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Série Retrospectiva

10 Principais julgados de
DIREITO PROCESSUAL PENAL 2020
Márcio André Lopes Cavalcante

1) É constitucional o Inquérito instaurado para investigar “fake news” e ameaças contra o STF
É constitucional a Portaria GP 69/2019, por meio da qual o Presidente do STF determinou a
instauração do Inquérito 4781, com o intuito de apurar a existência de notícias fraudulentas (fake
news), denunciações caluniosas, ameaças e atos que podem configurar crimes contra a honra e
atingir a honorabilidade e a segurança do STF, de seus membros e familiares.
Também é constitucional o art. 43 do Regimento Interno do STF, que foi recepcionado pela CF/88
como lei ordinária.
O STF, contudo, afirmou que o referido inquérito, para ser constitucional, deve cumprir as seguintes
condicionantes:
a) o procedimento deve ser acompanhado pelo Ministério Público;
b) deve ser integralmente observado o Enunciado 14 da Súmula Vinculante.
c) o objeto do inquérito deve se limitar a investigar manifestações que acarretem risco efetivo à
independência do Poder Judiciário (art. 2º da CF/88). Isso pode ocorrer por meio de ameaças aos
membros do STF e a seus familiares ou por atos que atentem contra os Poderes instituídos, contra
o Estado de Direito e contra a democracia; e, por fim,
d) a investigação deve respeitar a proteção da liberdade de expressão e de imprensa, excluindo do
escopo do inquérito matérias jornalísticas e postagens, compartilhamentos ou outras manifestações
(inclusive pessoais) na internet, feitas anonimamente ou não, desde que não integrem esquemas de
financiamento e divulgação em massa nas redes sociais.
O art. 43 do RISTF prevê o seguinte: “Art. 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência
do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua
jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro.”
Muito embora o dispositivo exija que os fatos apurados ocorram na “sede ou dependência” do
próprio STF, o caráter difuso dos crimes cometidos por meio da internet permite estender (ampliar)
o conceito de “sede”, uma vez que o STF exerce jurisdição em todo o território nacional. Logo, os
crimes objeto do inquérito, contra a honra e, portanto, formais, cometidos em ambiente virtual,
podem ser considerados como cometidos na sede ou dependência do STF.
STF. Plenário. ADPF 572 MC/DF, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 17 e 18/6/2020 (Info 982).

2) O acordo de não persecução penal (ANPP) aplica-se a fatos ocorridos antes da Lei nº
13.964/2019, desde que não recebida a denúncia
A Lei nº 13.964/2019 (“Pacote Anticrime”) inseriu o art. 28-A ao CPP, criando, no ordenamento
jurídico pátrio, o instituto do acordo de não persecução penal (ANPP).
A Lei nº 13.964/2019, no ponto em que institui o ANPP, é considerada lei penal de natureza híbrida,
admitindo conformação entre a retroatividade penal benéfica e o tempus regit actum.
O ANPP se esgota na etapa pré-processual, sobretudo porque a consequência da sua recusa, sua não
homologação ou seu descumprimento é inaugurar a fase de oferecimento e de recebimento da denúncia.
O recebimento da denúncia encerra a etapa pré-processual, devendo ser considerados válidos os
atos praticados em conformidade com a lei então vigente.
Dessa forma, a retroatividade penal benéfica incide para permitir que o ANPP seja viabilizado a fatos
anteriores à Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia.
Assim, mostra-se impossível realizar o ANPP quando já recebida a denúncia em data anterior à
entrada em vigor da Lei nº 13.964/2019.
STJ. 5ª Turma. HC 607.003-SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 24/11/2020 (Info 683).
STF. 1ª Turma. HC 191464 AgR, Rel. Roberto Barroso, julgado em 11/11/2020.
3) Depois da Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime), não é mais possível que o juiz, de ofício,
converta a prisão em flagrante em prisão preventiva (é indispensável requerimento)
Não é possível a decretação “ex officio” de prisão preventiva em qualquer situação (em juízo ou no
curso de investigação penal), inclusive no contexto de audiência de custódia, sem que haja, mesmo
na hipótese da conversão a que se refere o art. 310, II, do CPP, prévia, necessária e indispensável
provocação do Ministério Público ou da autoridade policial.
A Lei nº 13.964/2019, ao suprimir a expressão “de ofício” que constava do art. 282, § 2º, e do art.
311, ambos do CPP, vedou, de forma absoluta, a decretação da prisão preventiva sem o prévio
requerimento das partes ou representação da autoridade policial.
Logo, não é mais possível, com base no ordenamento jurídico vigente, a atuação ‘ex officio’ do Juízo
processante em tema de privação cautelar da liberdade.
A interpretação do art. 310, II, do CPP deve ser realizada à luz do art. 282, § 2º e do art. 311,
significando que se tornou inviável, mesmo no contexto da audiência de custódia, a conversão, de
ofício, da prisão em flagrante de qualquer pessoa em prisão preventiva, sendo necessária, por isso
mesmo, para tal efeito, anterior e formal provocação do Ministério Público, da autoridade policial
ou, quando for o caso, do querelante ou do assistente do MP.
STJ. 5ª Turma. HC 590.039/GO, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 20/10/2020 (Info 682).
STF. 2ª Turma. HC 188888/MG, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 6/10/2020 (Info 994).
Em sentido contrário temos a posição minoritária da 6ª Turma do STJ, que deve ser superada em breve: HC 605.305-MG, Rel.
Min. Nefi Cordeiro, Rel. Acd. Min. Antonio Saldanha Palheiro, julgado em 06/10/2020.

4) O descumprimento da regra do parágrafo único do art. 316 do CPP NÃO gera, para o preso, o
direito de ser posto imediatamente em liberdade
A inobservância do prazo nonagesimal do art. 316 do Código de Processo Penal não implica
automática revogação da prisão preventiva, devendo o juízo competente ser instado a reavaliar a
legalidade e a atualidade de seus fundamentos.
STF. Plenário. SL 1395 MC Ref/SP, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 14 e 15/10/2020 (Info 995).

5) A obrigação de revisar, a cada 90 dias, a necessidade de se manter a custódia cautelar (art. 316,
parágrafo único, do CPP) é imposta apenas ao juiz ou tribunal que decretar a prisão preventiva
O parágrafo único do art. 316 do CPP prevê o seguinte:
Parágrafo único. Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a
necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de
ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal.
A obrigação de revisar, a cada 90 (noventa) dias, a necessidade de se manter a custódia cautelar (art.
316, parágrafo único, do Código de Processo Penal) é imposta apenas ao juiz ou tribunal que decretar
a prisão preventiva (julgador que a decretou inicialmente).
A norma contida no parágrafo único do art. 316 do CPP não se aplica aos Tribunais de Justiça e aos
Tribunais Regionais Federais, quando em atuação como órgão revisor.
STJ. 5a Turma. AgRg no HC 569.701/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 09/06/2020.
STJ. 6ª Turma. HC 589.544-SC, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 08/09/2020 (Info 680).

6) Não é possível aplicar multa contra o WhatsApp pelo fato de a empresa não conseguir
interceptar as mensagens trocadas pelo aplicativo e que são protegidas por criptografia de
ponta a ponta
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Caso concreto: o juiz expediu ordem para que o WhatsApp interceptasse as mensagens trocadas por
determinados investigados, suspeitos de integrar uma organização criminosa que estariam ainda

Retrospectiva– Principais Julgados de Direito Processual Penal 2020


praticando crimes. O WhatsApp respondeu que não consegue cumprir a determinação judicial por
impedimentos de ordem técnica. Isso porque as mensagens trocadas via aplicativo são
criptografadas de ponta a ponta. O magistrado não concordou com o argumento e aplicou multa
contra a empresa.
Segundo a opinião dos especialistas, realmente não é possível a interceptação de mensagens
criptografadas do WhatsApp devido à adoção de criptografia forte pelo aplicativo.
Ao utilizar a criptografia de ponta a ponta, a empresa está criando um mecanismo de proteção à
liberdade de expressão e de comunicação privada, garantia reconhecida expressamente na
Constituição Federal (art. 5º, IX).
A criptografia é, portanto, um meio de se assegurar a proteção de direitos que, em uma sociedade
democrática, são essenciais para a vida pública.
A criptografia protege os direitos dos usuários da internet, garantindo a privacidade de suas
comunicações. É, portanto, do interesse do Estado brasileiro encorajar as empresas e as pessoas a
utilizarem a criptografia e manter o ambiente digital com a maior segurança possível para os
usuários.
Existe, contudo, uma ponderação a ser feita: em alguns casos a criptografia é utilizada acobertar a
prática de crimes, como, por exemplo, os casos de pornografia infantil e de condutas
antidemocráticas, como manifestações xenófobas, racistas e intolerantes, que ameaçam o Estado
de Direito. A partir daí, indaga-se: o risco à segurança pública representado pelo uso da criptografia
justifica restringir ou proibir a sua adoção pelas empresas?
O tema está sendo apreciado pelo STF na ADPF 403 e na ADI 5527, que foi iniciado com os votos dos
Ministros Edson Fachin e Rosa Weber, tendo sido suspenso em razão de pedido de vista.
Apesar de o julgamento dessas ações constitucionais ainda não ter sido concluído, a 3ª Seção do STJ,
em harmonia com os votos já proferidos pelos Ministros do STF, chegou à conclusão de que:
O ordenamento jurídico brasileiro não autoriza, em detrimento da proteção gerada pela criptografia
de ponta a ponta, em benefício da liberdade de expressão e do direito à intimidade, sejam os
desenvolvedores da tecnologia multados por descumprirem ordem judicial incompatível com
encriptação.
Os benefícios advindos da criptografia de ponta a ponta se sobrepõem às eventuais perdas pela
impossibilidade de se coletar os dados das conversas dos usuários da tecnologia.
Diante disso, o recurso foi provido para afastar a multa aplicada pelo magistrado ante a
impossibilidade fática, no caso concreto, de cumprimento da ordem judicial, haja vista o emprego
da criptografia de ponta-a-ponta.
STJ. 3ª Seção. RMS 60.531/RO, Rel. Min. Nefi Cordeiro, Rel. p/ Acórdão Min. Ribeiro Dantas, julgado em 09/12/2020.

7) Não é lícita a prova obtida por meio de abertura de carta, telegrama ou qualquer encomenda
postada nos Correios, ante a inviolabilidade do sigilo das correspondências
Sem autorização judicial ou fora das hipóteses legais, é ilícita a prova obtida mediante abertura de
carta, telegrama, pacote ou meio análogo.
STF. Plenário. RE 1116949, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão Min. Edson Fachin, julgado em 18/08/2020 (Repercussão
Geral – Tema 1041) (Info 993).

8) É constitucional a multa imposta ao defensor por abandono do processo, prevista no art. 265 do CPP
É constitucional a multa imposta ao defensor por abandono do processo, prevista no art. 265 do CPP:
Art. 265. O defensor não poderá abandonar o processo senão por motivo imperioso, comunicado
previamente o juiz, sob pena de multa de 10 (dez) a 100 (cem) salários mínimos, sem prejuízo das
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demais sanções cabíveis.


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A previsão da multa afigura-se compatível com os princípios da razoabilidade e da


proporcionalidade.

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A multa não se mostra inadequada nem desnecessária. Ao contrário, mostra-se razoável como meio
prévio para evitar o comportamento prejudicial à administração da justiça e ao direito de defesa do
réu, tendo em vista a imprescindibilidade da atuação do profissional da advocacia para o regular
andamento do processo penal.
A multa do art. 265 do CPP não ofende o contraditório, a ampla defesa, o devido processo legal ou
a presunção de não culpabilidade. Não há necessidade de instauração de processo autônomo e de
manifestação prévia do defensor, no entanto, é possível que ele, posteriormente, se justifique por
meio de pedido de reconsideração. Outra alternativa é a impetração de mandado de segurança.
STF. Plenário. ADI 4398, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 05/08/2020 (Info 993).

9) A progressão de regime do reincidente não específico em crime hediondo ou equiparado com


resultado morte deve observar o que previsto no inciso VI, “a”, do art. 112 da LEP
Caso concreto: João está cumprindo pena por homicídio qualificado (crime hediondo), cometido em
2019. Vale ressaltar que João é reincidente genérico (não é reincidente específico; ele havia sido
condenado anteriormente por receptação, que não é crime hediondo).
Diante disso, a previsão era a de que João tivesse direito à progressão de regime com 3/5 da pena
(art. 2º, § 2º, da Lei nº 8.072/90). Ocorre que entrou em vigor a Lei nº 13.964/2019, que revogou o
referido art. 2º, § 2º e instituiu novas regras de progressão no art. 112 da LEP.
Em qual inciso do art. 112 se enquadra o réu condenado por crime hediondo, com resultado morte,
reincidente não específico (reincidente genérico)?
Essa situação não foi contemplada na lei. Os incisos VII e VIII do art. 112 exigem a reincidência
específica.
Diante da ausência de previsão legal, deve-se fazer analogia in bonam partem e a ele deverá ser
aplicada a mesma fração do condenado primário, ou seja, a regra do inciso VI, “a”, do art. 112 (50%):
Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência
para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos:
VI - 50% (cinquenta por cento) da pena, se o apenado for:
a) condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado, com resultado morte, se for primário,
vedado o livramento condicional;
Resumindo:
• art. 2º, § 2º, da Lei nº 8.072/90: a fração mais grave deveria ser aplicada tanto ao reincidente
específico como genérico. A Lei de Crimes Hediondos não fazia distinção entre a reincidência genérica
e a específica para estabelecer o cumprimento de 3/5 da pena para fins de progressão de regime.
• incisos VII e VIII do art. 112 da LEP: a fração mais grave só se aplica para o reincidente específico.
O condenado pela prática de crime hediondo, com resultado morte, mas reincidente em crime
comum irá progredir como se fosse primário.
No exemplo dado, a Lei nº 13.964/2019 foi mais favorável porque o réu progredia com 3/5 (= 60%)
e agora a fração é de 50% (art. 112, VI, “a”, da LEP). Logo, ela se aplica, neste ponto, aos fatos
ocorridos antes da sua vigência.
STJ. 6ª Turma. HC 581.315-PR, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 06/10/2020 (Info 681).

10) Não é necessária a realização de PAD para aplicação de falta grave, desde que haja audiência
de justificação realizada com a participação da defesa e do MP
A oitiva do condenado pelo Juízo da Execução Penal, em audiência de justificação realizada na
presença do defensor e do Ministério Público, afasta a necessidade de prévio Procedimento
Administrativo Disciplinar (PAD), assim como supre eventual ausência ou insuficiência de defesa
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técnica no PAD instaurado para apurar a prática de falta grave durante o cumprimento da pena.
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STF. Plenário. RE 972598, Rel. Roberto Barroso, julgado em 04/05/2020 (Repercussão Geral – Tema 941) (Info 985).

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