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O INSTITUTO JURÍDICO DO BEM DE FAMÍLIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO

BRASILEIRO

Rogério Henrique Cardoso de Paula

INTRODUÇÃO

Esta ponderação tem o intuito de analisar o conceito e as caracterizações dadas ao


instituto relativo aos bens de família, bem como seu espaço no ordenamento jurídico civilista
brasileiro. Não obstante, faremos uma pequena apreciação desse aludido instituto no âmbito
constitucional o qual, evidentemente, é tomado como direito fundamental à luz da Carta
Magna de 1988, conquanto sua previsão remonte a diplomas legais anteriores.
Em um primeiro momento, traremos à luz a conceituação jurídica dada os bens de
família, elucidando seus aspectos históricos e sua origem no ordenamento jurídico pátrio.
Realizaremos, outrossim, uma breve elucidação de como tal instituto era tratado nos
ordenamentos jurídicos anteriores à Constituição Federal de 1988.
Ulteriormente, analisaremos os aspectos jurídicos atuais desse importante direito
fundamental, sobretudo do ponto de vista legal, jurisprudencial e constitucional. Nesse ponto,
faremos o estudo das espécies de bens de família (legal ou involuntário, e voluntário ou
convencional) e as exceções existentes à principal implicação jurídica desse instituto, que é a
impenhorabilidade. Para tal, recorremos ao diploma civilista vigente (Lei nº 10406 de 2022),
além de outras leis esparsas (lei nº 8009 de 1990, sobretudo) que visam também consolidar
com mais acuidade os bens de família na ordem jurídica, assegurando-o como direito à
família, à própria Constituinte e ao arcabouço jurisprudencial construído pelos Tribunais
Superiores acerca da temática abordada.

CONCEITO DE “BEM DE FAMÍLIA”, SUA ORIGEM HISTÓRICA E NO MEIO LEGAL


BRASILEIRO

Segundo Fakiani (2021), o instituto referente aos bens de família é assim instituído
objetivando dar proteção e asilo ao núcleo familiar em face de impenhora e execução forçada
de débitos estranhos ao bem em si – como, por exemplo, a dívida contraída pelo uso sem
parcimônia do cartão de crédito do titular do imóvel da família. Conforme salienta a autora:
“O instituidor é o próprio Estado, que impõe o bem de família, por norma de ordem pública,
em defesa da célula familiar.” (2021, p. 1). Esse instituto é considerado como um direito
fundamental ligado à noção de mínimo existencial, ou seja, o conjunto de bens e serviços
imprescindíveis a uma vida minimamente digna, ao princípio da dignidade da pessoa humana
e ao direito à habitação, além do fato de que a Constituinte concebe o núcleo familiar como a
base da sociedade e como tal deve ser protegida. (HAAS, 2021).
Vê-se que os bens familiares existem no ordenamento jurídico com o intuito central
de dar proteção social e econômica ao núcleo familiar o qual não necessariamente engloba o
casal e sua prole. Nesse sentido, como veremos no tópico posterior, a interpretação do que
vem a ser família é extensiva e vai além do entendimento tradicional dado à célula familiar
como sendo aquela que se limita ao universo do casal heteronormativo, isto é, os cônjuges e
seus filhos.
Conceitua-se bem de família como sendo o imóvel, urbano ou rural, utilizado como
domicílio pela família e/ou do qual a família extraí sua subsistência, sobretudo no caso da
propriedade rural familiar, de modo a garantir o mínimo vital à entidade familiar e protegê-lo
de ser alienado ou impenhorado. De acordo Brigato e Ceccato (2016, p. 32) “[…] o bem de
família constitui-se em uma porção de bens que a lei resguarda com as características de ser
inalienável e impenhorável, em benefício da constituição e permanência de uma moradia para
a família.”
Conforme preceitua Fakiani (2021), o instituto que busca dar amparo legal aos bens
de família é algo recente no direito nacional. O diploma civilista de 1916 (Lei nº 3071 de
1916), promulgado no período da Primeira República, previa a existência desses bens,
conceituando-os em capítulo próprio (capítulo V do Título Único do Livro II) e os eximindo
de execuções no seu artigo 70, in verbis: “É permitido aos chefes de família destinar um
prédio para domicilio desta, com a cláusula de ficar isento de execução por dividas, salvo as
que provierem de impostos relativos ao mesmo prédio.” (BRASIL, 1916). Interessante
ponderar que a isenção de que tratava tal dispositivo legal não abarcava as dívidas anteriores
à aquisição do bem, mas apenas as posteriores, se a aquisição do bem de família
impossibilitar o pagamento dessas dívidas pretéritas por parte do devedor, em conformidade
com o que estabelecia o parágrafo único do art. 71 desse antigo arcabouço legal. (BRASIL,
1916).
Outrossim, do ponto de vista histórico, o aludido instituto tem suas no direito
consuetudinário norte-americano, especialmente o texano. Em 1839, no estado americano do
Texas, à época designado “República do Texas”, antes de ser incorporado aos Estados Unidos
em 1845, estatuiu-se a chamada “Homestead Exemption Act” (ato/lei da isenção de bem de
família, em tradução literal), cujo ponto nevrálgico era proteger a pequena propriedade rural
familiar da possibilidade de ser penhorada em uma eventual execução por dívidas. Alega
Pires Neto ([s.d.], p. 1) que esse ato legal texano “assegurava à família garantia de
impenhorabilidade da pequena propriedade, pondo-a ao abrigo por débitos posteriores a sua
instituição, salvo os relativos a impostos do próprio prédio.”
Em breve síntese, Fakiani (2021) sintetiza o tratamento legal posterior ao Código
Civil de 1916 dado ao bem de família, colocando que dispositivos legais e infralegais, como
o Decreto-Lei nº 3200 de 1941, buscou impor um teto aos valores dos bens a serem
considerados de família. Entretanto, tal limitação de valores foi revogada pela “[…] Lei n.
6.742/ 1979, que possibilitou a isenção de penhora de imóveis de qualquer valor. Além disso,
referido decreto disciplinou os procedimentos necessários para a instituição voluntária e
extinção do bem de família.” (2021, p. 1).
Atualmente a Lei nº 10406 de 2002, o Código Civil, e a Lei nº 8009 de 1990 são as
principais normas infraconstitucionais que tratam sobre o instituto referido e de suas espécies,
além da própria Constituição Federal de 1988 consolidar o bem de família como direito
fundamental, ligado ao direito à habitação e ao princípio da dignidade da pessoa humana.
(HAAS, 2021).

A GUARIDA LEGAL E CONSTITUCIONAL DO INSTITUTO DO BEM DE FAMÍLIA E


SUAS ESPÉCIES

Como mencionado anteriormente, a Lei Maior pátria prevê o instituto do bem de


família como sendo um direito fundamental, indispensável à proteção do núcleo familiar.
Nossa Carta Magna dispõe, em seu artigo 5º, inciso XXVI, que a pequena propriedade rural,
preconizada em lei, desde trabalhada pela família é impenhorável em relação aos “débitos
decorrentes de sua atividade produtiva” e que a lei definirá os meios para viabilizar seu
financiamento. (BRASIL, 1988). Tal regra se aplica ao imóvel residencial familiar urbano.
Faz-se mister, antes de se adentrar no aspecto legal do bem de família, brevemente,
explicitar a noção atribuída à família e sua configuração. Consoante o que se depreende da
súmula 364 do Superior Tribunal de Justiça, o bem de família também pode abranger os bens
de pessoas solteiras, separadas e viúvas. As instâncias extraodinárias, em diversos julgados e
em entendimentos sumulados, ampliaram o conceito de família para além da visão
tradicional, estendendo o conceito para famílias monoparentais, àquelas constituídas por
união estável e uniões homoafetivas. Isso, ineludivelmente, tem implicações no conceito de
bem de família, porquanto não apenas a união heteroafetiva é considerada entidade familiar,
ampliando-se para outras configurações familiares, tais como genitores solteiros que vivam
com seus filhos, pessoas solteiras, viúvas, uniões homoafetivas etc. Desse modo, por
exemplo, a residência única onde reside um casal homoafetivo ou uma mãe solteira é
protegida pela impenhorabilidade e inalienabilidade, na forma legal, tal qual a residência
única de cônjuges heteronormativos.
No âmbito infraconstitucional, o Código Civil vigente traz, nos seus artigos 1711 a
1722, o disciplinamento dado ao imóvel urbano e rural tido como bem de família, o
denominado bem de família convencional, ao passo que a lei esparsa nº 8009 de 1990
estipula os contornos do bem de família legal. No sistema civilista brasileiro, essas são as
principais espécies/modalidades existentes do instituto apreciado.
À luz do ordenamento jurídico atual, existem, no bojo do conceito de bens de família,
dois tipos – o legal ou obrigatório, previsto na Lei nº 8009 de 1990, e o convencional ou
voluntário que encontra guarita legal no Código Civil. (BRIGATO e CECCATO, 2016). Hass
(2021) enfatiza que o bem de família legal, por força da própria norma de ordem pública que
o institui, isto é, a referida Lei nº 8009/90, pode ser reconhecido de ofício pela autoridade
judiciária, enquanto que o bem de família convencional, regulado pelo diploma civilista, deve
ser instituído pelos cônjuges ou terceiro e registrado no Cartório de Registro de Imóveis
competente (vide artigo 1714 do Código Civil de 2002).
Sobre o bem de família legal, a Lei nº 8009 de 1990, em seu primeiro artigo, concebe-
o como sendo o imóvel único de residência dos cônjuges ou da entidade familiar, colocando-
o com impenhorável e inalienável em relação a dívidas de diversas naturezas, tais como
previdenciária, civil, fiscal etc. A proteção contra alienação e penhora limita-se “[…] imóvel
sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e
todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa,
desde que quitados.” (BRASIL, 1990). Excluem-se da impenhorabilidade “os veículos de
transporte, as obras de artes e adornos suntuosos”, de acordo com a previsão esculpida no
caput do artigo segundo. (BRASIL, 1990).
No decorrer da citada lei, traz-se as exceções à regra geral da impenhorabilidade do
bem de família. O artigo terceiro elenca as possibilidades de se penhorar um bem de família,
sendo possível penhorar o imóvel no caso de dívidas relativas à sua aquisição ou construção,
por débitos de pensão alimentícia, ressalvado os direitos do coproprietário enquanto cônjuge
ou companheiro em união estável, dívidas de impostos, taxas, contribuições ou tributos
relacionados ao imóvel (como IPTU), para execução de hipoteca em que o imóvel tenha sido
dado como garantia, se o imóvel por produto de crime ou para ressarcimento de dano ou
aplicação de pena de perda de bens no âmbito criminal e se for dado como fiança em contrato
de locação. (BRASIL, 1990).
No que concerne ao bem de família convencional, disciplinado pelo Código Civil, em
seus citados artigos 1711 a 1722, tem-se que ele é definido como sendo o imóvel predial
urbano ou rural, englobando “suas pertenças e acessórios, destinando-se em ambos os casos a
domicílio familiar, e poderá abranger valores mobiliários, cuja renda será aplicada na
conservação do imóvel e no sustento da família.” (BRASIL, 2002). Tal bem é instituído por
força de testamento ou escritura pública pelos cônjuges ou entidade familiar, sendo que os
recursos para sua constituição não podem ultrapassar um terço do patrimônio líquido à época
de sua instituição, aplicando-se a ele as regras relativas à impenhorabilidade e
inalienabilidade previstas ao bem de família obrigatório ou legal estatuído na Lei nº 8009 de
1990. Vê-se, diferentemente do caso dos bens de família de natureza legal, o seu equivalente
convencional é realmente formado por ato de vontade dos cônjuges ou da entidade familiar.
Nesse sentido, afirmam Brigato e Ceccato (2016, p. 33) “ ‘bem de família voluntário’ decorre
de um ato de vontade do próprio casal ou da entidade familiar feito com registro.” Em outras
palavras, convenciona-se para a sua constituição o casal ou a entidade familiar, isto é, toma-
se a decisão de constituir determinado bem de família, visando a sua utilização como
domicílio da família.
Acerca da impenhorabilidade do bem de família convencional ou voluntário, tem-se
que ele é abarcado pelas mesmas regras que o seu equivalente legal. Todavia, o próprio artigo
1715 do diploma civilista coloca que o “bem de família é isento de execução por dívidas
posteriores à sua instituição, salvo as que provierem de tributos relativos ao prédio, ou de
despesas de condomínio.” (BRASIL, 2002).
O bem de família voluntário pode ser extinto, trazendo o Código Civil as hipóteses
legais de sua extinção no seu artigo 1722. Ela será extinto em decorrência do falecimento dos
cônjuges ou quando os filhos alcançarem à maioridade, salvo se não estiverem curatelados.
Outra hipótese que permite a extinção do bem é o caso de comprovada impossibilidade de
manutenção do bem na forma como foi instituído, devendo ser comprovada em juízo. Uma
vez comprovada, o juiz poderá extingui-lo ou autorizar a sub-rogação dos bens que o
engloba, ouvido o Ministério Público e quem o instituiu anteriormente, à luz da disposição do
artigo 1719. (BRASIL, 2002; BRIGATO e CECCATO, 2016).
Outro ponto interessante que diz respeito ao instituto do bem de família é o
entendimento sumulado do Superior Tribunal de Justiça, na súmula 486, o qual estende a
impenhorabilidade ao único imóvel residencial do devedor locado a terceiros cuja renda é
utilizada pelo locador para subsistência ou moradia de sua família. (HASS, 2021, p. 1).
Portanto, o instituto jurídico do bem de família possui suas nuances e espécies
(legal/involuntário e convencional/voluntário), bem como previsões legais referentes à
exceção a regra geral da impenhorabilidade e inalienabilidade.

CONCLUSÃO

Ao longo desta ponderação, viu-se que o instituto de bem de família possui diversos
pormenores disciplinados em lei, além de ser considerado um direito fundamental que
encontra guarida especialmente no artigo 5º, inciso XXVI, da Constituição Federal de 1988.
Explicitou-se que sua existência é recente e remonta ao direito consuetudinário norte-
americano e texano do século XIX, onde se objetivava proteger a pequena propriedade rural
da execução de certos tipos de débitos, passando por sua incorporação pelo Código Civil de
1916 até a sua atual configuração dada pela Lei nº 8009 de 1990 (bem de família
legal/involuntário) e pelos artigos 1711 a 1722 do Código Civil vigente atualmente
(convencional/voluntário).
Esse instituto é preponderante para salvaguardar o mínimo existencial do devedor e de
sua família, de forma que a sua insolvência não acarrete prejuízo à sua dignidade e da sua
família, sobretudo.

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