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o Direito de Família pode ser conceituado como sendo o ramo do Direito Civil que tem como
conteúdo o estudo dos seguintes institutos: a) casamento; b) união estável; c) relações de
parentesco; d) filiação; e) alimentos; f) bem de família; g) tutela, curatela e guarda. Além
desse conteúdo, acrescente-se a investigação das novas manifestações familiares.

O Direito de Família contemporâneo pode ser dividido em dois grandes livros:


1. o Direito Existencial de Família está baseado na pessoa humana, sendo as normas
correlatas de ordem pública ou cogentes. Tais normas não podem ser contrariadas
por convenção entre as partes, sob pena de nulidade absoluta da convenção, por
fraude à lei imperativa (art. 166, inc. VI, do CC).
2. o Direito Patrimonial de Família tem o seu cerne principal no patrimônio, relacionado
a normas de ordem privada ou dispositivas. Tais normas, por óbvio, admitem
livremente previsão em contrário pelas partes.
Exemplo: é nulo o contrato de namoro nos casos em que existe entre as partes envolvidas
uma união estável, eis que a parte renuncia por meio desse contrato e de forma indireta a
alguns direitos essencialmente pessoais, como é o caso do direito a alimentos. Por outra
via, é válido o contrato de convivência, aquele que consagra outro regime para a união
estável que não seja o da comunhão parcial de bens (art. 1.725 do CC).

Primeiramente, os arts. 1.511 a 1.638 tratam do direito pessoal ou existencial. Por


conseguinte, nos arts. 1.639 a 1.722, o código privado regulamenta o direito patrimonial e
conceitos correlatos. É correto afirmar, na verdade, que essa divisão entre direito patrimonial
e direito existencial atinge todo o Direito Privado.

Tal organização ainda remete à tendência de personalização do Direito Civil, ao lado da sua
despatrimonialização, uma vez que a pessoa é tratada antes do patrimônio. Perde o
patrimônio o papel de ator principal e se torna mero coadjuvante.

muitas das novas ideias expostas na presente obra são capitaneadas pelo Instituto
Brasileiro de Direito de Família. O IBDFAM foi fundado em 1997 por um grupo de estudiosos
brasileiros que acreditavam na busca de novas vertentes para o estudo e a compreensão da
família brasileira. a contribuição do IBDFAM é marcante para todas as alterações pelas
quais passaram os institutos familiares.

Princípios

1. Princípio de proteção da dignidade da pessoa humana (art. 1.º , III, da CF/1988)

Trata-se do que se denomina princípio máximo, ou superprincípio, ou macroprincípio, ou


princípio dos princípios. Diante desse regramento inafastável de proteção da pessoa
humana é que está em voga, atualmente, falar em personalização, repersonalização e
despatrimonialização do Direito Privado.

Vale relembrar, a propósito, que o Código de Processo Civil de 2015 traz norma
valorizadora da dignidade humana como norte principiológico da aplicação do Direito pelo
julgador. art. 8.º ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às
exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e
observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.

Ora, não há ramo do Direito Privado em que a dignidade da pessoa humana tem maior
ingerência ou atuação do que o Direito de Família.

por tratar-se de uma cláusula geral, de um conceito legal indeterminado, com variantes de
interpretações. Entre muitas construções, é interessante a desenvolvida pelos juristas
portugueses Jorge Miranda e Rui de Medeiros:
“A dignidade humana é da pessoa concreta, na sua vida real e
quotidiana; não é de um ser ideal e abstracto. É o homem ou a
mulher, tal como existe, que a ordem jurídica considera irredutível,
insubsistente e irrepetível e cujos direitos fundamentais a
Constituição enuncia e protege”

Em suma, a dignidade humana deve ser analisada a partir da realidade do ser humano em
seu contexto social. Ilustrando, pela vivência nacional, o direito à casa própria parece ter
relação direta com a proteção da pessoa humana. Isso gera interpretações extensivas para
o amparo da moradia. Citese o entendimento consolidado do STJ no sentido de que o
imóvel em que reside pessoa solteira, separada ou viúva constitui bem de família, sendo,
portanto, impenhorável (Súmula 364 do STJ). Firmou-se a premissa que o almejado pela Lei
8.009/1990 é a proteção da pessoa e não de um grupo de pessoas. Ampara-se a própria
dignidade humana e o direito constitucional à moradia, direito social e fundamental (art. 6.º
da CF/1988).

incidência da dignidade humana nas relações familiares, destaque-se a tese do abandono


paterno-filial ou abandono afetivo (teoria do desamor). Em mais de um julgado, a
jurisprudência pátria condenou pais a pagarem indenização aos filhos, pelo abandono
afetivo, por clara lesão à dignidade humana.

Anote-se que a questão do abandono afetivo é uma das mais controvertidas do Direito de
Família Contemporâneo. Na opinião deste autor, é perfeitamente possível a indenização, eis
que o pai tem o dever de gerir a educação do filho, conforme o art. 229 da CF/1988 e o art.
1.634 do CC/2002. A violação desse dever pode gerar um ato ilícito, nos termos do art. 186
do CC, se provado o dano à integridade psíquica.

Na verdade, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em sua atual composição, até


tem entendido pela possibilidade de reparação dos danos morais por abandono afetivo,
desde que comprovado o prejuízo imaterial suportado pela vítima. Conforme a afirmação n.
7, constante da Edição n. 125 da ferramenta Jurisprudência em Teses da Corte, publicada
em 2019 e relativa ao dano moral, “o abandono afetivo de filho, em regra, não gera dano
moral indenizável, podendo, em hipóteses excepcionais, se comprovada a ocorrência de
ilícito civil que ultrapasse o mero dissabor, ser reconhecida a existência do dever de
indenizar”. Além disso, somente tem sido admitido o dano moral por abandono afetivo após
o reconhecimento da paternidade, e não antes da sua ocorrência, como está na tese n. 8 da
mesma publicação.
Como último exemplo de aplicação da dignidade humana às relações familiares, cite-se o
direito à busca pela felicidade, citado como paradigma contemporâneo na impactante
decisão do Supremo Tribunal Federal que reconheceu a igualdade entre a paternidade
socioafetiva e a biológica, bem como possibilidade de multiparentalidade, com vínculo
concomitante.

Em repercussão geral, foi fixada a tese segundo a qual a paternidade socioafetiva declarada
ou não em registro não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante,
baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios. O acórdão é revolucionário,
trazendo uma nova forma de se pensar o Direito de Família e das Sucessões, como se verá
em outros trechos desta obra.

2. Princípio da solidariedade familiar (art. 3.º , I, da CF/1988)

A solidariedade social é reconhecida como objetivo fundamental da República Federativa do


Brasil pelo art. 3.º, inc. I, da CF/1988, no sentido de construir uma sociedade livre, justa e
solidária. Por razões óbvias, esse princípio acaba repercutindo nas relações familiares, eis
que a solidariedade deve existir nesses relacionamentos pessoais.

Ser solidário significa responder pelo outro, o que remonta à ideia de solidariedade do direito
das obrigações. Quer dizer, ainda, preocupar-se com a outra pessoa. Desse modo, a
solidariedade familiar deve ser tida em sentido amplo, tendo caráter afetivo, social, moral,
patrimonial, espiritual e sexual. No que concerne à solidariedade patrimonial, essa foi
incrementada pelo CC/2002. Isso porque mesmo o cônjuge culpado pelo fim do
relacionamento pode pleitear os alimentos necessários – indispensáveis à sobrevivência –,
do cônjuge inocente (art. 1.694, § 2.º, do CC). Isso, desde que o cônjuge culpado não tenha
condições para o trabalho, nem parentes em condições de prestar os alimentos (art. 1.704,
parágrafo único, do CC).

Críticas à parte – por ter o atual Código Civil afastado um suposto “direito de vingança” –, as
normas merecem elogios, ampliando as responsabilidades que decorrem da escolha do
outro consorte. De toda sorte, anote-se que para muitos juristas tais dispositivos não têm
mais aplicação, diante da Emenda do Divórcio (EC 66/2010) que ao retirar a separação
judicial do sistema jurídico também baniu a discussão da culpa em relação aos alimentos. O
tema ainda será aprofundado no presente capítulo, especialmente tendo em vista o Código
de Processo Civil de 2015 que, infelizmente, tratou do instituto da separação judicial.

3. Princípio da igualdade entre filhos (art. 227, § 6.º , da CF/1988 e art. 1.596 do
CC)

Determina o art. 227, § 6.º, da CF/1988 que “os filhos, havidos ou não da relação de
casamento, ou por adoção terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer
designações discriminatórias relativas à filiação”. 1.596 do CC tem a mesma redação. Esses
comandos legais regulamentam especificamente na ordem familiar a isonomia
constitucional, ou igualdade em sentido amplo, constante do art. 5.º, caput, da CF/1988, um
dos princípios do Direito Civil Constitucional.
Está superada antiga discriminação de filhos que constava no art. 332 do CC/1916, cuja
lamentável redação era a seguinte: “o parentesco é legítimo, ou ilegítimo, segundo procede,
ou não de casamento; natural, ou civil, conforme resultar de consanguinidade, ou adoção”.
Esse dispositivo já havia sido revogado pela Lei 8.560/1992.

Em suma, juridicamente, todos os filhos são iguais perante a lei, havidos ou não durante o
casamento. Essa igualdade abrange os filhos adotivos, os filhos socioafetivos e os havidos
por inseminação artificial heteróloga (com material genético de terceiro). Diante disso, não
se pode mais utilizar as odiosas expressões filho adulterino, filho incestuoso, filho ilegítimo,
filho espúrio ou filho bastardo. Apenas para fins didáticos utiliza-se o termo filho havido fora
do casamento, eis que, juridicamente, todos são iguais.

4. Princípio da igualdade entre cônjuges e companheiros (art. 226, § 5.º , da


CF/1988 e art. 1.511 do CC)

Assim como há a igualdade entre filhos, como outra forma de especialização da isonomia
constitucional a lei reconhece a igualdade entre homens e mulheres no que se refere à
sociedade conjugal ou convivencial formada pelo casamento ou pela união estável (art. 226,
§ 3.º, e art. 5.º, inc. I, da CF/1988). Enuncia o art. 1.511 do CC/2002 que “o casamento
estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos
cônjuges”. Por óbvio, essa igualdade deve estar presente na união estável, também
reconhecida como entidade familiar pelo art. 226, § 3.º, da CF/1988. Como exemplo prático,
o marido ou companheiro pode pleitear alimentos da mulher ou companheira, ou mesmo
vice-versa.

No Código Civil de 2002, a igualdade de chefia pode ser notada pelo art. 1.631, ao enunciar
que durante o casamento ou união estável compete o poder familiar aos pais. Na falta ou
impedimento de um deles, o outro exercerá esse poder com exclusividade. Em caso de
eventual divergência dos pais quanto ao exercício do poder familiar, é assegurado a
qualquer um deles recorrer ao juiz para a solução do desacordo.

5. Princípio da não intervenção ou da liberdade (art. 1.513 do CC)

Dispõe o art. 1.513 do Código Civil Brasileiro que “é defeso a qualquer pessoa de direito
público ou direito privado interferir na comunhão de vida instituída pela família”. Trata-se de
consagração do princípio da liberdade ou da não intervenção na ótica do Direito de Família.
O princípio é reforçado pelo art. 1.565, § 2.º, da mesma codificação material, pelo qual o
planejamento familiar é de livre decisão do casal, sendo vedada qualquer forma de coerção
por parte de instituições privadas ou públicas em relação a esse direito.

o princípio em questão mantém relação direta com o princípio da autonomia privada, que
deve existir no âmbito do Direito de Família. O fundamento constitucional da autonomia
privada é a liberdade

A autonomia privada não existe apenas em sede contratual, mas também na ótica familiar.
Quando se escolhe, na escalada do afeto (conceito de Euclides de Oliveira), com quem
ficar, com quem namorar, com quem noivar, com quem ter uma união estável ou com quem
casar, está-se falando em autonomia privada. 6 Quanto ao ato de ficar, este é o primeiro
degrau da escalada do afeto, sendo certo que o STJ já entendeu que tal conduta pode
influenciar na presunção de paternidade, principalmente se somada à recusa ao exame de
DNA.

o art. 1.513 do CC deve-se ter muito cuidado na sua leitura. Isso porque o real sentido do
texto legal é que o Estado ou mesmo um ente privado não pode intervir coativamente nas
relações de família. Porém, o Estado poderá incentivar o controle da natalidade e o
planejamento familiar por meio de políticas públicas.

6. Princípio do maior interesse da criança e do adolescente (art. 227, caput, da


CF/1988 e arts. 1.583 e 1.584 do CC)

“é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao


jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”

o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), que considera criança a pessoa


com idade entre zero e 12 anos incompletos, e adolescente aquele que tem entre 12 e 18
anos de idade.

Na ótica civil, essa proteção integral pode ser percebida pelo princípio de melhor ou maior
interesse da criança, ou best interest of the child, conforme reconhecido pela Convenção
Internacional de Haia, que trata da proteção dos interesses das crianças. O CC/2002, nos
seus arts. 1.583 e 1.584, acaba por reconhecer tal princípio, ao regular a guarda durante o
poder familiar. Esses dois dispositivos foram substancialmente alterados, inicialmente, pela
Lei 11.698, de 13 de junho de 2008, que passou a determinar como regra a guarda
compartilhada, a prevalecer sobre a guarda unilateral, aquela em que um genitor detém a
guarda e o outro tem a regulamentação de vistas em seu favor. Ampliou-se o sistema de
proteção anterior, visando atender ao melhor interesse da criança e do adolescente na
fixação da guarda, o que era reconhecido pelos Enunciados ns. 101 e 102 do CJF/STJ,
aprovados na I Jornada de Direito Civil, em 2002. EEm 2014, tais dispositivos foram
novamente modificados pela Lei 13.058, que ainda receberá a devida análise crítica neste
capítulo do livro.

Insta esclarecer, de imediato, que na guarda compartilhada ou conjunta o filho convive com
ambos os genitores. De toda sorte, haverá um lar único, não se admitindo, a priori, a guarda
alternada ou fracionada, em que o filho fica um tempo com um genitor e um tempo com o
outro de forma sucessiva (guarda da mochila, pois a criança fica o tempo todo de um lado
para outro). A nova lei parece confundir ambos os conceitos, como se verá. Para a
efetivação da guarda compartilhada, recomenda-se a medição interdisciplinar, uma vez que
ela pressupõe certa harmonia mínima entre os genitores, muitas vezes distante na prática, o
que não foi considerado pela Lei 13.058/2014.

7. Princípio da afetividade
O afeto talvez seja apontado, atualmente, como o principal fundamento das relações
familiares. Mesmo não constando a expressão afeto do Texto Maior como sendo um direito
fundamental, pode-se afirmar que ele decorre da valorização constante da dignidade
humana e da solidariedade. Por isso é que, para fins didáticos, destaca-se o princípio em
questão, como fazem Maria Berenice Dias 7 e Paulo Lôbo. Merecem também destaque as
palavras da juspsicanalista Giselle Câmara Groeninga, para quem, “o papel dado à
subjetividade e à afetividade tem sido crescente no Direito de Família, que não mais pode
excluir de suas considerações a qualidade dos vínculos existentes entre os membros de
uma família, de forma que possa buscar a necessária objetividade na subjetividade inerente
às relações. Cada vez mais se dá importância ao afeto nas considerações das relações
familiares; aliás, um outro princípio do Direito de Família é o da afetividade”

Apesar de algumas críticas contundentes e de polêmicas levantadas por alguns juristas, não
resta a menor dúvida de que a afetividade constitui um princípio jurídico aplicado ao âmbito
familiar e com repercussões sucessórias. Conforme bem desenvolve Ricardo Lucas
Calderon, em sua dissertação de mestrado defendida na UFPR, “parece possível sustentar
que o Direito deve laborar com a afetividade e que sua atual consistência indica que se
constitui em princípio no sistema jurídico brasileiro. A solidificação da afetividade nas
relações sociais é forte indicativo de que a análise jurídica não pode restar alheia a este
relevante aspecto dos relacionamentos. A afetividade é um dos princípios do direito de
família brasileiro, implícito na Constituição, explícito e implícito no Código Civil e nas
diversas outras regras do ordenamento. Oriundo da força construtiva dos fatos sociais, o
princípio possui densidade legislativa, doutrinária e jurisprudencial que permite a sua atual
sustentação de lege lata”

desbiologização da paternidade: o vínculo familiar constitui mais um vínculo de afeto do que


um vínculo biológico. Assim surge uma nova forma de parentesco civil, a parentalidade
socioafetiva

Aplicando a ideia, ilustrando, se um marido que reconhece como seu o filho de sua mulher,
estabelecendo um vínculo de afeto por anos a fio, não poderá, depois de aperfeiçoada a
socioafetividade, quebrar esse vínculo. Como se diz nos meios populares, “pai é aquele que
cria”. A situação descrita é denominada juridicamente como “adoção à brasileira”

8. Princípio da boa-fé objetiva

A boa-fé objetiva representa uma evolução do conceito de boa-fé, que saiu do plano da
mera intenção – boa-fé subjetiva – para o plano da conduta de lealdade das partes. O autor
acredita que o referido princípio é cada vez mais presente não só para o Direito
Processual, mas também para o direito material brasileiro. Pois bem, Tartuce sustenta
em sua obra que a boa-fé objetiva tem plena aplicação ao Direito de Família, conforme vem
entendendo doutrina e jurisprudência nacionais. no sentido de que “nas relações familiares,
o princípio da boa-fé objetiva deve ser observado e visto sob suas funções integrativas e
limitadoras, traduzidas pela figura do venire contra factum proprium (proibição de
comportamento contraditório), que exige coerência comportamental daqueles que buscam a
tutela jurisdicional para a solução de conflitos no âmbito do Direito de Família.
a boa-fé objetiva tem três funções no Código Civil de 2002, plenamente aplicáveis aos
institutos familiares.
1) a função de interpretação, retirada do art. 113, caput, do Código Civil, eis que os
negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar da
sua celebração. Nesse dispositivo, a boa-fé é consagrada como meio auxiliador do
aplicador do direito para a interpretação dos negócios, da maneira mais favorável a
quem esteja de boa-fé. Como os institutos familiares, caso do casamento, são
negócios jurídicos, não haveria qualquer óbice de aplicação dessa função aos
institutos em questão, até porque o dispositivo em comento está colocado na Parte
Geral da codificação geral privada.
2) A segunda função é a de controle, retirada do art. 187 do CC/2002, uma vez que
aquele que contraria a boa-fé objetiva no exercício de um direito comete abuso de
direito.
3) A última função da boa-fé objetiva é a de integração, abstraída do art. 422 do CC,
segundo o qual “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do
contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.

Dessa última função de integração é que decorrem os conceitos parcelares da boa-fé, antes
estudados caso da supressio, da surrectio, da máxima tu quoque, da exceptio doli e do
venire contra factum proprium, institutos todos abordados e aprofundados no Capítulo 4
deste livro.

Como visto, a supressio significa a supressão, por renúncia tácita, de um direito ou de uma
posição jurídica, pelo seu não exercício com o passar dos tempos. Ao mesmo tempo em
que o credor perde um direito por essa supressão, surge um direito a favor do devedor, por
meio da surrectio, direito este que não existia juridicamente até então, mas que decorre da
efetividade social, de acordo com os costumes.

Em outras palavras, enquanto a supressio constitui a perda de um direito ou de uma posição


jurídica pelo seu não exercício no tempo, a surrectio é o surgimento de um direito diante de
práticas, usos e costumes. Ambos os conceitos constituem duas faces da mesma moeda,
conforme afirma José Fernando Simão em suas exposições.

Julgados estaduais nacionais têm incidido a supressio e a surrectio aos alimentos pleiteados
entre cônjuges e companheiros, concluindo por sua renúncia tácita em decorrência do seu
não exercício pelo credor em momento oportuno.

De toda sorte, há argumento de que os alimentos envolvem ordem pública, devendo


prevalecer sobre a boa-fé objetiva. Em verdade, conforme outrora demonstrado, a boa-fé
objetiva também é princípio de ordem pública (Enunciado n. 363 da IV Jornada de Direito
Civil), concluindo os julgadores por sua prevalência nos casos expostos.

No ano de 2019, o tema chegou ao âmbito da Terceira Turma do STJ que, pelas
peculiaridades do caso concreto e por maioria, concluiu pela não aplicação dos conceitos de
supressio e surrectio para os alimentos (STJ, REsp 1.789.667/RJ, 3.ª Turma, Rel. Min.
Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. p/ Acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 13.08.2019,
DJe 22.08.2019). Na hipótese fática, como se extrai do voto vencido, “o recorrente e a
recorrida celebraram acordo, isso nos idos de 2001/2, segundo o qual se previu o dever de o
recorrente prestar alimentos à recorrida pelo prazo de vinte e quatro meses, ou seja, até
2004. Findo o referido período, o devedor dos alimentos teria permanecido, voluntariamente,
a prestá-los, isso até agosto de 2017, quando ajuizada a execução em relação a qual o
presente recurso especial é interposto”. Os Ministros Paulo de Tarso Sanseverino e Nancy
Andrighi votaram no sentido de ter havido renúncia tácita quanto ao não pagamento dos
alimentos, eis que, conforme pontuou o primeiro, “diante da natureza jurídica da transação
poderá, pois, dar azo à incidência reativa da boa-fé objetiva e, assim, virem a ser integradas,
as obrigações nela previstas, pela surrectio”.

Porém, seguindo o entendimento do Ministro Villas Bôas Cueva, votaram os Ministros


Bellizze e Moura Ribeiro, afastando a sua incidência por duas razões. A primeira delas diz
respeito à impossibilidade de incidência de tais institutos relativos à boa-fé objetiva sobre as
relações familiares, argumento ao qual não se filia. Como segunda razão, entendeu-se pela
ausência de burla à confiança, uma vez que “a boa intenção do recorrente perante a ex-
mulher não pode ser interpretada a seu desfavor. Há que prevalecer a autonomia da
vontade ante a espontânea solidariedade em análise, cujos motivos são de ordem pessoal e
íntima, e, portanto, refogem do papel do Judiciário, que deve se imiscuir sempre com
cautela, intervindo o mínimo possível na seara familiar. Assim, ausente o mencionado
exercício anormal ou irregular de direito. A liberalidade em questão não ensejou direito
subjetivo algum, pois a própria beneficiária já tinha ciência de que o direito pleiteado era
inexistente. A improcedência da ação revisional proposta pela recorrida com o intuito de
prorrogação do pagamento dos alimentos é, por si só, fundamento suficiente para o
provimento do recurso especial” (REsp 1.789.667/RJ).

Foi destacada uma peculiaridade especial do caso concreto, uma vez que a obrigação
alimentar havia sido extinta, mas foi mantida por longo período de tempo por mera
liberalidade do alimentante, não sendo o caso de ser perpetuada com fundamento no
instituto da surrectio. De fato, esse argumento da liberalidade é forte juridicamente, e a
situação julgada é diferente do que se analisou nos transcritos acórdãos estaduais. O que
não se pode admitir, contudo, é a não incidência desses conceitos parcelares da boa fé
sobre os alimentos entre os cônjuges, pura e simplesmente, como consta do acórdão, o que
não tem o meu apoio.

Em relação ao venire contra factum proprium, lembre-se, mais uma vez, que se trata da
vedação do comportamento contraditório, conforme a dicção do Enunciado n. 362 da IV
Jornada de Direito Civil: “a vedação do comportamento contraditório (venire contra factum
proprium) funda-se na proteção da confiança, como se extrai dos arts. 187 e 422 do Código
Civil”. Como se extrai de acórdão do Superior Tribunal de Justiça antes transcrito, há plena
inserção do conceito ao campo do Direito de Família, sem prejuízo de outras menções nos
capítulos posteriores deste livro.

De toda sorte, do ano de 2017 merece destaque outro aresto superior, que afastou a
possibilidade de um dos ex-companheiros rejeitar acordo que havia celebrado
extrajudicialmente, a respeito da dissolução do primeiro período da união estável.

Também como desdobramento da boa-fé objetiva, o Superior Tribunal de Justiça debateu,


no ano de 2018, a possibilidade de aplicação da teoria do adimplemento substancial para as
verbas alimentares. Por essa teoria, amplamente aplicada aos contratos e estudada em
outros capítulos deste livro, se a obrigação tiver sido quase toda cumprida, sendo a mora
insignificante, não caberá a extinção do negócio jurídico, mas apenas outros efeitos, como a
cobrança.

No caso analisado pelo STJ, discutiu-se a possibilidade de afastamento da prisão civil diante
do adimplemento substancial da obrigação alimentar, em cerca de 95% do montante devido,
representando a dívida módicos R$ 205,43. O Ministro Luis Felipe Salomão votou pela
aplicação da teoria, citando todos os desdobramentos do princípio da boa-fé objetiva e da
razoabilidade, tendo sido seguido pelo Desembargador Lázaro Guimarães (Desembargador
convocado do TRF da 5.ª Região). Porém, prevaleceu o voto do Ministro Antonio Carlos
Ferreira, seguido pelos Ministros Maria Isabel Gallotti e Marco Buzzi.

Como constou da ementa do aresto, “a Teoria do Adimplemento Substancial, de aplicação


estrita no âmbito do direito contratual, somente nas hipóteses em que a parcela inadimplida
revela-se de escassa importância, não tem incidência nos vínculos jurídicos familiares,
revelando-se inadequada para solver controvérsias relacionadas a obrigações de natureza
alimentar. O pagamento parcial da obrigação alimentar não afasta a possibilidade da prisão
civil. Precedentes. O sistema jurídico tem mecanismos por meio dos quais o devedor pode
justificar o eventual inadimplemento parcial da obrigação (CPC/2015, art. 528) e, outrossim,
pleitear a revisão do valor da prestação alimentar (L. 5.478/1968, art. 15; CC/2002, art.
1.699)” (STJ, HC 439.973/MG, 4.ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Rel. p/ Acórdão
Min. Antonio Carlos Ferreira, j. 16.08.2018, DJe 04.09.2018).

Como o devido respeito, apesar dos louváveis argumentos em contrário, ficamos com os
julgadores vencidos, uma vez que a prisão civil do devedor de alimentos deve ser a última
medida a ser tomada, a ultima ratio.

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