Você está na página 1de 6

Itamaraty: uma instituição de Estado, pouco independente de governos

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.


Nota para entrevista com Fabio Cardoso na Rio Bravo Investimentos em 1/09/2023.
Divulgada no dia 13/09/2023 (link: https://www.youtube.com/watch?v=1JJC4Q9eB7E);
informado no blog Diplomatizzando (13/09/2023; link:
https://diplomatizzando.blogspot.com/2023/09/videocast-rio-bravo-as-instituicoes.html).

O Itamaraty, conhecido por esse nome apenas a partir da República, é uma das mais
antigas e importantes instituições de Estado, tanto no regime colonial português, como na
transição da coroa portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, e nos dois séculos desde o
estabelecimento do Estado brasileiro independente. A antiga secretaria de Estado dos
Negócios Estrangeiros sempre disputou com Marinha, Fazenda e Justiça a primazia entre os
ministérios mais relevantes para a preservação do Estado e seu funcionamento normal em
face de tantas ameaças internas e externas nas diversas dinastias lusitanas, até chegar aos
Braganças, que ainda governaram os dois reinos até o final do século XIX.
As relações exteriores sempre foram estratégicas na defesa dos interesses e da própria
sobrevivência do Estado português, desde antes e sobretudo após a Restauração de 1640.
Tanto foi que um dos tratados de defesa possivelmente mais antigos teoricamente ainda em
vigor foi aquele contraído entre os dois soberanos, o de Portugal e o da Inglaterra, poucos
anos depois da retomada da soberania portuguesa em face dos vizinhos espanhóis, do tempo
dos Habsburgos. Registre-se, também, que o território da América portuguesa representava
menos de 1/3 das atuais dimensões do Brasil, sendo que significativos ganhos territoriais
foram adquiridos pacificamente pela excelente diplomacia portuguesa, no caso pelo súdito
santista Alexandre de Gusmão, que negociou o tratado de Madri, de 1750, aposentando a
linha de Tordesilhas e adquirindo vastos espaços no planalto central, na Amazônia e no Sul
(com a exceção da Colônia do Sacramento, fundada pelos portugueses, mas por esse tratado
cedida definitivamente aos espanhóis).
O tratado de Madri conformou o Brasil no mapa que conhecemos hoje, com outras
pendências arbitradas ou negociadas diretamente com os vizinhos sul-americanos, acordos
geralmente alcançados pelo Barão do Rio Branco, inclusive a compra do Acre à Bolívia. O
Barão chegou inclusive a fazer um tratado preventivo de limites com o Equador – seguido de
um tratado secreto de defesa mútua –, não implementado pelo fato de o país amazônico,
andino e pacífico ter perdido terras interiores para seus dois grandes vizinhos. As relações
exteriores do Brasil, durante tudo o Império e no começo da República, foram justamente
dominadas por questões de fronteiras, felizmente resolvidas pacificamente, não incluída aqui

1
a guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, que se deu por outros motivos, e certamente
provocada pelo ditador paraguaio Solano Lopes. Outras pendências que nossa primeira
diplomacia teve de resolver logo em seus primeiros momentos foi a guerra da Cisplatina e os
conflitos com a Grã-Bretanha em torno do tráfico escravo, duas heranças portuguesas que
ocuparam os diplomatas – vários nascidos em Portugal – durante o primeiro Reinado.
José Bonifácio, nosso primeiro chanceler, além de ministro do Império, tinha
concebido uma política externa brasileira e americanista, mas os interesses de D. Pedro na
sucessão portuguesa desviaram a atenção da Secretaria dos Negócios Estrangeiros durante o
seu período, finalmente terminado em 1831; vários historiadores acreditam que esse foi o ano
em que finalmente se consolidou a independência do Brasil. As regências conduziram
efetivamente uma política americanista, enviando encarregados de negócios para várias
repúblicas sul-americanas, mas as pendências com a Grã-Bretanha sobre o tráfico, e com
outras potências em torno de acordos comerciais, continuaram ocupando a diplomacia até o
início do Segundo Império. Agiganta-se, nos anos 1840 e 1850, a figura de Paulino José
Soares de Souza, o visconde do Uruguai, que moldou institucionalmente o corpo diplomático,
inclusive instituindo concursos de seleção – não muito diferentes dos que são feitos ainda
hoje – e resolvendo a questão do tráfico com a Lei de 1850, conjuntamente com Eusébio
Queiroz; Paulino também atuou nos conflitos do Prata, entre o ditador Rosas, da Argentina, e
os demais caudilhos da região, inclusive na própria Argentina e no Uruguai.
A diplomacia imperial foi muito eficiente, tanto nas relações regionais, como no
confronto com as grandes potências, pois que chegamos a romper relações diplomáticas com
a principal potência da época, a Grã-Bretanha, nosso principal parceiro comercial. A
dependência financeira não foi afetada, porque contratos de empréstimos e investimentos
estrangeiros eram resolvidos diretamente com os banqueiros ingleses da City, em especial os
Rothschild, banqueiros oficiais do Brasil até praticamente as vésperas da Segunda Guerra
Mundial (quando saímos da esfera da libra britânica para a do dólar). O Visconde do Rio
Branco e outros estadistas do Segundo Reinado conduziam as principais negociações
externas, havendo, de toda forma, uma grande rotação de chanceleres, dada a sucessão de
gabinetes. Aliás, Rio Branco foi um dos únicos chanceleres diplomatas (ele era originalmente
apenas cônsul, até ser designado ministro em Berlim em 1990, como prêmio à sua atuação),
pois todos os demais chanceleres eram parlamentares eleitos, segundo o modelo inglês.
O serviço exterior estava segmentado em três carreiras: a diplomática propriamente
dita, que circulava principalmente entre postos no exterior; a dos funcionários da Secretaria
de Estado, trabalhando no Rio de Janeiro, e raramente indo servir em postos no exterior; e,

2
finalmente, a classe consular, exclusivamente dedicada a assuntos consulares típicos (vistos,
permissões e documentos de direito internacional privado), além de assunto comerciais, como
estampilhas em notas e faturas de comércio, dando direito ao recebimento de uma fração dos
emolumentos consulares. Rio Branco, por exemplo, foi cônsul durante 20 anos em Liverpool,
o mais ativo do comércio exterior britânico e mais importante no comércio bilateral com o
Brasil, o que lhe facultava receber emolumentos suficientes para manter casa e família em
Paris, para onde viajava frequentemente.
Procedimentos e métodos de trabalho foram evoluindo paulatinamente à construção
do Estado brasileiro no século XX, notadamente a partir da era Vargas. Ao longo do século
XX, o Itamaraty aperfeiçoou o processo de seleção dos quadros do Serviço Exterior, embora
o próprio Barão do Rio Branco não tenho feito nenhum concurso: ele preferia, ele mesmo,
selecionar os candidatos, entre muitos “indicados” pelas autoridades costumeiras. Importante
reforma institucional ocorreu entre o governo provisório, sob o chanceler Afrânio do Melo
Franco, e o Estado Novo, sob o chanceler Oswaldo Aranha, no sentido de unificar as três
vertentes das carreiras do Serviço Exterior: o pessoal diplomático, servindo no exterior, os
funcionários da Secretaria de Estado e o pessoal consular. Numa primeira etapa, sob o
governo provisório, se procedeu à unificação dos funcionários diplomatas lotados em postos
no exterior e o pessoal da Secretaria de Estado; mais adiante, os cônsules passaram a ser
equiparados aos diplomatas,
O Estado Novo instituiu o DASP, Departamento Administrativo do Serviço Público,
que passou a organizar processos de seleção para cargos públicos, inclusive para o Itamaraty.
Roberto Campos, por exemplo, passou no primeiro exame de seleção do Itamaraty pelo
DASP, em 1938, com a peculiaridade de que não se exigia diploma de curso superior: ele só
tinha feito seminário e estava dando aulas no interior de São Paulo. Seu colega José Oswaldo
de Meira Penna, que passou no mesmo concurso, afirmou que além dos que passaram no
concurso, entraram alguns “pela janela”, por indicação política. Ao final do Estado Novo, em
1945, ocorreram falcatruas similares, seja pelas mãos do ditador – que só foi derrubado em
outubro desse ano, pelo fato de que pretendia se manter na presidência, como comprovado
pelo movimento “queremista”, “Queremos Vargas” –, seja pelo presidente interino, José
Linhares, presidente do STF. Este, no espaço de poucos meses, colocou dezenas de amigos e
familiares em cargos públicos, inclusive no Itamaraty. Na época se repetia o bordão, segundo
o qual “os Linhares eram milhares”.
Mas, nesse mesmo ano de 1945, na data comemorativa dos 100 anos de nascimento
de Juca Paranhos, filho do Visconde do Rio Branco, foi criado o Instituto Rio Branco, que

3
passou a exercer o monopólio da seleção, formação e treinamento dos candidatos à carreira,
constituindo seu corpo de professores, que no Rio de Janeiro incluíam grandes nomes da
intelectualidade nacional: José Honório Rodrigues, Carlos Delgado de Carvalho, Américo
Jacobina Lacombe, Afonso Arinos de Melo Franco e grandes sumidades do Direito e da
Magistratura, da própria Academia Brasileira de Letras e do IHGB.
Essa seleção, primeiro dentro de um círculo mais restrito, de grandes famílias
tradicionais e nas metrópoles mais importantes, depois, sobretudo a partir de Brasília, com
pessoas recrutadas em estratos mais amplos e socialmente mais representativos da sociedade
brasileira (filhos de imigrantes, por exemplo, pessoas de classe média-média, ou até baixa)
aproximou o Itamaraty do universo estatal da fase nacional-desenvolvimentista (inclusive
durante o regime militar) e imprimiu ao corpo profissional a mesma ideologia do
desenvolvimento nacional que marcou o cerne do pensamento político e econômico das elites
dominantes e dos setores dirigentes do Brasil.
O Itamaraty, como instituição nacional no Brasil do pós-guerra, combina elementos
tradicionais, retirados da memória da Casa – os grandes estadistas do Império, a patrono
incontornável na figura de Rio Branco – e os novos padrões criados a partir da fase do
desenvolvimentismo nacionalista, que também reforçaram a endogenia típica do Itamaraty,
sobretudo depois que os militares – irmãos estatais dos diplomatas – deixaram a Casa dirigir-
se a si própria, nomeando funcionários da carreira como chanceleres (um ao início do regime,
Vasco Leitão da Cunha, depois três na sequência: Gibson Barbosa, Azeredo da Silveira e
Saraiva Guerreiro). FHC e Lula preservaram esse encapsulamento burocrático, o que, de
certa forma, reforçou o ethos corporativo dos diplomatas.
Por outro lado, a intensa competição interna também atuou no sentido de reforçar a
dependência da trajetória individual dos diplomatas ao sabor das maiorias políticas ocasionais
no plano congressual e do executivo, com o recurso ao tradiciona “pistolão” nos momentos
das promoções (duas vezes por ano) e nas designações para os bons postos no exterior. Por
outro lado, a estrutura decisória da Casa – que reproduz a hierarquia típica da carreira militar
– e os comportamentos pessoais a ela subordinados – a disciplina, que lhe é associada –
foram elevados a dogmas intocáveis no ethos coletivo, o se revela no caráter híbrido do
Itamaraty: ele é, ao mesmo tempo, weberiano, no sentido de serem os rituais e métodos de
trabalhos altamente formalizados e burocratizados, e feudal, no sentido em que os barões da
Casa têm o comando incontestável e incontestado de todos os demais funcionários do Serviço
Exterior. Desde os bancos escolares do Instituto Rio Branco, os jovens secretários são
primeiro instruídos, depois relembrados, em praticamente todas as cerimônias oficiais do

4
Itamaraty, dos dois dogmas sobre os quais supostamente se funda a excelência do corpo da
diplomacia profissional: a hierarquia e a disciplina, exatamente como na vida militar. A
estrita obediência aos cânones de comportamento explica a postura submissa da Casa.
Tais características contribuem para uma notável coesão interna no Itamaraty, uma
adesão praticamente obrigatória aos métodos de trabalho e uma grande eficiência uma vez
adotada uma linha de trabalho pelas autoridades dotadas de poder: o presidente e o chanceler.
O resultado é que o Itamaraty se converte num operador muito obediente de toda e qualquer
ordem que venha do chefe de Estado, o formulador da diplomacia, e do operador-condutor da
diplomacia, ou seja, o chanceler. Raramente se desenvolvem, ou ganham corpo, dissensões
internas, divergências ou contestações diretas às orientações dadas, mesmo se elas discrepam,
por vezes fortemente, das práticas e opções anteriormente em curso.
É verdade que as continuidades são mais presentes do que as rupturas no itinerário da
política externa, em função de compromissos firmados, de tratados assinados e da imagem de
credibilidade institucional da própria diplomacia, mas elas também existem. A mais notável,
desde a redemocratização, foi a orientação partidária e a condução ideológica sob o chamado
lulopetismo diplomático, ainda assim combinadas aos padrões habituais de trabalho do
Itamaraty: multilateralismo, desenvolvimentismo, nacionalismo, protecionismo, soberanismo
e um antiamericanismo moderado. O lulopetismo partiu dessa base para construir suas
prioridades, centradas não apenas no terceiro-mundismo dos anos 1960, mas também na
visão sindicalista marcada pela oposição entre ricos e pobres, poderosos e oprimidos, centro e
periferia, burgueses e proletários, daí a inclinação míope por uma diplomacia Sul-Sul e até a
preferência por regimes de esquerda no continente e alhures.
A maior ruptura foi obviamente representada pelo mal designado de bolsonarismo
diplomático, mas ele não correspondeu a nenhuma ideologia formalmente estabelecida,
apenas a uma mixórdia de preconceitos emprestados a teorias conspiratórias da extrema-
direita americana, importada acriticamente pela franja lunática que dominou o Itamaraty
durante a primeira metade do governo Bolsonaro. No plano interno da Casa, se tratou de
movimento marginal, que não ganhou a adesão sincera de praticamente nenhum diplomata
profissional, a não ser dos poucos oportunistas de ocasião, que sempre existem.
O fato é que o lulopetismo combina bem mais com a propensão dos diplomatas de
serem condutores de iniciativas na frente externa, dado o grande protagonismo da diplomacia
presidencial, falando a seus pares do mundo em desenvolvimento, um perfil mais parecido
com o do próprio Brasil do que o dos países avançados da OCDE. Por sinal, os diplomatas se
sentem bem mais confortáveis com a ideologia desenvolvimentista – e seus derivativos, como

5
o cepalianismo, com o unctadianismo, o terceiro-mundismo, a latino-americanidade – do que
com o mundo aparentemente distante das potências ocidentais, a cujo universo civilizatório
estamos vinculados, mas numa posição de relativa inferioridade, dados os patamares
insatisfatórios de desenvolvimento econômico e social. Os diplomatas continuam aderentes à
divisão onusiana do mundo entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, fazendo
questão de defender o princípio do tratamento diferencial e mais favorável a estes últimos,
como se devêssemos pertencer eternamente a este universo dicotômico.
Finalmente, o patrimonialismo inerente à sociedade brasileira, o peso das oligarquias
econômicas e políticas, o compadrio e o nepotismo característicos de relações baseadas mais
em vínculos afetivos do que na impessoalidade burocrática das normas legais fazem com que
o Itamaraty seja especialmente sensível a padrões de conduta fundados no “quem manda?” e
no “quem indica?”, em lugar da autoridade racional-legal da dominação weberiana pura. Por
isso mesmo, o Itamaraty continuará a ser esse corpo eficiente de funcionários colocados a
serviço das ideias politicamente dominantes ao sabor da conjuntura vivida pela nação.

Paulo Roberto de Almeida


Brasília-São Paulo, 4464, 27-30 de agosto de 2023, 6 p.; revisão: Brasília, 9/09/2023
Blog Diplomatizzando (13/09/2023; link:
https://diplomatizzando.blogspot.com/2023/09/videocast-rio-bravo-as-instituicoes.html).

Você também pode gostar