes tentaram
invadir e capturar a cidade. O cerco terminou em 11 de setembro de 1855
(Riasanovsky, 2000, pp. 306-307).
O Congresso de Paris foi aberto em 25 de fevereiro de 1856 sob a
liderança de Napoleão III. O tratado de Paris, de 30 de março de 1856,
estabeleceu que os Principados Danubianos ficavam sob proteção dos
signatários, que a navegação no Danúbio passava a ser livre e que o Mar Negro
era declarado neutro, não podendo a Rússia manter qualquer força militar sobre
as suas águas. Com o tratado, a Rússia perdeu significativa influência europeia
(Pellistrandi, 2017, pp. 107-108).

2. Biografia de D. José Luís de Sousa Botelho Mourão e


Vasconcellos (1785-1855)
D. José Luís de Sousa Botelho Mourão e Vasconcellos, 1º Conde de
Vila Real, Senhor dos Morgados de Mateus, Cumeeira, Sabrosa, Arroios,
Moraleiros e Fontanelas, grã-cruz da Ordem de Avis e Comendador da Ordem
de Torre e Espada, grã-cruz de Carlos III de Espanha, igualmente de Leopoldo
da Áustria e de Sant’Ana da Rússia, tal como comendador de S. Luís de França,
nasceu em Lisboa, em 9 de fevereiro de 1785 (Esteves Pereira & Rodrigues,
1915, pp. 562-563). Filho único de D. José Maria do Carmo de Sousa Botelho
Mourão de Vasconcellos (1756-1825) e de D. Maria Teresa de Noronha (1761-
1836), morgados de Mateus (Ventura, 2006, p. 19), completou os primeiros
estudos em Portugal. Mais tarde, formou-se em Leis na Universidade de
Göttingen. Com 17 anos, alistou-se no Regimento de Cavalaria de Alcântara.
Atingiu o posto de Tenente, acabando por demitir-se aquando da invasão de

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Portugal por Junot (1771-1813) (Ventura, 2006, p. 20). Em 1809, foi ajudante
de campo do general Beresford (1768-1854) na Guerra Peninsular (1808-1814).
Distinguiu-se pela sua cultura, conhecimento de várias línguas e capacidade
militar (Esteves Pereira & Rodrigues, 1915, pp. 562-563).
Em junho de 1811, recebeu licença do Príncipe Regente D. João (1767-
1826) para casar com D. Teresa de Sousa Holstein (1786-1841), filha de D.
Alexandre de Sousa Holstein (1751-1803) e de D. Isabel de Sousa Coutinho
(1753-1793). A cerimónia teve lugar a 27 de agosto de 1811 em Madrid. O casal
teve cinco filhos, mas é possível que D. José Luís de Sousa tenha sido pai de uma
filha ilegítima, Soror Mariana do Sacramento (Casa de Mateus, 2019).
Em 1813, foi promovido a Tenente-coronel e em 1814 nomeado
Conselheiro de embaixada em Londres, ingressando na carreira diplomática. No
mesmo ano, foi nomeado Ministro Plenipotenciário de Portugal em Madrid
(Ventura, 2006, p. 20). Chegou à cidade em 22 de julho de 1814 e por ali se
manteve até 1820. Em 3 de abril de 1818 recebeu as credenciais para o posto de
conselheiro em Londres, mas apenas partiu para Lisboa em 8 de maio de 1820.
Chegou a Londres a 19 de outubro, tendo partido depois das vitórias liberais no
Porto e em Lisboa (Ventura, 2006, p. 35). Manteve-se em Londres até 1821, ano
em que foi demitido (Esteves Pereira & Rodrigues, 1915, pp. 562-563) e
substituído por João Francisco de Oliveira, Encarregado de Negócios. Partiu
para Portugal em fevereiro de 1822, residindo na casa de Mateus (Ventura,
2006, p. 21).
Segundo António Ventura (2006), situava-se politicamente “entre um
realismo moderado e um liberalismo comedido” (p. 21). Neste sentido, quando
em 27 de maio de 1823 o Infante D. Miguel (1802-1866) levou a cabo a
Vilafrancada (Ventura, 2006, p. 21), D. José Luís de Sousa apoiou D. João VI.
Depois de terminada a insurreição, recebeu o título de Conde de Vila Real em 3
de julho de 1823 e foi promovido a Brigadeiro em setembro, tendo sido nomeado

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Embaixador Extraordinário na Grã-Bretanha, cargo que manteve até maio de
1827 (Esteves Pereira & Rodrigues, 1915, pp. 562-563).
Estava em Londres quando se deu a Abrilada em 29 de abril de 1824.
Depois da morte de D. João VI, a Infanta D. Isabel reconheceu D. Pedro IV,
imperador do Brasil, como rei. O monarca outorgou a Carta Constitucional de
1826 e seguidamente abdicou do trono a favor de D. Maria II em 2 de maio de
1826. A Carta Constitucional foi promulgada em 31 de julho (Ventura, 2006, p.
22).
D. Isabel Maria encarregou o Conde de Vila Real de viajar com D.
Miguel a partir de Viena (Esteves Pereira & Rodrigues, 1915, pp. 562-563).
Regressado a Lisboa em 22 de fevereiro de 1828, o Infante prestou juramento
como regente quatro dias depois. O Conde de Vila Real foi Ministro da Guerra
entre 22 de fevereiro e 3 de março de 1828 (Ventura, 2006, pp. 22-23), mas
resignou porque, como apontam Esteves Pereira e Guilherme Rodrigues
(1915), “o seu espírito não propendia para o absolutismo” (pp. 562-563).
Antes da aclamação de D. Miguel e do início das Guerras Liberais
(1828-1834), o Conde de Vila Real partiu para Paris. Habitou na Rue Ville
L’Éveque, nº22, na Rue Franklin, nº21 e na Rue de Matignon, nº16 (Ventura,
2006, p. 24). Voltou em 1830 a Portugal na fragata D. Maria, que aportou na
Terceira, juntando-se às forças liberais. Ainda assim, foi nomeado adido no
Quartel-General de António José de Noronha, Duque da Terceira (1792-1860).
Considerou o cargo humilhante, requerendo a possibilidade de voltar a Paris,
que lhe foi concedida (Ventura, 2006, pp. 26-28).
Regressou a Portugal em 1833, e ocupou o seu lugar na Câmara dos
Pares (Esteves Pereira & Rodrigues, 1915, pp. 562-563). Foi Ministro dos
Negócios Estrangeiros no governo do Duque da Terceira entre 20 de abril e 10
de setembro de 1836 (Ventura, 2006, p. 31). Quando o Governo foi derrubado
pela Revolução de Setembro, demitiu-se do seu posto de brigadeiro (Esteves

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Pereira & Rodrigues, 1915, pp. 562-563) e partiu para Paris (Ventura, 2006, p.
31).
Regressou para fazer parte do governo de José Travassos Valdez,
Conde de Bonfim (1787-1862) entre 14 de dezembro de 1839 e 23 de junho de
1840, mais uma vez como Ministro dos Negócios Estrangeiros. Entre 9 de
Junho de 1841 e 7 de fevereiro de 1842, foi Ministro da Guerra no governo de
Joaquim António de Aguiar (1792-1884). A sua mulher faleceu durante o
mandato, em 29 de novembro de 1841 (Ventura, 2006, p. 32).
Com a chegada ao poder de António Bernardo da Costa Cabral (1803-
1889) em 1842 e a restauração da Carta Constitucional em 10 de fevereiro desse
ano pela rainha, o Conde de Vila Real manteve-se fiel à Carta (Ventura, 2006,
p. 33). Deixou o país novamente em 1846 (Esteves Pereira & Rodrigues, 1915,
pp. 562-563), ano em que se iniciou a revolta designada de Maria da Fonte. A
rainha demitiu Costa Cabral e ascendeu ao poder Pedro de Sousa Holstein,
Duque de Palmela (1781-1850), que foi removido no golpe de Estado
denominado Emboscada, que colocou no poder João Carlos de Saldanha
Oliveira e Daun, Duque de Saldanha (1790-1876). Durante a duração da
Patuleia, o Conde de Vila Real esteve ausente do país (Ventura, 2006, pp. 33-
34).
Regressou em 1854 e serviu na Câmara dos Pares (Esteves Pereira &
Rodrigues, 1915, pp. 562-563). Em 29 de julho de 1855 foi nomeado Ministro
Plenipotenciário de Portugal em S. Petersburgo. Apresentou as suas credenciais
a 11 de agosto do mesmo ano (Ministério dos Negócios Estrangeiros, 2019).
Faleceu às 13 horas e trinta minutos de 26 de setembro de 1855, em S.
Petersburgo, vitimado por cólera. Estando o imperador Alexandre II em
Nicolaeff, a notícia foi-lhe dada por Karl Robert Nesselrode-Ehnreshoben,
Conde de Nesselrode (1780-1862), Ministro dos Negócios Estrangeiros. O
imperador ordenou ao Ministro da Guerra que o funeral incluísse honras

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militares. A cerimónia deu-se no dia 29 de setembro às 11 horas na Igreja
Católica de Santa Catarina, em S. Petersburgo, contando com a presença do
corpo diplomático e de representantes do Império Russo. Estiveram também
presentes as tropas de guarnição da capital, que dispararam salvas de artilharia
(Diário do Governo, 17 de outubro de 1855, p. 1296).
Em substituição do falecido, João António Lobo de Moura, Visconde
de Moura (1810-1868), foi nomeado Enviado Extraordinário e Ministro
Plenipotenciário de Portugal em S. Petersburgo em 18 de outubro de 1855
(Diário do Governo, 22 de outubro de 1855, p. 1312).

3. A posição do Conde de Vila Real sobre a guerra da Crimeia


(1855)
A primeira comunicação enviada pelo Conde de Vila Real foi expedida
de Bruxelas em 2 de julho de 1855 e dirigida ao Visconde de Atouguia. Nela, o
Conde de Vila Real referia que se tinha demorado “alguns dias depois da partida
de Sua Majestade El Rey o Senhor D. Pedro 5º” a sair de Paris (Conde de Vila
Real, 1855, 2 de julho), para onde tinha viajado com o rei (Soares Martínez,
2010, p. 548).
Seis dias depois, enviou outra comunicação para o mesmo destinatário,
desta feita a partir de Berlim, datada 8 de julho de 1855. Nela, respondia à carta
de 18 de junho que lhe tinha sido enviada pelo Ministro dos Negócios
Estrangeiros. Agradecia-lhe o facto ter aceitado “a resolução que tomei de não
me avistar em Londres com Lord Clarendon nem com Lord Palermston.”
(Conde de Vila Real, 1855, 8 de julho, p. 1). De resto, informava o Ministro que
o Conde de Lavradio se tinha dedicado a explicar ao Secretary of State for
Foreign Affairs, George Villiers, Earl of Clarendon (1840-1841) e a Lord
Palmerston, de forma propositadamente lacunar, as instruções que o Conde de
Vila Real havia recebido, já que poderiam levantar questões em relação à

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neutralidade de Portugal. O plenipotenciário enunciava: “[Lord Clarendon e
Lord Palmerston] Receberão uma explicação sobre a minha missão na
conformidade das instrucções, que eu havia recebido, as de que os informou
veladamente o dito Conde sem lhes dizer mesmo quaes” (Conde de Vila Real,
1855, 8 de julho, p. 1).
O Conde de Vila Real prometia sair da Prússia através de Stettin logo
que recebesse a bagagem: Fui obrigado a mandar separadamente [a bagagem]
e que tenho podido dividir o modo de a expedir visto achar-se interrompida a
navegação dos Vapores de Stettin” (Conde de Vila Real, 1855, 8 de julho, p. 2).
O primeiro ofício a que tivemos acesso enviado da legação portuguesa
em S. Petersburgo pelo Conde de Vila Real foi recebido em Portugal em 15 de
setembro de 1855, mas produzido a 12 de agosto. Nele, referia o
plenipotenciário que tinha sido informado pelo “chanceller do Imperio” (Conde
de Vila Real, 1885, 12 de agosto, p. 1), o Conde de Nesselrode, que o Imperador
Alexandre II o receberia a 11 de agosto em Peterhoff. Foram-lhe
providenciados alojamento e almoço à chegada, tendo seguidamente começado
a sua reunião (Conde de Vila Real, 1885, 12 de agosto, p. 1). Depois de o
plenipotenciário ter apresentado as suas credenciais, tendo seguidamente
congratulado o imperador pela subida ao trono e lamentado a morte de Nicolau
I, Alexandre II asseverou que nutria os melhores sentimentos pela família real
portuguesa (Conde de Vila Real, 1885, 12 de agosto, pp. 2-3).
Logo de seguida, o Imperador fez uma tentativa no sentido de clarificar
a posição portuguesa sobre a Guerra da Crimeia. Garantiu que sabia por uma
mensagem telegráfica recebida “como official” que o governo espanhol se
preparava para enviar 25.000 homens para a península. Perante a incredulidade
do plenipotenciário, Alexandre II respondeu que depois do auxílio sardo à
França e Inglaterra com 15.000 militares, “tudo era possível” e perguntou “se o

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soberano Inglez não nos tinha pedido tambem a nos alguma tropa.” (Conde de
Vila Real, 1885, 12 de agosto, pp. 3-4)
O plenipotenciário negou conhecer qualquer pedido nesse sentido.
Segundo enunciava, a sua missão diplomática estava convencida de que um
pedido como tal não se daria e que, de resto “os nossos tratados com Inglaterra
so nos obrigão expressamente para o cazo de huma das duas Potencias ser
atacada.” Quanto à tomada de posição da Sardenha: “So podia dizer a minha
opinião particular, que era inteiramente conforme com a de Sua Magestade
Imperial” (Conde de Vila Real, 1885, 12 de agosto, pp. 4-5).
De acordo com os seus ofícios, o Conde Vila Real não teve qualquer
outra reunião com Alexandre II. Todavia, a descrição que fez da sua passagem
por Londres, da sua reunião com o Imperador, e as posições que tomou em
ofícios subsequentes, comprovam que, para lá da neutralidade oficial, havia uma
"neutralidade moderada" (Visconde de Moura, 1855, 6 de dezembro, p.1). Esta
foi a expressão utilizada pelo Visconde de Moura, plenipotenciário que
substituiu o Conde Vila Real, para descrever uma posição lusa que era
simultaneamente antibritânica e pró-russa. Esta centrava-se nos receios
demonstrados pelo representante português de um estabelecimento de uma
hegemonia anglo-saxónica sobre o continente europeu caso a Rússia fosse
eliminada como contrabalanço do ímpeto expansionista britânico. Estes receios
juntavam-se à referida preocupação do Conde de Lavradio acerca da
possibilidade de a Grã-Bretanha pressionar Portugal a quebrar a neutralidade.
A decisão de manter os plenipotenciários em viagem para a Rússia à distância
dos representantes do governo inglês sem, ao mesmo tempo, esta distância
causar suspeitas, era uma prioridade para o Ministro dos Negócios
Estrangeiros.
No ofício que enviou em 16 de agosto de 1855, recebido em Lisboa em
15 de setembro, o Conde de Vila Real demonstrava prudência ao atribuir as suas

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asserções às opiniões “que ouvi a homens que não são apaixonados a favor de
nenhuma das potencias belligerantes, mas encarão com procedencia as
consequencias que ainda pode ter esta guerra” (Conde de Vila Real, 1885, 16 de
agosto, p. 4). De resto, estas mantinham-se invariavelmente antibritânicas.
O Conde de Vila Real garantia que, embora o desfecho da guerra ainda
estivesse em aberto, a resistência russa continuaria a verificar-se porque era
“evidente que os aliados prosseguem nesta guerra com o fim de destruir as
forças maritimas da Russia e os seus arsenaes tanto no Baltico como no Mar
Negro (o que so aproveita aos inglezes) e de humilhar a Russia.” (Conde de Vila
Real, 1885, 16 de agosto, p. 2).
Esta era, portanto, entendida como uma guerra “de independência, de
dignidade e de religião” (Conde de Vila Real, 1885, 16 de agosto, p. 3). O
plenipotenciário argumentava que se combatia para evitar que a Grã-Bretanha
cumprisse o objetivo de “completar a circunvalação do continente Europeo por
meio de pontos fortificados” no Báltico e no Mar Negro, logicamente adquiridos
à custa do Império Russo (Conde de Vila Real, 1885, 16 de agosto, pp. 2-3).
A sua convicção da capacidade da Rússia continuar a resistir surgiu
novamente no ofício de 7 de setembro de 1855, recebido em Lisboa um mês e
um dia depois. Acreditava que o império do czar não aceitaria quaisquer
condições “deshonrozas”, mesmo que Sevastopol não resistisse ao cerco que lhe
estava imposto. Acusava Inglaterra de pretender “animar todo o resto da
Europa contra a Rússia, fazendo acreditar, que he esta a guerra da civilização
contra a barbárie.” (Conde de Vila Real, 1885, 7 de setembro, pp. 2-3). Pelo
contrário, garantia que a Rússia, ao contrário de Inglaterra, tinha empregado
todos os esforços para manter a independência do Império Otomano (Conde de
Vila Real, 1885, 7 de setembro, p. 3). Segundo argumentava, era o governo
inglês que continuava a promover o conflito, conforme os seus propósitos
hegemónicos.

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Os dois últimos ofícios do plenipotenciário, datados respetivamente de
12 e 16 de setembro de 1855 referem-se aos últimos momentos do cerco de
Sevastopol. No primeiro, escrevia que tinha sido publicada na Gazeta de S.
Petersburgo uma participação telegráfica datada de 8 de setembro ao meio-dia.
Nela, referia-se que o bombardeamento aliado de Sevastopol estava a ser levado
a cabo com “huma violencia inauddita.” (Conde de Vila Real, 1885, 12 de
setembro, p. 1). Uma segunda participação, enviada às 22 horas, informava que
as tropas russas tinham repelido ataques aliados na zona ocidental da cidade, na
colina de Karabelnaya, mas que o inimigo tinha tomado a Torre Malakoff. Um
último boletim telegráfico, datado das 23 horas e 30 minutos, referia que os
militares russos tinham evacuado a zona sul de Sevastopol. Prometia-se que os
aliados encontrariam “somente minas ensanguentadas” quando tomassem a
cidade (Conde de Vila Real, 1885, 7 de setembro, pp. 1-2). Mesmo depois desta
derrota, o representante português mantinha-se convicto de que a Rússia
continuaria a defender “a dignidade e honra Nacional nesta lucta” (Conde de
Vila Real, 1885, 7 de setembro, p. 2).
O seu ofício referia-se ao sexto bombardeamento de Sevastopol,
iniciado em 5 de setembro de 1855 e que continuou três dias depois. A
intensidade do bombardeamento diminuiu às 10 horas e, ao meio-dia, a
infantaria francesa, liderada pelo general Aimable-Jean-Jacques Pélissier (1794-
1864), surgiu das trincheiras a metros da Torre de Malakoff (Small, 2018, p.
190). As tropas francesas conseguiram tomar a torre, mas mais nenhuma parte
das fortificações. O ataque simultâneo liderado pelo general inglês James
Simpson (1792-1868) contra a torre Redan revelou-se um assalto falhado
(Small, 2018, p. 190).
Durante a noite, as tropas russas evacuaram o Sul da cidade,
destruíram o que restava da sua frota naval e fizeram explodir os edifícios

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militares da zona. A cidade foi ocupada no dia 9 de setembro, terminando o cerco
dois dias depois (Small, 2018, p. 190-192).
O último ofício do conde de Vila Real referia um boletim telegráfico do
príncipe Mikahil Dmitrievich Gorchakov (1793-1861), comandante das tropas
russas na Crimeia, de 12 de setembro às 23 horas e 30 minutos, publicado na
Gazeta de S. Petersburgo. Nele participava a evacuação Sul de Sevastopol e o
aparecimento do inimigo em pequenos destacamentos dentro da cidade (Conde
de Vila Real, 1885, 16 de setembro, p. 3).
O Conde de Vila Real terminou a sua descrição dos acontecimentos
referindo que o Conde de Nesselrode lhe tinha dito em 16 de setembro que, até
àquele momento, apenas tinha recebido a participação telegráfica do general
Pélissier sobre a tomada da Torre Malakoff. Nesse sentido “não podia saber a
impressão que tinha feito esse acontecimento”. Ainda assim, o cerco de
Sevastopol tinha terminado e meses depois, a Guerra da Crimeia terminaria com
uma derrota russa (Conde de Vila Real, 1885, 16 de setembro, pp. 3-4).
Antes do fim da guerra, a posição portuguesa mantinha-se inalterada.
Depois do falecimento do Conde de Vila Real em 26 de setembro de 1855, o
plenipotenciário foi substituído em 17 de outubro pelo Visconde de Moura,
encarregado de negócios e Ministro Plenipotenciário. Em 6 de dezembro de
1855, o Ministro Plenipotenciário, enviou uma carta a quem identifica apenas
como “Exmo. Amigo e Snr” (Visconde de Moura, 1855, 6 de dezembro, p. 1),
mas que se trata do Visconde de Atouguia.
Nela, descrevia a sua passagem por Londres antes de partir para S.
Petersburgo. Durante a mesma, o Conde de Lavradio, tinha sido mais uma vez
instrumental em defletir possíveis pressões por parte do governo inglês no
sentido de uma modificação da posição de neutralidade portuguesa.
Segundo enunciava o Visconde de Moura: “O Conde de Lavradio
recebeu-me com a mais distinta dignidade e aproveitou a ocasião do grande

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jantar que hontem deo aos seus colegas (…) para me apresentar a quasi todos
eles”. Os dois diplomatas tinham decidido, conforme “as instruções de V. Exa,
que como o meu papel é representar uma neutralidade moderada, era melhor
evitar a ostentação de apresentações officiaes e solemnes” (Visconde de Moura,
1855, 6 de dezembro, p. 1).
Mesmo assim, o diplomata prometia deixar cartões de visita a Lord
Clarendon e Lord Palmerston, para que não supusessem que passava por
Londres “às escondidas”. A carta concluía com a posição do Ministro, derivada
das instruções do Visconde de Atouguia e influenciada pelas manobras do
Conde de Lavradio, sobre qualquer aproximação aos membros do gabinete
inglês: um contacto formal podia gerar uma conversa alongada “e esta poderia
provocar algua discussão sobre um ponto que para nos deve ser incontroverso”
(Visconde de Moura, 1855, 6 de dezembro, p. 1).
O ponto a que se referia foi mencionado linhas abaixo, quando criticava
o discurso de Napoleão III no encerramento da Exposição Universal de Paris
de 1855, pronunciado em 15 de novembro desse ano (Bonaparte, 1855, pp. 408-
410), por considerar que o feria: “a susceptibilidade dos neutros” (Visconde de
Moura, 1855, 6 de dezembro, pp. 2-3), base da “neutralidade moderada”
(Visconde de Moura, 1855, 6 de dezembro, p.1) que representava e que na
pessoa do Conde de Vila Real se revelou antibritânica e pró-russa num momento
em que o Império do czar estava isolado na Europa.

4. Conclusão
Em conclusão, embora Portugal não tenha participado militarmente na
Guerra da Crimeia, os contactos diplomáticos mantidos pelo Conde de Vila Real
demonstram que o exercício da neutralidade se pautava por uma atitude
cautelosa em relação à possibilidade de o país ser levado pela Grã-Bretanha a
participar na conflagração.

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 61


De modo a evitá-lo, as instruções do Visconde de Atouguia e a atitude
do Conde de Lavradio em Londres foram centrais para permitir ao Conde de
Vila Real, Ministro Plenipotenciário na legação portuguesa em S. Petersburgo,
transmitir a Alexandre II a posição de Portugal acerca do conflito.
A sua apreciação da “neutralidade moderada” que representava
revelou-se nas posições antibritânicas e pró-russas que tomou nos seus ofícios.
Entendia que o Império Russo se via na contingência de ser a barreira ao
expansionismo inglês, que afetava a posição de Portugal enquanto nação e
império.

Fontes e bibliografia

Fontes

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Impérial.

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Conde de Vila Real. (1855, 12 de setembro). Ofício nº6. [Ofício do Conde de Vila Real
para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, a partir da Legação de Portugal em S.
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(PT/AHD/3/MNE-SE/CLPE/001/000268). Arquivo Histórico Diplomático,
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Conde de Vila Real. (1855, 16 de setembro). Ofício nº7. [Ofício do Conde de Vila Real
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Conde de Vila Real. (1855, 8 de julho). [Carta do Conde de Vila Real para o Visconde
de Atouguia]. Caixa Legação de Portugal em S. Petersburgo nº2 – 1843-1855
(PT/AHD/3/MNE-SE/CLPE/001/000268). Arquivo Histórico Diplomático,
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Visconde de Moura. (1855, 6 de dezembro). [Carta do Visconde de Moura para o


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Fyodor Fyodorovich Martens e a Conferência de Paz
de Haia de 1899: compreendendo a Cláusula de
Martens à luz do seu criador, do seu tempo, e da
evolução do Direito Internacional Humanitário
Duarte Quadros Saldanha e Francisco Varela de Oliveira

Resumo: A Cláusula de Martens constitui um dos principais marcos do Direito


Internacional Humanitário. Contudo, o seu proponente, o diplomata russo
Fyodor Fyodorovich Martens, não a avançou tendo em vista propósitos
humanitários. A sua carreira académica e profissional é comprometida por um
enviesamento e servitude face ao Império Russo. Durante a Conferência de Haia
de 1899 o diplomata defendeu os interesses das grandes potências, aparentando
garantir os direitos dos pequenos Estados. No centro da sua estratégia
encontra-se a Cláusula de Martens. O presente artigo analisa o papel do
diplomata na Conferência e a Cláusula nela introduzida, propondo-se esclarecer
a tensão entre as considerações belicosas de Martens com a sua introdução, e as
posteriores interpretações humanitárias de que a Cláusula foi alvo.

Palavras-chave: Cláusula de Martens; Martens; Conferência de Haia de 1899;


Direito Internacional Humanitário.

1. Introdução
A história da evolução do direito do conflito armado sempre se centrou
na humanização do mesmo, daí o conjunto das normas que o regulam ser hoje
designado de Direito Internacional Humanitário (DIH). O direito da guerra
moderno emergiu durante o Iluminismo, tendo sido promovido pelos escritos
de teóricos como Hugo Grócio e Emer de Vattel. Este último discorria já sobre
responsabilidade individual por violações das leis da guerra, e sobre a poupança
de soldados inimigos, na sua magnus opus “Le Droit des Gens de 1758” (Laird &
Witt, 2019). Foi, contudo, no século XIX que este ramo do Direito
Internacional conheceu o seu primeiro grande desenvolvimento, através de
inúmeros esforços multilaterais de codificação. Anteriormente, as normas
relevantes figuravam somente em tratados bilaterais e no direito interno dos

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 66


Estados (Bryant, 2021). Pioneiro neste impulso codificador, o código General
Orders No. 100 compilado pelo americano Francis Lieber em 1863, mais
conhecido como o Lieber Code, reuniu o conjunto de regras que refletiam, à
data, o estado evolutivo do DIH (Bryant, 2021). Este código foi profundamente
influente: nele se basearam a Declaração de Bruxelas de 1874 e as Convenções
de Haia de 1899 e 1907 respeitante às Leis e Costumes de Guerra em Terra.
Em 1864, um ano após a adoção do código pelo exército americano em
plena guerra civil, foi assinada a Convenção de Genebra para Melhorar a
Situação Dos Feridos e Doentes das Forças Armadas em Campanha1. Elaborada
no período colonial, o depósito de 57 instrumentos de ratificação traduziu uma
aceitação praticamente universal. Seguiu-se, em 1874, o primeiro esforço
exclusivamente europeu com vista a redigir um código compreensivo das leis
da guerra. Por iniciativa do Czar Alexandre II reuniram-se em Bruxelas
delegados de 15 Estados que, embora rejeitando o esboço de Convenção
proposto pelo Império Russo, aceitaram adotá-lo largamente na sua formulação
original na forma de uma Declaração (Bryant, 2021). A Declaração de Bruxelas
debruçou-se sobre o direito da ocupação, o tratamento de prisioneiros de guerra
e o estatuto de combatente.
Paralelamente, a codificação do DIH foi promovida por juristas no
âmbito do Institut de Droit International, que em 1880 publicou o Manual de
Oxford. Tal como o Lieber Code, este compendiou as regras existentes do
direito do conflito armado. A importância das publicações académicas durante
o século XIX não pode ser menorizada, porquanto neste período de parca
codificação do DIH os Estados recorriam amplamente a estes para se inteirar
da existência de direito costumeiro (Keefer, 2016). Igualmente importantes na
identificação do costume, os manuais militares emitidos às forças armadas, e.g.

1
Esta Convenção, compreendendo 10 artigos, foi subsequentemente expandida em
várias Conferências Diplomáticas nos anos de 1906, 1929 e 1949.

67
Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021
o Lieber Code, albergaram normas consuetudinárias durante séculos,
constituindo, efetivamente, prática atribuível ao Estados.
Foi, portanto, adequado que o século XIX, no qual se verificou um
crescente reconhecimento e positivação das normas costumeiras de DIH, tenha
concluído, em 1899, com o primeiro tratado multilateral no qual estas regras
foram inseridas: a Convenção de Haia respeitante às Leis e Costumes de Guerra
em Terra (Haia II 1899)2. Foi precisamente no preâmbulo desta convenção que
a famosa Cláusula de Martens surgiu, ditando que:

“Until a more complete code of the laws of war is issued, the


High Contracting Parties think it right to declare that in cases
not included in the Regulations adopted by them, populations
and belligerents remain under the protection and empire of the
principles of international law, as they result from the usages
established between civilized nations, from the laws of
humanity, and the requirements of the public conscience”
(International Peace Conference, Carnegie Endowment for
International Peace, 1915, p.101).

Esta cláusula, conhecida pelo nome do seu proponente, o diplomata do


Império Russo Fyodor Martens, apresenta-se numa linguagem edificante
conquanto vaga. Embora a sua relevância no desenvolvimento do DIH seja
consensual, a sua imprecisão significou a ausência de uma interpretação comum
do seu conteúdo, sendo desse modo alvo de leituras tanto restritas como
expansivas (Atadjanov, 2019). Na esquematização de Pustogarov,

2
A Convenção homónima de 1907 que a sucedeu codificou e exprimiu direito
costumeiro (Finch, 1943), incorporando o grosso dos artigos da sua antecessora sem mudanças
significativas (Bryant, 2021).
68

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021


interpretações restritivas afirmam que a Cláusula apenas confirma que, para
situações não abrangidas por normas positivas, o direito internacional
costumeiro mantém-se vigente e aplicável (Pustogarov, 1999). Por outro lado,
interpretações expansivas advogam que esta reconhece princípios aplicáveis a
atos abrangidos pelo DIH, para além da aplicação de normas escritas e
costumeiras. Nestas últimas leituras enquadram-se autores que consideram que
a Cláusula cria duas novas fontes de DI: as leis da humanidade e as exigências
da consciência pública (Cassese, 2000). O elemento comum a todas estas
interpretações divergentes é, com efeito, uma ideia de completude do direito, ou
seja, a constatação de que as normas reguladoras do DIH não se esgotam
naquelas que, por qualquer razão, se viram codificadas. Deveras, a Cláusula
reflete a ideia de que atos cometidos num contexto beligerante não se situam
num vazio jurídico, estabelecendo assim uma proteção residual garantida pelo
DI. A sua linguagem visa acomodar o princípio da necessidade militar aos
princípios humanitários que constrangem os modos e métodos de realizar a
guerra. Este equilíbrio, ao almejar-se universal, permite que, no decorrer de
conflitos, situações para as quais nenhuma norma positiva é identificada se
transformem em situações para as quais a existência de uma proteção básica é
reconhecida (Kahn, 2016). Consequentemente, não obstante as dificuldades na
determinação do seu conteúdo, é seguro afirmar que a Cláusula de Martens
estabeleceu uma presença normativa no Direito Internacional (Geras, 2011).

2. Martens e a Conferência de Paz de Haia de 1899


Fyodor Fyodorovich Martens (1845-1909) nasceu em Pärnu, no
Império Russo, hoje parte da atual Estónia. Nascido numa família de
rendimentos humildes, foi enviado com dez anos para uma escola de órfãos em
São Petersburgo. Licenciou-se em Direito nessa mesma cidade e, aos 20 anos,
iniciou a sua carreira profissional no Ministério dos Negócios Estrangeiros do

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 69


Império Russo. Foi membro do Tribunal Permanente de Arbitragem de Haia e
do Conselho de Política Externa Russo e de um conjunto alargado de
negociações internacionais, onde se incluem as que levaram à Paz de
Portsmouth. A sua distinta carreira alicerçou-se não só na prática diplomática
como também no estudo do Direito Internacional. Segundo Arthur Nussbaum,
académico norte-americano que estudou aprofundadamente o percurso de
Martens, nenhum outro jurista russo teve tanta relevância, renome e influência
nesse campo (Nussbaum, 1952), tendo recebido o título de Doutor Honoris
Causa das Universidades de Yale, Oxford e Cambridge e lecionado na
Universidade de São Petersburgo. Entre as suas obras publicadas destaca-se
International Law of Civilized Nations de 1882-3, subdividida em dois volumes
nos quais Martens examina os fatores formadores da comunidade internacional
e o Direito Internacional Administrativo. É de particular relevância a
investigação relativa aos direitos dos Estados. Martens dita que às nações
civilizadas é permitido intervir em países terceiros sempre que populações
cristãs sejam vítimas de perseguições bárbaras. Já as nações consideradas
incivilizadas não são por Martens incluídas no âmbito do DI. No seu entender,
àqueles que violam a regra da reciprocidade necessária às relações
internacionais, deve ser aplicado o direito natural.
Num influente artigo publicado por Nussbaum em 1952, o académico
indica reiteradamente que a carreira académica e profissional de Martens é
comprometida por um enviesamento e servitude face à Rússia e ao Czar. Nas
obras de Martens, o autor sustenta, “Tsars or Tsarinas invariably appear as
pure representatives of peace, conciliation, moderation and justice, whereas the
moral qualities of their non-Russian opponents leave much to be desired”
(Nussbaum, 1952, p.55).
Os seus escritos são invariavelmente assinados enquanto professor na
Universidade de São Petersburgo, nunca mencionando os altos cargos ocupados

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 70


no Ministério dos Negócios Estrangeiros russo. Segundo Nussbaum, Martens
utilizou o seu renome na academia para irradiar imparcialidade enquanto
transmitia mensagens de apoio e suporte teórico às ações do governo russo.
Nussbaum encontrou ainda várias atividades suspeitas e não isentas relativas à
sua atuação em arbitragens internacionais. Se Carl von Clausewitz entendia a
guerra como a continuação da diplomacia por outros meios, Martens assumia a
lei internacional como um mecanismo de idêntica subsequência para expressão
dos interesses nacionais:

“Did not think of international law as something different from,


and in a sense above, diplomacy (…) Martens considered it his
professional duty as a scholar and writer on international law to
defend and back up the policies of his government at any price
(…) He was not really a man of law” (Nussbaum, 1952 p.60).

Considerando como pano de fundo as predileções de Martens,


evidenciadas por Nussbaum, respeitantes às suas publicações académicas, torna-
se possível contextualizar o seu posicionamento durante a Conferência de Paz
de Haia de 1899, não obstante o facto de, ao ter participado na condição de
representante diplomático do Império Russo, a imparcialidade nessa
Conferência não lhe ser requerida.
Martens desempenhou um papel distinto nos procedimentos da
Conferência, presidindo à sua segunda Comissão, cuja segunda subcomissão,
por si também presidida, foi encarregada de rever a Declaração de Bruxelas
(Scott, 1920). Os artigos desta declaração serviram de base de trabalho aos
esforços codificadores dos representantes. Foi no âmbito desta subcomissão que
um conflito surgiu entre grandes e pequenos Estados quanto aos artigos 9 e 10
da Declaração relativos aos direitos da potência ocupante em território ocupado.

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Consequentemente, a discussão enveredou também pelos méritos e deméritos
da codificação exaustiva das normas reguladoras da guerra (Giladi, 2014). Estes
assuntos eram críticos, pois abordavam os interesses estratégicos dos dois
grupos de Estados: os pequenos que temiam legitimamente ser vítimas de uma
ocupação; e os grandes que naturalmente perspetivavam assumir a posição
contrária. Os principais proponentes destas duas fações foram a Bélgica e o
Império Russo, respetivamente. O delegado belga, Auguste Beernaert, opôs-se
veementemente às disposições contidas na Declaração de Bruxelas,
considerando inadmissível um tratado obrigar um Estado invadido a
reconhecer certos direitos à força ocupante. Beernaert repudiou a possibilidade
de conceder à força um efeito legal e temeu que uma codificação extensa dos
direitos de ocupação a legitimasse e reconhecesse legalmente (Giladi, 2014).
Nessa senda afirmou que “there are situations here which it is better to leave to
the domain of the law of nations, however vague it may be”, tendo igualmente
proposto a adoção de normas exigindo à força invasora um exercício moderado
dos seus direitos (Scott, 1920, p.503).
Do ponto de vista dos direitos dos Estados ocupados, Beernaert
revelou-se igualmente insatisfeito quanto aos requisitos impostos pela
Declaração de Bruxelas a milícias e corpos voluntários cujo cumprimento lhes
concederia o estatuto de combatente e, consequentemente, as imunidades
permitindo guerrear sem incorrer em responsabilidade criminal (Scott, 1920), a
saber: (1) que estas sejam comandadas por uma pessoa responsável pelos seus
subordinados; (2) que possuam um emblema distintivo fixo reconhecível à
distância; (3) que transportem as suas armas abertamente; e (4) que conduzam
as suas operações de acordo com as leis e os costumes de guerra ("Treaties,
States parties, and Commentaries - Brussels Declaration", 2021). Logicamente,
estes requisitos excluíram ipso jure resistência espontânea desencadeada por
civis individuais e restringiram sobremaneira formas de resistência organizada.

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 72


Acresce ainda o facto de o direito costumeiro, no final do século XIX, proibir
civis em território ocupado de encetar lutas armadas contra forças ocupantes
(Cassese, 2000). Beernaert não pôde aceitar tais restrições, asseverando que
pequenos países como a Bélgica não poderiam renunciar certos fatores de
resistência. De entre estes, o representante destacou a resistência de civis,
indagando retoricamente se o principal dever de cada cidadão não seria defender
o seu país. Indubitavelmente respondendo às preferências belgas, Beernaert
concluiu que “small countries especially need to fill out their factors of defense
by availing themselves of all their resources” (Scott, 1920, p.504).
A posição do Império Russo era incompatível com estas exigências,
tendo cabido a Martens a tarefa de a fazer valer, peculiarmente, através de
argumentações contraditórias. Inicialmente o diplomata russo atacou a posição
da sua contraparte belga, criticando codificações vagas e pouco compreensivas,
afirmando muito diretamente que, em relação à Declaração de Bruxelas, “it
would be a pity to leave in a vague condition the questions which relate to the
first articles on occupation and combatants” (Scott, 1920, p.506). Através de
uma articulação engenhosa, Martens desfez a posição belga ao alegar que seria
manifestamente perigoso confiar nos sentimentos nobres dos combatentes
emaranhados em combate, uma vez que nesse contexto o único propósito tido
em mente é o propósito de guerra (Scott, 1920). Com isto pretendeu clarificar
que, em resultado de uma exígua codificação, surgiriam situações para as quais
as regras seriam inexistentes ou notoriamente imprecisas. Consequentemente,
tais situações acarretariam o risco de que considerações de natureza militar se
sobrepusessem àquelas de natureza humanitária, caso a decisão recaísse sobre
comandantes envolvidos e interessados no desenlace do conflito. Segundo
Martens, a necessidade de recorrer a costumes e a princípios de direito
internacional poderia atrasar a tomada de decisão, algo em nada expediente para
combatentes que lutam em defesa da honra do próprio país em condições

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 73


tumultuosas. Assim, o perigo provocado por normas imprecisas afetaria, ao
contrário da posição de Beernaert, os países fracos e não os fortes, uma vez que
tal vagueza nunca negaria aos beligerantes a possibilidade de interpretar as
regras da forma que mais lhes é conveniente (Scott, 1920). Nas entrelinhas desta
argumentação arguta Martens produziu uma ameaça encoberta, contudo
oferecendo sempre a impressão de um diplomata empenhado na proteção de
valores humanitários e de pequenos países vulneráveis. A defesa da causa da
humanidade escondia em si o favorecimento da força, pois esta retaliação
pretendia, precisamente, deixar intacto o texto da Declaração de Bruxelas que
em larga medida beneficiava grandes potências como a Telurocracia russa
(Giladi, 2014).
Perante uma posição tão bem estruturada, é surpreendente que, duas
semanas após a sua locução, o seu proponente tenha assumido uma disposição
diametralmente inversa. Com o intuito de rebater Beernaert novamente,
Martens deu início à discussão criticando o sacrifício de vítimas inofensivas em
prol de interesses militares, embora garantisse que não desejava negar o direito
das populações de se defender a si mesmas. Desse modo, Martens aparentou
defender os interesses das populações dos pequenos Estados contra aqueles dos
seus governantes (Giladi, 2014). O diplomata aproveitou igualmente a
oportunidade para louvar o esboço proposto pelo Império Russo em 1874 (i.e.,
a Declaração de Bruxelas) que continha, segundo o próprio, condições de fácil
cumprimento através das quais populações poderiam participar na guerra
(Scott, 1920). Naturalmente, este reparo servia os interesses da Rússia em
manter as formulações que já havia proposto às potências europeias em 1874.
Essas, urge repetir, em muito favoreciam os direitos dos ocupantes,
principalmente no que toca às condições mencionadas por Martens que, na
verdade, eram particularmente restritivas.

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Foi no seguimento destas observações que Martens declarou que a
Conferência de Paz havia entendido que heróis não são criados por códigos e
que o seu dever “was not to try to formulate a code for cases which cannot be
foreseen and codified, such as acts of heroism on the part of populations rising
against the enemy (…) it is not the purpose of these provisions to codify all
cases that might arise” (Scott, 1920, p. 547). Do mesmo modo, salientou a
importância dos artigos 9 e 10 da Declaração de Bruxelas na criação de
condições bastante mais favoráveis às populações do que aquelas concedidas
pelos beligerantes antes da sua adoção (Scott, 1920). O interesse de Martens em
manter estes artigos intactos, em adotá-los na íntegra nas Regulações anexadas
à Convenção de Haia II 1899, tornava-se claro. Ciente de que a subcomissão iria
discutir ainda propostas da Grã-Bretanha e da Suíça, a intervenção inicial do
diplomata russo visou intercetá-las. Antes de conceder a palavra, Martens leu
ainda uma declaração na qual lamentou que não tivesse sido possível concordar
com um código que abrangesse todos os casos possíveis e na qual constou
precisamente a famosa Cláusula de Martens, no sentido da qual afirmou que os
artigos 9 e 10 da Declaração de Bruxelas deveriam ser entendidos (Giladi, 2014)
(Scott, 1920). A sua posição não foi consensual. Beernaert reiterou o
descontentamento com os artigos, mas afirmou que votaria em favor destes caso
a Declaração de Martens fosse igualmente incluída no protocolo ou acto geral
(i.e., na Convenção) elaborados pela Conferência. Beernaert, contudo, ofereceu
a sua própria interpretação do significado destes artigos e da Declaração:

“The only point settled is that armies, militia, organized bodies


and also the population which, even though unorganized,
spontaneously takes up arms in unoccupied territory, must be
regarded as belligerents. All other cases and situations are
regulated by the law of nations according to the terms of the

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 75


declaration just read by the President [Martens]” (Scott, 1920,
p.548).

Por sua vez o delegado holandês, o General den Beer Poortugael,


votou a favor dos artigos propostos defendendo que a sua linguagem não
favorecia nem grandes nem pequenas potências particularmente. (Scott, 1920).
No entanto, dar-se-ia um impasse quando os delegados suíço e inglês, o Coronel
Küntzli e Sir John Ardagh, respetivamente, insistiram em discutir as suas
propostas, ambas em defesa do direito de resistência popular a forças invasoras3.
Após uma extensa intervenção do delegado suíço em defesa das populações
resistentes e crítica quanto ao facto de os artigos 9 e 10 não representarem uma
inovação, mas uma codificação de direito costumeiro, tanto Martens como o
representante alemão, o Coronel Gross von Schwarzhoff, intervieram, tendo
este último asseverado muito diretamente que mais concessões deveriam
terminar e que a conciliação dos interesses dos exércitos ocupantes e das
populações por si ocupadas era impossível (Scott, 1920). Perante a insistência
de Ardagh, apoiada por Küntzli, de que a sua proposta fosse adotada num artigo
separado, Léon Bourgeois, delegado francês, sugeriu a possibilidade de
introduzir a Declaração de Martens no protocolo final (Scott, 1920). Esta
proposta viria desfazer o impasse. Sir John Ardagh retirou a sua moção, e a
Cláusula de Martens foi adotada como um ato oficial da subcomissão, (Scott,
1920) tendo posteriormente sido integrada no preâmbulo do esboço de
Convenção e aprovada em plenário pela Conferência (Giladi, 2014).

3
A proposta de Artigo Inglesa : “Nothing in this chapter shall be considered as
tending to lessen or abolish the right belonging to the population of an invaded country to
fulfill its duty of offering by all lawful means, the most energetic patriotic resistance against
the invaders”. Küntzli desistiu da sua proposta, optando por apoiar os esforços de Ardagh. Esta,
no entanto, estabelecia que “No acts of retaliation shall be exercised against the population of
the occupied territory for having openly taken up arms against the invader”. (Scott, 1920,
76
p.550)

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Martens foi, portanto, bem-sucedido na promoção dos interesses do
Império Russo na Conferência de Paz. A sua declaração não foi proferida com
interesses humanitários em mente (Cassese, 2000), mas sim com intuitos
bastante diferentes. A adoção dos artigos 9 e 10 da Declaração de Bruxelas na
Convenção de Haia II de 1899 evitou a introdução de linguagem que
qualificasse explicitamente a vantagem obtida pelas forças ocupantes por si
concedida. Inversamente, a Cláusula de Martens pautou-se por uma linguagem
vaga que permitiu tranquilizar os opositores da posição do diplomata russo sem
oferecer concessões disruptivas, estabelecendo uma proteção básica conferida
por princípios de Direito Internacional. Nesta senda, o pretexto de defender
civis inocentes contra sacrifícios fúteis incorridos em razão da sua participação
em operações militares foi utilizado para garantir que estes não se rebelariam
contra forças invasoras (Giladi, 2014), desse modo facilitando o controlo e a
ocupação do território. Independentemente da imprecisão dos seus conteúdos,
é evidente que a sua introdução consistiu numa manobra diplomática habilidosa
capaz de gerar um compromisso e, simultaneamente, adiar uma discussão
delicada (Cassese, 2000).
Embora Martens tenha proposto a sua Cláusula elogiando uma
codificação incompleta, a Cláusula é hoje interpretada como reconhecendo
exatamente o contrário, ou seja, a completude da lei (Giladi, 2014).

3. Compreendendo a Discrepância
A linguagem utilizada por Martens não terá tido como intenção fincar
um desenvolvimento progressista do DIH, uma vez que o seu objetivo se
revelou contrário à expansão das normas esboçadas em 1874. Considerações
sobre os efeitos legais da Cláusula por si proposta terão sido secundárias face à
prossecução dos objetivos alcançados pela sua linguagem imprecisa e
conciliante. Com efeito, Jean Pictet lamentou a tendência observada em

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conferências diplomáticas em empregar fraseamentos obscuros que acarretam
perigos dissipáveis através do recurso a uma linguagem concisa (Pictet in
Giladi, 2014). O próprio Martens registou no seu diário que a Cláusula se
encontrava repleta de frases vazias (Holquist in Giladi, 2014). Efetivamente, o
termo “leis da humanidade”, possivelmente o mais importante em toda a
Cláusula, era comummente utilizado como catchword em meios internacionais
tão e somente enquanto exortação genérica à qual nenhuma consequência legal
era atribuída (Cassese, 2008).
De modo a compreender a discrepância entre a interpretação dada por
Martens à sua Cláusula e as subsequentes interpretações expansivas que lhe
concederam uma presença normativa no Direito Internacional, é fundamental
situá-la no tempo e ter em mente a fase de desenvolvimento do Direito
Internacional em que esta foi introduzida.
Tendo sido adotada em 1899, a sua linguagem edificante refletiu o
espírito humanitário pelo qual se orientava o progresso do Direito
Internacional. Todavia, esta, tal como as visões do seu criador, foram produtos
do seu tempo. Por essa razão, na aceção do seu proponente, esta espelhou e
reforçou a enorme presunção de soberania dos Estados amplamente enraizada
no Direito Internacional do século XIX (Dubler e Kalyk, 2018) (Dinstein,
2012). Com efeito, a legitimidade da iniciação de guerras indiscriminadas
resultante da consagração dos princípios defensores da soberania estatal
(Dinstein, 2012) criou um clima internacional no qual a guerra era considerada
inevitável, havendo os Estados concentrado consequentemente esforços na sua
regulação (Sellars, 2013).
A Cláusula de Martens surge, portanto, num importante momento de
codificação do DIH na qual as Convenções de Haia se destacam enquanto o
culminar de um longo processo. Ao ser concebida na transição do século XIX
para o século XX, a Cláusula retém aspetos característicos de ambos: tanto

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representa o entrincheiramento dos extensos direitos dos Estados em iniciar e
realizar conflitos armados, tal como a sua linguagem moralizadora capta as
considerações humanitárias que orientariam o desenvolvimento do DIH no
século seguinte, centrado primariamente na defesa da pessoa humana e apenas
secundariamente nos interesses estratégicos dos Estados.
Embora os seus efeitos legais não tenham sido claros no momento da
sua adoção4, a sua linguagem profundamente nobre permitiu que,
posteriormente, a Cláusula tenha podido ser considerada uma fonte normativa,
algo reconhecido em múltiplas ocasiões, nomeadamente no caso Krupp julgado
pelo Tribunal Militar Internacional dos Estados Unidos em Nuremberga, e no
caso Martić, julgado pelo Tribunal Penal Internacional para a antiga Jugoslávia
(Cassese, 2000).
O ponto nevrálgico da Cláusula é o termo “leis da humanidade”,
entendido como princípio orientador do Direito Internacional. Embora o
Princípio da Humanidade não se tenha ainda consagrado autonomamente
enquanto um princípio legalmente vinculativo no DIH (ao contrário de
princípios como o da distinção), este revela-se quando o termo “princípios” é
entendido num sentido mais amplo, na medida em que implica considerações
extralegais orientadoras da produção normativa (Crawford & Pert, 2015)
(Atadjanov, 2019). Em graus díspares, os princípios vinculativos do DIH
regem-se pelo Princípio da Humanidade, nomeadamente o princípio que
sanciona infligir sofrimento desnecessário. A Cláusula de Martens consiste,
provavelmente, no mais famoso reconhecimento deste princípio (Crawford &
Pert, 2015). Contudo, os contornos deste princípio não são prima facie claros.
Em razão da indefinição do termo “Humanidade” e dos atos passíveis de a lesar,
a Cláusula insiste em ser clarificada, estabelecendo simultaneamente o ser

4
Acresce que a Cláusula foi inserida no Preâmbulo da Convenção de Haia II, não
tendo feito parte das regulações a esta anexadas.

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humano enquanto foco central dos princípios do Direito Internacional, isto é,
estabelecendo a moldura dentro da qual esta clarificação é operável. Destarte, a
Cláusula predispõe naturalmente para um futuro que desconhece, sujeitando os
princípios de Direito Internacional às “leis da humanidade” que, não sendo um
conceito legal na altura da sua introdução (United Nations War Crimes
Commission, 2006), devem ser entendidas principalmente como reflexão dos
sentimentos morais da consciência da Humanidade, à semelhança da sua
contraparte, “as exigências da consciência pública”. A Cláusula encontra-se,
assim, dependente dos tempos que a sucedem, e tal explica que os impulsos
humanitários que permearam a evolução do DIH no Século XX se tenham
servido desta para justificar evoluções normativas. Caso o Direito Internacional
tivesse permanecido centrado na larga consagração de soberania estatal
parcamente constrangida legal e institucionalmente, poder-se-ia conjeturar que
a Cláusula de Martens não seria hoje mais do que uma linguagem preambular
edificante, mas ineficaz juridicamente, seguindo consequentemente os desígnios
do seu criador e não dos seus futuros interpretadores.
Independentemente das intenções de Martens quanto à sua criação, a
verdade é que a sua introdução num documento legal amplamente ratificado
concedeu à Cláusula uma base legal suficiente para que, mais tarde, e através de
avanços e clarificações, consequências e normas legais mais precisas pudessem
ser derivadas da sua linguagem. Estes avanços dependeriam sempre dos
conteúdos da “moral internacional”, uma vez que, tal como Percy E. Corbett
explica, “whatever is considered ‘just’ in the sense of international morality has
at least a tendency of becoming international ‘law’” (Corbett in Bassiouni, 2011,
p.316). De facto, Keenan e Brown, comentando a Carta do Tribunal Militar
Internacional de Nuremberga, defendem uma posição semelhante ao
argumentar que “the international moral order must be regarded as the cause,
not the effect, of positive law” (Keenan & Brown in Bassiouni, 2011, p.316). Foi

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precisamente este o espírito incorporado na linguagem da Cláusula de Martens,
não obstante os motivos pelos quais este fraseamento foi adotado.

4. Conclusão
Em suma, a Cláusula de Martens, com a sua linguagem moralizadora,
lançou o mote para o que seria o princípio orientador do desenvolvimento e
codificação do DIH no século seguinte: a Humanidade enquanto principal
interesse protegido pelas suas normas, e a sujeição da necessidade militar aos
seus imperativos. A pessoa humana é colocada no centro do desenvolvimento
das regras do conflito armado e é afirmada como portadora de direitos que se
sobrepõem à força bruta exercida pelos Estados Soberanos e atores não estatais.
O facto de Martens ter proposto a sua Cláusula com intuitos marcadamente
belicosos sob uma pretensão humanitária possibilitou, em consequência da sua
articulação, o seu desenvolvimento posterior numa direção manifestamente
contrária às intenções originais do seu proponente. Hoje o diplomata do
Império Russo é um household name do Direito Internacional, reconhecido como
um verdadeiro humanitário. Mas tal não seria possível em razão dos objetivos
por si almejados com a introdução da sua Cláusula homónima, mas sim em
consequência das sucessivas interpretações que a sua linguagem vaga e
humanitária propiciou. Inegavelmente, a Cláusula espelha ainda hoje o espírito
que inspira o DIH.

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Da Monarquia Constitucional ao Estado Novo:
Bettencourt-Rodrigues, o diplomata republicano do
Pan-Latinismo (1854-1933)
Soraia Milene Carvalho

Resumo: O presente retrato diplomático de António Maria de Bettencourt-


Rodrigues (1854-1933) contempla uma análise da política externa lusa no pós-
Grande Guerra em torno dos povos latinos através da visão de um republicano
transversal a três regimes políticos em Portugal: Monarquia Constitucional, I
República Portuguesa e Ditadura Militar. Bettencourt-Rodrigues foi médico,
diplomata, Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal e participou na
Conferência da Paz, em 1919, em Paris. As suas preocupações diplomáticas
iniciaram-se ainda estudante na capital francesa e atingiram contornos mais
vincados a partir do final do século XIX, quando rumou ao Brasil. Foi um
acérrimo defensor do desenvolvimento das relações diplomáticas entre as
nações latinas, causa essa que foi o propósito máximo da sua carreira
diplomática.

Palavras-chave: Pan-latinismo; Luso-brasileirismo; República; Diplomacia.

Em terras de Santa Cruz, longe de aquém-mar, Bettencourt-Rodrigues


amadureceu o ideário diplomático que o acompanhou até à sua retirada, ocorrida
com a chegada de António de Oliveira Salazar (1889-1970) à administração do
Ministério das Finanças em 1928. O seu retrato na diplomacia constrói-se na
senda de um percurso inacabado e reavido no final da centúria Novecentista, na
imprensa brasileira (O Estado de S. Paulo, 16-04-1972), através do seu projeto
mais ambicioso e convicto: «Uma Confederação Luso-brasileira» (Bettencourt-
Rodrigues, 1923), trazida a público no começo dos Roaring Twenties, que
acarretava o resultado do pós-I Guerra Mundial e um novo padrão nas relações


Investigadora do CH-UL. Doutoranda em História Contemporânea na FLUL. Mestre
em História Contemporânea com a Dissertação “A Sociedade das Nações: Europa, Portugal e
Agricultura”. Estagiária do Arquivo / Biblioteca do Instituto Diplomático do MNE em 2017.
E-mail: soraiamilenecarvalho@campus.ul.pt
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internacionais. Opositor à Monarquia Constitucional e republicano aguerrido
desde os tempos em que se deixou consumir pelas matemáticas na Universidade
de Coimbra, António Maria de Bettencourt-Rodrigues (1854-1933) foi um
diplomata português de bastidores, conforme as suas atuações na política
internacional do país em períodos ditatoriais (com Pimenta de Castro em 1915;
Sidónio Pais em 1917; e, na ditadura militar de 28 de maio de 1926). Acima de
tudo, defendia uma diplomacia caracterizada pela inserção dos países Latinos –
do Velho Continente e do Novo Mundo – num «agrupamento de nações»
(Bettencourt-Rodrigues, 1923); a sua linha diplomática teceu-se, com especial
incidência, entre Brasil, França, Portugal e as Repúblicas Espanholas da
América Latina, não obstante a participação portuguesa na Sociedade das
Nações.
O presente retrato de Bettencourt-Rodrigues incide na atividade
diplomática nos Estados supramencionados com a criação da Comissão de
Estudos Luso-Hispano-Americanos em 1926, perspetivando-se uma nova
interpretação do percurso do diplomata português propiciada por fontes
documentais que se encontram à guarda do Ministério dos Negócios
Estrangeiros (MNE), inéditas até ao momento. Desta feita, retratamos o
percurso, as ideias e a diplomacia de um homem discreto no seu timbre,
reconhecido pelas qualidades político-diplomáticas além-fronteiras, e olvidado
no presente.

1. Por Lisboa, Paris e São Paulo: o início das preocupações diplomáticas


de Bettencourt-Rodrigues (1880-1910)
Pan-latinista na sua génese, formou-se em Psiquiatria na Universidade
Parisiense em 1886 (Leal, 2009, p. 236). Em Lisboa tinha frequentado o Curso
Superior de Letras a partir de 1875/1876 (Carvalho, 2019, p. 91), ficando
próximo do seu mestre republicano Teófilo Braga (1843-1924). Aquando das

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comemorações camonianas de 1880, António Maria de Bettencourt-Rodrigues
encontrava-se em França, uma distância física que não invalidou o
envolvimento no acontecimento através de missivas chegadas de Paris em maio
daquele ano, noticiando o regozijo pela tradução para francês dos trabalhos de
Teófilo sobre Camões. Na capital francesa, ainda estudante neste período,
António Maria iniciava os primeiros passos no incremento das relações entre
Portugal e França; esperava alcançar o “(…) acolhimento do público” francês
com o trabalho que produzia “ao alcance de todas as bolsas” (Bettencourt-
Rodrigues, Arq. Teófilo Braga, 1880), na esteira do Tricentenário alusivo a
quem escrevera uma Epopeia Lusa e era sujeito a um processo de
republicanização no final de Oitocentos com o intuito de enfatizar a
continuidade da obra épica dos republicanos portugueses, avizinhando-se a
Lusitânia da República Francesa.
Bettencourt-Rodrigues contava 26 anos de idade e frequentava o café
Bas-Rhin, em França, onde se reuniam portugueses e brasileiros (Bettencourt-
Rodrigues, 1931, pp. 74-75), fazendo já notar o carácter pan-latinista –
estreitamento das relações entre os povos Latinos Euro-americanos (Beired,
2014, p. 632) – das ideias diplomáticas subjacentes às suas ações. A sua relação
com o Pan-latinismo – movimento cultural e geopolítico impulsionado pela
França na primeira metade Oitocentista, reivindicando as semelhanças
linguísticas e o catolicismo perfilhado pela Bélgica, Espanha, França, Itália,
Portugal e Roménia (Beired, 2014, p. 634) – resultava da presença do nosso
republicano no país gálico e da boa receção do seu trabalho naquele meio
universitário.
Terminado o curso em Paris, Bettencourt-Rodrigues regressou a
Portugal, onde exerceu medicina. Em 1891, candidatava-se à vereação de
Lisboa e colaborava na redação do Manifesto-Programa do PRP. No ano
seguinte zarpava rumo ao Rio de Janeiro por questões de teor profissional e pelo

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Ultimatum britânico (Carvalho, 2019, pp. 100-101); nesse contexto,
renovavam-se as preocupações do nosso retratado com as relações diplomáticas
entre Portugal e o Brasil, sem perder de vista a França. Sublinhe-se, para
António Maria, o Brasil era terra incógnita por desbravar, realidade distinta da
europeia e da sua terra natal, Cabo Verde. Uma vez instalado, Bettencourt-
Rodrigues correspondia-se com Teófilo Braga, divulgando os progressos
obtidos no incremento das relações entre Brasil e França. Bettencourt-
Rodrigues recebeu fortes influências francesas quanto à leitura do espectro
internacional anterior à Grande Guerra e às necessidades antecipadas para a
América Latina e para a Europa; entre estes, o Autor enfatizava numa primeira
fase o relacionamento entre Portugal e França, remetendo Espanha para um
plano seguinte e essencial quando ressalvados os interesses nas duas margens
do Atlântico Sul.
Na estadia em terras brasileiras, Bettencourt-Rodrigues interagiu com
as elites paulistas; o seu objetivo focava-se no intercâmbio entre a Europa
Republicana e o Brasil. Antes de 1910, pretendia aproximar as Repúblicas
Brasileira e Francesa: as missivas trocadas com o jornalista brasileiro Euclides
da Cunha (1866-1909) em 1908 revelavam o projeto para a criação de uma
revista sobre a América Latina (Bettencourt-Rodrigues, Arq. Euclides da
Cunha, 1908). Esta revista constituiria um instrumento de propaganda da
América do Sul na Europa Latina.
Em 1909, as cartas enviadas a Euclides da Cunha, à guarda da
Biblioteca Nacional do Brasil, revelavam ainda o intento em obter uma carta de
apresentação ao Barão do Rio Branco, José Maria da Silva Paranhos Júnior
(1845-1912) – então Chefe do Ministério das Relações Exteriores do Brasil –;
mobilizava-se igualmente em alcançar um convite para ser recebido no
Itamaraty (Bettencourt-Rodrigues, Arq. Euclides da Cunha, 1909). Os objetivos
de Bettencourt-Rodrigues no respeitante à sua conduta no incremento das

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relações do Brasil com os Latinos Republicanos da Europa adquiriram
manifestos contornos.
A 13 de Julho de 1909, O Estado de S. Paulo noticiava o início do
intercâmbio de alunos franceses e brasileiros; a deslocação de estudantes
franceses ao Brasil integrava-se no projeto comparticipado por Bettencourt-
Rodrigues que, em parceria com o Cônsul de França em São Paulo, Jacques
Dupas (Carvalho, 2019, p. 105), visitavam o Chefe do Estado paulista, os
Secretários de Estado e o Vice-Prefeito, prestando congratulações pela receção
aos universitários franceses (O Estado de S. Paulo, 1909). Esta permuta de
alunos permitia o contacto e a partilha de conhecimentos entre as duas
Repúblicas Latinas, num período em que o nosso biografado impulsionava o
Centro Republicano Português de São Paulo e fazia discursos empolgados sobre
a conveniente aproximação luso-brasileira. Esmiuçava-se o carácter híbrido da
doutrina político-diplomática de Bettencourt-Rodrigues. Colocava a ênfase
num Pan-Lusitanismo, que comungava uma identidade histórica estrita,
distinguindo-se do Pan-Latinismo: embora este pan-movement – designações
atribuídas, na época, a movimentos nacionalistas com tendências
hegemónicas/imperialistas – tivesse a sua origem em França, a dianteira do
mesmo era contestada pelas distintas nações latinas através do seus ímpetos
nacionalistas; importava quem orientaria a Civilização Latina, o que pretendia
significar qual das nações uniria – à semelhança do passado imperial – os
herdeiros de Roma Antiga (Snyder, 1984, p. 103).
Bettencourt-Rodrigues acompanhou os alunos franceses à sede da
comissão executiva do Congresso Brasileiro de Estudantes e à redação do jornal
O Estado de S. Paulo, onde colaborava com artigos políticos. Os alunos
visitariam as Faculdade de Direito, a Escola de Farmácia, a Escola Politécnica,
a Escola de Comércio, o Hospital de Isolamento, o Instituto Bacteriológico,
estabelecimentos industriais importantes; os hospitais de Psiquiatria seriam

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visitados pelo académico Dagnan Bouveret (O Estado de S. Paulo, 1909); o
cunho de Bettencourt-Rodrigues era visível. As famílias mais importantes de
São Paulo marcaram presença numa reunião em honra dos universitários
organizada pela Direção do Club Atlético Paulistano, em 15 de julho de 1909.
No dia anterior assinalava-se o momento cimeiro das atividades com o
Congresso Brasileiro de Estudantes: contava com o Presidente do Estado de
São Paulo, das Autoridades Federais e Municipais. No regimento do Congresso,
as sessões parciais dividir-se-iam: Teologia, Filosofia e Literatura; Medicina,
Farmácia, Odontologia e Obstetrícia; Engenharia Civil, Militar, Naval e de
Minas; Agricultura, Comércio e Belas Artes. Note-se, os alunos franceses não
podiam intervir nos debates do Congresso, à exceção da conferência “Quais os
meios para se conseguir a solidariedade universal dos estudantes?” de Spencer
Vampré (1888-1964) – professor e jurista brasileiro (O Estado de S. Paulo,
1909).
Em outubro de 1909, Bettencourt-Rodrigues transmitia a Teófilo
Braga a sua intervenção numa conferência em São Paulo onde pretendia
enaltecer o espírito dos portugueses, incrementando as ligações entre a
República Brasileira e a futura República Portuguesa. Deixava escapar as
saudades de Portugal: visitaria o país em abril de 1910. As notícias corriam
rápido em Lisboa, cidade onde os jornais republicanos reavivavam os motivos
que o haviam levado a partir para o Brasil (Carvalho, 2019, p. 106). Bettencourt-
Rodrigues viajava até Portugal e ocupava-se de interesses republicanos: a
criação de um curso de Literatura Portuguesa na Sorbonne. Em maio de 1910,
tal propósito levava-o até Paris (Carvalho, 2019, p. 107).

2. A implantação da República em Portugal: o diálogo


bettencourtiano com as Repúblicas Brasileira e Francesa (1910-1917)

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Na carta a Teófilo Braga, redigida em Paris, depois de visitar Lisboa,
formulava o fim da insistência com o interlocutor: na Sorbonne era almejado
um curso de estudos brasileiros e Bettencourt-Rodrigues não demovia os
académicos franceses da estreiteza da ideia. Sublinhava: à Universidade
Francesa interessava a América Latina, esquecendo-se as raízes literárias do
Brasil. Todavia, Portugal poderia enviar anualmente um professor à Sorbonne
para um curso livre sobre Literatura Portuguesa, ideia que Bettencourt-
Rodrigues prometia aperfeiçoar no regresso a São Paulo (Bettencourt-
Rodrigues, Arq. Teófilo Braga, 1910).
Já na cidade paulista, acompanhou a implantação da República em
Portugal e envidou esforços para estreitar o relacionamento das duas
Repúblicas Atlânticas. No 5 de Outubro de 1911 publicava-se um número
comemorativo do 1º Aniversário da República Lusa pelo Centro Republicano
Português de São Paulo. Muitos ilustres da época colaboraram: o primeiro
artigo do Boletim, da autoria de Bettencourt-Rodrigues, intitulava-se “31 de
janeiro e 5 de outubro”: memorava a “sufocada (…) revolução” de 31 de janeiro
de 1891 em que D. Carlos, “sedento de vingança”, dava início em Portugal a
“um verdadeiro período de violências”, descrevendo as medidas republicanas
como “inquisitorialmente desacatadas”. Para enfatizar esta perspetiva, citava
António Ayres de Gouveia (1828-1916) – antigo ministro de D. Luís, bispo e
lente de Direito Eclesiástico em Coimbra – que denunciou a anarquia e os
favoritismos da Monarquia que corroíam Portugal.
Bettencourt-Rodrigues pretendia credenciar o carácter não violento da
“Republica triumphante” sem Vivas à Monarquia. Assegurava que os
“escândalos” e os “latrocínios” ocorridos nos últimos vinte anos da Monarquia
concitavam o “mal estar geral” da população portuguesa que não se manifestara
contra a República. Evidenciava a inauguração de um regime de “moralidade”,
“probidade” e “justiça” que permitia ao país (e aos comparsas republicanos no

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Brasil) “encarar com segurança o futuro”, premissa legitimadora do
reconhecimento do novo regime por “todas as potências”. No final do texto
comemorativo, apelava a uma aproximação Luso-brasileira, afiançando: “Firma-
se o nosso crédito no estrangeiro”. Aos olhos do Brasil importava afastar,
quando muito, a imagem do Portugal Monárquico, símbolo do passado colonial
do Brasil. Um ano volvido sobre a implantação da República Portuguesa, a
ocasião parecia propícia aos ideais do biografado.
Ainda em 1911 Bettencourt-Rodrigues difundia a obra “A República
Portugueza: resposta ao que a difamam”. O trabalho resultava da conferência
em que havia participado no salão do Jornal do Commercio, no Rio de Janeiro,
a 10 de abril. Bettencourt-Rodrigues percecionava as diferenças políticas na
colónia portuguesa do Brasil: quezílias entre monárquicos e republicanos. O
conferencista não perdia a oportunidade e feria o público monárquico
responsabilizando-o pela falta de autonomia de Portugal, graças ao governo de
João Franco (1855-1929), entre 1907-1908 (Bettencourt-Rodrigues, 1911, p. 8).
Segundo António Maria, a colónia portuguesa no Brasil foi apanhada de
surpresa na transição para a República em Portugal (Bettencourt-Rodrigues,
1911, p. 6). O discurso denegria a olhos vistos o regime monárquico português
enquanto se esforçava por conferir à Revolução do 5 de Outubro uma conotação
escassamente revolucionária devido à confraternização entre monárquicos e
republicanos. Procurava assim legitimar o novo regime face aos
desentendimentos ocorridos no Brasil sobre a mudança política. Não deixava as
críticas à República caírem em saco roto: ripostava que as turbulências das
fações liberais no século XIX era dissemelhantes do início da vigência verde-
rubra (Bettencourt-Rodrigues, 1911, p. 11).
As políticas do Governo Provisório davam espaço à prossecução de
aproximação entre a América Latina e a Europa: a separação do Estado das
Igrejas lembrava a Bettencourt-Rodrigues o Brasil e a Colômbia como

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exemplos das reformas eclesiásticas no século XIX (Bettencourt-Rodrigues,
1911, p. 24). Por outro lado, saudava a aproximação comercial à França: «um
dos maiores triunfos do governo provisório e um dos maiores serviços prestados
pela República à nossa lavoura, ao nosso comércio e à nossa economia nacional»,
uma vez que Portugal reduzia os direitos sobre alguns artigos de luxo e a
França assegurava «o benefício do comércio directo aos produtos» de São Tomé
e Príncipe e Cabo Verde «com transbordo no Funchal», enumerando, a
exemplo, as condições do vinho nacional e do cacau das colónias portuguesas
(Bettencourt-Rodrigues, 1911, p. 33). As negociações diplomáticas entre as
duas Repúblicas Latinas Europeias, na visão do biografado, não podiam ser mais
benfazejas.
Bettencourt-Rodrigues regressaria a Portugal em 1913 (Leal, 2009, p.
236). Em março, no Centro do Partido Unionista deu uma conferência sob o
tema: “O Brasil e suas relações em Portugal” (Carvalho, 2019, p. 110).
Enunciava diferentes repúblicas: Portugal tinha uma república parlamentar e o
Brasil uma república presidencialista, esta última de particular atenção para
Bettencourt; similarmente, elogiava a República Francesa: embora parlamentar,
atribuía amplos poderes ao Presidente da República. Conforme expressava, a
retórica gasta esgotava os parlamentos e os ministros (O Estado de S. Paulo,
1913, pp. 2-3). Bettencourt-Rodrigues subalternizava a imagem da República
Portuguesa, a qual se constituía aprendiz do Brasil – a antiga colónia tornada
paradigma – e da França. Refletia na conferência a questão da emigração
portuguesa: aferia o exemplo italiano que, através do Partido Agrário de Itália,
havia aumentado os salários dos camponeses (Carvalho, 2019, pp. 110-111) e
estabelecia o paralelo entre duas realidades da Europa Latina na intenção de as
mesmas se olharem para compreenderem as suas lacunas e semelhanças.
Em abril de 1915, no decurso da ditadura de Pimenta de Castro,
Bettencourt-Rodrigues era nomeado Ministro Plenipotenciário de Portugal em

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Paris (Anuário, 1915, p. 157). O reconhecimento do presidente francês
Raymond Poincaré (1860-1934) pela intervenção de Bettencourt-Rodrigues no
intercâmbio de professores e alunos não tardava (Carvalho, 2019, pp. 113-114):
em carta a Manuel de Arriaga dizia-se congratulado pela Associação Geral dos
Estudantes de Paris (Matos, 2004, pp. 508-509). Todavia, foi exonerado no dia
4 de agosto (Anuário, 1915, p. 157), consequência do derrube do governo em
Lisboa. Voltou ao exercício das mesmas funções durante o Sidonismo; os
periódicos franceses seguiram atentamente o regresso do diplomata à
diplomacia francesa (Carvalho, 2019, pp. 117-120). A partir de então,
Bettencourt-Rodrigues empenhava-se no entendimento das relações político-
diplomáticas da nova ordem internacional no pós-Grande Guerra.

3. Perceções do Diplomata Português sobre a questão da “Harmonia


Ibérica” e o Luso-ibero-americanismo (1917-1923)
Em 1917, o El Imparcial – diário liberal dirigido por Félix Lorenzo
(1879-1933) em Madrid – levava a cabo a campanha que ficou conhecida como
“Harmonia Ibérica”, a qual “insistia na necessidade de estreitar a amizade com
Portugal, da diplomacia às relações económicas, passando pela política e a
cultura” (Matos, 2017, p. 247), não obstante os receios que se manifestavam no
ponto mais ocidental de Europa. Se o diretor do jornal em causa visitou a capital
portuguesa dois anos antes, e Afonso Costa (1871-1937) – na época, Ministro
da Justiça – admitiu-lhe “facilidades na sua investigação sobre o Portugal
republicano” (Matos, 2017, p. 248), sublinhamos, na linha de Teresa Nunes, que
Afonso Costa tinha denunciado em 1913 o Tratado de Comércio e Navegação
de 1893, o qual permitia antecipar uma aproximação económica luso-espanhola,
gorando-se as expectativas (Nunes, 2011, p. 151).
Os escritos de Félix Lorenzo a propósito da sua experiência na terra
dos lusos deslindavam que a Península Ibérica deveria preparar-se para o pós-I

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Guerra Mundial, vincando a harmonia possível entre Espanha e Portugal em
termos aduaneiros, económicos e na esteira da constituição de uma aliança
militar que fizesse dos ibéricos “(…) o centro da união latina ou do acordo
ocidental” (Matos, 2017, p. 248); todavia, a questão da “Harmonia Ibérica”
resvalava nas predileções de Afonso XIII que intentava “uma ligação
preferencial à Inglaterra” – velha aliada de Portugal – merecendo o apoio de
vultos republicanos portugueses como Afonso Costa (Nunes, 2011, 149). Nesta
esteira, em finais de Novembro de 1920, Afonso XIII, entrevistado pela Nación
de Buenos-Aires, sublinhava as suas intenções para “acelerar as comunicações
com a América do Sul”, plano que resvalava num “maduro e já velho plano de
concepção política, económica e moral, interessando a Espanha e as repúblicas
espanholas da América”, não obstante, Bettencourt-Rodrigues entender que a
ideia de Afonso XIII era firmada pela “novíssima doutrina dos americanistas,
baseada na fusão das influências históricas e factores ethnicos para
reorganização das forças productoras” (Bettencourt-Rodrigues, 1923, pp. 74-
75), vislumbrando Bettencourt-Rodrigues a ofensiva que representava “o bem
orientado trabalho” de Espanha para os lusos (Bettencourt-Rodrigues, 1923, pp.
77-78).
Bettencourt-Rodrigues envolveu-se na questão da “Harmonia Ibérica”
redigindo uma carta a Félix Lorenzo quando convidado por este a expressar a
sua opinião sobre a campanha; a missiva, datada de 9 de abril de 1917 foi
publicada no periódico madrilense a 13 do mesmo mês, com o título “Nuestra
Campaña – La armonia ibérica – opinión de un diplomático português” (El
Imparcial, 13-04-1917, p. 1). Colocava a tónica na importância de se definirem
conceitos: a seu ver, “harmonia ibérica” carecia de precisão no significado; e
“espírito territorial” merecia a atenção de Bettencourt, na medida em que se
previa a criação de “un agrupamento defensivo de los pueblos del Ocidente o de
una alianza en que figure la América española” (El Imparcial, 13-04-1917, p. 1).

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Sobre a expressão “espírito territorial” enfatizada na campanha,
Bettencourt-Rodrigues entendia-a referente ao sentimento patriótico e à ideia
de Pátria. Embrenhava-se na discussão aferindo que espanhóis e portugueses
tinham demarcado os fundamentos das suas nacionalidades “diferenciándose
hasta constituir, de uno y de otro lado de la frontera, dos patrias absolutamente
distintas e igualmente celosas de sus respectivas autonomias”. Enfatizava a
importância da autonomia de ambas as nações, a qual se “antepone a todas las
demás”; assim a campanha seria do seu agrado se se limitasse à amizade luso-
espanhola, sem intenções hegemónicas de Espanha que conduzissem à perda da
independência portuguesa. Se fosse esse o caso, Bettencourt-Rodrigues
reconhecia a oportunidade à campanha (El Imparcial, 13-04-1917, p. 1).
Salvaguardava: a melhor maneira de Espanha e Portugal costurarem a
amizade era através do intercâmbio de ideias, congressos e exposições; só assim
tornariam “un pueblo conocido del otro” com recurso às ciências, às artes, à
literatura e à indústria. O pensamento bettencourtiano sobre Espanha tecia-se,
similarmente, em torno de tratados e convénios que promovessem o ingresso
das duas potências ibéricas no mercado mundial com respeito pelos interesses
comuns: no ideário do diplomata, este deveria constituir-se o primeiro passo
para a dita “Harmonia”. Essa seria a fórmula de se desmantelarem os “equívocos
y prevenciones que tanto nos han separado”, não obstante Bettencourt-
Rodrigues sublinhar a relevância da ideia madrilense através de “sólidas bases”
que permitissem o “equilibrio político y social” luso-espanhol. Finalizava
destacando o parentesco de irmãos partilhado entre Espanha e Portugal, os
quais “nacidos de un mismo tronco”: deveriam relacionar-se fraternalmente.
A atividade de Bettencourt-Rodrigues era minuciosamente
acompanhada no exterior, mesmo nos anos em que se encontrava em Portugal.
Aos jornais espanhóis interessavam sobremaneira as opções políticas do
diplomata. Em junho de 1919, o El Sol noticiava que, à semelhança de Basílio

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Teles (1856-1923) e de Duarte Leite (1864-1950), Bettencourt-Rodrigues
havia-se afiliado no Partido Republicano Conservador (El Sol, 28-06-1919, p.
7). Este partido correspondia, segundo Ernesto Castro Leal, à continuação da
“ideia política sidonista” perfilhando uma matriz do “liberalismo republicano
autoritário”, sendo sintomática a ampliação dos direitos do Presidente da
República (Leal, 2008, pp.74-75); como vimos, o nosso biografado defendia a
República Presidencialista que aproximava Portugal do Brasil.
Sem nunca ter exercido funções diplomáticas em Espanha,
Bettencourt-Rodrigues era observado atentamente pela imprensa espanhola,
especialmente no período da sua nomeação como Ministro Plenipotenciário de
Portugal em Paris (La Época, 21-12-1917, p. 3). Em fevereiro de 1922 o Diário
de Notícias publicava uma entrevista com o nosso biografado: “O Brasil,
Mercado Português” (DN, 05-02-1922, p.1); Bettencourt-Rodrigues entendia
que Portugal deveria participar na Exposição do Centenário da Independência
do Brasil, no Rio de Janeiro. Recebeu os jornalistas do DN em casa, expondo
que a ocasião devia “ser inteligentemente aproveitada pelo comércio e pela
indústria portuguesa para afirmar no Brasil o valor dos produtos nacionais”; o
periódico afirmava a autoridade do Autor nos conhecimentos sobre o Brasil.
Bettencourt-Rodrigues recordava os seus múltiplos contributos na imprensa
brasileira e portuguesa sobre o incremento das relações luso-brasileiras,
almejando reuni-los num volume:

“Essa minha opinião pode-se resumir da seguinte maneira:


‘União de Portugal com o Brasil. Concomitantemente um
entendimento entre o Brasil e as nações espanholas da Sul-
America, como o formula um eminente argentino Manuel
Ugarte, no seu livro ‘El porvenir de la America Española’ – e que
já teve um início entre a Argentina, o Brasil e o Chile,

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constituindo o A B C da diplomacia sul-americana. Idêntico
entendimento entre os portugueses e os espanhóis.
[…]
- Serem Portugal e Espanha, no extremo ocidente europeu, para
todos os efeitos de política diplomática, comercial e económica,
como de um prolongamento da América Latina. E assim se
constituiria com excelentes bases estratégicas e numerosos
pactos de apoio em todos os continentes e latitudes, um novo e
grande bloco luso-ibero-americano” (DN, 05-02-1922, p. 1).

Desta feita, no início da década de 1920, o entrevistado explicava as


suas ideias sobre Espanha: a idealização de agrupamentos de nações – através
dos pan-movements – estava em voga; estreitar as relações da Península Ibérica
com a América Latina significava, na lógica de Bettencourt-Rodrigues, colocar
Portugal na dianteira da Ibéria e não a Espanha, tal qual o conceito proferido –
Luso-ibero-americano – acautelava.
Na obra publicada em 1923, “Uma Confederação Luso-brasileira:
factos, opiniões e alvitres”, a mesma orientação prevalecia; o bloco luso-hispano-
americano dever-se-ia constituir depois de formulada uma Confederação entre
a “grande república sul americana” (DN, 05-02-1922, p.1) e o país dos lusos;
diplomacia económico-comercial almejada pelo diplomata através do conceito
oitocentista Luso-brasileirismo, transformado em movimento político-cultural
nos anos posteriores à Grande Guerra: o Luso-brasileirismo, que contrariava “a
prioridade da aliança com a Espanha” (Matos, 2017, p. 290) e do qual
Bettencourt-Rodrigues era o inequívoco impulsionador (Bettencourt-
Rodrigues, 1923).
Sublinhe-se, o uso do conceito Luso-ibero-americano na diplomacia
bettencourtiana constituía-se uma advertência do diplomata. O conceito Ibero-

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americano surgiu nos dicionários portugueses em 1899 e em Espanha apenas
em 1956, prevalecendo, neste último caso, o conceito Hispano-americanismo –
que destacava a Espanha – (Matos, 2017, pp. 272-273); Bettencourt-Rodrigues
preferia empregar o conceito Luso-hispano-americano (Bettencourt-Rodrigues,
1923, p. 219).

4. Bettencourt-Rodrigues e a Sociedade das Nações: o comércio do Ópio


e outros Estupefacientes (1926-1927)
A 12 de julho de 1926, convidado por Óscar Carmona (1869-1951),
Bettencourt-Rodrigues tornou-se Ministro dos Negócios Estrangeiros de
Portugal. Deu a conhecer a sua conduta no exercício do cargo na obra publicada
findo o mandato ministerial (Bettencourt-Rodrigues, 1929). Mal chegado ao
MNE, criou a Secretaria Portuguesa da Sociedade das Nações (SDN), para
colmatar lacuna que originava dilemas na diplomacia lusa em Genebra, valendo-
lhe o crédito de Albert Thomas (1878-1932) – Diretor da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) – que criticava a falta de regularidade da
representação portuguesa. A conduta bettencourtiana na SDN revelar-se-ia
similarmente importante – naquilo que dizia respeito ao comércio do ópio e
outros estupefacientes.
As atas da 45.ª Sessão do Conselho da SDN, de 13 a 17 de junho de
1927, divulgavam a carta de Eric Drummond (1876-1951) – Secretário-Geral
da SDN – aos Estados-Membros sobre o tráfico ilícito de estupefacientes e
contrabando. Considerava-se importante a atuação dos Estados na análise dos
registos de vendas e compras das substâncias, quem os fabricava, importava e
comercializava para fins não medicinais. Drummond solicitava as medidas
aplicadas pelos governos para comunicar à Comissão Consultiva do Tráfico de
Ópio. Bettencourt-Rodrigues, Ministro dos Negócios Estrangeiros da época,
respondia em 29 de abril de 1927: por decreto-lei nº 12210 de 21 de agosto de

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1926 – um mês depois de tomar conta na pasta do MNE –, o governo português
aplicava as medidas necessárias sobre “le trafic illicite de l’opium et autres
drogues misibles” (SDN, 1927, p. 991). Bettencourt-Rodrigues assegurava que
o governo acompanhava com “grand intérêt la lutte contre le trafic illicite des
stupéfiants”, solicitando a Eric Drummond que fizesse chegar à Comissão
Consultiva do Tráfico de Ópio a cópia enviada com as resoluções decretadas.
Completavam o decreto-lei nº 1687 de 6 de agosto de 1923 sobre a importação
e comércio de estupefacientes. O decreto português foi publicado na íntegra no
“Société des Nations – Jounal Officiel”, acompanhado da carta de Bettencourt-
Rodrigues: sublinhava-se a pertinência da adoção da Convenção do Ópio
assinada em Genebra, pelos representantes portugueses, a 19 de fevereiro de
1925. O Governo português decretava a utilização do ópio e afins para os
domínios médico e científico, não podendo ser as substâncias reexportadas;
instruía-se o envio trimestral de informações dos hospitais, farmácias e
estabelecimentos do Estado sobre as entradas e saídas de estupefacientes; a
Direção Geral de Higiene responsabilizava-se pela autorização das exportações
dos produtos produzidos com as referidas substâncias (SDN, 1927, p. 991).
O decreto sobre o tráfico de ópio constituía-se, antes da criação da
Secretaria da SDN no MNE, o primeiro passo bettencourtiano para estreitar o
relacionamento de Portugal com a Organização nascida no pós-I Guerra
Mundial – assemelhando-se dessa forma a outros Estados Europeus latinos,
como a Roménia, Itália e a Bélgica, que publicavam as suas decisões no mesmo
número do jornal da SDN; assim como Cuba, República da América Espanhola
(SDN, 1927, pp. 985-994). O diplomata inseria a resposta portuguesa num
quadro familiar, de olhos postos nos afazeres dos países latinos: deveriam
encontrar as suas semelhanças na política e na diplomacia.

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5. Os últimos anos da diplomacia bettencourtiana: a Comissão de Estudos
Luso-Hispano-Americanos (1926-1929)
Em maio de 1926 era criada a “Comissão de Estudos entre Portugal e
os Países da América do Sul” no MNE; o seu objetivo seria o estudo das questões
suscitadas entre os Estados, com especial apreço pelo Brasil. Faltavam menos
de dois meses para a tomada de posse de Bettencourt-Rodrigues no MNE; o
diplomata, entusiasta do aprofundamento das relações luso-americanas
constituía-se membro da Comissão que pretendia estudar o “regime de
propriedade intelectual”, “a unificação da ortografia nas duas nações de língua
portuguesa”, o “intercâmbio intelectual entre Portugal e as nações ibero-
americanas” de maneira a que as diferentes “Academias, Universidades, Escolas
de Arte, Sociedades, e outros organismos” com fins “literários e artísticos”
contactassem dos dois lados do Atlântico assiduamente. Com efeito, importava
a colaboração dos intelectuais destas nações na Exposição Ibero-Americana de
Sevilha em 1929. Similarmente, destacava-se a relevância da “vulgarização do
livro português nas nações da América Latina” e vice-versa, particularizando-
se o Brasil (IDI/MNE: S12.1/E28/P3/76683).
A 25 de junho iniciavam-se as sessões da comissão: aferia-se a
importância da criação de subcomissões para o tratamento de assuntos
económicos, comerciais e políticos entre Portugal e a América Latina, além da
questão da emigração portuguesa no Brasil especialmente atenta à “assistência
e proteção dos emigrantes”. No dia 30 renovava-se a ideia de organizar um
Congresso Luso-brasileiro de escritores para promover a equivalência dos
cursos de Ensino Secundário entre as duas Repúblicas. Destacava-se: “O
pensamento a que obedeceu a criação da Comissão foi eminentemente político”,
cumprindo-se a aprovação das subcomissões cultural, económica e político-
diplomática. As sessões seguintes diziam respeito aos Congressos Médicos
ibero-americanos e luso-brasileiros, a convenção para o intercâmbio de obras

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“entre as Bibliotecas Nacionais de Lisboa e do Rio de Janeiro”, a representação
portuguesa em Roma no Congresso de Americanistas e o Instituto Cristóvão
Colombo de Itália, a criação na Faculdade de Letras de uma cadeira de Língua
e de Literatura Espanhola e Sul-Americana, a visita de alunos brasileiros a
Lisboa, a representação nacional no Congresso Americanista de Londres, não
obstante a ideia de criar uma relação entre a Comissão de Estudos Luso-
Hispano-Americanos e a SDN (IDI/MNE: S12.1/E28/P3/76683).
Na esteira do incremento das relações intelectuais entre países Latinos,
não interessavam apenas as nações Sul-americanas. Em resposta ao ofício de
Alberto D’Oliveira (1873-1940), datado de 16 de setembro de 1927, o ministro
Bettencourt-Rodrigues tecia a suas considerações sobre a proposta daquele e do
ministro da Bélgica em Portugal: um convénio intelectual luso-belga, tal como
a Polónia havia concebido (IDI/MNE: S12.1/E28/P3/76683). Todavia,
Bettencourt-Rodrigues acreditava que os laços entre Portugal e a Bélgica eram
sólidos o suficiente, devido aos acordos comerciais, aos tratados e convénios que
uniam os Estados. Era a França, uma vez mais, a preferida do nosso biografado:
em relação à Bélgica, era com a França que se deviam primeiro estabelecer
“entendimentos universitários” e “aproximações de ordem intelectual”.
Bettencourt-Rodrigues realçava o “forte poder de atração que sempre sobre nós
exerceram os meios intellectuais francezes”, frisando a criação alcançada de um
curso de Língua e Literatura Portuguesa na Faculdade de Letras de Paris e na
Universidade de Berna e o “intercâmbio” de professores franceses e das Escolas
Superiores Portuguesas, almejando um progressivo estreitamento destas
relações. Bettencourt-Rodrigues tinha presente os encargos que tais
aproximações representavam para o Estado, não sendo possível a seu ver, na
época da ditadura militar, entabularem-se acordos definitivos com a Bélgica e a
França, simultaneamente; o biografado escolhia a última, considerando a

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urgência no entendimento luso-francês, não obstante, quiçá, a proposta do
governo belga, viabilizar-se mais tarde (IDI/MNE: S12.1/E28/P3/76683).
A 8 de fevereiro de 1928, Bettencourt-Rodrigues, na qualidade de
Ministro dos Negócios Estrangeiros, presidiu à sessão cuja análise incidia no
tema da representação do país na Exposição Ibero-Americana de Sevilha a
decorrer a breve trecho. Contava com a presença do Ministro do Comércio
Alfredo Machado e Costa e do Comissário Geral da Exposição de Sevilha, o
Coronel Silveira e Castro (Ilustração, 16-10-1929, pp. 11-12) e tinha em vista
elencar os artefactos históricos a expor, a colaboração portuguesa no Livro de
Ouro da Exposição Sevilhana e a “intenção” de criar uma cadeira de estudos
hispano-americanos na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. A 16
constituíam-se as subcomissões de Política Económica, Ciências, Etnografia e
Turismo, Letras, História e Artes (IDI/MNE: S12.1/E28/P3/76683).
A 20 de março de 1928, a comissão findava. Enquanto Ministro dos
Negócios Estrangeiros – a exoneração chegava a 9 de novembro de 1928 –
Bettencourt-Rodrigues privilegiou a aproximação luso-ibero-americana,
intenção acalentada desde o início de funções: a 14 de julho de 1926 nomeava
Vasco Borges (1882-1942) Vice-Presidente da Comissão e Jorge Colaço (1868-
1942), seu membro; a 19 do mesmo mês substituía o vogal da Comissão de
Estudos por Francisco da Rocha Martins (1879-1952). Uma panóplia de
documentação respeitante às Repúblicas da América Latina encontra-se no
respetivo processo à guarda do MNE: as respostas que as legações enviaram ao
Ministério quando inquiridas sobre os nomes dos seus ilustres intelectuais e das
suas Instituições Científicas e Literárias, revelavam-se também um sucesso
diplomático para Bettencourt-Rodrigues (IDI/MNE: S12.1/E28/P3/76683).

6. Conclusão

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António de Bettencourt-Rodrigues faleceu no Estoril, em outubro de
1933, nas vésperas do aniversário da implantação da República. Impossibilitado
de prosseguir as suas orientações, colocou o cargo disponível e continuou a
redigir obras e artigos para periódicos internacionais. O cargo ocupado no
decurso da ditadura militar a partir de julho de 1926 custou-lhe pesadas críticas:
o jornal O Reviralho, porta-voz republicano contra a ditadura, apelidou-o de
“mentecapto Bêtte-en-Court” e asseverou a lástima da posição do país a nível
internacional (O Reviralho, [s. d.], p. 2). O antigo Ministro anunciou o cansaço
e custos pessoais do exercício no MNE em carta redigida a Batalha Reis (1847-
1935), com quem mantinha correspondência (Carvalho, 2019, p. 137). Acabou
por apresentar demissão da pasta em 1928 (El Sol, 17-08-1927, p. 5).
Aspirando a uma Confederação Luso-brasileira que integraria as
antigas colónias portuguesas, sendo o alicerce para o incremento das relações
diplomáticas das nações latinas, Bettencourt-Rodrigues vislumbrava a união
dos Estados Latinos com vista à criação de meios de produção e exportação que
lhes assegurassem a continuidade deixando de ter “(…) o simples papel de
satélites” (Bettencourt-Rodrigues, 1923, p. 12) e atuando conjuntamente na
SDN. Todavia, Bettencourt-Rodrigues respondia também à questão da
“Harmonia Ibérica” (Matos, 2017, p. 292) com a sua obra: “(…) uma união
política, como sem rebuços a pretendia a Espanha, eu só a considerava, não só
possível, mas desejável, com uma outra nação, mas de língua portugueza, o
Brasil” (Bettencourt-Rodrigues, 1923, p. 9).
Simpatizante do pan-latinismo francês, promoveu as relações entre a
Europa Latina Republicana e o Brasil; em 1910, concebia idêntica perspetiva
com o Portugal Republicano e, no pós-guerra, revelava-se empenhado em
contribuir para o entendimento sobre o papel de Portugal no mundo dividido
em blocos internacionais, na linha do Darwinismo Social. O percurso de
Bettencourt-Rodrigues constitui-se singular na diplomacia portuguesa;

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intermediário entre diferentes Estados, a criação da Comissão de Estudos Luso-
Hispano-Americanos no MNE revelava-se um dos contributos da diplomacia
Luso-ibero-americana da qual Bettencourt-Rodrigues era entusiasta: a
Comissão compreendia a lógica diplomática publicada no DN em 1922,
extravasando “o A B C da diplomacia sul-americana” ao estender-se a toda a
América Latina e à Península Ibérica.

Fontes e Bibliografia

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Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 105


As Políticas do Imperialismo Nipónico sob o olhar de
César de Sousa Mendes e Antero Carreiro de Freitas,
diplomatas portugueses no Japão
Ana Fernandes Pinto

Resumo: Partindo das informações enviadas pelos Encarregado de Negócio


César de Sousa Mendes e Antero Carreiro de Freitas para o Ministério dos
Negócios Estrangeiros, documentação na sua maioria inédita, apresenta-se os
conceitos e os ideais com que o Japão foi justificando a sua política imperialista
na Ásia entre 1914 e 1940, ao mesmo tempo que se descreve a imagem
construída por aqueles dois diplomatas.

No presente artigo analisa-se as políticas do imperialismo japonês a


partir da correspondência e relatórios enviados para o Ministério dos Negócios
Estrangeiros por César de Sousa Mendes e Antero Carreiro de Freitas. Estes
diplomatas desempenharam o cargo de Encarregado de Negócios da Legação
de Portugal no Japão em diferentes períodos da afirmação nipónica enquanto
potência no cenário da política internacional do século XX. Sousa Mendes
ocupou o cargo entre 1914 e 1918; Carreiro de Freitas desempenhou funções
em Tóquio por duas vezes; primeiro entre 1926 e finais de 1931 e, mais tarde,
entre 1937 e 1940. Foi neste segundo momento que esteve encarregado da
Legação, na sequência da licença atribuída ao Ministro Plenipotenciário, Tomás
Ribeiro de Melo. Trata-se de uma primeira abordagem desta documentação, na
sua maioria inédita, cuja consulta decorreu no âmbito de um projeto do Instituto
Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, centrado na publicação
de uma coletânea documental do acervo do Arquivo Histórico-Diplomático
elucidativa das relações entre Portugal e o Japão, após a assinatura do Tratado
de Paz, Amizade e Comércio (1860).


CHAM, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, FCSH, Universidade NOVA de
Lisboa

106
Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021
Apesar do desfasamento temporal no exercício de funções, César de
Sousa Mendes e Antero Carreiro de Freitas partilham várias circunstâncias
enquanto Encarregado de Negócio no Japão1. A primeira, e motivo que
despertou o interesse particular por estes dois diplomatas, é o facto de ambos
assumirem a função por um período mais alargado, para lá do momento de
transição entre a partida de um Ministro e a chegada do seu sucessor, sendo
que, aspeto não menor, esses períodos coincidiram com momentos
particularmente sensíveis da política internacional: Sousa Mendes esteve em
missão durante a Primeira Grande Guerra, enquanto Carreiro de Freitas, no
seu segundo momento em funções no Japão, assistiu à marcha da segunda
guerra sino-nipónica (1937) e ao adensar de uma conjuntura internacional
caracterizada por uma enorme tensão, prelúdio da Guerra do Pacífico (1941-
1945). Além disso, desde o estabelecimento da Legação em 1903 que Portugal
se fazia representar pela presença de um Ministro Plenipotenciário, regra geral
residente2. A transferência da sua administração para um Encarregado de
Negócios era por isso uma medida de exceção. Aliás, durante a sua primeira
estadia no Japão, Antero Carreiro de Freitas coincidiu com o Ministro
Plenipotenciário José Costa Carneiro (1925-1929). É de salientar que o Japão
não era apenas um território geograficamente longínquo. A comunicação com
Lisboa pautava-se pela irregularidade e por uma lentidão que parecia
acompanhar a distância, aumentando a responsabilidade dos representantes
diplomáticos. Além disso, sempre foi uma missão que contou com um número
exíguo de funcionários, tornando as exigências da função extenuantes. Assim o
exprimia Antero Carreiro de Freitas, em 1938, com eloquência: “O Chefe desta

1
Informações retiradas do Processo Individual de César de Sousa Mendes e Antero
Carreiro de Freitas, Arquivo Histórico Diplomático – Ministério dos Negócios Estrangeiros
(AHD-MNE).
2
Fernão Botto Machado foi uma exceção. Desembarca no Japão em 1919, em 1921
abandona o posto por motivos de saúde, e nunca chega a regressar nem é substituído até à data
da sua morte, em 1924. AHD-MNE, Processo Individual Fernão Botto Machado. 107

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021


Legação é, com efeito, além de Chefe, secretário, arquivista, datilógrafo, cifrador
e decifrador dos telegramas que ultimamente tem atingido número bastante
importante e finalmente e indispensavelmente homem de sociedade”3. Um outro
aspeto que une Sousa Mendes e Carreiro de Freitas é o facto de ambos terem
chegado ao Japão no início da sua carreira. Sousa Mendes, apesar de Primeiro
Secretário aquando da nomeação, apenas tinha sido admitido no Corpo
Diplomático dois anos antes, em 1912. Carreiro de Freitas, chegava a Tóquio
na qualidade de Terceiro Secretário. Também os dois desenvolveram um
percurso consistente na carreira diplomática. O primeiro veio a ocupar o cargo
de Ministro de Negócios Estrangeiros (1932-1933), o segundo chegaria a Chefe
de Protocolo; os dois ascenderam à categoria Ministro Plenipotenciário de
Segunda Classe. E, do mesmo modo, o empenho e o mérito de ambos no
cumprimento das funções no Japão foi reconhecido de imediato pelo Ministério.
Enquanto César de Sousa Mendes recebeu um louvor “pelo zelo e inteligência”
com que desempenhou as suas funções em Tóquio, registado por portaria de 18
de março de 1919; Antero Carreiro de Freitas foi promovido durante a sua
estadia no arquipélago de Terceiro a Segundo Secretário, e elevado a Primeiro
Secretário.
Em 1914, recém-chegado ao Japão, Sousa Mendes, tecia a seguinte
consideração sobre a evolução do Japão, depois que fora forçado ao
relacionamento com as potências ocidentais, em 1854: “O lugar que o Japão tem
conquistado entre as nações civilizadas é, sob todos os aspetos, digno do maior
interesse. Houve tempo em que o povo japonês se dedicava com verdadeiro
afinco ao estudo e assimilação dos progressos da civilização ocidental e, se esse
trabalho continua ainda hoje, certo é que já a ele se deve o espantoso
desenvolvimento que, em todos os campos da atividade humana, este país nos
patenteia e que o impõe à admiração e ao respeito de todos os povos. O Japão de

3
AHD-MNE, Processo Individual. Tóquio, 2.07.1938.

108
Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021
hoje não é já o noviço daquela civilização: do discípulo aplicado e inteligente
vai-se formando gradualmente o mestre autorizado, cujas lições podem já hoje
ser com vantagem aproveitadas”4. Cerca de três décadas volvidas, Antero
Carreiro de Freitas, num relatório que redigia da Europa, já depois da sua
partida do Japão resumia: “O Japão, assume nesse curto período de cinquenta
anos o papel de uma das mais agressivas, entre as Nações imperialistas do
mundo (….) Forçado a abandonar esse isolamento medieval em 1854 pelos
navios do Almirante Perry, depressa, porém, se familiarizou com o progresso
técnico das nações europeias, e, infelizmente para ele, com as ideias imperialistas
que são apanágio de algumas das grandes potências com quem entrou em
contacto”5.
Os registos citados de Sousa Mendes e de Carreia de Freitas, de 1914
e 1940, balizam o período da evolução imperialista do Japão. As informações e
os relatórios que redigiram durante o exercício de funções são por isso um
importante instrumento para avaliar os ideais e conceitos que conduziram ao
imperialismo nipónico, ao mesmo tempo que nos transmitem a avaliação
ocidental das vicissitudes nipónicas. Sousa Mendes e Carreiro de Freitas foram
homens do seu tempo.
Em 1914 o Japão apresentava-se, sem dúvida, como uma potência
económica, modernizada, equiparável às potências ocidentais. Mas não só. A
preocupação do Japão com a defesa nacional e em garantir a liberdade de ação
fora da esfera de qualquer intervenção estrangeira tinham servido de estímulo
à militarização. Além disso, o Japão percecionara a importância em prosseguir
uma política imperialista para a sua aceitação internacional enquanto nação. Em
1894 iniciara o conflito com a China pela hegemonia na Coreia (1894-1895); dez

4
AHD-MNE, Processo individual.
5
AHD-MNE, Antero Carreiro de Freitas, Relatório Formas de Imperialismo
Japonês, 1943.
109

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021


anos mais tarde, em 1904-1905, defrontara a Rússia na luta pelo controlo de
territórios do Norte da China, da Manchúria e da Coreia. No final, o Japão não
só ganhara capacidade e estatuto para intervir na geopolítica da Ásia Oriental,
como se impusera como uma nação imperialista: adquirira o controlo sobre
Taiwan e a Península de Liaodong na China, era-lhe reconhecida a posse das
ilhas Ryūkyū (1894-1895), bem como a influência sobre a Manchúria e a Coreia
(1904-1905), sendo esta última anexada formalmente em 1910. A bem-sucedida
política expansionista do Japão entusiasmara as fações da política nipónica
defensoras do militarismo, que ora defendiam a continuação da expansão
territorial no continente, ora consideravam ser vocação do Japão estender a sua
supremacia ao Pacífico. A Primeira Grande Guerra (1914-1918) viria a servir
estes interesses: o Japão obteria o reconhecimento na província de Shandong,
na Manchúria e na Mongólia (1915), e, no final do conflito, anexaria os
territórios alemães do Pacífico (Micronésia). Além disso, a emergência do
regime bolchevique na Rússia auxiliou a legitimação da intervenção nipónica na
Sibéria, concretizada na ocupação da ilha de Sakhalin.
De acordo com a historiografia, o ano de 1914 representa o início de
uma viragem na história do Japão. O Japão construíra-se como uma potência,
gozava de estabilidade política e de crescimento económico, ambos sustentados
pelo desenvolvimento industrial, tudo garantido pelo acesso aos recursos
abonados pelas suas possessões coloniais. Mas, o início da guerra na Europa, ao
condicionar os esforços das potências europeias, iria abrir porta a incertezas na
geopolítica da Ásia. É precisamente a imagem de incerteza que resulta da leitura
dos ofícios redigidos por Sousa Mendes. Da escrita deste diplomata sobressai a
imagem de um Japão inquieto, quer na procura de se expandir territorialmente
na Ásia, quer na preocupação sistemática em justificar essas aspirações. Entre
1914 e 1918, Sousa Mendes dá conta de um Japão que afirma agir à luz dos
princípios fundamentais e dos limites reconhecidos pelas potências estrangeiras

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 110


na ordem internacional para justificar a sua expansão militar na China6.
Argumentava o governo nipónico com a questão da integridade territorial da
China (posta em causa com a revolução chinesa de 1911), da igualdade de
oportunidades e da política de Porta Aberta na China, bem como com a
necessidade de equilíbrio político na região num momento particularmente
sensível da ordem mundial. Além disso, o Japão clamava ser a única potência
com capacidade de garantir o ressurgimento dos povos asiáticos, sob o
argumento de ser a única bem-sucedida a conjugar em harmonia as duas
civilizações, a do Ocidente e a do Oriente. Aliás, era dentro daquela lógica
argumentativa, de o Japão ser o único capaz de auxiliar na implementação da
modernidade através de reformas políticas e de desenvolvimento económico,
que formulava as suas pretensões face a uma China em desintegração7. Por isso,
esgrimia o Japão, o seu protagonismo, mais do que prosseguir interesses, era
fruto de um ideário, de serviço à humanidade, e nesse sentido, também, um
dever8. Neste discorrer da argumentação nipónica, Sousa Mendes faz eco de
sentimentos ambivalentes; transparece alguma apreensão face à afirmação
nipónica no contexto internacional, mas reconhece no Japão uma nação que
ganhara estatuto de potência e que prosseguia, determinada, na pretensão de
liderar a libertação do Extremo Oriente da influência europeia9.
César de Sousa Mendes também pensa e reporta sobre a conciliação da
modernidade ocidental no quadro da organização política nipónica. A
elaboração de uma Constituição começara a ser reclamada no Japão a partir de
1870, entendida como um instrumento que consagraria um novo sistema
político, distinto do regime Tokugawa (1603-1868) e do sistema quási-

6
AHD-MNE, Cx. 299, ofício 22 A, Yokohama, 20 de outubro de 1916; ofício 3A,
Yokohama, 10 de fevereiro de 1917.
7
AHD-MNE, Cx. 299, ofício 3A, Yokohama, 10 de fevereiro de 1917.
8
AHD-MNE, Cx. 299, ofício 11 A de 30 de março de 1915.
9
AHD-MNE, Cx. 299, Ofício 28 A, Tóquio, 4 de dezembro de 1917.
111

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oligárquico que se instalara após a Restauração Meiji (1868), que garantiria
liberdades e direitos da população, e serviria de documento mobilizador para a
construção de uma nação próspera. Promulgada em 1889, a Constituição,
inspirada nos modelos ocidentais, abria caminho a uma total novidade na vida
política e social do Japão. Sousa Mendes analisa este documento, mas é crítico,
e até cético, quanto à dimensão progressista dos novos órgãos representativos.
De facto, o diplomata acentua a fricção suscitada pela colagem de valores
ocidentais às tradições nipónicas. Na sua opinião, a Constituição “não passa de
um documento em que, sob a aparência de instituições representativas, se
encontram consignados os princípios tradicionais da política japonesa”10, uma
dualidade entre um Japão moderno versus um Japão velho que, defende,
repercute-se em todos os órgãos definidos na Constituição e consagra-se antes
de mais na figura do Imperador11. Definido como Chefe do Estado, eram
atribuídos ao Imperador os poderes legislativo e executivo, numa extensão de
prerrogativas que apontavam para poderes quase ilimitados. Na prática, porém,
todos estes poderes eram transferidos para ministros, prevalecendo o princípio
arcaico de delegação de poderes, que remontava aos tempos imemoriais da
história do Japão. Para melhor explicar esta difícil conjugação entre funções
definidas no quadro institucional e uma tradição que não se coadunava, Sousa
Mendes recorre aos Comentários à Constituição feitos pelo Conde Hirobuni Ito,
então Primeiro-Ministro12: “O facto de se incluírem nos artigos da Constituição
disposições expressas referentes ao poder soberano não significa de forma
alguma que, pela Constituição, tenha sido adotado qualquer opinião nova a tal
respeito; pelo contrário, a antiga política nacional não é por ela alterada de

10
César de Sousa Mendes, Política Japonesa. Imperialismo e Democracia, Coimbra,
Coimbra Editora, s/d, p.39
11
AHD-MNE, Cx. 299, Ofício 2 A, Tóquio, 30 de janeiro 1915.
12
Commentaries on the Constitution of Japan by Count Hirobumi Ito, traduzida por
Ito, Miyoji, Tokyo, 1889.
112

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qualquer forma mas confirmada mais fortemente que nunca”13. Não se trata de
uma mera nota explicativa. Por esta via César Sousa Mendes fazia eco não só
dos limites nipónicos na assimilação da modernidade ocidental, como sinalizava
o forte sentido identitário nipónico que viria a ser uma das marcas do seu
imperialismo. No exame dos restantes órgãos de soberania, Sousa Mendes
continua a demonstrar o esforço do Japão em conjugar modernidade e tradição.
A Dieta Imperial era constituída por duas Câmaras, a dos Pares e a dos
Deputados, cujas funções o Encarregado de Negócios detalha, sendo a primeira
um órgão de nomeação hereditário e por isso solidário com uma política
tradicional, enquanto a segunda um órgão subalterno totalmente dependente
da Câmara dos Pares e dos Ministros14. De nenhuma forma, assim, a Dieta
nipónica poderia ser entendida como o órgão soberano do regime
constitucional. Por sua vez, o estabelecimento do regime eleitoral nipónico, cuja
formulação era sinal de progresso, não era acompanhado pela educação política
do povo japonês, não abrindo assim caminho à necessária maturação e afirmação
dos partidos políticos15. Aliás, segundo Sousa Mendes, apesar da existência de
partidos, que se dividiam entre democratas e tradicionalistas de tendência
militarista, na prática a vida política do Japão mantinha-se sob a égide dos clãs
tradicionais, uma oligarquia, que replicava o xogunato (o governo militar que
controlara os destinos do Japão entre 1603 e 1868), dada a sua forte
representação na Câmara dos Pares. Fazendo uso das palavras de Sousa
Mendes, “bem se pode dizer que o moderno Japão é politicamente ainda o velho
Japão, tendo substituído apenas o antigo kimono nacional pela sobrecasaca
europeia”16. O estudo e a análise das instituições nipónicas por Sousa Mendes,

13
AHD-MNE, Cx. 299, Ofício 2 A, Tóquio, 30 de janeiro 1915.
14
AHD-MNE, Cx. 299, Ofício nº 25A, Tóquio, 15 de junho de 1915; Ofício 35A,
Tóquio, 25 de agosto de 1915.
15
AHD-MNE, Cx. 299, Ofício 8A, Tóquio, 24 de fevereiro 1915.
16
AHD-MNE, Cx. 299, Ofício 22A, Yokohama, 20 de outubro de 1916.
113

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enviado para Lisboa sob a forma de vários relatórios, encerram uma análise tão
perspicaz, profunda e detalhada, que ele próprio, Sousa Mendes, posteriormente
pede e obtém autorização17 para os publicar sob a forma de monografia18.
Quando Carreiro de Freitas assumiu a função de Encarregado de
Negócios, já contava com uma década de experiência diplomática continuada na
Ásia. Fora nomeado para a Legação de Tóquio em 1926, depois transferido para
a de Pequim em 1931, para tornar à do Japão em 1936. A sua experiência reflete-
se no à-vontade das considerações que vai tecendo, por vezes muito pouco
diplomáticas, por vezes com alguns laivos de sentido de superioridade face aos
nipónicos. No período agora em análise Carreiro de Freitas assiste à escalada
da supremacia do Japão, que antecipa a Segunda Guerra Mundial. A luta contra
a expansão do comunismo na Ásia serviria também de argumento para o Japão
ocupar a Manchúria e aí estabelecer o estado de Manchukuo, em 1931. O mesmo
pretexto justificaria os incidentes com a China a partir de 1937, quando ocupou
o Norte e tomou Nanking. As pretensões imperialistas tornar-se-iam
inequívocas a partir de 1939, com o avanço no Pacífico, pela ocupação de
territórios anteriormente sob alçada das potências colonialistas europeias. Todo
este processo Carreiro de Freitas condena, desdenha, mas também subestima.
A frequência das informações enviadas por Carreiro de Freitas, por
vezes num registo semanal, é sem dúvida reveladora do pulsar da política
nipónica no contexto internacional. A sua escrita circunstanciada remete para
um diplomata atento. Carreiro de Freitas é um acérrimo crítico do Japão. É
certo que começa por validar o início da ofensiva nipónica na China, em julho
1937, por considerar que, à data, o Japão era a única potência na Ásia capaz de

17
AHD-MNE, Cx. 299, Ofício 4D, Tóquio, 21 de agosto de 1917.
18
César de Sousa Mendes, Política Japonesa. Imperialismo e Democracia, Coimbra,
Coimbra Editora, s/d.

114

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barrar a infiltração do comunismo no continente19, mas a sua escrita assumirá
o tom crítico a partir do massacre de Nanking (dezembro de 1937), e persistirá
com o prosseguir da guerra Sino-Nipónica, onde os japoneses defrontavam as
pretensões de Chiang Kai-shek, e a extensão da ofensiva do Japão no Pacífico a
partir de 1939. Nesta análise persiste a sinalização das debilidades do governo
nipónico durante o processo expansionista. No entender de Carreiro de Freitas
se por um lado o Japão ansiava pela paz, de que tinha “absoluta necessidade”20,
por outro prevalecia uma incapacidade nacional para se estabelecer um plano de
política externa para almejá-la21. As hesitações abriam espaço às ambições
militaristas de alguns generais e sociedades patrióticas chauvinistas22, que
encaravam a extensão da ofensiva na China como um caminho possível. Tinha
sido assim no ano de 1937, à data da invasão de Nanking23; como tinha sido
assim no ano de 1938, aquando da entrada das tropas japonesas em Cantão, ato
que colidia com os interesses das potências ocidentais e, por isso, encerrava uma
escalada na ofensiva na China e no contexto internacional24. A partir de 1939, a
pretensão do Japão em avançar sobre o Pacífico (num primeiro passo
concretizada com a ocupação da Indonésia Francesa em 1940) em nada alteraria
a leitura de Carreiro de Freitas de uma nação politicamente imatura. Em 1939
afirmava: “O Governo sabe até onde pode ir; o exército não o sabe; não sabe mas

19
AHD-MNE, Ofício de Antero Carreiro de Freitas, Tóquio, 22 outubro 1937.
S11.1.E15.P1 69930.
20
AHD-MNE, Ofício de Antero Carreiro de Freitas, Tóquio, 08 outubro de 1938.
S11.1.E15.P1 69930.
21
Veja-se, a título exemplificativo, os ofícios de Antero Carreiro de Freitas de Tóquio
a 8 dezembro de 1937 e de 22 maio de1938. S11.1.E15.P1 69930.
22
Sobre a ação destas sociedades patrióticas veja-se, por exemplo, ofício de Antero
Carreiro de Freitas de Tóquio, 10 de novembro de 1937. S11.1.E15.P1 69930.
23
AHD-MNE, Ofício de Antero Carreiro de Freitas, Tóquio, 20 de outubro de 1937.
115
S11.1.E15.P1 69930.
24
AHD-MNE, Ofício de Antero Carreiro de Freitas, Tóquio, 26 de outubro de 1938 e
27 de outubro 1938. S11.1.E15.P1 69930.

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não quer saber e se uma ordem do Governo central lhe limita a acção e as
ambições é muito simples: desobedece e leva avante o seu ponto de vista”25.
Um misto de espanto e sarcasmo compõe o quadro de análise de
Carreiro de Freitas, que vai enunciando e formulando os conceitos que tinham
passado a guiar o governo japonês26: a ideia de nova ordem assente no princípio
de que a Ásia pertencia aos Orientais e de que o Japão era a nação mais capaz
para a liderança do bloco político, económico e cultural formado pela China, a
Manchúria e o próprio arquipélago nipónico; o direito do Japão a estender o
espaço vital para colmatar as carências económicas; e por último a ideia de
coprosperidade que se traduzia no controle do desenvolvimento económico de
toda a região por si, com partilha de lucros por todos os envolvidos27. Todas as
reivindicações eram legitimadas pelo facto de os nipónicos serem os únicos na
região a dispor da “mestria técnica” e da mão de obra qualificada capaz de
explorar as riquezas que permitiam o progresso material do mundo 28. E
transversal a todos estes princípios prevalecia a ideia de os nipónicos serem um
povo predestinado à hegemonia na Ásia, um sentimento que se fortalecia com o
tempo, partilhado por todos: “Não há hoje no Japão um japonês, por mais
humilde e mais baixa que seja a classe a que pertença, que não acaricie (…) a
ideia de ver o seu país supremo num Oriente desperto”29; o Japão “considerava-
se mesmo como predestinado pelos seus deuses para essa missão”30. Foi

25
AHD-MNE, Ofício de Antero Carreiro de Freitas, Tóquio, 16 de outubro de 1939.
S11.1.E15.P1 69930.
26
AHD-MNE, Ofício de Antero Carreiro de Freitas, Tóquio, 02 de novembro de 1938.
S11.1.E15.P1 69930.
27
AHD-MNE Antero Carreiro de Freitas, Relatório Formas do Imperialismo Japonês,
1943, p.32.
28
AHD-MNE, Ofício de Antero Carreiro de Freitas, Tóquio,06 de novembro de 1939.
S11.1.E15.P1 69930.
29
HD-MNE, Antero Carreiro de Freitas, Relatório O Japão e o Problema do Pacífico, 116
1930, p.31 e p.36.

30
Idem.

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precisamente este sentido identitário dos nipónicos que os conduziu na
convicção imperialista. No entendimento de Carreiro de Freitas, tudo não
passava de ataques às “Potências brancas”31. Esta referência à raça era um tópico
sensível, e Carreiro de Freitas dá eco da perspetiva ocidental. Do ponto de vista
nipónico tornara-se um tópico agregador. A aprovação da igualdade racial fora
rejeitada no Tratado de Versalhes e a questão fora acicatada na década de 1920,
quando Estados Unidos da América e Austrália aprovaram legislação que
proscrevia a imigração japonesa. Assim se explicam, em parte, as doutrinas
nipónicas que valorizavam a proveniência asiática e os dominadores culturais
comuns como elementos agregadores, que serviria de base à teoria colonialista
de supremacia do Japão no Extremo Oriente.
Num contexto de expansão militar do Japão, primeiro na China, depois
no Pacífico, os interesses de Portugal podiam ser afetados. Porém, Macau
apenas é mencionado na correspondência de Carreiro de Freitas, e Timor só
começaria a ser uma questão precisamente após a partida deste e tomada de
funções pelo Ministro Plenipotenciário Luís Esteves Fernandes. De todo o
modo, em 1937, quando o Japão intensificava a sua ofensiva na China, Carreiro
de Freitas preocupou-se em alvitrar sobre a necessidade de proteger Macau,
propondo a ocupação das chamadas ilhas Pratas, na sua definição três bancos de
areia, que poderiam revelar-se estratégicas no apoio militar, caso o Japão
optasse por bloquear o litoral chinês. Na sua opinião, seria uma oportunidade
para Portugal “de uma vez para sempre liquidar essa velha questão de limites
entre Portugal e a China nas condições favoráveis para Portugal”, que não
levantava celeumas ao Japão, desde que a neutralidade de Portugal fosse

31
AHD-MNE, Ofício de Antero Carreiro de Freitas, Tóquio, 19 de junho de 1939.
S11.1.E15.P4. 69980.

117

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garantida32. Os ofícios posteriores indicam que o tema não teve, porém,
seguimento.
As informações de Sousa Mendes e Carreiro de Freitas distinguem-se
pela clareza do discurso e revelam diplomatas com uma enorme capacidade de
síntese, de análise, e de antecipação de cenários futuros. Os seus textos mostram
como o Japão foi criando a sua identidade pela expansão militar, pela adesão a
alguma modernidade ocidental, mas também pela manutenção de um fortíssimo
sentido de unicidade, que viria a servir, simultaneamente, de base e de alimento
a políticas imperialistas. Os seus textos contêm ainda um manancial de reflexões
sobre o fluir da política interna, as motivações económicas e o desenvolvimento
industrial que sustentaram o imperialismo, e o modo como os nipónicos foram
reagindo à política externa. As informações e relatórios de César de Sousa
Mendes e Antero Carreiro de Freitas, aqui breve e parcialmente analisadas,
abrem porta, sem dúvida, a futuros trabalhos de investigação.

Bibliografia crítica

Peattie, Mark R., “The Japanese Colonial Empire” in Cambridge History of Japan.
The Twentieth Century, vol 6, ed. Peter Duus, (217-270), 2008.

Tipton, Elise Mark, Modern Japan. A Social and Political History, Nissan Institute –
Routledge Japanese Studies Series, 2016.

Totman, Conrad, A History of Japan, Blackwell Publishers, 2000.

32
AHD-MNE, Ofício de Antero Carreiro de Freitas, Tóquio, 10 de dezembro de 1937.

118
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João Guimarães Rosa e Aracy de Carvalho:
diplomacia, amor e literatura
Kamile Moreira Castro 33*

Falar do diplomata brasileiro João Guimarães Rosa é impossível sem


se fazer referência à sua mulher, Aracy de Carvalho. Apesar de não ser
diplomata, Aracy trabalhou no Consulado de Hamburgo, onde conheceu o seu
futuro marido, Guimarães Rosa, com quem viveu até à prematura morte deste.
Aracy não voltou a se casar e teria uma vida longeva, embora ensombrada, nos
seus últimos anos, pela doença de Alzheimer1.
João Guimarães Rosa era um admirador da cultura alemã, mas a sua
permanência como cônsul-adjunto brasileiro no Consulado de Hamburgo, seu
primeiro posto como diplomata, coincidiu, temporalmente, com um período
negro da história alemã e mundial. O diplomata tentou sempre distinguir, com
fervor, a riquíssima cultura alemã do nazismo, que parecia afastar-se totalmente
dos posicionamentos históricos da Alemanha, na sua leitura. Durante o seu
trabalho como cônsul brasileiro na Alemanha conheceu a funcionária Aracy de
Carvalho, pela qual se apaixonou, e com quem mais tarde se casou, mantendo
uma enorme cumplicidade em diversos aspetos da sua vida em comum. Um
desses aspetos, no entanto, marcou indelevelmente a vida de Aracy, a quem
Guimarães Rosa chamava, carinhosamente, Ara: a forma como, na conivência
do marido, conseguiu organizar a fuga de muitos judeus da Alemanha com a

*
Magistrada Eleitoral Titular e Ouvidora Substituta do Tribunal Regional Eleitoral
do Estado do Ceará - TRE/CE. Doutoranda em Direito pela UFPE. Especialista em Direito e
Processo Eleitoral pela ESMEC-PUC/MG. Especialista em Direito Processual Penal pela
UNIFOR. Mestre em Direito pela UNINOVE e em Ciências Políticas pela Universidade de
Lisboa/ISCSP. Professora. Advogada. E-mail: castrokamilemoreira@gmail.com
1
João Guimarães Rosa morreu em 1967, com 59 anos. Aracy faleceu em 2011, com
102 anos. 119

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emissão de passaportes brasileiros e apoio logístico de várias maneiras. Tal
arriscadíssima ação, que colocava em causa a sua vida, levou-a a ter o epíteto de
“O Anjo de Hamburgo”.

O mundo e o Brasil na época


A década de 30 do século XX é marcada globalmente pela chamada
“Grande Depressão”, que se iniciou na crise de outubro de 1929 e que só
terminou, na prática, com o início da II Guerra Mundial, e foi apontada como
uma das razões para o nascimento dos regimes fascistas na Europa. Os anos de
1930 foram um extenso período de depressão económica, caos social e enormes
quebras do PIB de quase todos os países ocidentais. O desemprego que, por
exemplo, nos EUA, chegou aos 32%, foi acompanhado por deflação e,
seguidamente, de um período de grande inflação.
A fase caótica que se alargou por uma década, em que cada país tentou
responder de maneira diferente à crise, criou um ciclo permanente entre crise
económica e desorganização social. Tais acontecimentos, juntos a um anterior
sentimento de injustiça e de subalternidade dos países perdedores da I Guerra
Mundial, de 1914-1918, germinaram o fascismo, que se impôs como regime na
Itália e na Alemanha e abriu um período negro e sangrento no mundo até ao
fim de 1945, e encerrado com a explosão da segunda bomba atómica sobre
Nagasaki.
A II Guerra Mundial foi a mais abrangente da História do mundo e
causou mais de 70 milhões de mortos (Hobsbawm, 1997). Foi também marcada
por outras tristes especificidades, como a primeira utilização de uma arma

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atómica e o Holocausto ou Shoa2. De notar que o genocídio judaico é antecedido
de uma série de ações de opressão, repressão e violência sobre os membros desse
povo. Depois da desolação, destruição e massacres da II Guerra Mundial,
seguiu-se um período de um outro tipo de guerra que colocava, como
antagonistas, dois dos vencedores da II Guerra Mundial: Estados Unidos da
América (EUA) e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
Na verdade, a polarização do mundo em torno daquelas duas
superpotências inaugurou aquilo a que se chamou a Guerra Fria, no âmbito da
qual, frente a frente, se digladiavam duas visões opostas de mundo: a capitalista
e a socialista. Sem nunca se enfrentarem diretamente, os EUA e a URSS
confrontaram-se com outras “armas”: a espionagem, o apoio económico a alguns
países, a discussão ideológica, a corrida armamentista e científico/técnica e, com
o apoio de um e de outro lado, a conflitos localizados em diversas partes do
mundo, sempre no sentido de ganhar influência global. A posse e
desenvolvimento de armas atómicas dos dois lados desta guerra, chamada “fria”,
assegurou a destruição mútua (e mundial), mas impediu, por isso mesmo, que
qualquer um dos envolvidos avançasse para uma ação hostil direta contra o
outro (Hobsbawm, 1997). Era o “equilíbrio do terror” instalado. A Guerra Fria
só terminou com a queda do muro de Berlim (1989) e a dissolução da URSS
(1990-1991).
No Brasil, em 1930, o presidente Washington Luís foi derrubado e uma
junta militar assumiu o controle do país em 24 de outubro e, passados alguns
dias, entregou a Presidência a Getúlio Vargas. A democracia só regressou ao
Brasil 15 anos depois. Então, de 1930 a 1945, desenvolveu-se o período histórico

2
Não entramos aqui na discussão da possível equivalência entre “Holocausto”,
“Shoa” ou “Solução Final”. Seja realçado, porém, o fato de que, além de judeus, outros foram
atingidos por esta solução de perseguição e extermínio, como ciganos, polacos, comunistas,
homossexuais, prisioneiros de guerra, Testemunhas de Jeová e deficientes físicos e mentais,
entre outros.
121

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brasileiro conhecido por “Era Vargas”, por ser dominado pela figura de Getúlio
Vargas, apesar de, nesse lapso, se haverem identificado três épocas com
características diferentes: o Governo Provisório, o Governo Constitucional e o
Estado Novo. Nos 15 anos da Era Vargas, foram muitas as mudanças
económicas, sociais e políticas que se deram no Brasil. A deposição de
Washington Luís correspondeu ao fim da República Velha e à tentativa de
estabelecer uma nova ordem constitucional.
De 1930 a 1934, Getúlio Vargas foi Presidente (Chefe de Governo
Provisório) por via de decreto da Junta militar, enquanto se aprovava outra
Constituição, o que ocorreu pela Assembleia Constituinte de 1933-34 e previu
a eleição de Vargas pela própria Constituinte. Iniciou-se a época de Governo
Constitucional da Era Vargas que durou até 1937 e que se caracterizou por uma
bipolarização política entre esquerda e direita. A esquerda foi, sobretudo,
representada pela ANL (Aliança Nacional Libertadora) e pelo PCB (Partido
Comunista Brasileiro), enquanto que a Direita se aglutinou no Movimento
Integralista, de inspiração fascista. Àquela altura, ocorreu um dos episódios
mais traumatizantes da política externa brasileira. A esposa de Luís Carlos
Prestes, ex-militar ligado a uma tentativa de golpe comunista, Olga Benário, foi
extraditada para a Alemanha, de acordo com a legislação de extradição que,
naquele período, o Brasil tinha com a Alemanha. Como alemã, judia e comunista,
morreu no campo de extermínio nazi de Bernburg. O Supremo Tribunal
Federal brasileiro tinha apoiado o pedido de extradição da Alemanha, que, aliás,
era legal, apesar de muitos movimentos em contrário e de vários pedidos de
habeas corpus (Silva, 1975); além disso, Olga estava grávida e conheciam-se, não
ainda os campos de extermínio nazis, mas as más condições e o tratamento
desumano que era conferido aos prisioneiros da Alemanha nazi, sobretudo aos
judeus.

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No fim do ano de 1937, Getúlio Vargas anunciou o “Estado Novo”, no
seguimento de um golpe de Estado que se deu poucos meses antes, em uma
eleição marcada para a Presidência da República. O golpe tinha sido decretado
como resposta a uma presumível tentativa comunista de tomada de poder.
Consoante os historiadores (Araújo, 2000; Pandolfi, 2003), instalou-se a
censura, concedeu-se mais poder às polícias e incrementou-se a propaganda.
Quando começou a II Guerra Mundial, não era clara a posição que o
Brasil de Getúlio Vargas tomaria (Silva, 1975). O seu posicionamento neutral
contou com a oposição dos EUA e acabou, contra a vontade de Vargas, depois
de ataques de submarinos alemães a barcos brasileiros. Formou-se, então, a
Força Expedicionária Brasileira que lutou ao lado dos Aliados. Quando a
Guerra chegou ao fim, com a derrota das potências do Eixo, Getúlio Vargas não
teve espaço na nova ordem mundial e o Estado Novo envelhecera. A Era Vargas
terminou com a sua renúncia em 29 de outubro de 1945, “empurrado” pelos
militares. Foi eleito senador pelo Rio Grande do Sul.
Em 1946 começou a República Nova, com a eleição de Eurico Dutra
em 1946, e, nesse ano, foi promulgada outra Constituição, na qual foi visível
uma abertura democrática. Em 1950, Getúlio Vargas foi reeleito Presidente da
República, desta vez pelo voto democrático. Seu governo não conseguiu lidar
com a nova realidade interna e externa e, depois de uma série de acontecimentos
políticos, Getúlio Vargas cometeu suicídio, em 24 de agosto de1954.
Depois de Juscelino Kubitschek (1956), com uma política designada
como desenvolvimentista, e de Jânio Quadros (1961), que teve de abdicar,
acusado de alinhar-se com o bloco soviético, ascendeu à Presidência o vice de
Jânio, João Goulart (1961), também ele acusado de “comunismo”. O seu
governo era de fraca aceitação geral. A braços com graves e repetidas crises
económico-sociais e com a contestação de grande parte das classes alta e média
da população, aliada à repulsa dos setores militares e da Igreja Católica, Goulart

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foi obrigado a refugiar-se no Uruguai, na sequência do golpe militar de 1964.
Começou, então, a ditadura militar, que só em 1985 teve o seu fim (Napolitano,
2014; Paulo Neto, 2014).

Guimarães e Ara: um encontro apaixonadamente frutuoso


João Guimarães Rosa nasceu em junho de 1908, na cidade de
Cordisburgo-Minas Gerais. Entre os vários assuntos pelos quais se interessou
desde criança, demonstrou uma predileção por línguas estrangeiras, começando
a estudar francês ainda antes dos seis anos de idade3. Mudou-se para Belo
Horizonte, para a casa dos avós, onde terminou os estudos secundários, num
colégio de renome, já que contava com o apoio de um tio com boas condições
financeiras. Esse amparo facilitou o ingresso na Faculdade de Medicina da
Universidade de Minas Gerais. Tinha então apenas 16 anos. A mesma idade
tinha a sua primeira esposa, Lígia Cabral Pena, quando contraiu matrimónio
com Guimarães Rosa, em 1930 – exatamente no ano em que terminou o curso
de Medicina. Dessa união nasceram duas filhas.
Guimarães Rosa começou a exercer medicina em Itaguara, onde tomou
contato com o sertão brasileiro, que o marcou de tal maneira, que influenciou
toda a sua obra literária. Foi médico voluntário durante a Revolução de 1932 e
entrou, por concurso, como médico da Força Pública (hoje atual Polícia Militar).
Concorreu ao Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores do Brasil) e entrou
na carreira diplomática por alguns anos, com cargos na Europa e na América
do Sul.

3
Mais tarde disse numa entrevista: “Eu falo: português, alemão, francês, inglês,
espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com
o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do
árabe, do sânscrito, do lituano, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do checo, do
finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras.
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O seu primeiro cargo diplomático no estrangeiro foi na Alemanha, em
Hamburgo, como cônsul-adjunto. Aí esteve de 1938 a 1942, portanto, desde a
antecâmera da II Guerra Mundial até ao meio desse terrível conflito. Foi aqui
que conheceu Aracy de Carvalho, funcionária consular do Itamaraty, que veio a
tornar-se a sua segunda esposa. Depois de Hamburgo, Guimarães Rosa
exercerá funções diplomáticas em Bogotá e Paris. Não cabe aqui analisar a
profícua obra literária de Guimarães Rosa, mas ela é, sem dúvida, de
importância mundial, o que conduziu à sua indicação para o Prémio Nobel, em
1967, pouco antes da sua morte. Em 1963, Guimarães Rosa foi eleito por
unanimidade para a Academia Brasileira de Letras. O escritor, no entanto,
temendo pelos efeitos da emoção na sua saúde, adiou a posse. Essa iniciação para
a cadeira 2 da Academia sucedeu quatro anos depois e apenas três dias antes da
sua prematura morte aos 59 anos.
Aracy de Carvalho, de nome completo, Aracy Moebius de Carvalho
Guimarães Rosa, nasceu no mesmo ano de Guimarães Rosa (1908) em Rio
Negro - Paraná. Filha de um português e de uma alemã, viveu os primeiros anos
em São Paulo, com os seus pais. Aos 22 anos, em 1930, casou-se com o alemão
Johann Eduard Ludwig Tess, com quem teve o filho Eduardo Carvalho Tess.
O casamento não demorou e, cinco anos depois, Aracy separou-se de facto, e foi
viver na Alemanha, com uma tia e com o seu filho de três anos, em 1936. Aracy,
sendo fluente em português, inglês, francês e alemão (resultado dos seus estudos
na Suíça), candidatou-se e foi nomeada para o consulado brasileiro em
Hamburgo, indo ocupar o lugar de “Chefe de Secção de Passaportes”. Aí
conheceu Guimarães Rosa, com quem, mais tarde, convolou núpcias. Tornou-
se viúva em 1967 e nunca mais contraiu casamento. Nos últimos anos da sua
vida, foi atormentada pela doença de Alzheimer. Morreu em 2011, em São
Paulo, com 102 anos, sendo sepultada, ao lado de Guimarães Rosa, no Mausoléu
da Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro. O seu nome está no “Jardim

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dos Justos entre as Nações”, em Israel, desde 19824, e no Museu do Holocausto,
em Washington.
Na altura em que desembarcou na Alemanha, Guimarães Rosa, em
1938, não tinha, ainda, publicado nenhum livro, mas trazia na sua bagagem um
original para rever: um livro chamado Contos e que, a partir de 1946, passou a
se chamar Sagarana, que é uma mistura da expressão “saga” com a expressão
tupi5 “rana”, significando “idêntico”. O diplomata/escritor, quando chegou à
Alemanha, já estava separado da mulher que tinha ficado com os filhos comuns.
Na chegada ao consulado brasileiro em Hamburgo, conheceu Aracy Carvalho.
Foi em Hamburgo que Guimarães Rosa adotou o trabalho de escrita na forma
de cadernetas de anotações, o que resultou no seu conhecido Diário alemão
(Rosa, 2006), relatando pormenores da “vida vivida”, desde os passeios no
zoológico, ao horário em que os bombardeamentos aliados se davam, passando
pela descrição de paisagens e vivências e críticas às ações contra os judeus.
Guimarães Rosa mostrou sempre um grande distanciamento em relação às
ações bélicas dos primeiros anos da guerra, não só pelo seu «posicionamento
diplomático», mas, também, por uma profunda adesão a um sentimento
humanitário.
Os sinais anunciadores da catástrofe próxima estavam por todo lado:
17 mil judeus saíram da Alemanha quando Hitler chegou ao poder, mas, nos
anos seguintes, essa fuga parou, embora as medidas contra os judeus se fossem
ampliando em número e intensidade. Diversas razões, que não cabe neste espaço
analisar, fizeram com que os judeus alemães fossem ficando no país, dentre elas
as taxas que os nazis os obrigavam a pagar para sair da Alemanha, a dificuldade

4
O outro brasileiro, que tem essa homenagem, é Souza Dantas, embaixador do Brasil
em França, no início da II Guerra Mundial.
5
A língua tupi era falada pelas tribos de povos tupis que habitavam a maior parte
do litoral do Brasil no século XVI.
126

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burocrática para ter os vistos de saída e, também, uma certa confiança no secular
humanismo da cultura alemã. A noite de 9 de novembro de 1938, em Berlim (a
chamada “Noite de Cristal”), espalhando-se por outras cidades, retirou todas as
ilusões: quase dez mil lojas de judeus queimadas, propriedade roubada ou
destruída e duzentas sinagogas incendiadas. Começava um dos períodos mais
negros da História humana.
Guimarães Rosa queria estar informado, com rigor, da perseguição aos
judeus na Alemanha. Isso, porém, não bastava, porque o
diplomata/médico/escritor queria recolher as próprias impressões e vivências,
e apercebeu-se, com base nisto, que o nazismo estava a construir um mundo
terrível que queria normalizar pela legalidade e por via da propaganda. A
repulsa ao nazismo, por parte de Guimarães Rosa, teve estreita relação com a
sua paixão pela cultura germânica, que considera antagónica relativamente ao
nazismo e que este trai (Brito, 2005). Nesta repulsa, não foi seguido pelo
governo brasileiro.
Na verdade, em 1938, a Circular (secreta) 1.127 entrou em vigor:
restringiu a entrada de judeus no Brasil e proibiu a concessão de vistos para
todas as pessoas de “origem semítica” (sinônimo de judeu e israelita, na
documentação do Ministério das Relações Exteriores brasileiro, nos anos de
1930-40). Aliás, o posicionamento oficial brasileiro era de bastante simpatia em
relação às potências do Eixo. Apenas em agosto de 1942, com os ataques a
embarcações brasileiras e a pressão dos EUA, o Brasil declarou guerra ao eixo
RO-BER-TO – Roma-Berlim-Tóquio – (Carneiro, 1988) e cortou relações
diplomáticas com a Alemanha. Este volte-face criou problemas a Guimarães
Rosa e Aracy Carvalho.
Depois de se conhecerem e se apaixonarem, casaram-se por
procuração, no fim dos anos de 1940, na Embaixada do México, pois, no Brasil,
ainda não havia sido legalizado o divórcio. Na verdade, a indissolubilidade do

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casamento era norma constitucional pela Carta Grande de 1934, e assim
continuou nos Textos Maiores de 1937, 1946 e 1967. Aquando do rompimento
das relações diplomáticas entre Brasil e Alemanha, as autoridades deste País
impediram o regresso imediato de Guimarães Rosa e sua Esposa ao Brasil, que
durou por quatro meses, até se efetuar uma troca com diplomatas alemães no
Brasil. Essa permuta foi mediada pela diplomacia portuguesa e o pessoal das
embaixadas e consulados brasileiros chegou a Lisboa no dia 29 de maio de 1942.
Rosa e Aracy embarcaram para o Rio de Janeiro em junho; logo em julho desse
ano, Guimarães Rosa foi colocado, como segundo-secretário de Embaixada, na
Colômbia.
Guimarães Rosa usou o seu Diário para registar acontecimentos e
impressões da sua vida em Hamburgo e mesmo fazer colagem de artigos de
jornais que relatavam o quotidiano. Com um estilo direto, foi transmitindo sua
revolta com o que se passou na Alemanha de então, sobretudo contra as leis e
normas antissemitas que, em escalada, foram implementadas, não se deixando
enganar pela aparente humanidade, em que algumas dessas regras pretendiam
se disfarçar, e o pretenso cumprimento do dever que escondia o totalitarismo.
Veja-se este excerto do seu Diário:
Hoje, à tarde, vi o primeiro: um rapazola, simpático, de Knickerbocker,
dando o braço a um cego (distintivo de cego, no braço) [....] Passeei
hoje, com Ara, à tarde. Fomos pela beira do Alster. Num recanto da
margem, perto da Lombardsbrücke, para o lado de cá (da minha casa),
vi uma praiazinha para crianças. Pequenina enseada, protegida, de
um lado, por um pernambuco de pedra, ganho pelas ondas do lado, que
vão e vêm por entre as pedras, convertendo-o em cachoeira. Marrecos
flutuam, dando o peito redondo ao ímpeto em miniatura das ondas, ou
mergulhando as cabeças. A 2 metros da terra, uma tela, firme em
estacas. Os garotos podem nadar ali dentro. Há um quadrado, espécie

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de vasto caixão de areia, para os garotos brincarem. Perto, os
salgueiros chorões. Ondazinhas vêm lamber a praia de brinquedo. E...
mas... para estragar toda a mansa poesia do lugar: arvoraram, num
poste, uma taboletazinha amarela: “Lugar de brinquedo para crianças
arianas”. (Rosa, 2006, s/p)

Aracy trabalhava no consulado de Hamburgo, com os vistos de viagem,


estando a chefiar esse trabalho, como já se exprimiu. As atitudes que Ara teve
fazem dela uma personagem ímpar de Humanidade, apesar de, até pelo menos
há pouco tempo, ser muito esquecida na História do seu país de origem. Antes
de mais, demonstrou uma coragem acima do comum, já que corria dois riscos
simultâneos: ao ignorar a já referida Circular nº. 1.127, ia contra as ordens do
governo brasileiro do tempo de Vargas; por outro lado, arriscava-se às
retaliações do governo alemão que proibia expressamente a ajuda aos judeus e
perseguia quem o fazia. Ela, expressa e conscientemente, tomou uma atitude de
desobediência civil, para poder ajudar os judeus. De facto, ajudou a conceder
vistos a dezenas de judeus, chegando talvez a uma centena, não se sabendo
números certos, já que, por pretextos óbvios, não existiam registos e Aracy foi
sempre muito reservada sobre este assunto (Brum, 2009). Evidencie-se o fato
de que a divulgação da sua história se deve aos que foram beneficiados por ela e
não a ela mesma6 (Schpun, 2011). Em 1983, Aracy recebeu uma homenagem do
Estado de Israel com a inscrição do seu nome no “Jardim dos Justos”7 e aí disse
algumas, poucas, palavras sobre este período da sua vida: "Nunca tive medo;

6
Quem muito contribuiu para o conhecimento da ação de Aracy foi a sua amiga,
Margarethe Levy, cuja vida fora salva por ela em Hamburgo.
7
Esta homenagem é um reconhecimento que o Estado de Israel presta aos não judeus
que auxiliaram judeus a escapar do genocídio. O lugar também é conhecido como Alameda dos
Justos e Aracy Guimarães Rosa é a única funcionária consular (sem ser embaixador ou cônsul)
cujo nome está presente.
129

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quem tinha medo era o Joãozinho (o escritor Guimarães Rosa). Ele dizia que eu
exagerava, mas não se metia muito e me deixava ir fazendo", disse Aracy ao
Jornal do Brasil (Camargo & Studart, 2008).
O método que Aracy usava para conceder os vistos ilegais era simples
e claro, só era possível com a conivência de Guimarães Rosa: colocava os
documentos para Rosa assinar, omitindo a letra “J” (distintivo para “judeu”)
neles. Sabendo do expediente, Guimarães Rosa assinava os documentos que
permitiriam a saída para o Brasil daquelas pessoas. Além disso, usou por
diversas vezes o seu carro para transportar judeus, fornecer-lhes alimentos,
chegando mesmo a dar guarida a alguns na sua casa (Camargo & Studart, 2008;
Brum 2009).
A relação entre Guimarães Rosa e Aracy Carvalho era amorosamente
intensa, como o demonstram as cartas que trocaram8 e o modo como se referem
um ao outro (Miné; Neuma, 2008). Aracy teve também um importante papel na
produção literária do marido. A melhor prova disso é o romance icónico de
Rosa, Grande Sertão: Veredas, que foi lançado em 1956 e que o escritor dedicou
à sua mulher, como forma de homenagem aos valores que lhe reconhecia.
Numa das cartas, a que Elza Miné e Neuma Cavalcante tiveram acesso,
dizia Rosa a Ara, em 1942:

Serás tudo para mim: mulher, amante e companheira. Sim, querida,


hás de ajudar-me a escrever os nossos livros. Tu mesma não sabes o que
vales. Eu sei. Serás, além de inspiradora, uma colaboradora valiosa,
apesar ou talvez mesmo por não teres pretensões de ‘literata pedante’.
(Rebello, 2014; p. 184)

8
Elza Miné, da USP, e Neuma Cavalcante, da Universidade Federal do Ceará (UFC),
estudaram as cartas, ainda inéditas (Miné, Neuma, 2008).

130

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O escritor dedicou a sua obra à companheira, justamente por seus
princípios e valores. A dedicatória expressa: “A Aracy, minha mulher, Ara,
pertence este livro”. (Rosa, 2019). Já que, na altura, não era possível a Rosa dar
um anel de casamento, parece que este grande romance substituiu esse anel.
Aracy foi, para Guimarães Rosa, a companheira de quase 30 anos, mas também
foi uma participante na criação da sua literatura e modelo de combate perante
as injustiças (Schpun, 2011).

Conclusão: a diplomacia sob o lema homo sum: nihil humani a me alienum


puto9
Guimarães Rosa, numa entrevista anos mais tarde (Lorenz, 1983),
acentuou a importância que Ara teve na sua atividade diplomática, dando-lhe
uma nova mundivisão. Essas reflexões permitem-lhe analisar o aparente dilema
da civilização alemã, que é grandiosa, mas que desemboca numa perversão. A
coragem e a resiliência de Ara concedem-lhe as pistas para a compreensão desse
fenómeno e o entendimento de que atitudes como a dela têm um papel
fundamental na Humanidade (Tavares, 2003). Tal posicionamento intelectual e
a conivência com Aracy na ajuda aos judeus influenciam-no profundamente
como diplomata e escritor. Na sua escrita, coexistem os problemas da política e
do mundo real e a romantização de um universo fabuloso e fabular que se
penetram e se explicam um ao outro.
A diplomacia é um encontro de vários tipos. Um encontro entre
saberes e visões de mundo e, sobretudo, um encontro entre pessoas e culturas.
Nos momentos e nos locais de grande crise e grandes desastres humanitários,

9
Expressão atribuída a Públio Terêncio (cerca de 185 a.C – 159 a.C.), dramaturgo e
poeta romano, autor de várias comédias. Tradução: Sou humano, nada do que é humano me é
estranho.

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para os diplomatas, cruzam-se as tentativas de entender a História e a política
com a participação na vivência das pessoas normais com as suas rotinas normais.
É este sentido de perceção do mundo, dum jeito abrangente e humanista, que
Guimarães Rosa aprofunda com a sua ligação com Aracy de Carvalho. Acima
da legalidade fica a justiça e acima da justiça fica a pessoa. Nas palavras de
Guimarães Rosa e, anunciando a sua tensão com a política, é explicado o que
entende por “ser diplomata”:

Um diplomata é um sonhador e por isso pude exercer bem essa


profissão. O diplomata acredita que pode remediar o que os políticos
arruinaram. Por isso agi daquela forma e não de outra. E também por
isso mesmo gosto muito de ser diplomata. E agora o que houve em
Hamburgo é preciso acrescentar mais alguma coisa.
Eu, o homem do sertão, não posso presenciar injustiças. No sertão, num
caso desses imediatamente a gente saca o revólver, e lá isso não era
possível.
Se “lá” não era possível sacar o revólver, restou o “revólver verbal”
para atirar contra os inimigos da humanidade, inclusive contra aqueles
políticos que se omitiram face à perseguição dos judeus e outras
minorias. Daí a justificativa de ter escolhido a profissão de diplomata,
que não quer trabalhar a serviço da política, mas acredita que pode
remediar o que os políticos arruinaram. (Lorenz, 1983, p. 85-86)

A relação entre Guimarães Rosa e Aracy de Carvalho revelou a


possibilidade da demonstração de que, para a diplomacia, o “fator humano” é a
pedra angular.

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 132


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Aleksander Ładoś e a legação polaca em Berna em
tempos da II Guerra Mundial
Marek Pernal*

Resumo: No período da II Guerra Mundial a legação em Berna tornou-se a


missão diplomática polaca mais importante no continente europeu. A missão
liderada por Aleksander Ładoś foi um elo central na cadeia de transmissão de
informações e de ajuda material pelo governo polaco em Londres, destinada aos
refugiados polacos nos países ocupados pela Alemanha e nos países do Extremo
Oriente, Japão e China. Deste auxílio oficial, um número significativo de
destinatários era composto por cidadãos polacos de nacionalidade judaica. A
legação na Suíça conduziu, nos anos 1941-1943, paralelamente as atividades
realizadas de acordo com normas legais, uma ação de salvação dos judeus na
Polónia sob ocupação, por intermédio de passaportes ilegais do Paraguai e de
alguns outros países da América Central e da América do Sul. As atividades
secretas do “grupo de Ładoś”, que emitia os documentos falsos, poderão ter
salvo da morte até duas mil pessoas.

Palavras-chave: Aleksander Ładoś; Diplomacia Polaca; II Guerra Mundial;


Legação Polaca em Berna; Holocausto; Passaportes do Paraguai.

A diplomacia polaca após a eclosão da guerra


Nas primeiras semanas da II Guerra Mundial todo o território do
Estado polaco ficou sob a ocupação alemã e soviética. O III Reich atacou a
Polónia no dia 1 de setembro de 1939. Em poucos dias as tropas alemãs, que
dispunham de uma grande vantagem militar, ocuparam as zonas oeste e central
do país. A 17 de setembro, enquanto Varsóvia ainda resistia aos Alemães, a zona
leste da Polónia foi invadida pelo Exército Vermelho. De acordo com o pacto
soviético-alemão firmado no dia 23 de agosto de 1939, o III Reich e a União
Soviética dividiram entre si o vizinho polaco.
Perante o ataque do Oeste e do Leste e tendo a noção da derrota da
guerra defensiva, as mais altas autoridades da Polónia, o Governo e o Presidente

*
Diplomata da Polónia

135
Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021
Ignacy Mościcki decidiram sair do país e atravessar a fronteira com a Roménia.
Contaram com a possibilidade de continuar as funções no exílio em França, um
país aliado. Todavia os romenos, sucumbindo às pressões e ameaças alemãs,
internaram os líderes polacos, não autorizando a sua saída para Oeste. Face à
situação, o Presidente Mościcki renunciou ao seu cargo e, ao abrigo das
disposições da Constituição, nomeou o seu substituto na pessoa de Władysław
Raczkiewicz, que permanecia em França. O Governo demitiu-se e o novo
Presidente designou o Conselho de Ministros em Paris sob a liderança do
General Władysław Sikorski. O Ministro dos Negócios Estrangeiros, Józef
Beck, internado na Roménia, foi sucedido por August Zaleski. Apesar da
derrota, a Polónia sempre manteve a continuidade do sentido de Estado e nunca
deixou de existir como entidade da lei internacional, enquanto os mais altos
cargos do país foram transferidos aos novos membros de forma constitucional.
No Governo criado em França, a posição do Ministério dos Negócios
Estrangeiros tornou-se única. O seu papel não foi determinado apenas pela
situação política em que se encontrava a Polónia na altura invadida. O
Ministério dos Negócios Estrangeiros era a ferramenta principal de realização
dos objetivos políticos do governo, no caso do primeiro governo – a reconquista
da Polónia livre e soberana. O Ministro Zaleski manteve à sua disposição um
potencial enorme do departamento dos tempos antes da guerra, nomeadamente
diplomatas que exerciam as suas funções no estrangeiro e uma rede de missões
em todos os continentes. Antes da eclosão da guerra o Ministério tutelava 10
embaixadas, 20 legações, 24 consulados gerais, 42 consulados e cerca de 128
consulados honorários. Naturalmente com o desenvolvimento da situação
militar e política estes números sofreram alterações. As missões que se
encontravam nos países conquistados ou dominados pelo III Reich e pela União
Soviética cessavam as suas funções, sendo que ao mesmo tempo eram criadas
novas missões nos países da coligação anti-hitleriana em vários países da

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América Latina. Os esforços alemães para que os vários países neutros não
reconhecessem o governo polaco formado por Sikorski falhavam. Entre os
países que se opuseram às tais pressões, encontrava-se Portugal. O secretário-
geral do ministério, Luís Teixeira de Sampaio reagiu aos argumentos invocados
pelo delegado alemão Oswald von Hoyningen-Heune em outubro de 1939 no
MNE português em prol de comprometer a legalidade das novas autoridades
polacas no estrangeiro. O diplomata português rejeitou as alegações alemãs,
apontando – para grande insatisfação do alemão – para os precedentes conexos
ao funcionamento dos governos da Bélgica e Sérvia na emigração durante a I
Guerra Mundial1.

Legação da República da Polónia na Suíça


Entre as missões que durante a guerra desempenharam um papel
particularmente importante na política polaca internacional, encontrava-se a
legação da República da Polónia em Berna2.
No período entre-guerras a missão diplomática-consular polaca na
Suíça não teve importância emitente. As relações bilaterais polaco-suíças
dificilmente podiam ser descritas como animadas, apesar de ambos os países
terem estabelecido relações diplomáticas logo após o fim da I Guerra Mundial.
Foram inúmeras as delegações polacas que se deslocavam regularmente a
Genebra para reuniões do Concelho e da Assembleia da Sociedade das Nações,
mas nenhum dos políticos polacos visitou o seu homólogo suíço, nem nenhuma
delegação suíça realizou a viagem a Varsóvia no período entre-guerras. Na
altura que precedeu a eclosão da II Guerra exerciam funções na legação em

1
Telegrama nº 283 de 9.10.1939; Politisches Archiv, Archiv des Auswärtigen
Amtes, Berlin; Akten des Staatssekretärs - Krieg 1939, V, 143.
2
Drywa, D. (2020), Legação da República da Polónia em Berna, História não
mencionada. Ministério da Cultura e do Património Nacional
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Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021


Berna apenas dois diplomatas além do chefe de missão, o delegado Tytus
Komarnicki.
Tytus Komarnicki pertencia ao grupo de colaboradores mais próximos
do ministro Józef Beck. Era diplomata de carreira, ligado ao Ministério dos
Negócios Estrangeiros desde 1918. Sendo pessoa conexa à equipa política que
governava antes da guerra, acusada pelo governo de Sikorski da condução à
derrota de 1939, Komornicki foi colocado na lista de diplomatas que o ministro
Zaleski decidiu destituir do cargo. Em Berna, foi substituído por Aleksander
Ładoś, um dos mais importantes políticos do Stronnictwo Ludowe [Partido
Popular], partido de oposição perante a política de governos do período antes
da guerra que co-formava o novo governo de Sikorski. Também ele tinha uma
vasta experiência diplomática. Nascido em 1897 em Lviv, durante a I Guerra
Mundial viveu na Áustria e Suíça, onde se formou e trabalhou como jornalista.
Após a Independência da Polónia em 1918 iniciou o seu trabalho no
Ministério dos Negócios Estrangeiros. Exerceu, entre outras, funções de chefe
do Departamento de Imprensa do MNE e de secretário de delegação polaca para
as negociações de paz com a Rússia Soviética em Minsk e Riga em 1921 e 1922,
respetivamente. Em 1923 foi nomeado delegado em Riga. Perdeu este cargo
três anos mais tarde por ter criticado de forma aberta o golpe de Estado e o
derrube do governo constitucionalmente eleito em maio de 1926. Em 1927
integrou de novo a missão diplomática, desta vez na qualidade de cônsul geral
em Munique. E mais uma vez foi vítima da sua atitude crítica perante a equipa
governante em 1931 – foi demitido do seu cargo na Alemanha e despedido do
MNE após a tomada de posse do vice-ministro por Józef Beck. Até à eclosão da
guerra fazia parte do partido Stronnictwo Ludowe, sendo responsável pelo
jornalismo de opinião.
Em setembro de 1939 Ładoś, junto com milhares de refugiados, esteve
na Roménia e pouco depois chegou à França. Era o único ativista da oposição

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 138


conhecido, pelo que o Gen. Władysław Sikorski conferiu-lhe o cargo de
Ministro sem pasta no seu governo. Todavia, já em dezembro de 1939, Ładoś
teve de dar lugar no governo a um outro político do Partido Popular –
Stanisław Kot. Como recompensa foi prometido a Ładoś o cargo de embaixador
em Ancara. Esta oportunidade abria-se, uma vez que, no âmbito das limpezas
das fileiras diplomáticas de apoiantes do antigo regime governamental, o
Primeiro-Ministro Sikorski e o Ministro dos Negócios Estrangeiros August
Zaleski fizeram uma tentativa de demitir um dos representantes principais do
serviço de negócios estrangeiros antes da guerra, chefe da missão na Turquia,
Michał Sokolnicki. O Ministro Zaleski notificou o Embaixador sobre o termo
da sua missão no início de 1940, mas… a diplomacia turca fez entender que não
consentiria agrément ao substituto de Sokolnicki. Sendo assim, Zaleski não
concretizou os seus planos e foi proposto a Ładoś um outro cargo que ficou vago
após Komarnicki ter sido demitido em Berna.
Mas a tomada deste cargo também não aconteceu sem problemas. Após
a saída de Komarnicki, a legação iniciou, junto do MNE -Departamento Federal
Político-, o procedimento do pedido de concessão de agrément a Ładoś, como
sendo o novo delegado da República da Polónia. Todavia estes esforços não
foram bem-sucedidos. O delegado alemão em Berna, Otto Köcher, opôs-se a esta
nomeação junto do Departamento Político, alertando ao mesmo tempo
Auswärtiges Amt em Berlim. O próprio Ministro dos Negócios Estrangeiros
do III Reich, Joachim von Ribbentrop, envolveu-se no impedimento dos planos
polacos, ameaçando o delegado suíço em Berlim, Hans Frölicher, que no caso
de concessão de agrément a Ładoś – o que significaria ao mesmo tempo o
reconhecimento pela Suíça da legalidade do Governo polaco na França – a
Alemanha iria demitir o seu delegado em Berna. Naturalmente, as autoridades
suíças não queriam arriscar tal agravamento de relações com Berlim. Por
conseguinte, o Departamento Político notificou a missão polaca que a única

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 139


solução seria a liderança da legação por Ładoś na qualidade de encarregado de
negócios. O MNE polaco não tinha outra opção. Ładoś manteve ad personum o
seu título de Ministro Plenipotenciário, mas na lista do corpo diplomático
figurou como encarregado de negócios até ao final da guerra.

Atividades oficiais da legação no território da Suíça e fora das suas


fronteiras
O papel especial que a legação polaca em Berna veio desempenhar nos
tempos da guerra foi resultado de vários fatores. O mais importante e o que
determinou os outros fatores foi sem dúvida o estatuto neutro da Suíça. Apesar
da ameaça permanente por parte do III Reich e apesar de o país ter sido
praticamente cercado pela Alemanha e pelos seus aliados, os suíços, que
enfrentavam uma perspetiva dramática de exclusão do comércio com o
estrangeiro e de sufoco da economia, mesmo assim, conseguiram proteger a sua
soberania e não se deixaram submeter às exigências agressivas de Berlim. Um
dos efeitos da neutralidade foi a relativa liberdade de funcionamento da missão
diplomática polaca. A legação, apesar de limitações no âmbito de algumas
atividades, como por exemplo no domínio das comunicações, usufruía da
imunidade diplomática quase na sua totalidade. Berna foi um ponto de trânsito
para o correio diplomático do governo polaco durante todo o período da guerra.
Os desafios que a legação ia enfrentar tornaram-se particularmente
visíveis em 1941, após a Alemanha ter conquistado ou subordinado quase todos
os países europeus. Ładoś comentou esta situação num telegrama enviado para
o Ministério dos Negócios Estrangeiros:

‘Em 1942 a legação da República da Polónia em Berna é praticamente


a única missão localizada no Continente Europeu, com exceção da
Península Escandinava e Pireneia, que consegue funcionar e existir em

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condições normais. As missões na França – ilegais, a Embaixada no
Vaticano – fechada nos muros. O âmbito das atividades da legação
aumentou significativamente. A missão em Berna tornou-se na
realidade a Embaixada da Polónia para todo o Continente Europeu.’3

De facto, fora de Berna em meados da guerra, na Europa funcionavam


apenas duas embaixadas polacas – em Londres e no Vaticano, e três legações –
em Lisboa, Madrid e Estocolmo.
A missão diplomática liderada por Ładoś tornou-se, para o governo
polaco no exílio, um elo central na cadeia de transmissão de informações,
correspondência e meios financeiros destinados a grande parte dos refugiados
polacos, na sua maioria de nacionalidade judaica nos Estados satélites ou
conquistados pela Alemanha. Era através da legação em Berna que chegava a
ajuda para os destinatários de apoio na própria Suíça, mas também na Hungria,
Roménia, Jugoslávia, França, Grécia, Itália, como também nos países fora da
Europa, como era o caso do Japão e China. O facto de que a legação podia
cooperar com a Cruz Vermelha Internacional sediada em Genebra, junto da qual
foi acreditado Stanisław Albrecht Radziwiłł na qualidade de representante da
Cruz Vermelha Polaca, desempenhou um papel importante.
No primeiro período da guerra, só na Suíça, o apoio consular abrangeu
uns milhares de cidadãos polacos, na sua maioria de origem judaica. Em junho
de 1940, após a derrota da França, sob a tutela da missão polaca ficou um novo
e significante grupo de polacos, nomeadamente soldados e oficiais da 2ª. Divisão
de Atiradores de Infantaria, uma unidade das forças armadas polacas formada
na França após a eclosão da Guerra que participou na campanha francesa em
1940. Face à perda de hipótese de continuar a batalha, a maioria da formação

3
Atos da legação da República da Polónia em Berna nos anos 1939-1945, Arquivo
de Atos Novo, Varsóvia, ref. 317.

141
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polaca atravessou a fronteira suíça no dia 19 de junho de 1940 e ficou internada.
Ładoś e a legação em Berna organizava para cerca de 12 mil soldados e oficiais,
atividades educacionais e formações profissionais durante todo o período da
Guerra.
Era por Berna que transitavam informações e dinheiro destinados para
o Comité de Cidadãos que cuidava dos refugiados polacos na Hungria que, à
data de setembro de 1939 eram cerca de 50 mil cidadãos naquele país. Em março
de 1944 continuavam cerca de 6 mil pessoas. A maioria era constituída por
judeus que conseguiram fugir da Polónia sob ocupação. Os telegramas e meios
financeiros provenientes das verbas do governo polaco em Londres e das
instituições judaicas mundiais eram transmitidos pela legação em Berna aos
responsáveis pelos trabalhos das organizações polacas na Hungria.
Durante as operações militares em setembro de 1939, cerca de 20 mil
civis polacos e cerca de 30 mil soldados do Exército Polaco encontravam-se na
Roménia. Foram detidos em vários campos para internados e até o ano de 1940
permaneciam sob tutela da Embaixada polaca em Bucareste. Quando esta teve
de ser encerrada sob pressão alemã, as informações e meios financeiros
destinados para os cidadãos polacos passaram a ser enviados da legação polaca
em Berna por intermédio da legação suíça na Roménia e através dos canais da
Cruz Vermelha Polaca. O mesmo papel foi desempenhado pela legação de Ładoś
perante os refugiados polacos permanecentes no território jugoslavo. Aqui,
após o ataque da Alemanha e o encerramento da legação polaca em Belgrado no
ano de 1941, a missão polaca na Suíça passou a ser um intermediário na ação de
ajuda polaca destinada aos Balcãs, em cooperação com o supramencionado
Comité de Cidadãos na Hungria.
A ação de auxílio aos cidadãos polacos na França constituiu um vasto
capítulo da história da missão polaca na Suíça. Após a derrota de França no
seguimento do confronto com a Alemanha em maio e junho de 1940, a

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 142


Embaixada da Polónia em Paris e os Consulados em Lille e Estrasburgo
deixaram de funcionar e as missões na chamada Faixa de Vichy foram
rapidamente transformadas em Bureaus Polacos e perderam múltiplas
competências consulares. Um grande grupo de refugiados polacos, sobretudo
judeus, ficou em perigo, tornando-se alvo de repressões alemãs de caráter racial
no território ocupado pelo III Reich e objeto de assédio por parte das
autoridades de Vichy no Sul da França. Na situação ocorrida, a legação em
Berna iniciou uma ação de conceder aos cidadãos polacos na França novos
documentos de passaporte, que possibilitariam a sua saída para a Suíça. Após a
ocupação do território de Vichy pela Wehrmacht, um grupo cada vez mais
numeroso de fugitivos, sobretudo judeus, chegava à Suíça ilegalmente e sem
meios para viver, ficando assim sob a tutela de Ładoś e dos seus funcionários.
Até ao final de 1944, apesar das restrições e limitações impostas pelas
autoridades suíças, chegaram da França pelas fronteiras oficialmente fechadas
cerca de 6 mil judeus que se declaravam serem cidadãos polacos e que careciam
da tutela da missão polaca em Berna.
Ładoś, instruído pelo MNE polaco em Londres, desenvolvia também
esforços em prol de melhorar a situação dos refugiados polacos na Grécia, onde
as missões diplomáticas da República da Polónia foram encerradas em abril de
1941. A legação em Berna empenhava-se em providenciar o auxílio aos cidadãos
polacos de nacionalidade judaica internados na Ilha de Rodes e suportava os
esforços para que fosse concedida à Suíça a tutela sobre os interesses polacos na
Itália.
As medidas tomadas pela legação a favor dos cidadãos polacos
excediam as fronteiras da Europa. O contato direto das instituições bancárias
suíças com alcance mundial facilitou à missão polaca a transmissão de meios
financeiros para países tão distantes como o Japão ou a China. Os destinatários
desta ajuda foram grupos de judeus polacos, que na primeira fase da Guerra

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 143


fugiram pelo território da União Soviética até ao Extremo Oriente perante o
perigo alemão. Entre 2 a 6 mil refugiados polacos receberam assim asilo no
Japão. Ali ficaram sob a tutela da Embaixada polaca em Tóquio, liderada pelo
Embaixador Tadeusz Romer. A missão terminou o seu funcionamento após
rutura das relações diplomáticas polaco-japonesas que teve lugar no Outono de
1941. Até à data de adesão dos Estados Unidos da América (EUA) à Guerra em
1941, os enclaves de fugitivos judeus no Japão podiam contar com o apoio do
JOINT americano. Quando, no seguimento do ataque a Pearl Harbour, o fluxo
direto de financiamento dos Estados Unidos para o Japão foi suspenso, os
refugiados da Polónia, em particular os que ficavam em condições dramáticas,
no gueto controlado pelo Japão em Xangai, começaram a usufruir dos fundos
do governo polaco enviados pela legação em Berna por via do Banco Nacional
Suíço. De forma semelhante, por intermédio da Cruz Vermelha Polaca, a
legação polaca na Suíça transferia os meios para a colónia polaca em Harbin na
Manchúria.

Passaportes sul-americanos e a operação ilegal de salvação dos judeus


As atividades da legação dirigida por Ładoś supra descritas, inseriam-
se nos quadros legais da atividade diplomática-consular. Todavia, perante o
perigo de morte que enfrentavam os judeus no território da Polónia ocupada,
Aleksander Ładoś e os seus colaboradores optaram por ir além das normas e
princípios de funcionamento de uma missão diplomática. Antes da Guerra no
território Polaco habitavam cerca de 3,5 milhões de judeus (10% da população
total) formando o conjunto mais numeroso de crentes de judaísmo na Europa e
a segunda maior – além dos EUA – comunidade judaica no mundo. Apenas
alguns deles conseguiram sair da Polónia na onda de refugiados de setembro.
Nos territórios ocupados pelo III Reich, os membros da sociedade judaica,
definida de acordo com os critérios raciais de Nuremberga, foram privados dos

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 144


seus direitos sociais e civis, forçados a viver em guetos, sujeitos a penas severas
pela violação de disposições discriminatórias e diariamente expostos à ameaça
de morte. Desde o ano de 1941 que foram sujeitos à exterminação sistemática,
incluída no plano nazi de 1942 de exterminação total dos judeus europeus. Cerca
de 3 milhões de cidadãos polacos de origem judaica nos campos e guetos.
Já no ano de 1940, na Polónia sob ocupação, mas também nas
comunidades judaicas internacionais, circulavam notícias que indicavam que os
judeus que possuíssem nacionalidades dos países neutros poderiam contar com
um tratamento mais favorável por parte dos alemães. Essas pessoas foram
dispensadas por algum tempo da obrigação de cumprir determinadas
disposições administrativas, como por exemplo o uso das braçadeiras com a
estrela de David ou do trabalho forçado. Na ‘Revista Judaica’ que saía no
Governo Geral, apareciam referências à possibilidade de saída para o Brasil,
Chile ou Xangai. Desta possibilidade poderiam aproveitar as pessoas que
dispusessem de passaportes que comprovavam outra nacionalidade. Em
Varsóvia e Cracóvia foram criados bureaus de intermediação em contatos entre
os familiares no estrangeiro e as pessoas que queriam sair da Polónia.
Notícias sobre a possibilidade de salvar a vida de judeus, vítimas de
repressão e notícias sobre o funcionamento do “mercado negro” de passaportes,
suscitaram aos diplomatas polacos a ideia de um procedimento que poderia
ajudar a salvar um maior número de pessoas em risco. O objetivo desta operação
seria a organização de uma produção ilegal de passaportes que comprovassem
a nacionalidade de países da América Latina, destinados aos judeus na Polónia
sob ocupação. A emissão destes documentos ficou a cargo de um grupo
infiltrado – pontualmente já nos primeiros anos da Guerra, mas com alcance
maior e organizado apenas nos anos 1942-1943 – que integrava, além do chefe
de missão, Aleksander Ładoś, também o

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Primeiro Secretário e depois o Conselheiro da legação, Stefan
Ryniewicz, o vice-cônsul, Konstanty Rokicki, o adido Juliusz Kühl e
representantes da comunidade judaica na Suíça – o advogado Abraham
Silberschein e o comerciante Chaim Eiss. 4
Para a operação foram utilizados impressos originais de passaportes
em branco, obtidos dos cônsules honorários dos países da América Central e da
América do Sul acreditados na Suíça. Inicialmente o fornecedor principal foi o
Cônsul Honorário do Paraguai, Rudolf Hügli, que mediante um devido
pagamento entregava a Kühl folhas limpas de passaporte. Rokicki era
responsável pelo preenchimento dos formulários, utilizando dados pessoais e
fotografias autênticas, fornecidas por Silberschein e Eiss. Os formulários
devidamente preenchidos voltavam a Hügli para serem por este assinados e
carimbados, e de seguida, eram feitas cópias certificadas notarialmente por ele
e autenticada a sua conformidade com os originais. As tais cópias eram depois
enviadas por Silberschein por correio aos destinatários na Polónia. Por cada
passaporte, Hügli recebia de 500 a 2000 francos suíços (para comparação – o
ordenado mensal de Ładoś na qualidade de chefe de missão era de 1800 francos).
Um método diferente foi adaptado pelos cônsules de outros países, tais
como Honduras, Bolívia, Haiti, El Salvador ou Peru, que por eles próprios
preenchiam os documentos com os dados fornecidos por Silberschein. A maioria
dos cônsules recebia dinheiro em troca dos passaportes entregues. A exceção
era El Salvador, cujo cônsul, José Castellanos Contreras, emitia passaportes

4
Kumoch, J. Grupo de Berna – diplomatas da República da Polónia ao auxílio dos
Judeus. Discurso do Embaixador da República da Polónia na Suíça dr. Jakub Kumoch do dia 4
de fevereiro de 2018. No Museu da Memória Shoah em Paris, Revista Diplomática Polaca 2
(73), 2018., ref. à vasta bibliografia, https://docplayer.pl/109300500-Grupa-bernenska-
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from-the-holocaust.html

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gratuitamente. Na Polónia os destinatários dos passaportes, cópias dos
passaportes e outros certificados e certidões que confirmavam ou prometiam
uma nacionalidade estrangeira, esperavam não ser levados pelos alemães para
os campos de concentração. Em vez disso esperavam ser colocados, como
estrangeiros, nos campos para internados.

“Grupo de Ładoś”
Sobre cada um dos membros do grupo que atribuía vistos aos
passaportes recaíam várias responsabilidades. Ładoś e Ryniewicz eram os
únicos do grupo que usufruíam de imunidade diplomática. Ładoś, na qualidade
do chefe de missão, detinha responsabilidades pelas atividades dos seus
funcionários. Ele aceitava, organizava e cobria de proteção diplomática toda a
operação ilegal de emissão de passaportes. Em virtude do seu cargo, mantinha
contatos com as autoridades suíças e os demais representantes da Confederação,
governo e os seus departamentos (ministérios), sendo da primeira linha o
departamento político, dos assuntos internos, justiça e da polícia. Informava,
sobre os progressos da operação, o governo polaco e o MNE em Londres e
colaborava com os principais representantes das comunidades judaicas nos
Estados Unidos, que por sua vez providenciavam meios para subornar os
cônsules sul-americanos. Tomou uma medida sem precedentes de disponibilizar
os meios de comunicação da legação para as necessidades das organizações
judaicas, bem como de lhes permitir a utilização de códigos criptográficos
diplomáticos polacos na sua correspondência, para assim poderem manter o
contato com os Estados Unidos. Quando em 1943 a polícia suíça detetou que a
missão polaca violava o protocolo diplomático, conseguiu de forma eficaz
encobrir o mesmo e levar ao arquivamento do processo. Já após o termo da
atividade ilegal conexa à produção de passaportes, no Verão de 1944 e a pedido
do governo polaco, tentou obter uma intervenção das autoridades suíças junto

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 147


do governo em Budapeste no âmbito das perseguições dos judeus na Hungria.
Ainda em 1945, a legação serviu de intermediária em negociações secretas
conduzidas na fase final da guerra entre as organizações americanas e Heinrich
Himmler sobre a possibilidade de comprar a libertação de judeus sobreviventes
nos campos de concentração. Após o ano de 1945, Aleksander Ładoś
permaneceu no estrangeiro mas, 15 anos depois, resolveu voltar à Polónia.
Faleceu em Varsóvia em 1963.
Nessa altura, durante todo o período da Guerra, Stefan Ryniewicz
exerceu funções de Vice-Chefe da missão e de chefe do Departamento Consular.
Nascido em Tarnopole em 1903, integrou os serviços diplomáticos polacos no
final dos anos 20. Iniciou o seu trabalho na legação em Berna e depois foi-lhe
oferecido um posto no ministério no do Ministro dos Negócios Estrangeiros e
posteriormente exerceu o cargo de chefe do departamento consular na legação
em Riga. Quando, em dezembro de 1938, ficou outra vez destacado para a
missão em Berna, conhecia muito bem as realidades e o ambiente suíço. Após a
sua chegada, e durante o primeiro ano e meio, trabalhou com o anterior chefe
de missão, o delegado Tytus Komarnicki. Se confiarmos nas palavras de outro
membro do “Grupo de Ładoś”, Juliusz Kühl, a legação já enviava passaportes
falsos para a Polónia em finais de 1939 e início de 1940, ou seja, sob a liderança
de Komarnicki: “Na altura tratava-se da possibilidade de tirar da Polónia
ocupada, via Rússia, algumas pessoas com quem nos preocupámos’5. Os
pormenores desta ação permanecem desconhecidos. Após o início da ação mais
vasta de falsificação de passaportes, Ryniewicz apoiava Ładoś de forma a
garantir proteção sobre as atividades ilegais da missão diplomática. Teve um
papel importante em convencer Heinrich Rothmund, chefe do Departamento de

5
Relatório de interrogatório de J.Kühl 18.01.1943, este e os outros atos do
processo em Schweizerisches Bundesarchiv, nº. B.23.22.Parag-OV, C 16/2032, 4320 (B)
1990/266; escolha online http://passportsforlife.pl
148

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021


Polícia em Berna, para omitir as consequências perante Abraham Silberschein,
o participante judeu da operação detido pelas autoridades suíças no Outono de
1943. Fez também tudo, embora sem efeito, para proteger de consequências
oficiais o Cônsul do Peru, José Maria Barreto que emitia os passaportes ilegais
do seu país e que – após a divulgação desta situação – foi despedido do seu cargo
pelo delegado do Peru em Berna. Ryniewicz trabalhou na legação de Berna até
ao final da Guerra. No final dos anos 40 emigrou para a França e depois para a
Argentina. Faleceu em Buenos Aires em 1988.
Era o terceiro membro do ‘Grupo de Ładoś’, o vice-Cônsul Konstanty
Rokicki, a quem competia a tarefa fundamental para toda a ação – o
preenchimento à mão de passaportes falsos para os respetivos destinatários.
Nascido em Varsóvia em 1899, foi contratado como funcionário do Ministério
dos Negócios Estrangeiros em dezembro de 1931. Exerceu as suas funções em
Minsk, Riga e Cairo, para em fevereiro de 1939 receber a nomeação para o
cargo, como funcionário contratado, na legação em Berna. Os passaportes em
branco, adquiridos de Rudolf Hügli, chegavam às mãos de Rokicki juntamente
com os dados pessoais e fotografias que deviam ser colocadas nos formulários.
De acordo com as estatísticas atuais da Embaixada da República da Polónia em
Berna, nos anos de 1942 e 1943, Rokicki preencheu deste modo pelo menos
1056 passaportes. Após a sua saída do serviço diplomático em 1945, ficou na
Suíça. Faleceu em Lucerna em 1958. Em abril de 2019 foi-lhe atribuído pelo
memorial Yad Vashem o título de Justo entre as Nações.
O membro mais novo do grupo - Juliusz Kühl – juntou-se à equipa da
legação na qualidade de funcionário contratado, já depois de Aleksander Ładoś
ter assumido a chefia da missão. Nascido em 1913 numa família de judeus
hassídicos de Sanok, em 1931 iniciou estudos de economia na Universidade de
Zurique. Na altura em que fazia a pesquisa para a sua dissertação sobre as
relações comercias suíço-polacas, manteve, a partir de 1937, contato com os

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 149


funcionários da legação em Berna. Então, aquando do Verão de 1940 foi-lhe
oferecido emprego na qualidade de funcionário contratado, entrando assim num
ambiente que já conhecia. Kühl integrou o “grupo de Ładoś” como oficial de
ligação com as organizações judaicas suíças. Participava na passagem de
dinheiro e formulários de passaportes entre o Cônsul do Paraguai, Hügli e a
legação da República da Polónia. Não sendo funcionário do quadro do MNE
não era protegido pela imunidade diplomática. Em janeiro de 1943 foi detido
pelos suíços, juntamente com Hügli, no seguimento de uma intervenção
diplomática do Cônsul Geral do Paraguai em Zurique que não aceitava a
emissão de passaportes falsos do seu país visados pelo consulado honorário em
Berna. Após a Guerra, Kühl ficou por algum tempo na Suíça, mas no final dos
anos 40 mudou-se para o Canadá, adquirindo a nacionalidade desse país. Em
1980 saiu para os Estados Unidos, onde faleceu 5 anos mais tarde6.
Além das pessoas profissionalmente ligadas à legação, Abraham
Silberschein e Chaim Eiss também desempenharam papéis importantes nas
atividades do “grupo de Ładoś”. Não eram diplomatas e Eiss nem sequer era
cidadão polaco. Mas ambos foram extremamente importantes para a operação
de salvação por intermédio de passaportes sul-americanos falsos, realizada em
colaboração com os funcionários da legação da República da Polónia.
Silberschein, que a esse apelido juntava os nomes Adolf Henryk nos documentos
da II República da Polónia, foi uma personagem bem conhecida na comunidade
política polaca antes da Guerra. Nascido em Lviv em 1882, formado em Direito
na Universidade desta cidade, desde a sua juventude teve ligações ao
movimento sionista. Em 1922 foi nomeado deputado da Câmara Baixa do
Parlamento polaco. A 9 de agosto de 1939 foi a Genebra para participar no
Congresso Sionístico. Atuando em nome do Congresso Mundial Judaico criou

6
McKinnon, M., He should be as well known as Schindler’: Documents reveal
Canadian citizen Julius Kuhl as Holocaust hero, www.theglobeandmail.com, August 7, 2017.

150
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em Berna o Relico (Relief Committee), um comité de auxílio à população judaica
afetada pela guerra. No início de 1942, após conversas com Ryniewicz e Rokicki,
Silberschein a atuar em nome da Relico tomou medidas em prol de limitar o
mercado negro de passaportes sul-americanos para os judeus em risco de vida
na Polónia ocupada. Comprava passaportes aos cônsules honorários do Peru,
Honduras e Haiti, e participava na transferência de dinheiro a favor do cônsul
honorário do Paraguai. Quando em 1943 a polícia suíça descobriu a operação de
falsificação dos passaportes, Silberschein ficou por algum tempo detido. No
interrogatório prestou declarações de como foi envolvido na operação de
falsificação de passaportes por Ryniewicz e Rokicki. Na altura, informou as
autoridades suíças que as verbas para a aquisição dos passaportes provinham de
várias fontes, entre outras, do Comité Palestiniano em Jerusalém, Congresso
Mundial Judaico de Nova Iorque, outras organizações judaicas de Nova Iorque
e Istambul, bem como de particulares dos Estados Unidos e da Suíça.
Stefan Ryniewicz atuou de forma eficaz em sua defesa perante as
autoridades suíças e por conseguinte Silberschein não sofreu nenhumas
consequências. Após o fim da guerra ficou em Genebra. Faleceu em dezembro
de 1951.
Os dados pessoais que configuravam nos documentos constituíram um
elemento indispensável na operação de passaportes. A aquisição desses dados
era da responsabilidade de Chaim Eiss, comerciante polaco-judeu de Zurique. O
membro mais velho do “grupo de Ładoś” nasceu no Sul da Polónia, em Ustrzyki
Dolne, em 1876. Desde 1900 que vivia na Suíça. Em 1912 pertenceu aos
fundadores da organização internacional dos Judeus ortodoxos Agudat Israel,
que funcionava como partido político em vários países, entre eles na Polónia.
Após a eclosão da guerra, utilizando os seus contatos nas comunidades
ortodoxas, Eiss conseguiu montar uma rede de correspondência clandestina
com guetos que se encontravam no território da Polónia sob ocupação. Isto

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 151


permitiu o contrabando de cartas, fotografias e documentos, bem comos dos
dados pessoais dos destinatários dos passaportes falsos entre a Suíça e a Polónia.
Eiss dispunha de meios financeiros significativos, pelo que financiava grande
parte dos documentos adquiridos dos cônsules dos países da América Central e
da América do Sul. Em 1943 foi interrogado pela polícia suíça no âmbito da
produção e envio de passaportes falsos para o estrangeiro. Após a intervenção
de Aleksander Ładoś, Eiss, tal como outros membros da operação de
passaportes, não sofreu nenhumas consequências jurídicas pela sua atividade.
Faleceu subitamente por enfarte em novembro de 1943.
Uma das primeiras operações de sucesso de entrega de passaportes
falsos teve lugar no Outono de 1941. Graças à nacionalidade adquirida
paraguaia, no início do ano de 1943 um grupo de judeus internados foi
transferido da Polónia para os campos de Tittmoning na Baviera e Vittel na
França. Parte deles sobreviveu até à troca por prisioneiros alemães internados
pelas tropas aliadas. A ação de produção de passaportes teve uma importância
especial após maio de 1943, quando a revolta no Gueto de Varsóvia foi
reprimida. Himmler que liderava as SS e a polícia alemã, tomou então a decisão
sobre o acelerar do extermínio de cerca de 300 mil sobreviventes judeus e da
liquidação de todos os guetos no território da Polónia. Infelizmente, muitos dos
documentos emitidos em Berna não chegaram a tempo. Já depois da liquidação
do Gueto de Varsóvia, continuava a chegar ao posto de correios na zona do
bairro judaico correspondência da Suíça com os documentos que comprovavam
a nacionalidade dos países sul-americanos de pessoas que tinham morrido
durante a revolta ou que tinham sido levadas para o campo de Treblinka.
No final do ano de 1943 a ação de produção de passaportes começou a
perecer lentamente. Por um lado, devido à morte de Chaim Eiss e, por
conseguinte, à falta de acesso aos dados pessoais dos potenciais destinatários.
Por outro lado, porque as autoridades dos países sul-americanos, avisadas por

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 152


Berlim, encerraram os seus consulados na Suíça e revogaram as competências
dos cônsules envolvidos na operação de passaportes. Em janeiro de 1944 Ładoś
notificou o MNE em Londres que a aquisição de novos passaportes se tornava
impossível. O Auswärtiges Amt alemão começou a verificar a autenticidade dos
documentos apresentados pelos judeus considerados como estrangeiros. Após a
autenticidade dos passaportes “suíços” ter sido posta em causa na Primavera de
1944, os prisioneiros judeus mantidos até a altura nos campos para internados
em Vittel e Compiègne foram transportados para Auschwitz e Bergen-Belsen.
Após vários documentos terem sido expostos, Ładoś, por várias vezes,
pediu ao MNE a intervenção junto dos governos dos países sul-americanos,
para que, face à necessidade maior, reconhecessem a validade dos passaportes
emitidos pelo “grupo de Berna” e protegessem os “seus cidadãos” das
deportações. Apesar de este pedido ter sido reforçado pela diplomacia dos
Estados Unidos e da Santa Sé, infelizmente trouxe um impacto muito limitado.
A validade dos passaportes foi reconhecida pelas autoridades do Chile e
Paraguai, mas os alemães tinham já conseguido levar os titulares dos
documentos para os campos de concentração. Aqueles que foram para
Auschwitz morreram, mas no campo de Bergen-Belsen pouco tempo antes da
libertação do campo permaneciam ainda cerca de 1100 titulares dos passaportes
do ‘grupo de Ładoś’.

Os resultados da ação de Ładoś e diplomatas polacos


O balanço exato da ação de auxílio conduzida pelos diplomatas polacos
em Berna com o uso de passaportes sul-americanos é desconhecido. Com base
em várias fontes poderemos formular várias avaliações divergentes. Em cada
um dos cerca de 1056 passaportes paraguaios escritos à mão pelo Cônsul
Konstanty Rokicki figuravam nomes de pelo menos duas pessoas. Sendo assim,
estes documentos protegeram cerca de 2100 pessoas. Além disso, foram

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 153


preparados certificados de nacionalidade, sem produção de passaportes, para
alguns milhares de judeus.
De acordo com o relatório de Silberschein datado de janeiro de 1944,
o efeito da atividade do “grupo de Berna” resultou na salvação dos campos de
extermínio alemães de cerca de 10 mil cidadãos judeus.
Segundo os dados incluídos num documento preparado no final de
julho de 1944 para o MNE polaco em Londres, foram emitidos em Berna na
totalidade cerca de 4000 passaportes destinados aos judeus polacos. Cerca de
3000 passaportes foram emitidos pelo Consulado de El Salvador, 400-500 pelo
Consulado das Honduras, 200-250 pelo Consulado do Paraguai, cerca de 100
pelo Consulado do Peru, 10-15 pelo Consulado do Haiti, 10 por cada uma das
missões da Costa Rica e Chile, e alguns pelos Consulados da Venezuela,
Nicarágua e Equador. Os investigadores colocam a hipótese de que os dados
indicados poderão não refletir a realidade, uma vez que até agora já foram
encontrados cerca de 1000 passaportes só paraguaios7.
De acordo com os dados recolhidos atualmente pelo Instituto de
Pilecki, na lista de pessoas que receberam passaportes ou certificados de
comprovativo de nacionalidade emitidos pelo “grupo de Ładoś” figuram 2992
nomes (dados de investigação para janeiro de 2020)8. Os dados recolhidos
incluem igualmente 275 membros de famílias sem nomes indicados. Na
avaliação do Instituto, ainda continuam desconhecidos nomes de 5 a 7 mil
titulares dos passaportes falsos. Quantos judeus foram salvos pelos documentos
da Suíça? Com base nas informações estabelecidas pela Embaixada da República
da Polónia em Berna, na lista de pessoas salvas da morte constam 330 nomes

7
Kumoch, J., The Polish Holocaust hero you’ve never heard of, www.
timesofisrael.com, May 2, 2019.
8
The Ładoś List. (2020) Instituto de Pilecki,
https://instytutpileckiego.pl/public/upload/articles_files/The%20Lados%20List%202020_01%
20p53_152.pdf
154

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de titulares dos passaportes paraguaios. Tendo em conta o grande número de
desconhecidos, titulares de passaportes falsos, o grupo de “paraguaios” salvos
deve ser estimado entre 700-800 pessoas. De forma semelhante podemos avaliar
o número de ‘cidadãos’ das Honduras, Haiti e outros países sul-americanos
salvos da morte. O Embaixador Jakub Kumoch, que investiga a história do
‘grupo de Ładoś’, estima que o número total de judeus efetivamente protegidos
do extermínio graças às atividades dos diplomatas polacos poderá ter atingido
até duas mil pessoas.

* * *
Ao liderar a legação em Berna nos anos 1940-1954 Aleksander Ładoś
escreveu uma das mais louváveis páginas na história da diplomacia polaca nos
tempos da II Guerra Mundial. Ao coordenar oficialmente as atividades da
missão que englobavam no seu âmbito inúmeros países da Europa e fora da
Europa, liderou ao mesmo tempo a ação que excedia os quadros legais da
diplomacia. Atuando em nome de valores superiores, tomou, junto com os seus
colaboradores, medidas conspiratórias de uma ação que, num país ameaçado
pelas sanções alemãs, poderia ter consequências dramáticas, tanto legais, como
políticas, pessoais e profissionais. Em janeiro de 1945 Agudat Israel enviou para
Manfred Lachs, conceituado jurista polaco, futuro Presidente do Tribunal
Internacional de Justiça em Haia, uma carta de agradecimento pela atitude dos
diplomatas polacos. No documento consta uma frase que de forma sucinta
captou o significado do “grupo de Ładoś”:
“Without their co-operation this work which has been the means
of rescuing many hundreds of Polish Jews, would not have been
achieved.”9

9
H. Goodman do M. Lachsa, 2.01.1945, Atos da legação da República da Polónia
em Berna nos anos 1939-1945, Arquivo de Atos Novos, Varsóvia, AAN_2_495_0_562_0004.

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Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 156
Tapani Brotherus: o diplomata finlandês que
desafiou o regime de Pinochet1
Joana Araújo Lopes*

Resumo: O diplomata finlandês Tapani Brotherus (1938-) estava colocado no


Chile quando, a 11 de setembro de1973, a Junta Militar bombardeia o Palácio
de La Moneda, derrubando o governo socialista de Salvador Allende. O período
de dezassete anos que se segue é considerado um dos mais violentos da história
da América Latina. Tapani Brotherus, contando com a ajuda da sua esposa, Lysa
Brotherus, e de colegas diplomatas, empreendeu um plano que permitiu salvar
pelo menos 2.500 pessoas do regime de Pinochet. Este artigo descreve e reflete
sobre a história inspiradora de um diplomata que, em defesa intransigente dos
direitos humanos, honrou a dignidade humana e influenciou a política externa
finlandesa ao conseguir o acolhimento de refugiados no seu país, sem
precedentes até então.

Palavras-chave: Tapani Brotherus; Lysa Brotherus; Pinochet; Diplomacia;


Chile; Finlândia

1. Introdução

“Diplomacy is human, not just cerebral”


Sir. Peter Marshall, diplomata britânico (1999)

De acordo com a Convenção de Viena sobre as Relações Diplomáticas


(1961), o diplomata – juridicamente designado por “agente diplomático” – é
“tanto o chefe de missão como qualquer membro do pessoal diplomático da

1
"Especial agradecimento ao Embaixador do Chile na Finlândia, Rodrigo Olsen,
pela amável disponibilidade em responder ao nosso pedido; ao Ministério dos Negócios
Estrangeiros da Finlândia pelos esclarecimentos prestados; e à Universidade de Helsínquia,
nomeadamente a Maija Roitto, Assistente Executiva da Reitora, e a Pia Vuorikoski,
Historiadora, pela amável disponibilidade em ratificar questões históricas.
*
Doutoranda em História, Estudos de Segurança e Defesa no Iscte e bolseira da
FCT. Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Nova de Lisboa
157
(2017). Os seus principais interesses de investigação incidem sobre a segurança internacional,
o terrorismo, o contraterrorismo e a diplomacia.

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021


missão” (artigo 1º). O diplomata tem como função primordial executar a política
externa, representar o Estado acreditante perante o Estado acreditador,
defendendo os valores e interesses nacionais nos termos do Direito
Internacional. Segundo Visconde de Figanière, o enviado Extraordinário e
Ministro Plenipotenciário em São Petersburgo (1870-1876), um dos princípios
fundamentais da diplomacia é “ser leal”. Em Quatro Regras da Diplomacia
(1881), o autor ilustra o dever de lealdade com referências a figuras da história
portuguesa, como o Duque de Palmela2, “quem mais brilhou pela lealdade de
caracter” (Figanière, 1881, p. 43). “Ser leal” é agir respeitando os interesses do
Estado, atuando sob uma postura sincera, “sem enganos”, na sua expressão.
Nicolson (1988) enumera sete qualidades que sintetizam a maioria das
características reiteradas nos estudos da diplomacia: verdade, precisão, calma,
afabilidade, paciência, humildade e lealdade (apud Shale, 2006).
Como gerir o dever de lealdade perante um contexto que impele à
execução de ações contrárias às ordens superiores? Esta questão ilustra um
conflito experienciado por vários diplomatas que, em prol do humanismo, ética
e integridade, souberam responder ao dilema sem hesitação, desafiando as
ordens com a coragem da desobediência. Em Portugal, o Cônsul Aristides de
Sousa Mendes é o exemplo ex-libris. Imortalizado “Justo entre as Nações” no
Memorial do Holocausto em Jerusalém (Yad Vashem) – que perpetua a honra
de mais de 25 mil nomes de pessoas que fizeram do humanismo a arma principal
contra o regime nazi – Aristides de Sousa Mendes contrariou as instruções do

2
I Duque de Palmela (1781-1850) - Nascido Pedro de Sousa Holstein, foi Ministro
Plenipotenciário no Congresso de Viena (1814-1815). “Iniciou a sua carreira diplomática em
1802, como Conselheiro da Embaixada em Roma”. O seu nome “surge associado a algumas
rebeliões políticas”, tendo sido preso em 1824 “por apoiar as revoltas da Vila-Francada e da
Abrilada” (Portal Diplomático, s/data; AR, s/data), as contrarrevoluções da Revolução Liberal
de 1820. 158

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Governo português, expressas na Circular n.º143 do Ministério dos Negócios
Estrangeiros (MNE), e salvou cerca de 30 mil pessoas, judeus e outros
perseguidos, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Destaca-se ainda
o papel louvável de Carlos Sampaio Garrido, Embaixador de Portugal na
Hungria (também nomeado “Justo”) e de Carlos Teixeira Branquinho,
Encarregado de Negócios em Budapeste4. Estima-se que os diplomatas
portugueses salvaram entre 60 mil a 80 mil vidas5 (Lusa, 2020a). Em junho de
2021, no âmbito do “Projeto Nunca Esquecer” e da publicação de três obras da
Imprensa Nacional Casa da Moeda sobre os heróis e as vítimas do Nazismo, o
Ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, enfatizou: “Todos
os portugueses que salvaram vidas do Holocausto devem ser considerados como
exemplos de dignidade e valentia” (Ferreira, 2021).
Tapani Brotherus, o diplomata finlandês protagonista da história deste
artigo, chega a Santiago do Chile em 1971 enquanto Encarregado de Negócios
da Finlândia. Em 1973, quando irrompe o golpe de Estado, Tapani Brotherus e
a sua esposa Lysa Brotherus, contando com a ajuda de colegas diplomatas,
iniciam um plano que permitiu salvar pelo menos 2.500 pessoas do regime de

3
A Circular n.º 14 - enviada aos postos no estrangeiro a 11 novembro 1939 - tinha
como finalidade “prevenir quanto possível abusos e práticas de facilidades que a PVDE
[Polícia de Vigilância e Defesa do Estado] entendesse inconvenientes ou perigosas” (iD, 2013).
Estabelece os casos excluídos da concessão de vistos sem aprovação prévia da PVDE,
nomeadamente os perseguidos pelo regime nazi, tais como polacos, judeus, russos e apátridas
(ANTT, 2021; iD, 2013).
4
Segundo a Embaixadora Manuela Franco (2018) “Teixeira Branquinho não está
nomeado como Justo” por “falta dos necessários documentos”. Porém a documentação
diplomática portuguesa atesta (…) que a sua ação [em 1944] foi absolutamente crucial”. Desde
2015, o Yad Vashem conta com o nome de quatro “Justos” portugueses: os diplomatas
Aristides e Sampaio Garrido; o emigrante português em França, José Brito Mendes; e o Padre
159
Joaquim Carreira, vice-reitor e reitor do Colégio Pontifício Português de Roma (Coelho, 2015).
Outros, não incluídos, também tiveram um papel importante como José Augusto Magalhães,
Ministro Plenipotenciário em Marselha.
5
“Os diplomatas portugueses terão salvado entre 60.000 a 80.000 refugiados do
regime nazi, maioritariamente judeus, durante o período da II Guerra Mundial, estimou a
historiadora Irene Flunser Pimentel em entrevista à agência Lusa.” (Lusa, 2020a).

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021


Pinochet. Tal como Aristides, Tapani Brotherus contrariou as instruções do seu
governo, agindo “consoante os seus imperativos de consciência e a generosidade
do seu carácter” (iD, 2013). Por isso, no intuito de enaltecer a sua ação
humanitária, e por constituir um caso relativamente desconhecido do público, a
sua história merece a devida atenção. Este artigo divide-se em duas partes: a
primeira dedica-se ao enquadramento histórico sobre a América Latina, com
particular atenção para a década de 1970 e a erupção do golpe de Pinochet
(1973); e a segunda elabora o retrato biográfico do diplomata, evidenciando o
seu contributo solidário, em desafio a um dos principais conflitos da História do
século XX.

2. A América Latina e o golpe de estado de Pinochet (1973)


Na obra literária “As Veias Abertas da América Latina” (1971), o
escritor uruguaio Eduardo Galeano analisa a história da região, evidenciando o
impacto da colonização espanhola; as décadas de subdesenvolvimento e o abuso
perpetrado nos regimes ditatoriais, explorados pelas potências ocidentais como
os Estados Unidos da América (EUA). É, pois, “a região das veias abertas: Para
cada um se atribuiu uma função, sempre em benefício do desenvolvimento da
metrópole estrangeira do momento, e se tornou infinita a cadeia de sucessivas
dependências” (Galeano [1971], 2010, pp. 7-8). As fragilidades dos sistemas
económicos e políticos, aliados à criminalidade organizada, ao narcotráfico e às
desigualdades sociais, proporcionaram a expansão das guerrilhas, a violência e
repressão ao longo das décadas – questões que se mantêm na atualidade como
problemas endémicos da América Latina (Vaïsse, 2009; Haass, 2020).
Se, na Europa, a década de 1970 assinala uma era de aproximação e
desanuviamento na Guerra Fria, com a emergência da détente proporcionada

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 160


pela ostpolitik do Chanceler Willy Brandt6, na América Latina o panorama
geopolítico é particularmente conflituoso entre as duas superpotências de então,
os EUA e a União Soviética (URSS). Não obstante a década atribulada de 1960
– pela proliferação de movimentos revolucionários, na sequência da revolução
de Fidel Castro (1959), e outros incidentes como a tentativa frustrada da
invasão da Baía dos Porcos (1961) e a Crise dos Mísseis de Cuba (1962) – os
anos 70 foram também agitados pela predominância de várias “guerras por
procuração” (proxy wars) que fizeram da região “um palco da competição
bipolar” (Haass, 2020). O Chile não foi exceção neste panorama, constituindo
um exemplo do argumento de Galeano: a instabilidade política e social, aliada
ao aproveitamento norte-americano do caos, desencadeou um dos períodos mais
violentos da História da América Latina.
A 4 de novembro de 1970 Salvador Allende assume a Presidência do
Chile, consagrando-se o primeiro socialista eleito democraticamente na
América Latina. No poder, implementa um conjunto de reformas
socialistas/marxistas que proporcionam um relativo crescimento económico.
Porém, a partir de 1972, o saldo económico inverte-se, deixando o Chile num
ambiente político e social instável, pautado pela escassez de recursos e
sucessivas greves, posteriormente agravado pela crise petrolífera de 1973. Em
resultado, a 30 de junho de 1973 o exército chileno leva a cabo um golpe
revolucionário (El Tanquetazo), que fracassa, mas precipita o fim do governo
democrático. A 11 de setembro de 1973, o Palácio de La Moneda (sede da
presidência), é tomado pelos militares sob bombardeamento aéreo, derrubando

6
A détente caracteriza-se pela distensão nas relações entre as superpotências,
através de um conjunto de negociações para a redução de armas nucleares e a melhoria da
comunicação diplomática. A data do seu início é imprecisa. Alguns autores, como Maurice
Vaïsse, marcam o seu começo em 1962, ano da Crise dos Mísseis de Cuba; outros, como Nick
Bisley, assinalam-no em 1969, ano da subida de Willy Brandt ao poder na República Federal
da Alemanha (RFA). A ostpolitik designa o nome da política externa de Brandt para os países
de Europa Leste, que visava promover a cooperação com a RFA, facilitando o caminho à 161
reunificação da Alemanha, concretizada em 1990.

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o governo de Allende, que se suicidou durante o golpe de Estado (BBC, 2012).
A 17 de dezembro de 1974 Augusto Pinochet (1915-2006) assume o poder,
instaurando uma ditadura que subsiste durante quase dezassete anos (1973-
1990) com base na repressão política, na tortura e no controlo coercivo da
oposição (Gehrke, 2020; Azócar, 2006). Do ponto de vista da Ciência Política, e
de acordo com Perlmutter (1980), a ditadura de Pinochet é classificada como
um “regime militar corporativo”, caracterizado pela relação próxima entre os
militares e os civis que, todavia, dispõem de um controlo político reduzido. Na
prática, a autoridade é personalizada nos militares, ou no seu líder, podendo ter
ainda o apoio de “corporações” económicas, sociais ou políticas, como a Igreja
ou sindicatos, embora sejam atores secundários no exercício do poder
(Perlmutter, 1980, p. 105). Destacam-se dois aspetos marcantes desta ditadura,
um de ordem externa e outro de ordem interna.
A nível externo, evidencia-se o apoio dos Estados Unidos à instauração
do regime de Pinochet. A documentação do Arquivo de Segurança Nacional dos
EUA (NSA), desclassificada em 2020, confirma que a administração de Richard
Nixon (1969-1974) trabalhou ativamente para derrubar o governo de Allende.
A sua eleição democrática representou uma “ameaça para os interesses norte-
americanos” pelo que, considerando o êxito da revolução cubana e temendo um
efeito de spillover na região, o país encetou uma “política de desestabilização” no
Chile, que se traduziu na implementação de várias “ações cobertas” a fim de
proporcionar o golpe de estado (NSA, 2020). Sob proposta de Henry Kissinger,
o Conselheiro de Segurança Nacional, os Estados Unidos adotaram a
“estratégia modus vivendi”, sob a qual mantinham publicamente uma postura
“correta” com o regime de Allende e, secretamente, apoiavam a oposição política
(NSA, 2020). Contando com o apoio do Brasil e da Argentina, os métodos para
a desestabilização passaram pelo financiamento de grupos da oposição (do
centro à direita); campanhas de desinformação; tentativa de assassinato do

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 162


General René Schneider, Chefe das Forças Armadas no governo de Allende
(“Projeto FUBELT”); à implementação de medidas para prejudicar a economia
socialista, como o “cancelamento dos créditos das exportações; e a manipulação
do valor do cobre nos mercados internacionais (o principal produto de
exportação do Chile)” (El País, 2020; NSA, 2020).
Em 1974, um ano depois do golpe, Seymour Hersh, jornalista veterano
do The New York Times, descobriu os planos da superpotência e denunciou-os
em primeira página, o que gerou “um escândalo a nível nacional e internacional”
(NSA, 2020). A administração sucessora, liderada por Gerald R. Ford (1974-
1977), apressou-se a negar as evidências, argumentando que o seu intuito era
“preservar a democracia”. Henry Kissinger, que manteve a posição ocupada no
governo anterior, corroborou afirmando que os Estados Unidos “de nada
sabiam” e que a preocupação central era a proteção da liberdade de oposição
política nas eleições de 1976. A interferência norte-americana na política chilena
expressou-se também através do apoio indireto à “Operação Condor” (1975),
uma aliança secreta entre as ditaduras do Brasil, Argentina, Chile, Uruguai,
Paraguai e Bolívia, criada para perseguir e torturar todos os opositores dos
regimes militares, comunistas e socialistas7. Sabe-se ainda que existiam planos
para a expansão das suas operações, fora da América Latina, que incluíam países
como a França e Portugal, este último elogiado pela embaixada norte-
americana em Santiago pelo reconhecimento oficial do regime militar. Kissinger
opôs-se, mas nada foi feito e as atividades prosseguiram. Suspeita-se que o
assassinato do diplomata Orlando Letelier, em Washington (1976), tenha sido
provocado pelo Condor. Foi Embaixador do Chile nos EUA e um dos opositores
ao regime de Pinochet (Anunciação, 1999; Dinges, 2004).

7
“Military leaders who carried out the assassinations and mass murders looked to
the United States for technical assistance and strategic leadership” (Dinges, 2004, p. 16).

163
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A nível interno, salientam-se as graves violações dos direitos humanos.
Milhares de indivíduos foram executados, torturados, forçados ao exílio e
outros dados como “desaparecidos”. Segundo a Comisión Presidencial Asesora
para la Calificación de Detenidos Desaparecidos, Ejecutados Políticos y
Víctimas de Prisión Política y Tortura (Comisión Valech)8 (2011), estima-se que
o regime de Pinochet tenha vitimado 32.452 pessoas9. Um estudo de Freire et
al (2017, pp. 9-10) atesta que “a maioria dos atos de violência ocorreu nos
primeiros dois meses após o golpe de Estado”, tendo sido perpetrados pela
“Caravana da Morte” (Caravana de la Muerte), um grupo de paramilitares
criado em 1973 para perseguir, torturar e executar os opositores do regime. Só
no mês de outubro contabilizaram-se 504 incidentes e 317 vítimas mortais. Com
o mesmo propósito, de deter e torturar dissidentes, Pinochet edificou “centros
de detenção”, como ilustra o caso paradigmático do Estádio Nacional do Chile,
classificado como um “campo de concentração e tortura” pela Biblioteca
Nacional chilena: “Os detidos encontravam-se amontoados, sendo sujeitos a
choques elétricos e torturas psicológicas” (Memoria Chilena, s/data). Entre os
detidos, regista-se o nome do Brigadeiro Alberto Bachelet (1923-1974), pai da
atual Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle
Bachelet (Cortázar, 2019). Consideradas “troféus de guerra” (Rocío, 2019), as
mulheres perseguidas foram sujeitas a várias atrocidades desde violações
sexuais individuais e coletivas, incluindo a grávidas, a outras agressões físicas e
psicológicas que incluíram a introdução de objetos estranhos no corpo; a injeção

8
A “Comisión Valech” reúne a “Comisión de Prisión Política y Tortura (Valech I)”
e a “Comisión Asesora para la calificación de Detenidos Desaparecidos, Ejecutados Políticos y
Víctimas de Prisión Política y Tortura (Valech II)”. Estas Comissões estão sob dependência do
Instituto Nacional de Direitos Humanos do Chile (INDH), criado em 2010 (INDH, s/data).
9
“Entre febrero y agosto de 2010, la Comisión recibió 32.453 declaraciones, de las
cuales 622 corresponden a casos de detenidos desaparecidos y ejecutados políticos y 31.831
164
fueron presentaciones de prisión política y tortura” (INDH, 2011, p. 15).

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de drogas; queimaduras deliberadas ou o testemunho da violência perpetrada
aos seus familiares.
Durante o mandato do Secretário-Geral Kurt Waldheim (1972-1981),
vários órgãos da Organização das Nações Unidas (ONU) reiteraram o repúdio
a todas as formas de tortura, expressando “profunda preocupação” com “as
constantes violações de direitos humanos” no Chile: por exemplo, a resolução
da Assembleia-Geral A/RES/3219 (XXIX) (1974) apelou à cessação da
violência; à libertação de prisioneiros e ao estrito cumprimento dos princípios
da Declaração Universal (1948) (AGNU, 1974). Outras figuras se destacaram
na condenação da violência, como o Cardeal Raúl Silva Henriquez (1907-1999)
(Aguilar, 2003); ou o cineasta e ativista Miguel Littín que, interdito de entrar
no seu país, filmou clandestinamente durante seis semanas no território.
Contado por Gabriel García Márquez em A Aventura de Miguel Littín
Clandestino no Chile (1986), é um retrato de um país ferido, injustiçado e
saudoso de Allende.

3. Tapani Brotherus: o retrato de um diplomata invisível


Nascido a 12 de junho de 1938 em Copenhaga, capital da Dinamarca,
Tapani Kaarle Heikinpoika Brotherus foi diplomata finlandês no ativo entre
1964 e 2003. Educado no seio de uma família cultural, é filho de Karl Henrik
Brotherus (1909-1985), diplomata e jornalista10; e neto de Robert K. R.
Brotherus (1880-1949), antigo Assistant of Consistory da Universidade de
Helsínquia11. A profissão da sua mãe, Katri Liisa Ignatius (1911-1996), é

10
Informação gentilmente confirmada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros da
Finlândia. O diplomata era conhecido pelo nome de Heikki Brotherus.
11
Informação gentilmente confirmada pela Historiadora da Universidade de
Helsínquia, Sra. Pia Vuorikoski: “Robert (K. R.) Brotherus got a post as an Assistant of
Consistory in 1902 (until 1924). Consistory was a highest decision-making organ in the
university and constituted of professors, a rector as a chairman. Assistant’s role was to help the
secretary with different administrative tasks including keeping the minutes of the Consistory 165
and also help the notary in the finance section of the university”.

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desconhecida, mas sabe-se que casou com Karl em 1935, com quem teve quatro
filhos: Karen; Tapani; Matti e Heikki Brotherus (Geneanet). Em 1964, aos 26
anos, Tapani Brotherus entrou na carreira diplomática e, até ao ano da reforma,
em 2003, passou por países como a Etiópia (Adis Abeba), Estados Unidos da
América (Nova Iorque), Chile (Santiago), Noruega (Oslo), Irão (Teerão), África
do Sul (Pretória) e Grécia (Atenas) (Lais, 2020; Finland Abroad, 2019). Em
Santiago, o diplomata empreende um plano que permite resgatar pelo menos
2500 chilenos. Como se desenvolveu o processo de acolhimento e resgate?

• O golpe de Estado e o início do plano de acolhimento


Em 1971, aos 33 anos, Tapani Brotherus é colocado em Santiago do
Chile numa época em que a Finlândia não dispunha de embaixada naquele país.
Até 1991, ano da inauguração da primeira Embaixada da Finlândia em Santiago
– com uma Embaixadora residente, Maija Lähteenmäki – a representação
diplomática era assegurada desde Buenos Aires, na Argentina. Fluente em
espanhol, Tapani Brotherus é designado como encarregado de negócios da
Finlândia para o Chile, tendo como principal missão gerir as relações
económicas e comerciais entre os dois países, nomeadamente no âmbito da
indústria mineira e da madeira, função que desempenha até 1976 (Finland
Abroad, 2019; Punto Nórdico, 2019). O jovem diplomata vivia na residência
diplomática finlandesa com a sua esposa, Lysa Brotherus, e os seus filhos, Tina
e Tomi. Em 1972, um ano depois da chegada ao país, os Brotherus recebiam
deputados finlandeses na residência, incluindo a comunista Hertta Kussinen
(1904-1974) – a segunda mulher no cargo de Ministra no governo finlandês da
década de 1940 – e Hortensia Bussi, esposa de Salvador Allende, acompanhada
pelos guarda-costas do Presidente (Finnish Gov., s/data; Jara, 2018).
Com o 11 de setembro de 1973 as suas vidas alteram-se
significativamente, sendo este o momento decisivo para o início de uma história

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 166


envolta em violência, mas pautada pela solidariedade e diversas negociações.
Tapani e Lysa Brotherus foram surpreendidos com o golpe de Estado, uma vez
que se sentiam seguros no país: recordando uma primeira visita familiar ao Chile
em 1963, Lysa Brotherus referiu que se sentiu satisfeita com a mudança, e feliz
por viver num “país pacífico”. Não obstante, conta que, “meses antes” do golpe,
“suspeitou que algo pudesse acontecer” pois “foram interpelados por militares”
durante um concerto de Víctor Jara. Mas, “nunca imaginou algo assim”
[referindo-se ao bombardeamento que, aliás, testemunharam desde a
residência] (Vuelan las Plumas, 2014; CGTN America, 2018).
Os militares perseguiram todos os que trabalhavam com Allende ou
que tinham ligação à esquerda política (Jara, 2018), pelo que a procura de auxílio
foi imediata. Dois dias depois do golpe, a 13 de setembro, os Brotherus recebem
a visita inesperada de Guillermo Pavez, o Diretor Económico do Ministério dos
Negócios Estrangeiros do Chile (1972-1973), personalidade conhecida de
Tapani Brotherus.

“There was a guy from the Chilean Foreign Ministry who came
– I think in the second day – knocking on the door saying that
his house had been burned down and the neighbours are going
to lynch him and can he stay for a night or two, I said ‘no
problem’.” Tapani Brotherus (CGTN America, 2018).

Nos dias seguintes, surgiram vários pedidos de asilo de forma


inusitada: Lysa Brotherus conta que 30 pessoas saltaram a cerca da residência,

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 167


desde desconhecidos, passando por deputados aos guarda-costas presentes na
receção do ano anterior12 (Jara, 2018; Goñi, 2014).

“Yo estaba almorzando con mi marido cuando vi que atrás de la


piscina y el jardín, aparecían bolsas, luego cabezas, después
personas y armas. 30 personas fueron las que saltaron, entre
ellos guardaespaldas de Salvador Allende. Yo no sé cómo
pudieron llegar a nuestra casa porque las calles estaban rodeadas
de tanques.” (Vuelan las Plumas, 2014).

"Durante algum tempo, todas as manhãs, havia cerca de dez novas


pessoas à espera no nosso quintal", recorda Lysa Brotherus. Tapani Brotherus
informou o seu governo da situação, mas “o Secretário-Geral [do MNE
finlandês] nunca respondeu” (CGTN America, 2018). Durante a Guerra Fria,
o governo finlandês mantinha uma posição neutral, uma estratégia calculada
não só pela vizinhança com a União Soviética, mas também pelo propósito em
aceder aos mercados europeus (Idem). Tapani Brotherus reconheceu a
dificuldade: se, por um lado, o acolhimento de refugiados poderia agradar aos
soviéticos, por outro poderia desencadear animosidades no Ocidente.
Tapani Brotherus explica que a decisão de acolher os perseguidos na
residência diplomática foi uma “disposição neutral” de ambas as partes, não
tendo existido uma conversa sobre o tema entre o casal. “Se os tivéssemos
deixado na rua eram alvejados!”, acrescenta a mulher (Jara, 2018). Além da
guarida, o plano de apoio centrou-se na prestação de necessidades básicas, como
a alimentação. Tapani Brotherus solicitou um envio de carne da Argentina, que

12
Exemplos: os deputados socialistas Fidelma Allende (1932-) e Luis Guastavino
(1931-); Eduardo Rojas, vice-presidente da CUT (Central Unitaria de Trabajadores do Chile,
1970-1973); e Francisco Miguel Argandoña, guarda-costas de Allende (Jara, 2018).
168

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021


chegou por mala diplomática, mas assegura que foi a sua mulher quem teve um
papel fundamental na “manutenção da harmonia dentro de casa”, de tal forma
que os refugiados pensavam que “existia um serviço de hotel”: Lysa Brotherus
utilizou os seus contactos com restaurantes e clubes sociais para conseguir
produtos alimentares e higiénicos; fez visitas semanais a mercados (ex. La Vega
Central); viajou de carro de Santiago até à Argentina, à cidade fronteira de
Mendoza, para comprar comida (o que corresponde a uma distância de 363km
e a um tempo estimado de 5h42, atualmente); bem como organizou planos de
distribuição de tarefas domésticas (i.e. turnos para cozinhar; limpar as áreas
comuns; etc.) (adaptado, Jara, 2018; Carrera, 2020). Algumas noites foram
marcadas pelo conflito, desencadeado quer pelo isolamento, quer pelo corte de
ligações com os familiares. Muitos sofreram de crises de ansiedade, outros
ultrapassaram as adversidades cantando “músicas de resistência”. Descobriu-se
também que um dos guarda-costas de Allende acolhidos era informador do
regime de Pinochet (Galán, 2019).
Em finais de setembro de 1973, o Ministério dos Negócios
Estrangeiros finlandês enviou um conjunto de representantes ao Chile para
avaliar o decorrer das relações diplomáticas, o que implicou convidá-los para
uma receção na residência, incluindo a presença de vários jornalistas
finlandeses. Durante a receção, os refugiados foram escondidos pelas divisões
da casa e os colegas diplomatas, Esko Kautto e Ilkka Jaamala (que também
acolheu perseguidos em sua casa), asseguraram o bom trabalho desenvolvido a
nível comercial. Tapani Brotherus revela que, após o encontro, foi acusado por
alguns jornalistas “de não fazer nada pelos perseguidos e de ser um fascista"
(Krohn, 2019; Himberg, 2019).

• Da guarida à fuga do Chile: as negociações políticas

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 169


Vários chilenos inscreveram-se em Embaixadas estrangeiras para
conseguir asilo, isto é, o direito à proteção em caso de violação de direitos
humanos, “em consequência da atividade exercida no Estado da sua
nacionalidade” (SEF). O Embaixador da Suécia para o Chile, Harald Edelstam
(1913-1989), – o “Cavaleiro Negro” que durante a Segunda Guerra Mundial
ajudou centenas de membros da resistência norueguesa a fugir
clandestinamente para a Suécia – foi o primeiro ocidental a iniciar o acolhimento
e resgate de refugiados chilenos. Com o aval do governo de Olaf Palme (1969-
1976), resgatou centenas de perseguidos e fez de Cuba, sitiada por militares no
dia do golpe de Estado, um protetorado da Suécia. “À exceção do seu país e de
alguns países latino-americanos, como o México, a grande maioria dos países
ocidentais recusou-se a conceder asilo” (Galán, 2019; Valdivia, 2020; Edelstam
Institute, s/data). A fim de atrair atenção mediática e visibilidade internacional,
Eldestam fez da crítica pública a sua estratégia principal, o que levou à sua
expulsão do país, sendo declarado persona non grata em dezembro de 1973
(Himberg, 2019; Carrera, 2020).
Brotherus atuou a seu lado na defesa dos perseguidos, mas esclarece
que não foi um discípulo de Edelstam pois procurou agir de forma discreta: “Yo
tuve mucha simpatía por él, una gran personalidad, pero (…) no quise que me
cortarán la carrera, quise ayudar a la máxima cantidad de asilados y no buscar
por eso publicidad” (Carrera, 2020). Perante a política neutral finlandesa, o
diplomata avaliou a possibilidade de negociar com outros países além da Suécia,
mas a procura de parceiros constituiu uma dificuldade acrescida pois, no
rescaldo do golpe, à exceção da China e da Roménia, “todos os países socialistas,
tinham cortado relações diplomáticas com o Chile” (De Frente Internacional,
2020). A República Democrática Alemã (RDA) surge então como um aliado
central: ao tornar-se “Estado Protetor” da Finlândia no Chile, permitiu que a
ajuda aos refugiados fosse alargada e facilitada. Rudolf Herz, um agente da

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 170


polícia secreta (Stasi), revela que o alargamento foi conseguido com a passagem
da gestão das propriedades da RDA em Santiago para os finlandeses. Tapani e
Lysa Brotherus providenciaram acolhimento na residência diplomática até à sua
lotação máxima que, em novembro de 1973, contava com centenas de pessoas:
“No sé cómo llegó tanta gente a mi casa, a lo mejor existía una agencia de
noticias clandestina, pero vinieron muchas personas, algunas desconocidas y
otras muy célebres, hasta que ya no pudimos alojar a más”, recorda Tapani
Brotherus (Galán, 2019). Deste modo, os refugiados foram transferidos para um
colégio alemão – agora sob a insígnia do brasão diplomático finlandês,
garantindo a sua inviolabilidade – e os diplomatas continuaram a operação de
resgate, chegando a acolher Carlos Altamirano, o Secretário-Geral do Partido
Socialista do Chile (Carrera, 2020; Jara, 2018).
O trabalho secreto em curso continuou de modo a permitir a
extração/transferência dos refugiados para outros países. A transferência
processou-se através da atribuição de “salvo-condutos de cortesia” – isto é,
autorizações de saída por razões de impossibilidade, dificuldade ou interesse
nacional (SEF) – e, por isso, estava dependente da aprovação da Junta Militar.
Os diplomatas finlandeses procuraram por vários candidatos – tendo Tapani
Brotherus visitado campos de detenção como o Estádio Nacional –, elaboraram
listas com os seus nomes e as razões de saída, e apresentaram-nas ao Chefe do
Protocolo do MNE chileno. “Muitos pedidos foram recusados, mas a grande
maioria foi aceite”, refere Tapani Brotherus (Via X, 2020; Jara, 2018). Em
entrevista, o diplomata recorda: “Contámos até mil e abrimos uma garrafa de
champanhe!” (Rinta-Tassi, 2019). Este número significava, por si só, uma
vitória diplomática, perante um contexto turbulento. Atualmente, dados
apontam que Tapani Brotherus e os seus colegas conseguiram salvar pelo
menos 2.500 pessoas, que foram acolhidas por países como a Argentina, México,

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França, Espanha, RDA (que recebeu mais de 2.000) e até a Finlândia, que
acolheu 182 refugiados.
Se, num primeiro momento, segundo Tapani Brotherus, a política
finlandesa se baseava na recusa e na “indiferença” – perante outras prioridades
como a preparação para a Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa
em Helsínquia (1973-1975) – a médio-longo prazo sofreu uma mudança em prol
dos esforços diplomáticos orientados para “assegurar que o acolhimento era do
interesse finlandês”. Assim, em finais de 1973, o MNE autorizou o asilo em caso
de risco de vida iminente; uma regra introduzida por Keijo Korhonen, um
funcionário civil do Ministério, futuro chefe da diplomacia finlandesa entre 1976
e 1977. A aceitação pelos países recetores não foi isenta de problemas, todavia.
Por exemplo, a RDA tinha preferência por figuras influentes, ativistas políticos
e comunistas e, na Finlândia, surgiram diversas críticas nos media sobre a
escolha dos refugiados pois foi dada prioridade aos nacionais chilenos - que
corriam maior perigo de vida - em detrimento de outros cidadãos a viver no
Chile (acolhidos por outros países de destino). Em 1977, um ano depois da saída
de Tapani Brotherus do país, a Finlândia encerra a delegação em Santiago,
terminando com a operação de asilo (Carrera, 2020; CGTN America, 2018;
Shot-TV, 2020; Himberg, 2019; Finland Abroad, 2019).

• Heroísmo, reconhecimento e legado


Tapani Brotherus é apelidado de “Oskar Schindler do Chile” (Carrera,
2020; Valdivia, 2020) e considerado um “herói invisível”. O diplomata sente-se
lisonjeado pelas comparações, mas considera que o heroísmo é reservado para a
“guerra” e remete as suas ações para a “burocracia”, argumentando que agiu
“apenas por respeito pelos direitos humanos”. Revela humildade lembrando o
trabalho dos seus colegas diplomatas e ainda o contributo de Pierre de
Menthon, Embaixador francês no Chile, e da sua mulher, Embaixatriz

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 172


Françoise de Menthon, que também acolheram 600 refugiados nas respetivas
Embaixada e residência diplomática (Rinta-Tassi, 2019; Via X, 2020;
Lepetitjournal, 2018; Carrera, 2020).
O reconhecimento dos seus esforços não foi imediato: surgiu somente
20 anos depois, em 1993, pela parte do Estado Chileno, com a atribuição da
condecoração mais alta do país, a Orden al Mérito, destinada a honrar cidadãos
estrangeiros pelos serviços prestados àquele Estado. O atual Embaixador do
Chile na Finlândia, Rodrigo Olsen, enfatiza:

“The story of Tapani Brotherus is one of support and solidarity


with those who once feared for their lives and reflects their
personal commitment to get involved on a human level at a key
moment in our history. We only have words of appreciation and
gratitude for their courage and strength to defend principles and
values that should govern us as a society.”
Embaixador do Chile na Finlândia, Rodrigo Olsen13

O reconhecimento finlandês surge em 2010 na singela forma de um


convite para um encontro com o Ministro dos Negócios Estrangeiros,
Alexander Stubb (2008-2013), sobre o qual Tapani Brotherus, de forma satírica,
referiu que “o único reconhecimento alguma vez concedido pelo governo
finlandês foi o café e as bolachas oferecidas durante o encontro”. Contactado
pela autora, o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Finlândia esclarece que
“Tapani Brotherus recebeu diversas condecorações finlandesas ao longo da
carreira” – “as diplomats normally do” –, mas “não recebeu qualquer
condecoração oficial pelas suas ações durante o regime militar chileno de

13
Contactado pela autora em abril de 2021. Foi nomeado para o posto referido em
2020.

173
Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021
1973”14. Em entrevista, Tapani Brotherus agradeceu o encontro, referindo que
sentiu “grande alegria” pelo gesto, mas reiterou que não se considera um “herói”
e não espera receber qualquer reconhecimento oficial pelo seu trabalho
humanitário (Galán, 2019).
É também em 2010 que o Museo de la Memoria y los Derechos
Humanos, fundado nesse ano por Michelle Bachelet em Santiago, agracia o
diplomata pelo distinto esforço humanitário; e que a Fundação privada Kansan
Sivistysrahasto (“Finnish People’s Education Foundation”) – uma organização
que trabalha junto de sindicatos e associações de trabalhadores – premeia
Tapani Brotherus com a medalha “Tammisaari 1918”, a homenagem mais
valiosa da Fundação, “pelo seu trabalho em prol dos direitos humanos,
especialmente durante o regime militar no Chile”15. É ainda neste ano que a sua
história é revelada ao grande público com a publicação do livro “Death Lists –
A ajuda secreta dos finlandeses aos perseguidos no Chile” da autoria de Heikki
Hiilamo, Professor de Sociologia. Três anos depois, em 2013, Tomi Brotherus
apresenta o documentário “Diplomacia Secreta” onde conta a história dos seus
pais desde a infância, incluindo testemunhos de sobreviventes.
Em 2015, o Ministério dos Negócios Estrangeiros do Chile organizou
uma cerimónia pública no intuito de homenagear os refugiados políticos bem
como aqueles que lhes prestaram auxílio durante a ditadura. Contactado via e-
mail, o atual Embaixador do Chile na Finlândia sublinhou algumas palavras do
discurso de abertura, referindo que, à época, “quase 200 mil chilenos se viram
forçados a deixar o país, e que mais de 50 nações e centenas de estrangeiros
estiveram envolvidos na ajuda humanitária aos cidadãos chilenos”: “Arriscando

14
Todas as informações em citação foram providenciadas pelo MNE Finlandês. O
encontro e a referência satírica de Tapani foram noticiados por vários órgãos de comunicação
(Galán, 2019; Rinta-Tassi, 2019; Via-X, 2020).
15
Informações gentilmente providenciadas pelo MNE Finlandês, que disponibilizou
também uma notícia sobre o prémio: https://www.sivistysrahasto.fi/ksr-palkitsi-tapani-
brotheruksen-ihmisoikeustyosta-vuonna-2010/ 174

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021


a sua integridade, ofereceram proteção e atuaram no sentido de providenciar
asilo político”. Citando as palavras da então Presidente Michelle Bachelet,
evidenciou: “We are paying a debt on behalf of the people of Chile, to those who
had the courage to protect the persecuted”. Nesta cerimónia, registam-se 300
homenageados, incluindo organizações internacionais, não-governamentais e
diplomatas, como Tapani Brotherus, e outras personalidades como Gilberto
Bonalumi, senador italiano, e Belela Herrera, funcionária do Alto Comissariado
das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) entre 1970 e 1980. Em 2019,
a história de Brotherus chega ao pequeno ecrã com a coprodução chilena-
finlandesa “Heróis Invisíveis”, contribuindo para a sua divulgação junto do
público internacional (Krohn, 2019; Punto Nórdico, 2019). Não obstante, a série
televisiva protagonizada pelo casal de atores Pelle e Sophia Heikkilä revelou
que a história é ainda desconhecida, tanto no Chile como na Finlândia.
A valorização e o respeito pelos direitos humanos constituem o legado
principal de Tapani Brotherus para a diplomacia, o que se refletiu não só na
ajuda imediata aos perseguidos, mas também na influência sobre a política
externa finlandesa, pois é na sequência das suas negociações que a Finlândia
acolhe os primeiros refugiados no país (Korkiasaari e Söderling, 2003). Em
2018, o jornalista correspondente da CGTN America na Finlândia, Gerry
Hadden, encontrou-se com alguns refugiados resgatados por Tapani Brotherus,
a viver no país desde então, que lhe revelaram peripécias e testemunhos
emocionados, evidentes da profunda gratidão ao diplomata. Miguel Betta,
fotógrafo reformado, afirma: “Tapani for me is the greatest man I’ve ever
known. He is beautiful. (…) He risked all not just for me but for many more.
He’s more than a father to me. He saved my family. (…). My new life is now
filled with experiences with my children, my nephews, my dog, the house. All
of this is Tapani. He’s my life”.

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 175


“Quando as ordens nos fazem desobedecer à nossa consciência;
quando nos convidam a ignorar e a contrariar princípios básicos
do humanismo, de respeito pela dignidade humana, de serviço ao
próximo, nós devemos seguir a nossa consciência qualquer que
seja o preço que tenhamos de pagar por isso.”
Augusto Santos Silva, Ministro dos Negócios Estrangeiros
(República Portuguesa, 2020)

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Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 184


O Papel de Costa Gomes no Nascimento das
Relações Diplomáticas entre Portugal e Angola,
1976*
Domingos Marcos Cúnua Alberto**

Resumo: O presente artigo tem como objetivo descrever o papel do marechal


Costa Gomes, Presidente da República Portuguesa, entre 30 de setembro de
1974 e 14 de julho de 1976, no nascimento das relações diplomáticas entre o
Estado português e o Estado angolano. Baseando-se nas atas do Conselho da
Revolução, na literatura e na imprensa da época, o artigo argumenta que, no
contexto do estabelecimento das relações oficiais entre Portugal e Angola, o
Marechal Costa Gomes desempenhou um papel importante no seio do Estado
português, juntando os partidos políticos e os membros do Conselho da
Revolução (CR) para ultrapassar o impasse político interno.

Palavras-chave: Costa Gomes; Portugal; Angola; Relações Diplomáticas;


Política Externa.

Costa Gomes, militar emprestado à política


Costa Gomes destacou-se em dois períodos distintos da História
contemporânea portuguesa. Primeiro, como militar e, mais tarde, como político.
Como militar destaca-se no cargo de Comandante Geral das Forças Armadas
Portuguesa em Angola, entre 1970 e 1972, onde, de acordo com Luís Nuno
Rodrigues, foi um dos principais estrategas da guerra colonial no Leste daquela
ex-colónia, onde o Exército Português travou a guerra de guerrilha com os três
movimentos de libertação nacional: a Frente Nacional de Libertação de Angola
(FNLA), o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e a União

*
O artigo é resultado da minha dissertação de Mestrado, apresentado no ISCTE-
Instituto Universitário de Lisboa, em 2016, com o título: “O Debate Político Português que
Conduziu ao Reconhecimento do Governo de Angola Formado pelo MPLA, 1975-1976”.
**
Doutorando em História Moderna e Contemporânea, especialidade em Defesa e
Relações Internacionais, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa; Investigador integrado não
doutorado do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE- IUL. 185

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Nacional para a Independência Total (UNITA). As reformas introduzidas no
seio das Forças Armadas, bem como as relações que estabeleceu com a UNITA
e os grupos da oposição dos regimes do ex-Zaire (atual República Democrática
do Congo) e da Zâmbia, contribuíram para a contenção do avanço das forças
militares da FNLA e do MPLA, permitindo às Forças Armadas portuguesas
controlar a situação militar (Rodrigues, 2008, pp. 80-91).
Após o 25 de Abril, o nome de Costa Gomes chegou a fazer parte da
lista restrita para substituir Américo Tomás, Presidente da República deposto
em 1974 na sequência da revolução. No entanto, e apesar do consenso que teve
no seio dos militares, Costa Gomes constatou que tinha pouca margem de
manobra para liderar o processo de transição para a democracia portuguesa.
Numa entrevista concedida ao historiador Fernando Rosas em 1988, o
Marechal explicou desta forma a razão para não ter aceitado o cargo de
Presidente: “De todas as pessoas que estiveram no Ultramar com lugares (…)
de destaque (…), eu fui o único que nunca tive aqui em Lisboa um escritório,
nem um grupo que fizesse a minha propaganda”1.
Moderado e bastante perspicaz, a renúncia e/ou a prudência de Costa
Gomes de não aceitar a proposta da Junta de Salvação Nacional (JSN) durou
pouco tempo. Assim, a seguir à renúncia do general António de Spínola do cargo
de Presidente da República Portuguesa, em setembro de 1974, o nome de Costa
Gomes apareceu de novo na lista da Junta de Salvação Nacional e, desta vez, o
Marechal aceitou ao desafio e liderou o Processo Revolucionário em Curso
(PREC) até à realização das primeiras eleições legislativas e presidenciais,
ocorridas em abril e em junho de 1976, respetivamente. Durante o seu mandato,
lidou com vários momentos delicados da vida política portuguesa da época, com
destaque para o 25 de Novembro, que definiu o rumo da política em Portugal

1
Entrevista com Fernando Rosas (1998). Online, Disponível em:
http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=tc1326. Consultado em 21.08.2019.

186
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(Telo, 2007, pp. 92-169). Passados muitos anos desde o tempo em que esteve à
frente da Presidência da República, o papel de Costa Gomes na transição para a
democracia portuguesa é referenciado não apenas na literatura, mas também
nos meios de comunicação social, círculos políticos e diplomáticos, onde se
destaca a forma como interpretou e geriu os vários momentos políticos do
Portugal pós-25 de Abril (Rodrigues, 2008, op, cit).

Angola, o caso paradigmático das ex-colónias Portuguesas.


Quando Costa Gomes assumiu o cargo de Presidente da República
Portuguesa em setembro de 1974, a primeira fase pela qual os militares
derrubaram o sistema de Salazar-Caetano estava já concluída2. Trata-se da
clarificação do processo de descolonização dos territórios africanos,
consubstanciada pela Lei 7/74 de 27 de julho de 1974, sobre o direito à
autodeterminação e independência dos povos africanos. No entanto, se no
âmbito da descolonização se encerrou por completo o impasse pelo qual os
movimentos se bateram, internamente a nomeação de Costa Gomes foi uma
lufada de ar fresco para o programa do MFA: realizaram-se eleições para a
Assembleia Constituinte em abril de 1975 e o curso da transição para a
democracia seguiu os trâmites preconizados pelo Movimento das Forças
Armadas.
Neste período bastante crítico da história contemporânea de Portugal,
Costa Gomes geriu ainda outro dossier particularmente complicado: a
descolonização de Angola. Ao contrário do que se passava em Moçambique ou
na Guiné-Bissau, cada qual com apenas um movimento de libertação, em Angola

2
Considera-se de primeira fase do processo de descolonização o período entre 25 de
abril e julho de 1974, caracterizado pelas posições antagónicas entre a Comissão Coordenadora
do MFA e a posição General Spínola, primeiro Presidente Português pós 25 de abril de 1974.
A Coordenadora do MFA defendia uma descolonização rápida e negociada apenas com os
movimentos de libertação nacional, ao passo que o General Spínola defendia uma
descolonização lenta, baseada num referendo. 187

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havia três com os quais as autoridades portuguesas tinham de negociar: a
FNLA, o MPLA e a UNITA. As negociações com os três movimentos viriam a
culminar nos Acordos do Alvor, assinados em 15 janeiro de 1975. Realizado no
Hotel Penina, em Portugal, as partes concluíram que os três movimentos
signatários do processo (a FNLA, o MPLA e a UNITA), eram “os únicos e
legítimos representantes do povo angolano” (Castaño, 2013, p. 182) e, no
âmbito geográfico, definiu-se que Angola constituía uma “entidade una e
indivisível”, sendo que Cabinda, território mais a Norte do país e onde se
registaram movimentações separatistas, ficou descrita como “parte integrante e
inalienável do território angolano” (Castaño, 2013, p. 182). A independência,
momento mais esperado pelos signatários, ficou marcada para 11 de novembro
de 1975. O acordo estipulou, de igual modo, a criação de um governo de
transição com um alto-comissário português e com “colégio presidencial de três
membros, um por cada um dos movimentos”, ocupando rotativamente a
presidência. A organização de eleições para a Assembleia Constituinte até ao
final de outubro de 1975 era uma das missões atribuídas ao governo de
transição. Finalmente, e no quadro da segurança do território e das populações,
os signatários do acordo deveriam criar um “exército nacional” com 8 mil
homens de cada um dos movimentos e 24 mil do Exército Português, que
ficariam em Angola até fevereiro de 1976 (Rodrigues, 2008, pp. 189,190).
Tendo participado na abertura e no encerramento das atividades, Costa
Gomes mostrou-se otimista e “fez um apelo à paz e à ordem em Angola”. E, aos
líderes de cada movimento de libertação, Costa Gomes falou de um desafio
duplo que os mesmos teriam doravante de atacar: primeiro, “o encontro de
soluções angolanas autênticas, baseadas na capacidade de diálogo, no espírito
de cooperação e na boa vontade de servir”; segundo, o desafio de “criar no século
XX uma grande comunidade onde o espírito vença definitivamente os
convencionalismos raciais” (Rodrigues, 2008, pp. 189,190). Contudo, o espírito

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 188


do Alvor viria a conhecer ao longo do tempo momentos de tensão – resultado
de uma conjuntura interna cada vez mais complexa e pela falta de confiança
entre três movimentos signatários, que encontravam pouca margem de
manobra para sarar feridas passadas (Mbah, 2010, pp 25-350). Assim, e em vez
de definirem modalidades concretas de ação para o cumprimento dos Acordos
do Alvor, cada um passou a reavivar as suas estratégias de afirmação no espaço
político angolano3.
Perante três movimentos com percursos e bases de apoio diferentes,
Costa Gomes acompanhou a situação de Angola com alguma preocupação,
como demonstrou após ter regressado a Portugal da quarta Comissão das
Nações Unidas. Para Costa Gomes, “as dificuldades provinham dos próprios
“partidos emancipalistas”, que não conseguiam alcançar um entendimento e,
com isso, “prejudicam e atrasam o processo de descolonização que estamos
desenvolvendo”. No entanto, argumenta Costa Gomes, o Governo português,
procurando ultrapassar as dificuldades surgidas, “tem mantido contactos
permanentes com todos grupos emancipalistas que são considerados
representativos” (Rodrigues, 2008, p. 187). Com pouco sucesso, devido à
complexidade do problema, o papel de Portugal na reaproximação das partes
pouco ou nada se fez sentir. O conflito adquiriu dimensões internacionais. O
MPLA, apoiado pela União Soviética e Cuba, e a FNLA/UNITA, pelos EUA e
seus aliados africanos – o Zaire e a África do Sul –, intensificaram o conflito e,
em agosto de 1975, o Estado português anulou formalmente os acordos do
Alvor, com o Decreto Lei n˚458/75 (Pinto, 2015, p.730). Foi no quadro dessa
conjuntura que o MPLA proclamou a independência de Angola no dia 11 de
novembro de 1975. O novo Estado, denominado por República Popular de

3
As rivalidades entre os três movimentos remontam na década de 1960, num
primeiro momento, isto é, entre 1960 e 1965, o campo político angolano era disputado pela
FNLA e pelo MPLA. Em 1966 é constituída uma terceira força político-militar – a UNITA,
que passava a disputar com as demais forças a hegemonia político-militar. Reis, (2010).
189

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Angola (RPA), foi reconhecido por uma larga maioria de Estados, incluindo
países europeus. Portugal, a antiga potência colonial, levou algum tempo para
legitimar o governo de Angola formado pelo MPLA (Alberto, 2016, pp. 41-44)

O Reconhecimento da República Popular de Angola


Semanas após a proclamação da independência de Angola ficou
evidente que a coabitação política entre os três movimentos de libertação de
Angola não constava nos planos de nenhum deles. O MPLA consolidava o seu
poder dia após dia e, do outro lado, a tentativa de coligação entre a FNLA e a
UNITA acabou por falhar, ao ponto de as partes entrarem em conflito.
As autoridades portuguesas acompanhavam a situação em Angola. No
entanto, sem nunca terem chegado a um consenso sobre o day after, o Conselho
de Ministros e o Conselho da Revolução, dois órgãos com fortes poderes na
condução da política portuguesa da época, efetuaram algumas reuniões em
separado para analisarem a questão angolana, horas antes a proclamação da sua
independência. Na primeira reunião, realizada a 9 de novembro de 1975, a
discussão centrou-se nas modalidades de reconhecimento do governo de
Angola, nomeadamente sobre qual seria a posição de Portugal caso viessem a
existir um ou mais governos (CR, Acta da reunião de 9 de Novembro de 1975).
Com a presença de altas figuras do Estado, o Presidente da República,
o Primeiro-Ministro e os membros do Conselho da Revolução, a reunião contou
com votos favoráveis de Costa Gomes e de Vítor Crespo sobre o
reconhecimento de Angola, e com votos contra dos secretários gerais do Partido
Socialista, Mário Soares, e do Partido Popular Democrático (PPD), Francisco
Sá Carneiro.
Enquanto as autoridades portuguesas discutiam as modalidades
previstas para legitimar aquele futuro Estado africano, em Angola a situação
tornava-se cada vez mais complicada. No terreno, os três movimentos

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 190


intensificavam o conflito pela ocupação e controlo de Luanda, lugar escolhido
nos Acordos do Alvor para proclamar a independência do país. O MPLA (a
partir de Luanda) e a FNLA (a partir do Bengo) combatiam então na localidade
do Quifangondo, cada uma com o objetivo de ocupar Luanda e assim proclamar
a independência do país a 11 de novembro de 1975. Face a isso, o Conselho da
Revolução voltou a reunir para analisar a situação daquele território. Após a
reunião, o órgão máximo do Estado português decidiu que, no caso de vários
movimentos declararem a independência e formarem Governo, Portugal não
reconheceria nenhum Estado. Contudo, caso o MPLA formasse governo e
garantisse o reconhecimento de um grande número de países, o Governo
português alinharia com a corrente internacional. No entanto, nem uma nem
outra posição foi posta em prática e decidiu-se, entretanto, não reconhecer de
imediato qualquer governo (CR, Acta da reunião de 10 de novembro de 1975).
A 11 de novembro de 1975 foi finalmente proclamada a independência
de Angola pelo MPLA e, no dia seguinte, isto é, a 12 de novembro, o movimento
de Agostinho Neto formou o primeiro governo da República Popular de
Angola. O Brasil e vários estados da comunidade internacional formalizaram
oficialmente o reconhecimento de Angola. Portugal, fiel às suas posições,
congratulou-se apenas com o facto e entregou a soberania ao povo angolano
(Alberto, 2016, pp. 46-49). Iniciava-se, na verdade, um longo período de
incertezas sobre as relações oficiais entre os dois países. O Estado português
estava dividido. Por um lado, havia a posição daqueles que defendiam o
reconhecimento de Angola, com destaque para Costa Gomes; por outro, havia
os que defendiam o não reconhecimento de Angola, com destaque para o
Primeiro-Ministro, Pinheiro de Azevedo. À semelhança do que aconteceu no
Conselho da Revolução, também entre os partidos que integraram os governos
provisórios houve diferenças de opiniões. O Partido Comunista Português
(PCP) era a favor do reconhecimento de Angola. Já o Partido Socialista (PS) e

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o Partido Popular Democrático (PPD) mostraram-se contra, defendendo que o
novo Estado africano não tinha legitimidade jurídica. O PS e o PPD
encontraram argumentos no falhanço dos Acordos do Alvor, documento
jurídico que previa a construção de um Estado, semelhante ao modelo
português, com eleições livres e justas. Mas, ao mesmo tempo em que Portugal
prevaleciam as dúvidas sobre a questão angolana, no plano internacional o novo
Estado africano somava várias vitórias – entre as quais a sua admissão como
membro de pleno direito da Organização da Unidade Africana (OUA), a 11 de
fevereiro de 1976.
Face a isso, e dadas as mudanças que se verificavam no sistema
internacional, Costa Gomes convocou outra reunião do Conselho da Revolução
para informar os seus membros sobre a dinâmica internacional e a situação
político-militar do território angolano.
Do ponto de vista internacional, Costa Gomes deu conta da rápida
evolução do caso de Angola nos meios políticos africanos e também nos círculos
políticos europeus, ao mesmo tempo que internamente o MPLA consolidava a
sua posição (CR, Acta da reunião de 14 de fevereiro de 1976). O PPD e o PS
continuavam firmes nas suas posições. Entretanto, e na sequência da
necessidade de o Estado português resolver os problemas deixados pelo regime
colonial, Costa Gomes teve de efetuar algumas diligências aos secretários gerais
daqueles dois partidos, Sá Carneiro e Mário Soares, com vista a mudarem de
posições e a avançarem para uma solução que permitisse desbloquear o impasse
político. Nessas diligências, efetuadas em meados de fevereiro de 1976, os dois
partidos mostraram-se igualmente intransigentes. De acordo com Costa
Gomes, “o PPD entende que não há quaisquer vantagens para Portugal em
reconhecer a República Popular de Angola, pelo contrário, pensa que conduzirá
de imediato ao agudizar de problemas internos, nomeadamente a dos
retornados”. Mário Soares, que apresentava sinais de alguma abertura,

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 192


argumentou que “o PS devia ganhar tempo e fazer sondagens junto do governo
de Angola para clarificar as consequências do reconhecimento por parte de
Angola” (CR, Acta da reunião de 18 de Fevereiro de 1976)
Com posições diferentes, os secretários gerais dos dois partidos
instaram Costa Gomes a consultá-los antes de tomar uma posição sobre o
reconhecimento do governo da República Popular de Angola. Enquanto o
Estado português continuou impossibilitado de legitimar o governo de Angola,
as forças militares do novo Estado africano controlavam, a cada dia que passava,
uma parte maior do território nacional e, ao nível internacional, Angola somava
vitória após vitória. A França, a Suécia, a Finlândia e da Inglaterra deram luz
verde ao seu governo.
Esta dinâmica, até então pouco presente, acelerou o debate político
português: era necessário resolver o contencioso económico e acelerar a questão
dos preços portugueses em Angola. Costa Gomes, imbuído da necessidade da
abertura política, voltou a estabelecer contactos com os secretários gerais do
PPD e PS, a fim de avançarem para uma posição que permitisse viabilizar o
reconhecimento do governo de Angola. Face às alterações das dinâmicas
internas e internacionais, o PS e o PPD alteraram as suas posições. Para Mário
Soares, “o Partido Socialista sujeitar-se-ia ao resultado da votação do Conselho
de Ministros, não sairia do governo, antes pelo contrário, esclareceria as massas
das razões que aconselharam o reconhecimento”. Por sua vez, o PPD disse que,
constitucionalmente, o assunto era da responsabilidade do Conselho da
Revolução. No entanto, aconselhou o Chefe de Estado a discutir o assunto em
Conselho da Revolução, uma vez que, caso fosse ao Conselho de Ministros, os
membros do seu partido votariam contra (CR, Acta da reunião de 20 de
Fevereiro de 1976).
Após a resolução desse impasse, restavam poucas dúvidas sobre a
oficialização do reconhecimento do governo de Angola, tornada pública no dia

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22 de fevereiro de 1976, após comunicado do Estado português, feito por Melo
Antunes, então Ministro dos Negócios Estrangeiros: “Ouvido o Conselho da
Revolução e o Governo Provisório, o chefe de Estado da República Portuguesa,
no exercício da sua competência constitucional, decidiu reconhecer o Governo
da República Popular de Angola (...), exprime o voto de que se estabeleça
doravante entre os dois povos relações fraternas de amizade na base de não
ingerência nos assuntos internos, da igualdade e do respeito mútuo” (Avante,
26 de Fevereiro de 1976, p. 12). Fechava-se, assim, uma página conturbada nas
relações pós-coloniais entre Portugal e Angola e, simultaneamente, iniciava-se
a fase das relações político-diplomáticas.

Considerações finais
Tendo sido Presidente da República Portuguesa no período mais
quente da transição para a democracia, Costa Gomes é, sem dúvida, uma das
figuras de destaque da História contemporânea portuguesa. As suas habilidades,
no tocante à gestão da vida política do país durante o período revolucionário,
deram-lhe enormes valências e prestígio tanto a nível nacional como no domínio
internacional. No entanto, se a nível interno Costa Gomes teve considerável
sucesso, o mesmo já não pode ser dito em relação ao processo de transferência
de poder aos movimentos de libertação de Angola. Os Acordos do Alvor,
documento jurídico que definiu as regras do jogo entre Portugal e os três
movimentos de libertação nacional, viriam a redundar num fracasso cujas
consequências se fizeram sentir em novembro de 1975, com a proclamação
unilateral da independência de Angola pelo MPLA.
Portugal não legitimou o governo do MPLA. Todavia, o seu
representante em Angola, o alto comissário Leonel Cardoso, congratulou-se
com o feito e transferiu a soberania ao povo angolano. Iniciava-se, daí em diante,
um longo debate no seio do Estado português sobre a questão angolana. De um

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lado, os que defendiam o reconhecimento do governo de Angola e, do outro
lado, os que defendiam o não reconhecimento. Dentre os que defendiam o
reconhecimento destacou-se o Presidente da República, e nos que defendiam o
não reconhecimento destacou-se o Primeiro-Ministro, Pinheiro de Azevedo. Os
partidos políticos, nomeadamente o PPD e o PS, que possuíam já grande peso
no governo provisório, mostraram-se contra e chegaram mesmo a ameaçar em
abandonar o governo caso fosse tomada uma decisão sem o seu parecer. Assim,
e face à necessidade de os dois Estados estabelecerem relações de cooperação,
bem como acelerar a resolução dos problemas deixados pelo regime colonial,
Costa Gomes chamou a si a responsabilidade e efetuou várias diligências junto
dos partidos, por forma a desbloquear o impasse político.
O diálogo de Portugal com o governo angolano era bastante
complicado, por força de até aí não o ter reconhecido e de ser o único país
europeu com o qual não tinha estabelecido relações diplomáticas. Assim, e na
sequência das diligências efetuadas junto dos secretários-gerais do PPD e do
PS, a 18 de fevereiro de 1976, o Presidente da República deu a conhecer, na
reunião do Conselho da Revolução de 20 de fevereiro de 1976, os pareceres de
Mário Soares e Sá Carneiro. Só dessa forma foi possível, a 22 de fevereiro de
1976, legitimar o governo de Angola. Era o fim de um longo período de
incertezas e, simultaneamente, o nascimento simbólico das relações político-
diplomáticos entre os dois Estados.

Fontes e Referências

Fontes
Diário de Notícias, 1975-1976 (Biblioteca Nacional de Portugal)

Jornal Avante, 1975-1976 (Biblioteca Nacional de Portugal)

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Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 195


CR, Acta da reunião de 14 de fevereiro de 1976 (online), consultado em 08.08.2015.
Disponível em: http://casacomum.org/cc/visualizador pasta=02975.058

CR, Acta da reunião de 18 de fevereiro de 1976, (online), consultado em 12.10.2015.


Disponível em: http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=02975.059

CR, Acta da reunião de 20 de fevereiro de (online), consultado em 12.10.2015.


Disponível em: http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=02975.060

Referências

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Ernâni Rodrigues Lopes: da diplomacia como serviço
e Portugal como missão
Sónia Ribeiro* e Eduardo Lopes Rodrigues**

Resumo: Ernâni Rodrigues Lopes foi embaixador de Portugal em Bona (1975-


1979) e Embaixador e chefe da missão portuguesa às Comunidades Europeias
em Bruxelas (1979-1983), tendo conduzido as negociações de adesão do
Tratado de Adesão de Portugal às Comunidades. Norteado pela urgência da
construção do futuro, interessou-lhe sobretudo a defesa do interesse nacional
no contexto dos desafios que a mudança estrutural que o 25 de Abril e a
evolução internacional provocaram no posicionamento e nas condições de
desenvolvimento de Portugal. O seu contributo enquanto Embaixador
responsável pela negociação da adesão estende-se assim para lá da tarefa em si
mesma, passando pela teorização da alteração profunda na conceção de política
externa que resulta da adesão, com evidentes repercussões no exercício político,
mas também diplomático.

Introdução
Em todos os cargos que desempenhou, em todos os estatutos que
assumiu, Ernâni Rodrigues Lopes deixou sempre uma marca de esforço de
teorização permanente (nas palavras do próprio), de procura do essencial sobre
“a espuma dos dias” (os elementos conjunturais não estruturantes), e da busca
de uma visão de conjunto integradora das partes, permitindo a leitura holística
da realidade. Mas sobretudo a centralidade do interesse nacional naquilo que
eram as suas decisões: "O que desde sempre me preocupou e interessou é a nossa
existência como Nação e o conjunto de Portugal.” (Expresso, 1983: 16).
Ernâni Rodrigues Lopes foi Embaixador de Portugal em Bona (1975-
1979) e Embaixador e chefe da missão portuguesa às Comunidades Europeias
em Bruxelas (1979-1983), tendo conduzido as negociações de adesão do

*
CIEP-UCP
**
UL, ISCSP, EEE

198
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Tratado de Adesão de Portugal às Comunidades, do qual seria um dos
signatários.
Multifacetado, foi Ministro das Finanças e do Plano no IX Governo
Constitucional da III República Portuguesa (1983-1985), uma altura
particularmente difícil para a economia nacional1 e fundador (e diretor) do
Instituto de Estudos Europeus da Universidade Católica Portuguesa, a primeira
instituição nacional de ensino superior especializada nesta área científica, criada
em 1978. Correspondendo à sua visão, e muito antes de a multidisciplinaridade
ser reconhecida e incentivada pelo valor que agrega ao estudo da realidade, o
Instituto foi estruturado numa base multidisciplinar e com flexibilidade para
acompanhar o fluir dos acontecimentos relevantes na Europa e no mundo.
Dessa abordagem resulta a formação de quadros superiores da administração
pública, para Portugal e para as instituições da EU, incluindo a diplomacia –
mas também para as empresas, como agentes interventivos na construção
europeia, com uma visão clara do interesse nacional e prevalecente em cada
ecossistema, uma linha de desenvolvimento que viria a perdurar até 2011.
A construção do futuro foi seu princípio norteador, alicerce sobre o
qual construiu uma visão de futuro para Portugal centrada na leitura estratégica
da geopolítica e da análise prospetiva das condições de desenvolvimento de
Portugal, onde a construção europeia aparece como elemento central no
contexto das condições de posicionamento estratégico nacional do último
quartel do século XX, visão que transportaria consigo quando assume funções
diplomáticas, primeiro, como embaixador em Bona; e depois, em Bruxelas, junto
da Comunidade Europeia.

1
Portugal apresentava à data uma estrutura económica e financeira muitíssimo
debilitada na sequência das graves crises que, num intervalo de 5 anos, levaram o país a dois
programas de assistência financeira por parte do FMI. É neste contexto que enquanto Ministro
das Finanças, Ernâni Rodrigues Lopes conduz um duro exercício de estabilização, mas com
resultados impressionantes, já que a economia portuguesa retomou uma trajetória de
crescimento, num modelo de desenvolvimento que se manteve até à viragem do milénio. 199

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Enquanto Embaixador, “deixa a sua marca pessoal bem vincada (…).
Pode seduzir ou agastar, agradar ou irritar, ninguém lhe ficará, porém,
indiferente” (Expresso, op cit: 16)… nem aos resultados que obtém.

Da diplomacia como serviço e exercício de teorização


Economista, Ernâni Rodrigues Lopes não é nem faz da diplomacia a
sua opção profissional e vocacional. A diplomacia surge na sua vida como
convite e como oportunidade que acolhe e agarra com o mesmo sentido de
serviço ao país com que exerce funções no Banco de Portugal e com que viria a
exercer a de Ministro das Finanças após a experiência como diplomata.
O seu estilo como Embaixador é, aliás, marcadamente multipolar, em
termos de centros de referência, atuando em múltiplas vertentes do
conhecimento e das competências competitivas. A sua postura é técnica e
científica, mas também prospetiva, política e estratégica, tendo como base a
análise político-económica e como horizonte uma visão de longo prazo para a
afirmação de Portugal no contexto europeu e internacional que estabelece e
delineia na prossecução das metas da missão que lhe é cometida. Encara a função
diplomática como serviço que presta com sentido de serviço a Portugal,
contribuindo não apenas para o alcance de um objetivo politicamente definido,
mas perscrutando a partir dele o benefício sistémico que o país pode alcançar,
definindo-o nas suas partes e orientando toda a ação diplomática no sentido do
alcance dos objetivos constitutivos do fim político estabelecido, e, por fim,
sistematizando o que de estruturante ficou da ação e, naquele contexto, o que
de relevante mudou e as implicações para a política externa nacional e o
exercício diplomático subsequente.
Enquanto Embaixador de Portugal em Bona, define e defende como
ponto essencial o “binómio do fomento da cooperação alemã com o processo
multifacetado do crescimento da economia portuguesa, e do fluir das

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negociações multilaterais dos Estados‑Membros visando a definição, em
Conselho de Ministros das Comunidades, de uma posição comum favorável à
candidatura de Portugal à adesão plena de Estado‑Membro nos termos do
artigo 237.º do Tratado de Roma” (Lopes Rodrigues, 2019: 222), ou seja,
trabalhando no quadro dos equilíbrios e tensões internas da negociação
intraeuropeia para obtenção de uma posição favorável àquele que considerava
ser um inequívoco interesse nacional – a adesão plena à CEE.
Entre os resultados que lhe são atribuíveis nesta fase, estão a abertura
de canais diplomáticos com a República Federal da Alemanha, que lhe
permitiam informar o Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Portugal, das
tendências prevalecentes, permitindo a otimização daquela que viria a ser a
posição diplomática portuguesa de defesa intransigente do modelo de adesão
plena.
Também no domínio da cooperação bilateral, registou‑se a densificação
do interesse económico alemão para investir em Portugal, e que alguns anos
mais tarde se viria a concretizar no investimento da Volkswagen na atual
Autoeuropa.
A partir de 1979, encarregado de liderar as negociações de adesão de
Portugal às Comunidades Europeias, Ernâni Rodrigues Lopes assume a
teorização fundamental que enquadre e dê profundidade estratégica e de longo
prazo a uma “decisão essencialmente política fundamentada em razões de
segurança” (Rodrigues Lopes, 1982: 2) que assume apenas subsidiariamente um
conteúdo económico – embora, na sua leitura, fundamental. Por isso a atuação,
sendo “resposta a uma necessidade histórica ou conveniência política, assume o
seu papel de verdadeira oportunidade no plano económico” (idem: 3).
Neste contexto, a sua ação diplomática engrandece-se na
racionalização e operacionalização de um conceito de desenvolvimento
subjacente e justificativo da missão atribuída. Defende assim, no contexto das

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negociações, a ideia de que a adesão só faria sentido no quadro de afirmação do
“binómio integração-desenvolvimento, isto é, a relação necessária imperativa
que tem de estabelecer-se entre a adesão às Comunidades e a abertura de uma
nova era de progresso económico e social no nosso país” (Rodrigues Lopes,
1985; p.3998); expressão que cria e torna corrente, quando os processos de
adesão às Comunidades não comportavam ainda a dimensão de estímulo e
reforço de processos de desenvolvimento de economias menos desenvolvidas.
Com efeito, até então, apenas o caso da Grécia, também em processo
de adesão à data, era exceção à norma de alargamento das Comunidades a países
cujos sistemas políticos e cujas economias apresentavam traços e índices de
desenvolvimento comparáveis. Portugal era à altura, como refere o
Embaixador, um “país de grau de desenvolvimento intermédio, dotado de
estruturas relativamente desequilibradas e vulneráveis” que contrasta com “a
CEE, que constitui um dos espaços económicos de maior importância à escala
mundial” (Rodrigues Lopes, 1982: 2-3).
A adesão constitui, assim, na sua visão, a resposta estratégica de
Portugal às alterações sucessivas do sistema de Relações Internacionais do
último quartel do século XX, assumindo a integração no processo de construção
europeia como a via de uma possível aceleração no processo de recuperação da
economia portuguesa, mais imposta, portanto, pela força de necessidade do que
por maturação interna das condições de modernização, reconhecendo-lhe os
riscos que tal situação comportava e para os quais alertaria continuamente,
defendendo uma visão – como ele próprio – focada e alicerçada no potencial de
desenvolvimento e afirmação estratégica nacional.
Desenvolveria assim, após a concretização da adesão, a teorização da
matriz estratégica fundamental de Portugal, sintetizada na fórmula
Portugal/Europa/África/Brasil, articulando o vetor essencial de

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modernização, concretizado na adesão à CEE, com os vetores de compensação
derivados da geopolítica nacional e dos seus ativos estratégicos.
A visão do Embaixador era, uma vez mais, holística e sistémica,
alicerçada no binómio “geopolítica e prospetiva”, onde a ação diplomática está
ao serviço de uma visão de futuro, cujo alcance implicava a definição de um
modelo de desenvolvimento económico, financeiro, social e cultural que levasse
Portugal a participar nos centros das decisões de todos os órgãos da Europa das
Comunidades, mas onde encontrasse da mesma forma um espaço de reforço da
sua geopolítica enquanto nação europeia atlântica, sendo este o seu maior
contributo também para uma Europa que enfrentava os desafios de um mundo
em transformação, no qual seria necessário afirmar-se como centro de referência
geopolítica de um mundo prestes a tornar‑se multipolar na sequência do fim do
sistema económico assente na convertibilidade do dólar em ouro (base do
sistema de Bretton Woods, definido no final da 2ª GM) e no contexto da
fragilização do modelo bipolar que viria a implodir no final da década de 80,
poucos anos após a adesão de Portugal às CE.
Portugal, assumindo-se inteiramente “europeu”, deveria, de forma
persistente e consistente no tempo, compreender a sua vocação universal e agir
segundo aquela mesma praxis que, ao longo dos séculos, construiu um espaço
de articulação intercontinental (global), exercitando com inteligência e
criatividade a capacidade de diálogo internacional, intercultural e integrador
que é a marca – aliás reconhecida – de Portugal, em diferentes contextos,
nomeadamente multilaterais.

Portugal como missão: construir as bases do futuro

• A visão estratégia pós-adesão

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 203


A vocação europeia de Portugal deveria consolidar-se com a adesão às
Comunidades Europeias e com os desenvolvimentos institucionais centrais da
União Europeia, percetíveis desde logo no Ato Único Europeu (1985). Com a
assinatura do Tratado de Adesão fecha-se o “ciclo diplomático” da sua vida, mas
não a sua dedicação à causa pública no contexto desse momento que, diria na
Assembleia da República, “constitui, precisamente, o momento de articulação
entre o passado recente, isto é, o resultado da negociação e o futuro próximo”;
“o ponto de partida de um complexo processo de reestruturação económica e
político-administrativa, que se traduz na gradual inserção da realidade
comunitária no quotidiano nacional”, levantando – além da aprovação do
resultado das negociações – um desafio imediato: “A perspetivação da
contribuição portuguesa para a construção do futuro europeu e a definição da
posição do País no mundo, como parte integrante de um espaço multilateral
inegavelmente influente nos equilíbrios políticos e económicos à escala
planetária.” (Rodrigues Lopes, 1985).
Para Ernâni Rodrigues Lopes o posicionamento estratégico que
permitiria a afirmação de Portugal no quadro europeu e internacional exigia
esta visão integrada dos seus “ativos” estratégicos, a que chama “vetores de
compensação” (Rodrigues Lopes, 1982: 6), cuja existência não a anula, antes
completa, reafirmando que “a opção europeia é inteiramente compatível com a
aliança e a cooperação atlânticas, com o aprofundamento das relações com
África e a América Latina, em particular no que respeita ao Brasil e aos novos
países de expressão oficial portuguesa” (Rodrigues Lopes, 1985). Entre estes
sublinha a relevância, para a política externa portuguesa, da valorização não
apenas da sua posição no sudoeste europeu, mas da sua Zona Económica
Exclusiva no centro do Atlântico Norte e da universalidade da sua dimensão
cultural, e, em termos operativos, da necessária coordenação entre política

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 204


interna e externa e da adequada endogeneização e aproveitamento dos
estímulos externos para a modernização e agilização dos processos.

• Uma nova conceção de política externa


Para o Embaixador, “o pedido de adesão de Portugal à CEE constituiu
a mais importante decisão estratégica na política externa portuguesa,
porventura numa perspetiva de séculos”, uma decisão, aliás, “intimamente
articulada com o processo revolucionário pós-25 de Abril”, seja no que
correspondia ao restabelecimento – e consolidação – de um regime democrático
em Portugal, seja, num plano estruturante, traduzindo “na política externa
nacional, a mudança de uma orientação predominante, se não exclusiva, de
defesa dos territórios ultramarinos e consequentemente toda perspetivada para
áreas e problemas extra-europeus, para, pela primeira vez, a inserção plena de
Portugal nos assuntos políticos e económicos intra-europeus” (Rodrigues
Lopes, 1982: 5), exigindo assim uma alteração essencial do foco e dos desafios,
tal como dos métodos e instrumentos da política externa portuguesa.
A intervenção que proferiria meio ano após a assinatura do Tratado de
Adesão, a convite da Associação Portuguesa de Diplomatas, no Ministério dos
Negócios Estrangeiros aprofunda a temática e permite compreender melhor o
seu pensamento sobre este tema.
Naquela ocasião, reconhecendo a tendência estabelecida de perceção da
política externa como dominada por aspetos da política interna, da qual seria
mera abstração pondo em evidência a autonomia da vontade dos Estados,
defende uma perspetiva diferente, sistémica, segundo a qual compete aos
Estados, ao procurar assegurar a prossecução dos seus objetivos nacionais,
ajustarem os seus comportamentos à respetiva inserção num sistema que não
dominam individualmente. A assunção deste conceito seria fundamental para
compreensão da realidade vivida na altura, e aquela que permitiria a adoção de

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 205


uma atitude realista e prática perante o sistema internacional, colocando a
questão no quadro da “racionalidade do comportamento dos Estados”
(Rodrigues Lopes; 1985b: 2) e sistematizando as alterações fundamentais no
posicionamento português em resultado da Adesão a quatro áreas: política
(consolidação da democracia e papel de Portugal no sistema internacional);
económica (a visão para além de uma união aduaneira e o binómio
integração/desenvolvimento); estratégica (a posição de Portugal, a questão do
desenvolvimento e estabilidade interna); e operacional, onde foca a relação
político-diplomática internacional e a organização dos aparelhos – do Estado e
dos interesses privados.
Refletindo sobre aquilo a que chama “a vertente externa da economia
portuguesa”, sublinha os desafios que então se apresentavam – “sob os nossos
olhos e sem a nossa participação” – em função dos “fenómenos de mutação na
economia mundial” face aos quais, advertia, “países como Portugal não podem
alhear-se (…) e têm de escolher corretamente as estratégias de adaptação a esses
movimentos” (idem: 6).
É neste quadro que se torna necessário sublinhar a relação entre
modernização da economia portuguesa e espacialização internacional,
competitividade e capacidade de atuação das empresas nos mercados externos
– e aqui radica a sua observação de que “a importância e o peso da vertente
externa tornam, de facto, secundárias, do ponto de vista económico, a simples
análise e formulação de políticas em termos internos” (ibidem): o
enquadramento estruturante (já) não é o enquadramento interno, mas o
enquadramento externo, em função do qual a política interna encontra os seus
campos de possibilidades estratégicas. Como sublinha “o que interessa
sobretudo salientar (…) é que toda a política económica portuguesa passará a
estar condicionada pela adesão às CE’s” (ibidem: 11), em boa verdade, toda a
política portuguesa.

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 206


• Os desafios operativos e da organização da diplomacia
Mas além dos impactos para os agentes económicos e sociais, Ernâni
Rodrigues Lopes não deixa de reconhecer e sublinhar as alterações necessárias
no aparelho administrativo do Estado em função da adesão, chamando a atenção
para a necessidade de ajustamentos nos vários departamentos e de um esforço
acrescido de coordenação, pugnando por uma ação que permitisse “iniciar um
processo consistente da proclamada e desejada ‘reforma administrativa’”
(ibidem: 20). Um dos âmbitos fundamentais desse ajustamento seria
precisamente o Ministério dos Negócios Estrangeiros, que com a Presidência
do Conselho de Ministros e o Ministério das Finanças e do Plano constituem o
núcleo central de coordenação do ajustamento ao novo contexto no qual a
política externa assume um papel central como configuradora de possibilidades
internas.
Neste contexto, identifica como “elemento vital para o bom
funcionamento da participação de Portugal como Estado-membro da CEE” a
ligação entre Lisboa e Bruxelas, isto é, “a ligação entre o aparelho
administrativo central na capital (neste caso Lisboa) e a Representação
Permanente” (ibidem: 22). Advertia então logo para alguns elementos que
considerava essenciais ao objetivo a atingir, desde logo a necessidade de um
novo modelo de comunicação, já que a natureza e relevância desta ligação “não
se compadece com modelos ‘clássicos’ e burocráticos de comunicação” (ibidem)
e a necessidade de um bom entendimento pessoal entre os interlocutores,
incluindo a assunção de que a principal figura do processo de funcionamento
nas CE é o REPER. Chamava ainda a atenção para o facto de que a velocidade
do exercício diplomático em Bruxelas exige uma agilidade que só é possível se
existir um entendimento permanente que permita ultrapassar quaisquer
eventuais dificuldades de organização ou coordenação em tempo útil. Desta

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 207


forma, o método de tomada de decisão exige-se flexível e simples, evitando
esquemas rígidos que tornem difícil ou mesmo impossível, por razões formais,
à REPER a adoção em tempo útil das soluções mais corretas para os interesses
de Portugal. Na sua visão, a REPER deveria mesmo, com o tempo, vir a
“assumir um papel preponderante como elemento aglutinador e de concertação
da posição portuguesa no terreno” (ibidem: 23).
A sua análise levanta outro tema que, então, não deixou de ganhar
relevância e assume hoje uma centralidade que, na época, seria ainda pouco
reconhecida pela maioria: a área de informação/formação, no que comporta de
informação atualizada e abrangente sobre os processos, mas também – e por
exigência dos mesmos – uma ligação permanente à realidade político-económica
nacional, um processo permanente de diálogo com a sociedade que permita a
posse pelas estruturas do Estado, nomeadamente pelos diplomatas envolvidos,
de informação útil para a definição de posições no contexto institucional
europeu, mas também no sentido da transmissão da informação relevante aos
utilizadores, dentro do aparelho do Estado mas também aos agentes económicos
e sociais.
Esta ligação entre as estruturas estatais e sub-estatais e a diplomacia,
no caso entre aquelas estruturas e a REPER, é identificada como um dos pontos
mais frágeis do caso português. À REPER deveria ser cometida esta função
central de receção e tratamento de toda a informação nacional relevante, e
constituir-se ela própria também como ponto de ligação entre a CE, o Estado e
a sociedade em geral, agindo como plataforma de interligação permanente,
gerindo um fluxo permanente de informação que permitisse a Portugal
aproveitar em larga escala as oportunidades, mas também antecipar e mitigar
riscos que a adesão comporta. Por outro lado, mais do que uma adaptação
formal, tratava-se de uma adaptação fundamental, já que a adesão implica o

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 208


acompanhamento de aspetos técnico-económicos que impunham um novo perfil
de equipa a alocar ao acompanhamento da evolução da CE.
A sua visão para o serviço diplomático diretamente responsável pela
gestão e condução da relação com a CE é assim de centralidade da REPER
enquanto elemento de proximidade às instituições europeias, numa função de
interlocutor e plataforma de diálogo entre aquelas e o Estado e os agentes
económicos e sociais, mas uma REPER ajustada a um novo conceito de
diplomacia, diríamos, técnico-política. Percebemos assim como Ernâni
Rodrigues Lopes compreendeu ab initio os mecanismos de decisão e poder da
Comunidade, as condições de sucesso da participação de Portugal e as alterações
estruturantes que a adesão comportava para os agentes económicos e sociais, o
Estado e o MNE em particular, especificamente o impacto na definição, mas
também na condução quotidiana da política, e a alteração na relação entre
política externa e interna, com o esbatimento da fronteira entre ambas.

• O desafio da formação para a nova realidade


A consciência do impacto da adesão, não só nos processos e
procedimentos institucionais mas também no âmbito do desenvolvimento das
atividades económicas, colocou a formação de quadros como um tema central
do processo de preparação da adesão à CE em sentido amplo (para lá das
negociações dos dossiers em si mesmos) e que se manteria, aliás, como exigência
permanente para o futuro, no contexto de evolução do processo de construção
europeia nas décadas que se seguiram. Impunha-se – impõe-se – um processo
de formação permanente e sistemática dos quadros ao serviço das relações
externas de Portugal, naturalmente mais agudo no caso dos diplomatas e
quadros do MNE em geral.
É neste quadro de preocupação com a capacidade de Portugal se
afirmar enquanto parceiro político-estratégico relevante dos novos parceiros

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 209


europeus, mas ao mesmo tempo de aproveitar as oportunidades de
desenvolvimento económico e social que a adesão abria, que Ernâni Rodrigues
Lopes inicia, ainda Embaixador em Bruxelas, a preparação da administração
pública e dos agentes privados para a nova realidade que a adesão traria.
A perceção face à adesão, o envolvimento e a capacidade de apropriação
do próprio processo pelos agentes económicos e sociais é, aliás, reconhecida em
1985, como um dos componentes principais para a capacidade de transformação
do país no contexto do seu novo enquadramento estratégico, sendo desejável
que depois de uma fase de “encantamento” sucedida por uma de pessimismo
surgisse, por fim, uma fase de síntese “mais sensata e equilibrada, identificando
‘riscos e oportunidades’” (Rodrigues Lopes; 1985b: 8) e permitindo uma melhor
definição de estratégia e ação.
Esta evolução permitira a criação de uma consciência de necessidade
de um esforço de adaptação à nova realidade, nomeadamente em termos de
formação e capacitação para a negociação em ambiente multilateral e no
contexto específico que constituem as negociações com os parceiros e com as
instituições europeias.
Desta forma, incentiva a intervenção coerente e consistente na
formação dos portugueses e na disseminação de uma cultura pró‑ativa pela
economia e pela sociedade ao fundar, na Universidade Católica Portuguesa,
ainda em 1979, o Centro de Estudos Europeus (mais tarde renomeado Instituto
de Estudos Europeus, quando passou a oferecer programas concedentes de grau
de Mestre e de Doutor), nas três vertentes: económica, jurídica e político-
administrativa.
A natureza multidisciplinar que desde o início marcou os trabalhos e
os cursos daquele Centro é assumida assim como instrumental no sentido de
contribuir não só para o sucesso das mesmas mas também para a qualidade
subsequente das negociações intrainstituições e, ainda, para a eficiência e a

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 210


eficácia da adaptação proativa de Portugal aos novos desafios concorrenciais e
estratégicos.
O objetivo era disseminar o mais possível as consequências da adesão
por um conjunto o mais alargado possível de agentes políticos, económicos,
sociais e culturais, e contribuir para que Portugal pudesse ser um protagonista
ativo, criativo e consequente da construção europeia.
O sucesso imediato do Centro de Estudos Europeus, enquanto fonte
permanente de difusão, de disseminação e de investigação científica sobre as
múltiplas vertentes da construção europeia, revela a necessidade absoluta
sentida pelos quadros nacionais – públicos e privados – de formação e aquisição
de conhecimento não apenas teoricamente sólido, mas com um vincado carácter
pragmático e propositivo que resultava do programa de formação gizado pelo
Embaixador.
Fiel a si mesmo, imprimiu um estilo pouco habitual à data na Academia,
onde as questões fundamentais eram sistematicamente tratadas, mas onde a
orientação de fundo era prática, e a investigação aplicada – a Universidade ao
serviço da construção de uma leitura estratégica de Portugal, do seu
posicionamento estratégico e da sua capacidade de afirmação no contexto
europeu e internacional. Um espaço de aquisição de informação, mas sobretudo
de desenvolvimento do conhecimento radicado no debate de visões
contrastantes, onde Portugal pudesse ser pensado no longo prazo no contexto
das respetivas opções estratégicas de posicionamento no sistema internacional
e no sistema europeu em particular.
Esta missão de formação e de difusão de uma cultura pragmática e
proativa face à participação no processo europeu e de defesa, nesse contexto, de
uma visão para o futuro de Portugal e da construção europeia, seria permanente
ao longo da vida de Ernâni Rodrigues Lopes no seu exercício profissional e
também num conjunto muito diversificado de participação mais ou menos

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 211


estruturada em organizações da economia e da sociedade. Desenvolveu nesses
espaços um esforço permanente de contribuição para a construção europeia pela
sensibilização/consciencialização/formação das “elites” nacionais, e
aproveitando todas as circunstâncias para fazer a disseminação da cultura e da
visão estratégica subjacente à adesão, animado pela convicção de que, só
envolvendo o máximo de segmentos sociológicos, seria possível conferir ao
objetivo estratégico da construção europeia uma certa blindagem que
permitisse a sua durabilidade.
Uma preocupação sempre necessária em qualquer época, e que, 10 anos
depois da sua morte, se mantém atual, porventura com uma pertinência
acrescida e reforçada hoje, face aos desafios que o processo de construção
europeia enfrenta, interna e externamente, num mundo que, sendo mutável,
incerto e complexo – como Ernâni Rodrigues Lopes ensinava – se encontra, de
novo, num ponto de (re)definição de futuro.

Conclusão
Refletir hoje sobre a vida de Ernâni Rodrigues Lopes é encontrar e
reconhecer a sua presença inspiradora numa multitude de cantos, de recantos e
de veredas sublimadoras, na Diplomacia, no Ensino, na Investigação Científica,
na Universidade, nas Políticas Públicas, nas Estratégias Empresariais, tudo isto
irmanado pela vocação de contribuir para um Portugal melhor e com maior
sustentabilidade.
A sua vida, norteada pela urgência da construção do futuro, foi uma
busca intensa e incessante da defesa do interesse nacional no contexto dos
desafios que a mudança estrutural que o 25 de Abril e a evolução internacional
provocaram no posicionamento e nas condições de desenvolvimento de
Portugal.

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O seu contributo enquanto Embaixador responsável pela negociação
da adesão estende-se para lá da tarefa em si mesma, passando pela teorização da
alteração profunda na conceção de política externa que resulta da adesão, com
evidentes repercussões no exercício político, mas também diplomático, na
análise lúcida e assertiva sobre os desafios do novo posicionamento estratégico
nacional para além das respetivas oportunidades, e na visão clara e pragmática
das implicações que, a nível da organização do Estado – e do MNE em particular
– a adesão às Comunidades Europeias exigiu e exige, consciente do esforço de
adaptação ao novo contexto com que o próprio exercício diplomático seria
confrontado, ao inaugurar uma nova era na política externa portuguesa.

Referências e Bibliografia

Expresso (1983). Ernâni Lopes: retrato de um homem austero. Revista Expresso,


15.Out.1983, pp14-17

Lopes Rodrigues, E. (2019) Ernâni Rodrigues Lopes, in Dicionário das Grandes


Figuras Europeias, Lisboa ed. Assembleia da República, pp 221 a 224

Rodrigues Lopes, E. (1982) A adesão de Portugal à CEE. Uma prioridade política,


uma oportunidade económica. Conferência proferida na Confederação de Associações
Comerciais do Brasil, 12 Agosto 1982

Rodrigues Lopes, E. (1985) Discurso na Assembleia da República aquando da


discussão da Proposta de resolução n.º 24/III, que aprova, para ratificação, o tratado
relativo à adesão à CEE. REUNIÃO PLENÁRIA DE 9 DE JULHO DE 1985, Diário
da Assembleia da República, Diário nº 105, páginas 3995 a 4000

Rodrigues Lopes, E. (1985b) Portugal e as Comunidades Europeias: incidências na


ordem interna. Associação Portuguesa de Diplomatas, Lisboa/MNE, 14.nov.1985

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De Vieira de Mello ao Sérgio
*
Jorge Lobo Mesquita e Florbela Paraíba**

Como um bom número de outros diplomatas portugueses, cruzámos


percurso com Sérgio Vieira de Mello no período da Administração Transitória
de Timor-Leste pelas Nações Unidas. Outros colegas terão a sua perspetiva
sobre Sérgio Vieira de Mello a partir de Nova Iorque, de Lisboa ou até de
capitais distintas, como Jacarta. Esta é a perspetiva de quem, a partir da Missão
de Portugal em Díli, entre 2000 e 2002, acompanhou o seu trabalho de
Administrador Transitório e Representante Especial do Secretário-Geral das
Nações Unidas num Estado ainda por nascer.
Soou estranho, na malfadada tarde de 19 de agosto de 2003, quinze
meses após a independência de Timor, na antecâmara de um diretor-geral do
Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), uma colega que aguardava
audiência, cadeirão voltada para a CNN, anunciar em vernáculo portuense de
matriz camiliana que o “Vieira de Mello está estuporado”1. Demorou um
instante a ajustar, perante as imagens e o desfecho que ansiávamos não se
concretizar. Naturalmente mencionava-nos o “Sérgio”.
O Sérgio, pelo qual todos os que sabíamos do seu espírito combativo
torcemos até ao último suspiro entre os escombros de Bagdade, mas também
por aqueles que imaginámos que poderiam estar com ele, na sucessão de
itinerâncias que o levaram a Timor-Leste e ao Iraque. Secretárias como a Etta,
guarda-costas como o Gamal, o Mohammed ou o Alan, conselheiros como o
Jonathan e, naturalmente, a Carolina. No cômputo final de um tempo em que as
redes sociais se confinavam ainda à troca de mensagens por telemóvel, a única

*
Embaixador
**
Diplomata
1
Estuporado: estragado, liquidado
214

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outra vítima fatal que conhecêramos no período de Timor-Leste seria o iraniano
Reza Hosseini, funcionário da Organização Internacional das Migrações (OIM).
Vieira de Mello foi o apelido retido por uma geração anterior à nossa,
que construiu, nas décadas que se seguiram à transição democrática e à
descolonização, as primeiras pontes com o multilateralismo – cujos primeiros
pontos mais marcantes surgiram na década de 90, sobretudo na África Austral,
na Namíbia, na Operação das Nações Unidas em Moçambique (UNMOZ) e na
Primeira Missão de Verificação das Nações Unidas em Angola (UNAVEM I), e
também nos Balcãs, experiências em que a componente militar teve por regra
mais visibilidade do que os outros elementos de presença portuguesa. Antes do
cruzamento em Timor-Leste, com a Administração Transitória das Nações
Unidas em Timor-Leste (UNTAET), o nome Vieira de Mello ecoava nas
chancelarias portuguesas e na imprensa como um ersatz da visibilidade da
lusofonia nas Nações Unidas, apreciação que é desmerecida ou deslocada, por já
então haver, embora com bem menor visibilidade, outros lusófonos no sistema
e por uma designada identidade lusófona não se colar de imediato à sua pessoa.
Sérgio personificava o “cidadão do mundo”, ainda que claramente abençoado
com o “jeitinho” brasileiro que lhe permitia continuar a avançar quando os
obstáculos paravam, desviavam ou sustinham o passo a outros.
O Sérgio que conhecemos em Timor-Leste trazia caldeadas as várias
experiências carreadas num percurso construído com pulso e garra, desde
Moçambique ao Líbano, passando pelo Camboja e pela ex-Jugoslávia, contextos
difíceis e próprios, mas construídos como um esmerado routard2 do sistema das
Nações Unidas, onde sabia ter bússola certa entre as atribulações do terreno e
a devida cobertura das instâncias de Genebra ou de Nova Iorque, esta última a
mais decisiva no trecho final que seguimos em Díli. O desfecho em Bagdade
escapa a esta nossa evocação, ainda que possamos ser tentados a ver algum

2
Routard, caminheiro, calcorreador.

215
Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021
fatalismo, com os cenários a que assistimos no 11 de Setembro, com Sérgio, em
Díli.
Assim, o Sérgio que conhecemos em Timor-Leste arribou, pelas
circunstâncias abertas pelos Acordos Tripartidos de Nova Iorque, de 6 de maio
de 1999, pelo Referendo de 30 de agosto e os desenvolvimentos subsequentes
que levaram ao estabelecimento da UNTAET e à sua designação como
Administrador da Transição e Representante Especial do Secretário-Geral.
O mandato político e o “enxoval” da UNTAET vinham evidentemente
bem guarnecidos a partir de Nova Iorque. Depois do Camboja e do Kosovo, no
início da década, Timor-Leste seria a nova experiência de administração direta
de um território, e em muito decalcou as anteriores receitas e instrumentos.
Esse enquadramento dispunha de um Administrador Transitório dotado de
plenos poderes, um dispositivo alargado a todo o terreno com componentes de
manutenção de paz, reabilitação, capacitação, reconciliação, legitimação da
representação política timorense e uma paralela articulação político-diplomática
com Nova Iorque (Secretariado e Conselho de Segurança), e contava também
com a comunidade de doadores, os contribuintes de forças militares e de
segurança e os Estados com interesses específicos no processo – nomeadamente
as antigas potências ocupante (Indonésia), administrante (Portugal), e a maior
potência vizinha (Austrália).
Nos primeiros meses, quem chegava com a Administração Civil das
Nações Unidas tinha guarida exclusiva nos barcos-hotéis atracados face ao
Palácio das Repartições e no espaço de aberto de trabalho da “grande tenda”,
instalada nas traseiras do edifício sede da administração ultramarina
portuguesa, que assim que recuperado albergou o Governo das Nações Unidas
até 20 de maio de 2002.
Díli, e em muito menor medida as vilas e cidades sedes das restantes
12 circunscrições administrativas, foram assim, nesses dois anos de transição,

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um permanente estaleiro a céu aberto, onde tudo se reabilitava e reconstruía.
Uma vivenda no Bairro do Farol, zona tradicional dos funcionários superiores
da administração portuguesa, foi cedo reabilitada para acolher o Administrador,
no enfiamento da qual vieram a estar, noutras vivendas congéneres, outros
responsáveis internacionais e missões diplomáticas.
O Vieira de Mello que se captava nas fotos e imagens de televisão nos
tempos anteriores a Timor-Leste e o Sérgio com quem nos cruzávamos nas
deslocações aos concelhos do interior, no escritório do Palácio das Repartições
ou nas corridas de manutenção pela Avenida dos Coqueiros, rente ao mar (com
Gamal Ibrahim correndo ao seu lado e um jipe de proteção atrás) marcavam,
ambos, pelo permanente aprumo e postura elegante, acompanhada por uma
invariável abordagem próxima e amistosa. Não por acaso Samantha Power
intitulou o seu depoimento biográfico “Atrás da Chama”3.
Um corredor de fundo, um trabalhador infatigável, dotado das
requeridas capacidades analíticas e também de sentido político próprio ao
processo de que fora incumbido pelo Secretário-Geral Kofi Annan: levar a
transição de Timor-Leste a bom porto, com o agrado possível dos timorenses e
de quem tinha assento nas decisões em Nova Iorque. Era o protótipo do
diplomata do século XX, embora se distinguisse dessa categoria profissional
definindo-se como “um funcionário das Nações Unidas”. Acreditava no ideal das
Nações Unidas, num tempo em que o nacionalismo e o isolacionismo não
estavam na moda. Simultaneamente idealista e pragmático, não se lhe
vislumbrava cinismo, e isso ensinava mais do que qualquer manual. Falava
português, mas também aprendeu tétum, para se fazer entender melhor pelos
timorenses. Dividia as suas intervenções em duas ou três partes (salteando
inglês, francês, português e tétum) num estranho jogo de diplomacia linguística

3
Power, S. (2008). Chasing the Flame: Sergio Vieira de Mello and the fight to save
the world. New York: Penguin Press.

217
Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021
que também era necessário fazer e que ele dominava melhor do que ninguém,
nunca agradando inteiramente a nenhum dos lados.
A nau da UNTAET chegou razoavelmente apetrechada – uma força
de manutenção de paz com um efetivo superior a 9 mil militares, uma força de
polícia ultrapassando os 1.200 elementos, e algumas centenas de contratos civis
para guarnecer os Departamentos Centrais em Díli e as administrações
distritais. A esta nau juntavam-se as barcas coadjuvantes do Programa de
Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD), do Banco Mundial, da OIM, do
Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e,
naturalmente, os dispositivos nacionais a montante dos maiores doadores –
Portugal, Japão, Austrália –, e daquilo que sem perversão se poderia designar
como os “pequenos e médios parceiros” no terreno – como os Estados Unidos
da América (EUA), a Comissão Europeia, a Nova Zelândia e mesmo o Brasil. A
presença da República Popular da China era bem sinalizada com um
Embaixador cuja única língua estrangeira era o português, bem consolidado na
Universidade de Coimbra, e que cerimoniosamente era das poucas entidades
presentes em Timor-Leste, a par dos dois bispos, a quem se ouvia aludir ao
Administrador Transitório como “Senhor Doutor Vieira de Mello” (sic).
“Esta camisa de sete varas”4 do Administrador Transitório era
aconchegada no seu forro pelos timorenses – dirigentes históricos que
reemergiam das montanhas, da prisão, ou até mesmo da extinta administração
ocupante, a uma possante Igreja (católica, apostólica, romana, no sentido literal)
que se assumia no pico da transição como o tecido social mais presente em todos
os cantos do território, algumas vezes claramente sobreposta às redes da
resistência. Sérgio não era um santo (nem tinha essa pretensão), e embora
respeitasse a Igreja e o seu papel fundamental em Timor-Leste nunca nos
pareceu devoto, apesar do sem número de cerimónias religiosas a que todos

4
“Camisa de sete varas”, situação difícil de que se escapa ileso.

218
Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021
assistíamos naquela época. Política e religião viviam lado a lado, e Sérgio sabia
disso e tomava-o em conta nas suas decisões.
A “chama” de Sérgio ajudou, sem alguma dúvida, a cimentar uma
missão cujo elenco tinha de ser desenhado pela esquadria de Nova Iorque e que
ser repartida entre equilíbrios regionais e perfis mais ou menos aproximativos,
por vezes a fugir para o Cafarnaum, por vezes próximo do equilíbrio idealizado
no espírito do Administrador Transitório. “Coube-lhe em rifa”, como
Representante Adjunto, na primeira leva do mandato, Jean-Christian Cady, um
prefeito francês com uma experiência anterior no Kosovo, substituído a meio da
transição por Dennis McNamara, um antigo companheiro de caminho. Os
lugares imediatamente abaixo do Administrador – “Chief of Staff”, “Force
Commander” ou “Police Commissioner”, que recaíram sobre um embaixador
malaio, um general filipino e um superintendente-chefe da Polícia de Segurança
Pública portuguesa – escapavam naturalmente à sua escolha final, tal como os
chefes dos vários Departamentos da UNTAET, onde nos assuntos políticos se
destacavam o norte-americano Peter Galbraith, antigo embaixador na Croácia,
o canadiano Michael Francino ou a moçambicana Gita Honwana Welch.
Numa segunda linha, surgia um circuito de pessoas que partilhariam
maior proximidade de conselho e, quiçá, empatia com Sérgio, como Fabrizio
Hochschild Drummond (atual Enviado Especial do Secretário-Geral das
Nações Unidas para a Tecnologia), depois substituído por Jonathan Prentice.
Em segmentos particulares do processo encontrávamos outros conhecidos de
mais antigas andanças, como Nicola Darhendorf (consultora na reestruturação
das FALINTIL- Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor-Leste) ou
Carlos Valenzuela (coordenador eleitoral). Ainda neste excipiente surgiriam os
diplomatas portugueses colocados junto do Administrador Transitório – a
quem sem desprimor, mas com todo o mérito, competia “tapar buracos” [“fill
the gaps”] com o lado português no processo, como Carmen Silvestre, Pedro

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 219


Adão, Pedro Rodrigues da Silva e Mário Martins –, bem como os diplomatas
brasileiros colocados no Departamento de Assuntos Políticos, como Flávio
Damico, Paulo Uchoa ou Luciana Mancini, sobre quem mais recaiu o lado
timorense, no apoio à constituição do Governo de Transição e à formação do
Conselho Nacional, que preparou a Constituição.
De setembro de 1999 até ao início de funções do Primeiro Governo de
Transição, em 12 de julho de 2000, o protagonismo dos atores internacionais –
Peter Cosgrove no momento inicial de presença da Força Internacional para o
Timor-Leste (INTERFET), e Sérgio Vieira de Mello, com a UNATET – foi
inquestionável. Era evidente o alívio, a esperança e a confiança que estas
chegadas deram a timorenses e, por extensão, o efeito que produziram na
realidade e no clima emocional de todos os expatriados, entre os quais os
portugueses, que representavam a maior comunidade, com mais de 1.000
cidadãos no terreno, entre militares, professores, cooperantes, funcionários de
organizações internacionais e não governamentais e pessoal da missão
diplomática. A hospitalidade e o reconhecimento dos timorenses e das principais
figuras nacionalistas, entre os quais os bispos de Díli e de Baucau e Xanana
Gusmão num primeiro plano, era evidente. Nessa fase inicial da transição, a
experiência e dotes de liderança de Sérgio Vieira de Mello na reabilitação e
coordenação da assistência humanitária foram também cruciais.
Estendido a todo o território o manto da administração das Nações
Unidas, saíam de dentro desta barca de Noé todas as variantes possíveis na
distribuição de papéis e funções. Exemplos extremos das combinações mais
improváveis foram, talvez, Aleksandr Pankin, então um jovem diplomata russo,
que exerceu funções que ele próprio reconheceu como “extremamente
modestas” enquanto conselheiro político na administração do distrito de
Manatuto, e hoje é um dos Vice-Ministros dos Negócios Estrangeiros da
Federação Russa; ou um antigo Ministro de Educação do Ruanda que viria a

Negócios Estrangeiros N.º 21. Edição Digital, outubro de 2021 220


ser o Chefe de Protocolo da UNTAET. Sérgio conseguiu manter sempre o
equilíbrio da Nau, entre as vicissitudes de Timor-Leste e a linha de navegação
traçada em Nova Iorque. Mas nem sempre terá sido fácil.
Como chefe da grande orquestra da transição, por vezes alguns naipes
de som escapavam à regência e, para manter a harmonia do conjunto, o próprio
Maestro Vieira de Mello integrou pontualmente polifonias fora de pauta para
assegurar a execução da obra.
As críticas à UNTAET eram uma constante. Críticas aos limites
impostos pelas Resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas
(CSNU), aos cortes “cegos” definidos pela 5.ª Comissão da Assembleia Geral
(para os assuntos financeiros e orçamentais), ao ritmo e ao alcance do processo
de transição (conhecido por “timorização” da administração), ao rótulo de
indiferença e insensibilidade colado à pele dos “internacionais”. Nos dias em que
os rumores se tornavam variáveis políticas, Sérgio surgia – ainda que raramente
– um pouco impaciente e tenso, com o maxilar inferior a apertar-se firmemente
por baixo da pele, enquanto conservava uma aparência de controlo e paciência.
Sabia bem que as Nações Unidas tinham absolutamente de evitar serem vistas
pela população e os líderes timorenses como uma (nova) força de ocupação.
E, por isso mesmo, não hesitou quando, pontualmente, se viu obrigado
a corrigir ou contrariar o seu próprio pessoal, desencorajando as festas no Clube
das Nações Unidas, interditas aos locais, ou mandando retirar a cerca de arame
farpado com que um diligente chefe da administração da Missão, recentemente
chegado à ilha, resolvera “proteger” o Palácio do Governo.
Daquilo que testemunhámos, parece-nos claro que em agosto de 2000,
coincidindo com o primeiro (e único) congresso do Conselho Nacional da
Resistência Timorense (CNRT), que então congregava todas as forças
nacionalistas, e com a aproximação da revisão do mandato da UNTAET no
CSNU, os sinais de preocupação perante uma possível infiltração de antigas

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milícias integracionistas poderão ter sido sombreados para impulsionar uma
revisão em alta do efetivo da força de manutenção de paz, em benefício da
proteção dos resultados alcançados e da visibilidade global da UNTAET até à
data da independência.
Entre a burocracia de uns e a desconfiança e impaciência de outros,
Sérgio soube perseverar numa rota pautada pelo constante diálogo e mediação.
Percebeu que independência pressupunha segurança e estabilidade, e
igualmente desenvolvimento e criação de capacidades endógenas. Estabeleceu
o Conselho Nacional Consultivo e, mais tarde, um “governo”, com metade de
funcionários da UNTAET e outra metade de timorenses. Negociou as
indicações com a liderança timorense, procurando que se sentissem envolvidos
em cada momento.
Convém lembrar que quando Sérgio chegou a Timor-Leste em 1999,
o êxito da UNTAET não era de todo evidente. Mesmo por ocasião da
independência, Sérgio permaneceu prudente, embora genuinamente orgulhoso
e confiante no seu trabalho, e não escamoteou os inúmeros desafios que o 192.º
Estado das Nações Unidas deveria ainda superar, nomeadamente dificuldades
económicas e financeiras expectáveis5.
Estava consciente de que Timor-Leste tinha sido uma experiência
única para as Nações Unidas, a success story de que tanto precisavam a seguir às
tragédias dos Balcãs e do Ruanda. A organização governara efetivamente o
território naqueles dois anos e meio e, na opinião de Sérgio, deveria tirar lições
para o futuro, em particular quanto à partilha de tomada de decisões entre a
autoridade executiva e os representantes nacionais, à criação de instituições
democráticas e à preparação eficaz de uma nova liderança. Isso mesmo disse em
novembro de 2002, num discurso no Instituto Universitário de Estudos do
Desenvolvimento, em Genebra, quando afirmou que embora compreendesse os

5
Mello, S. V. de (19 de maio de 2002). Le Progrès.

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que defendiam que a criação de Estados não devia tornar-se tarefa da ONU, se
as condições de Timor-Leste se repetissem ninguém mais o poderia fazer e
teriam de ser encontradas ainda melhores soluções. “As Nações Unidas não
podem ter a atitude de um Estado colonizador, mas têm o poder de apoiar a
edificação de um Estado quando este está numa situação de total colapso. É para
isso que as Nações Unidas servem, e é por isso que devem encontrar respostas
cada vez melhores”.
Para os diplomatas portugueses em Timor-Leste, quer os que
integravam a UNTAET, quer os da missão diplomática chefiada pelo Pedro
Moitinho de Almeida, quer os que estavam “emprestados” à liderança timorense
para os ajudar a construir as suas instituições, como o João Ribeiro de Almeida,
como para quase todos os outros que com ele se cruzaram, Sérgio era
simplesmente Sérgio. Não era o “Senhor Administrador”, o “Senhor
Representante Especial” ou o “Senhor Dr. Vieira de Mello”. Dele, todos temos
histórias e lembranças, palavras e exemplos que pretendemos replicar, passos
que nos esforçamos por seguir.
Não tendo sido, nem pretendendo ter sido, próximos de Sérgio,
esperamos que este testemunho do que observámos do homem e do profissional
inspire as gerações de diplomatas mais jovens, a que Sérgio era particularmente
sensível, a seguirem os seus princípios e valores, profundamente humanistas. Já
em Timor-Leste tínhamos a perceção de estar perante alguém que viria a ter
posições cimeiras na hierarquia “onusiana”. Quando foi para o Iraque, quase
todos apostávamos que se tornaria o sucessor de Kofi Annan.
Não será demasiado esperar que, em 20 de maio de 2022, quando
Timor-Leste comemorar o 20.º aniversário da sua bem-sucedida independência,
possa prestar algum tipo de reconhecimento e de homenagem a Sérgio, um

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homem excecional6 (6), que descansa no cemitério de Plainpalais (Cimetière des
Rois), em Genebra, e na memória de todos os que o continuam a admirar.

6
Gordon-Lennox, G. & Stevenson, A. (2010). Sergio Vieira de Mello: Un homme
exceptionnel. Genebra: Tricorne.

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Uma forte presença no mundo: a diplomacia
portuguesa e a Rússia
Sandra Fernandes* e Luís Lobo-Fernandes**

Resumo: A institucionalização das relações regulares entre Estados marcou o


advento de uma nova fase nas relações internacionais com expressão no
emprego de representantes diplomáticos acreditados. Após um enquadramento
sobre a evolução da ação diplomática, o estudo de caso constante deste artigo
debruça-se sobre aspetos essenciais da diplomacia portuguesa no respeitante à
Rússia nos últimos trinta anos na base de entrevistas a três Embaixadores
portugueses em Moscovo, explorando quer a vertente bilateral, quer a vertente
multilateral cada vez mais determinante para Portugal. O artigo, que evidencia
os atributos e as competências necessárias a uma diplomacia atuante e
produtiva, contempla em especial o exercício diplomático perante a grande
potência russa, identificando as suas especificidades, dimensões relevantes e
principais dinâmicas.

Palavras-chave: Ação diplomática; Embaixadores; Federação Russa; Bilateral;


Multilateral.

Introdução
A diplomacia constitui uma das componentes mais visíveis do cenário
internacional, emergindo com especial projeção após os tratados de Vestefália
de 1648. É a institucionalização das relações regulares entre Estados que marca
o advento de uma nova fase nas relações internacionais (Chazelle, 1968). Esta
maior institucionalização remetia para a necessidade do emprego de
intermediários regulares – ou diplomáticos residentes - nos contactos entre
Estados.

*
Professora Auxiliar na Universidade do Minho
E-mail: sfernandes@eeg.uminho.pt
**
Professor Catedrático (aposentado) da Universidade do Minho
E-mail: luislobo@eeg.uminho.pt
225

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Na aceção geral o termo diplomacia significa a condução dos negócios
interestatais por meios pacíficos, bem como o conjunto dos instrumentos e
atividades consagrados ao serviço da política externa, sendo a ação dos
diplomatas – ou seja, dos agentes da alta administração do Estado – uma das
suas expressões fundamentais. Richelieu, responsável pela autêntica revolução
que empreendeu no serviço externo do Estado francês na primeira metade do
séc. XVII, anotaria que as relações externas de carácter contínuo requeriam
negociação contínua1. Segundo este homem de Estado um dos propósitos da
diplomacia era o de estabelecer e manter a confiança, e ser, nos seus
fundamentos, ideologicamente neutra e baseada sempre no rigor. Uma grande
preocupação com a dimensão qualitativa da diplomacia acentuando o controlo
unificado das relações externas por um lado, e a importância da reputação dos
Embaixadores por outro.
O que se pretendia evidenciar sobremaneira? A ideia de que os
negociadores devem ser interlocutores que têm a capacidade de passar as
mensagens de forma exata. Estavam, assim, esboçadas uma maior
racionalização da ação diplomática e as bases da organização do moderno
sistema diplomático.
O presente artigo tem por objetivo evidenciar a natureza e o alcance
da ação diplomática de Portugal em relação à Rússia em períodos distintos e
marcantes do relacionamento bilateral e multilateral, atendendo ao corrente
curso de reasserção da potência russa. As fontes da nossa análise englobam a
triangulação de fontes primárias, secundárias e entrevistas qualitativas semi-
estruturadas a embaixadores. As entrevistas principais foram realizadas com o
Embaixador José Manuel Villas-Boas, o Embaixador Manuel Marcelo Curto e
o Embaixador Paulo Vizeu Pinheiro, em abril e maio de 2021. Apresentamos a
visão dos três insignes Embaixadores sobre a identidade de política externa da

1
O Testament Politique de Richelieu foi escrito em 1638 para o rei Luís XIII.

226
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Rússia, plasmando assim a perceção portuguesa sobre o país mais extenso do
mundo e a relevância da perspetiva histórica na atuação diplomática.
Na primeira parte enquadramos as características da ação diplomática
na atualidade. Na segunda, identificamos a forma como a Federação Russa é
“decifrada” no âmbito do exercício dos representantes diplomáticos de Portugal.
Na terceira, salientamos a evolução do papel da diplomacia portuguesa na
vertente bilateral e multilateral do relacionamento com Moscovo.

1. A diplomacia hoje e os papéis do diplomata


A estruturação da diplomacia em sentido moderno traria novos
desenvolvimentos e um maior apetrechamento institucional, aquilo que se
poderia denominar contemporaneamente como a “máquina diplomática”.
Hodiernamente, o exercício diplomático é fundamentalmente definido pelas
atividades de representação, negociação, proteção, informação e promoção
(Calvet de Magalhães, 1982). No respeitante à promoção dos interesses, a
consolidação de “redes diplomáticas” potenciaria concomitantemente a
expansão das relações comerciais com tradução no conceito atual de diplomacia
económica.
Outros desenvolvimentos significativos mais recentes incluem, por
exemplo, a expansão da diplomacia digital (Bjola e Holmes, 2015). No futuro, a
quantidade de informação cada vez mais disponível e acessível poderá diminuir
o papel da comunidade diplomática no processo de intelligence gathering. Perante
esta tendência crescente o papel do diplomata pode perder a pertinência passada
na recolha de informação, mas adquirirá uma nova importância na análise da
mesma; com efeito, a voz de um especialista será insubstituível no que toca à
diferenciação entre o que é pertinente e aquilo que é meramente ruído. Emerge,
também, cada vez mais, a “diplomacia pública” que, através do recurso às redes

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digitais e ferramentas mediáticas, é capaz de aumentar o alcance da mensagem
política no espaço público externo (Seixas da Costa, 2017).
A prossecução dos objetivos de política externa e a necessidade de dar
corpo às orientações do Estado por parte dos diplomatas requerem um conjunto
de atributos que se podem considerar singulares no conjunto da alta
administração pública. Perspetivando mais especificamente o caso de Portugal
a função diplomática revela-se mais do que uma mera escolha profissional ou de
carreira, podendo mesmo considerar-se um “desígnio de vida” na medida em
que o que está em causa é não só um estatuto permanente, mas também a defesa
e a promoção de primeira linha dos interesses do país.
Neste plano, o sentido patriótico é intrínseco à função, como também
o é um forte sentido da História, o qual ficará exemplificado na seção seguinte
no caso da relação com a Rússia. O diplomata condensa, pois, em simultâneo,
no seu exercício, o passado e o presente do Estado português, exercício esse que
se cruza necessariamente com os interesses políticos e económicos
contemporâneos. Acresce que a competência de um funcionário diplomático
será sempre medida em função da capacidade de levar por diante as orientações
gerais e as instruções do governo que representa, associado ao que se poderia
talvez chamar de alguma “capacidade de cativar”2. Contudo, os atributos
pessoais do diplomata não são independentes das atividades nucleares do seu
exercício. Nesta medida, a função de representação exige à partida integridade,
grande sentido de serviço, e capacidade de comunicação, desde logo oral. As
altas funções que o diplomata é chamado a desempenhar exigem também
cultura ampla, capacidade de adaptação aos mais diversos entornos, pensamento
estruturado, quick thinking e ponderação nos vários níveis da sua ação, muitas

2
Na terminologia corrente do Ministério dos Negócios Estrangeiros português, os
diplomatas designam-se de “funcionários” tout court - no sentido mais lídimo e também mais
nobre da função, sublinhe-se -, evidenciando o seu estatuto de quadros de topo dedicados ao
serviço do Estado.
228

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vezes definido como um verdadeiro trabalho de paciência à la longue, que não
dispensará necessariamente a busca de equilíbrios realistas.
Nos planos mais específicos da informação e da negociação aqueles
atributos e a competência estão especialmente interligados: a capacidade de
avaliação criteriosa das circunstâncias combinada com pragmatismo e uma
atitude eminentemente prudencial, que não invalida espírito de iniciativa na
resolução de problemas supervenientes. A atenção ao detalhe afigura-se
igualmente imprescindível, isto é, a capacidade de ser rigoroso no ajuizamento
das diferentes variáveis. Esta vertente fundamental do trabalho do diplomata
deve traduzir-se na qualidade dos seus relatórios – vulgo, telegramas3 - que
devem evidenciar capacidade de sistematização e síntese, e que, idealmente,
propiciem uma hierarquização dos fatores preponderantes. A qualidade dos
memoranda carreados pelos diplomatas para o seu governo revelar-se-á
fundamental na determinação da condução de uma dada política externa.
As vertentes inerentes à ação diplomática, acima evidenciadas, estão
delimitadas pela orientação da política externa portuguesa. Esta última assenta,
em primeiro lugar, no pilar europeu, em estreita interligação com as prioridades
atlânticas e lusófonas (Governo de Portugal, 2013). Daí resulta que, nas suas
relações externas, Portugal dá prioridade a ambientes multilaterais para além
da União Europeia, como a Organização do Tratado do Atlântico Norte
(NATO), as Nações Unidas, e a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa
(CPLP). Dessa forma, o país participa em diversos centros políticos, materializa
a sua vocação global e, eventualmente, evita a marginalização de um Estado
com recursos limitados. De seguida, apresentamos a forma como a diplomacia
portuguesa tem concretizado estes desígnios na sua relação com Moscovo.

3
No âmbito do MNE português, os relatórios que os representantes diplomáticos
remetem para a tutela continuam a ser comummente designados de telegramas.

229
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2. A Rússia pós-soviética e o seu estatuto internacional
O estudo do período que se segue à implosão da União Soviética, em
dezembro de 1991, configurava um importante desafio teórico que implicou
ajustes consideráveis, quer na agenda de investigação, quer nos planos político
interno e externo. O curso dos acontecimentos tornou-se mais imprevisível. Em
particular, a consequente atomização do país gerará 15 novos Estados
independentes. Esta importante mutação que espoleta um ciclo mais aberto das
relações internacionais é acompanhada de um elevado grau de complexidade e
incerteza, com particular acuidade no grande teatro europeu. Como assinalou
Margaret Paxon (2004), a história não ia numa única direção. A metamorfose
das relações internacionais define-se doravante por um cenário difuso e mais
volátil, adensado pela aceleração da globalização financeira e comunicacional,
obrigando porventura a um maior esforço negocial, consensos e parcerias
flexíveis, que não resultam necessariamente nas chamadas “situações ótimas” de
Pareto (Lobo-Fernandes, 2008). As expressões de rivalidade no ciclo
internacional pós-Guerra Fria não desaparecem, mas operam numa gama
diversificada de dinâmicas interdependentes entre uma variedade significativa
de atores, cujo caso mais patente é a própria União Europeia.
No que concerne mais especificamente Portugal, em 1974 são
restabelecidas as relações diplomáticas entre o Estado português e a União
Soviética, uma das duas superpotências de então. No início do período pós-
soviético, que vai ser liderado pela forte personalidade de Boris Ieltsin (1991-
1999), emerge a convicção das vantagens em amplificar o diálogo político com
os países ocidentais, revelando um eixo de continuidade interessante com as
políticas de Gorbatchov e de Primakov. Andrei Kozyrev (Ministro russo dos
Negócios Estrangeiros entre 1991 e 1996) fazia inclusive apelo a uma “aliança
de Estados” que partilham princípios democráticos e à “unidade multipolar na

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diversidade”; este dirigente afirmará mesmo o desiderato da Rússia em integrar
o grupo do G7, o que acabaria por concretizar-se em 1998 (Guellec, 2004).
Os objetivos de modernização da Rússia e a política de “não-
confrontação” com o Ocidente pareciam sobrepor-se a considerações
geopolíticas mais cruas. Este período de maior dinâmica de aproximação
traduzir-se-á, em 1997, na assinatura do Acordo de Parceria e Cooperação
(APC) entre a Federação Russa e a União Europeia. Esta orientação terá de
certa forma continuidade no primeiro mandato de Vladimir Putin (1999-2004),
cujo pensamento poderia sintetizar-se na fórmula “modernização via
europeização”, uma ideia, contudo, marcada por uma ambiguidade de
modernização “dentro do Ocidente”. As relações com a União Europeia e os
países ocidentais não correspondiam a um imperativo ideológico novo, antes
representavam um cálculo estratégico destinado a acelerar a modernização da
Rússia (Trenin in Lobjakas, 2002). De notar que a UE continua a ser o maior
parceiro comercial da Rússia, sendo também o maior investidor externo no
país4.
No relacionamento com o maior país do mundo, o Embaixador Paulo
Vizeu Pinheiro sublinha a importância da leitura histórica5. A Rússia é uma
nação ancestral com vários berços, sendo, por exemplo, o reinado de Catarina
“a Grande”, e D. Maria I, duas mulheres à frente de dois impérios navais, o
marco das relações bilaterais com Portugal. Da evolução histórica advém a
multiplicidade das identidades russas: europeia, tártara e asiática. No entanto,
“na Ásia, a Rússia é europeia – a moldura do Estado assenta na cultura europeia
–, e na Europa acha-se mais europeia que a Europa”. Percecionando-se como os

4
Cerca de 38% das importações russas originam na UE e cerca de 40% do gás e
36% do petróleo importados pela UE são comprados à Rússia (European Commission, 2021).
5
O Embaixador Paulo Vizeu Pinheiro foi Embaixador de Portugal junto da
Federação Russa desde setembro de 2017 até agosto de 2021. Foi Ministro-Conselheiro na
mesma Embaixada entre outubro de 1998 e o verão de 2002.
231

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novos “herdeiros de Roma e Bizâncio”, o Embaixador lembra que os russos são
os ortodoxos (onde os valores tradicionais de Constantinopla estão presentes)
e são uma matriz importante da Europa, tendo participado na luta contra
perigos consideráveis tais como o Império Otomano ou a Alemanha nazi.
A dimensão euroasiática do país é uma questão que os próprios não se
colocam sendo uma evidência da sua realidade mesma. A Rússia é a única
potência europeia que é, simultaneamente, para-Atlântica (pelo acesso que tem
pelo eixo mar do Norte/mar Báltico e mar Barents-mar Noruega), Pacífica,
Transcaucasiana (Mares Cáspio e Negro) Mediterrânica (via bases aéreas e
navais na Síria) e Asiática. É o país europeu mais transcontinental, o qual não
se questiona acerca da sua identidade. Existindo um profundo sentimento de
serem europeus, este vetor é central em Moscovo. O vetor asiático não é tão
essencial, mas é cada vez mais importante para as questões energéticas,
comerciais, agrícolas e tecnológicas, e no contexto de mudança da balança de
poder (económico, financeiro, tecnológico, militar e demográfico) em direção ao
Pacífico. Tendo participado nos grandes combates do século XIX e XX, a
Rússia percebe bem a sua relevância internacional. Prevê-se que a Rússia
também assuma relevância no Indo-Pacífico no século XXI porque o país tem
de facto uma dimensão euroasiática e pode estar nesses espaços variados. Por
exemplo, tem considerável influência sobre o Mar Negro e o Mar Cáspio e
retomou os voos globais (África do Sul, Venezuela). Mas sobretudo porque irá
ser o país crucial na nova rota do Mar Ártico ligando Pacífico ao Mar Barents
e da Noruega.
Ademais, não tendo ideologia clara em contraponto com o período
soviético, o país é orientado em torno do nacionalismo russo e de uma “economia
capitalista dirigida”. Esta maleabilidade permite-lhe relacionar-se com todos os
Estados terceiros. Em particular, a sua posição na Transcaucásia e influência
securitária na Ásia Central confere-lhe um papel chave na ligação Europa-

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China. Com uma política muito vasta de aproximação ao G77 e a narrativa de
um mundo multipolar, Moscovo passou, nos últimos vinte anos, a ser de novo
uma potência militar em pé de igualdade com os EUA no âmbito nuclear (e sê-
lo-á também na nova tipologia de armas, como as hipersónicas). De notar,
porém, que a reemergência política e militar russa não acompanhou a
reemergência da China no plano económico. A Rússia recuperou a sua paridade
estratégica com os EUA pela via dos armamentos, enquanto que a paridade
estratégica no plano económico, tecnológico e industrial ficou reservada para o
eixo EUA-China.
A Rússia é também de certa forma vítima do decoupling. Estando em
dois polos de inserção – euroatlântico (economias liberais, democracias,
normativização) versus China, Moscovo pretende ser um parceiro útil para
todos. Não sendo o país o elemento mais importante do multipolarismo, é
relevante porque estabelece ligações ao polo chinês e euro-atlântico e ligações
ao sudeste asiático, com um regresso em força em África e América Latina (neste
caso também pela via da substituição do comércio agrícola ocidental). Segundo
Paulo Vizeu Pinheiro, os russos serão o “quinto polo”, essencial para a
articulação das várias alianças ou comunidades de integração. É esta a visão que
começou a ser construída com Primakov e depois foi sendo concretizada por
Putin. Mas, com o abandono da ideia da “casa comum europeia”, a Rússia já não
se sente europeia na aceção de já não se sentir comprometida com o espaço
normativo e de valores euro-atlântico.
Hoje, a Rússia almeja o seu espaço próprio de afirmação, procurando
entendimentos pontuais, ora com a China, ora com os EUA. Este jogo “em dois
tabuleiros” permite-lhe criar uma capacidade de rejeição da hegemonia
americana juntamente com Pequim. Em suma, a Rússia continuará a ser um
fator decisivo (como foi no século XIX contra Napoleão e o Império Otomano,
e no século XX contra Hitler), sentindo-se verdadeiramente excecional e

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resiliente. Isto porque Moscovo se posiciona contra as potências dominantes
numa postura assertiva que não contempla o fechamento territorial, numa linha
de continuidade da sua história.

3. Os papéis dos diplomatas nas vertentes bilateral e multilateral


De outubro de 1993 a maio de 1996 Portugal é representado em
Moscovo pelo Embaixador José Manuel Villas-Boas, vindo da embaixada em
Pequim. Este período corresponde a uma fase extremamente complexa de
transição política na Rússia, definido pelo fim da União Soviética, ocorrido em
Dezembro de 1991, e pela total desagregação do modelo de economia
centralizada. A nova Federação Russa – principal Estado sucessor da URSS – é
presidida por Boris Ieltsin, um líder forte e marcante, que se tinha imposto no
verão de 1991 aquando da tentativa de golpe de Estado por parte dos setores
mais conservadores do partido Partido Comunista da União Soviética (PCUS)
contra a liderança de Gorbatchov.
No que respeita a Portugal, a nomeação de um Embaixador com
grande experiência diplomática traduzia de alguma forma o entendimento do
Governo português sobre a complexidade da situação na Rússia. Podemos
afirmar que o plano do relacionamento bilateral no âmbito deste período fica
sobretudo marcado pela assinatura e ratificação do Tratado de Amizade e
Cooperação entre a República Portuguesa e a Federação Russa, ratificado pela
Assembleia da República e por decreto do Presidente da República no dia 14 de
outubro de 1995. É um momento marcante na relação bilateral que afirma uma
posição de relevo e uma atenção especial de Portugal perante a nova realidade
da Rússia pós-soviética. A perceção do Embaixador Villas-Boas, expressa na
entrevista concedida aos autores, era a de que o Presidente Ieltsin tinha como
“imagem genérica” a formatação de um novo sistema político “próximo das
democracias europeias”, muito embora a partir de 1993 se acentuasse uma maior

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concentração dos poderes na figura do presidente, em detrimento da Duma. A
entrevista permitiu vincar um conjunto de dados importantes no respeitante à
caracterização da Rússia em termos da sua imagem própria de “grandeza
imperial”, apesar das dificuldades de monta que o país então atravessava: uma
visão histórica e “orgulhosa” da sua dimensão transcontinental e da sua
“identidade dualista europeia e asiática”. No quadro das relações com a Rússia
o Embaixador Villas-Boas chamaria, aliás, a atenção para a necessidade de um
“correto entendimento” das especificidades de uma Rússia com estatuto
imperial, e de uma “alma que não se pode ferir”. Daí que o relacionamento de
outros Estados com a Rússia requeira no plano diplomático especial
preocupação, “especial cuidado, mesmo”. Nas palavras de Villas-Boas, falamos
de uma “diplomacia de respeito pela História russa”. A proposição sintetiza-se
de certa forma na ideia de uma visão cultural de si mesmos: “Eles são (somos)
diferentes”.
O Embaixador relatou-nos que foi sempre recebido de forma “muito
cordial”, demonstrativo do “reconhecimento e respeito por Portugal e pela sua
História”, na verdade, uma nação de rosto atlântico “com forte presença
internacional e com capacidade de diálogo”. Para lá dos contactos oficiais,
Villas-Boas recebeu igualmente o ex-presidente Gorbatchov na Embaixada de
Portugal com o intuito de aprofundar o conhecimento das circunstâncias da
transição muito difícil que o país atravessava. Entrevemos aqui outra dimensão
importante do exercício diplomático, a saber, as variáveis para um “bom
relacionamento” que também se definem por “gestos diplomáticos” ou “gestos
simbólicos”, nomeadamente em relação a personalidades de grande relevo no
plano político ou cultural no país onde o diplomata está acreditado. A estrutura
da Embaixada no período em causa podia considerar-se “adequada” para as
necessidades de uma representação diplomática que aspirava,
concomitantemente, a incrementar as relações a nível comercial com a Rússia

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pós-soviética. Por último, o Embaixador Villas-Boas entende que se vive
atualmente uma espécie de “guerra morna” entre a Rússia e os Estados Unidos
– e de alguma forma com o conjunto do Ocidente – considerando todavia que é
um “choque desnecessário”.
O Embaixador Manuel Marcelo Curto foi um dos diplomatas
portugueses que mais tempo esteve destacado na Embaixada de Portugal em
Moscovo. Com efeito, na sequência do estabelecimento de relações diplomáticas
entre a República Portuguesa e a União Soviética, em 1974, seria nomeado –
ainda numa fase inicial da sua carreira – na qualidade de Secretário de
Embaixada, com o Embaixador Mário Neves. No que respeita a este período
específico, Marcelo Curto assinala que os anos de 1974-1975 foram bastante
marcados pelo processo de independência das colónias portuguesas em África,
uma questão crucial para Portugal que era, do mesmo passo, importante
elemento na “definição geopolítica” da URSS no continente africano e, também,
a nível global.
Em outubro de 1990 seria destacado de novo para Moscovo sendo
representante diplomático o Embaixador António Costa Lobo, permanecendo
em funções com o Embaixador José Manuel Villas-Boas a partir de 0utubro de
1993 na qualidade de Ministro-Conselheiro, até à sua designação para
Embaixador no Irão em junho de 1994. Em 0utubro de 2004 regressa à Rússia
como Embaixador de Portugal, até Outubro de 2009, quando foi designado
Embaixador de Portugal na Áustria e Representante Permanente junto das
Nações Unidas em Viena e da Agência Internacional de Energia Atómica
(AIEA). A entrevista que o Embaixador Marcelo Curto concedeu aos autores
deste artigo abrangeu um conjunto de questões que elencamos em três
vertentes principais embora interligadas: a Rússia e o seu estatuto
internacional; a imagem de Portugal na Rússia; e, por último, o exercício do

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representante diplomático em Moscovo que se combina com os recursos e o
apetrechamento da própria Embaixada.
No que concerne ao perfil desta grande potência, emerge a sua
especificidade no plano mundial: um estatuto de grandeza e uma estatura
imperial. Uma Rússia com uma forte imagem de si própria, que não admite a
ideia de ser junior partner seja de quem for. As referências históricas mais
marcantes referem-se ao Czar, ao Imperador (que se afirma como autocrata, não
pela graça de Deus) e a uma lógica de poder muito visível: “o poder é para se
ver”, acentuou Marcelo Curto. Neste sentido, o poder não tem uma base
necessariamente institucional, mas está sobretudo corporizado na imagem do
Czar. O modelo político atual é, assim, fortemente centrado na figura
proeminente – icónica – do Presidente. Uma identidade muito própria – definida
pela afirmação que faz de si mesma - e que, nessa medida, se afirma por uma
ideia de força, encapsulando uma mentalidade muito específica. Neste contexto
cultural o indivíduo aparece algo subsumido no chamado espaço público. Como
referiu este antigo embaixador em Moscovo, que fala fluentemente a língua
russa, os verbos “ser” e “ter” não são conjugados da mesma forma que nas
línguas latinas ou germânicas, salientando o carácter difícil e complicado desta
língua eslava. Expressões como eu sou ou eu tenho são locuções construídas de
forma diversa. Nesta medida, a identidade do indivíduo está sobretudo
traduzida na imagem que se “dá” e se “projeta”: em russo, uma pessoa apresenta-
se, não pela declinação do seu nome, mas dizendo chamam-me Igor ou chamam-
me Galina – “somos como nos vêm”. Outra circunstância que pode acentuar a
especificidade política da Rússia, para a qual chamou a atenção o Embaixador
Marcelo Curto, decorre do facto de a sociedade russa não ter vivenciado nem a
Renascença, e o que ela significou de afirmação da liberdade de criação, nem a
Reforma, com o que ela trouxe de colocação do indivíduo no fulcro da
construção do Estado. Nesta medida, sublinharia ser sempre fundamental por

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parte dos representantes diplomáticos “estudar e situar correctamente o país de
destino” – no caso vertente, a Rússia – de modo a compreender as suas
características, especificidades, e respetivo perfil no sistema internacional. Fez,
aliás, referência expressa a uma “visão integrada da diplomacia” compreendendo
as vertentes político-diplomática, económica e cultural, permitindo, assim, que
possam funcionar as sinergias entre elas.
No contexto desta entrevista o Embaixador Marcelo Curto usou a
imagem de “Portugal com uma forte presença no mundo” (expressão que
transpusemos para o título deste artigo). Pode considerar-se esta imagem uma
ilustração assaz feliz da forma como em muitas latitudes se perspetiva Portugal.
Neste plano, o diplomata assinalou que Portugal detém, também na Rússia, uma
excelente imagem de facilitador e de mediador, sendo, por conseguinte, fautor
de moderação e estabilização nas relações internacionais. Frisou que a visão
deste perfil de mediador e facilitador não é apenas a Rússia que a tem, “mas no
caso da Rússia pesa muito”. Como ilustração particularmente aguda, o
diplomata refere o caso do papel de Portugal enquanto mediador no conflito
angolano – “algo de bastante extraordinário já que Portugal era a antiga
potência colonial”. Na verdade, acrescentou, Portugal mostra uma influência
superior ao estatuto do país numa escala de potências. “Os parceiros ouvem-
nos”, disse.
No quadro do trabalho propriamente dito do representante
diplomático, o Embaixador Marcelo Curto sublinha ser fundamental “tecer o
relacionamento com consistência e coerência” no sentido – ajuizaríamos - de
não dar aso a posicionamentos equívocos. Exemplifica da seguinte forma: ter
sempre presente o perfil do país que o diplomata representa que, no caso de
Portugal, é um “aliado reconhecidamente leal da NATO e da União Europeia”.
O mesmo ocorre do lado do outro interlocutor, aduz: “Desde o momento em
que as autoridades russas reconheçam que Portugal compreende a Rússia, tal

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facilita o relacionamento”. Por isso, sentido de realismo, atendendo sempre ao
essencial, e uma diplomacia naturalmente “prudente e cautelosa” que se poderia
plasmar na expressão, que não deixa de ter – no ensejo presente – relevante
sentido diplomático: “Portugal, um país que compreende as variáveis de
estabilidade e solidez nas relações internacionais”.
No período específico em que Manuel Marcelo Curto foi Embaixador
em Moscovo – de 2004 a 2009 – podemos identificar um incremento importante
nas relações Portugal-Rússia, que se traduziu nomeadamente na visita do
presidente Vladimir Putin a Portugal em novembro de 2004, na ida do
Primeiro-Ministro português a Moscovo em maio de 20076, e nova deslocação
do Presidente Putin a Portugal em outubro de 2007 para a Cimeira UE-Rússia,
que teve lugar em Mafra, e, nos dias imediatos, para a segunda visita oficial a
Lisboa. Portugal detinha então a Presidência do Conselho da União Europeia
no 2º semestre de 2007, sendo de registar que em resultado dessa condição
especial o Embaixador de Portugal foi convidado pelo Presidente russo para a
“mesa de honra” da receção de Ano Novo no final de 2007 – uma dimensão
simbólica da diplomacia que, longe de ser despicienda, exprime a importância
dos gestos diplomáticos de parte a parte. Neste âmbito, aquando da criação em
2005-06 do Instituto UE-Rússia na Universidade MGIMO – com grande
prestígio na área científica das Relações Internacionais – o embaixador Marcelo
Curto foi eleito vice-presidente pelos seus pares, embaixadores da UE em
Moscovo (período 2006-2009). De registar, pois, as duas dimensões – bilateral
e multilateral – da política externa portuguesa, sendo que a componente
multilateral é absolutamente determinante para Portugal, como relevou
Marcelo Curto. Naquele ciclo, que se perceciona como mais dinâmico no
relacionamento entre os dois países, o presidente Medvedev visitaria

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Refira-se que as visitas dos primeiros-ministros precediam tradicionalmente as
presidências da União Europeia; no caso português, foi a primeira vez que tal se fez.

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igualmente Portugal em novembro de 2008, tendo-se verificado visitas mútuas
anuais dos respetivos ministros dos Negócios Estrangeiros entre 2004 e 2009.
Numa referência aos vários serviços da representação diplomática
Marcelo Curto refere que quando assumiu funções encontrou “uma Embaixada
bem estruturada”, que incluía já os conselheiros cultural e financeiro graças aos
esforços do seu antecessor – o Embaixador João Nunes Barata – algo que não
deixa de frisar. No seu tempo seriam nomeados o Adido Militar, o Conselheiro
técnico (para contacto entre serviços de informações), bem como o Assessor do
SEF. No seu entender foi, assim, possível lograr uma estrutura diplomática
“bastante capaz que permitiu trabalhar adequadamente, com resultados
mensuráveis”; sublinharia, ainda, a boa articulação com o Conselheiro
Comercial (cujas funções são desempenhadas pelo Delegado da AICEP) – na
sua ótica, algo indispensável no trabalho diplomático atual – em que se verificou
um aumento importante de visitas comerciais bem como de Comissões Mistas.
No plano multilateral, o facto de Portugal integrar a União Europeia
desde 1986 acrescentava ao perfil e à relevância internacional do país uma nova
dimensão europeia que se somava à de membro fundador da NATO. Neste
contexto, e segundo o Embaixador Paulo Vizeu Pinheiro, Portugal tem a
vantagem de se situar no extremo ocidental do continente europeu e de não ter
contenciosos históricos e geográficos com Moscovo. Somos encarados por
Moscovo como “a ponte de Lisboa a Vladivostok” e “vemos com distância física,
política e económica”, dando a possibilidade a Lisboa de ter um papel neutro ou
de honest broker. A nossa comunidade geoestratégica é a UE e a NATO mas
somos participantes ativos na ONU, no CdE, e na OSCE, o que é muito
relevante para a Rússia. Tendo leituras menos emocionais, elas são,
simultaneamente, interessadas.
A atuação de um diplomata português na negociação dos cinco
princípios orientadores da relação UE-Rússia no rescaldo da anexação da

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Crimeia por Moscovo é um exemplo ilustrativo da capacidade negocial (Council
of the European Union, 2016). Na direção da Unidade "Rússia" do Serviço de
Ação Externa da União Europeia, o Embaixador Fernando Andresen
Guimarães teve um papel assinalável na criação deste consenso europeu face à
Rússia, tendo também contribuído para a discussão entre instituições europeias,
no âmbito das reuniões ad hoc quinzenais encetadas em 2014 com o objetivo de
coordenar uma abordagem coerente e comum (Fernandes, 2021).
Apesar das vantagens oriundas da distância com a Rússia – que
permite ter posições mais moderadas – o Embaixador Vizeu Pinheiro sublinha
que “os nossos interesses primordiais vivem noutras coordenadas” (Europa,
Brasil, EUA, CPLP, África). Desta forma, na relação bilateral, as relações
comerciais e de investimento padecem da falta de uma história de investimento
cruzado que poderia ser hoje vantajosa para os dois países. Na década de 1990
houve uma europeização da economia russa e vice-versa, enquanto Portugal
apontava para outros mercados em Angola, Moçambique e Brasil. O resultado
atual é a ausência de investimentos estratégicos cruzados entre Portugal e a
Rússia porque não há interesse patente, sendo que as grandes empresas russas
com presença no estrangeiro não estão em Portugal. O espaço para os
investimentos é, pois, muito residual e as tentativas de uma aproximação
económica têm sido defraudas por incidentes com repercussões (Crimeia,
Bielorrússia, Skripal, Navalny, etc). Embora exista um “império de
oportunidades” e um espaço significativo de afirmação, o mesmo não se
materializa porque estamos em “regime de gestão de crises”. É uma realidade
muito difícil de vencer a não ser com um diálogo bilateral muito forte.
Neste sentido, o encontro entre os Presidentes Marcelo Rebelo de
Sousa e Vladimir Putin em 2018 foi um marco importante, tendo resultado em
manifestação de interesse das empresas estatais russas. Contudo, a influência
dos incidentes a nível macro levam a períodos de paragem que não ajudam os

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empresários, preocupados com as sanções e contrassanções. Os efeitos do
regime de sanções, em vigor desde março 2014, são também vistos por Lisboa
com ceticismo face a um país que não é fácil de condicionar politicamente. A
Rússia só se condiciona a si própria, a partir de dentro, e todas as pressões
externas tendem invariavelmente a reforçar quem está no poder ou atrasar
mudanças significativas. Assinala-se também a consulta anual entre ministros
dos Negócios Estrangeiros, acordada em novembro de 2018 entre o MENE
Augusto Santos Silva e o MNE Sergei Lavrov, e que se traduziu num
reconhecimento russo do carácter global do papel de Portugal no Mundo. O
que se afigura o caminho a seguir por Portugal: a aposta num diálogo
institucional forte. A Presidência portuguesa do Conselho da União Europeia
do primeiro semestre de 2021 veio confirmar esta linha de atuação sinergética
entre os níveis bilateral e multilateral, tendo por pano de fundo a criação de uma
Europa Global. A escolha da agenda climática e os desafios da economia verde
como áreas de interesse comum no diálogo com Moscovo e a promoção de um
diálogo construtivo são a marca de uma ação diplomática sui generis em tempos
de profunda crise na relação do Ocidente com a Rússia.

Conclusão
As instituições internacionais são uma pedra angular para a ação
externa de Portugal, cujas elites promovem de forma continuada uma União
Europeia mais ativa na arena global. Esta orientação traduz-se no pragmatismo
e no diálogo com Estados poderosos. No entanto, no curso atual de regresso
dos autoritarismos, o que significa uma abordagem pragmática a uma Rússia
mais iliberal? No quadro de várias crises (resgate financeiro, migração,
pandemia Covid-19, etc.) Portugal continua a ver-se como um país empenhado
no aprofundamento da integração europeia e como uma força de ligação,
caracterizado pelos valores liberais e humanistas.

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A ação diplomática beneficia da evolução do papel de Portugal como
um participante ativo que pode agregar valor ao projeto de integração. Embora
isso não seja diretamente visível nos laços com a Rússia, na medida em que os
interesses diretos portugueses (e russos) estão noutras geografias, o presente
artigo destaca o empenho de Lisboa no estreitamento das relações e na
aproximação com a Rússia, por meio da ação da sua diplomacia em contextos
diferenciados, mas sempre desafiantes. O problema ucraniano, tal como a
anexação da Crimeia consumada em 2014, constituem hoje os maiores
obstáculos a entendimentos mais ambiciosos.

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