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EMERJ – CP V Direito Civil V

Tema I

Direito de Família. Conceito. Noções Gerais. Evolução histórica. Princípios constitucionais. Formação da
família. Casamento. Natureza jurídica. Habilitação matrimonial. Celebração. Casamento civil e casamento
religioso com efeito civil. Capacidade matrimonial. Suprimento judicial. Impedimentos matrimoniais. Causas
suspensivas. Prova do casamento.

Notas de Aula1

1. Direito das famílias: introdução

O primeiro aspecto a ser abordado diz respeito justamente à própria nomenclatura


deste ramo do direito civil: pode-se ainda falar em direito de família, ou o correto é dizer
direito das famílias?
O direito positivado sobre a família não corresponde fielmente ao direito de fato das
famílias. Isto porque a família não é um conceito jurídico: é uma realidade pré-jurídica,
conceito social que antecede o direito. E para o direito, a família se concentra demais no
casamento ou na união estável, como núcleos estáticos, o que não corresponde à realidade
fática, em que a família recebe um conceito plúrimo e fluido. Diante disso, não seria melhor
dizer de um direito de família, mas sim de um direito das famílias, representando a
pluralidade e diversidade deste conceito pré-jurídico.
O ramo do direito das famílias regula tanto as relações matrimoniais, como as de
união estável e de parentesco, bem como alguns institutos protetivos – a tutela e a curatela.
Daí exsurgem seus objetos de estudo, cuja classificação varia de acordo com o autor: as
entidades familiares, o parentesco, e as relações de assistencialismo (segundo Caio Mario e
Paulo Lobo); ou as entidades matrimonializadas, as uniões estáveis, as relações
assitencialistas e as relações de parentesco (para Cristiano Chaves e Nelson Roselvald).
A evolução do que é a família passa, inegavelmente, pela imagem clássica de pai e
mãe casados, e eventuais filhos. A origem deste núcleo clássico é sociológica, e não
jurídica, e remonta à antropologia e à religião: entre a Idade Média e a criação do Estado
Moderno, surgiu esta sacralização da família, e esta estrutura foi erigida nestas bases – a
única família válida era a erigida no casamento entre homem e mulher.
Na realidade brasileira, saltando já para a década de sessenta, a constatação de que o
afeto perene nem sempre é uma realidade, levando à separação fática de pessoas que eram
casadas, propugnou a revisão do entendimento da indissolubilidade do casamento. À época,
menos que antes, mas muito mais do que hoje, o casamento era tido por verdadeiro
contrato, meio pelo qual as pessoas adquiriam posses, status, ou vantagens de qualquer
sorte – e por isso a indissolubilidade era regra. Sendo indissolúvel, mas faticamente
insustentável o afeto, o casamento era mantido, mas à custa da dignidade dos cônjuges, e à
sombra do concubinato. Adiante, como se sabe, a Lei do Desquite promoveu o ajuste
normativo necessário, permitindo a separação que já era uma realidade.
Após, a partir da década de noventa, a mudança maior de paradigma do direito das
famílias foi marcantíssima. Percebeu-se que não só a reunião clássica entre homem e
mulher deveria ser considerada família, mas também as relações de pais e filhos, de
parentes mais próximos, e diversas outras configurações sem o totem do casal como base,
deveriam ser consideradas como família.
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Aula ministrada pela professora Elisa Costa Cruz, em 23/2/2010.

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É nesta época que estamos: o conceito de família, hoje, é absolutamente fluído e


casuístico. Definir família, em abstrato, é difícil tarefa. A doutrina dá alguns parâmetros,
especialmente relacionados à presença inafastável de alguns sentimentos, como afeto,
solidariedade, perdão, devotamento, etc.
Sendo um conceito tão aberto, é preciso que se observe com cuidado o seu
preenchimento casuístico, porque do contrário se poderá reputar família relações sociais
que não o são, de fato, tais como as amizades. O elemento mais importante é, certamente, o
afeto, mas não é isoladamente suficiente para criar uma família: é preciso que haja afeto
destinado a promover, entre aquelas pessoas, uma comunhão de vida, de sortes, felicidades
ou tristezas – é algo mais profundo do que o mero gostar. Pode-se falar em um “afeto
qualificado”, por assim dizer.
Vê-se, portanto, que o direito de família moderno não é mais unicamente jurídico. É
um direito interdisciplinar, insubsistente sem as ciências extrajurídicas que dizem respeito
ao que é humano e sociológico. A interdisciplinariedade, em verdade, passa a ser encarada
como um verdadeiro princípio do direito de família moderno, aliado a todos os demais
princípios constitucionais atinentes à seara, como a igualdade, a liberdade, a dignidade da
pessoa humana, o planejamento familiar, e a exclusividade. Este último é o que dita que é
vedado ao Estado interferir intimamente nas relações familiares, cabendo exclusivamente a
quem está na relação decidir qual é sua postura nela – o que se vê no artigo 226, § 7º, da
CRFB, e 1.513 do CC. O artigo 226 da CF deve ser transcrito na íntegra, eis que sedia
grande parte do tema na Carta Magna:

“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.


§ 1º - O casamento é civil e gratuita a celebração.
§ 2º - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o
homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão
em casamento.
§ 4º - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por
qualquer dos pais e seus descendentes.
§ 5º - Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos
igualmente pelo homem e pela mulher.
§ 6º - O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação
judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação
de fato por mais de dois anos.
§ 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade
responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao
Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito,
vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
§ 8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a
integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.”

“Art. 1.513. É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na


comunhão de vida instituída pela família.”

O princípio da igualdade merece algumas considerações, que têm mais assento na


doutrina constitucional do que civil. O seu oposto, o direito à diferença, que é por alguns
tido como o verdadeiro conteúdo do princípio da igualdade: a igualdade substancial prevê o
direito a ser diferente, e ser respeitado em suas diferenças. Este princípio está em pauta em
duas ADPFs sobre a união homoafetiva, ainda em discussão no STF.

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Feita esta introdução, a definição de a que ramo está afeito o direito das famílias se
mostra bem difícil: é direito público ou privado? Hoje, em tempos de
neoconstitucionalismo, boa parte dos autores modernos entende que esta classificação em
público ou privado não tem mais cabimento, porque não há ramo que seja exclusivamente
público ou exclusivamente privado, e o direito das famílias é um bom exemplo desta
mescla, pois as relações são essencialmente privadas, mas de alta relevância social.
A interferência social na família se faz perceber na majorada importância que a
mediação assume nos conflitos desta seara. Mediação não se confunde com conciliação,
porque o mediador tem maior poder de interferir na relação, nas vontades, a fim de compor
a lide – o que o conciliador não faz.

1.1. Classificações das famílias

A doutrina apresenta algumas espécies de famílias, por assim dizer. A primeira é a


família matrimonializada, tipo constitucional, que é justamente aquela erigida na relação
jurídica do casamento. Outro tipo constitucional é a família criada pela união estável.
Ambas têm na relação homem e mulher a sua base (guardando-se a discussão sobre a
relação homoafetiva para adiante, em tópico especial).
A CRFB também prevê a família substituta, que é implementada pelo Estatuto da
Criança e Adolescente, e que decorre da guarda, tutela e adoção.
Outro tipo de família constitucional é a monoparental: apenas um dos ascendentes
em relação com o descendente, tal como os pais solteiros.
Paulo Lobo defende a atipicidade das famílias. Para ele, a despeito das
classificações constitucionais, estas enumeradas acima, não há como se taxar um rol
numerus clausus para as espécies familiares da realidade. Por exemplo, a própria lei
estabelece algumas espécies alheias às constitucionais, tal como a família recomposta, por
exemplo: trata-se da reunião de pessoas que, outrora pertencentes a uma família mais típica,
se reúnem e formam uma terceira família. Como exemplo, os pais separados que tornam a
se casar: a família composta pelos novos cônjuges e os filhos exclusivos respectivos,
levados à união, é uma família recomposta. Também se a chama de família reconstituída,
ou mosaico familiar.
O ECA traz inovação, no recém acrescido parágrafo único do artigo 25 – uma outra
modalidade, denominada família extensa:

“Art. 25. Entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais ou
qualquer deles e seus descendentes.
Parágrafo único. Entende-se por família extensa ou ampliada aquela que se
estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por
parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém
vínculos de afinidade e afetividade. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009).”

Trata-se da comunidade formada pelos parentes do menor, que terão, inclusive,


prioridade na guarda deste quando os pais faltarem ou não tiverem mais o poder familiar,
por qualquer motivo.
Outro conceito é o de famílias simultâneas, ou famílias paralelas. Trata-se da
família constituída por pessoa que já tenha outra família. Como exemplo, a família
constituída por um homem que já é casado, em relação de concubinato. Esta questão é

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altamente relevante, por exemplo, para a configuração ou não da união estável na nova
relação, o que será abordado com profundidade em tema próprio, adiante.
A doutrina prevê ainda o conceito de família solidária: para Ana Carla Matos, a
família solidária é aquela formada por pessoas que estão em relação de convívio por
circunstâncias da vida que as colocam em pé de solidariedade. O melhor exemplo é o de
idosos que residem em uma casa de saúde, os quais podem acabar por formar uma família
entre si, dado o nível de convivência, afeto e intimidade.
Maria Berenice Dias ainda fala na família eudomonista, que nada mais é do que
aquela família fundada puramente no afeto.

1.2. Responsabilidade civil e função social em direito das famílias

A discussão mais clássica sobre a responsabilidade civil em direito das famílias diz
respeito ao dano moral por dissolução de noivado, casamento, ou por abandono moral de
filhos. O embate é ferrenho, mas já se pode apontar uma tendência jurisprudencial ao
menos no que se refere ao abandono moral: STJ e STF entendem que não é cabível, porque
o afeto não pode ser imposto (apesar de haver decisões de tribunais regionais que entendem
que há violação do princípio do planejamento familiar responsável pelo pai que assim se
porta, havendo ato ilícito).
A função social da família é patente, e por isso Gustavo Tepedino reflete que a
família não é voltada para si mesma, e sim para a sociedade: é um meio de valorização do
homem, um pilar de estabilidade social, e só atinge sua função social quando cumpre esta
finalidade de valorizar as pessoas que dela participam.

1.3. Tutela da confiança familiar

Há uma manifestação bastante específica da tutela da confiança na relação de


família, e está no regramento do regime de bens do casamento. Como se sabe, alguns atos
dependem de outorga conjugal para serem praticados. Suponha-se que um dos cônjuges
celebra uma promessa de compra e venda, como promitente-vendedor, sem a outorga da
esposa. Este contrato se executa perfeitamente, chegando ao termo sem inadimplemento,
após diversos anos. Ao final, quando da feitura da escritura definitiva, a esposa que não
dera sua outorga opõe-se ao ato, alegando esta carência de vênia, e negando-se a passar a
escritura definitiva.
Ora, é claro que esta esposa não pode lograr sucesso em sua alegação. Ao longo de
todos os anos do contrato, certamente teve ciência deste, e por isso não poderá ser o
promitente-comprador prejudicado na confiança depositada no negócio. É uma variação da
supressio, em que a cônjuge que não se opôs em tempo razoável à celebração do negócio
desautorizado, por tanto tempo, não poderá fazê-lo agora.

2. Casamento

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Nem a CRFB, nem o CC, traçam conceito normativo do casamento. O artigo 226 da
CRFB, há pouco transcrito, não traz conceito. E mais: ao tratar do casamento, não disse o
constituinte que seja entre homem e mulher, sendo que fez esta expressa menção quando
tratou da união estável, no § 3º deste artigo. Esta peculiar omissão, que pode ser vista como
um mero lapso legislativo ante a aparente obviedade, na mens legislatorum, de que o
casamento só se perpassava entre homem e mulher, dá hoje margem à tese de que a CRFB
não se opôs à união homoafetiva pelo casamento, mas somente pela união estável.
Ausente o conceito legal de casamento, a doutrina o define: é o ato solene e formal,
pelo qual o homem e a mulher se unem em matrimônio, formando a comunhão de vida.
Daqui surge a indefectível questão: qual é a natureza jurídica do casamento?
Três são as vertentes. A primeira reputa-o como um contrato, porque o casamento se
institui por meio da manifestação bilateral de vontades, e, além disso, há como se traçar os
elementos patrimoniais da relação e seus efeitos. Segunda corrente defende que o
casamento é uma instituição: o acordo de vontades, na verdade, não forma um contrato, e
sim expressa uma mera adesão dos nubentes aos efeitos legais do reconhecimento desta
relação. Por fim, o terceiro entendimento é uma corrente mista, que defende que o
casamento é tanto um contrato como uma instituição, a depender do aspecto que se
observe: é um contrato em relação à formação, e uma instituição em relação aos efeitos.
Não há posição majoritária, prevalecendo um pouco a corrente mista. Cristiano
Chaves ainda defende uma quarta leitura, que diz que o casamento não é contrato, nem é
instituição: o casamento está contrato ou está instituição, a depender do tempo e da
sociedade em que se o observa.
Há quem diga que o casamento tem por finalidade a procriação, como diz Maria
Helena Diniz. Não é uma assertiva verdadeira. Gerar prole pode ser um efeito do
casamento, mas não é a finalidade deste ato: a finalidade é promover a comunhão de vidas.

2.1. Legitimidade para o casamento

Nem todos podem se casar. A lei estabelece alguns requisitos para que haja a
legitimidade para se casar. Vejamo-los.
O primeiro requisito para poder se casar é ter idade núbil, que hoje é unificada para
homem e mulher: só pode se casar aquele que tenha ao menos dezesseis anos. Veja o artigo
1.517 do CC:

“Art. 1.517. O homem e a mulher com dezesseis anos podem casar, exigindo-se
autorização de ambos os pais, ou de seus representantes legais, enquanto não
atingida a maioridade civil.
Parágrafo único. Se houver divergência entre os pais, aplica-se o disposto no
parágrafo único do art. 1.631.”

Esta regra pode ser afastada, permitindo o juiz o casamento do pré-núbil, nos casos
do artigo 1.520 do CC:

“Art. 1.520. Excepcionalmente, será permitido o casamento de quem ainda não


alcançou a idade núbil (art. 1517), para evitar imposição ou cumprimento de pena
criminal ou em caso de gravidez.”

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Há uma clara impropriedade deste artigo, porque o pré-núbil não pode cumprir pena
criminal – menores não cometem crime, mas ato infracional, e não recebem pena, mas
medida sócio-educativa.
Além disso, a interpretação deste dispositivo deve ser feita de forma ampla, a fim de
permitir a autorização do casamento do pré-núbil em casos que seja identificada a
necessidade, alheios aos exemplos ali mencionados. Veja o enunciado 329 do CJF:

“Enunciado 329, CJF: A permissão para casamento fora da idade núbil merece
interpretação orientada pela dimensão substancial do princípio da igualdade
jurídica, ética e moral entre o homem e a mulher, evitando-se, sem prejuízo do
respeito à diferença, tratamento discriminatório.”

Daquele que tem entre dezesseis e dezoito anos, é exigida a autorização de ambos
os pais ou representantes legais. Se houver negativa de ambos, não é possível o casamento;
se houver dissenso, apenas um dos pais concedendo, o casamento é anulável, na forma do
artigo 1.550, I e II, do CC:

“Art. 1.550. É anulável o casamento:


I - de quem não completou a idade mínima para casar;
II - do menor em idade núbil, quando não autorizado por seu representante legal;
(...)”

Suprido o consentimento pelo juiz, quer porque os pais se negaram, aos maiores de
dezesseis, quer porque a pessoa está em idade pré-núbil, o casamento será sempre
necessariamente feito pelo regime da separação obrigatória de bens, na forma do artigo
1.641, III, do CC:

“Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:


(...)
III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.”

Completada a maioridade, podem os cônjuges suprir eventuais vícios do casamento,


ratificando-o, ou mesmo alterar o regime legal de bens.

2.2. Causas de impedimento do casamento

Os impedimentos matrimoniais invalidam o casamento, e por isso são causas


específicas de incapacidade para se casar com determinada pessoa, mas não com outras – o
que é a definição de ilegitimidade para tais atos. Veja o artigo 1.521 do CC:

“Art. 1.521. Não podem casar:


I - os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil;
II - os afins em linha reta;
III - o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do
adotante;
IV - os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau
inclusive;
V - o adotado com o filho do adotante;
VI - as pessoas casadas;
VII - o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de
homicídio contra o seu consorte.”

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Vale mencionar que o parentesco por afinidade não se extingue com o fim do
casamento, como dispõe o artigo 1.595, § 2º, do CC:

“Art. 1.595. Cada cônjuge ou companheiro é aliado aos parentes do outro pelo
vínculo da afinidade.
§ 1º O parentesco por afinidade limita-se aos ascendentes, aos descendentes e aos
irmãos do cônjuge ou companheiro.
§ 2º Na linha reta, a afinidade não se extingue com a dissolução do casamento ou
da união estável.”

A primeira parte do inciso III do artigo 1.521 do CC, portanto, é irrelevante: o


adotante não poderia casar com o ex-cônjuge do adotado pelo fato de que já há entre eles
parentesco por afinidade, indissolúvel, a impedir o casamento. Já a segunda parte se
justifica apenas para uma situação: se a adoção foi unilateral, o adotado não tem qualquer
relação de parentesco por afinidade com o ex-cônjuge do adotante, pelo que o casamento
seria possível – mas esta parte do dispositivo o veda.
O inciso IV deste artigo 1.521, também é em parte redundante, na parte que
menciona a vedação ao casamento entre irmãos unilaterais ou bilaterais: o parentesco entre
irmãos, de qualquer sorte, é naturalmente excludente da legitimidade para casarem-se,
sendo dispensável a menção à uni ou bilateralidade. Já na parte que se refere aos demais
colaterais, por limitar ao terceiro grau, surge uma questão: podem os tios se casarem com
sobrinhos?
O CC de 1916 vedava, mas sobreveio um decreto-lei, o DL 3.200/41, permitindo
este casamento e condicionando-o apenas à realização de um exame que atestasse a
compatibilidade. O CC de 2002 não coloca qualquer ressalva, apenas vedando este
casamento. Surge a discussão: o CC revogou a permissão do decreto-lei? A primeira
corrente entende que sim, mas a segunda, prevalente, entende que não, porque o CC não
tratou extensamente da matéria. Veja o enunciado 98 do CJF:

“Enunciado 98, CJF: Art. 1.521, IV, do novo Código Civil: o inc. IV do art. 1.521
do novo Código Civil deve ser interpretado à luz do Decreto-Lei n. 3.200/41 no
que se refere à possibilidade de casamento entre colaterais de 3º grau.”

Outro dispositivo completamente inútil é o V do artigo 1.521: a pessoa adotada se


torna irmã do filho do adotante, pelo que o inciso IV deste artigo já veda o casamento.
A bigamia é vedada, na forma do inciso VI deste artigo 1.521 do CC.
O inciso VII do artigo em comento tem sido entendido como aplicável apenas
quando o crime em questão for doloso, e não culposo.
O artigo 1.522 do CC dispõe que:

“Art. 1.522. Os impedimentos podem ser opostos, até o momento da celebração do


casamento, por qualquer pessoa capaz.
Parágrafo único. Se o juiz, ou o oficial de registro, tiver conhecimento da
existência de algum impedimento, será obrigado a declará-lo.”

Também o MP pode opor os impedimentos, eis que é norma de ordem pública. Se o


casamento for realizado com impedimentos, a ação de decretação da nulidade segue a regra
do artigo 1.549 do CC:

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“Art. 1.549. A decretação de nulidade de casamento, pelos motivos previstos no


artigo antecedente, pode ser promovida mediante ação direta, por qualquer
interessado, ou pelo Ministério Público.”

2.3. Causas suspensivas do casamento

Antes de se arrolar tais causas, cabe uma crítica: na verdade, não são causas
suspensivas do casamento. Não há suspensão de nada, e sim a mera condicionante de, se se
casarem nestas situações, o regime de bens será o da separação legal. Veja o artigo 1.523 do
CC:

“Art. 1.523. Não devem casar:


I - o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer
inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros;
II - a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado,
até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade
conjugal;
III - o divorciado, enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos
bens do casal;
IV - o tutor ou o curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou
sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou
curatela, e não estiverem saldadas as respectivas contas.
Parágrafo único. É permitido aos nubentes solicitar ao juiz que não lhes sejam
aplicadas as causas suspensivas previstas nos incisos I, III e IV deste artigo,
provando-se a inexistência de prejuízo, respectivamente, para o herdeiro, para o
ex-cônjuge e para a pessoa tutelada ou curatelada; no caso do inciso II, a nubente
deverá provar nascimento de filho, ou inexistência de gravidez, na fluência do
prazo.”

Veja que o parágrafo deste artigo permite o afastamento das causas suspensivas
referentes à confusão patrimonial, o que se ocorrer implica na possibilidade de escolher o
regime de casamento – pois a única consequência das causas suspensivas é o regime legal,
e se não se aplica a causa, não se aplica a consequência.
O artigo seguinte diz quem pode, e até que momento, argüir as causas suspensivas:

“Art. 1.524. As causas suspensivas da celebração do casamento podem ser argüidas


pelos parentes em linha reta de um dos nubentes, sejam consangüíneos ou afins, e
pelos colaterais em segundo grau, sejam também consangüíneos ou afins.”

A interpretação estende esta legitimidade para argüir a todo e qualquer parente, e


não apenas aos consangüíneos e afins.

2.4. Procedimento do casamento

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O primeiro passo dos nubentes é levar os documentos constantes do artigo 1.525 do


CC ao oficial do registro civil, para dar início ao procedimento de habilitação para o
casamento:

“Art. 1.525. O requerimento de habilitação para o casamento será firmado por


ambos os nubentes, de próprio punho, ou, a seu pedido, por procurador, e deve ser
instruído com os seguintes documentos:
I - certidão de nascimento ou documento equivalente;
II - autorização por escrito das pessoas sob cuja dependência legal estiverem, ou
ato judicial que a supra;
III - declaração de duas testemunhas maiores, parentes ou não, que atestem
conhecê-los e afirmem não existir impedimento que os iniba de casar;
IV - declaração do estado civil, do domicílio e da residência atual dos contraentes e
de seus pais, se forem conhecidos;
V - certidão de óbito do cônjuge falecido, de sentença declaratória de nulidade ou
de anulação de casamento, transitada em julgado, ou do registro da sentença de
divórcio.”

O artigo 1.526 do CC foi recentemente alterado, porque muito se criticava sua


redação original, que distorceu a dinâmica que era mais correta quando da vigência do CC
de 1916. Veja a redação anterior e a atual:

“Art. 1.526. A habilitação será feita perante o oficial do Registro Civil e, após a
audiência do Ministério Público, será homologada pelo juiz.”

“Art. 1.526. A habilitação será feita pessoalmente perante o oficial do Registro


Civil, com a audiência do Ministério Público. (Redação dada pela Lei nº 12.133, de
2009)
Parágrafo único. Caso haja impugnação do oficial, do Ministério Público ou de
terceiro, a habilitação será submetida ao juiz. (Incluído pela Lei nº 12.133, de
2009).”

Assim, hoje, só há remessa da habilitação ao juiz se houver impugnação; se não, o


procedimento se aperfeiçoa todo em cartório.
Repare que o dispositivo reformado agora diz que a habilitação deve ser feita
pessoalmente pelo interessado, o que já levanta a tese de que a habilitação por procuração
não é mais possível. Contudo, é de se entender que a habilitação por procuração ainda deve
ser considerada possível, devendo o procurador ser entendido como compreendido no
alcance do termo “pessoalmente” – afinal, exprime a vontade do nubente, como se ele
fosse.
Expedido o edital de proclamas, que é o que reconhece como habilitados os
nubentes e dá publicidade a esta situação, a fim de que algum eventual opositor de
impedimentos ou suspensões seja cientificado e possa se manifestar.
Extraída a certidão de habilitação, ao fim das eventuais impugnações, os nubentes
terão noventa dias, desde sua extração, para celebrar o casamento, na forma do artigo 1.532
do CC:

“Art. 1.532. A eficácia da habilitação será de noventa dias, a contar da data em que
foi extraído o certificado.”
A celebração do casamento, em regra, se dá na forma civil. Contudo, apesar do
laicismo estatal, o casamento religioso pode produzir efeitos civis. Veja, sobre a celebração,

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os artigos 1.533 e 1.538 do CC, além do artigo 70 da Lei 6.015/73, Lei de Registros
Públicos:

“Art. 1.533. Celebrar-se-á o casamento, no dia, hora e lugar previamente


designados pela autoridade que houver de presidir o ato, mediante petição dos
contraentes, que se mostrem habilitados com a certidão do art. 1.531.”

“Art. 1.538. A celebração do casamento será imediatamente suspensa se algum dos


contraentes:
I - recusar a solene afirmação da sua vontade;
II - declarar que esta não é livre e espontânea;
III - manifestar-se arrependido.
Parágrafo único. O nubente que, por algum dos fatos mencionados neste artigo, der
causa à suspensão do ato, não será admitido a retratar-se no mesmo dia.”

“Art. 70 Do matrimônio, logo depois de celebrado, será lavrado assento, assinado


pelo presidente do ato, os cônjuges, as testemunhas e o oficial, sendo exarados:
(Renumerado do art. 71, pela Lei nº 6.216, de 1975).
1º) os nomes, prenomes, nacionalidade, data e lugar do nascimento, profissão,
domicílio e residência atual dos cônjuges;
2º) os nomes, prenomes, nacionalidade, data de nascimento ou de morte, domicílio
e residência atual dos pais;
3º) os nomes e prenomes do cônjuge precedente e a data da dissolução do
casamento anterior, quando for o caso;
4°) a data da publicação dos proclamas e da celebração do casamento;
5º) a relação dos documentos apresentados ao oficial do registro;
6º) os nomes, prenomes, nacionalidade, profissão, domicílio e residência atual das
testemunhas;
7º) o regime de casamento, com declaração da data e do cartório em cujas notas foi
tomada a escritura ante-nupcial, quando o regime não for o da comunhão ou o
legal que sendo conhecido, será declarado expressamente;
8º) o nome, que passa a ter a mulher, em virtude do casamento;
9°) os nomes e as idades dos filhos havidos de matrimônio anterior ou legitimados
pelo casamento.
10º) à margem do termo, a impressão digital do contraente que não souber assinar
o nome. (Incluído pela Lei nº 6.216, de 1975).
Parágrafo único. As testemunhas serão, pelo menos, duas, não dispondo a lei de
modo diverso.”

O casamento religioso é um resquício do direito canônico, e se permite a produção


de efeitos civis por conta desta tradição, severamente arraigada no ordenamento. Veja os
artigos 1.515 e 1.516 do CC, e o artigo 71 da Lei 6.015/73:

“Art. 1.515. O casamento religioso, que atender às exigências da lei para a


validade do casamento civil, equipara-se a este, desde que registrado no registro
próprio, produzindo efeitos a partir da data de sua celebração.”

“Art. 1.516. O registro do casamento religioso submete-se aos mesmos requisitos


exigidos para o casamento civil.
§ 1º O registro civil do casamento religioso deverá ser promovido dentro de
noventa dias de sua realização, mediante comunicação do celebrante ao ofício
competente, ou por iniciativa de qualquer interessado, desde que haja sido
homologada previamente a habilitação regulada neste Código. Após o referido
prazo, o registro dependerá de nova habilitação.

Michell Nunes Midlej Maron 10


EMERJ – CP V Direito Civil V

§ 2º O casamento religioso, celebrado sem as formalidades exigidas neste Código,


terá efeitos civis se, a requerimento do casal, for registrado, a qualquer tempo, no
registro civil, mediante prévia habilitação perante a autoridade competente e
observado o prazo do art. 1.532.
§ 3º Será nulo o registro civil do casamento religioso se, antes dele, qualquer dos
consorciados houver contraído com outrem casamento civil.”

“Art. 71. Os nubentes habilitados para o casamento poderão pedir ao oficial que
lhe forneça a respectiva certidão, para se casarem perante autoridade ou ministro
religioso, nela mencionando o prazo legal de validade da habilitação. (Renumerado
do art. 72 pela Lei nº 6.216, de 1975).”

Veja que a habilitação prévia ao casamento religioso é necessária, e, se não feita,


deve ser realizada mesmo posteriormente. O registro do casamento religioso precisa ser
feito no prazo de noventa dias, quando então este registro terá eficácia retroativa até a
celebração religiosa. Se superado este tempo, o registro ainda é possível, e, diz a doutrina,
ainda assim a retroação dos efeitos se opera até a celebração, porque de outra forma não se
contemplaria o comando constitucional de privilegiar o casamento, inclusive pela
conversão da união estável neste – e há união estável entre os religiosamente casados. O
prazo para registro, portanto, é irrelevante. Neste sentido, veja o Agravo de Instrumento
2007.002.24184, do TJ/RJ:

“Processo: 0039115-82.2007.8.19.0000 (2007.002.24184). 1ª Ementa - AGRAVO


DE INSTRUMENTO DES. HORACIO S RIBEIRO NETO - Julgamento:
08/01/2008 - QUARTA CAMARA CIVEL. DIVORCIO CONSENSUAL.
AQUISICAO DE IMOVEL. MEACAO DA MULHER. TERMO INICIAL.
TERMO FINAL.
Agravo de Instrumento. Casal que celebrou casamento religioso aos 02/02/2002,
tendo somente registrado o matrimônio aos 15/08/2002. Matrimonio cujos efeitos,
contudo, retroagem à data da celebração. Inteligência do art. 73 LRP e do art.
1.516, CC 2002. Reconhecimento, portanto, da meação da mulher sobre os valores
pagos para aquisição de imóvel até a data do deferimento de seu auto-afastamento
22/04/2004. Correto afastamento da partilha do valor percebido a título de
honorários advocatícios por não integrar a comunhão. Aplicação do art. 1.659, VI,
CC 2002. Agravo de instrumento a que se nega provimento.”

Não é possível o registro póstumo de casamento religioso, se não ocorreu


previamente a habilitação. Neste caso, é preciso que ambos os nubentes estejam vivos e
presentes ao registro. Veja o seguinte julgado do TJ/SP:

“Apelação Cível 318030-4/5-00.


Ementa: REGISTRO CIVIL - Pedido do autor de registro, no ofício competente,
do casamento religioso de seus avós paternos, já falecidos - Inadmissibilidade —
Ato religioso que não foi precedido de processo legal de habilitação - Efeitos civis,
com o necessário registro, que dependeria, destarte, da livre expressão da vontade
uniforme dos nubentes, de que desejam assumir os direitos e obrigações
conseqüentes - Exegese que se extrai da evolução legislativa a contar de 1934 (Lei
n° 1.110/50, Lei n° 6.015/73, arts. 1.516, § 2o e 1.525 do CC vigente) - Apelo não
provido.”

Se o casamento religioso foi celebrado com prévia habilitação, poderá ser


registrado, mesmo se falecido um ou ambos os nubentes.

Michell Nunes Midlej Maron 11


EMERJ – CP V Direito Civil V

Ressalte-se que a celebração do casamento precisa de ambos os nubentes presentes,


vivos. Se um dos nubentes, mesmo já habilitado, falece a caminho da celebração, não há
casamento. Não há celebração post mortem.
Pelo ensejo, o casamento se considera celebrado no exato momento em que a
manifestação do celebrante é exarada, e não quando ambos os nubentes dizem o famoso
“sim”. Veja o artigo 1.535 do CC, que pôs fim a esta discussão antiga sobre este exato
momento:

“Art. 1.535. Presentes os contraentes, em pessoa ou por procurador especial,


juntamente com as testemunhas e o oficial do registro, o presidente do ato, ouvida
aos nubentes a afirmação de que pretendem casar por livre e espontânea vontade,
declarará efetuado o casamento, nestes termos:"De acordo com a vontade que
ambos acabais de afirmar perante mim, de vos receberdes por marido e mulher, eu,
em nome da lei, vos declaro casados."”

A lei fala, com bastante propriedade, em casamento religioso, e não em casamento


católico. Sendo assim, prevalece o entendimento de que, qualquer que seja a religião, a
celebração ecumênica é admitida a registro civil. Há certa divergência no que diz respeito
ao casamento espírita, porque há quem defenda que o espiritismo não é religião, e sim
filosofia de vida, mas é corrente insossa e discriminatória.
Existem mais duas formas de celebração do casamento, o casamento in extremis, ou
nuncupativo, ou em iminente risco de vida; e o casamento em caso de moléstia grave.
Ambos são casamentos em situação de urgência, mas há diferenças na gradação da
premência. No casamento em caso de moléstia grave, dada a menor urgência, há a
necessidade de habilitação prévia, e a celebração é feita pela autoridade competente
(oficial, juiz de paz ou de direito), a qual pode ir ao local em que se encontre o nubente
doente. Já no casamento nuncupativo, por ser muito urgente, não só se dispensa a
habilitação prévia, como se permite sua celebração por qualquer pessoa, demandando
apenas a presença de seis testemunhas, ao menos, as quais comparecerão ao cartório e
informarão a ocorrência do casamento.
Em ambos os casos, se o agonizante ou o doente convalescem, devem comparecer
ao cartório e ratificar o casamento.
O nubente in extremis, ainda, não pode ser representado por procurador no ato do
casamento: sua manifestação deve vir de própria voz. O nubente portador de moléstia grave
pode ser representado.
Veja os artigos 1.539 e 1.540 do CC:

“Art. 1.539. No caso de moléstia grave de um dos nubentes, o presidente do ato irá
celebrá-lo onde se encontrar o impedido, sendo urgente, ainda que à noite, perante
duas testemunhas que saibam ler e escrever.
§ 1º A falta ou impedimento da autoridade competente para presidir o casamento
suprir-se-á por qualquer dos seus substitutos legais, e a do oficial do Registro Civil
por outro ad hoc, nomeado pelo presidente do ato.
§ 2º O termo avulso, lavrado pelo oficial ad hoc, será registrado no respectivo
registro dentro em cinco dias, perante duas testemunhas, ficando arquivado.”

“Art. 1.540. Quando algum dos contraentes estiver em iminente risco de vida, não
obtendo a presença da autoridade à qual incumba presidir o ato, nem a de seu
substituto, poderá o casamento ser celebrado na presença de seis testemunhas, que

Michell Nunes Midlej Maron 12


EMERJ – CP V Direito Civil V

com os nubentes não tenham parentesco em linha reta, ou, na colateral, até
segundo grau.”

2.5. Prova do casamento

A prova natural do casamento é a certidão. Inexistindo a certidão, deve-se buscar


uma segunda via; se impossível colher esta via – no exemplo clássico, porque o cartório se
incendiou –, ou seja, não havendo registro oficial algum daquele casamento, pode-se provar
que houve a celebração por meio da posse do estado de casado.
A união estável não é posse de estado de casado. Havendo união estável, há indício
severo de que pode ter havido o casamento, mas não significa que houve. Para ter-se o
casamento, é preciso que tenha havido a celebração deste em algum momento, e a prova
desta celebração é que fará induzir a posse do estado de casado, provando-se o casamento.
O meio de se provar o casamento, sem a certidão, é por via da ação de justificação,
do artigo 861 do CPC, na qual se poderá utilizar qualquer meio de prova admissível em
direito. Veja os artigos 1.543 a 1.547 do CC, e o artigo 861 do CPC:

“Art. 1.543. O casamento celebrado no Brasil prova-se pela certidão do registro.


Parágrafo único. Justificada a falta ou perda do registro civil, é admissível qualquer
outra espécie de prova.”

“Art. 1.544. O casamento de brasileiro, celebrado no estrangeiro, perante as


respectivas autoridades ou os cônsules brasileiros, deverá ser registrado em cento e
oitenta dias, a contar da volta de um ou de ambos os cônjuges ao Brasil, no cartório
do respectivo domicílio, ou, em sua falta, no 1o Ofício da Capital do Estado em
que passarem a residir.”

“Art. 1.545. O casamento de pessoas que, na posse do estado de casadas, não


possam manifestar vontade, ou tenham falecido, não se pode contestar em prejuízo
da prole comum, salvo mediante certidão do Registro Civil que prove que já era
casada alguma delas, quando contraiu o casamento impugnado.”

“Art. 1.546. Quando a prova da celebração legal do casamento resultar de processo


judicial, o registro da sentença no livro do Registro Civil produzirá, tanto no que
toca aos cônjuges como no que respeita aos filhos, todos os efeitos civis desde a
data do casamento.”

“Art. 1.547. Na dúvida entre as provas favoráveis e contrárias, julgar-se-á pelo


casamento, se os cônjuges, cujo casamento se impugna, viverem ou tiverem vivido
na posse do estado de casados.”

“Art. 861. Quem pretender justificar a existência de algum fato ou relação jurídica,
seja para simples documento e sem caráter contencioso, seja para servir de prova
em processo regular, exporá, em petição circunstanciada, a sua intenção.”

Veja que o artigo 1.547 do CC cria uma forte presunção in dubio pro casamento,
como regra de julgamento.

Casos Concretos

Questão 1

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EMERJ – CP V Direito Civil V

Amaro, 66 anos de idade, plenamente capaz, e Simone, 26 anos, ingressaram com o


pedido de habilitação para o casamento, juntando o pacto antenupcial, em que
convencionam o regime da comunhão total de bens. O pacto antenupcial é válido? Decida
sobre o pedido de habilitação.

Resposta à Questão 1

Existe vedação legal à adoção de regime diverso do da separação para o maior de


sessenta anos, no artigo 1.641, II, do CC:

“Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:


(...)
II - da pessoa maior de sessenta anos;
(...)”

Esta vedação é bastante criticada pela doutrina, porque se entende que seja um
preconceito e discriminação legal inaceitáveis. Contudo, a jurisprudência a aplica quase à
unanimidade: o pacto antenupcial que fixe outro regime é nulo, nesta parte. Maiores de
sessenta anos só podem se casar em regime de separação legal.
Há apenas uma ressalva: se o nubente maior de sessenta anos já constituíra, com sua
companheira, união estável anterior a esta idade, o regime de então era o da comunhão
parcial, e este poderá ser mantido, ou um novo, qualquer, escolhido.
Veja a Apelação Cível 2004.001.09014, e a exceção, na Apelação 2005.001.20785,
ambas do TJ/RJ:

“Processo: 0000030-94.2004.8.19.0000 (2004.001.09014). 1ª Ementa –


APELACAO. DES. ANTONIO EDUARDO F. DUARTE - Julgamento:
26/10/2004 - TERCEIRA CAMARA CIVEL.
HABILITACAO PARA CASAMENTO. PACTO ANTENUPCIAL. NULIDADE.
REGIME DA SEPARACAO DE BENS. OBRIGATORIEDADE.
Habilitacao para casamento. Pacto antenupcial firmado por nubente maior de
sessenta anos. Obrigatoriedade do regime de separacao de bens. Nulidade
declarada. Manutencao da sentenca. Improvimento do recurso. Tratando-se de
pacto antenupcial firmado por nubente com mais de sessenta anos de idade, correta
a sentenca que declarou a nulidade da avenca, homologou a habilitacao para o
casamento e determinou a observancia do regime da separacao obrigatoria dos
bens.

“Processo: 0006404-57.2004.8.19.0023 (2005.001.20785). 1ª Ementa –


APELACAO. DES. JOSE CARLOS PAES - Julgamento: 04/10/2005 - DECIMA
QUARTA CAMARA CIVEL.
REGIME DE BENS DO CASAMENTO. ALTERACAO. UNIAO ESTAVEL.
ANTERIORIDADE. NOVO CODIGO CIVIL. POSSIBILIDADE.
Apelacao Civel. Retificacao de registro civil. Alteracao do regime de bens. Uniao
estavel anterior ao casamento. E' possivel a alteracao do regime de bens, conforme
o par. 2., do art. 1639, do CCB/02, mesmo que o matrimonio tenha sido realizado
durante a vigencia do Codigo Civil anterior. Precedentes do STJ e do TJRJ. A
obrigatoriedade do regime da separacao de bens nao se aplica`a pessoa maior de
sessenta anos, quando o casamento for precedido de uniao estavel iniciada antes
dessa idade. Provimento do recurso para anular a sentenca, prosseguindo o feito.”

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EMERJ – CP V Direito Civil V

Questão 2

Josué, jovem de 17 anos de idade, e Josefa, com apenas 15 anos, após namoro pelo
período de 1 ano, resolveram se casar. O pai de Josué, que possui a sua guarda, autoriza o
casamento, apesar da objeção de sua mãe. Os pais de Josefa consentem e os jovens
convolam núpcias sem se valerem da autorização judicial. O casamento é válido, nulo ou
anulável?

Resposta à Questão 2

O casamento é anulável na forma do artigo 1.550, I e II, porque seria necessário o


consentimento de ambos os pais de Josué, pois dar consentimento para o casamento é
atributo do poder familiar inerente a ambos os pais, em igualdade de condições, podendo
ser suprido judicialmente o consentimento do genitor que injustamente a ele se recusa, na
forma do artigo 1.519 do CC.
O fato de Josué estar sob a guarda do pai não retira da mãe sua autoridade parental,
não prevalecendo, portanto, a vontade paterna. Necessário, ainda, não obstante o
consentimento dos pais de Josefa, a autorização judicial para suprimento da falta de idade,
já que não possui ela capacidade matrimonial. Deve-se atentar, contudo, que para o
casamento de pessoa menor de dezesseis anos, somente será autorizado ante as hipóteses
previstas no artigo 1.520 do Código Civil.

Questão 3

É possível o casamento avuncular (tio e sobrinha) no direito brasileiro?Responda,


fundamentadamente, a questão.

Resposta à Questão 3

Sim, é possível, como defende o CJF no seu enunciado 98, já transcrito. O CC de


1916 vedava, mas sobreveio um decreto-lei, o DL 3.200/41, permitindo este casamento e
condicionando-o apenas à realização de um exame que atestasse a compatibilidade. O CC
de 2002 não coloca qualquer ressalva, apenas vedando este casamento.

Tema II

Michell Nunes Midlej Maron 15


EMERJ – CP V Direito Civil V

Ineficácia do casamento. Casamento inexistente. Pressupostos de existência. Casamento nulo e anulável.


Vício da vontade. Erro essencial quanto a pessoa do cônjuge. Sentença. Efeitos. Casamento Putativo. Efeitos
da putatividade. Eficácia do casamento. Direitos e Deveres conjugais. Administração da sociedade conjugal.
Domicílio conjugal. Bem de família. Conceito e finalidade. Bem de família voluntário e legal. Constituição.
Penhorabilidade do bem de família do fiador.

Notas de Aula2

1. Teorias da inexistência e da invalidade do casamento

1.1. Teoria da inexistência do casamento

A parte geral do CC não adota expressamente a teoria da inexistência dos atos


jurídicos. A interpretação de que as nulidades só são aquelas expressamente consignadas na
lei, ante a necessária interpretação restritiva que se deve fazer de normas que são, elas
próprias, restritivas de direitos, é o que dá margem à criação da teoria da inexistência dos
atos jurídicos, pois se um determinado vício não está colocado como nulidade ou
anulabilidade, mas fica claro que o ato sequer teve seu ciclo de formação completado, não
pode ser declarada a sua invalidade por estar alheio à lista legal dos vícios, mas tal ato não
pode ser declarado válido – daí a teoria da inexistência destes atos.
Um dos grandes exemplos de ato que, apesar de escapar ao rol das nulidades, não
pode ser tido por perfeito – mas não é nulo ou anulável, sendo então inexistente – vem
justamente do direito das famílias: o casamento de pessoas do mesmo sexo. No CC, nem no
artigo 1.548, que trata das nulidades, nem no 1.550, que trata das anulabilidades
(dispositivos que serão vistos adiante), há o desrespeito à diversidade do sexo dos consortes
como causa de invalidade, e por isso o vício é tido por inexistência, pois é clara a ausência
de requisito para constituição do casamento – o casamento não existe sem diversidade
sexual.
Outra hipótese de inexistência do casamento é a ausência total de consentimento
por ao menos uma das partes: se mesmo sem o plural consentimento se celebrar o
casamento, na verdade esta celebração foi ato inócuo, incapaz de fazer existir o casamento.
Terceira hipótese de casamento inexistente é a ausência de autoridade celebrante:
salvo no casamento nuncupativo, o casamento precisa ser realizado por autoridade hábil, e
se pessoa incompetente para tal ato o realiza, simplesmente não existe casamento algum. O
casamento é o ato mais solene do CC. Por isso, o desrespeito à sua solenidade, acarreta
nulidade, em regra, mas quando a celebração for por quem não a possa realizar, o vício está
ainda no plano da existência: casamento feito por quem não pode celebrá-lo é casamento
não celebrado.
Flávio Tartuce, minoritariamente, considera que a teoria da inexistência
simplesmente não se aplica no direito pátrio. Para ele, ou o vício gera nulidade ou
anulabilidade. A maior parte da doutrina, porém, reputa válida a tese da inexistência, e há
bastante relevância prática desta teoria.
A maior das relevâncias práticas da aplicação da teoria da inexistência é a dispensa
de uma ação própria para desfazer o ato inexistente, porque se ele não se aperfeiçoou, não
chegou a se completar, não foi feito, e não precisa ser desfeito – diferentemente do ato
existente, porém inválido, que precisa de ação própria para invalidá-lo. O casamento nulo
2
Aula ministrada pela professora Isabella Pena Lucas, em 24/2/2010.

Michell Nunes Midlej Maron 16


EMERJ – CP V Direito Civil V

ou anulável precisa de um processo, destinado a alcançar uma sentença que o declare nulo
ou anulado; o inexistente, não precisa de ação alguma. Até pode haver uma ação
declaratória negativa, da inexistência do casamento, mas pode esta inexistência ser
declarada em qualquer processo, incidentalmente, porque é meramente constatável.
Outra diferença é que o casamento nulo ou anulável pode até ter produzido efeitos
jurídicos, mas o inexistente não produz efeito algum, jamais: ex nihilo nihil, ou seja, do
nada, nada surge.
O casamento putativo, inválido, pode produzir efeitos, se celebrado de boa-fé; o
inexistente, mesmo putativo, não produz efeito algum, porque se trata de um verdadeiro
não-ato.
A tripartição Pontiana dos atos jurídicos, teoria que primeiro separou os três planos
do ato jurídico – existência, validade e eficácia –, consiste em uma escalada, como se sabe:
só se passará à análise do plano da validade de um ato se o plano da existência foi
perfeitamente completado. O negócio só pode ser analisado em sua validade se for
considerado existente. No casamento, o plano da existência se aperfeiçoa com a presença
dos elementos cuja ausência já se mencionou serem causas de inexistência: se há
diversidade de sexos, pluralidade de consentimento e celebração por autoridade
competente, o casamento existe, e pode ser galgado um passo na análise de sua perfeição,
ou seja, pode-se passar à análise de sua validade.

1.2. Teoria da invalidade do casamento

Os requisitos de existência do casamento, se presentes, ainda podem sofrer


escrutínio sobre sua validade. Mesmo sendo os nubentes pessoas de sexo diferente, podem
não ser capazes para o casamento, por serem de idade pré-núbil, por exemplo. O
consentimento plural, também, pode não ser válido por ser viciada a vontade de quem o
manifestou.

1.2.1. Nulidades

Veja o artigos 1.548 do CC:

“Art. 1.548. É nulo o casamento contraído:


I - pelo enfermo mental sem o necessário discernimento para os atos da vida civil;
II - por infringência de impedimento.”

Este artigo demanda interpretação restritiva, porque as regras de nulidade são


restritivas de direitos, e como tal impõem interpretação constrita, jamais extensiva.
O inciso I do artigo supra remete ao artigo 3º, II, do CC, mas surge logo um
questionamento: aqueles que estiverem na condição do inciso III deste artigo 3º subsumem-
se à nulidade do inciso I do artigo 1.548, ou o casamento é anulável, na forma do artigo
1.550, IV, do CC, que será visto adiante? Veja:

“Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida


civil:
(...)
II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário
discernimento para a prática desses atos;

Michell Nunes Midlej Maron 17


EMERJ – CP V Direito Civil V

III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.”

Se aquele que temporariamente não pode manifestar vontade – em um exemplo


extremo, alguém em coma –, vê-se celebrando casamento, gera causa de nulidade ou
anulabilidade? Parte da doutrina tem enquadrado este caso, de fato, no inciso I do artigo
1.548 do CC – por todos, Flávio Tartuce. Caio Mário, por seu turno, entende ser causa de
anulabilidade, porque defende que todas as demais hipóteses de vício de incapacidade que
não estão no artigo 1.548, I, do CC, são causas tratadas no artigo 1.550 do mesmo Código.
Cristiano Chaves é um autor que defende que neste caso há, de fato, mais um caso
de inexistência, por simples falta de elemento necessário a este plano, qual seja, absoluta
inexistência de manifestação de vontade. O CJF, no enunciado 332, reforça esta tese,
dispondo que a interpretação destes dispositivos deve ser restritiva, não podendo ser
ampliada. Veja:

“Enunciado 332, CJF: A hipótese de nulidade prevista no inc. I do art. 1.548 do


Código Civil se restringe ao casamento realizado por enfermo mental
absolutamente incapaz, nos termos do inc. II do art. 3º do Código Civil.”

A segunda hipótese de nulidade, do inciso II do artigo 1.548 do CC, é clara,


bastando observar as causas de impedimento, constantes do artigo 1.521 do CC, já
abordado.
A nulidade se decreta a qualquer tempo, como se vê no artigo 1.549 do CC:

“Art. 1.549. A decretação de nulidade de casamento, pelos motivos previstos no


artigo antecedente, pode ser promovida mediante ação direta, por qualquer
interessado, ou pelo Ministério Público.”

1.2.2. Anulabilidades

O artigo 1.550 do CC trata do casamento anulável:

“Art. 1.550. É anulável o casamento:


I - de quem não completou a idade mínima para casar;
II - do menor em idade núbil, quando não autorizado por seu representante legal;
III - por vício da vontade, nos termos dos arts. 1.556 a 1.558;
IV - do incapaz de consentir ou manifestar, de modo inequívoco, o consentimento;
V - realizado pelo mandatário, sem que ele ou o outro contraente soubesse da
revogação do mandato, e não sobrevindo coabitação entre os cônjuges;
VI - por incompetência da autoridade celebrante.
Parágrafo único. Equipara-se à revogação a invalidade do mandato judicialmente
decretada.”

1.2.2.1. Anulabilidade etária

O inciso I do artigo supra deve ser combinado com o artigo 1.553 do CC:
“Art. 1.553. O menor que não atingiu a idade núbil poderá, depois de completá-la,
confirmar seu casamento, com a autorização de seus representantes legais, se
necessária, ou com suprimento judicial.”

Se alguém se casa fora da idade núbil, pode o vício ser sanado quando o menor
alcançar dezesseis anos, mediante autorização dos pais ou suprimento judicial, ou,

Michell Nunes Midlej Maron 18


EMERJ – CP V Direito Civil V

alcançados os dezoito anos, ratificar o casamento anulável, sem necessidade de autorização


de ninguém.
Este casamento pode ser anulado a requerimento das pessoas do artigo 1.552 do CC:

“Art. 1.552. A anulação do casamento dos menores de dezesseis anos será


requerida:
I - pelo próprio cônjuge menor;
II - por seus representantes legais;
III - por seus ascendentes.”

No caso do inciso II, se a pessoa menor, mas em idade núbil, se casa sem
autorização do representante, o casamento é anulável, mas o vício pode ser sanado, no
prazo do artigo 1.555 (prazo que também se aplica para a hipótese do inciso I do artigo
1.550 do CC):

“Art. 1.555. O casamento do menor em idade núbil, quando não autorizado por seu
representante legal, só poderá ser anulado se a ação for proposta em cento e oitenta
dias, por iniciativa do incapaz, ao deixar de sê-lo, de seus representantes legais ou
de seus herdeiros necessários.
§ 1º O prazo estabelecido neste artigo será contado do dia em que cessou a
incapacidade, no primeiro caso; a partir do casamento, no segundo; e, no terceiro,
da morte do incapaz.
§ 2º Não se anulará o casamento quando à sua celebração houverem assistido os
representantes legais do incapaz, ou tiverem, por qualquer modo, manifestado sua
aprovação.”

Em qualquer destes casos de anulabilidade por motivo de idade, o vício convalesce,


sendo inarguível, se do casamento resulta gravidez, porque se prefere o melhor interesse da
criança oriunda do casamento anulável, bem como o melhor interesse do próprio menor pai
ou mãe desta criança. Veja o artigo 1.551 do CC:

“Art. 1.551. Não se anulará, por motivo de idade, o casamento de que resultou
gravidez.”

1.2.2.2. Anulabilidade por erro essencial

A anulabilidade do inciso III do artigo 1.550 demanda maior cuidado em sua


análise. Este dispositivo remete sua afecção às hipóteses dos artigos 1.556 a 1.558 do CC:

“Art. 1.556. O casamento pode ser anulado por vício da vontade, se houve por
parte de um dos nubentes, ao consentir, erro essencial quanto à pessoa do outro.”

O artigo supra trata da hipótese do erro essencial quanto à pessoa do cônjuge. Esta
situação caiu em desuso, por uma simples questão social e cultural: nos idos de 1970, era
comum o casamento entre pessoas que não tinham tido oportunidade de muito convívio
prévio, e esta falta de conhecimento acerca do consorte permitia que coisas graves ficassem
desconhecidas pelo outro, ocultadas pela pouca intimidade. Na atual sociedade, é mais
difícil que haja esta ocultação de fatos graves, eis que a intimidade e convívio prévio ao
casamento torna conhecidas todas as características dos consortes.

Michell Nunes Midlej Maron 19


EMERJ – CP V Direito Civil V

Entretanto, também com a modernidade tem surgido causas novas de erro essencial,
ressuscitando esta anulabilidade no mundo dos fatos. Exemplo extremo é a possibilidade,
hoje, de se realizar uma cirurgia de mudança de sexo, de tal perfeição que o cônjuge pode
não ter conhecimento, até depois do casamento, desta qualidade do seu parceiro – o que
justificaria a anulação por erro essencial. Cristiano Chaves critica este exemplo,
entendendo-o como preconceituoso, na medida que a pessoa que mudou de sexo passa a ser
tida como do sexo oposto, para todos os efeitos.
É claro que o vício deve ser de alta gravidade, pois aquele mero defeito acidental
não desperta anulabilidade. A definição deste limite será sempre casuística, mas o artigo
1.557 do CC elenca parâmetros:

“Art. 1.557. Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge:


I - o que diz respeito à sua identidade, sua honra e boa fama, sendo esse erro tal
que o seu conhecimento ulterior torne insuportável a vida em comum ao cônjuge
enganado;
II - a ignorância de crime, anterior ao casamento, que, por sua natureza, torne
insuportável a vida conjugal;
III - a ignorância, anterior ao casamento, de defeito físico irremediável, ou de
moléstia grave e transmissível, pelo contágio ou herança, capaz de pôr em risco a
saúde do outro cônjuge ou de sua descendência;
IV - a ignorância, anterior ao casamento, de doença mental grave que, por sua
natureza, torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado.”

A insuportabilidade da vida em comum é definida por aquele cônjuge que está


requerendo a anulação, não cabendo ao magistrado ou ao promotor interferir nesta análise
subjetiva, dizendo o que é ou não insuportável para aquele indivíduo. Vale ressaltar que a
coabitação após a descoberta do vício revela que houve uma aceitação deste, e por isso a
insuportabilidade não está mais presente.
Quanto ao crime do inciso II do artigo supra, a jurisprudência tem entendido que o
crime culposo não é suficiente para configurar erro essencial suficiente a anular o
casamento.
O inciso III sofre algumas críticas, que o reputam preconceituoso, mas não o é: o
casamento inconsciente com um portador de HIV pode, sim, ser anulado. Outrossim, a
esterilidade, impotência generandi, não seria causa para tal anulação, porque a concepção
de prole, que supostamente seria impossível, não é restrita, podendo o cônjuge estéril ainda
proporcionar prole por meio da adoção, por exemplo, ou pela inseminação heteróloga.
A anulabilidade por coação, do artigo 1.558 do CC, diz respeito à coação moral,
porque a física representa verdadeira inexistência de manifestação de vontade, e não
manifestação viciada – induzindo à inexistência do próprio casamento, e não anulabilidade.

“Art. 1.558. É anulável o casamento em virtude de coação, quando o


consentimento de um ou de ambos os cônjuges houver sido captado mediante
fundado temor de mal considerável e iminente para a vida, a saúde e a honra, sua
ou de seus familiares.”
Este artigo se interpreta extensivamente, ampliando o alcance da coação que habilita
a anulação quando incidente sobre o patrimônio do coagido, bem como a pessoas que não
sejam da família, mas cujos laços de afetividade permitem esta analogia. A anulação com
base na coação de pessoa alheia, mas cuja relação com o coagido é permeada pela

Michell Nunes Midlej Maron 20


EMERJ – CP V Direito Civil V

afetividade, é uma tendência no direito moderno, especialmente quando se mede o


potencial coercitivo de uma ameaça.

1.2.2.3. Anulabilidade por dúvida quanto ao consentimento inequívoco

O inciso IV do artigo 1.550 do CC diz que é anulável o casamento do incapaz de


consentir ou manifestar, de modo inequívoco, o consentimento. Esta previsão é bastante
controvertida, porque a manifestação do incapaz enfermo mental já foi açambarcada como
causa de nulidade, no inciso I do artigo 1.548 do CC, e a do incapaz por idade nos incisos I
e II deste artigo 1.550. A qual caso de incapacidade se refere, portanto, este inciso IV?
A teoria da invalidade do casamento não é idêntica à teoria geral das invalidades, da
parte geral do CC. O inciso I do artigo 1.550 é um bom exemplo desta diferença, eis que se
fosse seguida a parte geral do CC seria caso de nulidade – pois o menor de dezesseis anos é
absolutamente incapaz –, e não anulabilidade, como é para o direito das famílias. Neste
contexto, todas as hipóteses de incapacidade que não foram ainda contempladas, tanto no
artigo 1.548, I, como no 1.550, I e II, subsumem-se a este inciso IV do artigo 1.550.
Caio Mário coloca neste inciso IV do artigo 1.550 do CC, por exemplo, o artigo 3º,
III, do CC, há pouco transcrito. Esta posição deste doutrinador é passível de críticas, porque
este inciso III do artigo 3º do CC trata dos que, por causa transitória, não puderem exprimir
sua vontade, o que significa completa ausência de manifestação de vontade, enquanto o
inciso IV do artigo 1.550 do CC deixa entrever que houve manifestação de vontade, mas
apenas há dúvida quanto ao seu teor, não se a podendo reputar inequívoca.
Esta colocação de que todos os demais casos de incapacidade estão insertos neste
inciso IV é perigosa, pois pode dar margem a situações incorretas do ponto de vista
jurídico: o pródigo, por exemplo, é um outro caso de incapacidade, e sua inserção seria
indevida neste caso, sendo que é certo quer o pródigo pode se casar, eis que sua
incapacidade é relativa apenas a certos atos que envolvam dilapidação patrimonial. E veja
que, mesmo se se casar em comunhão universal, pode o pródigo, ao invés de estar com isto
dilapidando seu patrimônio, estar incrementando-o, por seu cônjuge ter maior patrimônio
que o seu. Por isso, a doutrina majoritária defende que o pródigo pode se casar, desde que o
regime não represente dilapidação de seu patrimônio.

1.2.2.4. Incompetência da autoridade celebrante

O inciso VI do artigo 1.550 do CC dispõe que é anulável o casamento celebrado por


autoridade incompetente. Veja que esta previsão não conflita com o que se disse sobre o
casamento celebrado por pessoa sem competência, que é tido por inexistente: aqui, o
legislador comina anulabilidade para o casamento daquele que é relativamente
incompetente para a celebração do casamento. Se for absolutamente incompetente – como
um juiz do trabalho celebrando um casamento – o ato é inexistente.

1.2.2.5. Prazos de anulabilidade

Os prazos para anulação estão no artigo 1.560 do CC:

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EMERJ – CP V Direito Civil V

“Art. 1.560. O prazo para ser intentada a ação de anulação do casamento, a contar
da data da celebração, é de:
I - cento e oitenta dias, no caso do inciso IV do art. 1.550;
II - dois anos, se incompetente a autoridade celebrante;
III - três anos, nos casos dos incisos I a IV do art. 1.557;
IV - quatro anos, se houver coação.
§ 1º Extingue-se, em cento e oitenta dias, o direito de anular o casamento dos
menores de dezesseis anos, contado o prazo para o menor do dia em que perfez
essa idade; e da data do casamento, para seus representantes legais ou ascendentes.
§ 2º Na hipótese do inciso V do art. 1.550, o prazo para anulação do casamento é
de cento e oitenta dias, a partir da data em que o mandante tiver conhecimento da
celebração.”

1.2.3. Casamento putativo

O artigo 1.561 do CC trata desta hipótese:

“Art. 1.561. Embora anulável ou mesmo nulo, se contraído de boa-fé por ambos os
cônjuges, o casamento, em relação a estes como aos filhos, produz todos os efeitos
até o dia da sentença anulatória.
§ 1º Se um dos cônjuges estava de boa-fé ao celebrar o casamento, os seus efeitos
civis só a ele e aos filhos aproveitarão.
§ 2º Se ambos os cônjuges estavam de má-fé ao celebrar o casamento, os seus
efeitos civis só aos filhos aproveitarão.”

A ideia da putatividade, aqui, é a mesma que se conhece da seara penal: supondo


uma situação que não corresponde à realidade, o agente está de boa-fé, e nesta condição
realiza o ato – casa-se sem saber do vício. Se ambos estão em erro, aproveitam-se todos os
efeitos patrimoniais do casamento; se apenas um deles está de boa-fé, apenas ele terá
proveito dos efeitos patrimoniais.
A menção aos filhos é uma falha legislativa, porque não há qualquer relevância do
casamento sobre a relação de filiação. Filho é filho, sem qualquer diferenciação, qualquer
que seja a situação dos pais.

2. Eficácia do casamento

A principal finalidade do casamento é constituir família. Ao contrário do que alguns


apregoam, estabelecer prole é um efeito possível do casamento, mas não é sua finalidade
(pelo que a esterilidade, como dito, não é causa de pedir para anular o casamento);
tampouco a mudança do nome, como alguns apontam, é um objetivo plausível do
casamento.
A comunhão de vida plena, portanto, é a finalidade precípua do casamento. A
família já é formada pelos cônjuges, que, em atenção ao livre planejamento familiar,
garantido pela CRFB, podem optar por ter filhos ou não.
Comunhão de vida não implica necessariamente em coabitação plena. Pode haver
necessidade de que os cônjuges residam em locais diversos, por questões de trabalho ou
mesmo por opção mútua, sem desnaturar o casamento.
O artigo 1.565 inaugura o tema no CC:

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“Art. 1.565. Pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição


de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família.
§ 1º Qualquer dos nubentes, querendo, poderá acrescer ao seu o sobrenome do
outro.
§ 2º O planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado
propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício desse direito, vedado
qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas ou públicas.

Alguns oficiais notariais interpretam literalmente o § 1º deste artigo supra,


reputando impossível a retirada de nomes do cônjuge, ou seja, só entendem possível o
acréscimo de sobrenomes aos seus próprios, sem retirar quaisquer nomes registrados desde
o nascimento. Esta interpretação é equivocada, porque mesmo que o dispositivo fale em
acréscimo, a retirada dos sobrenomes é também possível, para a maior parte da doutrina,
bem como para a jurisprudência registral (provocada por meio de mandados de segurança
contra o ato do tabelião).
Os deveres do casamento estão previstos no artigo 1.556 do CC:

“Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges:


I - fidelidade recíproca;
II - vida em comum, no domicílio conjugal;
III - mútua assistência;
IV - sustento, guarda e educação dos filhos;
V - respeito e consideração mútuos.”

Quanto à fidelidade recíproca, algumas novas formas de infidelidade, advindas da


modernidade, têm sido reconhecidas pela jurisprudência. Reconhece-se, por exemplo, a
infidelidade virtual, praticada sem contato físico entre as pessoas, mas tão somente
eletrônica. Outra forma de infidelidade bastante curiosa é a que se chama de infidelidade de
seringa: consiste na realização, pela cônjuge, de inseminação artificial heteróloga sem o
conhecimento do cônjuge varão.
A violação de qualquer destes deveres pode servir como causa de pedir para a
separação.

3. Bem de família

O bem de família é um imóvel residencial que é protegido pela impenhorabilidade,


em razão da proteção ao direito de moradia. Esta proteção pode decorrer da lei ou da
vontade do proprietário.
A proteção é do direito de moradia, e não do direito das famílias envolvido, apesar
de o instituto ser nomeado como o é. A ideia do legislador não foi apenas proteger o imóvel
familiar, mas sim o direito fundamental à moradia de quem depende daquele bem. Esta
diferença se percebe bem, e se consolida, quando o STJ, desde 2002, passa a reconhecer a
proteção ao bem de família também daquele o proprietário que é solitário, ou seja, não
atrela a proteção dada ao bem à presença de uma família residindo no imóvel.
Repare que, portanto, a proteção oferecida pelo bem de família foi alargada pela
interpretação extensiva que se fez do instituto. Por ser uma norma de proteção a direitos, e
não restritiva, a sua interpretação é extensiva. Mesmo por conta da isonomia, seria
inconstitucional proteger o direito de moradia de pessoas que constituíram família, e deixar

Michell Nunes Midlej Maron 23


EMERJ – CP V Direito Civil V

à míngua o direito de moradia das pessoas solitárias. Neste sentido, veja a súmula 364 do
STJ:

“Súmula 364, STJ: O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange


também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas.”

No mesmo diapasão, as pessoas que estão em uma relação homoafetiva também


terão esta proteção, mesmo que a súmula não mencione esta entidade. Isto porque, repise-
se, a proteção é da moradia, e não da unidade familiar. Até mesmo para aqueles que
repudiam a validade desta união, a proteção se impõe, eis que, na pior das hipóteses, são
pessoas consideradas solteiras – e a súmula contempla proteção aos solteiros.
A natureza jurídica do bem de família é de bem afetado. É um bem gravado por
cláusula restritiva, de impenhorabilidade.
A Lei 8.009/90 é a sede do bem de família legal, e no CC, a partir do artigo 1.711,
há o bem de família voluntário, convencional. Veja que o conceito menciona apenas a
impenhorabilidade, e não a inalienabilidade, porque no bem de família legal não vige esta
segunda cláusula, vigendo somente a impenhorabilidade. Apenas o bem de família
voluntário é inalienável.
O bem de família voluntário precisa preencher alguns requisitos para poder ser
instituído. Um dos principais requisitos é quantitativo: o bem não pode ultrapassar um terço
do patrimônio líquido do proprietário, quando da instituição. Veja o artigo 1.711 do CC:

“Art. 1.711. Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública


ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde
que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da
instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial
estabelecida em lei especial.
Parágrafo único. O terceiro poderá igualmente instituir bem de família por
testamento ou doação, dependendo a eficácia do ato da aceitação expressa de
ambos os cônjuges beneficiados ou da entidade familiar beneficiada.”

Tudo que ultrapassar este teto de um terço não estará protegido pela
impenhorabilidade. Se for instituído bem de família convencional de valor maior do que
este limite, e o bem for divisível, será fracionado e a parcela excedente será alienada,
concentrando-se a proteção apenas na parte que restar, regularmente dentro do limite.
Sendo o imóvel indivisível, e ultrapassado o limite legal de um terço do patrimônio, ele
será penhorável, mas apenas reverterá aos credores a parte que sobejou o terço legal, ou
seja, até o limite de um terço do patrimônio do proprietário restará protegido pelo instituto,
mas não o excedente.
Se os instituidores do bem de família voluntário vierem a falecer, a sua afetação não
se desfaz – o imóvel continua impenhorável e inalienável.
Como se vê no artigo supra, e no artigo 1.714 do CC, o registro público é parte da
essência deste instituto, incidindo no plano da existência. Veja:

“Art. 1.714. O bem de família, quer instituído pelos cônjuges ou por terceiro,
constitui-se pelo registro de seu título no Registro de Imóveis.”

Michell Nunes Midlej Maron 24


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As dívidas relativas a tributos, bem como as propter rem, ambulatoriais, levantam o


manto da impenhorabilidade: por estas dívidas, o bem pode ser excutido, quer seja a
afetação legal ou voluntária. Veja o artigo 1.715 do CC:

“Art. 1.715. O bem de família é isento de execução por dívidas posteriores à sua
instituição, salvo as que provierem de tributos relativos ao prédio, ou de despesas
de condomínio.
Parágrafo único. No caso de execução pelas dívidas referidas neste artigo, o saldo
existente será aplicado em outro prédio, como bem de família, ou em títulos da
dívida pública, para sustento familiar, salvo se motivos relevantes aconselharem
outra solução, a critério do juiz.”

Os artigos 1.720 a 1.722 do CC trazem previsões bastante relevantes sobre o bem de


família voluntário, merecendo leitura:

“Art. 1.720. Salvo disposição em contrário do ato de instituição, a administração


do bem de família compete a ambos os cônjuges, resolvendo o juiz em caso de
divergência.
Parágrafo único. Com o falecimento de ambos os cônjuges, a administração
passará ao filho mais velho, se for maior, e, do contrário, a seu tutor.”

“Art. 1.721. A dissolução da sociedade conjugal não extingue o bem de família.


Parágrafo único. Dissolvida a sociedade conjugal pela morte de um dos cônjuges, o
sobrevivente poderá pedir a extinção do bem de família, se for o único bem do
casal.”

“Art. 1.722. Extingue-se, igualmente, o bem de família com a morte de ambos os


cônjuges e a maioridade dos filhos, desde que não sujeitos a curatela.”

Sobre o bem de família legal, há ainda algumas considerações importantes,


especialmente colhidas da leitura dos artigos 1º e 3º da Lei 8.009/90:

“Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é


impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal,
previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou
filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas
nesta lei.
Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se
assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos
os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a
casa, desde que quitados.”

“Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil,


fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
I - em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas
contribuições previdenciárias;
II - pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à
aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do
respectivo contrato;
III - pelo credor de pensão alimentícia;
IV - para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas
em função do imóvel familiar;
V - para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo
casal ou pela entidade familiar;

Michell Nunes Midlej Maron 25


EMERJ – CP V Direito Civil V

VI - por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença
penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens.
VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.
(Incluído pela Lei nº 8.245, de 1991).”

Este artigo 3º traz algumas exceções, e a última, do inciso VII, referente ao fiador,
foi inserida pela Lei de Locações, como se vê. O que se pretendeu, com esta inserção, foi
permitir que o fiador que assume esta obrigação sobre seu bem de família não possa dela se
eximir pela proteção da impenhorabilidade, e o STF tem entendido que é constitucional esta
norma. Contudo, três ministros do quadro atual do STF já votaram pela
inconstitucionalidade da penhorabilidade do bem de família do fiador, porque se trataria de
uma quebra de isonomia severa – o fiador tem o bem penhorável, e o locatário, devedor
principal, não. Atualmente, porém, ainda vige a norma, e o bem de família do fiador é
penhorável, sendo amplamente majoritária a tese da não proteção deste bem, por prevalecer
a autonomia da vontade: se criou o gravame voluntariamente sobre seu bem de família, o
fiador não pode objetar que sua excussão seja feita, pois desde sempre soube desta
possibilidade.
O inciso IV do artigo supra também merece comentários, porque a jurisprudência
tem estendido esta exceção à impenhorabilidade para custeio das dívidas de condomínio,
também propter rem como as demais ali mencionadas.

Casos Concretos

Questão 1

Michell Nunes Midlej Maron 26


EMERJ – CP V Direito Civil V

Maria e João, após regular habilitação, celebraram casamento religioso no dia


10.10.2007. Durante a lua-de-mel, João sofre um enfarte, vindo a falecer no dia
15.12.2007. Maria ingressa com pedido de registro de seu casamento religioso com João,
no dia 10.01.2008, requerendo tutela antecipatória para que seja determinado o registro
do casamento religioso contraído pelo casal, com o fim de abertura do inventário de João
e habilitação de Maria como meeira e inventariante. Alega que não realizou o pedido de
registro antes, por se encontrar psicologicamente muito abalada com a morte do marido e
junta aos autos atestado médico que comprova a alegação. O casamento religioso é
válido? Decida a questão, fundamentadamente, considerados comprovados os fatos
alegados.

Resposta à Questão 1

O prazo passado foi de noventa e dois dias, pelo que, se interpretada literalmente a
norma, que dita prazo de noventa dias, seria inválido. Porém, em uma interpretação calcada
nas diretrizes da socialidade e eticidade, pode-se considerar como exceção razoável esta
perda do prazo, validando o casamento religioso. Neste sentido, veja o Agravo de
Instrumento 2007.002.15211, do TJ/RJ:
“Processo: 0023741-26.2007.8.19.0000 (2007.002.15211). 1ª Ementa - AGRAVO
DE INSTRUMENTO. DES. ISMENIO PEREIRA DE CASTRO - Julgamento:
20/06/2007 - DECIMA QUARTA CAMARA CIVEL.
REGISTRO DE CASAMENTO RELIGIOSO. EFEITOS CIVIS. PRAZO PARA
REGISTRO. CELEBRAÇÃO DO MATRIMÔNIO DENTRO DO PRAZO DE
EFICÁCIA DA HABILITAÇÃO, OBEDIENTE À DICÇÃO DO ARTIGO 1.532
DO CÓDIGO CIVIL. ALEGAÇÃO DE JUSTO IMPEDIMENTO PARA A
REALIZAÇÃO TEMPESTIVA DO ATO. TUTELA ANTECIPATÓRIA
CONCEDIDA DETERMINANDO A EFETIVAÇÃO DO REGISTRO. DECISÃO
CORRETA. INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 1.516, §1º, DO CÓDIGO CIVIL.
PRESENÇA DOS PRESSUPOSTOS QUE AUTORIZAM O PRECEITO
PREFACIAL. PROVIMENTO MONOCRÁTICO DO AGRAVO. ARTIGO 557,
§1º-A DO CPC.”

“2ª Ementa - AGRAVO DE INSTRUMENTO. DES. ISMENIO PEREIRA DE


CASTRO - Julgamento: 04/07/2007 - DECIMA QUARTA CAMARA CIVEL.
AGRAVO INOMINADO. REGISTRO DE CASAMENTO RELIGIOSO.
EFEITOS CIVIS. PRAZO PARA REGISTRO. CELEBRAÇÃO DO
MATRIMÔNIO DENTRO DO PRAZO DE EFICÁCIA DA HABILITAÇÃO,
OBEDIENTE À DICÇÃO DO ARTIGO 1.532 DO CÓDIGO CIVIL.
ALEGAÇÃO DE JUSTO IMPEDIMENTO PARA A REALIZAÇÃO
TEMPESTIVA DO REGISTRO, QUE SE RESOLVERÁ, A FUTURO, NA
DILAÇÃO PROBATÓRIA. DECISÃO PRUDENTE E ADEQUADA.
INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 1.516, §1º, DO CÓDIGO CIVIL. CUMPRE
AUTORIZAR O REGISTRO DO CASAMENTO, A DESPEITO DA
ULTRAPASSAGEM DO PRAZO LEGAL, EM FACE DOS DANOS REFLEXOS
QUE A CONTENÇÃO DE SEUS EFEITOS CIVIS POSSA CAUSAR AOS
PRÓPRIOS CÔNJUGES E ATÉ A TERCEIROS. ADEMAIS, COMO DITO NA
DECISÃO HOSTILIZADA, O PROCESSAMENTO DE NOVA HABILITAÇÃO
SOLUCIONARÁ O IMPASSE, SE INCOMPROVADO O JUSTO
IMPEDIMENTO ALEGADO PELOS AGRAVADOS. PRESENTES OS
PRESSUPOSTOS QUE AUTORIZAM O PRECEITO PREFACIAL CUMPRE

Michell Nunes Midlej Maron 27


EMERJ – CP V Direito Civil V

MANTÊ-LO, SI ET IN QUANTUM. DESPROVIMENTO DO AGRAVO


INOMINADO.”

Questão 2

Aladim propõe ação de separação judicial em face de Jasmim. Narra que se


casaram civilmente pelo regime da comunhão universal em 30/03/01. Sustenta que, por
motivos religiosos alegados pela ré, o casamento não se consumou, antes da cerimônia
religiosa, sempre por ela adiada, continuando cada um a residir na casa de seus
respectivos genitores, o que importou em grave violação dos deveres do casamento.
Jasmim contesta e oferece reconvenção, pugnando pela anulação do casamento em razão
de erro essencial sobre a pessoa do varão. Aduz afronta ao artigo 1.557, I do Código Civil
por não ter sido consumado o matrimônio por culpa dele. Sustenta, também, que o mesmo
praticou o delito de falsidade ideológica, ao providenciar a assinatura da CTPS da ré por
parte de uma empresa pertencente a um amigo do autor, com o único objetivo de
futuramente virem a obter o visto para se mudarem para os Estados Unidos da América.
Pergunta-se: A alegada prática de ilícito penal pelo varão pode beneficiar à mulher?
Comprovada a não consumação do matrimônio, com ausência de relação sexual entre os
cônjuges, incide erro essencial sobre a pessoa do cônjuge que se recusa a manter tais
relações, não demonstrada a impotencia coeundi? Fundamente.

Resposta à Questão 2

A prática do tipo penal não a beneficia, mesmo porque já era ciente deste fato
quando do casamento. Não pode jamais se valer de sua própria torpeza – nemo auditur
propriam turpitudinem allegans.
Acerca da não consumação sexual do casamento, não se a pode reputar erro
essencial, podendo no máximo ser causa de pedir para a separação. A impotência coeundi,
porém, se desconhecida pelo cônjuge até depois do casamento, pode sim ser considerada
erro essencial.
Veja a Apelação Cível 70006550073, do TJ/RS:

“Apelação Cível. NÚMERO: 70006550073. RELATOR: Luiz Felipe Brasil


Santos.
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. SEPARAÇÃO JUDICIAL. ANULAÇÃO DE
CASAMENTO. Mesmo comprovada a não consumação do matrimônio, tal não
caracteriza hipótese de erro essencial sobre a pessoa do outro, a menos que ficasse
demonstrada a impotentia coeundi, o que não ocorreu e nem sequer foi alegado. As
hipóteses que caracterizam erro essencial constituem numerus clausus, descabendo
interpretação extensiva. Inteligência do artigo 1.557 do Código Civil. Os próprios
termos das acusações reciprocamente lançadas no processo demonstram que os
laços matrimoniais se romperam, sem que reste qualquer chance de reatamento, eis
que, de parte a parte, ficou patente a falta de confiança, evidenciando-se sobretudo
o fim do afeto, que deve ser a própria razão e sentido do relacionamento conjugal,
mostrando-se adequada a solução encontrada na sentença, no sentido de decretar a
separação judicial do casal. NÃO CONHECERAM DO RECURSO ADESIVO E
NEGARAM PROVIMENTO AO APELO. (Apelação Cível Nº 70006550073,
Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil
Santos, Julgado em 20/08/2003) DATA DE JULGAMENTO: 20/08/2003.”

Michell Nunes Midlej Maron 28


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Questão 3

Em 15.05.2003, Eufrásio se casou com Carmosina (viúva de Anastácio desde


07.10.02), porque ela dissera que estava grávida, fato, todavia, que não era verídico.
Eufrásio tinha 17 anos e se casou sem obter qualquer autorização. O casamento foi
realizado por juiz competente na casa dos pais de Carmosina, com as portas fechadas, e só
tiveram acesso os amigos da família dela, porque Lucrécio e Tibúrcio, irmãos da nubente,
portavam revólveres e ameaçaram de morte o noivo caso ele desistisse do matrimônio.
Mesmo contrariados, os pais e o irmão de Eufrásio estiveram presentes ao casamento.
Dois meses após a celebração, e até então coabitando com o marido, Carmosina descobriu
que Eufrásio era completamente estéril e não poderia gerar filhos; dele se separou de fato,
e ajuizou ação de anulação do casamento. No processo, o Ministério Público opinou pela
procedência da ação, mas o Juiz, na sentença, julgou a ação improcedente. Em
20.03.2004, Eufrásio tencionava ajuizar ação de nulidade do casamento, mas foi
aconselhado pelo Dr. Tibério, advogado, a não optar por esta via e propor, oportunamente,
ação de divórcio direto contra Carmosina. Pergunta-se:
a) Houve algum vício no casamento? Em caso positivo, qual(ais)?
b) Eufrásio, por alguma razão, poderia anular o casamento? Por que?
c) Os pais de Eufrásio poderiam buscar a invalidade do casamento do filho? Por
que?
d) Há algum impedimento ou condição suspensiva para o casamento? Em caso
positivo, qual(ais) e quem poderia(m) arguí-lo(s)?
e) Quem está correto na ação movida por Carmosina: o Ministério Público ou
Juiz? Por que?
f) O aconselhamento de Dr. Tibério a Eufrásio está correto? Por que?
g) Na data em que procurou Dr. Tibério, Eufrásio poderia propor ação de divórcio
direto contra Carmosina? Explique, indicando a partir de quando a ação poderia
ser proposta.
h) Qual deve ser o regime de bens do casamento?

Resposta à Questão 3

a) Há diversos vícios, mas o principal é que o consentimento de Eufrásio foi


viciado pela coação física promovida pelos irmãos da noiva. Coação moral é
causa de anulação, mas coação física é causa de inexistência do ato, porque
simplesmente inexiste o consentimento.
b) Havendo coação física, o casamento é inexistente, e por isso não é necessária a
sua anulação – ele jamais produziu efeitos. É possível obter uma sentença
declaratória de inexistência, mas tal ato, a rigor, esta sequer é necessária.
c) Pela suposta falta de consentimento, não: o casamento foi por eles presenciado,
o que significa que houve consentimento tácito. Podem, porém, suscitar a
inexistência do ato, se presenciaram a coação física.
d) Há uma condição suspensiva: Carmosina é viúva de Anastácio, mas esta
condição sequer será analisada, eis que o vício na inexistência atua antes da
análise do plano da validade.
e) O juiz, porque o casamento é inexistente.

Michell Nunes Midlej Maron 29


EMERJ – CP V Direito Civil V

f) Não, porque se o casamento inexiste, não há objeto para divórcio.


g) Pela inexistência do casamento, in casu, em tese, não havia ainda os dois anos
de separação de fato, necessários para o divórcio direto.
h) Não há regime de bens, porque o casamento inexiste.

Tema III

Dissolução da sociedade conjugal e do vínculo matrimonial. Noções Gerais. Separação de corpos.


Separação litigiosa com culpa e sem culpa. Efeitos. Sentença. Averbação. Separação judicial consensual.

Michell Nunes Midlej Maron 30


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Acordo. Cláusulas obrigatórias. Homologação. Negativa de homologação. A Lei 6.515/77 e o Código Civil.
Sentença. Natureza e efeitos. Averbação. Restabelecimento da sociedade conjugal. Discussão da culpa.

Notas de Aula3

1. Dissolução da sociedade conjugal

A sistemática da dissolução da sociedade conjugal, como é hoje, tem sua


estruturação fundada em bases históricas. Nosso legislador, extremamente conservador, tem
por norte a manutenção da sociedade conjugal, do casamento, a todo custo, o que torna a
dissolução da relação mais difícil do que seria recomendável.
O projeto original do CC, de 1975, simplesmente não previa a dissolução da
sociedade conjugal. Não existia separação ou divórcio, à época, eis que a Lei do Divórcio é
só de 1977. Criaram-se, então, os dois institutos para findar-se uma relação conjugal – a
separação e o divórcio –, e a razão histórica desta dicotomia é justamente o esforço
legislativo em se manter a união conjugal a todo custo, estabelecendo-se prazos mínimos
para implemento dos efeitos destes institutos de dissolução.
Perdura, ainda hoje, esta situação legislativa, que visa proteger o vínculo conjugal,
mesmo sem sucesso. É fato que a separação está em vias de se extinguir, mantendo-se
apenas o divórcio, mas ainda não é a realidade legal.
A separação consensual só pode se dar após um ano de casados. A lei impõe uma
convivência forçosa, de ao menos um ano desde casados, a fim de supostamente
oportunizar uma mudança de ideia dos cônjuges, que podem vir a solucionar seus
problemas e permanecer casados. É claro que esta providência legal não tem eficácia
prática, pois o prazo de um ano de casados até que a separação seja possível raramente, ou
nunca, leva à conciliação e desistência da separação. Ao contrário, pode mesmo levar ao
surgimento de conflitos, transformando em litigiosa uma dissolução que seria pacífica –
subvertendo o escopo maior do direito, que é a pacificação social.
Destarte, pode-se concluir que a dificuldade criada para se desfazer um casamento
não se justifica de forma alguma, e por isso a melhor providência legislativa é, de fato,
desburocratizar esta medida. A reconciliação, que parece ser a vontade do legislador, é
sempre possível, bastando novo casamento.
Veja o artigo 1.572 do CC:

“Art. 1.571. A sociedade conjugal termina:


I - pela morte de um dos cônjuges;
II - pela nulidade ou anulação do casamento;
III - pela separação judicial;
IV - pelo divórcio.
§ 1º O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo
divórcio, aplicando-se a presunção estabelecida neste Código quanto ao ausente.
§ 2º Dissolvido o casamento pelo divórcio direto ou por conversão, o cônjuge
poderá manter o nome de casado; salvo, no segundo caso, dispondo em contrário a
sentença de separação judicial.”

O § 1º determina que a regulamentação da ausência se aplica para efeitos de


dissolução de casamento. Entenda: havendo ausência, o cônjuge que resta presente poderá

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Aula ministrada pela professora Isabella Pena Lucas, em 24/2/2010.

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habilitar-se a novo casamento, desde quando obtiver a sentença declaratória da ausência. Se


assim o fizer, casando-se novamente, e o ausente reaparecer, simplesmente não há solução
legal: o CC não define qual dos casamentos prevalecerá.
Com base no direito comparado, há duas soluções: o CC italiano dispõe que
prevalece o primeiro casamento, porque o segundo se baseou na premissa de que a pessoa
ausente teria desaparecido de vez, e como esta premissa não mais se mostra real, o segundo
casamento se desfaz. A segunda solução, do codex alemão, sustenta o exato oposto: este
ordenamento estabelece que se a constituição da segunda família foi autorizada pelo
Estado, é seu dever constitucional proteger esta família, pelo que deve ser mantida. Esta
solução alemã é a seguida no Brasil, sobremaneira pelo alto apreço que se tem, hoje, pelo
princípio do afeto, que deve ser sempre priorizado nas relações familiares, afeto que está
claramente mais configurado na relação atual, mais do que na anterior, com o ausente.
É claro que há uma solução mais simples: basta que o cônjuge presente aguarde o
prazo necessário ao divórcio direto, e o requeira, justamente com base na ausência, que
implica lógico abandono da relação pelo ausente. Divorciado, o primeiro vínculo jamais
prevalecerá em eventual retorno do ausente, porque restou corretamente desfeito.

1.1. Separação de corpos

A separação de corpos é uma medida cautelar preparatória, que não pode ser
entendida como satisfativa. É possível, nesta cautelar, tratar da guarda de filhos, e até
mesmo de questões alimentares.
Há prazo de caducidade de trinta dias, após o deferimento da separação de corpos
cautelar, para propositura da ação de separação judicial principal. Os artigos 796 e 888 do
CPC são relevantes:

“Art. 796. O procedimento cautelar pode ser instaurado antes ou no curso do


processo principal e deste é sempre dependente.”

“Art. 888. O juiz poderá ordenar ou autorizar, na pendência da ação principal ou


antes de sua propositura:
I - obras de conservação em coisa litigiosa ou judicialmente apreendida;
II - a entrega de bens de uso pessoal do cônjuge e dos filhos;
III - a posse provisória dos filhos, nos casos de separação judicial ou anulação de
casamento;
IV - o afastamento do menor autorizado a contrair casamento contra a vontade dos
pais;
V - o depósito de menores ou incapazes castigados imoderadamente por seus pais,
tutores ou curadores, ou por eles induzidos à prática de atos contrários à lei ou à
moral;
VI - o afastamento temporário de um dos cônjuges da morada do casal;
VII - a guarda e a educação dos filhos, regulado o direito de visita;
VIII - a interdição ou a demolição de prédio para resguardar a saúde, a segurança
ou outro interesse público.”
No TJ/RS, a jurisprudência é tranqüila em não aplicar a caducidade para esta
cautelar, porque mesmo que passados estes trinta dias, é claro que o cônjuge não retornará
ao convívio do lar, pelo que a perda da eficácia não faz muito sentido.
Em regra, a separação de corpos tem lugar para casos graves, geralmente
envolvendo violência entre os cônjuges. A Lei Maria da Penha prevê o afastamento do lar

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conjugal como uma das medidas protetivas da mulher em risco, como se vê no artigo 23,
IV, da Lei 11.340/06:

“Art. 23. Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas:
(...)
IV - determinar a separação de corpos.”

A cautelar pode ser deferida liminarmente, e até mesmo de forma inaudita altera
parte, porque há casos extremos em que a citação antes da decisão liminar pode gerar
prejuízos trágicos, por conta da violência entre os cônjuges. Há, porém, que se ter cuidado
nesta liminar, eis que a retirada do cônjuge apontado como algoz de seu lar, sem sequer
ouvi-lo, pode configurar uma enorme injustiça. Para prevenir esta situação, o juiz dispõe de
uma audiência de impressão pessoal, em que vai ouvir o cônjuge que requer a separação de
corpos e suas testemunhas, a fim de melhor instruir-se acerca do motivo cautelar para a
liminar.

2. Separação judicial

A separação, hoje, após a Lei 11.441/07, pode ser judicial ou extrajudicial,


cartorária. Para que seja possível a separação extrajudicial, os requisitos estão no artigo
1.124-A do CPC:

“Art. 1.124-A. A separação consensual e o divórcio consensual, não havendo


filhos menores ou incapazes do casal e observados os requisitos legais quanto aos
prazos, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as
disposições relativas à descrição e à partilha dos bens comuns e à pensão
alimentícia e, ainda, ao acordo quanto à retomada pelo cônjuge de seu nome de
solteiro ou à manutenção do nome adotado quando se deu o casamento. (Incluído
pela Lei nº 11.441, de 2007).”

Há quem defenda que a separação consensual, após o advento desta norma supra,
deve necessariamente ser feita na via extrajudicial. Não prevalece esta tese, pois a maior
parte da doutrina e jurisprudência entende que a Lei 11.441/07 apenas abriu uma faculdade
aos consortes, não afastando completamente a via judicial em prol da via administrativa.
Dito isto, o objeto de estudo deste tópico se reduz às formas de separação judicial,
que pode ser consensual ou litigiosa.

2.1. Separação judicial litigiosa

O artigo 1.572 do CC estabelece que:

“Art. 1.572. Qualquer dos cônjuges poderá propor a ação de separação judicial,
imputando ao outro qualquer ato que importe grave violação dos deveres do
casamento e torne insuportável a vida em comum.
§ 1º A separação judicial pode também ser pedida se um dos cônjuges provar
ruptura da vida em comum há mais de um ano e a impossibilidade de sua
reconstituição.
§ 2º O cônjuge pode ainda pedir a separação judicial quando o outro estiver
acometido de doença mental grave, manifestada após o casamento, que torne

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impossível a continuação da vida em comum, desde que, após uma duração de dois
anos, a enfermidade tenha sido reconhecida de cura improvável.
§ 3º No caso do parágrafo 2º, reverterão ao cônjuge enfermo, que não houver
pedido a separação judicial, os remanescentes dos bens que levou para o
casamento, e se o regime dos bens adotado o permitir, a meação dos adquiridos na
constância da sociedade conjugal.”

Trata-se da separação sanção, com imputação de culpa ao outro consorte pelo


pretendente a separar-se. Há críticas à manutenção, ainda hoje, da investigação de culpa na
separação, porque a finalidade do Judiciário não é perscrutar quem se portou melhor na
relação conjugal, mas apenas pôr um fim a tal relação, especialmente diante do fato de que
a constatação de culpa não tem quase nenhuma relevância prática, nenhuma consequência
jurídica para o culpado – pois nem mesmo os alimentos podem ser-lhe negados (sendo,
porém, reduzidos ao mínimo subsistencial, calcados somente na necessidade, para este
culpado, diferindo do inocente, que tem alimentos baseados no binômio necessidade-
possibilidade, que são os chamados alimentos côngruos). Em verdade, sequer constará da
sentença a suposta vilania de um dos consortes.
Note-se ainda que nem mesmo se não restar comprovada culpa alguma das alegadas
pelo separando, a separação será indeferida. É claro que se há motivos suficientes para
ajuizamento de uma ação de separação litigiosa, a convivência é insuportável para aquele
que a ajuizou, e isto basta para obter a separação, dispensando-se a culpa.
O próprio nome, separação sanção, é bem criticado, hoje, porque não há o que se
sancionar na relação: a separação não é pena pelo descumprimento das obrigações
conjugais, como se pensava quando se criou esta nomenclatura, mas sim o meio de se pôr
fim a uma relação cuja mantença não mais se justifica, por faltar o ânimo de união.
O artigo supra deve ser combinado com o seguinte, 1.573 do CC, que apresente rol
exemplificativo de causas para a separação litigiosa:
“Art. 1.573. Podem caracterizar a impossibilidade da comunhão de vida a
ocorrência de algum dos seguintes motivos:
I - adultério;
II - tentativa de morte;
III - sevícia ou injúria grave;
IV - abandono voluntário do lar conjugal, durante um ano contínuo;
V - condenação por crime infamante;
VI - conduta desonrosa.
Parágrafo único. O juiz poderá considerar outros fatos que tornem evidente a
impossibilidade da vida em comum.”

Outro exemplo de insuportabilidade, permitido pelo parágrafo deste artigo supra, é a


simples incompatibilidade de gênios dos cônjuges. Virtualmente, portanto, qualquer causa
pode justificar a separação litigiosa, pois quem avalia a insuportabilidade, repise-se, é o
pretendente à separação.
A separação litigiosa pode ser ajuizada a qualquer tempo, não contando com prazo
mínimo de casamento antecedente a sua propositura, como ocorre na consensual: se no dia
seguinte ao casamento o cônjuge quiser, pode ajuizar ação de separação litigiosa.
O § 1º do artigo 1.572 do CC trata da separação falência, que caiu em desuso,
porque se o cônjuge está há um ano separado de fato do outro basta que aguarde mais um
ano e ajuíze, desde logo, o divórcio.

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No § 2º do artigo 1.572, há a previsão da separação remédio, que também caiu em


desuso, pela simples possibilidade de se aguardar o prazo para o divórcio direto, e a
possibilidade de se ajuizar cautelar de separação de corpos a fim de se prevenir contra a
configuração do abandono do lar conjugal.

2.2. Separação judicial consensual

O artigo 1.574 do CC trata da possibilidade da separação judicial consensual:

“Art. 1.574. Dar-se-á a separação judicial por mútuo consentimento dos cônjuges
se forem casados por mais de um ano e o manifestarem perante o juiz, sendo por
ele devidamente homologada a convenção.
Parágrafo único. O juiz pode recusar a homologação e não decretar a separação
judicial se apurar que a convenção não preserva suficientemente os interesses dos
filhos ou de um dos cônjuges.”

O caput dispõe que só se pode ajuizar separação consensual após um ano de


casados, como já mencionado. Isto se deve a um esforço legislativo – indevido diga-se –,
em prol da manutenção do vínculo, supostamente promovendo a reconciliação neste tempo
de casamento imposto.
O parágrafo único deste artigo representa uma enorme intromissão do Judiciário na
vida privada, sendo muito criticado por isso: se o juiz entender que o acordo não é bom
para uma das partes, pode simplesmente se negar a homologá-lo. Ora, podem as partes
transacionar como bem entenderem, fazendo as concessões que bem entenderem, não sendo
tarefa do Judiciário fiscalizar estas condições.

2.3. Disposições comuns

O artigo 1.575 traz uma informação equivocada:

“Art. 1.575. A sentença de separação judicial importa a separação de corpos e a


partilha de bens.
Parágrafo único. A partilha de bens poderá ser feita mediante proposta dos
cônjuges e homologada pelo juiz ou por este decidida.”

A separação de corpos já pode ter sido operada, tanto faticamente quanto por meio
da cautelar preparatória, já abordada. Não é a sentença de separação judicial que leva a esta
situação, necessariamente. Tampouco a partilha tem que ser realizada neste momento,
necessariamente, podendo ser feita posteriormente, mesmo após o divórcio.
Há quem diga que a sentença de separação imporá no marco para que não mais haja
a comunicabilidade de bens, mas a doutrina moderna defende que a comunicabilidade deixa
de existir desde quando houver comprovada separação fática, mesmo que ainda não esteja
juridicamente certificada por uma sentença. Interpretando literalmente este dispositivo,
fomenta-se as fraudes, porque no curso do processo, até a sentença, a pessoa que está
faticamente separada não adquirirá novos bens, ou o fará em nome de terceiros, a fim de
não levá-los a comunicar-se com o patrimônio do ex-cônjuge.
A decisão da separação de corpos também é um marco inegável do término da
comunicabilidade dos bens.

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O artigo 1.577 do CC permite a reconciliação no curso do lapso da separação, até a


sua conversão em divórcio:

“Art. 1.577. Seja qual for a causa da separação judicial e o modo como esta se
faça, é lícito aos cônjuges restabelecer, a todo tempo, a sociedade conjugal, por ato
regular em juízo.
Parágrafo único. A reconciliação em nada prejudicará o direito de terceiros,
adquirido antes e durante o estado de separado, seja qual for o regime de bens.”

A conversão da separação em divórcio é autorizada nos moldes do artigo 1.580 do


CC:

“Art. 1.580. Decorrido um ano do trânsito em julgado da sentença que houver


decretado a separação judicial, ou da decisão concessiva da medida cautelar de
separação de corpos, qualquer das partes poderá requerer sua conversão em
divórcio.
§ 1º A conversão em divórcio da separação judicial dos cônjuges será decretada por
sentença, da qual não constará referência à causa que a determinou.
§ 2º O divórcio poderá ser requerido, por um ou por ambos os cônjuges, no caso de
comprovada separação de fato por mais de dois anos.”

A conversão da separação extrajudicial ou judicial em divórcio extrajudicial é


perfeitamente possível, mesmo que não haja menção expressa pela Lei 11.441/07.

Casos Concretos

Questão 1

Barney propõe ação de separação judicial litigiosa contra Beth. Sustenta que a ré é
culpada pela separação, por ter infringido os deveres do casamento, artigo 1.573,I, IV e VI

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do Código Civil; adultério, abandono do lar conjugal e conduta desonrosa. Pugna, ao


final, pela procedência da ação, reconhecendo a culpa da ré. Beth contesta e apresenta
reconvenção alegando que Barney é culpado da separação. Não restou provado adultério
ou outro descumprimento dos deveres do casamento por nenhum dos dois. Pergunta-se: O
juiz deve indeferir a separação litigiosa por falta de provas de infringência dos deveres do
casamento pelo casal? Fundamente.

Resposta à Questão 1

Não, a separação deve ser concedida. Apesar de a culpa não restar comprovada, sua
constatação não é o objetivo da demanda. O objetivo é desfazer o vínculo, o que se justifica
pela incompatibilidade e insuportabilidade na convivência, o que se prova pela simples
discussão em juízo da relação.
Veja a Apelação Cível 70020802278, do TJ/RS:

“Apelação Cível 70020802278. RELATOR: Luiz Ari Azambuja Ramos.


EMENTA: FAMÍLIA. SEPARAÇÃO JUDICIAL LITIGIOSA.
RECONVENÇÃO. PENSÃO ALIMENTÍCIA EM FAVOR DA VIRAGO.
RUPTURA DA SOCIEDADE CONJUGAL, RESPONSABILIDADE PELO
ROMPIMENTO. INSUPORTABILIDADE DA VIDA EM COMUM.
DESCABIMENTO DA ATRIBUIÇÃO DE CULPA PELO TÉRMINO DO
CASAMENTO. OBRIGAÇÃO ALIMENTAR, AUSÊNCIA DE
DEMONSTRAÇÃO DE DEPENDÊNCIA OU NECESSIDADE A EMBASAR O
DIREITO AO PENSIONAMENTO. INCAPACIDADE PARA O EXERCÍCIO DE
ATIVIDADE LABORAL, CAPAZ DE COMPROMETER O PRÓPRIO
SUSTENTO, NÃO DEVIDAMENTE DEMONSTRADA. SENTENÇA
MANTIDA. APELAÇÃO DESPROVIDA. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Apelação
Cível Nº 70020802278, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator:
Luiz Ari Azambuja Ramos, Julgado em 23/08/2007).”

Questão 2

Em ação de separação consensual, José e Marinalva, casados pelo regime da


comunhão parcial, procederam a partilha de seu patrimônio, o qual fora totalmente
constituído por compra e venda na constância do casamento, com desigualdade de
quinhão, destinando ao marido 70% dos bens e à mulher, 30%. Trava-se, nos autos,
disputa entre o Município do Rio de Janeiro e o Estado do Rio de Janeiro, o primeiro
alegando que houve, na espécie uma permuta, cabendo o recolhimento do ITBI a seu favor
e o segundo alega que o tributo deve ser recolhido para si, pois na espécie ocorreu o fato
gerador com a doação. Decida.

Resposta à Questão 2

Há uma clara doação de um cônjuge ao outro, pelo que incide o tributo Estadual, o
ITD, na forma do artigo 155, I, da CRFB. A forma como foi feita a partilha demonstra a
nítida intenção de gratuitamente parte de sua meação ao outro, caracterizando o típico

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imposto de transmissão por doação cujo recolhimento deve ser feito de acordo com o artigo
155, I da Constituição da República.
A este respeito, veja o Agravo de Instrumento 2001.002.09959, do TJ/RJ:

“Processo: 0019044-69.2001.8.19.0000 (2001.002.09959). 1ª Ementa - AGRAVO


DE INSTRUMENTO. DES. SIDNEY HARTUNG - Julgamento: 18/12/2001 -
QUARTA CAMARA CIVEL.
AGRAVO DE INSTRUMENTO. SEPARACAO JUDICIAL CONSENSUAL.
PARTILHA DE BENS. DOACAO. ART. 155, INC. I, CONSTITUICAO
FEDERAL DE 1988. DIREITO A COMPENSACAO. INEXISTENCIA.
RECURSO DESPROVIDO.
AGRAVO DE INSTRUMENTO - SEPARAÇÃO CONSENSUAL. Partilha de
bens. Desigualdade de quinhão. SE a intenção dos Cônjuges era efetivar um
contrato de doação, diante da diferença de quinhões, não há que se falar em
compensação, aplicando-se à hipótese o inciso l do art. 155 da CF. RECURSO
IMPROVIDO.”

Tema IV

Divórcio. Histórico. A Lei 6.515/77 e o Código Civil. Noções Gerais. Divórcio direito e divórcio por
conversão. Ação direta de divórcio. Consensual e litigioso. Requisitos. Procedimento. Ação indireta de
divórcio. Consensual e litigioso. Requisitos. Procedimento. Competência. Efeitos do Divórcio. Sentença.
Natureza Jurídica. Efeitos da ausência sobre o vínculo matrimonial.

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Notas de Aula4

1. Divórcio

O artigo 1.571 do CC, já transcrito, traz causas dissolutivas e causas terminativas do


casamento, que têm efeitos diferentes. As causas terminativas põem fim à sociedade
conjugal, enquanto apenas as dissolutivas terminam com o vínculo conjugal de vez.
Logicamente, toda causa dissolutiva é também terminativa, mas as causas meramente
terminativas ainda não põem fim ao vínculo conjugal, e sim apenas à sociedade conjugal.
Reveja o dispositivo:

“Art. 1.571. A sociedade conjugal termina:


I - pela morte de um dos cônjuges;
II - pela nulidade ou anulação do casamento;
III - pela separação judicial;
IV - pelo divórcio.
§ 1º O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo
divórcio, aplicando-se a presunção estabelecida neste Código quanto ao ausente.
§ 2º Dissolvido o casamento pelo divórcio direto ou por conversão, o cônjuge
poderá manter o nome de casado; salvo, no segundo caso, dispondo em contrário a
sentença de separação judicial.”

São dissolutivas a morte e o divórcio, e terminativa a separação judicial. A anulação


do casamento não é uma nem outra: não termina nem dissolve o vínculo conjugal, porque
simplesmente desconstitui a relação erigida em vínculo inválido, como se as partes nunca
houvessem sido casadas5.
A separação, portanto, já difere do divórcio neste ponto: é meramente terminativa,
terminando com a sociedade conjugal, mas não com o vínculo conjugal, que só se extingue
pelo divórcio ou pela morte.
A sociedade conjugal é o liame que existe entre duas pessoas casadas, é a parceria
entre estas duas pessoas. A separação judicial relaxa esta parceria, findando alguns deveres
conjugais, como se vê no artigo 1.576 do CC:

“Art. 1.576. A separação judicial põe termo aos deveres de coabitação e fidelidade
recíproca e ao regime de bens.
Parágrafo único. O procedimento judicial da separação caberá somente aos
cônjuges, e, no caso de incapacidade, serão representados pelo curador, pelo
ascendente ou pelo irmão.”
A separação, como se vê, não põe fim ao dever de mútua assistência, por exemplo,
dever este que se estende para além da resolução da sociedade, assim como o dever de
respeito e consideração mútuos, que extravasa até mesmo a quebra do vínculo pelo
divórcio.
O divórcio, a dissolução do vínculo conjugal, diferentemente da separação, não põe
apenas fim a esta parceria: a fulmina, permitindo até mesmo que nova relação familiar seja

4
Aula ministrada pela professora Consuelo Aguiar Huebra, em 25/2/2010.
5
Por esta clara diferença, mesmo que já tenha havido sentença de divórcio transitada em julgado, é possível
ajuizar-se uma ação anulatória do casamento, eis que se for anulado haverá diferentes efeitos para os
relacionandos do que a mera dissolução do vínculo opera.

Michell Nunes Midlej Maron 39


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contraída pelos divorciados. Quando apenas separados, não há esta quebra do vínculo, pelo
que novo casamento é impossível, e é possível a reconciliação, sem precisarem os
separados se casar novamente.
Como já se mencionou, o sistema dual da separação e divórcio é muito criticado por
todos os operadores do direito atual, e há, de fato, movimento em busca de se consolidar
esta dinâmica em um só instituto, apenas no divórcio. Há um projeto de emenda
constitucional, o PEC 413, que visa justamente a acabar com a separação, a fim de adequar
o fim do relacionamento à realidade social.
A morte, como dito, rompe o vínculo jurídico, e permite que o supérstite, o viúvo,
contraia novo matrimônio. Se os consortes já se divorciaram, transitando em julgado a
sentença, e um deles morre, o estado civil do que sobrevive é de divorciado, não passando a
ser viúvo, porque o vínculo já se rompera; já se a morte se dá no curso da separação, cessa
o vínculo, e o separado passa a ser viúvo.
Tanto a morte real como a presumida rompem o vínculo conjugal. A morte
presumida é prevista como causa de dissolução do vínculo no artigo 1.571, § 1º, do CC,
mas há uma controvérsia aqui: a presunção que induz à liberação do cônjuge remanescente
ocorre em qual momento? Na declaração da ausência, na abertura da sucessão provisória,
ou na sucessão definitiva?
A maioria maciça da doutrina entende que se opera a liberação quando da morte
presumida, ou seja, no fim do procedimento de ausência, ao termo do prazo de dez anos
desde a sucessão provisória. Nelson Rosenvald, isoladamente, entende que não é esta a
interpretação devida deste dispositivo, porque leva à sua completa inutilidade, eis que,
passados dois anos desde o desaparecimento da pessoa, já é possível ajuizar o divórcio
direto pelo abandono, separação de fato. Assim, defende que seria na abertura da sucessão
provisória, de forma a emprestar utilidade à norma.

1.1. Características principais do divórcio

O divórcio, assim como a separação, são direitos personalíssimos. Seja o divórcio


consensual ou litigioso, direto ou indireto, a ação é de natureza personalíssima. Isto
significa que somente as próprias partes podem promover a ação, inadmitindo-se
substituição ou sucessão processual, mesmo na morte de um deles – pois se morre perde-se
o objeto, findando-se o vínculo entre o morto e o supérstite.
O fato de não ser admitida a substituição não significa que não seja possível a
representação, se um dos cônjuges é incapaz. Veja o artigo 1.576, parágrafo único, do CC,
há pouco transcrito, e o parágrafo único do artigo 1.582 do CC, no mesmo sentido:

“Art. 1.582. O pedido de divórcio somente competirá aos cônjuges.


Parágrafo único. Se o cônjuge for incapaz para propor a ação ou defender-se,
poderá fazê-lo o curador, o ascendente ou o irmão.”

A representação, porém, é uma exceção, e como tal deve ser interpretada


restritivamente. Por isso, há divergência sobre a possibilidade de se realizar a separação ou
o divórcio consensual por representação, havendo quem diga que não é possível a
realização de acordo pelo representante. Contudo, a maioria da doutrina defende que é
perfeitamente possível a separação ou divórcio consensual, porque não há prejuízo algum
para o representado na realização de um acordo pelo representante, até mesmo pela

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presença do MP no feito, além da polícia bastante próxima realizada pelo juiz nesta seara –
inclusive contando com o famigerado artigo 1.574 do CC, que permite ao juiz negar-se a
homologar acordo que não reputar justo.
Outra característica da ação de divórcio diz respeito ao foro de competência, que,
segundo o artigo 100, I, do CPC, é o da residência da mulher:

“Art. 100. É competente o foro:


I - da residência da mulher, para a ação de separação dos cônjuges e a conversão
desta em divórcio, e para a anulação de casamento; (Redação dada pela Lei nº
6.515, de 26.12.1977)
(...)”

Questiona-se a constitucionalidade deste dispositivo, diante da igualdade entre


homem e mulher promovida pela CRFB, mas a doutrina quase unânime, e o STJ, o reputa
constitucional, porque a isonomia material prevê que haja tratamento desigual entre pessoas
desiguais, e a mulher ainda é, de fato, a parte vulnerável da relação. Nelson Rosenvald,
isoladamente, critica este posicionamento, dizendo que hoje não há mais esta desigualdade
a ser reequilibrada – mas é tese pouco considerada, ante a realidade dos fatos, em que o
poderio econômico, ao menos, ainda está de fato nas mãos dos homens.

1.2. Espécies de divórcio

O divórcio pode ser direto ou indireto, consensual ou litigioso. Estas classificações


se combinam, podendo o divórcio direto ser consensual ou litigioso, assim como o pode ser
o indireto.

1.2.1. Divórcio consensual

Divórcio consensual é aquele em que ambos querem pôr fim ao vínculo,


requerendo-o em consenso. É um procedimento de jurisdição voluntária. Este divórcio se
desenrola da mesma forma que a separação consensual, sendo regido pelos mesmos
dispositivos processuais que regem esta separação, quais sejam, artigos 1.120 a 1.124 do
CPC:

“Art. 1.120. A separação consensual será requerida em petição assinada por ambos
os cônjuges.
§ 1º Se os cônjuges não puderem ou não souberem escrever, é lícito que outrem
assine a petição a rogo deles.
§ 2º As assinaturas, quando não lançadas na presença do juiz, serão reconhecidas
por tabelião.”

“Art. 1.121. A petição, instruída com a certidão de casamento e o contrato


antenupcial se houver, conterá:
I - a descrição dos bens do casal e a respectiva partilha;
II - o acordo relativo à guarda dos filhos menores e ao regime de visitas; (Redação
dada pela Lei nº 11.112, de 2005)
III - o valor da contribuição para criar e educar os filhos;
IV - a pensão alimentícia do marido à mulher, se esta não possuir bens suficientes
para se manter.

Michell Nunes Midlej Maron 41


EMERJ – CP V Direito Civil V

§ 1º Se os cônjuges não acordarem sobre a partilha dos bens, far-se-á esta, depois
de homologada a separação consensual, na forma estabelecida neste Livro, Título
I, Capítulo IX. (Renumerado do parágrafo único, pela Lei nº 11.112, de 2005)
§ 2º Entende-se por regime de visitas a forma pela qual os cônjuges ajustarão a
permanência dos filhos em companhia daquele que não ficar com sua guarda,
compreendendo encontros periódicos regularmente estabelecidos, repartição das
férias escolares e dias festivos. (Incluído pela Lei nº 11.112, de 2005).”

Os requisitos traçados neste artigo 1.121 não são todos indispensáveis à separação
ou ao divórcio consensual, como se vê no próprio § 1º deste artigo. Além disso, o artigo
1.581 do CC mitiga ainda mais o inciso I do artigo supra:

“Art. 1.581. O divórcio pode ser concedido sem que haja prévia partilha de bens.”

Este artigo consolidou na lei a posição da súmula 197 do STJ, que tem a exata
redação deste dispositivo.
O assunto do inciso II do artigo 1.121 do CPC também pode ser deixado para outro
momento, porque esta postergação da solução sobre guarda e visitação facilita a dissolução
do vínculo, o que é a diretriz maior para se interpretar estas questões.
Vale mencionar que a guarda compartilhada é hoje a regra de preferência para
solução de questões de guarda. Ao contrário do que se pensou originalmente, a guarda
compartilhada é a mais saudável das opções, não representando uma perda do referencial de
lar para a criança. Não só para as questões diretamente relacionadas ao cuidado do filho, a
guarda compartilhada também impõe responsabilidade civil aos pais pelos atos da criança,
em conjunto – e não só a um, como na guarda unilateral.
O inciso III do artigo 1.121, porém, é cláusula obrigatória, indispensável.
Já o inciso IV deste artigo em questão segue a mesma esteira da postergabilidade,
podendo ser assunto legado a tratamento posterior para que não obste a extinção do
vínculo, objetivo precípuo do divórcio. Vale mencionar que a cláusula de dispensa de
alimentos pode ser trazida neste acordo, cláusula esta que não se confunde com a renúncia
(que é perene, como se sabe), a qual é vedada, na forma do artigo 1.707 do CC:

“Art. 1.707. Pode o credor não exercer, porém lhe é vedado renunciar o direito a
alimentos, sendo o respectivo crédito insuscetível de cessão, compensação ou
penhora.”

O dispositivo supra menciona genericamente os credores de alimentos, não


diferenciando-os em nada. Pelo ensejo, e pela controvérsia que surge em aspecto desta
questão dos alimentos, veja quem são os credores de alimentos, eleitos pela lei no caput do
artigo 1.694 do CC:

“Art. 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros
os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição
social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.
(...)”

A discussão que surge é se o artigo 1.707 do CC proíbe a renúncia aos alimentos


para todos os credores, ou se a interpretação é mais restrita. Isto porque a jurisprudência já
se viu diante de casos em que a ex-cônjuge dispensava os alimentos no acordo de divórcio,
e mesmo assim vinha, posteriormente, e demandava alimentos, em momento muito

Michell Nunes Midlej Maron 42


EMERJ – CP V Direito Civil V

posterior, dez ou mais anos depois. Percebida esta injustiça, o STJ passou a restringir a
previsão legal, dispondo que o pedido de alimentos só será possível, pelo cônjuge ao outro,
até o divórcio; após este, cessa a possibilidade de pedir alimentos, o que significaria uma
verdadeira renúncia tácita – raciocínio que não se aplica aos parentes, que não têm vínculo
quebrado jamais.
Hoje, o STJ vai ainda além na restrição: para esta Corte, a impossibilidade de
renúncia trazida no artigo 1.707 do CC só se aplica aos parentes, e não mais aos cônjuges
ou companheiros. Renunciando expressamente, ou tacitamente (quando há o divórcio, findo
o vínculo, sem pedido de alimentos até então), não mais poderá o ex-cônjuge pedir
alimentos. Se na separação há dispensa, e não há pedido no divórcio, entende-se que houve
renúncia tácita.
Em síntese, então, assim se vê a situação da renúncia a alimentos: pelos parentes, é
impossível, podendo no máximo haver a dispensa; pelos ex-cônjuges ou companheiros, é
possível, expressa ou tacitamente.
Há ainda que se tratar da questão do uso do sobrenome do ex-cônjuge. Mesmo que
o artigo 1.121 do CPC não fale deste tema, é um assunto relevante, podendo ser tratado no
acordo de divórcio consensual. A ausência da cláusula que trata do uso do nome não
impede que o divórcio consensual se opere, mas é recomendável que se a faça constar, a
fim de evitar imbróglios subseqüentes ao fim do vínculo conjugal. Na prática, ausente a
cláusula, a presunção é de que o nome de casado pode ser mantido pelo ex-cônjuge que o
adotara, sendo necessária expressa menção à retirada do nome, se assim quiser seu titular
natural.
Sobre o direito a manter o nome do ex-cônjuge, a perda deste direito só ocorre se
forem reunidos alguns requisitos cumulativos: o cônjuge for declarado culpado (o que só
ocorre na separação judicial, por óbvio); haver pedido neste sentido por parte do cônjuge
inocente; e a retirada do nome não causar prejuízos ao culpado, quer materiais, quer em
relação à identificação deste com o filho.
A culpa, por si só, não é suficiente para derrogar o direito, como se pode pensar.
Além disso, o prejuizo, hoje, é conceito com abrangência bastante larga, podendo ser
relevante até mesmo o prejuizo moral pela perda da identidade que se tem de si mesmo,
porque o nome passa a integrar a personalidade da pessoa.
Se o cônjuge mantiver o nome do seu ex-consorte, e, no futuro, contrair novo
casamento, será possível a alteração de deu nome, agregando o sobrenome do novo
cônjuge? Há corrente minoritária que vê impedimento nesta mudança, pois se houve tal
importância na manutenção do nome após o divórcio, não se justifica agora sua alteração;
contudo, a maioria não vê os direitos da personalidade como forma de restrição a opções do
seu titular, pelo que seria possível sim este desejar mudar seu nome, para aderir ao
sobrenome do atual marido. Vale mencionar que a Lei de Registros Públicos não cria óbice,
reforçando esta segunda tese, como se vê no artigo 109, caput:

“Art. 109. Quem pretender que se restaure, supra ou retifique assentamento no


Registro Civil, requererá, em petição fundamentada e instruída com documentos
ou com indicação de testemunhas, que o Juiz o ordene, ouvido o órgão do
Ministério Público e os interessados, no prazo de cinco dias, que correrá em
cartório. (Renumerado do art. 110 pela Lei nº 6.216, de 1975).
(...)”

1.2.2. Divórcio litigioso

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EMERJ – CP V Direito Civil V

Trata-se do divórcio requerido por apenas uma das partes, e é processo contencioso
que segue o rito comum ordinário.
O único argumento do réu, nesta ação, é a não completitude do prazo para tanto, vez
que o único requisito para tal divórcio é o preenchimento do tempo legalmente exigido.

1.2.3. Divórcio direto e indireto

O divorcio indireto, divórcio conversão, é aquele que decorre de uma separação


judicial prévia, e se faz possível quando decorrido um ano desde a separação. Já o divórcio
direto consiste no divórcio ajuizado diretamente, sem necessidade de separação prévia, o
que é possível se completos dois anos de separação de fato. Veja o artigo 1.580 do CC:

“Art. 1.580. Decorrido um ano do trânsito em julgado da sentença que houver


decretado a separação judicial, ou da decisão concessiva da medida cautelar de
separação de corpos, qualquer das partes poderá requerer sua conversão em
divórcio.
§ 1º A conversão em divórcio da separação judicial dos cônjuges será decretada por
sentença, da qual não constará referência à causa que a determinou.
§ 2º O divórcio poderá ser requerido, por um ou por ambos os cônjuges, no caso de
comprovada separação de fato por mais de dois anos.”

O procedimento do divórcio indireto conta o prazo desde o trânsito em julgado de


uma das decisões ali mencionadas. De fato, a definição deste termo a quo é uma das
principais finalidades da cautelar de separação de corpos, o que vale também para a
separação de fato: nada mais concreto, como meio de prova da separação de fato, do que
uma decisão cautelar de separação de corpos.
O divórcio tem previsões que ainda se seguem pela Lei 6.515/77, que ainda vige
supletivamente. Há alguns dispositivos que são duvidosos, porém. Veja o artigo 36 desta
lei, por exemplo:

“Art 36 - Do pedido referido no artigo anterior, será citado o outro cônjuge, em


cuja resposta não caberá reconvenção.
Parágrafo único - A contestação só pode fundar-se em:
I - falta do decurso de 1 (um) ano da separação judicial; (Redação dada pela Lei nº
7.841, de 17.10.1989)
II - descumprimento das obrigações assumidas pelo requerente na separação.”

À época, entendeu-se que o réu do divórcio conversão, portanto, poderia obstar o


divórcio se alegasse que as obrigações assumidas na separação, seja consensual ou litigiosa,
foram descumpridas. A maioria da doutrina entende que esta norma não pode mais ser
aplicada, hoje, porque é inconstitucional, não tendo sido recepcionada: ela viola
inaceitavelmente o princípio da facilitação do rompimento do vínculo, pois não há como se
admitir a negativa do divórcio, hoje, senão pela insuficiência do prazo.
O divórcio direto, constante do § 2º do artigo 1.580 do CC, supra, nada mais é do
que o divórcio ajuizado diretamente após cumprimento do prazo de dois anos de separação
de fato. Se no divórcio conversão não se permitia discussões quaisquer de culpa, de
descumprimento de obrigações e outros temas, muito menos se os admite aqui: a única
causa debatível neste procedimento é o preenchimento ou não do prazo.

Michell Nunes Midlej Maron 44


EMERJ – CP V Direito Civil V

Por esta peculiaridade, não seria possível que se cumule o pedido de divórcio direto
com petição de alimentos, por exemplo. Os ritos são diferentes, havendo quem diga que
seja inadmissível a cumulação, por dificultar a dissolução do vínculo, especialmente se
inserir discussão de culpa. No entanto, a jurisprudência tem admitido a cumulação de
pedidos, e quando a questão dos alimentos se demonstrar muito problemática, pode adotar a
seguinte postura: decretar alimentos provisórios e dissolver o vínculo, remetendo a decisão
final sobre os alimentos à via procedimental adequada (onde haverá melhor instrução, por
exemplo) – tudo em prol da facilitação da dissolução do vínculo. A mera cumulação, sem
esta ressalva da possibilidade de fracionar posteriormente, de fato, é incoerente com este
princípio, mas há quem a admita – inclusive o TJ/RJ.
A prova dos dois anos de separação de fato, no divórcio direto consensual, se faz na
forma do artigo 1.122 do CPC:

“Art. 1.122. Apresentada a petição ao juiz, este verificará se ela preenche os


requisitos exigidos nos dois artigos antecedentes; em seguida, ouvirá os cônjuges
sobre os motivos da separação consensual, esclarecendo-lhes as conseqüências da
manifestação de vontade.
§ 1º Convencendo-se o juiz de que ambos, livremente e sem hesitações, desejam a
separação consensual, mandará reduzir a termo as declarações e, depois de ouvir o
Ministério Público no prazo de 5 (cinco) dias, o homologará; em caso contrário,
marcar-lhes-á dia e hora, com 15 (quinze) a 30 (trinta) dias de intervalo, para que
voltem a fim de ratificar o pedido de separação consensual.
§ 2º Se qualquer dos cônjuges não comparecer à audiência designada ou não
ratificar o pedido, o juiz mandará autuar a petição e documentos e arquivar o
processo.”

Há esta audiência de ratificação, na qual o juiz apura também as questões relativas a


este requisito. Em regra, a prova é feita por meio de ao menos duas testemunhas,
admitindo-se mesmo a juntada de declarações escritas destas testemunhas. Há ainda quem
defenda que esta prova sequer precisa ser testemunhal: no TJ/BA, há um provimento que
dispõe que basta a declaração dos próprios cônjuges de que estão separados há mais de dois
anos para que este requisito temporal considere-se provado. No TJ/RJ, e na maior parte do
país, porém, as testemunhas são necessárias.

Casos Concretos

Questão 1

João e Maria contraíram núpcias em 1988, pelo regime da comunhão parcial de


bens. Separaram-se de forma consensual, em 1994, estabelecendo, entre outras cláusulas,
que o imóvel que pertencia ao casal seria doado aos seus três filhos menores. Satisfeito o
tempo exigido, Maria propõe contra João ação de conversão da separação em divórcio.

Michell Nunes Midlej Maron 45


EMERJ – CP V Direito Civil V

Citado, o réu oferece contestação alegando o descumprimento da cláusula relativa ao


imóvel, o que inviabilizaria a pretensão, de conformidade com o artigo 36 parágrafo
único, inciso II da Lei 6.515/77. Deve o Juiz acolher o fundamento de defesa e rejeitar o
pedido?

Resposta à Questão 1

De início, vale dizer que por muito tempo se discutiu a validade da promessa de
doação, a força coercitiva desta promessa, eis que um ato de liberalidade não pode ser
forçoso, obrigatório. Entretanto, hoje, prevalece a corrente que diz que esta promessa é
possível e exigível, em função da autonomia da vontade do promitente doador.
Sendo assim, a promessa era exigível. Contudo, o meio de se a exigir escolhido – a
impugnação ao divórcio por seu descumprimento – não mais subsiste no ordenamento. O
dispositivo apontado não foi recepcionado pela CRFB, porque a negativa ao divórcio, por
motivo diverso da falta de tempo para a conversão, é inaceitável, por violar o princípio da
facilitação do desfazimento do vínculo.
Por isso, a conversão deve ser operada, debalde o descumprimento da obrigação,
que deve ser demandado em via própria.
Com a vinda da atual Constituição da República, instaurou-se controvérsia sobre a
questão. Posição majoritária é no sentido de que o inciso XI do parágrafo único do artigo
36 da Lei do Divórcio não foi recepcionado, uma vez que exige a Carta Constitucional tão
só o lapso temporal, para a obtenção do divórcio. Assim, o descumprimento da obrigação
não pode obstar a sua decretação, até porque a parte interessada poderá buscar o
adimplemento forçado através da via executiva. Em sentido contrário, há posição que
mantém íntegro o referido dispositivo, não havendo incompatibilidade com a CF, porque
entender o contrário é incentivar o descumprimento das obrigações. Deve-se atentar que o
atual Código Civil possibilita o divórcio apenas com a satisfação do prazo legal, sem
qualquer outra exigência.
Quanto à doação, entendem uns que por tratar-se de ato de liberalidade, não se pode
obrigar o seu cumprimento. Em sentido contrário, a cláusula de doação feita pelos cônjuges
aos filhos, em acordo de separação homologado judicialmente, não se trata de promessa de
doação, mas representa por si mesma negócio jurídico perfeito e acabado, produzindo os
seus efeitos entre doadores e donatários e erga omnes, após seu registro no registro
imobiliário.
Veja o seguinte julgado, do TJ/RJ:

“1995.002.02221 - AGRAVO DE INSTRUMENTO- DES. LUIZ EDUARDO


RABELLO - Julgamento: 14/05/1996 - QUARTA CAMARA CIVEL - Doação de
imóvel, à menor, filho dos doadores, homologado por sentença em separação
consensual. Impossibilidade de arrependimento ainda mais que o pedido foi
formulado por apenas um dos cônjuges e homologado. Recurso desprovido.”

Questão 2

Após um ano de separação judicial, Josué Martins propôs Ação de Conversão da


Separação Judicial em Divórcio. Não se opôs Marinete Martins, sua ex-mulher, que
apenas requereu continuar com o nome de casada. O pedido foi acolhido pelo Autor,

Michell Nunes Midlej Maron 46


EMERJ – CP V Direito Civil V

porém insurge-se o Ministério Público, manifestando-se no sentido de que a mulher


deveria voltar a usar o seu nome de solteira, conforme determina o artigo 25 parágrafo
único da Lei do Divórcio. Decida a questão.

Resposta à Questão 2

A regulamentação do uso do nome é trazida, hoje, no CC, e não se compatibiliza


com a Lei 6.515/77. Aplica-se o artigo 1.588 do CC, já abordado, e a manutenção do nome
é a regra, hoje, eis que passa a integrar a personalidade da pessoa. Por isso, a manutenção
do nome de Marinete é devida.
A lei do divórcio previa a obrigatoriedade de o cônjuge voltar ao uso do nome
anterior ao casamento, excepcionando apenas no caso e haver prejuízo para sua
identificação, manifesta distinção entre o eu nome e os dos filhos da união dissolvida ou
dano grave reconhecido em decisão judicial. Já anteriormente ao Código Civil atual, esta
regra não era vista com rigor e conforme as circunstâncias peculiares, admitia-se ao
cônjuge divorciado permanecer com o nome, principalmente quando havia a concordância
do outro. Até mesmo porque o nome integra os atributos da personalidade. A matéria
recebeu novo tratamento na nova lei civil e somente há previsão da perda do nome na
separação judicial fundada na culpa, e ainda assim, de forma relativa. Nos demais casos,
como no divórcio, cabe a opção ao cônjuge, conforme artigos 1.571, § 2° c/c § 2° do artigo
1.578, ambos do Código Civil, tendo sido, portanto, o parágrafo único do artigo 25 da Lei
do Divórcio revogado por estes dispositivos.

Questão 3

Em ação de modificação de cláusula, proposta por Caio em face de Berenice,


pretende o Autor exonerar-se da obrigação alimentar e que seja modificado o nome da ré,
já que estando eles agora divorciados e tendo, esta capacidade financeira para seu auto-
sustento, não se justifica o pensionamento que já vem há mais de 10 anos, onerando-lhe
sensivelmente, principalmente, para a manutenção de sua nova família. Diante da questão,
como decidiria.

Resposta à Questão 3

O pedido de exoneração pode ser provido pela desnecessidade de a ex-cônjuge


continuar a havê-los, porque já conta com meios de subsistência. Quebra-se o binômio
necessidade-possibilidade, pelo que a exoneração é possível.
Quanto ao nome, não basta que haja o pedido para que seja possível a ordem de
retirada sobre o ex-cônjuge: é preciso que este seja culpado, e que não vá sofrer prejuizo
com esta alteração. Só o pedido não basta.
Os deveres matrimoniais terminam definitivamente com o divórcio, entre eles o de
assistência material. Assim, rompido o vínculo matrimonial, não mais subsiste a obrigação
alimentar, salvo ante a demonstração inequívoca da necessidade e se a obrigação já tinha se
estabelecido anteriormente ao divórcio. Provando-se que o ex-cônjuge tem possibilidade de
se auto-sustentar, é de se exonerar o alimentante da obrigação. Hodiernamente, alguns vêm

Michell Nunes Midlej Maron 47


EMERJ – CP V Direito Civil V

entendendo que, apesar do divórcio, cabe o pedido de alimentos ante a irrenunciabilidade


do direito.

“2002.001.11911 - APELACAO CIVEL - DES. MARLAN MARINHO -


Julgamento: 01/07/2003 - DECIMA QUARTA CAMARA CIVEL.
DIVORCIO. OBRIGACAO ALIMENTAR. IMPOSSIBILIDADE. APELIDO DO
MARIDO. EXTINCAO DO DIREITO. OBRIGAÇÃO ALIMENTAR E DIREITO
AO NOME DO EX-MARIDO. EXTINCÃO. CONSEQÜÊNCIAS DO
DIVÓRCIO. Rompido o vínculo matrimonial com o divórcio, não mais subsiste a
obrigação alimentar, a não ser em condições especiais, ante a demonstração da
absoluta falta de recursos para a sobrevivência ou da impossibilidade de obtê-los, o
que, definitivamente, não é o caso dos autos. Da mesma forma, o divórcio extingue
o direito da mulher de usar o nome de família do ex-marido. Recurso provido, para
julgar procedentes os pedidos.”

Tema V

Efeitos patrimoniais e pessoais da separação e divórcio em relação aos filhos. Proteção legal aos filhos.
Partilha de bens. Ratificação. A Lei 11.441/07. Separação e divórcio consensual nos cartórios.

Notas de Aula6

1. Procedimento cartorário
6
Aula ministrada pela professora Consuelo Aguiar Huebra, em 25/2/2010.

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EMERJ – CP V Direito Civil V

A Lei 11.441/07 inseriu o já abordado artigo 1.124-A no CPC. Reveja o dispositivo:

“Art. 1.124-A. A separação consensual e o divórcio consensual, não havendo


filhos menores ou incapazes do casal e observados os requisitos legais quanto aos
prazos, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as
disposições relativas à descrição e à partilha dos bens comuns e à pensão
alimentícia e, ainda, ao acordo quanto à retomada pelo cônjuge de seu nome de
solteiro ou à manutenção do nome adotado quando se deu o casamento. (Incluído
pela Lei nº 11.441, de 2007).
§ 1º A escritura não depende de homologação judicial e constitui título hábil para
o registro civil e o registro de imóveis. (Incluído pela Lei nº 11.441, de 2007).
§ 2º O tabelião somente lavrará a escritura se os contratantes estiverem assistidos
por advogado comum ou advogados de cada um deles ou por defensor público,
cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial. (Redação dada pela Lei nº
11.965, de 2009).”

Obviamente, a via administrativa só tem lugar quando o divórcio ou separação for


consensual, porque o tabelião não é competente para compor litígios de qualquer sorte, não
exercendo jurisdição.
Além disso, não é possível a via cartorária quando houver direito indisponível em
jogo, ou seja, quando houver menores ou incapazes envolvidos na relação. Ocorre que há
que se observar uma tese peculiar, e bastante minoritária: mesmo havendo menores ou
incapazes envolvidos na relação, se os cônjuges optarem por fazer a dissolução do vínculo
na via cartorária, sem tangenciar quaisquer direitos dos incapazes, ou seja, reduzir o
procedimento cartorário tão somente à quebra do vínculo, deixando o restante dos temas –
alimentos para filhos, guarda, etc. – para uma oportunidade judicial posterior, seria
admissível tal divórcio ou separação cartorária. Esta interpretação é a que melhor
implementa o princípio da facilitação da dissolução do vínculo conjugal, mas ainda é pouco
representativa, bastante minoritária.
Se quem é incapaz é o próprio cônjuge, e não um filho, o entendimento é de que
também é inviável a separação ou divórcio cartorários: é necessária a via judicial. Em
síntese, se há direito indisponível, por conta da incapacidade de qualquer dos envolvidos, a
via cartorária é obstada.
Os requisitos legais quanto aos prazos são os mesmos da via judicial: um ano de
casados, se se tratar de separação consensual; um ano para a conversão em divórcio; dois
anos para o divórcio direto. A prova é também testemunhal, apresentadas as declarações em
cartório.
Da escritura pública constarão, facultativamente, as soluções consensuais sobre
descrição e partilha dos bens comuns, pensão alimentícia para o ex-cônjuge, e retomada
pelo cônjuge de seu nome de solteiro ou manutenção do nome adotado quando se deu o
casamento. Sobre os alimentos, se se trata de divórcio cartorário, e não há pedido de
prestação, presume-se a renúncia, de acordo com a corrente mais moderna, já abordada.
Sobre a dispensa de homologação pelo juiz do acordo manifestado em cartório, a
qual é consignada no § 1º, há que se perceber que cria uma diferença: se ao juiz é dado
controlar o acordo feito na via judicial, como dispõe o parágrafo único do artigo 1.574 do
CC, já abordado (por mais criticável que seja esta norma), deveria ser feito este controle na
via cartorária, mas não o é.

Michell Nunes Midlej Maron 49


EMERJ – CP V Direito Civil V

A presença do advogado é necessária para que ele promova a distribuição correta


dos direitos, orientando as partes sobre o que lhes assiste. Além disso, a súmula 305 do STF
informa que:

“Súmula 305, STF: Acordo de desquite ratificado por ambos os cônjuges não é
retratável unilateralmente.”

Ora, vê-se que é grande a seriedade e definitividade do acordo, pelo que a


assistência do advogado se torna ainda mais relevante.
O procedimento cartorário será gratuito para aqueles que se declararem pobres, da
mesma forma que a via judicial, em atenção à Lei 1.060/50.

2. Efeitos patrimoniais da separação e do divórcio

Antes do divórcio ou da separação judicial, a separação de fato já opera significativa


alteração patrimonial. Veja o artigo 1.576 do CC assim dispõe:

“Art. 1.576. A separação judicial põe termo aos deveres de coabitação e fidelidade
recíproca e ao regime de bens.
Parágrafo único. O procedimento judicial da separação caberá somente aos
cônjuges, e, no caso de incapacidade, serão representados pelo curador, pelo
ascendente ou pelo irmão.”

Apesar da literalidade do dispositivo, a jurisprudência já pacificou entendimento de


que o que rompe o regime de bens é a separação de fato, e não apenas a judicial. E a
separação de fato pode ser certificada, por exemplo, por meio da cautelar de separação de
corpos.
Havendo a separação de fato, portanto, o regime de bens cai por terra, e não mais
vige qualquer comunicabilidade entre os bens dos cônjuges, mesmo que ainda não se tenha
operado a separação judicial ou o divórcio. Contudo, é perigoso não se certificar fortemente
desta circunstância de separação fática, pelo que é recomendável, mesmo, o ajuizamento da
separação cautelar de corpos, para o fim de criar, com esta separação, o marco
inquestionável da separação de fato.

Casos Concretos

Questão 1

André e Antônia casaram-se em 1987, convencionando o regime da comunhão


universal. A mulher levou para o casamento três apartamentos, adquiridos por seu próprio
esforço econômico, e o marido ingressou na vida conjugal já proprietário de um sítio em
Itatiaia. Durante o casamento, o patrimônio cresceu, pois André recebeu de herança de um
tio uma casa gravada com a cláusula de inalienabilidade, e adquiriu, por compra e venda,
dois apartamentos. Passados dez anos de casamento, Maria apresentou doença mental

Michell Nunes Midlej Maron 50


EMERJ – CP V Direito Civil V

grave, o que levou André a aforar pedido de separação judicial em março de 2003.
Verificando o Juiz que a doença realmente era grave e de cura improvável, julgou
procedente o pedido. Considerando-se que mantinham, até o momento da separação, o
patrimônio acima apresentado, como deverá ser feita a partilha?

Resposta à Questão 1

Como efeito da separação fundada em doença mental grave de um dos cônjuges,


perde o cônjuge requerente o direito à meação sobre os bens que o cônjuge enfermo levou
para o casamento ou os seus remanescentes. Com o atual Código Civil, essa penalidade
incide apenas no caso de separação fundada em enfermidade mental do cônjuge
demandado, diferentemente do sistema anterior, no qual a Lei do Divórcio incluía nas duas
hipóteses dos parágrafos 1° e 2° do artigo 1.572 do CC.
Conforme observa Yussef Said Cahali, a penalidade imposta ao demandante derroga
retroativamente a comunicabilidade dos bens. Quanto aos bens adquiridos na constância do
casamento, alguns sustentam que a norma dá ensejo a que se entenda que a meação que
caberia ao demandante reverte-se para o cônjuge doente. Neste caso, haveria a cláusula de
dureza em todos os regimes que permitem a comunicação de bens durante o casamento,
comunhão universal, comunhão parcial, participação de aquestos.

Questão 2

Paulo ajuizou ação com objetivo de obter a conversão de separação judicial em


divórcio. Citada, Márcia, a esposa, alega que o divórcio ainda não pode ser concedido,
com base no art. 36 da Lei 6.515/77, uma vez que os bens ainda não foram partilhados,
apesar de admitir o transcurso de mais de 1 ano de separação judicial. O varão alegou,
por sua vez, que o único bem que possuía havia sido adquirido quando se encontravam
casados, porém já separados de fato. Márcia afirma que se o bem foi adquirido quando
ainda estavam casados, deveria entrar no patrimônio do casal, com vistas à dissolução, o
que impediria a conversão da separação judicial em divórcio antes de partilhar o referido
bem, uma vez que a sentença separatória afirmou que deveria o casal providenciar a
partilha de bens, no prazo de 6 meses. O regime de bens adotado era o da comunhão
universal. Resolva o caso, justificadamente.

Resposta à Questão 2

O descumprimento de cláusulas assumidas na separação não obsta o divórcio. O


artigo 36 da Lei 6.515/77 não tem aplicação, nesta parte, por violar o princípio da
facilitação da dissolução do vínculo.
Sobre a comunicabilidade do bem do varão, alegada pela cônjuge, não é procedente:
não há mais comunicabilidade desde quando a separação de fato se operou,
comprovadamente: separados de fato, o regime de bens tem fim.

Michell Nunes Midlej Maron 51


EMERJ – CP V Direito Civil V

Tema VI

Parentesco. Espécies. Parentesco natural e civil. Classificação. Afinidade. Filiação. Paternidade presumida.
Técnicas de reprodução assistida. Reconhecimento voluntário e forçado de filiação. Métodos de pesquisa do
vínculo filial. Prova genética pelo DNA. Ações filiatórias. A Lei 8.560/92 e o Código Civil. Paternidade
socioafetiva.

Notas de Aula7

1. Parentesco
7
Aula ministrada pela professora Katylene Collyer Pires de Figueiredo, em 26/2/2010.

Michell Nunes Midlej Maron 52


EMERJ – CP V Direito Civil V

Parentesco é a relação que liga pessoas que descendem umas das outras ou de um
tronco comum – ascendentes, descendentes e colaterais – bem como a que liga os cônjuges
aos parentes do outro cônjuge – parentesco por afinidade.
Para a lei, o parentesco não supera o quarto grau, quando colateral, algo que é
relevante também para outros ramos do direito: causa impedimentos ou suspeições para
juizes e peritos, inelegibilidades eleitorais, etc.
Todo e qualquer tipo de filiação tem o mesmo valor para o direito. Não há qualquer
diferenciação entre filhos naturais ou adotados, surgindo o parentesco do adotado com
todos os que são do tronco ou da linha, até o quarto grau. Trata-se de um princípio
constitucional, da proibição à diferenciação entre os filhos, naturais ou não. Uma única
diferença que pode o ascendente promover entre seus filhos diz respeito à liberdade de
testar: pode ele optar por favorecer um filho qualquer com até a metade de seus bens, sem
desfigurar a participação daquele filho que recebe tal vantagem no bojo da herança
legítima. Afora isto, filhos não podem ter tratamento desigual. Esta exceção, inclusive,
consiste em uma ponderação legal entre a liberdade patrimonial e o dever familiar.

1.1. Vínculo parental

O vínculo pode ser por linha reta ou colateral. Na linha reta, entre ascendentes e
descendentes, o parentesco se estende ao infinito; na colateral, limita-se ao quarto grau.
Veja os artigos 1.591 e 1.592 do CC:

“Art. 1.591. São parentes em linha reta as pessoas que estão umas para com as
outras na relação de ascendentes e descendentes.”

“Art. 1.592. São parentes em linha colateral ou transversal, até o quarto grau, as
pessoas provenientes de um só tronco, sem descenderem uma da outra.”

Vale a pena traçar um esquema gráfico que ilustre a genealogia básica. O quadro
abaixo representa toda a gama de parentesco consangüíneo reconhecida no direito
brasileiro, demonstrada somente por um lado da árvore genealógica – o lado paterno –,
lembrando que o mesmo se espelha no lado materno. As relações em linha reta se
prolongam ao infinito, pois não há limitação de graus neste tronco; contudo, as relações de
parentesco colateral são limitadas ao quarto grau8, segundo o artigo 1.592 do Código Civil:
Prolongamento indefinido

Legenda:

Bisavô
Indivíduo em análise

Avô Tio-avô
Parentesco consangüíneo em linha reta de 1º grau

Pai Tio
Parentesco consangüíneo em linha reta de 2º grau

Indivíduo Irmão Primo


Parentesco consangüíneo em linha reta de 3º grau

Filho Sobrinho
Parentesco consangüíneo colateral de 2º grau
8
No antigo CC, de 1916, a relação se estendia até o 6º grau. Neto Sobrinho-Neto
Parentesco consangüíneo colateral de 3º grau

Bisneto
MichellParentesco
Nunes Midlej Maron
consangüíneo colateral de 4º grau 53

Prolongamento indefinido
EMERJ – CP V Direito Civil V

As relações que envolvem parentesco civil (adoção, reprodução artificial heteróloga


ou a moderna concepção do parentesco socioafetivo) desenvolvem-se nos mesmos moldes,
somente se classificando com o termo parentesco civil onde se lê parentesco consangüíneo.
Como exemplo, se o indivíduo for o adotado, seu irmão é parente civil colateral de
segundo grau. Esta nomenclatura não implica em discriminação de qualquer natureza entre
o parente civil e o consaguíneo.
O parentesco por afinidade se verifica também da mesma forma, pois basta
substituir-se o cônjuge ou o companheiro na posição do indivíduo em análise, e classificar
toda a gama de parentesco como por afinidade, ao invés de consangüíneo – valendo
salientar que a afinidade se limita ao segundo grau, colateralmente. Como exemplo, em
relação ao cônjuge do indivíduo o irmão deste é parente por afinidade colateral de segundo
grau.
Os alimentos, na linha reta, são devidos entre quaisquer parentes, em qualquer grau,
com atenção apenas à regra de que os mais próximos excluem os mais remotos, quando
puderem prestar alimentos – proximior excludit remotiorem.
O direito sucessório persiste até este quarto grau colateral, mas a obrigação
alimentar, na linha colateral, persiste apenas até o segundo grau – apenas há esta obrigação
entre irmãos, portanto. Isto gera uma certa desigualdade, pois sobrinhos são herdeiros de
um tio, mas não são obrigados alimentares por este.
O Estatuto do Idoso prevê que os filhos são responsáveis solidários pelos alimentos
ao pai idoso.
Como dito, o parentesco pode ser natural ou civil. Veja o artigo 1.593 do CC:

“Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade


ou outra origem.”

Sobre este artigo, veja os enunciados 103 e 256 do CJF:


“Enunciado 103, CJF: Art. 1.593: O Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras
espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim,
a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer
das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que
não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade sócio-afetiva,
fundada na posse do estado de filho.”

“Enunciado 256, CJF: Art. 1.593: A posse do estado de filho (parentalidade


socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil.”

A parentalidade socioafetiva é aquela surgida da relação de fato empreendida entre


as pessoas. A paternidade socioafetiva, segundo a doutrina, se presta a certificar o direito a
ter um pai pelo vínculo de afeto criado, mesmo sem haver vínculo biológico, não se
prestando para a negativa de uma paternidade biológica, por óbvio: pode o pai não-

Michell Nunes Midlej Maron 54


EMERJ – CP V Direito Civil V

biológico consolidar-se como pai socioafetivo, mas não pode o pai biológico derrogar-se
desta qualidade alegando não ter vínculo socioafetivo com o filho.
A pessoa não pode ter dois pais, um biológico e um socioafetivo. Isto é pacífico na
doutrina e jurisprudência. Há apenas um autor, Rolf Madaleno, que defende que se o pai
socioafetivo for pessoa pobre, pode o filho investigar sua origem genética (investigação
esta, diga-se, que é sempre possível, pois todos têm o direito a buscar sua origem genética)
com o fito de buscar alimentos junto ao pai biológico – posição bem isolada.
O parentesco por afinidade, fixado entre o cônjuge e o companheiro e os parentes
do outro cônjuge ou companheiro, está no artigo 1.595 do CC:

“Art. 1.595. Cada cônjuge ou companheiro é aliado aos parentes do outro pelo
vínculo da afinidade.
§ 1º O parentesco por afinidade limita-se aos ascendentes, aos descendentes e aos
irmãos do cônjuge ou companheiro.
§ 2º Na linha reta, a afinidade não se extingue com a dissolução do casamento ou
da união estável.”

Não existe parente por afinidade do parente por afinidade: a sogra de um dos
cônjuges não se torna parente da mãe dele, por exemplo.
Outra peculiaridade do parentesco por afinidade vem no § 2º do artigo supra: na
linha reta, não se extingue jamais. Mesmo que os cônjuges ou companheiros dissolvam a
relação, os parentes por afinidade permanecerão ligados ao ex-consorte (sogra, de fato, é
para sempre). Assim, os impedimentos gerados por esta situação são perenes.
Maria Berenice Dias defende que os parentes por afinidade, na linha reta, tem
também obrigações alimentares entre si, em razão do princípio da solidariedade. É voz
isolada.

2. Filiação

O artigo 1.596 do CC inaugura o tema com o principal paradigma: não se pode


diferenciar filhos de qualquer sorte. Veja:

“Art. 1.596. Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção,


terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações
discriminatórias relativas à filiação.”

Até mesmo a menção a uma adoção, por exemplo, poderia ser considerada uma
certa discriminação, a depender da forma com que se menciona tal condição. Filho é filho,
sem adjetivação.
O artigo 229 da CRFB consagra o princípio da paternidade responsável:

“Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os
filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou
enfermidade.”

Neste diapasão, se o pai deixa de matricular o filho no ensino fundamental, por


exemplo, está cometendo crime de abandono intelectual, do artigo 246 do CP, tipo penal
que é subsidiado justamente neste princípio:

Michell Nunes Midlej Maron 55


EMERJ – CP V Direito Civil V

“Abandono intelectual
Art. 246 - Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade
escolar:
Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa.”

O abandono afetivo, por seu turno, não é ainda reconhecidamente um ato ilícito,
sequer cível. Há julgado do TJ/MG reconhecendo que a falta de afeto é uma quebra do
dever de paternidade responsável, mas o STJ não manteve esta tese – mas a não
manutenção não é unânime. Nos votos do julgado do STJ, diga-se, há quem reconheça a
possibilidade de ilicitude nesta falta de afeto pelo pai, apenas não reconhecendo o dano no
caso concreto apresentado. Por isso, a discussão persiste.

2.1. Prova da filiação

O artigo 1.603 do CC diz que:

“Art. 1.603. A filiação prova-se pela certidão do termo de nascimento registrada no


Registro Civil.”

Este artigo tem interpretação pelo CJF, no enunciado 108:

“Enunciado 108, CJF: Art. 1.603: no fato jurídico do nascimento, mencionado no


art. 1.603, compreende-se, à luz do disposto no art. 1.593, a filiação consangüínea
e também a sócio-afetiva.”

2.2. Presunção de paternidade

O artigo 1.597 do CC dispõe:

“Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:


I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência
conjugal;
II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal,
por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;
III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;
IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários,
decorrentes de concepção artificial homóloga;
V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia
autorização do marido.”

Por conta desta presunção, a mulher casada que comparece ao cartório de registro
civil de pessoas naturais para registrar seu filho, munida da certidão de casamento, poderá
registrá-lo em nome do marido, sem que este esteja presente. Esta presunção não se aplica
na união estável, sequer se esta união for titulada por escritura pública – é uma previsão
exclusiva para o casamento.
As presunções dos incisos I e II do artigo supra dizem respeito aos prazos
gestacionais, como se pode perceber. A presunção do inciso II gera uma controvérsia, pois
pode conflitar diretamente com a presunção do inciso I: se a pessoa se casar imediatamente
após a dissolução da relação anterior, e o filho nascer após cento e oitenta dias após este

Michell Nunes Midlej Maron 56


EMERJ – CP V Direito Civil V

casamento, estará incidente a presunção de ambos os incisos. Neste caso, a investigação


genética será o meio necessário para solucionar a questão.
A fecundação artificial homóloga, do inciso III, é aquela que se utiliza do material
genético do marido e da mulher, não usando material genético de terceiros. Neste caso,
mesmo falecido o marido, presume-se a paternidade.
No inciso IV, o dispositivo também trata da concepção homóloga, mas havida de
embrião excedentário, ou seja, aqueles guardados de uma inseminação in vitro e
posteriormente implantados. Questão bastante polêmica diz respeito à possibilidade de um
embrião nestes moldes ser sucessor de seu pai, pré-morto, e, se há esta sucessão, por quanto
tempo seria possível. A orientação mais clara é de que só se o embrião for implantado até o
momento da morte do pai é possível esta sucessão: se implantado após, mesmo que ainda
vá ser considerado filho do falecido genitor, não terá direito sucessório, porque a saisine só
se opera para os que coexistem com o morto. Mas há quem entende que há, sim, direitos
sucessórios, apenas limitando-os ao implantado em até dois anos após a morte do pai, por
analogia ao artigo 1.800, § 4º, do CC:

“Art. 1.800. No caso do inciso I do artigo antecedente, os bens da herança serão


confiados, após a liquidação ou partilha, a curador nomeado pelo juiz.
(...)
§ 4º Se, decorridos dois anos após a abertura da sucessão, não for concebido o
herdeiro esperado, os bens reservados, salvo disposição em contrário do testador,
caberão aos herdeiros legítimos.”

Todas as hipóteses de presunção de paternidade, aqui tratadas, são relativas,


podendo ser afastada pela ação negatória de paternidade. No inciso V do artigo em
comento, porém, surge uma presunção absoluta: presume-se pai aquele que autorizou a
mulher a proceder a uma inseminação artificial heteróloga, ou seja, a se valer de embrião
formado por material genético externo. Esta presunção é absoluta por motivo simples: se
for empreendida uma investigação genética do filho, é claro que ele não será
biologicamente ligado ao pai, por ser oriundo de matéria genética de terceiros. Não
significa, porém, que não possa este pai deduzir em juízo uma eventual falta ou vício na
autorização que fundamenta a presunção.
Pelo ensejo, vale mencionar a questão polêmica sobre os embriões excedentários. A
técnica de fertilização in vitro acaba gerando uma pluralidade de embriões, que muitas
vezes não serão implantados. O destino que deve ser dado a estes embriões ainda é
discutido, mas o STF resolveu a questão, na ADI 3.510, proposta contra a Lei de
Biossegurança, 11.105/05: esta lei determina que os embriões não implantados serão
guardados por prazo de três anos, após o que os pais deverão ser notificados para
manifestar interesse em implantá-los, e, não havendo este interesse, serão cedidos a
pesquisas de células-tronco. Veja o artigo 5º desta lei, não declarado inconstitucional:

“Art. 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco


embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e
não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições:
I – sejam embriões inviáveis; ou
II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação
desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de
completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento.
§ 1º Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.

Michell Nunes Midlej Maron 57


EMERJ – CP V Direito Civil V

§ 2º Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia


com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à
apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa.
§ 3º É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e
sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro
de 1997.”

Outra hipótese polêmica consiste na “barriga de aluguel”. A matéria é tratada na


Resolução 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina, como se vê no item VII deste ato:

“VII - SOBRE A GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO (DOAÇÃO TEMPORÁRIA


DO ÚTERO)
As Clínicas, Centros ou Serviços de Reprodução Humana podem usar técnicas de
RA para criarem a situação identificada como gestação de substituição, desde que
exista um problema médico que impeça ou contra-indique a gestação na doadora
genética.
1 - As doadoras temporárias do útero devem pertencer à família da doadora
genética, num parentesco até o segundo grau, sendo os demais casos sujeitos à
autorização do Conselho Regional de Medicina.
2 - A doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial.”

Os pais biológicos são pais para todos os fins, não havendo qualquer direito para a
doadora temporária de útero. Por isso, em uma eventual negativa de entrega da criança, os
pais podem ajuizar de plano a busca e apreensão do filho.

2.3. Ação negatória de paternidade

Diz o artigo 1.601 do CC:

“Art. 1.601. Cabe ao marido o direito de contestar a paternidade dos filhos


nascidos de sua mulher, sendo tal ação imprescritível.
Parágrafo único. Contestada a filiação, os herdeiros do impugnante têm direito de
prosseguir na ação.”

Deve ser combinado este dispositivo com o artigo 1.604 do CC:

“Art. 1.604. Ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de
nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro.”
Não havendo erro ou falsidade, não pode haver negação da paternidade: se o pai,
por exemplo, sabia da condição de não-pai biológico, e mesmo assim assumiu a criança por
vontade plena não viciada, não poderá questionar este registro, mesmo que a prova genética
seja-lhe favorável. A respeito, veja a Apelação Cível 2005.001.05757, do TJ/RJ:

“Processo: 0051800-65.2000.8.19.0001 (2005.001.05757). 1ª Ementa –


APELACAO. DES. CELIA MELIGA PESSOA - Julgamento: 02/08/2005 -
DECIMA OITAVA CAMARA CIVEL.
APELAÇÃO CÍVEL. NEGATÓRIA DE PATERNIDADE CUMULADA COM
ANULAÇÃO DE REGISTRO. Apelação contra a sentença que julgou
improcedente o pedido de anulação de registro, em face da verificação de
paternidade sócio afetiva. Prova dos autos confirmando que o autor decidiu
assumir a paternidade da menor, voluntária e consciente de que ela não era sua
filha, por razões sócio afetivas, registrando-a como filha ao invés de adotá-la

Michell Nunes Midlej Maron 58


EMERJ – CP V Direito Civil V

regularmente, daí não ser decisivo o exame de DNA, porquanto as partes sempre
souberam que não tinham filiação sangüínea. Não há que se falar em ofensa aos
princípios constitucionais invocados pelo apelante, porquanto as causas de pedir
para a anulação do registro de nascimento de cada filha são distintas, a da menor
que presumia ser sua filha, em razão do erro, e a segunda, que sabia não ser sua
filha, e registrou por razões afetivas, fundado apenas no arrependimento de tê-lo
feito, o que se revela inviável em sede de família, em que se prestigia a
consolidação e segurança das relações jurídico-afetivas. Ademais, ao simular
paternidade inexistente, registrando filho alheio como próprio, não pode se valer
da própria torpeza para, arrependido, desconstituí-lo, caso em que tal perfilhação
deve ser equiparada a uma adoção, para todos os efeitos, tornando irrevogável o
ato. Precedentes desta Corte. DESPROVIMENTO DO RECURSO.”

2.4. Formas de reconhecimento dos filhos

O CC trata do tema nos artigos 1.607 a 1.617, os quais serão abordados


pontualmente, e há também a Lei 8.650/92, que trata da investigação de paternidade.
O reconhecimento pode ser voluntário, praticado pelo simples comparecimento do
pai ao registro. Como forma de incentivo a esta forma de reconhecimento, há a chamada
averiguação oficiosa: quando o oficial cartorário recebe um pedido de registro sem pai,
pede à mãe que diga o nome do pai, passando ao juiz da vara de registros públicos esta
informação, para que ele notifique este suposto pai para que ele compareça ao registro e
reconheça o seu filho. Se o apontado vier e reconhecer, está solucionada a questão; se não,
remete-se o procedimento ao MP, para que este promova a investigação de paternidade.
Veja o artigo 2º desta Lei 8.560/92:

“Art. 2° Em registro de nascimento de menor apenas com a maternidade


estabelecida, o oficial remeterá ao juiz certidão integral do registro e o nome e
prenome, profissão, identidade e residência do suposto pai, a fim de ser averiguada
oficiosamente a procedência da alegação.
§ 1° O juiz, sempre que possível, ouvirá a mãe sobre a paternidade alegada e
mandará, em qualquer caso, notificar o suposto pai, independente de seu estado
civil, para que se manifeste sobre a paternidade que lhe é atribuída.
§ 2° O juiz, quando entender necessário, determinará que a diligência seja
realizada em segredo de justiça.
§ 3° No caso do suposto pai confirmar expressamente a paternidade, será lavrado
termo de reconhecimento e remetida certidão ao oficial do registro, para a devida
averbação.
§ 4° Se o suposto pai não atender no prazo de trinta dias, a notificação judicial, ou
negar a alegada paternidade, o juiz remeterá os autos ao representante do
Ministério Público para que intente, havendo elementos suficientes, a ação de
investigação de paternidade.
§ 5° A iniciativa conferida ao Ministério não impede a quem tenha legítimo
interesse de intentar investigação, visando a obter o pretendido reconhecimento da
paternidade.”

O reconhecimento forçado é aquele provocado por meio de uma ação judicial de


investigação, reconhecido pelo juiz apenas.
Questão outrora polêmica é sobre a possibilidade ou não de se compelir o sujeito
apontado como pai a realizar o exame de DNA. A súmula 301 do STJ resolveu a questão:

Michell Nunes Midlej Maron 59


EMERJ – CP V Direito Civil V

“Súmula 301, STJ: Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se


ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade.”

Esta presunção é relativa, e se exige, de fato, mais algum elemento mínimo que dê
indício de que existiu relação entre a mãe e o suposto genitor, sob pena de gerar situações
injustas. Um mínimo de prova da existência de uma relação é necessário, pois se assim não
o for poderia qualquer pessoa apontar qualquer outra como suposto pai.
Pode o sujeito se negar a fazer o exame, sendo presumidamente pai, portanto.
Ocorre que esta presunção é relativa, e ele poderá, posteriormente, produzir o exame e
provar a ausência do vínculo biológico, mas até que momento pode o pai presumido
questionar esta presunção?
Quando não existia o exame de DNA, a sentença que fixava a paternidade o fazia
com base em outras provas; surgido o DNA, estas sentenças puderam ter a coisa julgada
desconsiderada, em função da nova prova, demonstrando que a sentença era
inconstitucional. Mas a situação questionada acima é diferente: o exame existia, e o suposto
pai simplesmente não o fez, sendo fixada sua paternidade em coisa julgada. A questão ainda
não tem solução jurisprudencial9.
Se a investigação de paternidade apontar mais de um suposto pai na mesma ação, e
ambos se negarem a realizar o exame, não há solução, porque não se pode presumir que
haja dois pais. Com base nisso, inclusive, parte da doutrina entende incabível a cumulação
de réus no pólo passivo da investigatória, pelo que a presunção se imporá para aquele que
for demandado primeiro e se negar ao exame.
A ação de investigação de paternidade pode ser cumulada com pedido de alimentos,
e mesmo que não o seja, pode o juiz fixá-los de ofício. Os alimentos correm desde a
citação, como já se posicionou o STJ em entendimento sumulado:

“Súmula 277, STJ: Julgada procedente a investigação de paternidade, os alimentos


são devidos a partir da citação.”

O filho pode também questionar o registro, na forma do artigo 1.614 do CC:


“Art. 1.614. O filho maior não pode ser reconhecido sem o seu consentimento, e o
menor pode impugnar o reconhecimento, nos quatro anos que se seguirem à
maioridade, ou à emancipação.”

A lei traz prazo de quatro anos para o menor, desde a completitude da maioridade
ou da emancipação. Contudo, este prazo não é aplicado, por questão de isonomia e mesmo
de lógica: se o pai pode contestar a paternidade a qualquer tempo, sendo a ação
imprescritível, não há justificativa para a limitação ao direito de o filho questionar tal fato,
sobremaneira por se tratar de ação de estado, imprescritível por natureza.
O reconhecimento da paternidade é irrevogável, mesmo quando feito em
testamento, ato que é revogável por natureza: se o testador reconhece a paternidade no ato,
e depois o revoga, todos os efeitos do testamento revogado desaparecem, à exceção do
reconhecimento realizado, que permanece por ser irrevogável.

9
Em opinião pessoal, entendo que se o pai se nega ao exame no curso da ação, e por isso é declarado pai na
sentença, uma vez esta transitada em julgado não mais poderá ser derrogada. Se a sentença foi calcada na
presunção que poderia ter sido elidida pelo réu, não pode ele se valer desta negativa para, posteriormente,
relativizar a coisa julgada, porque estaria se valendo de prova que poderia ter sido utilizada à época e não o
foi. Fica a questão.

Michell Nunes Midlej Maron 60


EMERJ – CP V Direito Civil V

A Lei 8.560/92, anterior ao CC, prevê no artigo 3º que:

“Art. 3° E vedado legitimar e reconhecer filho na ata do casamento.


Parágrafo único. É ressalvado o direito de averbar alteração do patronímico
materno, em decorrência do casamento, no termo de nascimento do filho.”

Esta previsão não se coaduna com a nova sistemática, e por isso não foi mantida,
tendo sido derrogada pelo artigo 1.609 do CC, que não traz esta vedação:

“Art. 1.609. O reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento é irrevogável


e será feito:
I - no registro do nascimento;
II - por escritura pública ou escrito particular, a ser arquivado em cartório;
III - por testamento, ainda que incidentalmente manifestado;
IV - por manifestação direta e expressa perante o juiz, ainda que o reconhecimento
não haja sido o objeto único e principal do ato que o contém.
Parágrafo único. O reconhecimento pode preceder o nascimento do filho ou ser
posterior ao seu falecimento, se ele deixar descendentes.”

O reconhecimento, portanto, pode ser feito em qualquer meio.


O cancelamento do registro é uma consequência lógica do reconhecimento de nova
paternidade. Veja o REsp. 693.230, a este respeito:

“REsp 693230 / MG. RECURSO ESPECIAL. Relatora Ministra NANCY


ANDRIGHI. Órgão Julgador - TERCEIRA TURMA. Data do Julgamento:
11/04/2006. Data da Publicação/Fonte: DJ 02/05/2006 p. 307.
Ementa: Direito civil e processual civil. Recurso especial. Ação de investigação de
paternidade c/c petição de herança e anulação de partilha. Decadência. Prescrição.
Anulação da paternidade constante do registro civil. Decorrência lógica e jurídica
da eventual procedência do pedido de reconhecimento da nova paternidade.
Citação do pai registral. Litisconsórcio passivo necessário.
- Não se extingue o direito ao reconhecimento do estado de filiação exercido com
fundamento em falso registro.
- Na petição de herança e anulação de partilha o prazo prescricional é de vinte
anos, porque ainda na vigência do CC/16.
- O cancelamento da paternidade constante do registro civil é decorrência lógica e
jurídica da eventual procedência do pedido de reconhecimento da nova
paternidade, o que torna dispensável o prévio ajuizamento de ação com tal
finalidade.
- Não se pode prescindir da citação daquele que figura como pai na certidão de
nascimento do investigante para integrar a relação processual na condição de
litisconsórcio passivo necessário.
Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido.”

Michell Nunes Midlej Maron 61


EMERJ – CP V Direito Civil V

Casos Concretos

Questão 1

Representado por sua mãe, Vanda, Felipe propôs Ação de Investigação de


Paternidade contra o seu pai biológico, José, apresentando como prova apenas
testemunhas que sabiam do envolvimento afetivo de sua mãe com o demandado. O Juiz
determinou a realização do exame de DNA, deferindo pedido do Autor. Ante a recusa do
investigado, o Juiz determinou sua condução à realização do exame. O réu, inconformado,
impetra Habeas Corpus, chegando o feito ao Supremo Tribunal Federal. Na análise do
caso concreto, pronuncie-se, tendo em vista a tutela constitucional aos direitos do
investigante e do investigado.

Michell Nunes Midlej Maron 62


EMERJ – CP V Direito Civil V

Resposta à Questão 1

A questão é simples: o exame não pode ser realizado coercitivamente, dada a


liberdade constitucional em não dispor de seu material genético, mas a negativa em fazê-lo
gera presunção relativa de que o indivíduo apontado no pólo passivo é o pai, por conta do
dever de proteção ao filho e o direito à identidade. Aplica-se a redação da súmula 301 do
STJ.
Verifica-se na questão um conflito de interesses fundamentais. Põe-se em conflito os
direitos do filho investigante e os do pai investigado Podendo se invocar em favor do
investigado, o princípio da legalidade, o direito à privacidade, à intimidade, à liberdade, à
intangibilidade física e em favor do investigante, a tutela da dignidade da pessoa humana, o
princípio da paternidade real, da paternidade responsável, o direito à sua identidade. O tema
é controvertido. O STF, apresentando divergência, sustentam uns a possibilidade da
realização forçada do exame genético de DNA, pois a CF e o ECA deram nova
conformação aos direitos da criança e ao adolescente, priorizando os seus interesses. Por
outra, o princípio da intangibilidade do corpo humano, que protege um interesse privado,
deve dar lugar ao direito à identidade, que além de um interesse privado, é também um
interesse público.
Defendendo outros, posição que prevalece, inclusive no STJ, que não pode o
investigado ser conduzido coercitivamente a submeter-se ao exame genético de DNA, em
razão do princípio da legalidade e ainda o princípio de que ninguém pode fazer prova
contra si mesmo. Todavia, para preservação dos direitos fundamentais, a recusa do
investigado em submeter-se ao exame de DNA, inverte o ônus da prova, atuando como
presunção da paternidade
Veja os seguintes julgados:

“STF. HC 71373-4-RS; Relator: Min. FRANCISCO REZEK; Julgamento:


10/11/1994 INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE - EXAME DNA -
CONDUÇÃO DO RÉU "DEBAIXO DE VARA". Discrepa, a mais não poder, de
garantias constitucionais implícitas e explícitas - preservação da dignidade
humana, da intimidade, da intangibilidade do corpo humano, do império da lei e da
inexecução específica e direta de obrigação de fazer - provimento judicial que, em
ação civil de investigação de paternidade, implique determinação no sentido de o
réu ser conduzido ao laboratório, "debaixo de vara", para coleta do material
indispensável à feitura do exame DNA. A recusa resolve-se no plano jurídico-
instrumental, consideradas a dogmática, a doutrina e a jurisprudência, no que
voltadas ao deslinde das questões ligadas à prova dos fatos.”

“2001.001.04366 - APELACAO CIVEL - DES. LUIZ EDUARDO RABELLO -


Julgamento: 24/10/2001 - DECIMA PRIMEIRA CAMARA CIVEL -
INVESTIGACAO DE PATERNIDADE. ALIMENTOS. CUMULACAO DE
PEDIDOS. EXAME DE D.N.A. RECUSA. PRESUNCAO DE PATERNIDADE.
FIXACAO DA PENSAO ALIMENTÍCIA. RECURSO DESPROVIDO. Acao de
Investigacao de Paternidade. A recusa do pai em submeter-se ao exame de DNA,
embora legitima em face dos direitos fundamentais constantes da Constituicao
Federal, inverte todavia o onus da prova, transformando a possibilidade de
paternidade em probabilidade. A recusa injustificada ao exame, o malogro do
investigado em provar sua inocencia, em conjunto com os indicios extraidos das

Michell Nunes Midlej Maron 63


EMERJ – CP V Direito Civil V

provas orais produzidas, sao o bastante para que o pedido da investigante seja
julgado procedente. Recurso improvido.”

Questão 2

Nádia, já com 25 anos de idade, sabedora de que Alex não é seu pai, promove ação
de anulação de registro civil, o qual foi declarado por sua mãe, em razão da presunção
legal da paternidade, já que seus pais eram casados à época de sua concepção. O Réu
contesta alegando a decadência, com fundamento no artigo 1.614 do Código Civil, já que
teria ela apenas o prazo de quatro anos, contados do momento em que atingiu a
maioridade ou a emancipação, o que ocorrera há muito. Pode ser acolhida a pretensão
autoral?

Resposta à Questão 2

Este prazo normativo é inaplicável, porque mesmo que a lei preveja este prazo, a
questão de fundo discutida nesta ação é uma questão de estado, e por isso naturalmente
imprescritível, eis que ligada aos direitos da personalidade.
Veja o Ag. Rg. no REsp. 440.472:

“AgRg no REsp 440472 / RS. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO


ESPECIAL . Relator Ministro ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO. Órgão Julgador
- TERCEIRA TURMA. Data do Julgamento: 01/04/2003. Data da
Publicação/Fonte: DJ 19/05/2003 p. 225.
Civil. Investigação de paternidade. Registro civil. Anulação. Prescrição.
I. - O direito do filho de buscar a paternidade real, com pedido de anulação
retificação de registro de nascimento em caso de falsidade praticada pela mãe é
imprescritível, não se aplicando o disposto no art. 178, § 9º, VI, do Código Civil.
Precedentes.
II. - Decisão mantida, porque em sintonia com a jurisprudência mais moderna e
majoritária desta Corte.
III. - Agravo regimental desprovido.”

Questão 3

Alexandre, menor púbere assistido por sua mãe, ajuizou ação de indenização por
danos morais em face de seu pai Vicente, por ter o demandado se afastado do lar há quinze
anos. Alega, na inicial, que até seus seis anos de idade manteve contato com seu pai de
maneira razoavelmente regular, mas após o nascimento de sua irmã, a qual ainda não
conhece, fruto de novo relacionamento conjugal de seu pai, este afastou-se definitivamente.
Em torno de quinze anos de afastamento, todas as tentativas de aproximação efetivadas
pelo demandante restaram infrutíferas, não podendo desfrutar da companhia e dedicação
de seu pai, já que este não compareceu até mesmo em datas importantes, como
aniversários e formatura. Fundamenta o seu pedido, afirmando que a Constituição
Federal de 1988, no artigo 227, quando prevê o direito da criança à convivência familiar e
a coloca a salvo de toda forma de negligência, não se dirige somente ao Estado, à
sociedade ou a estranhos mas a cada membro da própria família. Alega, ainda, que
desenvolveu sintomas psicopatológicos e que o tratamento psicológico ao qual se submete
há mais de dez anos advém da desestruturação causada pelo abandono paterno. Vicente,

Michell Nunes Midlej Maron 64


EMERJ – CP V Direito Civil V

devidamente citado, contestou o feito sob o fundamento de que não há lei que o obrigue a
conviver com alguém com quem não sente qualquer afinidade e, além do mais, não há
nexo de causalidade entre o seu afastamento e o desenvolvimento de doenças psicológicas
pelo demandante. Concluiu, afirmando que, quando à sua obrigação alimentar, sempre
supriu as necessidades do filho. Diante do caso, decida fundamentadamente.

Resposta à Questão 3

A posição majoritária é de que a falta de afeto não gera danos morais. Contudo, a
questão ainda é discutível.
Veja o REsp. 757.411, dispondo incabível, mas logo abaixo veja a decisão do
TJ/MG que gerou este REsp., na qual o dano moral foi reconhecido:

“REsp 757411 / MG. RECURSO ESPECIAL. Relator Ministro FERNANDO


GONÇALVES. Órgão Julgador - QUARTA TURMA. Data do Julgamento:
29/11/2005. Data da Publicação/Fonte: DJ 27/03/2006 p. 299.
Ementa: RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO.
DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDADE.
1. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo
ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono
afetivo, incapaz de reparação pecuniária.
2. Recurso especial conhecido e provido.”

“Apelação Cível nº 408.550-5 TJMG Rel. Unias Silva; Data do Julgamento:


01/04/2004 - INDENIZAÇÃO DANOS MORAIS – RELAÇÃO PATERNO-
FILIAL - PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - PRINCÍPIO
DA AFETIVIDADE.
A dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à
convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro
no princípio da dignidade da pessoa humana. A dor sofrida pelo filho, em virtude
do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo,
moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no princípio da dignidade da
pessoa humana.”

Tema VII

Poder familiar. Histórico. Titularidade. Exercício quanto à pessoa do filho. Do usufruto e da administração
dos bens dos filhos menores. Bens que se excluem da administração e do usufruto. Suspensão, perda e
extinção. Procedimento. Competência. Da família substituta. Guarda com fins previdenciários. Adoção no
Código Civil de pessoa maior de idade.

Notas de Aula10

1. Poder familiar

10
Aula ministrada pela professora Katylene Collyer Pires de Figueiredo, em 26/2/2010.

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EMERJ – CP V Direito Civil V

Este instituto representa o que outrora se chamava de pátrio poder, que refletia um
poder dos pais em relação aos filhos. Historicamente, o pai tinha até mesmo poder de vida e
morte sobre os filhos.
Com o CC de 2002, a nomenclatura se modificou, passando a ser poder familiar, e
mesmo este nome é criticado pela doutrina. Isto porque na verdade não se trata de um
poder, realmente, estando mais claro como poder-dever, tendo a faceta de dever mais
imposição do que a de poder. Também o termo “familiar” é criticado pela doutrina, pois os
titulares do poder familiar são somente os pais, e não a família inteira, como o nome parece
indicar. Morto um dos pais, o poder familiar se concentra no outro, supérstite. Veja os
artigos 1.630 e 1.631 do CC:

“Art. 1.630. Os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores.”

“Art. 1.631. Durante o casamento e a união estável, compete o poder familiar aos
pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade.
Parágrafo único. Divergindo os pais quanto ao exercício do poder familiar, é
assegurado a qualquer deles recorrer ao juiz para solução do desacordo.”

Não é porque um dos pais tem a guarda exclusiva que o outro deixou de ter poder
familiar sobre o filho: o poder persiste para os dois. Veja o artigo 1.632 do CC:

“Art. 1.632. A separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não


alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros
cabe, de terem em sua companhia os segundos.”

Havendo divergência no exercício do poder familiar, os pais poderão levar a juízo a


controvérsia, quer estejam casados ou não. Não há prevalência da vontade de nenhum
destes.
Caso curioso, recente, foi a constatação de danos morais para a mãe que se viu
ausente do batismo do filho, porque o pai ocultou a data em que este se realizaria. Decorre
diretamente do poder familiar o direito de estar presente aos fatos da vida da criança, e a
perda de um destes fatos pode surtir dano moral ao pai prejudicado pelo outro ascendente.
O direito ao convívio familiar assiste aos pais sempre, a despeito de estarem separados ou
casados – o convívio é em prol da criança. Veja as notas do julgado, do STJ, constantes do
informativo 421 desta Corte:

“DANOS MORAIS. BATISMO.


O cerne da questão é definir se configura dano moral o fato de o pai separado da
mãe batizar o filho sem o conhecimento dela. A Turma, por maioria, entendeu que,
na hipótese, tratando-se da celebração de batismo, ato único e significativo na vida
da criança, ele deve, sempre que possível, ser realizado na presença de ambos os
pais. Assim, o recorrido (pai), ao subtrair da recorrente (mãe) o direito de
presenciar a referida celebração, cometeu ato ilícito, ocasionando-lhe danos morais
nos termos do art. 186 do CC/2002. Observou-se que a realização do batizado sob
a mesma religião seguida pela mãe não ilidiu a conduta ilícita já consumada. REsp
1.117.793-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 4/2/2010.”

Sobre o exercício do poder familiar, veja o artigo 1.634 do CC:

Michell Nunes Midlej Maron 66


EMERJ – CP V Direito Civil V

“Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:
I - dirigir-lhes a criação e educação;
II - tê-los em sua companhia e guarda;
III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;
IV - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais
não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar;
V - representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após
essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;
VI - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;
VII - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua
idade e condição.”

Os pais, com o poder familiar, têm direito a reclamar o filho de quem quer que
ilegalmente o esteja detendo. O instrumento para tanto é a busca e apreensão do menor.
O inciso VII deste artigo supra permite que os pais exijam do filho a realização de
pequenos serviços domésticos, como a arrumação da casa. Não permite, este dispositivo,
que os pais empreguem seus filhos em trabalhos árduos, tampouco que obriguem-nos a
trabalhar em emprego regular.
As obrigações dos pais se estendem apenas até os dezoito anos, mas a obrigação
alimentar tem se estendido potencialmente até os vinte e quatro anos, quando o filho estiver
cursando ensino superior. Esta idade não se limitou pela duração do curso, mas sim por
uma analogia à legislação do IR, na qual o filho pode ser declarado como dependente até
esta idade. Sobre a extinção do poder familiar, veja o artigo 1.635 do CC:

“Art. 1.635. Extingue-se o poder familiar:


I - pela morte dos pais ou do filho;
II - pela emancipação, nos termos do art. 5o, parágrafo único;
III - pela maioridade;
IV - pela adoção;
V - por decisão judicial, na forma do artigo 1.638.”

Pode haver também a suspensão do poder familiar, na forma do artigo 1.637 do CC:

“Art. 1.637. Se o pai, ou a mãe, abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a
eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum
parente, ou o Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela
segurança do menor e seus haveres, até suspendendo o poder familiar, quando
convenha.
Parágrafo único. Suspende-se igualmente o exercício do poder familiar ao pai ou à
mãe condenados por sentença irrecorrível, em virtude de crime cuja pena exceda a
dois anos de prisão.”

A condenação criminal por prazo maior do que dois anos leva à suspensão
automática do poder familiar; por prazo menor, pode haver ação de suspensão do poder
familiar, na qual se deve comprovar que o fato penal é também atentatório aos deveres do
pai.
A perda do poder familiar tem as causas arroladas no artigo 1.638 do CC:

“Art. 1.638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que:
I - castigar imoderadamente o filho;
II - deixar o filho em abandono;
III - praticar atos contrários à moral e aos bons costumes;

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EMERJ – CP V Direito Civil V

IV - incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente.”

O abandono não tem prazo fixo para se configurar. Pode ser imediato – pais que
lançam seus filhos na rua, deixando-os à própria sorte –, ou pode ser no curso de um
período longo, variando na doutrina de três meses a um ano, quando abandonado em
abrigos públicos, por exemplo.
Os atos atentatórios à moral ou costumes, para causar a perda do poder familiar,
devem ser graves, capazes de expor a criança a desvirtuamentos morais severos. A
constatação é casuística.
A Defensoria Pública poderia ajuizar ação de perda ou suspensão do poder familiar,
em nome do filho? A jurisprudência não tem admitido, porque se trataria de uma auto-
nomeação do defensor como curador especial, enquanto que o artigo 1.692 do CC fala que
quem nomeia o curador é o juiz. Contudo, a DP tem tese de que tem esta legitimidade, esta
prerrogativa de se auto-nomear. Veja o artigo mencionado:

“Art. 1.692. Sempre que no exercício do poder familiar colidir o interesse dos pais
com o do filho, a requerimento deste ou do Ministério Público o juiz lhe dará
curador especial.”

Debalde a discussão sobre a DP, a legitimidade do MP para esta ação é


inquestionável. O procedimento judicial é comum, e a competência é do foro do local em
que a criança se encontre, sem maiores questionamentos.

2. Usufruto e administração dos bens dos filhos menores

Os pais têm, naturalmente, o usufruto e o poder de administrar os bens dos filhos


menores. A malversação dos bens, o uso ou administração destes que seja conflitante com o
interesse do menor, pode levar à suspensão do poder familiar.
Os bens de filhos maiores de dezesseis anos, provenientes de seu trabalho, são
excluídos do usufruto e administração pelos pais. Veja os artigos 1.689 a 1.693 do CC:

“Art. 1.689. O pai e a mãe, enquanto no exercício do poder familiar:


I - são usufrutuários dos bens dos filhos;
II - têm a administração dos bens dos filhos menores sob sua autoridade.”
“Art. 1.690. Compete aos pais, e na falta de um deles ao outro, com exclusividade,
representar os filhos menores de dezesseis anos, bem como assisti-los até
completarem a maioridade ou serem emancipados.
Parágrafo único. Os pais devem decidir em comum as questões relativas aos filhos
e a seus bens; havendo divergência, poderá qualquer deles recorrer ao juiz para a
solução necessária.”

“Art. 1.691. Não podem os pais alienar, ou gravar de ônus real os imóveis dos
filhos, nem contrair, em nome deles, obrigações que ultrapassem os limites da
simples administração, salvo por necessidade ou evidente interesse da prole,
mediante prévia autorização do juiz.
Parágrafo único. Podem pleitear a declaração de nulidade dos atos previstos neste
artigo:
I - os filhos;
II - os herdeiros;
III - o representante legal.”

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EMERJ – CP V Direito Civil V

“Art. 1.692. Sempre que no exercício do poder familiar colidir o interesse dos pais
com o do filho, a requerimento deste ou do Ministério Público o juiz lhe dará
curador especial.”

“Art. 1.693. Excluem-se do usufruto e da administração dos pais:


I - os bens adquiridos pelo filho havido fora do casamento, antes do
reconhecimento;
II - os valores auferidos pelo filho maior de dezesseis anos, no exercício de
atividade profissional e os bens com tais recursos adquiridos;
III - os bens deixados ou doados ao filho, sob a condição de não serem usufruídos,
ou administrados, pelos pais;
IV - os bens que aos filhos couberem na herança, quando os pais forem excluídos
da sucessão.”

3. Família substituta

A livre postura à adoção do menor abandonado não é a primeira opção. A nova Lei
de Adoção, Lei 12.010/09, comanda que, antes de abrir esta opção, se pesquise se na
família extensa – os demais parentes consangüíneos remanescentes da criança – desejam
ter-lhe a guarda, adotando-a, a fim de manter os laços originais da criança. Não havendo
este interesse da família extensa, ou não havendo possibilidade desta fazê-lo, buscar-se-á a
família substituta.
Na família extensa, os parentes de grau mais próximo terão preferência sobre o grau
mais remoto. Veja o artigo 28 do ECA, alterado pela Lei 12.010/09:

“Art. 28. A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou


adoção, independentemente da situação jurídica da criança ou adolescente, nos
termos desta Lei.
§ 1º Sempre que possível, a criança ou o adolescente será previamente ouvido por
equipe interprofissional, respeitado seu estágio de desenvolvimento e grau de
compreensão sobre as implicações da medida, e terá sua opinião devidamente
considerada. (Redação dada pela Lei nº 12.010, de 2009)
§ 2º Tratando-se de maior de 12 (doze) anos de idade, será necessário seu
consentimento, colhido em audiência. (Redação dada pela Lei nº 12.010, de 2009)
§ 3º Na apreciação do pedido levar-se-á em conta o grau de parentesco e a relação
de afinidade ou de afetividade, a fim de evitar ou minorar as consequências
decorrentes da medida. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)
§ 4º Os grupos de irmãos serão colocados sob adoção, tutela ou guarda da mesma
família substituta, ressalvada a comprovada existência de risco de abuso ou outra
situação que justifique plenamente a excepcionalidade de solução diversa,
procurando-se, em qualquer caso, evitar o rompimento definitivo dos vínculos
fraternais. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)
§ 5º A colocação da criança ou adolescente em família substituta será precedida de
sua preparação gradativa e acompanhamento posterior, realizados pela equipe
interprofissional a serviço da Justiça da Infância e da Juventude, preferencialmente
com o apoio dos técnicos responsáveis pela execução da política municipal de
garantia do direito à convivência familiar. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)
§ 6º Em se tratando de criança ou adolescente indígena ou proveniente de
comunidade remanescente de quilombo, é ainda obrigatório: (Incluído pela Lei nº
12.010, de 2009)
I - que sejam consideradas e respeitadas sua identidade social e cultural, os seus
costumes e tradições, bem como suas instituições, desde que não sejam

Michell Nunes Midlej Maron 69


EMERJ – CP V Direito Civil V

incompatíveis com os direitos fundamentais reconhecidos por esta Lei e pela


Constituição Federal; (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)
II - que a colocação familiar ocorra prioritariamente no seio de sua comunidade ou
junto a membros da mesma etnia; (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)
III - a intervenção e oitiva de representantes do órgão federal responsável pela
política indigenista, no caso de crianças e adolescentes indígenas, e de
antropólogos, perante a equipe interprofissional ou multidisciplinar que irá
acompanhar o caso. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009).”

Os avós podem requerer a guarda do menor. O juiz, no caso concreto, verificará se


são mesmo eles que desempenharão a guarda, a fim de evitar a fraude previdenciária, pois
se não há esta guarda de fato, esta se requer apenas com fins de obtenção, pelo menor, de
pensionamento – o que não é admissível. Se a guarda for realmente dos avós, pode ser
deferida, e o efeito previdenciário seria devido.
Ocorre que a lei previdenciária, em recente alteração, consignou vedação aos efeitos
previdenciário para menores que estejam sob guarda, o que tem gerado muita polêmica
judicial. A posição jurisprudencial hoje firmada é a acima exposta: a guarda firmada
unicamente para obter efeitos previdenciários não é admitida, mas a guarda real tem como
consequencia devida a geração destes efeitos previdenciários, não podendo a lei obstar
estes efeitos. O STJ já asseverou que esta previsão legal é inconstitucional, contrária aos
princípios da proteção integral da criança, da solidariedade, etc.
Por fim, vale ainda mencionar que a adoção do menor de idade é regida pelo ECA, e
a adoção de maior é regida pelo CC, recentemente alterado também pela Lei 12.010/09,
como se vê nos artigos 1.618 e 1.619 do CC:

“Art. 1.618. A adoção de crianças e adolescentes será deferida na forma prevista


pela Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente.
(Redação dada pela Lei nº 12.010, de 2009).”

“Art. 1.619. A adoção de maiores de 18 (dezoito) anos dependerá da assistência


efetiva do poder público e de sentença constitutiva, aplicando-se, no que couber, as
regras gerais da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do
Adolescente. (Redação dada pela Lei nº 12.010, de 2009).”

Casos Concretos

Questão 1

A avó de José Maria, criança com 7 anos de idade, requereu a guarda do neto
através de processo judicial. Alega que sua filha Maria Alice, mãe da criança, se encontra
desempregada e passou a residir na casa da autora, juntamente com o menino, informando
que o pai da criança não o registrou e é desconhecido. A autora teme que venha a falecer e
seu neto fique sem o amparo previdenciário como seu dependente. O estudo social
esclarece que a situação perdura há mais de um ano e que a avó materna ampara José
Maria moralmente e materialmente, pois ela colabora nos cuidados com o menino e arca
com todas as despesas de alimentação, vestuário e escolares. O Ministério Público
ressaltou que a Lei nº 9.528/97, que conferiu nova redação ao artigo 16 da Lei de
Benefícios da Previdência Social, suprimiu o menor sob a guarda do rol de dependentes do

Michell Nunes Midlej Maron 70


EMERJ – CP V Direito Civil V

segurado. O juiz poderia conceder a guarda excepcionalmente? A criança seria


dependente da avó para fins previdenciários? Fundamente.

Resposta à Questão 1

O juiz pode deferir a guarda em situações excepcionais. A situação econômica


precária pode não ser causa para perda do poder familiar, mas pode causar a privação de
sustento à criança. Deve-se evitar a violação de direito fundamental da criança, direito à
saúde e educação. Com relação à Lei 9.528/97 deve-se analisar sob a ótica da Constituição
Federal que no artigo 227 determina ser dever da família da sociedade e do Estado
assegurar à criança os direitos à saúde, à alimentação, entre outros direitos fundamentais,
com absoluta prioridade, devendo ocorrer a prevalência do ECA sobre a lei previdenciária,
considerando o menor sob guarda como depende para os efeitos previdenciários (artigo 33,
§3º do ECA). Há divergência:
“2003.001.30740 - APELACAO CIVEL ; DES. LETICIA SARDAS - Julgamento:
04/05/2004 - OITAVA CAMARA CIVEL. GUARDA DE MENOR. POSSE E
GUARDA DE NETO. BENEFICIO PREVIDENCIARIO. ESTATUTO DA
CRIANCA E DO ADOLESCENTE.
Guarda de menor requerida pela avo' materna. Guarda previdenciaria. Estatuto da
Crianca e do Adolescente. Excepcionalidade. Artigo 33, par.2.. 1.
Excepcionalmente, deferir-se-a' a guarda, fora dos casos de tutela e adocao, para
atender situacoes peculiares ou suprir a falta eventual dos pais ou responsavel,
podendo ser deferido o direito de representacao para a pratica de determinados
atos. 2. Aplicação do par. 2. do artigo 33 do Estatuto da Crianca e do Adolescente.
3. A excepcionalidade a que se refere o texto legal, para atender situacoes
peculiares, sera' tanto mais frequente quanto menos se organizarem e
implementarem programas de assistencia `a familia de baixa renda. 4. A situacao
economica precaria, embora nao seja causa para a perda ou a suspensao do patrio
poder (cf. artigo 23 do ECA), impede, muitas vezes, o exercicio efetivo da guarda
dos filhos de pais que trabalham todo dia e nao contam com creches ou escolas
publicas ou comunitarias. 5. O desemprego ou o sub-emprego acarreta a falta
concreta de alimentos e ate' mesmo de habitacao digna, ensejando a transferencia
da guarda, preferencialmente a pessoas do proprio grupo familiar ou do mesmo
ambiente socio-cultural da familia natural, preservando-se a identidade da crianca
ou do adolescente, bem como seus vinculos com os pais biologicos. 6. Nao
obstante a vigencia do ECA, persiste a possibilidade de se deferir a guarda para
fins previdenciarios, como modalidade de guarda especial. 7. A finalidade da
guarda especial autorizada pelo par. 2. do artigo 33 do ECA e' evitar a violacao de
direito fundamental, tal como o direito `a saude e `a educacao. 8. O Regulamento
de Beneficios da Previdencia Social - Decreto 83.000/39, autoriza que o segurado
indique pessoas como seu dependente, possibilitando o recebimento de beneficios.
9. Desprovimento do recurso, por maioria. Ementa do voto vencido do Des.
Adriano Celso Guimaraes: Guarda. Requerimento formulado por avo' materna.
Menor que reside na companhia de sua mae, que e' sadia e a trata adequadamente.
Ausencia de elementos faticos que justifiquem a mudanca. Provimento do
recurso.”

“2005.001.20959 - APELACAO CIVEL; DES. CLAUDIO DE MELLO


TAVARES - Julgamento: 21/09/2005 - DECIMA PRIMEIRA CAMARA CIVEL;
GUARDA DE MENOR. GUARDA COMPARTILHADA. POSSE E GUARDA
DE NETO. INTERESSE DE(O) MENOR. PREVALENCIA.

Michell Nunes Midlej Maron 71


EMERJ – CP V Direito Civil V

Guarda compartilhada de menor. Genitor e avos paternos. Dever de prestacao


material moral e educacional `a crianca. Existência de penalidades na hipotese do
descumprimento das obrigacoes. Art. 33, par. 1., da Lei n. 8.069/90. Abdicando os
pais do menor de exercerem a guarda de fato e de direito sobre o filho e sem
condicoes de lhe prestar qualquer assistencia material. Nao ha' obstaculo a
concessao da medida de carater provisorio sujeita a fiscalizacao do Ministerio
Publico. Interesse do menor que deve prevalecer ante a desproporcao dos
resultados que advenham da sentenca `a previdencia social. Recurso conhecido e
improvido.”

“REsp 817978 / RN ; Relator(a): Ministra LAURITA VAZ; Data do Julgamento:


12/06/2006. PROCESSUAL CIVIL E PREVIDENCIÁRIO. RECURSO
ESPECIAL. AÇÃO RESCISÓRIA. ART. 485, V, DO CPC. VIOLAÇÃO A
LITERAL DISPOSIÇÃO DE LEI. NÃO-OCORRÊNCIA. PENSÃO POR
MORTE. MENOR SOB GUARDA. DEPENDENTE DO SEGURADO.
EQUIPARAÇÃO A FILHO. LEGISLAÇÃO DE PROTEÇÃO AO MENOR E
ADOLESCENTE. OBSERVÂNCIA. 1. Incabível ação rescisória quando
inexistente ofensa a literal disposição de lei (art. 485, inciso V, do CPC). 2. A Lei
n.º 9.528/97, dando nova redação ao art. 16 da Lei de Benefícios da Previdência
Social, suprimiu o menor sob guarda do rol de dependentes do segurado. 3. Ocorre
que, a questão referente ao menor sob guarda deve ser analisada segundo as regras
da legislação de proteção ao menor: a Constituição Federal – dever do poder
público e da sociedade na proteção da criança e do adolescente (art. 227, caput, e §
3º, inciso II) e o Estatuto da Criança e do Adolescente – é conferido ao menor sob
guarda a condição de dependente para todos os efeitos, inclusive previdenciários
(art. 33, § 3º, Lei n.º 8.069/90). Precedentes da Quinta Turma. 4. Recurso especial
desprovido.”

Questão 2

Necessitando sujeitar-se a internação hospitalar, para cuidar da saúde, Josélia,


viúva, deixa seu filho, Paulo, de apenas dois anos de idade, sob os cuidados de uma
vizinha, que prontamente se prontificou ao favor. Tendo complicações, permaneceu
hospitalizada por três meses, quando, então recebeu alta, retornando ao lar.
Imediatamente foi à casa de sua vizinha pegar seu filho, tendo esta, entretanto se recusado
a entregar a criança. Foi orientada por um advogado a propor a ação de guarda do filho.
Comente a hipótese.

Resposta à Questão 2

Não está correta a orientação pois já tem a mãe a guarda legal do filho e o direito-
dever de tê-lo em sua guarda e companhia, decorrentes do poder familiar, podendo reclamá-
lo de quem ilegalmente o detenha. A ação própria é a busca e apreensão, pelo procedimento
comum ordinário, já que de nenhuma ação principal tem que se valer para ter a guarda de
seu filho.

Michell Nunes Midlej Maron 72


EMERJ – CP V Direito Civil V

Tema VIII

Guarda compartilhada. Regulamentação de convívio entre pais e filhos. Imposição de multa. Uso do nome e
abandono afetivo. Dano moral nas relações familiares. Síndrome da alienação parental. Aplicação do
Estatuto da Criança e do Adolescente nas Varas de Família. Direito de convivência dos avós com os netos. A
Lei 11.698/08.

Notas de Aula11

1. Guarda

A guarda é inerente ao poder familiar. Representa muito mais um dever do que um


direito dos responsáveis pelos menores; na verdade, é um complexo de direitos e
11
Aula ministrada pela professora Isabella Pena Lucas, em 1/3/2010.

Michell Nunes Midlej Maron 73


EMERJ – CP V Direito Civil V

obrigações do guardião em relação ao menor, guardião que não é necessariamente mãe ou


pai, podendo mesmo ser um terceiro, parente ou não. A guarda, portanto pode ser instituto
da família natural ou da família substituta. É importante frisar, portanto, que a família
substituta pode ser formada por mera guarda, e não somente pela adoção, como se pode
pensar.
A concessão da guarda a terceira pessoa, que não sejam os próprios pais, não altera
em nada o poder familiar. Este poder-dever continua existindo, ainda que a guarda seja
passada a terceira pessoa – o que ocorre comumente quando a criança se encontra em
situação de risco quando junto aos pais. Se destacada a guarda destes, provisoriamente ou
não, não perderão o poder familiar por isso. A concessão da guarda a outra pessoa não
afasta este poder, que só pode ser desnaturado pela sua efetiva perda.
Por assim ser, os pais sem guarda, mas ainda com poder familiar, conservam direito
à visitação, e ainda têm obrigação alimentar perante aquele menor – o poder familiar é
poder-dever, como dito. Ocorre que se a não visitação for recomendável ao interesse do
menor, pode até mesmo ser restrita, ou controlada, ou, em casos extremos, vedada, a
critério do juiz. Havendo ou não visitação, a pensão alimentar ainda poderá ser imposta aos
pais em favor do menor.
A guarda recebe algumas classificações doutrinárias. A primeira é a guarda
unilateral, ou exclusiva, que é aquela conferida ao pai ou à mãe. Há também a guarda
partilhada, que não se confunde com a guarda compartilhada. A partilhada, também
chamada guarda alternada, se trata da guarda em que há uma divisão expressamente
delimitada entre os guardiães, no que diz respeito aos seus direitos e deveres. Especificam-
se os dias e as tarefas a cargo de cada um. Normalmente, os termos da guarda partilhada são
estabelecidos por acordo, mas o juiz pode fixar regras ele próprio, quando acordo não
houver. As regras fixarão competências estanques para cada um dos guardiães: por
exemplo, a mãe ficará a cargo das decisões sobre a educação, enquanto o pai ficará a cargo
das questões extracurriculares – o que a mãe decide sobre colégio é definitivo, e o que o pai
decidir sobre esportes também será definitivo.
A guarda compartilhada, por seu turno, consiste num exercício conjunto da guarda,
um exercício concomitante, tanto das obrigações quanto dos direitos sobre o menor. Neste
caso, todas as decisões precisam ser tomadas em conjunto, não havendo definição de
competências estanques para cada guardião. O plano de guarda, como por exemplo os dias
da criança com cada um, são definidos de comum acordo, à medida em que a relação se
desenvolver, sem prefixação exata. Há um livre trânsito da criança.
A psicologia critica a guarda compartilhada pela suposta falta de referência estável
que esta incute no menor. A volatilidade de seu estabelecimento, cada dia em um lugar,
supostamente desenvolveria uma sensação traumática de instabilidade nesta criança.
Dizem, os psicólogos, que esta criança também perde a noção de limites, porque
naturalmente tentará tirar vantagens desta situação, muitas das vezes jogando os pais um
contra o outro, instalando-se verdadeira competição entre eles, e, também, promovendo
chantagens emocionais em seus genitores, que, ao menor brado de disciplina, seriam por ele
confrontados com a ameaça de que ficará com o outro genitor.
Maria Berenice Dias, teorizando sobre a guarda compartilhada, defende que o ideal
seria o que ela chama de guarda de aninhamento. A dinâmica que propõe é a seguinte: cada
um dos pais tem sua residência, e criar-se-ia uma terceira residência, onde residiria o
menor, e ao invés de a criança transitar entre lares, quem se revezaria na presença do menor

Michell Nunes Midlej Maron 74


EMERJ – CP V Direito Civil V

seriam os pais: o menor ficaria estável em sua casa, e cada dia um dos pais para lá se
deslocaria, a fim de com ela permanecer, revezando-se. Vê-se que é uma teoria
absolutamente infactível, além de não ter qualquer comprovação científica de que seja mais
benéfica ao menor.
O que se pode afirmar é que a guarda compartilhada ainda não é necessariamente a
melhor opção, nem a pior. A casuística ainda continua sendo a guia do juízo do que é
melhor para a criança. Contudo, o legislador parece ter entendido que a guarda
compartilhada é um sistema preferencial, como se vê na redação do artigo 1.584, § 2º, do
CC, que diz que com ou sem acordo a guarda compartilhada será preferida. Veja os artigos
1.583 e 1.584 do CC, que tratam da guarda unilateral e da compartilhada (sem exaurir as
espécies possíveis, pois há a guarda partilhada e a dada a família substituta, por exemplo) :

“Art. 1.583. A guarda será unilateral ou compartilhada. (Redação dada pela Lei nº
11.698, de 2008).
§ 1º Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores ou a
alguém que o substitua (art. 1.584, § 5o) e, por guarda compartilhada a
responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que
não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns.
(Incluído pela Lei nº 11.698, de 2008).
§ 2º A guarda unilateral será atribuída ao genitor que revele melhores condições
para exercê-la e, objetivamente, mais aptidão para propiciar aos filhos os seguintes
fatores: (Incluído pela Lei nº 11.698, de 2008).
I – afeto nas relações com o genitor e com o grupo familiar; (Incluído pela Lei nº
11.698, de 2008).
II – saúde e segurança; (Incluído pela Lei nº 11.698, de 2008).
III – educação. (Incluído pela Lei nº 11.698, de 2008).
§ 3º A guarda unilateral obriga o pai ou a mãe que não a detenha a supervisionar
os interesses dos filhos. (Incluído pela Lei nº 11.698, de 2008).
§ 4º (VETADO). (Incluído pela Lei nº 11.698, de 2008).”

“Art. 1.584. A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser: (Redação dada pela
Lei nº 11.698, de 2008).
I – requerida, por consenso, pelo pai e pela mãe, ou por qualquer deles, em ação
autônoma de separação, de divórcio, de dissolução de união estável ou em medida
cautelar; (Incluído pela Lei nº 11.698, de 2008).
II – decretada pelo juiz, em atenção a necessidades específicas do filho, ou em
razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deste com o pai e com a
mãe. (Incluído pela Lei nº 11.698, de 2008).
§ 1º Na audiência de conciliação, o juiz informará ao pai e à mãe o significado da
guarda compartilhada, a sua importância, a similitude de deveres e direitos
atribuídos aos genitores e as sanções pelo descumprimento de suas cláusulas.
(Incluído pela Lei nº 11.698, de 2008).
§ 2º Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será
aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada. (Incluído pela Lei nº
11.698, de 2008).
§ 3º Para estabelecer as atribuições do pai e da mãe e os períodos de convivência
sob guarda compartilhada, o juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério
Público, poderá basear-se em orientação técnico-profissional ou de equipe
interdisciplinar. (Incluído pela Lei nº 11.698, de 2008).
§ 4º A alteração não autorizada ou o descumprimento imotivado de cláusula de
guarda, unilateral ou compartilhada, poderá implicar a redução de prerrogativas
atribuídas ao seu detentor, inclusive quanto ao número de horas de convivência
com o filho. (Incluído pela Lei nº 11.698, de 2008).

Michell Nunes Midlej Maron 75


EMERJ – CP V Direito Civil V

§ 5º Se o juiz verificar que o filho não deve permanecer sob a guarda do pai ou da
mãe, deferirá a guarda à pessoa que revele compatibilidade com a natureza da
medida, considerados, de preferência, o grau de parentesco e as relações de
afinidade e afetividade. (Incluído pela Lei nº 11.698, de 2008).”

O princípio que regula a escolha da modalidade de guarda é o do melhor interesse


do menor, que é princípio que faz referência qualitativa às condições da guarda, e não
quantitativa em relação ao aspecto material dos envolvidos. A riqueza material é um só dos
quesitos que favorecem a guarda, a não o único.
Como visto, a guarda compartilhada pode ser fixada forçosamente pelo juízo, mas o
ideal é que seja opção feita pelos guardiães, porque se mesmo com consenso é potencial
fonte de conflitos, sem acordo é ainda mais perigosa sua adoção.
Havendo guarda compartilhada, ainda assim é possível a fixação de alimentos,
porque pode ser que um dos guardiães tenha menores recursos para custear a vida do
menor, mantendo o padrão de vida de antes da separação. Em verdade, é ainda mais
fundamental esta imposição de alimentos, aqui, porque se a ideia da guarda compartilhada é
a manutenção de dois lares equivalentes para a criança, se um deles oferece maiores
confortos, está claro que será de preferência do menor, detrindo naturalmente o efetivo
compartilhamento, pois que o guardião menos abastado terá a preferência do menor.
A guarda é sempre provisória. Mesmo chamada de definitiva, pode ser alterada,
sempre em prol do melhor interesse do menor.
Veja os demais dispositivos do CC sobre o tema, artigos 1.585 a 1.590:

“Art. 1.585. Em sede de medida cautelar de separação de corpos, aplica-se quanto


à guarda dos filhos as disposições do artigo antecedente.”

“Art. 1.586. Havendo motivos graves, poderá o juiz, em qualquer caso, a bem dos
filhos, regular de maneira diferente da estabelecida nos artigos antecedentes a
situação deles para com os pais.”

“Art. 1.587. No caso de invalidade do casamento, havendo filhos comuns,


observar-se-á o disposto nos arts. 1.584 e 1.586.”

“Art. 1.588. O pai ou a mãe que contrair novas núpcias não perde o direito de ter
consigo os filhos, que só lhe poderão ser retirados por mandado judicial, provado
que não são tratados convenientemente.”

“Art. 1.589. O pai ou a mãe, em cuja guarda não estejam os filhos, poderá visitá-
los e tê-los em sua companhia, segundo o que acordar com o outro cônjuge, ou for
fixado pelo juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e educação.”

“Art. 1.590. As disposições relativas à guarda e prestação de alimentos aos filhos


menores estendem-se aos maiores incapazes.”

Há ainda que se mencionar a guarda para fins exclusivamente previdenciários, que


não é admitida em nosso ordenamento. Veja: um dos efeitos da guarda é a possibilidade de
nomear-se o menor como dependente previdenciário. Quando a guarda for pretendida, pelo
guardião, com o único intento de permitir esta nomeação como dependente, o fato é
considerado fraudulento, burla às regras previdenciárias. É bem comum esta dinâmica em
relação aos avós, que pretendem esta guarda para favorecer o neto, mas se o intento
exclusivo for o de promover a dependência previdenciária, não se admite.

Michell Nunes Midlej Maron 76


EMERJ – CP V Direito Civil V

2. Abandono afetivo e síndrome da alienação parental

Estes dois eventos tratam-se de duas faces de uma mesma moeda, na maior parte
das vezes. Também correlato ao tema se pode abordar o cabimento de dano moral em
relações familiares, podendo-se adiantar desde logo: é possível a causação de dano moral
compensável na esfera familiar; contudo, a perturbação real da personalidade deve ser bem
verificada, na casuística.
O abandono afetivo consiste no descaso emocional de um dos pais, ou ambos, pelo
filho. A assistência moral, o afeto, não está presente, mesmo que a assistência material
esteja em perfeita ordem. A geração de dano moral pelo abandono afetivo, porém, é
controversa, sendo difícil se admitir esta possibilidade, pela exclusiva sonegação afetiva.
Mais que isso, é fundamental apreciar, em um pleito de reconhecimento deste dano moral,
se o pai imputado realmente se alheou afetivamente por sua exclusiva vontade, e não pela
ocorrência de alienação parental contra si empreendida pelo outro genitor. A verdade é que,
na maior parte das vezes, é a alienação parental determinada pelo outro guardião a causa do
abandono afetivo.
A síndrome da alienação parental consiste em uma manipulação da criança por um
dos pais, que, consciente ou inconscientemente, a afasta afetivamente do outro. Esta
manipulação se dá por meio de críticas freqüentes ao outro pai, chantagens, e diversos
outros meios de tornar a figura do outro pai menos afetuosa ao filho, praticamente criando
uma sensação de culpa na criança por gostar do outro pai. O reflexo disso é o afastamento
do genitor pela influência do outro, o que gera o abandono afetivo, só que não imputável
exclusivamente ao que abandonou.
A rejeição afetiva, portanto, pode sim causar danos morais, mas a sua imputação
deve ser bem aferida, sob pena de se condenar à compensação aquele que, de fato, era
também uma vítima das circunstâncias, quando da ocorrência de alienação parental.

Casos Concretos

Questão 1

Paulo casou-se com Ana e tiveram dois filhos. Formaram uma família com
convivência harmoniosa, baseada no afeto. Porém, separam-se, mas Paulo continuou
cumprindo com suas obrigações de pai, inclusive a alimentar. Ana casou com Jorge e ficou
com a guarda dos filhos. Após 20 anos, ao guardar documentos antigos, Paulo, verificou
as cadernetas escolares de seus filhos e descobriu que o tipo sangüíneo dos meninos era
diferente do seu, sendo impossível ser o verdadeiro pai. Realizado exame de DNA, restou
comprovado biologicamente que os filhos não eram de Paulo, mas de Jorge. Pergunta-se:
Cabe indenização por danos morais ao pai que cuidou e criou os filhos nascidos durante
seu casamento com a mãe deles e que, após 20 anos, descobre que não são seus filhos
biológicos? Fundamente.

Resposta à Questão 1

Michell Nunes Midlej Maron 77


EMERJ – CP V Direito Civil V

Há dano moral. O engodo a que se submeteu o pai é violação clara à sua


personalidade, sobremaneira pelo tempo em que foi mantido em erro, acerca das mentiras e
infidelidade da mãe da criança, descumprindo deveres do casamento.

Questão 2

Alexandre propôs ação em face de Vicente, seu pai, pleiteando indenização por
danos morais decorrentes do abandono afetivo por ele perpetrado. Sustenta o autor,
nascido em março de 1981, que, desde o divórcio de seus pais em 1987, época do
nascimento da filha do réu com sua segunda esposa, por ele foi descurado o dever de lhe
prestar assistência psíquica e moral, evitando-lhe o contato, apesar de cumprir a
obrigação alimentar. Aduz não ter tido oportunidade de conhecer e conviver com a meia-
irmã, além de terem sido ignoradas todas as suas tentativas de aproximação do pai, que
não comparecia a ocasiões importantes, e tinha atitude displicente. Tal situação lhe causou
extremo sofrimento e humilhação, restando caracterizada a conduta omissa culposa, a
ensejar reparação. O genitor, a seu turno, esclarece ser a demanda resultado do
inconformismo da mãe do autor com a propositura de ação revisional de alimentos, pela
qual pretende a redução da verba alimentar. Aduz ter, até maio de 1989, visitado
regularmente o filho, trazendo-o em sua companhia nos finais de semana, momento em que
as atitudes de sua mãe, com telefonemas insultuosos e instruções ao filho para agredir a
meia-irmã, tornaram a situação doméstica durante o convívio quinzenal insuportável.
Relata, além disso, ter empreendido diversas viagens, tanto pelo Brasil, quanto para o
exterior, permanecendo atualmente na África do Sul, o que compromete ainda mais a
regularidade dos encontros. Salienta que, conquanto não tenha participado da formatura
do filho ou de sua aprovação no vestibular, sempre demonstrou incentivo e júbilo por
telefone. Afirma, nesse passo, não ter ocorrido qualquer ato ilícito. Decida a questão.

Resposta à Questão 2

O autor da ilicitude não foi o pai: a própria mãe, com a alienação parental, causou o
afastamento do pai, e por isso ele não pode ser imputado. O pedido deve ser julgado
improcedente.
Veja o REsp. 757.411:

“REsp 757411 / MG. RECURSO ESPECIAL. Relator Ministro FERNANDO


GONÇALVES. Órgão Julgador - QUARTA TURMA. Data do Julgamento
29/11/2005. Data da Publicação/Fonte DJ 27/03/2006 p. 299.
Ementa: RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO.
DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDADE.
1. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo
ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono
afetivo, incapaz de reparação pecuniária.
2. Recurso especial conhecido e provido.”

Michell Nunes Midlej Maron 78


EMERJ – CP V Direito Civil V

Tema IX

A Lei Maria da Penha - Lei 11.340/06. Competência Cível. Medidas protetivas de urgência à ofendida e que
obrigam o agressor. Afastamento do lar. Proibição de determinadas condutas. Restrição ou suspensão de
visitação. Prestação de alimentos provisionais ou provisórios. Aplicação nas Varas de Família.

Notas de Aula12

1. Medidas protetivas da Lei 11.340/06

A Lei 11.340/06, Lei Maria da Penha, é bastante peculiar: este diploma tem
aplicação subsidiária do CPC e do CPP, concomitantemente, como determina o seu artigo
13:

“Art. 13. Ao processo, ao julgamento e à execução das causas cíveis e criminais


decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher aplicar-se-

12
Aula ministrada pelo professor Octávio Chagas de Araújo Teixeira, em 1/3/2010.

Michell Nunes Midlej Maron 79


EMERJ – CP V Direito Civil V

ão as normas dos Códigos de Processo Penal e Processo Civil e da legislação


específica relativa à criança, ao adolescente e ao idoso que não conflitarem com o
estabelecido nesta Lei.”

É possível a aplicação do CPC, por exemplo, em um processo eminentemente


criminal da competência do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. O
artigo 41 desta lei, porém, exclui desta a aplicabilidade da Lei 9.099/95, nos seguintes
termos:

“Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a
mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26
de setembro de 1995.”

Ocorre que ao tornar inaplicável a Lei Maria da Penha a crimes 13 de gênero, surgiu
séria discussão sobre a necessidade ou não de representação da ofendida na persecução
criminal do crime de lesão corporal leve, eis que este crime só tem a ação condicionada à
representação por conta da previsão do artigo 88 da Lei 9.099/95:

“Art. 88. Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá
de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões
culposas.”

Como o artigo 41, supra, torna inaplicável a Lei 9.099/95, e este dispositivo acima
está neste diploma, há quem sustente que a ação penal ainda seria incondicionada, mas o
STJ já vem decidindo que a restrição da aplicação do artigo 41 se refere, tem por mens
legis, apenas afastar as medidas despenalizadoras da Lei 9.099/95, e não todas as suas
providências. Veja:
“HC 157416 / MT. HABEAS CORPUS. Relator Ministro ARNALDO ESTEVES
LIMA. Órgão Julgador - QUINTA TURMA. Data do Julgamento 15/04/2010. Data
da Publicação/Fonte DJe 10/05/2010.
Ementa: PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. CRIME DE LESÃO
CORPORAL LEVE. LEI MARIA DA PENHA. NATUREZA DA AÇÃO PENAL.
REPRESENTAÇÃO DA VÍTIMA. NECESSIDADE. ORDEM CONCEDIDA.
1. A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) é compatível com o instituto da
representação, peculiar às ações penais públicas condicionadas e, dessa forma, a
não aplicação da Lei 9.099, prevista no art. 41 daquela lei, refere-se aos institutos
despenalizadores nesta previstos, como a composição civil, a transação penal e a
suspensão condicional do processo.
2. O princípio da unicidade impede que se dê larga interpretação ao art. 41, na
medida em que condutas idênticas praticadas por familiar e por terceiro, em
concurso, contra a mesma vítima, estariam sujeitas a disciplinas diversas em
relação à condição de procedibilidade.
3. A garantia de livre e espontânea manifestação conferida à mulher pelo art. 16, na
hipótese de renúncia à representação, que deve ocorrer perante o magistrado e
representante do Ministério Público, em audiência especialmente designada para
esse fim, justifica uma interpretação restritiva do art. 41 da Lei 11.340/06.

13
Como o artigo fala em “crimes”, não se aplica esta vedação às contravenções. A respeito, veja o enunciado
8 do Fonavid:

“Enunciado 8, Fonavid - O art. 41 da Lei 11.340/06 não se aplica às contravenções


penais.”

Michell Nunes Midlej Maron 80


EMERJ – CP V Direito Civil V

4. O processamento do ofensor, mesmo contra a vontade da vítima, não é a melhor


solução para as famílias que convivem com o problema da violência doméstica,
pois a conscientização, a proteção das vítimas e o acompanhamento
multidisciplinar com a participação de todos os envolvidos são medidas
juridicamente adequadas, de preservação dos princípios do direito penal e que
conferem eficácia ao comando constitucional de proteção à família.
5. Ordem concedida para determinar o trancamento da ação penal 1.320/09 em
curso na 2ª Vara Especializada de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher.” (grifo nosso)

De qualquer sorte, sempre que a condicionante for exigida, a sua ausência implica
extinção da punibilidade.
A mesma discussão se repete em relação à suspensão condicional do processo,
porque é instituto que consta do artigo 89 da Lei 9.099/95, mas que a doutrina defende ser
instituto processual penal geral, apenas incidentalmente ali colocado. Contudo, neste caso,
por entender que é medida despenalizadora que o legislador quis afastar dos Juizados da
Mulher, a jurisprudência não tem permitido sua aplicação nesta seara. Veja:

“Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um
ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia,
poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o
acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime,
presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena
(art. 77 do Código Penal).
(...)”

“HC 142017 / MG. HABEAS CORPUS. Relator Ministro NAPOLEÃO NUNES


MAIA FILHO. Órgão Julgador - QUINTA TURMA. Data do Julgamento:
19/11/2009. Data da Publicação/Fonte DJe 01/02/2010.
Ementa: HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. LESÃO CORPORAL LEVE
PRATICADA COM VIOLÊNCIA FAMILIAR CONTRA A MULHER.
INAPLICABILIDADE DA LEI 9.099/95 E, COM ISSO, DE SEU ART. 89, QUE
DISPÕE SOBRE A SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. PARECER
MINISTERIAL PELA DENEGAÇÃO DO WRIT. ORDEM DENEGADA.
1. O art. 41 da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) afastou a incidência da Lei
9.099/95 quanto aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a
mulher, independentemente da pena prevista, o que acarreta a impossibilidade de
aplicação dos institutos despenalizadores nela previstos, como a suspensão
condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/95).
2. Ademais, a suspensão condicional do processo, no caso, resta obstada pela
superveniência da sentença penal condenatória. Precedentes do STF.
3. Parecer ministerial pela denegação do writ.
4. Ordem denegada.”

Entretanto, a questão está longe de ser pacífica, pois o próprio Fonavid emitiu
enunciado contrário a esta jurisprudência:

“Enunciado 10, Fonavid - A Lei 11.340/06 não impede a aplicação da suspensão


condicional do processo nos casos que esta couber.”

As penas alternativas, por sua vez, já que trazidas pelo CP e não pela Lei 9.099/95,
são cabíveis, à exceção das eminentemente pecuniárias, como dispõe o artigo 17 da Lei
Maria da Penha. Veja o dispositivo e o enunciado 6 do Fonavid:

Michell Nunes Midlej Maron 81


EMERJ – CP V Direito Civil V

“Art. 17. É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra
a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a
substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa.”

“Enunciado 6, Fonavid - A Lei 11.340/06 não obsta a aplicação das penas


substitutivas previstas no CP, vedada a aplicação de penas de cesta básica,
prestação pecuniária ou pagamento isolado de multa.”

O sursis penal é também aplicável, eis que é sediado no CP. Veja o enunciado 7 do
Fonavid:

“Enunciado 7, Fonavid - O sursis de que trata o art. 77 do Código Penal é aplicável


aos crimes regidos pela Lei 11.340/06, quando presentes os requisitos.”

1.1. Competência

A competência da Lei Maria da Penha vem no artigo 5º deste diploma:

“Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra
a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão,
sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio
permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente
agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por
indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por
afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha
convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de
orientação sexual.”

O norte maior da competência dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar


contra a Mulher é a prática de um ato de violência doméstica de gênero, no qual a vítima
seja mulher. O conceito de violência de gênero é juridicamente indeterminado, preenchido
sociologicamente.
As medidas protetivas da mulher vêm previstas nos artigos 22 e seguintes da Lei
11.340/06, e são de duas grandes espécies: medidas protetivas de urgência que obrigam o
agressor e medidas protetivas de urgência à ofendida. O magistrado pode aplicar estas
medidas a seu critério, com razoabilidade, sem abusos e sem invadir a competência do juízo
das famílias. O Fórum Nacional da Violência Doméstica, encontro nacional dos Juizados da
Mulher, emitiu uma súmula com dezesseis enunciados, sendo pertinente a redação do
enunciado 3:

“Enunciado 3, Fonavid - A competência cível dos Juizados de Violência Doméstica


e Familiar contra a Mulher é restrita às medidas protetivas de urgência previstas na
Lei Maria da Penha, devendo as ações relativas a direito de família serem
processadas e julgadas pelas Varas de Família.”

Michell Nunes Midlej Maron 82


EMERJ – CP V Direito Civil V

Por isso, qualquer medida que não seja estritamente adstrita ao que é da
competência dos Juizados não deve ali ser tratada. Os alimentos, por exemplo, são um bom
exemplo: se não se tratar de alimentos que se tenha tornado necessários em razão da
violência de gênero contra a mulher, não serão enquadrados como medida protetiva da Lei
11.340/06, e sim como matéria de família, e a competência para sua fixação é das varas das
famílias.
A competência recursal dos Juizados da Mulher é do Tribunal, eis que o sistema que
a Lei 9.099/95 instalou não é aplicável a este juízo, por conta da expressa redação do artigo
41 da Lei Maria da Penha, já transcrito. Assim, será competente a Câmara Cível ou a
Criminal, a depender do caso – é determinado em razão da matéria –, inexistindo turma
recursal para o Juizado da Mulher.
A aplicabilidade da Lei Maria da Penha, como se sabe, é para as relações em que a
vítima mulher tenha algum vínculo com o agressor, vínculo que pode ser afetivo, de
coabitação ou mero parentesco. Para este último caso, o limite do alcance é o das relações
civis de parentesco, como se vê no enunciado 2 do Fonavid:

“Enunciado 2, Fonavid - Inexistindo coabitação ou vínculo de afeto entre


agressor(a) e ofendida, deve ser observado o limite de parentesco dos arts. 1.591 a
1595, do Código Civil, quando a invocação da proteção conferida pela Lei
11.340/06 decorrer exclusivamente das relações de parentesco.”

Destarte, quer seja vínculo natural, civil ou por afinidade, aplica-se a Lei 11.340/06
se estiver presente.

1.2. Prisão por descumprimento de medida protetiva

O artigo 20 da Lei Maria da Penha é dos mais conturbados neste diploma. Veja:

“Art. 20. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a


prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do
Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial.
Parágrafo único. O juiz poderá revogar a prisão preventiva se, no curso do
processo, verificar a falta de motivo para que subsista, bem como de novo decretá-
la, se sobrevierem razões que a justifiquem.”

Diante deste dispositivo, pode-se afirmar sem medo que é cabível a prisão em
flagrante do agressor mesmo por crime de ameaça, por exemplo, em que a pena de
detenção máxima é de seis meses, como se vê no artigo 147 do CP, se houver
descumprimento de medida protetiva. Veja:

“Ameaça
Art. 147 - Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio
simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
Parágrafo único - Somente se procede mediante representação.”

Destarte, veja a peculiaridade desta dinâmica: a medida protetiva de afastamento do


agressor lar, por exemplo, é medida cautelar de natureza cível. Se o suposto autor do fato
descumprir esta medida, que é cível, poderá sofrer prisão preventiva em razão desta

Michell Nunes Midlej Maron 83


EMERJ – CP V Direito Civil V

previsão do artigo 20, supra, combinado com o artigo 313, IV, do CPP, inserido pela Lei
11.340/06:

“Art. 313. Em qualquer das circunstâncias, previstas no artigo anterior, será


admitida a decretação da prisão preventiva nos crimes dolosos: (Redação dada pela
Lei nº 6.416, de 24.5.1977)
(...)
IV - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos
termos da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de
urgência. (Incluído pela Lei nº 11.340, de 2006)”

Mas, como dito, esta prisão tem sido altamente controvertida, nos crimes que não
levam à prisão quando do julgamento definitivo, porque o seu título é um tanto quanto sui
generis. É uma prisão imposta cautelarmente em crime que jamais acarretará prisão
definitiva, por seu pequeno potencial ofensivo, pelo que há quem sustente que se trate de
prisão inconstitucional, por ofensa à proporcionalidade, homogeneidade. Contudo, tem sido
aplicada, como se vê nos julgados abaixo, do STJ e do TJ/RJ, nessa ordem:

“HC 109674 / MT. HABEAS CORPUS. Relator Ministro OG FERNANDES.


Órgão Julgador - SEXTA TURMA. Data do Julgamento: 06/11/2008. Data da
Publicação/Fonte: DJe 24/11/2008.
Ementa: PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. AMEAÇA. LEI MARIA DA
PENHA. MEDIDA PROTETIVA. PRISÃO PREVENTIVA DEVIDAMENTE
FUNDAMENTADA.
1. A prisão cautelar, assim entendida aquela que antecede a condenação transitada
em julgado, só pode ser imposta se evidenciada a necessidade da rigorosa
providência.
2. Na hipótese, a decisão que decretou a custódia do paciente se justifica não
apenas pelo descumprimento da medida protetiva anteriormente imposta, mas
também porque baseada na possibilidade concreta de ofensa física à vítima.
3. Diante da presença dos requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal e, em
especial, da necessidade de assegurar a aplicação das medidas protetivas elencadas
pela Lei Maria da Penha, a prisão cautelar do agressor é medida que se impõe.
4. Ordem denegada.”

“0005966-90.2010.8.19.0000 - HABEAS CORPUS - 1ª Ementa. DES. RICARDO


BUSTAMANTE - Julgamento: 11/03/2010 - PRIMEIRA CAMARA CRIMINAL.
HABEAS CORPUS. LEI MARIA DA PENHA. REITERAÇÃO DE AMEAÇAS.
DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS. PRISÃO PREVENTIVA.
DECISÃO DEVIDAMENTE FUNDAMENTADA. ORDEM DENEGADA. Deve
ser mantida a prisão preventiva do paciente se a decisão que a decretou se justifica
pela reiteração das ameaças e desobediência das medidas protetivas, assim como o
rompimento de acordo firmado com a ex-companheira com a assistência da
Defensoria, o que revela que a liberdade do réu acarretará risco à integridade física
e psicológica da vítima, como também prejuízo à instrução criminal, mormente
impedindo uma oitiva tranquila das testemunhas e da vítima.”

É ainda mais estranha esta prisão quando se observa sua aplicabilidade após a
sentença final do processo, que impõe medida protetiva. Se esta medida for descumprida,
ensejará esta prisão, mas não há como se dizer que haja cautelaridade ao processo, eis que
este findou-se. É, de fato, um título prisional bastante atípico.

Michell Nunes Midlej Maron 84


EMERJ – CP V Direito Civil V

Esta prisão não tem prazo determinado, sendo mantida pelo tempo que o juiz
entender necessária e razoável, podendo se parametrizar pelas prisões cautelares existentes,
preventiva ou temporária.

Casos Concretos

Questão 1

Marialva foi vítima de pelo menos três episódios de violência doméstica, tendo seu
cônjuge, Belarmino, a agredido com empurrões e socos na cabeça na frente do filho do
casal. Além das agressões físicas sofridas durante o relacionamento, em uma oportunidade
Belarmino invadiu o local de trabalho de Marialva e passou a ofendê-la e desprestigiá-la
perante seus colegas, clientes e chefia, colocando em risco seu emprego. Marialva ingressa
com pedido liminar de afastamento do cônjuge do convívio do lar, pedindo um salário
mínimo de alimentos provisionais. Encaminhada a ação ao Juizado Especial da Violência
Familiar contra a Mulher, o juiz poderá decidir sobre o afastamento do cônjuge do lar
conjugal e fixar alimentos provisionais? Justifique.

Resposta à Questão 1

Michell Nunes Midlej Maron 85


EMERJ – CP V Direito Civil V

As medidas são cabíveis, e são da competência do Juizado da Mulher, não


representando invasão da competência das varas das famílias, quando decorrerem de
violência doméstica de gênero. A este respeito, veja os enunciados 3 e 5 do Fonavid:

“Enunciado 3, Fonavid - A competência cível dos Juizados de Violência Doméstica


e Familiar contra a Mulher é restrita às medidas protetivas de urgência previstas na
Lei Maria da Penha, devendo as ações relativas a direito de família serem
processadas e julgadas pelas Varas de Família.

“Enunciado 5, Fonavid - A competência dos Juizados de Violência Doméstica e


Familiar contra a mulher está condicionada à existência de notícia crime ou
representação criminal da vítima.”

Tema X

Regime de bens. Princípios gerais. Regime legal e convencional. Pacto antenupcial. Forma e registro. Atos
que dependem de consentimento conjugal. Suprimento do consentimento. Regime da comunhão parcial.
Regime da comunhão universal. Regime da participação final nos aqüestos. Regime da separação legal e
separação convencional. Aplicação da Súmula 377 do STF.

Notas de Aula14

1. Regime de bens

O regime de bens é uma das consequência do casamento. É o regime de normas


jurídicas que disciplinam os aspectos patrimoniais do casamento. O regime de bens só
passa a ter interesse jurídico após a celebração do casamento, ou seja, ainda que celebrado

14
Aula ministrada pela professora Elisa Costa Cruz, em 2/3/2010.

Michell Nunes Midlej Maron 86


EMERJ – CP V Direito Civil V

pacto antenupcial (que é registrado antes da celebração, durante a habilitação para o


casamento), o regime só tem qualquer eficácia se posteriormente houver a efetiva
celebração do ato.
Há que se mencionar, aqui, a teoria do patrimônio mínimo, de Luis Edson Fachin,
que diz que como o patrimônio é um valor essencial à dignidade, eis que intimamente
ligado à subsistência, é necessário que a cada ser humano seja conferido um patrimônio
essencial mínimo. Amparado nesta lógica é que se constitui o bem de família, mínimo
existencial para o direito de moradia. Cristiano Chaves, em moderna leitura, sustenta que
esta tese se aplica também ao regime de bens, exemplificando com a comunicação de
aquestos, a administração conjunta, a não comunicabilidade dos proventos auferidos do
trabalho, e também o próprio bem de família.
Mencionados estes conceitos iniciais, passemos ao estudo dos princípios que regem
os regimes de bens.

1.1. Principiologia

1.1.1. Princípio da liberdade de escolha do regime

O primeiro princípio é o da liberdade de escolha do regime, que se coloca no artigo


1.639 do CC:

“Art. 1.639. É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular,


quanto aos seus bens, o que lhes aprouver.
§ 1º O regime de bens entre os cônjuges começa a vigorar desde a data do
casamento.
§ 2º É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em
pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões
invocadas e ressalvados os direitos de terceiros.”

Destarte, podem os nubentes escolher quaisquer regimes típicos do CC, ou mesmo


desenvolver um novo modelo, mediante a combinação de regras dos regimes nominados no
CC, ou mesmo criando regras novas. A repercussão da escolha do regime é tão séria que é
uma imposição ao oficial do registro que preste plenas informações sobre este instituto e
sua liberdade aos nubentes em habilitação, como se vê no enunciado 331 do CJF:

“Enunciado 331, CJF: Art. 1.639. O estatuto patrimonial do casal pode ser definido
por escolha de regime de bens distinto daqueles tipificados no Código Civil (art.
1.639 e parágrafo único do art. 1.640), e, para efeito de fiel observância do
disposto no art. 1.528 do Código Civil, cumpre certificação a respeito, nos autos do
processo de habilitação matrimonial.”

Uma vez que os nubentes não elejam qualquer regime, não pode o casamento ser
celebrado sem que esteja vigente algum regramento, e a lei estabelece que o regime da
comunhão parcial de bens é a regra a ser seguida quando da omissão de escolha pelos
nubentes. Veja o artigo 1.640 do CC:

“Art. 1.640. Não havendo convenção, ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará,
quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial.

Michell Nunes Midlej Maron 87


EMERJ – CP V Direito Civil V

Parágrafo único. Poderão os nubentes, no processo de habilitação, optar por


qualquer dos regimes que este código regula. Quanto à forma, reduzir-se-á a termo
a opção pela comunhão parcial, fazendo-se o pacto antenupcial por escritura
pública, nas demais escolhas.”

Há quem sustente que o legislador errou na eleição da comunhão parcial para


regime legal, defendendo que o regime correto seria o da separação total, sem comunicação
dos patrimônios. Assim defendem porque a igualdade de direitos entre homens e mulheres,
especialmente na presença destas no mercado de trabalho, leva à desnecessidade da
proteção à cônjuge por meio deste regime de comunhão de bens, pois a separação de bens
faz presumir que o casamento se deu exclusivamente pelo afeto, e não para a cônjuge
amealhar patrimônio. Contudo, no Brasil ainda persiste em grande monta a figura da
mulher do lar, e se a regra fosse a separação, estas não teriam patrimônio em nome próprio
suficiente a subsistir – é o entendimento majoritário e mais coerente.
O regime legal, antes da Lei 6.515/77, era o da comunhão universal de bens.
A opção pelo regime que se quer é feita mediante a feitura do pacto antenupcial. A
natureza jurídica do pacto é de contrato, com a seguinte peculiaridade: alguns autores
dizem que se trata de um contrato típico do direito das famílias. O pacto tem que ser
firmado em escritura pública, durante o processo de habilitação. Veja o artigo 1.653 do CC:

“Art. 1.653. É nulo o pacto antenupcial se não for feito por escritura pública, e
ineficaz se não lhe seguir o casamento.”

Outro requisito especial deste contrato é a sua condição de eficácia, até já


mencionada: o pacto é ineficaz se não houver celebração de casamento posterior a sua
feitura.
Terceiro requisito do pacto antenupcial é aquele necessário para a eficácia perante
terceiros, qual seja, o registro público. Veja o artigo 1.657 do CC:

“Art. 1.657. As convenções antenupciais não terão efeito perante terceiros senão
depois de registradas, em livro especial, pelo oficial do Registro de Imóveis do
domicílio dos cônjuges.”

Surge um problema interpretativo deste dispositivo supra: se a finalidade do registro


é criar oponibilidade erga omnes, o foro do registro deveria ser o da situação dos bens,
além do ofício de notas do domicílio do casal, e não no RGI do domicílio do casal, que
pode não coincidir com o RGI dos imóveis dos cônjuges. O TJ/RJ tem um julgado sobre
este aspecto, decidindo pela anulação de um negócio jurídico porque o pacto não foi levado
a registro no RGI da situação do imóvel. Veja a Apelação Cível 2005.001.14271:

“Processo: 0000420-31.1999.8.19.0003 (2005.001.14271). 1ª Ementa –


APELACAO. DES. CAETANO FONSECA COSTA - Julgamento: 02/05/2007 -
SETIMA CAMARA CIVEL.
ANULACAO DE ESCRITURA. PACTO ANTENUPCIAL NAO REGISTRADO.
ADQUIRENTE DE BOA FE. IMPROCEDENCIA DO PEDIDO.
Ordinária. Anulação de escritura. Ausência da autora, proprietária de 50% do
imóvel por força de pacto antenupcial celebrado com seu ex-marido. Omissão da
autora. Pacto celebrado na Cidade do Araguaia, Pará, enquanto residiam os
nubentes no Rio Grande do Sul. Contrato não levado a averbação no RGI da
lozalização do imóvel (Angra dos Reis). Boa-fé dos adquirentes. Sentença de

Michell Nunes Midlej Maron 88


EMERJ – CP V Direito Civil V

improcedência confirmada. Recurso improvido. No caso dos autos ficou patente a


boa-fé dos adquirentes. Além disso, a Autora, que residia no Sul, casou-se no Pará
e jamais levou a registro o pacto antenupcial celebrado, em franca omissão ao que
determina o art. 244 da Lei 6.015/73. Além disso, como foi chamada a atenção
pelos apelados, contratou a autora o mesmo advogado que representara seu ex-
marido a época em que este se declarou solteiro para efeito da escritura. A boa-fé,
inclusive a de natureza objetiva, hoje princípio de direito está a proteger os
demandados. A sentença assim o reconheceu e deu justa solução ao litígio.”

O pacto antenupcial pode reger matérias alheias ao escopo patrimonial, tais como
direitos alimentares, indenizações em caso de separação, etc? Paulo Lobo diz que qualquer
cláusula que não seja de conteúdo exclusivamente patrimonial, e que não discipline as
relações patrimoniais dos cônjuges não é inválida, mas simplesmente não compõe
essencialmente o pacto antenupcial. Nada obsta que dali constem, mas não se inserem
materialmente sob a essência de pacto antenupcial – estarão ali apenas formalmente, e não
materialmente. Maria Berenice Dias, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald dizem que é
possível constarem tais cláusulas dos pactos, mas não discutem se sua natureza é
materialmente de norma de pacto antenupcial ou não. Apenas reputam válidas quaisquer
cláusulas que não aflijam a dignidade da pessoa humana.
Uma cláusula que violaria a dignidade da pessoa humana, para estes autores, é a
indenização por tempo de casado, o que é bem comum no direito estadunidense: se a pessoa
requerer a separação com tantos anos de casada, indenizará o outro em tal valor; se requer
com mais tempo, o valor é outro, e assim por diante. Para estes autores, esta cláusula
interfere violentamente na liberdade, impondo temor pela separação.
Já a cláusula que prevê afastamento do dever de coabitação é válida, para eles, não
ofendendo nenhum direito fundamental – os direitos e deveres entre os cônjuges, hoje, têm
sido entendidos como matérias de ordem eminentemente privada, podendo ser por eles
regulados, a não ser que ofendam preceitos constitucionais maiores. A doutrina mais
clássica, entretanto, ainda vê os deveres conjugais como matéria de ordem pública, e, se for
esta corrente a observada, seria nula qualquer derrogação destes preceitos – inclusive este
exemplo do afastamento do dever de coabitação.
Se o pacto antenupcial for inválido como um todo, será simplesmente
desconsiderado, e passará a viger o regime legal, da comunhão parcial. Se apenas uma
cláusula ou outra for inválida, o pacto é mantido, afastando-se apenas aquela cláusula
viciada.
Sendo o casamento invalidado, por óbvio que o pacto perderá sentido, eis que dele é
dependente: anulado o casamento, anulado o pacto antenupcial. Trata-se da mera gravitação
jurídica entre acessório e principal. Surge a questão: reconhecida putatividade no
casamento inválido, como fica a situação do pacto antenupcial? Como o casamento produz
efeitos válidos para o cônjuge de boa-fé, o pacto produzirá efeitos, mas há uma divergência,
que há no próprio casamento putativo, sobre até que momento este produz efeitos, se até a
sentença ou mesmo após esta. Se o casamento putativo produz efeitos até a sentença, assim
também ocorre com o pacto; se produzir efeitos ulteriores à sentença, o pacto igualmente
seguirá produzindo efeitos.
Sobre a invalidade de cláusulas que subvertem normas cogentes, veja o artigo 1.655
do CC:

Michell Nunes Midlej Maron 89


EMERJ – CP V Direito Civil V

“Art. 1.655. É nula a convenção ou cláusula dela que contravenha disposição


absoluta de lei.”

A escolha do regime, em alguns casos, é impossível, por ser obrigatório o regime da


separação de bens. Veja o artigo 1.641 do CC:

“Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:


I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da
celebração do casamento;
II - da pessoa maior de sessenta anos;
III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.”

No inciso III do artigo supra se inserem aqueles em idade pré-núbil, que se casarão
por autorização judicial nos casos que a lei permite (gravidez ou alheação de condenação
criminal); ou daqueles que, menores em idade núbil, têm o casamento negado pelos
representante legal, e autorizado pelo juiz.
Quanto aos incisos I e III, a doutrina entende que, superadas as causas que
ensejaram a separação legal, os cônjuges podem requerer a mudança de regime, ou seja:
desaparecida a causa de suspensão, o regime pode ser alterado pelos cônjuges; atingida a
plena capacidade para se casar, em que se dispensaria o suprimento judicial, também
poderão alterar o regime, se quiserem. Esta alteração do regime é oriunda da mutabilidade
do regime, que é um outro princípio deste instituto. A respeito, veja o enunciado 262 do
CJF:

“Enunciado 262, CJF: Arts. 1.641 e 1.639: A obrigatoriedade da separação de bens,


nas hipóteses previstas nos incs. I e III do art. 1.641 do Código Civil, não impede a
alteração do regime, desde que superada a causa que o impôs.”

Mas é o inciso II deste artigo supra que é altamente criticado pela doutrina. A
separação obrigatória para o idoso é considerada por muitos como inconstitucional,
discriminatória, e há jurisprudência isolada que reconhece esta inconstitucionalidade, no
TJ/RS. No TJ/RJ, e na maioria da jurisprudência nacional, a restrição é legal e
constitucional.
Vale mencionar que se o idoso convivia em união estável antes de completar
sessenta anos, mas se casa posteriormente à completitude desta idade, não será restrita a sua
opção de regime, podendo optar por qualquer um. Isto porque na união estável já vigia para
ele o regime da comunhão parcial, pelo que o casamento não estará forçado à separação
legal. Veja o enunciado 261 do CJF:

“Enunciado 261, CJF: Art. 1.641: A obrigatoriedade do regime da separação de


bens não se aplica a pessoa maior de sessenta anos, quando o casamento for
precedido de união estável iniciada antes dessa idade.”

Há que se salientar, ainda, que o regime da separação obrigatória de bens está hoje
muito mitigado, ante a posição sumulada do STF no seu enunciado 377:

“Súmula 377, STF: No regime de separação legal de bens, comunicam-se os


adquiridos na constância do casamento.”

Michell Nunes Midlej Maron 90


EMERJ – CP V Direito Civil V

Esta súmula praticamente converte a separação legal em uma comunhão parcial de


bens, eis que os aquestos – bens onerosos que se adquirem na constância do casamento –,
segundo a súmula, se comunicam, tal como na comunhão parcial. Neste diapasão, o STJ
reputa, por exemplo, imperativa a outorga marital no aval, quando casados em regime legal
de separação. Veja o REsp. 1.163.074, e suas notas no informativo 420 do STJ:

“REsp 1163074 / PB. RECURSO ESPECIAL. Relator Ministro MASSAMI


UYEDA. Órgão Julgador - TERCEIRA TURMA. Data do Julgamento: 15/12/2009
Data da Publicação/Fonte: DJe 04/02/2010.
Ementa: RECURSO ESPECIAL - AÇÃO ANULATÓRIA DE AVAL - OUTORGA
CONJUGAL PARA CÔNJUGES CASADOS SOB O REGIME DA SEPARAÇÃO
OBRIGATÓRIA DE BENS - NECESSIDADE - RECURSO PROVIDO.
1. É necessária a vênia conjugal para a prestação de aval por pessoa casada sob o
regime da separação obrigatória de bens, à luz do artigo 1647, III, do Código Civil.
2. A exigência de outorga uxória ou marital para os negócios jurídicos de
(presumidamente) maior expressão econômica previstos no artigo 1647 do Código
Civil (como a prestação de aval ou a alienação de imóveis) decorre da necessidade
de garantir a ambos os cônjuges meio de controle da gestão patrimonial, tendo em
vista que, em eventual dissolução do vínculo matrimonial, os consortes terão
interesse na partilha dos bens adquiridos onerosamente na constância do
casamento.
3. Nas hipóteses de casamento sob o regime da separação legal, os consortes, por
força da Súmula n. 377/STF, possuem o interesse pelos bens adquiridos
onerosamente ao longo do casamento, razão por que é de rigor garantir-lhes o
mecanismo de controle de outorga uxória/marital para os negócios jurídicos
previstos no artigo 1647 da lei civil.
4. Recurso especial provido.”

“AVAL. OUTORGA. SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA. BENS.


Segundo a exegese do art. 1.647, III, do CC/2002, é necessária a vênia conjugal
para a prestação de aval por pessoa casada sob o regime da separação obrigatória
de bens. Essa exigência de outorga conjugal para os negócios jurídicos de
(presumidamente) maior expressão econômica, tal como a prestação de aval ou a
alienação de imóveis, decorre da necessidade de garantir a ambos os cônjuges um
meio de controlar a gestão patrimonial; pois, na eventual dissolução do vínculo
matrimonial, os consortes podem ter interesse na partilha dos bens adquiridos
onerosamente na constância do casamento. Anote-se que, na separação
convencional de bens, há implícita outorga prévia entre os cônjuges para
livremente dispor de seus bens, o que não se verifica na separação obrigatória,
regime patrimonial decorrente de expressa imposição do legislador. Assim, ao
excepcionar a necessidade de autorização conjugal para o aval, o art. 1.647 do
CC/2002, mediante a expressão “separação absoluta”, refere-se exclusivamente ao
regime de separação convencional de bens e não ao da separação legal. A Súm. n.
377-STF afirma haver interesse dos consortes pelos bens adquiridos onerosamente
ao longo do casamento sob o regime de separação legal, suficiente razão a garantir-
lhes o mecanismo de controle de outorga uxória ou marital para os negócios
jurídicos previstos no art. 1.647 do CC/2002. Com esse entendimento, a Turma, ao
prosseguir o julgamento, deu provimento ao especial para declarar a nulidade do
aval prestado pelo marido sem autorização da esposa, ora recorrente. REsp
1.163.074-PB, Rel. Min. Massami Uyeda, julgado em 15/12/2009.”

Este julgado praticamente derroga quaisquer diferenças do regime de separação


legal do da comunhão parcial, impondo a outorga conjugal no regime da separação –
outorga que é um instituto típico de regimes em que há patrimônio comum dos cônjuges (o

Michell Nunes Midlej Maron 91


EMERJ – CP V Direito Civil V

que se dá nos regimes da comunhão parcial, da comunhão universal e da participação final


dos aquestos).
Por tudo isso, Paulo Lobo não é tímido em dizer que este regime da separação legal
não tem mais qualquer utilidade no sistema.

1.1.2. Princípio da variedade

De certa forma já abordado, este princípio proclama apenas que os cônjuges têm a
seu dispor uma diversa gama de regimes optativos, e além disso podem criar um novo
regime, desde que não subvertam normas de ordem pública.

1.1.3. Princípio da mutabilidade

No CC de 1916, a regra era a imutabilidade do regime de bens: uma vez eleito o


regime, ele perduraria até a dissolução do vínculo. A mudança era impossível de forma a
preservar direitos de terceiros, e dos próprios cônjuges. Orlando Gomes, desde sempre,
defendeu ausência de sentido nesta imutabilidade, porque a mera sujeição da alteração de
regime ao controle judiciário seria suficiente para preservar os direitos mencionados, de
terceiros e dos cônjuges.
Esta crítica teve peso, e o CC de 2002 passou a adotar a mutabilidade do regime,
como se viu no transcrito § 2º do artigo 1.639 do CC. É claro que, para se alterar o regime,
a observância de algumas regras são imperativas: é preciso que haja requerimento de ambos
os cônjuges; é necessária a motivação do pedido; e deve ser seguido o procedimento
judicial para tal alteração, que é processo de jurisdição voluntária inominado.
Sobre os motivos invocados pelo requerente, surge uma questão: pode o juiz se
imiscuir na análise da pertinência destes motivos, ou são eles dados à discricionariedade
exclusiva dos cônjuges requerentes?
Há duas correntes sobre o tema: a primeira defende que o juiz pode, sim, apreciar o
fundamento do requerimento, decidindo se os motivos são ou não razoáveis; e outra, que
defende que não se admite este escrutínio, exceto se a motivação for teratológica, tal como
quando viola ordem pública, ou direito de terceiros – o que se coaduna com o já
mencionado princípio da exclusividade, que dita que a ninguém é dado se imiscuir nos
meandros da sociedade conjugal, naquilo que é particular aos cônjuges.
Pode o motivo ser a formação de uma sociedade empresária entre os cônjuges? Veja
o artigo 977 do CC:

“Art. 977. Faculta-se aos cônjuges contratar sociedade, entre si ou com terceiros,
desde que não tenham casado no regime da comunhão universal de bens, ou no da
separação obrigatória.”

Poderiam os cônjuges pretender modificar o regime da comunhão universal para a


parcial, porque intentam formar sociedade empresária?
Pelo ensejo, vale mencionar que a própria existência desta restrição do artigo 977 do
CC é questionada em sua constitucionalidade, porque para alguns viola a liberdade de
associação, constitucionalmente garantida. Contudo, outra parcela da doutrina entende que
esta norma promove a isenção de confusão patrimonial que ocorreria nesta sociedade, e
preserva melhor direitos de terceiros.

Michell Nunes Midlej Maron 92


EMERJ – CP V Direito Civil V

De qualquer forma, a motivação para a alteração baseada neste artigo é considerada


razoável, válida.
Modificado o regime, como se protege os direitos de terceiros? A respeito, veja os
julgados do TJ/RJ abaixo:

“Processo: 0100586-62.2008.8.19.0001 (2009.001.12069). 1ª Ementa –


APELACAO. DES. ELISABETE FILIZZOLA - Julgamento: 15/04/2009 -
SEGUNDA CAMARA CIVEL. CASAMENTO. ALTERACAO DO REGIME DE
BENS. DIVIDA ANTERIOR AO CASAMENTO. RAZAO IMPROCEDENTE.
INTERESSE DE TERCEIRO. INTERESSE DOS CREDORES.
APELAÇÃO CÍVEL. PEDIDO DE ALTERAÇÃO DE REGIME DE BENS.
INOBSERVÂNCIA DO ART. 1639, PARÁGRAFO 2º DO CÓDIGO CIVIL.
EXISTÊNCIA DE EXECUÇÕES TRABALHISTAS E FISCAIS. INTERESSES
DE TERCEIROS QUE DEVEM SER PRESERVADOS, NA FORMA DA LEI.
Recurso interposto contra sentença que julgou improcedente o pedido de alteração
de regime de bens da comunhão universal para a separação total de bens. A
existência de múltiplas execuções trabalhistas e fiscais, advindas de dívidas
anteriores ao casamento é causa suficiente para o indeferimento da pretensão ante a
possibilidade de lesionar direito de terceiros. Ademais, não demonstrado o alegado
prejuízo para o cônjuge virago, uma vez que o artigo 1668, inciso III do Código
Civil, exclui da comunhão universal as dívidas anteriores ao casamento, salvo se
provierem de aprestos ou reverterem em proveito comum. Sentença que se
mantém. RECURSO DESPROVIDO.”

“Processo: 0004723-15.2007.8.19.0066 (2007.001.43478). 1ª Ementa –


APELACAO. DES. LETICIA SARDAS - Julgamento: 30/08/2007 - VIGESIMA
CAMARA CIVEL. JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA. ALTERAÇÃO DO REGIME
DE BENS. CASAMENTO REALIZADO SOB A ÉGIDE DO C.C. DE 1916.
POSSIBILIDADE.
1. O Código Civil de 2002 introduziu no ordenamento jurídico substancial
modificação ao princípio da imutabilidade do regime de bens antes prestigiado,
permitindo sua alteração na constância do casamento.
2. O legislador não impôs no dispositivo legal supra mencionado, um tempo
mínimo de casamento, tampouco estabeleceu condições para o referido
requerimento, determinando, apenas, que seja feito em documento fundamentado
por ambos os cônjuges.
3. A alteração do regime de bens, inclusive em casamentos realizados na vigência
do CC de 1916, não viola o ato jurídico perfeito e o direito adquirido, eis que o
requerimento é feito por ambos os cônjuges, resguardados os direitos de terceiros.
4. Permite-se, excepcionalmente a alteração, para que o novo regime atinja apenas
os bens e negócios jurídicos que venham a ser adquiridos e contratados após a
decisão judicial que autorizar a mudança.
5. Provimento do recurso, por ato do Relator, na forma autorizada pelo § 1o A do
artigo 577 do Código de Processo Civil.”

Deve se convocar por edital todos os credores para se manifestarem. Pelo ensejo,
como se modulam os efeitos da sentença? O regime passa a viger apenas desde o trânsito
em julgado da sentença, operando efeitos ex nunc, ou retroage desde o início do casamento,
tendo efeitos ex tunc?
A sentença de alteração é constitutiva do novo regime, inegavelmente, mas a
retroação de seus efeitos é discutida. Pende-se a entender que se operam efeitos ex nunc,
mas na casuística pode ser que a retroação dos efeitos proteja melhor os direitos de

Michell Nunes Midlej Maron 93


EMERJ – CP V Direito Civil V

terceiros, e esta será a modulação de tal sentença. Esta solução casuística é a adotada no
segundo acórdão supra.
Veja o REsp. 730.546, e os enunciados 113 e 260, do CJF:

“REsp 730546 / MG. RECURSO ESPECIAL. Relator Ministro JORGE


SCARTEZZINI. Órgão Julgador - QUARTA TURMA. Data do Julgamento:
23/08/2005. Data da Publicação/Fonte: DJ 03/10/2005 p. 279.
Ementa: CIVIL - REGIME MATRIMONIAL DE BENS - ALTERAÇÃO
JUDICIAL – CASAMENTO OCORRIDO SOB A ÉGIDE DO CC/1916 (LEI Nº
3.071) - POSSIBILIDADE - ART. 2.039 DO CC/2002 (LEI Nº 10.406) -
CORRENTES DOUTRINÁRIAS - ART. 1.639, § 2º, C/C ART. 2.035 DO
CC/2002 - NORMA GERAL DE APLICAÇÃO IMEDIATA.
1 - Apresenta-se razoável, in casu, não considerar o art. 2.039 do CC/2002 como
óbice à aplicação de norma geral, constante do art. 1.639, § 2º, do CC/2002,
concernente à alteração incidental de regime de bens nos casamentos ocorridos sob
a égide do CC/1916, desde que ressalvados os direitos de terceiros e apuradas as
razões invocadas pelos cônjuges para tal pedido, não havendo que se falar em
retroatividade legal, vedada nos termos do art. 5º, XXXVI, da CF/88, mas, ao
revés, nos termos do art. 2.035 do CC/2002, em aplicação de norma geral com
efeitos imediatos.
2 - Recurso conhecido e provido pela alínea "a" para, admitindo-se a possibilidade
de alteração do regime de bens adotado por ocasião de matrimônio realizado sob o
pálio do CC/1916, determinar o retorno dos autos às instâncias ordinárias a fim de
que procedam à análise do pedido, nos termos do art. 1.639, § 2º, do CC/2002.”

“Enunciado 113, CJF: Art. 1.639: é admissível a alteração do regime de bens entre
os cônjuges, quando então o pedido, devidamente motivado e assinado por ambos
os cônjuges, será objeto de autorização judicial, com ressalva dos direitos de
terceiros, inclusive dos entes públicos, após perquirição de inexistência de dívida
de qualquer natureza, exigida ampla publicidade.”
“Enunciado 260, CJF: Arts. 1.639, § 2º, e 2.039: A alteração do regime de bens
prevista no § 2º do art. 1.639 do Código Civil também é permitida nos casamentos
realizados na vigência da legislação anterior.”

1.2. Atos de administração do patrimônio

Veja o artigo 1.642 do CC:

“Art. 1.642. Qualquer que seja o regime de bens, tanto o marido quanto a mulher
podem livremente:
I - praticar todos os atos de disposição e de administração necessários ao
desempenho de sua profissão, com as limitações estabelecida no inciso I do art.
1.647;
II - administrar os bens próprios;
III - desobrigar ou reivindicar os imóveis que tenham sido gravados ou alienados
sem o seu consentimento ou sem suprimento judicial;
IV - demandar a rescisão dos contratos de fiança e doação, ou a invalidação do
aval, realizados pelo outro cônjuge com infração do disposto nos incisos III e IV
do art. 1.647;
V - reivindicar os bens comuns, móveis ou imóveis, doados ou transferidos pelo
outro cônjuge ao concubino, desde que provado que os bens não foram adquiridos
pelo esforço comum destes, se o casal estiver separado de fato por mais de cinco
anos;
VI - praticar todos os atos que não lhes forem vedados expressamente.”

Michell Nunes Midlej Maron 94


EMERJ – CP V Direito Civil V

O inciso I, para Cristiano Chaves, representa bem o mencionado princípio do


patrimônio mínimo.
O inciso II é irrelevante: se o bem é próprio, é claro que o proprietário tem plena
administração sobre ele.
O inciso V é problemático, pois cria uma contradição com o artigo 1.723 do CC,
que não traz prazo para a constituição da união estável:

“Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e
a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida
com o objetivo de constituição de família.
§ 1º A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521;
não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar
separada de fato ou judicialmente.
§ 2º As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da união
estável.”

Se o ato de disposição patrimonial foi praticado ao companheiro, é perfeitamente


válido, e o poder de reivindicação que o inciso V do artigo 1.642 do CC é inaplicável. De
fato, este inciso é praticamente inaplicável, porque a mera separação extingue a comunhão
de bens, ante a quebra da affectio maritatis.
O artigo 1.643 do CC também disciplina atos de livre administração de bens dos
cônjuges, agora se referindo ao patrimônio comum:

“Art. 1.643. Podem os cônjuges, independentemente de autorização um do outro:


I - comprar, ainda a crédito, as coisas necessárias à economia doméstica;
II - obter, por empréstimo, as quantias que a aquisição dessas coisas possa exigir.”
O endividamento em prol da sociedade conjugal é possível, por um só dos cônjuges.
Esta lógica informa também o artigo seguinte do CC:

“Art. 1.644. As dívidas contraídas para os fins do artigo antecedente obrigam


solidariamente ambos os cônjuges.”

O artigo 1.645 do CC dispõe sobre a legitimidade para pleitear judicialmente


pretensões referentes ao artigo 1.642 do CC:

“Art. 1.645. As ações fundadas nos incisos III, IV e V do art. 1.642 competem ao
cônjuge prejudicado e a seus herdeiros.”

Por fim, veja o artigo 1.646 do CC, que trata do direito de regresso:

“Art. 1.646. No caso dos incisos III e IV do art. 1.642, o terceiro, prejudicado com
a sentença favorável ao autor, terá direito regressivo contra o cônjuge, que realizou
o negócio jurídico, ou seus herdeiros.”

1.2.1. Atos em que a outorga conjugal é necessária

Veja o artigo 1.647 do CC:

“Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem
autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta:

Michell Nunes Midlej Maron 95


EMERJ – CP V Direito Civil V

I - alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis;


II - pleitear, como autor ou réu, acerca desses bens ou direitos;
III - prestar fiança ou aval;
IV - fazer doação, não sendo remuneratória, de bens comuns, ou dos que possam
integrar futura meação.
Parágrafo único. São válidas as doações nupciais feitas aos filhos quando casarem
ou estabelecerem economia separada.”

Veja também o artigo 3º da Lei de Locações, que é caso de necessidade de vênia


conjugal cominado fora do CC:

“Art. 3º O contrato de locação pode ser ajustado por qualquer prazo, dependendo
de vênia conjugal, se igual ou superior a dez anos.
Parágrafo único. Ausente a vênia conjugal, o cônjuge não estará obrigado a
observar o prazo excedente.”

Os atos constritivos sobre bens móveis não estão inseridos no inciso I do artigo
1.647 do CC, que, norma restritiva que é, não pode ser ampliado. Há uma só exceção a este
inciso I quanto a bens imóveis, constante do artigo 1.656 do CC:

“Art. 1.656. No pacto antenupcial, que adotar o regime de participação final nos
aqüestos, poder-se-á convencionar a livre disposição dos bens imóveis, desde que
particulares.”

No inciso II, combine-se sua leitura com os artigos 10 e 13 do CPC, bem como com
a súmula 134 do STJ:
“Art. 10. O cônjuge somente necessitará do consentimento do outro para propor
ações que versem sobre direitos reais imobiliários. (Redação dada pela Lei nº
8.952, de 13.12.1994)
§ 1º Ambos os cônjuges serão necessariamente citados para as ações: (Parágrafo
único renumerado pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994)
I - que versem sobre direitos reais imobiliários; (Redação dada pela Lei nº 8.952,
de 13.12.1994)
II - resultantes de fatos que digam respeito a ambos os cônjuges ou de atos
praticados por eles; (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1.10.1973)
III - fundadas em dívidas contraídas pelo marido a bem da família, mas cuja
execução tenha de recair sobre o produto do trabalho da mulher ou os seus bens
reservados; (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1.10.1973)
IV - que tenham por objeto o reconhecimento, a constituição ou a extinção de ônus
sobre imóveis de um ou de ambos os cônjuges.(Redação dada pela Lei nº 5.925, de
1.10.1973)
§ 2º Nas ações possessórias, a participação do cônjuge do autor ou do réu somente
é indispensável nos casos de composse ou de ato por ambos praticados.(Incluído
pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994).”

“Art. 13. Verificando a incapacidade processual ou a irregularidade da


representação das partes, o juiz, suspendendo o processo, marcará prazo razoável
para ser sanado o defeito.
Não sendo cumprido o despacho dentro do prazo, se a providência couber:
I - ao autor, o juiz decretará a nulidade do processo;
II - ao réu, reputar-se-á revel;
III - ao terceiro, será excluído do processo.”

Michell Nunes Midlej Maron 96


EMERJ – CP V Direito Civil V

“Súmula 134, STJ: Embora intimado da penhora em imóvel do casal, o cônjuge do


executado pode opor embargos de terceiro para defesa de sua meação.”

Aqui há uma discussão relevante, de cunho processual: se a cônjuge requerer a


exclusão da penhora de um bem imóvel, em execução do seu marido, sob pena de não ter
resguardada a sua meação, é possível que haja a exclusão deste bem, segundo parte da
jurisprudência do TJ/RJ; contudo, a maior parte da jurisprudência, inclusive do STJ,
entende que a penhora persistirá, o bem será alienado, apenas resguardando-se a parte da
meação da esposa, ou seja, cinquenta por cento do saldo. Para além disso, a meação do
cônjuge não executado só será invadida se o exequente comprovar que a dívida exequenda
reverteu em prol desta cônjuge, em prol da família.
O inciso III do artigo 1.647 do CC estabelece que é necessária vênia conjugal para
prestar fiança ou aval. Há crítica ao aval, eis que este instituto, típico do direito cambiário,
restaria dificultado em sua praxe, contrapondo-se à agilidade que vige nestas relações
creditícias. Veja a posição do STJ, porém:

“AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. LOCAÇÃO.


FALSIFICAÇÃO DA ASSINATURA DA CÔNJUGE MULHER. FIANÇA
PRESTADA SEM A OUTORGA UXÓRIA. NULIDADE. 1. É firme o
entendimento desta Corte Superior de Justiça em que a fiança prestada por marido
sem a outorga uxória invalida o ato por inteiro, não se podendo limitar o efeito da
invalidação apenas à meação da mulher. 2. Inexiste óbice à argüição de nulidade da
fiança, em se cuidando de recurso especial interposto também pela cônjuge mulher,
que possui legitimidade para demandar a anulação dos atos do marido. 3. Agravo
regimental improvido. (AgRg no REsp 631.450/RJ, Rel. Ministro HAMILTON
CARVALHIDO, SEXTA TURMA, DJ 17/04/2006).”
Os atos praticados sem autorização conjugal, para a doutrina, seriam ineficazes
perante este cônjuge, e não inválidos. Pelo regime do CC, há invalidade, no entanto. Isto
porque se for comprovada a vantagem para o cônjuge que não autorizou, obtida com o ato
não autorizado, o ato seria mantido válido e eficaz contra ele, o que não ocorre se se
resolver na mera declaração de invalidade do ato. O STJ, porém, ignorando esta análise da
doutrina, editou a súmula 332, que diz que:

“Súmula 332, STJ: A fiança prestada sem autorização de um dos cônjuges implica
a ineficácia total da garantia.”

Esta súmula é de redação bastante imprecisa. Isto porque, na leitura dos precedentes
que a propiciaram, o STJ é claro em dizer que adota a tese de invalidade total do ato, mas a
redação consigna, como se vê, a expressão “ineficácia total”. É de se ressaltar, portanto, que
a ausência da vênia conjugal, quando exigida, é caso de invalidade, e não de ineficácia,
para o STJ, a despeito do que diz a súmula. Segue à risca, o STJ, o artigo 1.649 do CC:

“Art. 1.649. A falta de autorização, não suprida pelo juiz, quando necessária (art.
1.647), tornará anulável o ato praticado, podendo o outro cônjuge pleitear-lhe a
anulação, até dois anos depois de terminada a sociedade conjugal.
Parágrafo único. A aprovação torna válido o ato, desde que feita por instrumento
público, ou particular, autenticado.”

O inciso IV do artigo 1.647 do CC, que diz que fazer doação, não sendo
remuneratória, de bens comuns, ou dos que possam integrar futura meação, depende de

Michell Nunes Midlej Maron 97


EMERJ – CP V Direito Civil V

outorga conjugal, ressalva justamente os casos dos artigos 540, 1.659, I, e o próprio
parágrafo único do mesmo artigo 1.647 do CC:

“Art. 540. A doação feita em contemplação do merecimento do donatário não


perde o caráter de liberalidade, como não o perde a doação remuneratória, ou a
gravada, no excedente ao valor dos serviços remunerados ou ao encargo imposto.”

“Art. 1.659. Excluem-se da comunhão:


I - os bens que cada cônjuge possuir ao casar, e os que lhe sobrevierem, na
constância do casamento, por doação ou sucessão, e os sub-rogados em seu lugar;
(...)”

Negada a outorga quando necessária, sem motivo justo, pode o cônjuge que se viu
obstado pleitear o suprimento da autorização em juízo, na forma do artigo 1.648 do CC:

“Art. 1.648. Cabe ao juiz, nos casos do artigo antecedente, suprir a outorga,
quando um dos cônjuges a denegue sem motivo justo, ou lhe seja impossível
concedê-la.”

A legitimidade para requerer anulação do ato praticado sem outorga está no artigo
1.650 do CC:

“Art. 1.650. A decretação de invalidade dos atos praticados sem outorga, sem
consentimento, ou sem suprimento do juiz, só poderá ser demandada pelo cônjuge
a quem cabia concedê-la, ou por seus herdeiros.”

2. Regimes de bens em espécie

O CC apresenta quatro regimes de bens: comunhão parcial; comunhão total;


separação convencional, ou absoluta; e participação final dos aquestos. Vejamos cada um.

2.1. Comunhão parcial

Veja o artigo 1.658 do CC:

“Art. 1.658. No regime de comunhão parcial, comunicam-se os bens que


sobrevierem ao casal, na constância do casamento, com as exceções dos artigos
seguintes.”

Nesta espécie de regime, há três grupos de patrimônios coexistindo: o patrimônio


próprio de cada cônjuge e o patrimônio comum a ambos. Os bens adquiridos onerosamente,
no curso da sociedade conjugal, integram o patrimônio comum; os bens anteriores ao
casamento, bem como os bens gratuitos obtidos no curso da sociedade conjugal, integram o
patrimônio isolado do respectivo proprietário.
Curiosamente, os frutos dos bens integrantes do patrimônio pessoal de cada cônjuge
integram o patrimônio comum: mesmo que o bem, em si, não se comunique, os frutos dele
provenientes, no curso do casamento, comunicam-se, na forma do artigo 1.660, V, do CC.
Veja os artigos 1.559 e 1.660 do CC, que tratam das exceções:

“Art. 1.659. Excluem-se da comunhão:

Michell Nunes Midlej Maron 98


EMERJ – CP V Direito Civil V

I - os bens que cada cônjuge possuir ao casar, e os que lhe sobrevierem, na


constância do casamento, por doação ou sucessão, e os sub-rogados em seu lugar;
II - os bens adquiridos com valores exclusivamente pertencentes a um dos
cônjuges em sub-rogação dos bens particulares;
III - as obrigações anteriores ao casamento;
IV - as obrigações provenientes de atos ilícitos, salvo reversão em proveito do
casal;
V - os bens de uso pessoal, os livros e instrumentos de profissão;
VI - os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge;
VII - as pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes.”

“Art. 1.660. Entram na comunhão:


I - os bens adquiridos na constância do casamento por título oneroso, ainda que só
em nome de um dos cônjuges;
II - os bens adquiridos por fato eventual, com ou sem o concurso de trabalho ou
despesa anterior;
III - os bens adquiridos por doação, herança ou legado, em favor de ambos os
cônjuges;
IV - as benfeitorias em bens particulares de cada cônjuge;
V - os frutos dos bens comuns, ou dos particulares de cada cônjuge, percebidos na
constância do casamento, ou pendentes ao tempo de cessar a comunhão.”

Há alguns casos peculiares, enfrentados pela jurisprudência: o saldo da conta do


FGTS se comunica ao patrimônio comum? Para o STJ e o TJ/RJ, integram o patrimônio
comum, porque se entende que é um bônus não alimentar pago pelo empregador. Veja a
Apelação Cível 2008.001.57855, do TJ/RJ:

“Processo: 0132288-94.2006.8.19.0001 (2008.001.57855). 1ª Ementa –


APELACAO. DES. CARLOS JOSE MARTINS GOMES - Julgamento:
01/04/2009 - DECIMA SEXTA CAMARA CIVEL.
Ementa: Apelação cível. Ação de divórcio direto com pedido de tutela antecipada.
Bens adquiridos na constância do casamento realizado sob o regime da comunhão
parcial. Presunção de esforço comum para a aquisição do bem. Ambas as partes
possuem o mesmo direito sobre a indenização trabalhista e sobre o veículo, desde
que respeitado o limite da meação. Reconvenção que busca a partilha dos bens
supostamente adquiridos, após o matrimônio. Recurso que se nega seguimento nos
termos do artigo 557, caput do Código de Processo Civil. Sentença que se
mantém.”

As verbas de indenização de seguro, por seu turno, são exclusivas do titular, não se
comunicando ao bojo comum, por ter natureza indenizatória, inserida no inciso VII do
artigo 1.659 do CC, supra.
Quanto ao financiamento de bens, contrato firmado antes da relação conjugal, a
questão é intrincada. A regra é que bens adquiridos por causa firmada antes do casamento
não se comunicam, neste regime, na forma do artigo 1.661 do CC:

“Art. 1.661. São incomunicáveis os bens cuja aquisição tiver por título uma causa
anterior ao casamento.”

A jurisprudência, porém, entende que metade das prestações pagas no curso do


casamento integra, sim, o patrimônio comum, por conta de se presumir que para pagá-las
houve esforço comum de ambos os cônjuges. Destarte, nesta situação, aquilo que foi pago

Michell Nunes Midlej Maron 99


EMERJ – CP V Direito Civil V

pelo bem antes do casamento pertence apenas ao titular, mas das parcelas pagas depois do
casamento celebrado, metade é do outro cônjuge.
O TJ/RS tem uma decisão em que entendeu que se houver prova sólida de que a
aquisição de um bem, na constância do casamento, foi realizada inteiramente sem a
participação do outro cônjuge, conseguindo-se afastar inclusive a presunção de esforço
comum, poderá ser o bem deferido apenas ao titular dos pagamentos. Ocorre que esta
posição é verdadeiramente contra legem, porque a presunção de esforço comum, de
participação nos aquestos, na aquisição dos bens no curso da sociedade, é absoluta, não
podendo ser afastada de modo algum.

2.2. Comunhão universal

Vale começar dizendo que a comunhão universal nem tão universal o é: as dívidas
anteriores ao casamento, e que não foram contraídas em função daquele casamento, não se
comunicam ao bojo comum. O regime está nos artigos 1.667 a 1.671 do CC, estando as
ressalvas no artigo 1.668:

“Art. 1.667. O regime de comunhão universal importa a comunicação de todos os


bens presentes e futuros dos cônjuges e suas dívidas passivas, com as exceções do
artigo seguinte.”

“Art. 1.668. São excluídos da comunhão:


I - os bens doados ou herdados com a cláusula de incomunicabilidade e os sub-
rogados em seu lugar;
II - os bens gravados de fideicomisso e o direito do herdeiro fideicomissário, antes
de realizada a condição suspensiva;
III - as dívidas anteriores ao casamento, salvo se provierem de despesas com seus
aprestos, ou reverterem em proveito comum;
IV - as doações antenupciais feitas por um dos cônjuges ao outro com a cláusula de
incomunicabilidade;
V - Os bens referidos nos incisos V a VII do art. 1.659.”

“Art. 1.669. A incomunicabilidade dos bens enumerados no artigo antecedente não


se estende aos frutos, quando se percebam ou vençam durante o casamento.”

“Art. 1.670. Aplica-se ao regime da comunhão universal o disposto no Capítulo


antecedente, quanto à administração dos bens.”

“Art. 1.671. Extinta a comunhão, e efetuada a divisão do ativo e do passivo,


cessará a responsabilidade de cada um dos cônjuges para com os credores do
outro.”

Neste regime, há um só patrimônio, todo ele comum. As exceções são pontuais,


como se vê.

2.3. Separação absoluta, ou convencional

Neste regime, formam-se dois patrimônios isolados, o do marido e o da esposa.


Cada um é responsável pela gestão de seu patrimônio exclusivo, inexistindo patrimônio
comum. O regramento vem nos artigos 1.687 e 1.688 do CC:

Michell Nunes Midlej Maron 100


EMERJ – CP V Direito Civil V

“Art. 1.687. Estipulada a separação de bens, estes permanecerão sob a


administração exclusiva de cada um dos cônjuges, que os poderá livremente
alienar ou gravar de ônus real.”

“Art. 1.688. Ambos os cônjuges são obrigados a contribuir para as despesas do


casal na proporção dos rendimentos de seu trabalho e de seus bens, salvo
estipulação em contrário no pacto antenupcial.”

Ocorre que esta separação também não é tão absoluta como o nome indica: a
administração dos bens necessários à manutenção da família é conjunta, e é dividida na
proporção da capacidade econômica de cada cônjuge.

2.4. Participação final nos aquestos

Este regime, pouco usual, é um verdadeiro híbrido: no curso da sociedade conjugal,


é regido pelas regras da separação convencional, cada parte administrando seus bens, seu
patrimônio exclusivo. No momento da dissolução da sociedade, por qualquer motivo, é
feita uma apuração contábil, na qual se apurará o saldo de cada um deles em comparação ao
monte de que dispunha quando do começo do casamento, e se promoverá a partilha dos
excedentes entre eles. Assim, a parcela inicial de cada um será resguardada, e haverá
partilha do que sobejar, vigendo regra de comunhão parcial.
Se na apuração houver prejuízo de ambos em relação ao patrimônio inicial, cada um
arcará com sua proporção, sem partilha das perdas. Se um tiver prejuizo, e outro lucro, o
lucro será partilhado, porém.
Como no final haverá comunhão, mesmo sendo regido pela separação parcial no seu
curso, a outorga conjugal é necessária em atos em que é imposta, porque somente assim se
observará a legalidade na época da partilha.

Michell Nunes Midlej Maron 101


EMERJ – CP V Direito Civil V

Casos Concretos

Questão 1

Diana e Joaquim, casados pelo regime legal em 1976, inauguram procedimento


judicial, pretendendo modificar o regime de bens, para o da separação. Demonstram a
inexistência de débitos, inclusive ficais, e motivam o pedido com a pretensão de constituir,
entre si, uma sociedade empresarial. O Ministério Público se pronuncia contrariamente,
com fundamento no artigo 2.039 do Código Civil. Os postulantes se manifestam alegando
a desnecessidade da intervenção do órgão ministerial, já que o pedido versa apenas sobre
direitos patrimoniais. Os autos foram conclusos, decida.

Resposta à Questão 1

Inovou o CC atual, permitindo a modificação do regime de bens no § 2º do artigo


1.639, rompendo o rigor da lei anterior que proclamava a imutabilidade do regime de bens.
Por afirmar o artigo 2.039 do CC de que o regime de bens nos casamentos celebrados sob a
vigência do CC/1916 e por ele estabelecido, parte da doutrina, em interpretação de cunho
restritivo, se posiciona no sentido da impossibilidade da mudança do regime de bens, nos
casamentos que se formaram antes da vigência da lei civil atual, prevalecendo, portanto,
para estes, o princípio da imutabilidade.
Em sentido contrário, posição que tende a evoluir, é no sentido de que apenas as
regras relativas ao conteúdo de cada regime sejam as da lei vigente na data da celebração
do casamento e assim a norma do artigo 2.039 do CC tem incidência apenas quanto aos
efeitos do regime, ou seja, quando da separação ou do divórcio, não se poderá lançar mão
das regras do novo Código Civil, para efeito de partilhar os bens do casal, devendo-se
aplicar os velhos dispositivos da lei vigente ao tempo em que o regime se constituiu, não

Michell Nunes Midlej Maron 102


EMERJ – CP V Direito Civil V

impedindo a modificação do regime de bens ser uma relação jurídica de cunho patrimonial
de eficácia continuada, gerando efeitos durante todo o tempo de subsistência da sociedade
conjugal, até a sua dissolução, a alteração pode ocorrer mesmo em face de matrimônios
anteriores (pensamento de Pablo Stolze Gagliano, Luiz Edson Fachin, Zeno Veloso, Álvaro
Vilaça entre outros). Veja o artigo 2.039 do CC:

“Art. 2.039. O regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código


Civil anterior, Lei no 3.071, de 1o de janeiro de 1916, é o por ele estabelecido.”

A jurisprudência tem adotado a corrente de que a modificação é possível em razão


da observância ao princípio da equal protection, que nada mais é do que o direito à
isonomia para pessoas que estejam em mesma situação jurídica.
Quanto à atuação necessária do MP, outros a exigem sob fundamento de que não
obstante tratar-se de questão de cunho patrimonial, decorre de relação de casamento,
devendo intervir o MP.

Questão 2

Ana e Bernardo celebraram, por meio de escritura pública, pacto antenupcial,


optando pelo regime de comunhão universal de bens e, ainda, convencionando as seguintes
cláusulas: a) exclusão do patrimônio comum de uma pequena casa de propriedade de Ana,
que, após o casamento, continuaria pertencente ao cônjuge mulher; b) que, devido às
constantes viagens de Bernardo, o poder familiar sobre eventual prole seria exercido
apenas por Ana. Este pacto antenupcial é válido?

Resposta à Questão 2

A cláusula “a” é perfeitamente válida, eis que o pacto se destina justamente a tratar
de aspectos patrimoniais, estando estes dados à liberdade de estipulação, ditada pelo artigo
1.639 do CC.
Já a cláusula “b” é inválida: é nula, porque ofende dispositivo de ordem pública,
norma cogente que tutela os direitos dos menores, não podendo ser afastada pelas partes.
Assim, o pacto deve ser mantido, à exceção da cláusula “b”, cuja nulidade deve ser
proferida de ofício.

Michell Nunes Midlej Maron 103


EMERJ – CP V Direito Civil V

Tema XI

Alimentos. Noções gerais. Alimentos naturais e civis. Espécies. Características. Imprescritibilidade.


Irrepetibilidade e irrenunciabilidade. Alimentos provisórios, provisionais e definitivos. Ação de alimentos.
Procedimento especial e ordinário. Ação cautelar. Alimentos de subsistência e culpa. Indignidade e
alimentos.

Notas de Aula15

1. Alimentos

A definição de alimentos não é adstrita ao conceito restritivo de comida, de


alimentação, por óbvio. Este instituto se refere a todo bem necessário à subsistência, à vida,
compreendendo vestuário, educação, moradia, etc.
O fundamento da prestação alimentar é a solidariedade e o dever de assistência
material, tanto no parentesco como nas entidades conjugais, casamento ou união estável.
Este dever existe de forma perene, nas relações de parentesco, e nas relações matrimoniais
tanto na constância quanto após sua dissolução, com algumas ressalvas.
Há quem faça distinção entre obrigação alimentar e dever de prestar alimentos.
Obrigação alimentar é aquela que se refere aos filhos menores, na qual existe a presunção
de necessidade alimentar do menor; as demais situações legais em que os alimentos são
devidos são qualificadas como situações de dever de prestar alimentos – parentesco, filhos
maiores, união estável e casamento. Nestas situações, não vige presunção de necessidade,
sendo necessária a prova desta.
Há crítica a esta diferenciação que se fundamenta na parte geral do direito
obrigacional, pois obrigação e dever são conceitos desta seara, que trata a obrigação como
aquilo que se contrapõe a um direito subjetivo, e o dever como o que se contrapõe a um
15
Aula ministrada pela professora Elisa Costa Cruz, em 2/3/2010.

Michell Nunes Midlej Maron 104


EMERJ – CP V Direito Civil V

poder de sujeição – pelo que não haveria lógica em se entender que há um dever, que
sujeitaria o devedor, mas não há presunção de necessidade.
Quanto à natureza jurídica da obrigação alimentar, uma primeira corrente defende
que os alimentos têm natureza patrimonial: os alimentos são bens materiais para
subsistência. De outro lado, considerando que os alimentos se ligam à dignidade da pessoa
humana, ante seu caráter subsistencial, outra corrente defende que os alimentos têm
natureza de direitos da personalidade. E para um terceiro entendimento, os alimentos têm
natureza jurídica mista, híbrida entre direitos patrimoniais e direitos da personalidade.

1.1. Características da obrigação alimentar

1.1.1. Personalidade

A primeira característica desta obrigação é sua personalidade, um caráter


personalíssimo. É isto que informa a adoção do binômio necessidade-possibilidade como
orientador para a quantificação da prestação alimentar: o juiz, ao fixar a prestação, deve
observar quais as necessidades do alimentando, e a possibilidade pagadora do alimentante,
o que revela a necessária observância a caracteres extremamente pessoais nesta fixação.
Debalde a personalidade da obrigação alimentar, veja o que diz o artigo 1.700 do
CC:

“Art. 1.700. A obrigação de prestar alimentos transmite-se aos herdeiros do


devedor, na forma do art. 1.694.”

Este artigo parece contrariar o caráter personalíssimo dos alimentos, e é de fato um


dispositivo gerador de enormes controvérsias. No CC de 1916, a previsão era exatamente
oposta: dizia aquele diploma que a obrigação alimentar não se passava aos herdeiros do
devedor. Veja o antigo artigo 402 do CC de 1916:

“Art. 402. A obrigação de prestar alimentos não se transmite aos herdeiros do


devedor.”

A despeito desta reviravolta, que elidiria o caráter personalíssimo desta obrigação,


parte da doutrina e jurisprudência ainda defendem esta natureza pessoal da obrigação, pela
seguinte interpretação: o que se transmite aos herdeiros não é a obrigação de continuar
prestando alimentos, mas sim a obrigação de pagar as dívidas alimentares vencidas e não
pagas pelo de cujus. Segundo esta parte da doutrina, este dispositivo disse mais do que
intentava, e por isso a única interpretação que se coaduna com a pessoalidade dos alimentos
é esta restrição.
Entretanto, tem prevalecido no STJ o entendimento de que o artigo 1.700 do CC
deve ser lido ipsis literis: o que se transfere com a morte do alimentante é a obrigação de
prestar alimentos, prospectiva, e não apenas daquilo que era devido e não foi pago. Assim,
espólio e herdeiros, até os limites da força da herança, devem arcar com a obrigação
alimentar dali por diante: se for o espólio o imputado, arca com a prestação até sua
extinção, pela partilha; se forem os herdeiros, respondem nas devidas proporções, até os
limites da força da herança.

Michell Nunes Midlej Maron 105


EMERJ – CP V Direito Civil V

A doutrina critica veementemente esta leitura feita pelo STJ, porque há uma
ilogicidade conceitual nesta interpretação, sendo impossível coadunar o caráter
personalíssimo da obrigação com a sua transmissibilidade. E mais: há uma dificuldade real,
prática, em se operacionalizar esta transmissão, não havendo solução para tal problemática.
De qualquer forma, mesmo para a corrente do STJ, a transmissão só se dá daquilo
que já foi constituído: se a obrigação de alimentos não estava estabelecida, porque sequer
havia ajuizamento de seu pedido em face do de cujus, não pode o suposto alimentado
pretender em face do espólio ou dos herdeiros.
Seguindo-se a posição do STJ, surge ainda outra discussão. Suponha-se que o
alimentando é filho do de cujus, ou seja, é seu herdeiro. Havendo pluralidade de herdeiros,
os demais deverão arcar com os alimentos em favor daquele herdeiro alimentando? Ou
seja: há transmissibilidade, quando o alimentando é também herdeiro do alimentante?
Cristiano Chaves entende que não é admissível a transmissibilidade, neste caso, pela
só razão de que representaria, o pagamento de alimentos ao herdeiro, um desequilíbrio na
partilha, eis que estaria recebendo sua parcela da herança mais a prestação alimentar.
Contudo, o entendimento majoritário tem sido de que há, ainda quando herdeiro, o direito a
receber os alimentos dos demais herdeiros, operando-se a transmissibilidade, portanto.
Sobre a transmissibilidade, veja o REsp. 775.180, e suas notas trazidas no
informativo 420 do STJ:
“REsp 775180 / MT. RECURSO ESPECIAL. Relator Ministro JOÃO OTÁVIO
DE NORONHA. Órgão Julgador - QUARTA TURMA. Data do Julgamento:
15/12/2009. Data da Publicação/Fonte: DJe 02/02/2010.
Ementa: DIREITO CIVIL. AÇÃO DE ALIMENTOS. ESPÓLIO.
TRANSMISSÃO DO DEVER JURÍDICO DE ALIMENTAR.
IMPOSSIBILIDADE.
1. Inexistindo condenação prévia do autor da herança, não há por que falar em
transmissão do dever jurídico de prestar alimentos, em razão do seu caráter
personalíssimo e, portanto, intransmissível.
2. Recurso especial provido.”

“ALIMENTOS. ESPÓLIO. LEGITIMIDADE.


Trata-se de REsp em que se discute a legitimidade do espólio para figurar como
réu em ação de alimentos e a possibilidade de ele contrair obrigação de alimentar,
mesmo que inexistente condenação antes do falecimento do autor da herança. A
Turma entendeu que, inexistindo condenação prévia do autor da herança, não há
por que falar em transmissão do dever jurídico de prestar alimentos em razão de
seu caráter personalíssimo, portanto intransmissível. Assim, é incabível, no caso,
ação de alimentos contra o espólio, visto que não se pode confundir a regra do art.
1.700 do CC/2002, segundo a qual a obrigação de prestar alimentos transmite-se
aos herdeiros do devedor, com a transmissão do dever jurídico de alimentar,
utilizada como argumento para a propositura da referida ação. Trata-se de coisas
distintas. O dever jurídico é abstrato e indeterminado e a ele se contrapõe o direito
subjetivo, enquanto a obrigação é concreta e determinada e a ela se contrapõe uma
prestação. Ressaltou-se que, na hipótese, as autoras da ação eram netas do de cujus
e, já que ainda vivo o pai, não eram herdeiras do falecido. Assim, não há sequer
falar em alimentos provisionais para garantir o sustento enquanto durasse o
inventário. Por outro lado, de acordo com o art. 1.784 do referido código, aberta a
sucessão, a herança é transmitida, desde logo, aos herdeiros legítimos e
testamentários. Dessa forma, o pai das alimentandas torna-se herdeiro e é a sua
parte da herança que deve responder pela obrigação de alimentar seus filhos, não o
patrimônio dos demais herdeiros do espólio. REsp 775.180-MT, Rel. Min. João
Otávio de Noronha, julgado em 15/12/2009.”

Michell Nunes Midlej Maron 106


EMERJ – CP V Direito Civil V

1.1.2. Irrenunciabilidade

Há um bom tempo o STJ entendia que a irrenunciabilidade dos alimentos só persiste


quanto aos devidos a parentes, e não aos consortes por casamento ou união estável. Estes
consortes, se quisessem renunciar expressamente aos alimentos, teriam a livre manifestação
desta vontade respeitada, mas os parentes não poderiam jamais fazê-lo, porque se trata de
um vínculo inquebrável.
O CC de 2002, porém, simplesmente previu que toda e qualquer obrigação
alimentar é irrenunciável, sem fazer esta ressalva que o STJ fazia. Todavia, mesmo assim
esta Corte tem mantido esta interpretação, decidindo que a irrenunciabilidade só alcança os
alimentos entre parentes, mas não entre consortes matrimoniais, lato sensu. Veja o artigo
1.707 do CC, e o enunciado 263 do CJF:

“Art. 1.707. Pode o credor não exercer, porém lhe é vedado renunciar o direito a
alimentos, sendo o respectivo crédito insuscetível de cessão, compensação ou
penhora.”

“Enunciado 263, CJF: Art. 1.707: O art. 1.707 do Código Civil não impede seja
reconhecida válida e eficaz a renúncia manifestada por ocasião do divórcio (direto
ou indireto) ou da dissolução da “união estável”. A irrenunciabilidade do direito a
alimentos somente é admitida enquanto subsista vínculo de Direito de Família.”

A súmula 336 do STJ é relevante, porque traz uma previsão de direito


previdenciário bastante específica:

“Súmula 336, STJ: A mulher que renunciou aos alimentos na separação judicial
tem direito à pensão previdenciária por morte do ex-marido, comprovada a
necessidade econômica superveniente.”

Destarte, ainda que haja renúncia, esta não aproveita ao ente previdenciário, que
deverá arcar com a prestação alimentar, por conta do princípio da solidariedade típica das
questões previdenciárias.
Veja os seguintes julgados:

“Ag 958962. Relator Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR. Data da


Publicação 01/02/2008.
Decisão: Vistos. Trata-se de agravo de instrumento manifestado por N A G P S e
outra contra decisão que negou seguimento a recurso especial, interposto pela
alínea "a", do permissivo Constitucional, no qual se alega violação aos artigos 535,
458, do Código de Processo Civil, 1.694 ao 1.710, do Código Civil.
O acórdão recorrido restou assim ementado (fl. 32):
"Ex-companheira - alimentos - Renúncia irrevogável e irretratável - Posterior
pretensão - Impossibilidade. A ex-companheira que renuncia de forma irrevogável
e irretratável aos alimentos por ocasião da dissolução da sociedade ou da união
estável, por acordo devidamente homologado, não tem o direito de vir
posteriormente a juízo pleiteá-los. A necessidade é presumida em lei em face dos
filhos menores dispensando fundamentação a respeito, sendo óbvia em relação às
naturais necessidades básicas como alimentos, saúde, educação e vestuário,
devendo o quantum ser adequado ao binômio possibilidade/necessidade. Os juros
moratórios em crédito de natureza alimentar são previstos em lei, no percentual de
1% ao mês, desde quando devidos, ou seja, a partir da citação e, quanto à correção

Michell Nunes Midlej Maron 107


EMERJ – CP V Direito Civil V

monetária, também devida por força de lei, destinando-se a recompor a expressão


da moeda, incide sobre as prestações vencidas."
(...)
No mais, pretende a primeira agravante o recebimento de alimentos do agravado.
Não obstante, consta expressamente no aresto vergastado "que por ocasião da
dissolução da sociedade de fato a recorrida renunciou aos alimentos, de forma
irrevogável e irretratável" (fl. 35). Nesses termos, inviável a pretensão. Para
melhor exame, confira-se:
"Direito civil e processual civil. Família. Recurso especial. Separação judicial.
Acordo homologado. Cláusula de renúncia a alimentos. Posterior ajuizamento de
ação de alimentos por ex-cônjuge. Carência de ação. Ilegitimidade ativa.
- A cláusula de renúncia a alimentos, constante em acordo de separação
devidamente homologado, é válida e eficaz, não permitindo ao ex-cônjuge que
renunciou, a pretensão de ser pensionado ou voltar a pleitear o encargo.
- Deve ser reconhecida a carência da ação, por ilegitimidade ativa do ex-cônjuge
para postular em juízo o que anteriormente renunciara expressamente.
Recurso especial conhecido e provido." (3ª Turma, REsp 701902/SP, Relatora
Ministra Nancy Andrighi, unânime, DJ 03.10.2005)
Destarte, inarredável a incidência do verbete n. 83, da Súmula deste Superior
Tribunal de Justiça. Ante o exposto, nego provimento ao presente agravo.
Publique-se. Brasília (DF), 06 de dezembro de 2007. MINISTRO ALDIR
PASSARINHO JUNIOR. Relator.”

“APELACAO - 1ª Ementa. DES. JACQUELINE MONTENEGRO - Julgamento:


11/10/2006 - DECIMA QUINTA CAMARA CIVEL.
APELAÇÃO CÍVEL. INDEFERIMENTO DA INICIAL. AÇÃO
DECLARATÓRIA DE UNIÃO ESTÁVEL C/CDISSOLUÇÃO E PARTILHA DE
BENS.
1 - É realmente verdadeiro que a união estável apesar de protegida pelo nosso
ordenamento jurídico. não exige a intervenção do estado-juiz nem para a sua
constituição e nem para a sua dissolução.
2 - Não obstante, vem a jurisprudência do nosso Tribunal de Justiça do Estado do
Rio de Janeiro e do Superior Tribunal de Justiça se firmando no sentido de
reconhecer interesse jurídico aos ex-companheiros em obter o reconhecimento da
existência edissolução da união estável, ainda que sobre ela não exista qualquer
litígio.
3 - Ressaltam os julgadores que o interesse reside na legítima pretensão de ver esta
relação jurídica reconhecida e exaurida, exatamente para que não paire qualquer
dúvida quanto ao acordo a que chegaram as partes no tocante á partilha do
patrimônio amealhado durante a sua constância e, especialmente, quando ao dever
de alimentar, seja para garantir a um dos companheiros o pensionamento, seja para
sacramentar a renúncia recíproca aos tais alimentos.
4 - Provimento do recurso.”

“0100183-35.2004.8.19.0001 (2008.005.00047) - EMBARGOS INFRINGENTES


- 1ª Ementa DES. SUIMEI MEIRA CAVALIERI - Julgamento: 13/05/2008
QUINTA CAMARA CIVEL. EMBARGOS
INFRINGENTES. ALIMENTOS. INDISPENSÁVEL VERIFICAÇÃO DO
BINÔMIO POSSIBILIDADE-NECESSIDADE. PROPORCIONALIDADE.
1 Ação de alimentos ajuizada pela ora Embargante, após a
dissolução de união estável, sob a alegação de que a superveniência de moléstia
grave teria reduzido consideravelmente sua capacidade para o trabalho,
ocasionando-lhe sérias dificuldades financeiras; pedido de prestação
de alimentos até seu total restabelecimento, previsto para junho de 2008.
2 - Cuidando-se de pretensão de alimentos, é indispensável a verificação do
binômio possibilidade-necessidade, a teor do disposto no §1º do artigo 1.694 do

Michell Nunes Midlej Maron 108


EMERJ – CP V Direito Civil V

Código Civil. O juiz, guiando-se pela prudência e pelo bom senso, deve considerar
a situação econômica das partes, de forma a averiguar a real possibilidade do
alimentante e a necessidade do alimentando, bem como se houve alteração na
fortuna dos litigantes, observando, sempre, o princípio da proporcionalidade como
critério para tal aferição.
3 - Os elementos trazidos aos autos fazem prova convincente das alegações da
Embargante, sendo de se considerar que as seqüelas e a debilidade física
decorrentes da doença que a acometeu decerto não permitem seu retorno às
atividades laborais senão de forma lenta e gradual. O pleito de alimentos deveu-se
tão-só ao fato de seu paulatino reingresso no mercado de trabalho, servindo como
meio de complementar sua renda, necessidade que se presume cessada quando de
sua alta médica. Em contrapartida, restou inequivocamente demonstrada a
capacidade do Embargado de arcar com o pensionamento temporário requerido,
por se tratar de engenheiro bem sucedido, sócio de grandes empresas de
engenharia e de vasto patrimônio.
4 - O dever de sustento decorrente da união estável subsiste mesmo após a
separação do casal. E ainda que da escritura declaratória de união estável conste
cláusula relativa à prestação de assistência material, tal disposição não deve ser
interpretada como renúncia aos alimentos, mas como mera dispensa.
Recurso a que se dá provimento.”

1.1.3. Impenhorabilidade, irrepetibilidade e impossibilidade de compensação

Os alimentos não podem sofrer constrição de qualquer forma. São prestações


dedicadas a suprir a subsistência do titular, e por isso são virtualmente intangíveis. Esta
regra está no artigo 1.707, fine, do CC, supra, e o inciso II do artigo 373 deste Código:

“Art. 373. A diferença de causa nas dívidas não impede a compensação, exceto:
(...)
II - se uma se originar de comodato, depósito ou alimentos;
(...)”

Há exceção à impenhorabilidade, porém: pode o crédito alimentar ser penhorado em


função de outro débito alimentar. Veja o artigo 649, § 2º, do CPC:

“Art. 649. São absolutamente impenhoráveis:


(...)
IV - os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de
aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por
liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os
ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, observado
o disposto no § 3º deste artigo; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006).
(...)
§ 2º O disposto no inciso IV do caput deste artigo não se aplica no caso de
penhora para pagamento de prestação alimentícia. (Incluído pela Lei nº 11.382, de
2006).
(...)”

É com base nesta exceção que se admite a penhora de salário para pagamento de
pensão alimentícia, por exemplo.
A doutrina ainda cria algumas exceções à irrepetibilidade e à impossibilidade de
compensação. Outrora, estas características foram tidas por absolutas, mas na vigência do
neoconstitucionalismo, mitigações são admitidas, e aqui se fundamentam na tutela da boa-

Michell Nunes Midlej Maron 109


EMERJ – CP V Direito Civil V

fé: os tribunais têm admitido a restituição ou compensação de verba alimentar para evitar
que o credor de alimentos se locuplete injustamente. Bom exemplo é quando, por qualquer
que seja a causa, o devedor de alimentos paga-os em duplicidade: faz o depósito e também
os tem descontados no salário. É clara situação em que o credor tem ciência de que está
recebendo o dobro do que deveria, devendo restituir o excesso.
Quanto à compensação, a sua admissibilidade é bastante casuística, podendo ser
ilustrado um caso pelo REsp. 982.857:

“REsp 982857 / RJ. RECURSO ESPECIAL. Relator Ministro MASSAMI


UYEDA. Órgão Julgador - TERCEIRA TURMA. Data do Julgamento: 18/09/2008
Data da Publicação/Fonte: DJe 03/10/2008.
Ementa: RECURSO ESPECIAL - EXECUÇÃO DE PRESTAÇÃO
ALIMENTÍCIA SOB O RITO DO ART. 733 DO CPC - LIMITES DA MATÉRIA
DE DEFESA DO EXECUTADO E LIQÜIDEZ DOS CRÉDITOS DESTE -
PREQUESTIONAMENTO - AUSÊNCIA - COMPENSAÇÃO DE DÍVIDA
ALIMENTÍCIA - POSSIBILIDADE APENAS EM SITUAÇÕES
EXCEPCIONAIS, COMO IN CASU - RECURSO ESPECIAL NÃO
CONHECIDO.
1. É inviável, em sede de recurso especial, o exame de matéria não prequestionada,
conforme súmulas ns. 282 e 356 do STF.
2. Vigora, em nossa legislação civil, o princípio da não compensação dos valores
referentes à pensão alimentícia, como forma de evitar a frustração da finalidade
primordial desses créditos: a subsistência dos alimentários.
3. Todavia, em situações excepcionalíssimas, essa regra deve ser flexibilizada,
mormente em casos de flagrante enriquecimento sem causa dos alimentandos,
como na espécie.
4. Recurso especial não conhecido.”

Veja também o Agravo de Instrumento 2009.002.31315, do TJ/RJ:

“Processo: 0037651-52.2009.8.19.0000 (2009.002.31315). 1ª Ementa - AGRAVO


DE INSTRUMENTO. DES. FERDINALDO DO NASCIMENTO - Julgamento:
12/01/2010 - DECIMA NONA CAMARA CIVEL.
AGRAVO DE INSTRUMENTO. PRESTAÇÃO DE ALIMENTOS.
POSSIBILIDADE DE MITIGAÇÃO AO PRINCÍPIO DA IRREPETIBILIDADE
DA VERBA ALIMENTAR. O agravante sofreu descontos em sua folha de
pagamento concernentes a alimentos retrativos que já haviam sido depositados. A
genitora dos menores confirma que eram realizados depósitos, no entanto, em
valores inferiores ao efetivamente devido. Embora a regra no ordenamento jurídico
pátrio seja o princípio da não compensação dos alimentos, o caso afigura-se
excepcionalíssimo exemplo de possibilidade de flexibilização desse preceito, sob
pena de enriquecimento indevido do alimentando, que receberia a prestação
alimentar em duplicidade. Precedentes desta Corte e do STJ. A questão pende de
apuração contábil, a fim de verificar a real existência de diferença entre os valores
descontados na folha de pagamento e àqueles efetivamente depositados pelo
alimentante. Apurado crédito em favor do agravante, faz-se imperiosa o
compensação dos valores, de modo a evitar um enriquecimento sem causa, diante
do pagamento duplamente realizado. PARCIAL PROVIMENTO DO RECURSO.”

1.2. Termo inicial e termo final da obrigação alimentar

Até a edição da Lei de Alimentos Gravídicos, Lei 11.804/08, era discutível o termo
inicial da obrigação alimentar. O nascituro, em nosso ordenamento jurídico, não tem

Michell Nunes Midlej Maron 110


EMERJ – CP V Direito Civil V

personalidade jurídica, porque nosso sistema adota a teoria natalista para determinar o
início da personalidade com o nascimento. Até nascer com vida, há mera expectativa de
direitos para o nascituro, portanto. O feto, porém, tem direito à vida, direito a nascer, e por
isso os alimentos gravídicos lhe são conferidos: o termo inicial dos alimentos surge com o
mero fato de o feto ter sido concebido.
Materialmente, então, o termo a quo dos alimentos é a concepção. Processualmente,
porém, os alimentos têm início na citação, e o termo final se liga ao elemento necessidade.
Enquanto for necessária a prestação alimentar, ela é devida.
Nos alimentos devidos ao consorte, cônjuge ou companheiro, o termo inicial surge
quando surge o dever de mútua assistência, ou seja, desde o início da relação.

1.3. Classificações da obrigação alimentar

Quanto às origens, a obrigação alimentar pode decorrer do parentesco, do


casamento ou união estável, ou de um ato ilícito. Sempre decorre da lei. Esta classificação
se torna importante quando se analisa a relação homoafetiva: seguindo-se criteriosamente
os meios pelos quais se origina a obrigação alimentar, esta relação não dá ensejo a
alimentos. Contudo, a união homoafetiva ensejará alimentos se se a equiparar a uma união
estável. Esta questão da homoafetividade será melhor abordada adiante.
Ainda quanto à origem, há outra forma de se classificar os alimentos, que podem ser
legais, ou legítimos; voluntários; ou indenizatórios. Estes últimos são decorrentes da
responsabilidade civil; os voluntários, decorrem do testamento; e os legais são aqueles
decorrentes da situação de parentesco ou matrimonialidade lato sensu.
Há ainda como se classificar os alimentos como civis ou naturais. Os civis
abrangem tanto a manutenção subsistencial como a manutenção do padrão de vida do
alimentante, sendo certo que se reconhece que é impossível manter o mesmo padrão, mas
deve ser tentada uma proximidade deste – são os alimentos côngruos. Os alimentos
naturais, por seu turno, são adstritos apenas à necessidade subsistencial.
A existência dos alimentos naturais tem sido bastante criticada, especialmente sua
origem mais comum: em regra, há prestação de alimentos naturais quando há dissolução da
sociedade conjugal com culpa do cônjuge. A doutrina moderna discute mesmo a
possibilidade de haver discussão de culpa nas relações, mas, pelo CC, o cônjuge declarado
culpado que precise de alimentos pelo inocente, só fará jus aos alimentos naturais. Veja os
artigos 1.694 e 1.695 do CC:

“Art. 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros
os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição
social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.
§ 1º Os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante
e dos recursos da pessoa obrigada.
§ 2º Os alimentos serão apenas os indispensáveis à subsistência, quando a situação
de necessidade resultar de culpa de quem os pleiteia.”

“Art. 1.695. São devidos os alimentos quando quem os pretende não tem bens
suficientes, nem pode prover, pelo seu trabalho, à própria mantença, e aquele, de
quem se reclamam, pode fornecê-los, sem desfalque do necessário ao seu
sustento.”

Michell Nunes Midlej Maron 111


EMERJ – CP V Direito Civil V

Na hipótese do artigo 1.695, supra, insere-se também aquela pessoa que tem bens,
mas não são líquidos o suficiente para garantir a mantença da pessoa. Pode um ex-cônjuge
restar proprietário de um imóvel, mas não colher renda mensal alguma, dependendo de
alimentos para subsistir, portanto.
Por fim, uma terceira classificação divide os alimentos em provisórios, provisionais
e definitivos. Provisionais são os alimentos fixados na ação cautelar típica do CPC, trazida
nos artigos 852 a 854 deste diploma:

“Art. 852. É lícito pedir alimentos provisionais:


I - nas ações de desquite e de anulação de casamento, desde que estejam separados
os cônjuges;
II - nas ações de alimentos, desde o despacho da petição inicial;
III - nos demais casos expressos em lei.
Parágrafo único. No caso previsto no nº I deste artigo, a prestação alimentícia
devida ao requerente abrange, além do que necessitar para sustento, habitação e
vestuário, as despesas para custear a demanda.”

“Art. 853. Ainda que a causa principal penda de julgamento no tribunal, processar-
se-á no primeiro grau de jurisdição o pedido de alimentos provisionais.”

“Art. 854. Na petição inicial, exporá o requerente as suas necessidades e as


possibilidades do alimentante.
Parágrafo único. O requerente poderá pedir que o juiz, ao despachar a petição
inicial e sem audiência do requerido, lhe arbitre desde logo uma mensalidade para
mantença.”

Estes alimentos provisionais estão em desuso, e, como toda cautelar, são criticados,
porque não há necessidade de se colher uma providência exclusivamente cautelar quando se
pode obter similar satisfativa, no bojo do próprio processo principal, através da antecipação
da tutela. Vale mencionar, porém, que no curso desta cautelar é possível a antecipação da
tutela, calcada em mera possibilidade de que os alimentos sejam devidos, só que isto não
empresta maior utilidade a esta ação, porque a Lei 5.478/68, que trata da ação especial de
alimentos, é ainda mais célere, determinando que o juiz fixará de plano alimentos
provisórios, salvo se o credor dispensar esta liminar, como se vê no artigo 4º desta lei:

“Art. 4º As despachar o pedido, o juiz fixará desde logo alimentos provisórios a


serem pagos pelo devedor, salvo se o credor expressamente declarar que deles não
necessita.
Parágrafo único. Se se tratar de alimentos provisórios pedidos pelo cônjuge, casado
pelo regime da comunhão universal de bens, o juiz determinará igualmente que
seja entregue ao credor, mensalmente, parte da renda líquida dos bens comuns,
administrados pelo devedor.”

Os alimentos provisórios são justamente estes fixados liminarmente em uma ação


de alimentos, e não no rito cautelar. Já os definitivos, por óbvio, são os definidos por
sentença. Pelo ensejo, vejamos as ações alimentares.

1.4. Ações alimentares

Na ação especial de alimentos – Lei 5.478/68 – a parte ajuíza a ação requerendo


alimentos, independentemente de advogado, pois se a parte alçar o juízo sem patrono ser-

Michell Nunes Midlej Maron 112


EMERJ – CP V Direito Civil V

lhe-á nomeado um. Concluso o pedido, o juiz deferirá desde logo os alimentos provisórios,
como visto no artigo supra, salvo se a parte declarar que não necessita destes alimentos
liminares.
Designada audiência e determinada a citação, a lei curiosamente não traz prazo para
contestação, o qual será fixado pelo juiz, com razoabilidade.
A audiência é una, concentrado toda a instrução probatória. A cisão da audiência é
excepcional. Após realizada a audiência, o juiz proferirá sentença.
Havendo interesse de incapaz, o MP tomará parte no feito, por óbvio.
Nos alimentos pleiteados em investigação de paternidade, separação ou divórcio, o
STJ, recentemente, decidiu que na ação de investigação de paternidade, quando procedente,
o juiz deverá fixar os alimentos em sentença, definitivamente, ainda que não haja pedido
expresso. Veja o REsp. 819.729:

“REsp 819729 / CE. RECURSO ESPECIAL. Relator Ministro ALDIR


PASSARINHO JUNIOR. Órgão Julgador - QUARTA TURMA. Data do
Julgamento: 09/12/2008. Data da Publicação/Fonte: DJe 02/02/2009.
Ementa: CIVIL E PROCESSUAL. RECURSO ESPECIAL. ALEGAÇÃO DE
OFENSA AO ART. 535 DO CPC. INEXISTÊNCIA. LEGITIMIDADE.
INOVAÇÃO RECURSAL. ALIMENTOS. CONCESSÃO DE OFÍCIO EM AÇÃO
INVESTIGATÓRIA DE PATERNIDADE JULGADA PROCEDENTE.
POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. APELAÇÃO. EFEITOS. ACÓRDÃO
RECORRIDO EM CONFORMIDADE COM A JURISPRUDÊNCIA DO STJ
(SÚMULA 83).
I. Não há que se falar em ofensa ao art. 535 do CPC quando o aresto hostilizado
apresenta fundamentação sobre os temas trazidos a debate e a pretensão do
embargante é a mera rediscussão da lide e o pronunciamento expresso acerca de
normas invocadas.
II. Questão relativa à legitimidade que não foi abordada pelo recorrente na
instância ordinária, revelando-se inovação recursal impossível de ser conhecida
nesta sede, sob pena de supressão de instância.
III. "A sentença de procedência da ação de investigação de paternidade pode
condenar o réu em alimentos provisionais ou definitivos, independentemente de
pedido expresso na inicial. Art. 7º da Lei 8.560, de 29.12.92." (REsp 257.885/RS,
Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, julgado em 21.09.2000, DJ
06.11.2000 p. 208).
IV. O STJ já firmou seu posicionamento no sentido de que a apelação contra a
sentença que fixa alimentos será recebida apenas no efeito devolutivo. Precedentes.
V. Recurso especial não conhecido.”

Os alimentos definitivos retroagem à data da citação, sempre, mas se a sentença


reduzir o valor dos alimentos provisórios, mesmo retroagindo não haverá compensação da
diferença, pois, como visto, os alimentos são irrepetíveis.
Sobre este termo inicial contando da citação, há uma discussão quanto aos
alimentos gravídicos: o termo final nesta ação é o nascimento do filho, mas o termo inicial
é muito discutido. O primeiro posicionamento, de Maria Berenice Dias, é de que sejam
devidos desde o começo da gestação até seu final, independentemente da data da citação:
ainda que seja a ação proposta no oitavo mês de gestação, retroagem os alimentos até a data
da provável concepção. Segundo entendimento defende que seja da propositura da ação. E,
por fim, uma terceira corrente defende que seja mesmo a data da citação, o que pode acabar
esvaziando a obrigação, eis que a citação pode se dar até mesmo após o nascimento, termo

Michell Nunes Midlej Maron 113


EMERJ – CP V Direito Civil V

final dos alimentos gravídicos. Tem certa prevalência a corrente que defende ser da
propositura da ação.
A competência para as ações de alimentos é sempre do domicílio do alimentado.
O ECA dispõe, no artigo 201, III, que o MP tem legitimidade para pleitear alimentos
em prol do menor, atuando como substituto processual. O TJ/RJ acolhe esta regra
literalmente, mas em nível federal, o STJ ressalva: para esta Corte, a legitimidade do MP só
surge quando o menor estiver em situação de risco. Veja o dispositivo e o REsp. 1.072.381:

“Art. 201. Compete ao Ministério Público:


(...)
III - promover e acompanhar as ações de alimentos e os procedimentos de
suspensão e destituição do pátrio poder poder familiar, nomeação e remoção de
tutores, curadores e guardiães, bem como oficiar em todos os demais
procedimentos da competência da Justiça da Infância e da Juventude; (Expressão
substituída pela Lei nº 12.010, de 2009)
(...)”

“REsp 1072381 / MG. RECURSO ESPECIAL. Relator Ministro ALDIR


PASSARINHO JUNIOR. Órgão Julgador - QUARTA TURMA. Data do
Julgamento: 24/03/2009. Data da Publicação/Fonte: DJe 11/05/2009
Ementa: CIVIL E PROCESSUAL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE
ALIMENTOS. AUTORIA. MINISTÉRIO PÚBLICO. MENOR. PÁTRIO PODER
DA GENITORA CONFIGURADO. ILEGITIMIDADE ATIVA. LEI N.
8.069/1990, ART. 201, III.
I. Resguardado o pátrio poder da genitora, não se reconhece legitimidade ativa ao
Ministério Público para a propositura de ação de alimentos. Precedentes.
II. Recurso especial conhecido, mas desprovido.”

Ainda quanto à legitimidade ativa para ações de alimentos, pertence ao próprio


alimentado, assistido ou representado, quando necessário. Há recente decisão importante do
STJ, o REsp. 1.046.130, que deve ser interpretada com cautela, porque pode dar a entender
que há legitimidade da mãe para pleitear alimentos para o filho (em nome próprio, como
substituta processual, e não em nome do menor), o que não é verdade. O que o STJ fez foi
superar a ilegitimidade, que estava patente, em prol da instrumentalidade, diante da
relevância dos alimentos. Veja:

“REsp 1046130 / MG. RECURSO ESPECIAL. Relatora Ministra NANCY


ANDRIGHI. Órgão Julgador - TERCEIRA TURMA. Data do Julgamento:
06/10/2009. Data da Publicação/Fonte: DJe 21/10/2009.
Ementa: Direito de família. Ação de reconhecimento e dissolução de união estável,
cumulada com partilha de bens. Pedido de alimentos, formulado pela ex-
companheira, em nome próprio, em favor dos filhos. Alegação de ilegitimidade.
Afastamento. Ilegitimidade superveniente, decorrente da maioridade de um dos
filhos atingida no curso do processo. Afastamento. Fixação da pensão alimentícia.
Súmula 7/STJ. Determinação, pelo Tribunal, de que a partilha seja feita
posteriormente, mediante processo de inventário. Adiantamento quanto aos bens
que a deverão integrar. Alegação de incompatibilidade entre as decisões.
Afastamento. Pedido de revisão do montante fixado a título de meação. Súmula
7/STJ. Recurso conhecido e improvido.
- Na ação em que se pleiteia alimentos em favor de filhos menores, é destes a
legitimidade ativa, devendo o genitor assisti-los ou representá-los, conforme a
idade. A formulação, porém, de pedido de alimentos pela mãe, em nome próprio,

Michell Nunes Midlej Maron 114


EMERJ – CP V Direito Civil V

em favor dos filhos, em que pese representar má-técnica processual, consubstancia


mera irregularidade, não justificando o pedido de anulação de todo o processo, se
fica claro, pelo teor da inicial, que o valor solicitado se destina à manutenção da
família. Ilegitimidade ativa afastada.
- A maioridade do filho menor, atingida no curso do processo, não altera a
legitimidade ativa para a ação.
- O valor da pensão fixada pelo Tribunal não pode ser revisto nesta sede por força
do óbice da Súmula 7/STJ.
- A determinação, feita pelo Tribunal, de que a partilha dos bens seja promovida
mediante processo futuro de inventário (art. 1.121, §1º do CPC) não é incompatível
com a prévia indicação de quais bens deverão integrar a divisão. Adiantamento de
partilha só haveria na hipótese em que o juiz determinasse, antes do inventário, a
divisão individualizada do patrimônio, atribuindo bens específicos a cada um dos
companheiros.
- A fixação do montante da participação da companheira na formação do
patrimônio comum é providência levada a efeito pelo Tribunal mediante análise do
contexto fático-probatório dos autos, cuja revisão é vedada pela Súmula 7/STJ.
Recurso conhecido e improvido.”

O valor da causa concessiva ou exonerativa de alimentos é o valor pretendido


multiplicado por doze. Quanto se quer majorar ou reduzir os alimentos, porém, há duas
posições: a primeira entende que será o valor integral dos alimentos que se pretende
majorar ou reduzir, multiplicado por doze, tal como na regra geral; ou o valor da diferença,
para mais ou menos, multiplicado por doze – o que parece ser mais correto, e é majoritário.
A condenação a alimentos engloba diversas parcelas dos rendimentos do
alimentante. O terço constitucional de férias e o décimo-terceiro salário, por exemplo,
sofrem incidência da prestação alimentar. Veja o REsp. 1.106.654:

“REsp 1106654 / RJ. RECURSO ESPECIAL. Relator Ministro PAULO


FURTADO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/BA). Órgão Julgador -
SEGUNDA SEÇÃO. Data do Julgamento: 25/11/2009. Data da Publicação/Fonte:
DJe 16/12/2009.
Ementa: DIREITO DE FAMÍLIA. ALIMENTOS. DÉCIMO TERCEIRO
SALÁRIO. TERÇO CONSTITUCIONAL DE FÉRIAS. INCIDÊNCIA.
JULGAMENTO SOB A TÉCNICA DO ART. 543-C DO CPC.
1. Consolidação da jurisprudência desta Corte no sentido da incidência da pensão
alimentícia sobre o décimo terceiro salário e o terço constitucional de férias,
também conhecidos, respectivamente, por gratificação natalina e gratificação de
férias.
2. Julgamento do especial como representativo da controvérsia, na forma do art.
543-C do CPC e da Resolução 08/2008 do STJ - Procedimento de Julgamento de
Recursos Repetitivos.
3. Recurso especial provido.”

O valor dos alimentos é fixado em percentual dos rendimentos, quando o


alimentante tem vínculo empregatício, ou em salários-mínimos, quando não tem renda
formal. Fixado em salários-mínimos, acompanha o reajuste deste. Havendo empregador, o
cumprimento da sentença se dá por desconto em folha, oficiando-se a fonte pagadora para
efetuar tal desconto.
Da sentença de alimentos cabe apelação apenas no efeito devolutivo, inclusive se a
sentença é parta majorar ou reduzir os alimentos. No TJ/RJ há alguns julgados recebendo-a

Michell Nunes Midlej Maron 115


EMERJ – CP V Direito Civil V

no efeito suspensivo, com base no poder de cautela, mas são minoritários, e o STJ é
pacífico em atribuir apenas efeito devolutivo ao recurso.
A sentença de alimentos é o que se chama de sentença determinativa, que contém
em si uma cláusula rebus sic stantibus, mantendo-se enquanto a situação fática que a
ensejou naqueles moldes perdure. Isto não significa que a possibilidade de que os alimentos
sejam revistos ou mesmo exonerados faça com que a sentença não transite em julgado
materialmente: há transito em julgado, porque a alteração nos fatos que enseja a revisão faz
com que novo processo seja inaugurado, com nova pretensão sob nova causa de pedir – a
revisão se pauta na alteração fática, e não na situação original (ser pai, por exemplo), a qual
transitou, sim, em julgado. A ação revisional é uma nova ação, com novo pedido e nova
causa de pedir, e por isso não perturba a coisa julgada fixada na sentença de alimentos
original, que se fundou em outra causa de pedir e outro pedido.
Pelo ensejo, vale abordar uma peculiaridade sobre a ação de exoneração de
alimentos: a sentença que exonera o devedor alimentar só produzirá efeitos quando do seu
trânsito em julgado, não podendo o devedor deixar de pagar alimentos até então, senão
quando amparado por uma antecipação da tutela neste sentido, concedida antes ou na
própria sentença.

Michell Nunes Midlej Maron 116


EMERJ – CP V Direito Civil V

Casos Concretos

Questão 1

Fábio, jovem de quinze anos de idade, representado por sua mãe, propõe execução
por quantia certa contra seu pai, Edgard, com o fito de haver sete anos de prestações em
atraso. Durante todo este tempo, Fábio foi sustentado apenas por sua mãe que tinha de
valer-se da generosidade de parentes e amigos, não obstante os insistentes apelos junto à
Edgard, que sempre deixava uma esperança de saldar seu débito, sem contudo adimplir a
obrigação. Citado, não paga no prazo legal, nem oferece bens à penhora. Fábio então
requer ao Juiz que proceda a penhora no único imóvel que possui o executado, um imóvel
residencial, que lhe restou da partilha por sua separação judicial. Edgard apresenta
embargos, argüindo a prescrição da pretensão do Exeqüente, e ainda o benefício do bem
de família, já que o imóvel penhorado é residência sua e da nova família, o que restou
comprovado. Diante dos fundamentos de defesa, devem ser acolhidos os embargos?

Resposta à Questão 1

Os embargos devem ser rejeitados, porque tratando-se de execução de alimentos


proposta por alimentando absolutamente incapaz, não há que se falar em prescrição das
prestações mensais, em virtude do artigo 198, I, do Código Civil:

“Art. 198. Também não corre a prescrição:


I - contra os incapazes de que trata o art. 3º;
(...)”

Quanto à exceção do bem de família, não deve igualmente ser acolhida, pois não
goza de impenhorabilidade o imóvel residencial do devedor de alimentos, conforme artigo
3°, III, da Lei 8.009/90:

“Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil,


fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
(...)

Michell Nunes Midlej Maron 117


EMERJ – CP V Direito Civil V

III - pelo credor de pensão alimentícia;


(...)”

A respeito, veja o REsp. 569.291:

“REsp 569291 / SP; Relator: Ministro CASTRO FILHO; Data do Julgamento:


02/10/2003 - CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. ALIMENTOS. PRESCRIÇÃO
QÜINQÜENAL. INEXISTÊNCIA. BEM DE FAMÍLIA.
IMPENHORABILIDADE. MENÇÃO GENÉRICA AO INTEIRO TEOR DA LEI.
DISSÍDIO NÃO CONFIGURADO.
I – Tratando-se de execução de alimentos, proposta por alimentando absolutamente
incapaz, não há que se falar em prescrição qüinqüenal das prestações mensais, em
virtude do disposto nos artigos 168, II, e 169, I, do Código Civil de 1916.
II – Inadmissível, em sede de especial, a menção genérica ao inteiro teor da lei,
sem a particularização dos dispositivos legais ditos violados.
III – É de ser negado seguimento ao recurso fundado na alínea “c” do permissivo
constitucional, quando não demonstrada a existência do propalado dissídio.
Recurso especial não conhecido.”

Questão 2

É possível continuar o recebimento de pensão alimentícia depois do trânsito em


julgado da sentença de nulidade do casamento que reconheceu a putatividade unilateral
em favor do alimentado?

Resposta à Questão 2

Para uma corrente, os efeitos da putatividade para o cônjuge de boa-fé persistem até
o trânsito em julgado da sentença, quando então se desfazem todos os vínculos. Neste
sentido, veja o REsp. 69.108:

“REsp 69108 / PR. RECURSO ESPECIAL. Relator Ministro NILSON NAVES.


Órgão Julgador - TERCEIRA TURMA. Data do Julgamento: 16/12/1999. Data da
Publicação/Fonte: DJ 27/03/2000 p. 92.
Ementa: Casamento putativo. Boa-fé. Direito a alimentos. Reclamação da mulher.
1. Ao cônjuge de boa-fé aproveitam os efeitos civis do casamento, embora anulável
ou mesmo nulo (Cód. Civil, art. 221, parágrafo único).
2. A mulher que reclama alimentos a eles tem direito mas até à data da sentença
(Cód. Civil, art. 221, parte final). Anulado ou declarado nulo o casamento,
desaparece a condição de cônjuges.
3. Direito a alimentos "até ao dia da sentença anulatória".
4. Recurso especial conhecido pelas alíneas a e c e provido.”

Numa outra corrente, defende-se que todos os efeitos de um casamento putativo são
reconhecidos ao cônjuge de boa-fé, perdurando a obrigação alimentar como em qualquer
outro casamento válido.

Michell Nunes Midlej Maron 118


EMERJ – CP V Direito Civil V

Tema XII

Obrigados aos alimentos. Natureza da obrigação alimentar. Chamamento ao processo dos demais obrigados.
Transmissibilidade da obrigação. Alimentos requeridos aos avós. Alimentos prestados aos pais idosos e
solidariedade. Alimentos ao nascituro. Vigência dos alimentos. Sentença. Modificação dos alimentos.
Natureza jurídica. Execução da dívida alimentar. Recurso. Coisa julgada. Exoneração. Súmula 358 do STJ.

Notas de Aula16

1. Alimentos ao nascituro

O nascituro tem direito a alimentos, pelo menos para a corrente civilista mais
moderna. Até pouco tempo, persistiu forte a divergência, porque o Brasil adota a teoria
natalista da personalidade jurídica. De fato, prevalecia a tese da não titularização dos
alimentos pelo nascituro, justamente com este enfoque natalista. Contudo, desde a Lei
11.804/08, Lei de Alimentos Gravídicos, o entendimento se inverteu, passando a haver
direito alimentar ao nascituro.
Esta Lei 11.804/08, porém, é um pouco contraditória quanto à titularidade dos
alimentos que estabelece. Isto porque em seu artigo 1º, diz que disciplina os alimentos
devidos à mulher gestante, mas no artigo 6º, parágrafo único, passa esta titularidade ao
menor. Veja:

“Art. 1º Esta Lei disciplina o direito de alimentos da mulher gestante e a forma


como será exercido.”

“Art. 6º Convencido da existência de indícios da paternidade, o juiz fixará


alimentos gravídicos que perdurarão até o nascimento da criança, sopesando as
necessidades da parte autora e as possibilidades da parte ré.
Parágrafo único. Após o nascimento com vida, os alimentos gravídicos ficam
convertidos em pensão alimentícia em favor do menor até que uma das partes
solicite a sua revisão.”

Se o menor não fosse parte do processo, não poderia receber esta entrega de direitos
por este parágrafo único. Compatibilizando os dispositivos, deve-se entender que o titular
desta obrigação alimentar gravídica é o nascituro, e não a mãe, interpretando-se o texto do
16
Aula ministrada pela professora Elisa Costa Cruz, em 4/3/2010.

Michell Nunes Midlej Maron 119


EMERJ – CP V Direito Civil V

artigo 1º com a devida técnica processual. E mais: o feto tem direito a nascer com vida, e é
daí que se colhe sua titularidade aos alimentos gavídicos, necessários a este nascimento.
É fato que o valor dos alimentos é calculado com base nas necessidades da gestante,
porque é ela quem está despendendo recursos maiores em função da gravidez. O titular dos
alimentos é o feto, mas a sua medida é pautada nas despesas da mãe.
O STJ já decidiu pela legitimidade ativa do nascituro. Veja o Ag. Rg. no Agravo de
Instrumento 1.092.134:

“AgRg no Ag 1092134 / SC. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE


INSTRUMENTO. Relator Ministro SIDNEI BENETI. Órgão Julgador -
TERCEIRA TURMA. Data do Julgamento: 17/02/2009. Data da Publicação/Fonte
DJe 06/03/2009.
Ementa: CIVIL E PROCESSUAL CIVIL - AGRAVO REGIMENTAL NO
AGRAVO DE INSTRUMENTO - RESPONSABILIDADE CIVIL - AÇÃO
INDENIZATÓRIA – ERRO MÉDICO - OXIGENOTERAPIA - FIBROPLASIA
RETROLENTICULAR – RETINOPATIA DO NASCITURO - CRIANÇA COM
PERDA DE 90% (NOVENTA POR CENTO) DA VISÃO -
RESPONSABILIDADE COMPROVADA PELO TRIBUNAL "A QUO" -
SÚMULA 7/STJ - DANOS MATERIAIS, MORAIS E ESTÉTICOS -
RAZOABILIDADE DO QUANTUM INDENIZATÓRIO - EXTENSÃO DO
JULGAMENTO DO RECURSO ESPECIAL 1.086.451/SC, QUANTO A JUROS,
AO AGRAVANTE.
I - A responsabilidade civil da Agravante, na espécie, decorreu da comprovada
falha na prestação dos serviços hospitalares de acompanhamento do recém-
nascido, que deu causa inequívoca à doença da fibroplasia retrolenticular -
retinopatia do nascituro -, que comprometeu mais de 90% (noventa por cento) da
visão da criança. Essa conclusão não pode ser afastada nesta Corte, por depender
do reexame do quadro fático-probatório.
II - Não há como afastar a condenação solidária do médico e do Hospital em que
internado o nascituro, na hipótese, pois o corpo clínico, embora possuísse
autonomia funcional, subordinava-se administrativamente aos regulamentos da
entidade hospital, relação que caracteriza, em sentido amplo, o vínculo da
preposição, ademais do fato de que Hospital recebia recursos da Seguridade Social.
Precedentes.
III - Considerando os danos permanentes à saúde do nascituro e a evidente
responsabilização, não há razão para a alteração do quantum indenizatório em face
da razoabilidade do patamar em que fixado, sendo R$ 76.000,00 (setenta e seis
mil) pelos danos morais e R$ 30.400,00 (trinta mil e quatrocentos reais) pelos
danos estéticos.
IV - Quanto aos juros moratórios, estende-se ao Agravante os efeitos do
acolhimento parcial do Recurso Especial interposto pelo médico, Dr. Rogério
Antônio Gaio (REsp 1.086.451/SC), estabelecendo-se que, também relativamente à
ASSEC, os juros moratórios correm a partir da data da citação e não da data do
evento danoso.
Agravo regimental improvido.”

2. Alimentos entre parentes

Os alimentos são devidos entre ascendentes, descendentes e colaterais até o segundo


grau – irmãos, bilaterais ou unilaterais. Tios, primos, etc, nenhum deles pode ser instado a
prestar alimentos, e se o fizerem, não poderão ser compelidos a continuar fazendo – a
obrigação alimentar paga por colaterais além do segundo grau é tida por obrigação natural,

Michell Nunes Midlej Maron 120


EMERJ – CP V Direito Civil V

irrepetível, sendo mera liberalidade de quem a presta. Veja o REsp. 1.032.846, constante do
informativo 381 do STJ:
“REsp 1032846 / RS. RECURSO ESPECIAL. Relatora Ministra NANCY
ANDRIGHI. Órgão Julgador - TERCEIRA TURMA. Data do Julgamento:
18/12/2008. Data da Publicação/Fonte: DJe 16/06/2009.
Ementa: Direito civil. Família. Recurso especial. Ação de alimentos ajuizada pelos
sobrinhos menores, representados pela mãe, em face das tias idosas.
- Conforme se extrai da descrição dos fatos conferida pelo Tribunal de origem, que
não pode ser modificada em sede de recurso especial, o pai sempre enfrentou
problemas com alcoolismo, mostrando-se agressivo com a mulher e incapaz de
fazer frente às despesas com a família, o que despertou nas tias o sentimento de
auxiliar no sustento dos sobrinhos. Quanto à mãe, consta apenas que é do lar e, até
então, não trabalhava.
- Se as tias paternas, pessoas idosas, sensibilizadas com a situação dos sobrinhos,
buscaram alcançar, de alguma forma, condições melhores para sustento da família,
mesmo depois da separação do casal, tal ato de caridade, de solidariedade humana,
não deve ser transmutado em obrigação decorrente de vínculo familiar,
notadamente em se tratando de alimentos decorrentes de parentesco, quando a
interpretação majoritária da lei, tem sido no sentido de que tios não devem ser
compelidos a prestar alimentos aos sobrinhos.
- A manutenção do entendimento firmado, neste Tribunal, que nega o pedido de
alimentos formulado contra tios deve, a princípio, permanecer, considerada a
cautela que não pode deixar jamais de acompanhar o Juiz em decisões como a dos
autos, porquanto os processos circunscritos ao âmbito do Direito de Família batem
às portas do Judiciário povoados de singularidades, de matizes irrepetíveis, que
absorvem o Julgador de tal forma, a ponto de uma jurisprudência formada em
sentido equivocado ter o condão de afetar de forma indelével um sem número de
causas similares com particularidades diversas, cujos desdobramentos poderão
inculcar nas almas envolvidas cicatrizes irremediáveis.
- Condição peculiar reveste este processo ao tratar de crianças e adolescentes de
um lado e, de outro, de pessoas idosas, duas categorias tuteladas pelos respectivos
estatutos protetivos – Estatuto da Criança e do Adolescente, e Estatuto do Idoso,
ambosconcebidos em sintonia com as linhas mestras da Constituição Federal.
- Na hipótese em julgamento, o que se verifica ao longo do relato que envolve as
partes, é a voluntariedade das tias de prestar alimentos aos sobrinhos, para suprir
omissão de quem deveria prestá-los, na acepção de um dever moral, porquanto não
previsto em lei. Trata-se, pois, de um ato de caridade, de mera liberalidade, sem
direito de ação para sua exigibilidade.
- O único efeito que daí decorre, em relação aos sobrinhos, é o de que prestados os
alimentos, ainda que no cumprimento de uma obrigação natural nascida de laços
de solidariedade, não são eles repetíveis, isto é, não terão as tias qualquer direito de
serem ressarcidas das parcelas já pagas.
Recurso especial provido.”

“ALIMENTOS. SOBRINHOS.
A Turma decidiu que as tias dos menores representados pela mãe na ação de
alimentos não são obrigadas a pagar alimentos aos sobrinhos após a separação dos
pais. No caso dos autos, a mãe não trabalha e o pai, com problemas de alcoolismo,
cumpre apenas parcialmente o débito alimentar (equivalente a um salário mínimo
mensal). Ressalta a Min. Relatora que a voluntariedade das tias idosas que vinham
ajudando os sobrinhos após a separação dos pais é um ato de caridade e
solidariedade humana, que não deve ser transmudado em obrigação decorrente do
vínculo familiar. Ademais, a interpretação majoritária da lei pela doutrina e
jurisprudência tem sido que os tios não devem ser compelidos a prestar alimentos

Michell Nunes Midlej Maron 121


EMERJ – CP V Direito Civil V

aos sobrinhos. Por tratar-se de ato de caridade e de mera liberalidade, também não
há o direito de ação para exigibilidade de ressarcimentos dos valores já pagos.
Invocou, ainda, que, no julgamento do HC 12.079-BA, DJ 16/10/2000, da relatoria
do Min. Sálvio de Figueiredo, reconheceu-se que a obrigação alimentar decorre da
lei, que indica os parentes obrigados de forma taxativa e não enunciativa, sendo
assim são devidos os alimentos, reciprocamente, pelos pais, filhos, ascendentes,
descendentes e colaterais até segundo grau, não abrangendo, consequentemente,
tios e sobrinhos. REsp 1.032.846-RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em
18/12/2008.”

Os avós são ascendentes, e são possíveis os chamados alimentos avoengos, devidos


para seus descendentes, ou pelos descendentes, na mão recíproca. Isto dá ensejo a uma
questão referente à ordem de imputação pela obrigação alimentar. Veja: os alimentos não
são uma obrigação solidária entre aqueles que os devem prestar, devendo ser observado o
brocardo proximior excludit remotiorem, pelo qual os obrigados mais próximos na cadeia
do débito excluem a obrigação dos mais remotos. Ocorre que justamente nos alimentos
devidos aos idosos, há uma exceção legal: o artigo 12 da Lei 10.741/03, o Estatuto do
Idoso. Veja:

“Art. 12. A obrigação alimentar é solidária, podendo o idoso optar entre os


prestadores.”

Este privilégio do idoso, no entanto, não se repete para os menores, o que é um


contrasenso em relação à especial proteção destas classes humanas, que equivale em grande
monta. Por isso, duas correntes se formaram: a primeira entende que esta distinção entre o
idoso e o menor não pode ser feita, e a solidariedade do idoso deve ser estendida aos
menores, por ordem constitucional, e há quem sustente que, também em atenção à quebra
da isonomia, o dispositivo é inconstitucional, devendo ser retirada a solidariedade que ele
prevê17. Do outro lado, há corrente que reputa constitucional esta solidariedade, porque o
legislador apenas pretendeu acelerar a prestação alimentar ao idoso, para quem a idade
avançada é elemento que torna o tempo ainda mais relevante, o que não ocorre para o
menor – e por isso a distinção é válida, não havendo quebra de isonomia. Cristiano Chaves
defende a inconstitucionalidade, apregoando a extensão da solidariedade aos menores.
Em síntese, a jurisprudência tem entendido que os alimentos, regra geral, são
devidos pela classe mais próxima, e por isso a classe mais remota é responsável subsidiária
e complementarmente, apenas, ressalvada esta exceção da solidariedade perante os idosos
(e perante os menores, segundo a melhor doutrina).
Ante a subsidiariedade que é a regra geral, para se acionar uma classe, é preciso que
a anterior tenha sido acionada, e que não possa arcar com os alimentos. Não é possível
acionar mais de uma classe de obrigados na mesma ação, em pólo litisconsorte: se o filho
quer pensão dos pais, deverá acioná-los primeiro, e somente na constatação da
impossibilidade pagadora, poderá acionar, em novo processo, seus avós. Minoritariamente,
porém, há quem defenda que se faz possível ajuizar desde logo contra o pólo litisconsorte
formado por mais de uma classe, em função da urgência e relevância imanentes aos
alimentos.

17
Em opinião pessoal, esta subvertente que entende que deve ser retirada a solidariedade prevista para os
idosos não tem cabimento, eis que abalroa frontalmente o princípio da vedação ao retrocesso nos direitos e
garantias fundamentais.

Michell Nunes Midlej Maron 122


EMERJ – CP V Direito Civil V

O grupo pertencente a um mesmo tronco da classe devedora, entretanto, é devedor


solidário dos alimentos. Entenda: se o neto pretende obter alimentos dos avós, deve ajuizar
o feito contra todos os que estiverem presentes em um dos troncos – materno ou paterno –,
devendo colocar no pólo passivo tanto o avô quanto a avó paterna, por exemplo – o casal é
devedor solidário. Se apenas a avó paterna for acionada, pode ela chamar o avô paterno ao
processo.
Não há solidariedade, porém, entre os membros de uma classe de um tronco e os
membros da mesma classe do outro tronco: não podem os avós paternos, acionados, alegar
solidariedade com os avós maternos, deixados de lado. Entretanto, mesmo sem haver
solidariedade entre os membros de mesma classe em troncos diferentes, a lei permite que
seja feito este chamamento, que não é tipicamente o chamamento ao processo do CPC, que
depende da solidariedade para ser possível. Este chamamento atípico é facultado pelo artigo
1.698 do CC:

“Art. 1.698. Se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em
condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau
imediato; sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem
concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma
delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide.”

Por não se tratar de um chamamento ao processo típico, a doutrina diverge quanto à


natureza desta intervenção de terceiros provocada. Fredie Didier e Cristiano Chaves
sustentam que se trata deveras de uma nova forma de intervenção de terceiros, inominada.
Outro entendimento, no entanto, defende que a parte final do artigo supra simplesmente é
ineficaz, porque não foi criada a competente norma processual definidora da forma de
intervenção de terceiros que ali se aponta, e, não sendo esta enquadrada em nenhuma das
existentes, simplesmente não se opera. O STJ se filia à corrente de Didier e Cristiano
Chaves.

3. Alimentos na guarda e na tutela

O ECA estabelece, no seu artigo 33, a obrigação alimentar do guardião:

“Art. 33. A guarda obriga a prestação de assistência material, moral e educacional à


criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros,
inclusive aos pais. (Vide Lei nº 12.010, de 2009)
§ 1º A guarda destina-se a regularizar a posse de fato, podendo ser deferida, liminar
ou incidentalmente, nos procedimentos de tutela e adoção, exceto no de adoção por
estrangeiros.
§ 2º Excepcionalmente, deferir-se-á a guarda, fora dos casos de tutela e adoção,
para atender a situações peculiares ou suprir a falta eventual dos pais ou
responsável, podendo ser deferido o direito de representação para a prática de atos
determinados.
§ 3º A guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para
todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários.
§ 4º Salvo expressa e fundamentada determinação em contrário, da autoridade
judiciária competente, ou quando a medida for aplicada em preparação para
adoção, o deferimento da guarda de criança ou adolescente a terceiros não impede
o exercício do direito de visitas pelos pais, assim como o dever de prestar

Michell Nunes Midlej Maron 123


EMERJ – CP V Direito Civil V

alimentos, que serão objeto de regulamentação específica, a pedido do interessado


ou do Ministério Público. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)”

O dever de prestar alimentos está na obrigação material imposta ao guardião, e o


menor ganha, com isto, mais um obrigado a tal prestação, porque também seus parentes
poderão ser demandados pelos alimentos, quando a guarda não lhes for concomitante. Isto
porque nem a suspensão nem a perda do poder familiar ensejam cessação da obrigação
alimentar, para a corrente mais abalizada – por todos, Cristiano Chaves.
Entenda: se a guarda for dada a terceiro, porque os pais foram destituídos do poder
familiar, ainda assim estes pais serão devedores de alimentos ao filho. Assim o é porque um
ato de descumprimento de deveres – o que levou à perda do poder familiar – não pode ser
premiado com a desobrigação pelos alimentos. Não faz sentido se assim o for. Poderia
acontecer, por exemplo, a inconcebível situação de o pai deixar reiteradamente de pagar
alimentos, o que leva à perda do poder familiar, e, com esta reiterada violação do dever, ser
premiado com a cessação deste mesmo dever. É um absurdo que não pode ser tolerado.
Na tutela, o pupilo não tem pais, e por isto se fez necessário um tutor. Neste caso, o
artigo 1.740, I, do CC traz a obrigação alimentar:

“Art. 1.740. Incumbe ao tutor, quanto à pessoa do menor:


I - dirigir-lhe a educação, defendê-lo e prestar-lhe alimentos, conforme os seus
haveres e condição;
(...)”

Os alimentos, na tutela, serão preferencialmente buscados no próprio patrimônio do


menor, gerido pelo tutor. Se não houver patrimônio, buscar-se-ão os alimentos junto às
relações de parentesco do menor. Se, ainda assim, não forem colhidos os alimentos,
somente então a obrigação passa ao próprio tutor, que com ela arcará nos limites de sua
possibilidade.

4. Termos inicial e final da obrigação alimentar

Materialmente, a obrigação alimentar começa: no casamento, com a celebração do


ato; na união estável, com o início da relação. Em ambas as relações, não termina sequer
depois da dissolução, ressalvada a possibilidade de renúncia, ou a alteração fática na
condição do ex-cônjuge ou ex-companheiro que denuncie que ele passou a ter condições de
se sustentar.
Nas relações de parentesco, a obrigação alimentar surge com a concepção,
entendimento que se reforça pelos alimentos devidos ao nascituro, como dispõe a Lei de
Alimentos Gravídicos. Nestas relações, persiste até o fim da vida.
Processualmente, qualquer que seja o vínculo material que gera a obrigação
alimentar, os alimentos serão devidos desde a citação do réu, ressalvando-se o caso dos
alimentos gravídicos, que é controvertido, mas prevalece a tese de que vigem desde a
propositura da ação.
Sobre o termo final processual, veja a súmula 358 do STJ:

“Súmula 358, STJ: O cancelamento de pensão alimentícia de filho que atingiu a


maioridade está sujeito à decisão judicial, mediante contraditório, ainda que nos
próprios autos.”

Michell Nunes Midlej Maron 124


EMERJ – CP V Direito Civil V

A exoneração, portanto, depende de decisão judicial, que pode vir inclusive por
antecipação de tutela.
Há também que se mencionar a fixação de alimentos entre ex-cônjuges por prazo
certo, o que se justifica para que se estipule um período razoável para a reinserção do ex-
cônjuge no mercado de trabalho, a fim de poder se sustentar. Como não há a presunção de
necessidade forte, neste caso, não se aplica a súmula, ou seja, findo o prazo estipulado na
sentença ou no acordo de alimentos, cessa a obrigação de plano, independentemente de
exoneração judicial.

5. Alimentos gravídicos

O tema já foi bastante abordado, mas ainda há alguns aspectos a serem firmados.
Veja o artigo 2º, e reveja o 6º desta Lei 11.804/08:

“Art. 2º Os alimentos de que trata esta Lei compreenderão os valores suficientes


para cobrir as despesas adicionais do período de gravidez e que sejam dela
decorrentes, da concepção ao parto, inclusive as referentes a alimentação especial,
assistência médica e psicológica, exames complementares, internações, parto,
medicamentos e demais prescrições preventivas e terapêuticas indispensáveis, a
juízo do médico, além de outras que o juiz considere pertinentes.
Parágrafo único. Os alimentos de que trata este artigo referem-se à parte das
despesas que deverá ser custeada pelo futuro pai, considerando-se a contribuição
que também deverá ser dada pela mulher grávida, na proporção dos recursos de
ambos.”

“Art. 6º Convencido da existência de indícios da paternidade, o juiz fixará


alimentos gravídicos que perdurarão até o nascimento da criança, sopesando as
necessidades da parte autora e as possibilidades da parte ré.
Parágrafo único. Após o nascimento com vida, os alimentos gravídicos ficam
convertidos em pensão alimentícia em favor do menor até que uma das partes
solicite a sua revisão.”

Questão que se coloca, aqui, é qual é o alcance destes “indícios de paternidade” que
justificam os alimentos gravídicos. De fato, a melhor interpretação deste dispositivo leva a
crer que se trata de um juízo de verossimilhança muito perfunctório, tal como na liminar em
ação cautelar: trata-se de um juízo de possibilidade da paternidade, não se exigindo a
probabilidade que se exige nas antecipações de tutela regulares do processo de
conhecimento.
Destarte, documentos, fotos, quaisquer provas superficiais de que um
relacionamento existiu entre a mãe e o suposto pai, à época da concepção, são suficientes a
este deferimento.
Comprovada a união estável, por exemplo, fica clara a possibilidade de que haja a
paternidade, e os alimentos gravídicos serão devidos. Se o suposto pai fizer prova de que
não é possível que seja o pai, de forma contundente, é claro que a obrigação ficará afastada,
e a ação será julgada improcedente. A análise tremendamente é casuística.

Michell Nunes Midlej Maron 125


EMERJ – CP V Direito Civil V

Vale mencionar que o exame de DNA no feto é vedado: este exame, altamente
invasivo, é prejudicial à sua saúde, pelo que esta prova não é admitida, somente sendo
possível após o nascimento.
O artigo 11 desta lei remete à aplicabilidade da Lei de Alimentos e do CPC, mas não
remete ao CC:
“Art. 11. Aplicam-se supletivamente nos processos regulados por esta Lei as
disposições das Leis nos 5.478, de 25 de julho de 1968, e 5.869, de 11 de janeiro
de 1973 - Código de Processo Civil.”

Contudo, não é razoável entender que não se aplique supletivamente o CC,


sobremaneira se se pensar na impossibilidade de se pedir alimentos aos demais
ascendentes, se o pai não puder fazê-lo, gerada pela alheação do CC destes alimentos
gravídicos – porque este suprimento pelos avós só é previsto no CC.
6. Execução de alimentos

As controvérsias, na execução de alimentos, são muito pontuais. A primeira é


decorrente da reforma operada pela Lei 11.232/05, que instituiu o cumprimento de sentença
como regra geral do CPC. Os artigos 732 a 736 do CPC, que regula as espécies de
execução de alimentos, não foram tangenciados pela reforma. Veja:

“Art. 732. A execução de sentença, que condena ao pagamento de prestação


alimentícia, far-se-á conforme o disposto no Capítulo IV deste Título.
Parágrafo único. Recaindo a penhora em dinheiro, o oferecimento de embargos
não obsta a que o exeqüente levante mensalmente a importância da prestação.”

“Art. 733. Na execução de sentença ou de decisão, que fixa os alimentos


provisionais, o juiz mandará citar o devedor para, em 3 (três) dias, efetuar o
pagamento, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetuá-lo.
§ 1º Se o devedor não pagar, nem se escusar, o juiz decretar-lhe-á a prisão pelo
prazo de 1 (um) a 3 (três) meses.
§ 2º O cumprimento da pena não exime o devedor do pagamento das prestações
vencidas e vincendas. (Redação dada pela Lei nº 6.515, de 26.12.1977)
§ 3º Paga a prestação alimentícia, o juiz suspenderá o cumprimento da ordem de
prisão.”

“Art. 734. Quando o devedor for funcionário público, militar, diretor ou gerente de
empresa, bem como empregado sujeito à legislação do trabalho, o juiz mandará
descontar em folha de pagamento a importância da prestação alimentícia.
Parágrafo único. A comunicação será feita à autoridade, à empresa ou ao
empregador por ofício, de que constarão os nomes do credor, do devedor, a
importância da prestação e o tempo de sua duração.”

“Art. 735. Se o devedor não pagar os alimentos provisionais a que foi condenado,
pode o credor promover a execução da sentença, observando-se o procedimento
estabelecido no Capítulo IV deste Título.”

Quando da reforma, surgiu questionamento se a sentença de alimentos seria


executada também de forma sincrética, no esteio do consabido artigo 475-J do CPC. O
primeiro entendimento defendeu que tanto na execução pelo artigo 732 quanto pelo artigo

Michell Nunes Midlej Maron 126


EMERJ – CP V Direito Civil V

733, supra, não haveria que se seguir o rito do cumprimento de sentença, mantendo-se
hígida sua previsão ritual – o legislador não os alterou propositadamente.
Este raciocínio sofreu a seguinte crítica: a defesa do executado nos alimentos era
feita por meio de embargos, sendo que a reforma excluiu da execução judicial esta forma de
defesa, mantendo-a apenas para a execução contra a Fazenda Pública e para a execução de
título extrajudicial – ou seja, o executado alimentar ficaria indefeso, carente de instrumento
para se manifestar. Redargüindo, esta corrente defendeu que bastaria estender o regramento
dos embargos existentes, da execução de título extrajudicial, para a execução de alimentos,
sem ressalvas.
Todavia, a posição que triunfou amplamente foi a de que as alterações reformistas
são aplicáveis à execução de alimentos, de forma que, estabelecida a obrigação alimentar
em título judicial, o rito sincrético do cumprimento de sentença deve ser observado.
Há, porém, controvérsia dentro desta própria corrente, bipartindo-a: de um lado há
quem defenda esta aplicação plena, a qualquer execução alimentar, do processo sincrético
(mas a multa de dez por cento não se aplica, porque a medida de coerção, mesmo adotando
o processo sincrético, é a prisão civil); de outro, há corrente que defende que somente nas
execuções de alimentos pretéritos, estipulada no artigo 732 do CPC, supra, se pode falar no
rito de cumprimento de sentença, porque na execução pelo rito especial do artigo 733, que
comina prisão civil como medida de coerção, não é compatível a aplicação do cumprimento
de sentença.
Definindo os “alimentos novos”, veja a súmula 309 do STJ:

“Súmula 309, STJ: O débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é
o que compreende as três prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as
que se vencerem no curso do processo.(*).
(*) julgando o HC 53.068-MS, na sessão de 22/03/2006, a Segunda Seção
deliberou pela ALTERAÇÃO da súmula n. 309. REDAÇÃO ANTERIOR (decisão
de 27/04/2005, DJ 04/05/2005):
O débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende
as três prestações anteriores à citação e as que vencerem no curso do processo.”

Quem define a forma de cumprimento da sentença (ou execução autônoma,


dependendo da corrente), é a parte credora, e não o juiz. Se o credor optar por perseguir o
crédito sem se valer prisão civil, não poderá o juiz impor este procedimento especial. A
respeito, veja o HC 128.229, presente no informativo 391 do STJ:

“EXECUÇÃO. PRESTAÇÃO ALIMENTÍCIA. PRISÃO CIVIL DE OFÍCIO.


Na espécie, constata-se que a alimentanda, ao ajuizar a ação de execução de
alimentos, expôs os fatos e fundamentos que dão supedâneo à sua pretensão, sem
fazer qualquer referência ao procedimento a ser adotado. Apenas requereu, em
síntese, a condenação do executado para pagar o valor integral decorrente da
pensão alimentícia do período de dezembro de 2000 até março de 2005,
deduzindo-se os valores parcialmente pagos, não havendo qualquer pedido no
sentido de que, pelo inadimplemento do débito alimentar pleiteado, seja utilizado o
meio coercitivo da prisão civil. Diante disso, a Turma concedeu a ordem ao
entendimento de que é certo que a execução de sentença condenatória de prestação
alimentícia, em princípio, rege-se pelo procedimento da execução por quantia
certa, ressaltando-se contudo, que a considerar o relevo das prestações de natureza
alimentar, que possuem nobres e urgentes desideratos, a lei adjetiva civil confere
ao exequente a possibilidade de requerer a adoção de mecanismos que propiciam a

Michell Nunes Midlej Maron 127


EMERJ – CP V Direito Civil V

célere satisfação do débito alimentar seja pelo meio coercitivo da prisão civil do
devedor seja pelo desconto em folha de pagamentos da importância devida.
Todavia, é inconcebível que a exequente da verba alimentar, maior interessada na
satisfação de seu crédito que detém efetivamente legitimidade para propor os
meios executivos que entenda conveniente, seja compelida a adotar procedimento
mais gravoso para o executado, do qual não se utilizou voluntariamente. Vale
ressaltar que a prisão civil não deve ser decretada ex officio, isso porque é o credor
quem sempre estará em melhores condições que o juiz para avaliar sua eficácia e
oportunidade. Deixa-se, pois, ao exequente a liberdade de pedir ou não a aplicação
desse meio executivo de coação, quando entenda que lhe vai ser de utilidade, pois
pode acontecer que o exequente, maior interessado na questão, por qualquer
motivo, não julgue oportuna e até considere inconveniente a prisão do executado.
HC 128.229-SP, Rel. Min. Massami Uyeda, julgado em 23/4/2009.”

“HC 128229 / SP. HABEAS CORPUS. Relator Ministro MASSAMI UYEDA.


Órgão Julgador - TERCEIRA TURMA. Data do Julgamento: 23/04/2009. Data da
Publicação/Fonte: DJe 06/05/2009.
Ementa: HABEAS CORPUS - AÇÃO DE EXECUÇÃO DE PRESTAÇÕES
ALIMENTARES - INEXISTÊNCIA DE PEDIDO DE PRISÃO CIVIL DO
EXECUTADO E EXECUÇÃO DE VERBAS ALIMENTARES, INCLUSIVE,
PRETÉRITAS - OBSERVÂNCIA DO ARTIGO 732, CPC - NECESSIDADE -
CONVERSÃO PARA O RITO PREVISTO NO ARTIGO 733, DE OFÍCIO -
IMPOSSIBILIDADE - IMINÊNCIA DA EXPEDIÇÃO DE DECRETO
PRISIONAL - VERIFICAÇÃO - ORDEM CONCEDIDA.
I - A execução de sentença condenatória de prestação alimentícia, em princípio,
rege-se pelo procedimento da execução por quantia certa, ressaltando-se, contudo,
que, a considerar o relevo das prestações de natureza alimentar, que possuem
nobres e urgentes desideratos, a lei adjetiva civil confere ao exeqüente a
possibilidade de requerer a adoção de mecanismos que propiciam a célere
satisfação do débito alimentar, seja pelo meio coercitivo da prisão civil do devedor,
seja pelo desconto em folha de pagamento da importância devida;
II - Não se concebe, contudo, que a exeqüente da verba alimentar, maior
interessada na satisfação de seu crédito e que detém efetivamente legitimidade para
propor os meios executivos que entenda conveniente, seja compelida a adotar
procedimento mais gravoso para com o executado, do qual não se utilizou
voluntariamente, muitas vezes para não arrefecer ainda mais os laços de
afetividade, já comprometidos com a necessária intervenção do Poder Judiciário,
ou por qualquer outra razão que assim repute relevante.
III - Ordem concedida.”

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Casos Concretos

Questão 1

Zilma, divorciada de Paulo César há quinze anos, sofre desequilíbrio mental de


natureza grave. Por este motivo, perde o emprego e não tem parentes para ajudá-la
materialmente, necessitando imperiosamente de alimentos. No divórcio em questão, de
natureza consensual, Zilma abriu mão de qualquer pensão alimentícia, já que à época
tinha meios de subsistência. Por tais fatos a necessitada pode obter pensão alimentícia de
seu ex-cônjuge? Responda fundamentadamente.

Resposta à Questão 1

Se Zilma não renunciou aos alimentos, se limitando apenas a deixar de exercer seu
direito a eles, terá direito a pleiteá-los aqui, mesmo após tanto tempo. Contudo, se ao abrir
mão dos alimentos ela renunciou expressamente a seu direito a percebê-los, não mais
subsiste a obrigação alimentar para Paulo César.

Questão 2

Lívia, representada por sua mãe adotiva, Roberta, propôs ação de investigação de
paternidade cumulada com alimentos. Sustenta que, ao nascer, foi registrada apenas com o
nome da mãe biológica e que posteriormente, foi adotada unicamente por uma mulher,
viúva, com quem reside. Em contestação, alegou o réu que havendo registro prévio, a ação
de investigação de paternidade não pode ser movida sem que se peça a nulidade do
existente, provando-se ainda, que esse é resultante de erro ou falsidade. Ponderou não
haver permissão legal, a teor do que dispõe o Código Civil no seu artigo 348, para a
convivência de duas formas de filiação, da adotiva com a biológica, pois que uma e outra
estão equiparadas, por força de preceito constitucional. Invocou os artigos 41 e 48 do
Estatuto da Criança e do Adolescente. Questionou qual o efeito do desligamento dos
vínculos entre o adotado e seus pais e parentes naturais, se se permite que possa ele
investigar a sua paternidade. Ressaltou, também, não existir o dever de prestar alimentos
entre pais e filhos genéticos se ocorre a adoção. Em réplica, aduz a autora que o direito de

Michell Nunes Midlej Maron 129


EMERJ – CP V Direito Civil V

filiação pode ser exercitado sem qualquer restrição, como dispõe o artigo 27 do Estatuto
da Criança e do Adolescente, e que a regra do artigo 48 da mesma lei não pode atingir o
pai biológico, já que não participou da adoção autorizada pela mãe biológica. Pergunta-
se: É possível o pai biológico reconhecido por exame de DNA, após adoção da criança, ser
condenado a pagar alimentos à filha?Decida a questão fundamentadamente.

Resposta à Questão 2

A adoção rompe os vínculos biológicos anteriores, desde que estes vínculos sejam
conhecidos de todos os envolvidos. Esta é a melhor interpretação possível, porque o pai
biológico que sequer era conhecido quando da efetivação da adoção não pode ter-se
desvinculado antes mesmo de ter-se vinculado – não se pode desfazer um vínculo que ainda
estava indefinido. Mais do que isso, pode o pai biológico, inclusive, impugnar a adoção
feita à sua revelia – afinal, ele também tem direito a ser pai.
Esta é a leitura que o STJ faz desta situação, como se vê no REsp. 813.604:

“REsp 813604 / SC. RECURSO ESPECIAL. Relatora Ministra NANCY


ANDRIGHI. Órgão Julgador - TERCEIRA TURMA. Data do Julgamento:
16/08/2007. Data da Publicação/Fonte: DJ 17/09/2007 p. 258.
Ementa: Direito civil. Família. Investigação de paternidade. Pedido de alimentos.
Assento de nascimento apenas com o nome da mãe biológica. Adoção efetivada
unicamente por uma mulher.
- O art. 27 do ECA qualifica o reconhecimento do estado de filiação como direito
personalíssimo, indisponível e imprescritível, o qual pode ser exercitado por
qualquer pessoa, em face dos pais ou seus herdeiros, sem restrição.
- Nesses termos, não se deve impedir uma pessoa, qualquer que seja sua história de
vida, tenha sido adotada ou não, de ter reconhecido o seu estado de filiação, porque
subjaz a necessidade psicológica do conhecimento da verdade biológica, que deve
ser respeitada.
- Ao estabelecer o art. 41 do ECA que a adoção desliga o adotado de qualquer
vínculo com pais ou parentes, por certo que não tem a pretensão de extinguir os
laços naturais, de sangue, que perduram por expressa previsão legal no que
concerne aos impedimentos matrimoniais, demonstrando, assim, que algum
interesse jurídico subjaz.
- O art. 27 do ECA não deve alcançar apenas aqueles que não foram adotados,
porque jamais a interpretação da lei pode dar ensanchas a decisões
discriminatórias, excludentes de direitos, de cunho marcadamente indisponível e
de caráter personalíssimo, sobre cujo exercício não pode recair nenhuma restrição,
como ocorre com o Direito ao reconhecimento do estado de filiação.
- Sob tal perspectiva, tampouco poder-se-á tolher ou eliminar o direito do filho de
pleitear alimentos do pai assim reconhecido na investigatória, não obstante a letra
do art. 41 do ECA.
- Na hipótese, ressalte-se que não há vínculo anterior, com o pai biológico, para ser
rompido, simplesmente porque jamais existiu tal ligação, notadamente, em
momento anterior à adoção, porquanto a investigante teve anotado no assento de
nascimento apenas o nome da mãe biológica e foi, posteriormente, adotada
unicamente por uma mulher, razão pela qual não constou do seu registro de
nascimento o nome do pai.
Recurso especial conhecido pela alínea "a" e provido.”

Há quem defenda, porém, que os vínculos se rompem, como postulado pela parte ré
do caso, mas é posição minoritária.

Michell Nunes Midlej Maron 130


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Tema XIII

União estável. Evolução histórica e a Lei 8.971/94. O Código Civil e a Lei 9.278/96. Tutela constitucional.
Requisitos. Sociedade de fato e concubinato. Impedimentos. Efeitos jurídicos. Direitos e deveres dos
companheiros. Concomitância ao casamento.

Notas de Aula18

1. União estável

Muito já se disse da origem histórica deste instituto, que veio com a relativização do
conceito de família, antes fundada unicamente no casamento, e agora baseada no afeto
dedicado de seus membros (a família eudomonista, de Maria Berenice Dias). É desta
concepção de família, fundada na ética e no afeto, que exsurge o reconhecimento
constitucional da união estável.
A união estável é um fenômeno de fato, exatamente oposto, em sua constatação, ao
casamento, que é fenômeno jurídico absolutamente solene. Por ser desta forma, a união
estável não conta com um marco inicial expresso muito claro.
Este fenômeno, que sempre existiu, se tornou socialmente visível em meados da
década de sessenta, em que a dissolução do vínculo conjugal era impossível, no nosso
ordenamento, mas só foi realmente reconhecida como entidade familiar muito adiante no
tempo, só surgindo, inclusive, este nomen juris, na CRFB de 1988. Até então, o que existia
era aquilo que se chamava de concubinato puro – predecessor da união estável – e o
concubinato impuro, que hoje é simplesmente denominado concubinato, pelo CC de 2002.
O concubinato puro de outrora era o reconhecimento civil da relação empreendida por duas
pessoas que não tinham impedimentos para o casamento, mas não formalizaram sua união.
Há que se atentar para o conceito de posse de estado de casado, que para alguns é
sinônimo da união estável, mas tecnicamente, porém, se trata de outra situação: consiste no
estado das pessoas que efetivamente se casaram, mas não contam com o registro deste ato
solene, porque este registro se perdeu, e não há como se obter nova certidão porque o
registro civil perdeu seus arquivos, por qualquer motivo. É situação exatamente análoga à
posse de estado de filho, que já se abordou, e a solução é a mesma: deve ser ajuizado
procedimento de jurisdição voluntária, denominado de justificação, a fim de certificar esta

18
Aula ministrada pela professora Elisa Costa Cruz, em 4/3/2010.

Michell Nunes Midlej Maron 131


EMERJ – CP V Direito Civil V

situação dos cônjuges sem registro. Na união estável, não há casamento jamais – é clara a
diferença entre os conceitos.
Um casamento religioso não registrado, por exemplo, não é casamento legalmente
considerado. Contudo, esta cerimônia certamente é um marco bastante sólido para se
investigar uma eventual formação da situação fática de união estável.
Outro conceito que deve se diferençar da união estável é o de sociedade de fato.
Este conceito, típico do direito das obrigações, está associado ao concubinato, mas é
instituto regido ainda pelo direito obrigacional. Se a união de duas pessoas findou-se antes
da CRFB, a regência dos direitos das partes será definida por meio desta sociedade de fato,
porque antes da CRFB não se reconhecia esta união como entidade familiar.
O constituinte, ao disciplinar no § 3º do artigo 226 da CRFB que “para efeito da
proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade
familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”, quis colocar a união estável
em um patamar de inferioridade axiológica ao casamento?
A discussão perdurou forte por um bom tempo, havendo duas correntes. A primeira
entende que a facilitação da conversão realmente significa que a união estável é um minus
em relação ao casamento, pelo que estabelecer direitos desiguais ao cônjuge e ao
companheiro é constitucional – o que ocorre no direito das sucessões. A segunda vertente,
no entanto, defende que a facilitação para o casamento, mencionada pelo constituinte, nada
mais é do que o fomento a esta formalização, eis que a presunção de que haja a união é
muito mais sólida no casamento do que na união estável, mas não significa que as
sociedades maritais sejam desiguais, que a união estável tenha desvalor perante o
casamento. Por isso, diz esta doutrina, o tratamento diferenciado dado ao companheiro em
relação ao cônjuge, na sucessão, é inconstitucional.

1.1. Histórico normativo

Vale traçar um histórico das normas regulamentares de direitos para companheiros.


O primeiro registro consta do Decreto-Lei 7.036/44 e da Lei 6.367/75, somados à súmula
35 do STF:

“Súmula 35, STF: Em caso de acidente do trabalho ou de transporte, a concubina


tem direito de ser indenizada pela morte do amásio, se entre eles não havia
impedimento para o matrimônio.”

O segundo registro é a Lei 4.242/63, que trata da possibilidade de o servidor público


inscrever como seu dependente quem com ele conviva.
Terceiro registro é a Lei de Registros Públicos, Lei 6.015/73, que possibilitou à
companheira adotar o sobrenome do companheiro.
Em seguida, a CRFB promoveu o maior salto de qualidade na leitura do instituto,
estabelecendo a união estável como entidade familiar, no seu artigo 226, § 3º:

“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.


(...)
§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o
homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão
em casamento.
(...)”

Michell Nunes Midlej Maron 132


EMERJ – CP V Direito Civil V

A Lei 8.009/90 também reconheceu esta entidade, assim como o artigo 42 do ECA:

“Art. 42. Podem adotar os maiores de 18 (dezoito) anos, independentemente do


estado civil. (Redação dada pela Lei nº 12.010, de 2009)
§ 1º Não podem adotar os ascendentes e os irmãos do adotando.
§ 2º Para adoção conjunta, é indispensável que os adotantes sejam casados
civilmente ou mantenham união estável, comprovada a estabilidade da família.
(Redação dada pela Lei nº 12.010, de 2009)
§ 3º O adotante há de ser, pelo menos, dezesseis anos mais velho do que o
adotando.
§ 4º Os divorciados, os judicialmente separados e os ex-companheiros podem
adotar conjuntamente, contanto que acordem sobre a guarda e o regime de visitas e
desde que o estágio de convivência tenha sido iniciado na constância do período de
convivência e que seja comprovada a existência de vínculos de afinidade e
afetividade com aquele não detentor da guarda, que justifiquem a excepcionalidade
da concessão. (Redação dada pela Lei nº 12.010, de 2009)
§ 5º Nos casos do § 4o deste artigo, desde que demonstrado efetivo benefício ao
adotando, será assegurada a guarda compartilhada, conforme previsto no art. 1.584
da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil. (Redação dada pela Lei
nº 12.010, de 2009)
§ 6º A adoção poderá ser deferida ao adotante que, após inequívoca manifestação
de vontade, vier a falecer no curso do procedimento, antes de prolatada a sentença.
(Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009).”

A Lei 8.245/91 também menciona a união estável, assegurando a continuidade do


contrato de locação ao companheiro supérstite, nos artigos 11 e 12:

“Art. 11. Morrendo o locatário, ficarão sub - rogados nos seus direitos e
obrigações:
I - nas locações com finalidade residencial, o cônjuge sobrevivente ou o
companheiro e, sucessivamente, os herdeiros necessários e as pessoas que viviam
na dependência econômica do de cujus , desde que residentes no imóvel;
II - nas locações com finalidade não residencial, o espólio e, se for o caso, seu
sucessor no negócio.”

“Art. 12. Em casos de separação de fato, separação judicial, divórcio ou


dissolução da união estável, a locação residencial prosseguirá automaticamente
com o cônjuge ou companheiro que permanecer no imóvel. (Redação dada pela
Lei nº 12.112, de 2009)
§ 1º Nas hipóteses previstas neste artigo e no art. 11, a sub-rogação será
comunicada por escrito ao locador e ao fiador, se esta for a modalidade de garantia
locatícia. (Incluído pela Lei nº 12.112, de 2009)
§ 2º O fiador poderá exonerar-se das suas responsabilidades no prazo de 30
(trinta) dias contado do recebimento da comunicação oferecida pelo sub-rogado,
ficando responsável pelos efeitos da fiança durante 120 (cento e vinte) dias após a
notificação ao locador. (Incluído pela Lei nº 12.112, de 2009).”

Em 1991, a Instrução Normativa da Secretaria da Receita Federal 126 regulou a


qualificação de dependente, para fins de Imposto de Renda, ao companheiro unido há ao
menos cinco anos, ou havendo prole comum. É daqui que se colheu o mito de que este
prazo seria o mínimo para se configurar a união estável, entendimento que vigeu até 1996,

Michell Nunes Midlej Maron 133


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quando a Lei 8.971/94, seguida da Lei 9.278/96, que acabaram com esta ideia de prazo
mínimo.
Finalmente, o CC de 2002 é pródigo em previsões sobre a união estável, mas
representa, de fato, retrocesso em alguns aspectos, como na sucessão.
Antes da Lei 8.971/94, o companheiro não tinha direito a alimentos. A situação se
resolvia em indenização por serviços prestados por um companheiro ao outro: era a única
solução para se fazer justiça, computando os anos de união como anos de serviço, se a
companheira (ou o companheiro) cuidasse do lar.
A Lei 9.278/96, porém, já veio expressamente para regular o artigo 226, § 3º, da
CRFB. Apesar de tratar de pontos em comum, o entendimento que primou foi o de que não
houve revogação da lei de 1994 por esta última, vigendo ambas em conjunto.
Quando veio ao ordenamento o CC de 2002, ressurgiu esta discussão: este diploma
revogou as leia anteriores? O entendimento principal foi de que não houve revogação: as
leis anteriores permaneceram vigentes, especialmente sobre temas que o CC não aborda,
como o direito real de moradia do companheiro, mesmo havendo quem defendesse que
houve revogação.
Veja que, mesmo se se entender que houve a revogação dos diplomas pelo CC, este
ponto, do direito real de habitação, não se altera, porque com a revogação da norma
expressa para o companheiro, o entendimento que prevalece é o de que o direito real de
moradia previsto para o cônjuge se estende ao companheiro. Veja o enunciado 117 do CJF:

“Enunciado 117, CJF: Art. 1831: o direito real de habitação deve ser estendido ao
companheiro, seja por não ter sido revogada a previsão da Lei n. 9.278/96, seja em
razão da interpretação analógica do art. 1.831, informado pelo art. 6º, caput, da
CF/88.”

1.2. Conceito e requisitos

O conceito de união estável é de relação afetiva existente entre homem e mulher,


pública, duradoura e estável, com finalidade de constituição de família. A lei contempla
este conceito, como se vê no artigo 1.723 do CC, que repete dispositivo que já existia na
Lei 9.278/96, o artigo 1º:

“Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e
a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida
com o objetivo de constituição de família.
§ 1º A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521;
não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar
separada de fato ou judicialmente.
§ 2º As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da união
estável.”

“Art. 1º É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e


contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição
de família.”

A Lei 8.971/94 trazia conceito mais restrito, porém. Veja seu artigo 1º:

“Art. 1º A companheira comprovada de um homem solteiro, separado


judicialmente, divorciado ou viúvo, que com ele viva há mais de cinco anos, ou

Michell Nunes Midlej Maron 134


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dele tenha prole, poderá valer-se do disposto na Lei nº 5.478, de 25 de julho de


1968, enquanto não constituir nova união e desde que prove a necessidade.
Parágrafo único. Igual direito e nas mesmas condições é reconhecido ao
companheiro de mulher solteira, separada judicialmente, divorciada ou viúva.”

Note que esta lei não admitia a união estável de pessoa separada apenas de fato, o
que só surgiu em 1996, como visto no artigo 1º da Lei 9.278, supra. Para além disso, o
prazo de cinco anos, exigido em 1994, deixou de existir como requisito em 1996,
providência legislativa esta absolutamente correta, porque o escopo estável da união pode
ser percebido em prazo muito menor, a depender da casuística.
Entenda: os requisitos da convivência pública, contínua e com finalidade clara e
bilateral de estabelecer família são inarredáveis, mas o elemento “duradoura” é altamente
relativo, não sendo impossível se pensar em uma união estável com muito breve tempo.
Veja um exemplo: um casal promove uma festa para comunicar aos seus amigos que está se
unindo, está formando família. Está claramente assumindo a relação de união estável. No
dia seguinte, um deles falece. É justa a configuração da relação de união estável, mesmo
que o marco concreto tenha sido há apenas um dia.
Tratando já dos requisitos, a duração é altamente relativa, portanto. A estabilidade,
por seu turno, consiste na constância, na invariabilidade do escopo de constituir família. A
publicidade é requisito óbvio: não há constituição familiar às escondidelas, devendo ser
reconhecida esta união no meio social dos convivas, tendo a sociedade em conta que
aqueles companheiros vivem como se casados fossem.
A jurisprudência tem dispensado a coabitação para reconhecer a união estável, como
se vê na súmula 382 do STF:

“Súmula 382, STF: A vida em comum sob o mesmo teto, ‘more uxorio’, não é
indispensável à caracterização do concubinato.”

Vale abordar uma prática um tanto peculiar que tem surgido: o contrato de namoro.
Consiste, este termo, em uma pactuação pela qual as pessoas que se unem declaram
expressamente que a sua relação não é uma união estável, certificando que se trata de uma
relação mais superficial, sem cunho familiar. A doutrina contesta a própria validade do
objeto deste pacto, e também sua eficácia: como a união estável é uma situação fática, ela
não se pauta na literalidade de um contrato. Este pacto deve ser entendido, no máximo,
como um indício forte de que não há união estável, mas esta presunção por ele criada é
perfeitamente afastável, eis que no seu curso podem se alterar os intentos das partes. Sendo
assim, pode a relação passar, no seu iter, a preencher todos os requisitos da união estável,
caso em que a existência de um termo contratual expresso contrário à realidade se torna
irrelevante – o contrato passa a ser um nada jurídico, diante da realidade fática que lhe
prova o contrário.
O fato de a união estável ser uma constatação colhida da realidade fática não afasta,
contudo, a possibilidade de se firmar um termo declaratório de sua existência, ou de sua
inexistência. A declaração cartorária de existência se presta a duas coisas: possibilitar a
alteração do regime de bens que regerá a união estável (que, na omissão das partes, é o da
comunhão parcial); e criar uma forte presunção de que ali se constituiu a união estável,
presunção esta que, como visto, pode ser afastada provando-se que a realidade é a
inexistência da relação.

Michell Nunes Midlej Maron 135


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Da mesma forma ocorre com a declaração de que inexiste a união estável: tal como
no contrato de namoro, esta declaração gera uma presunção de que não existe a união
estável, mas se esta situação se demonstrar contrária à realidade dos fatos, não prevalecerá
– a união se constatará.
A dificuldade prática na constituição da união estável é a sua prova, em verdade. É
preciso constatar com cuidado os requisitos, dada a magnitude de efeitos que este
reconhecimento produz na sociedade.
Um dos principais requisitos para que a união estável se constitua é negativo: é
preciso que não haja impedimentos para o casamento, presentes no artigo 1.521 do CC, já
abordado, mas que merece ser revisto:

“Art. 1.521. Não podem casar:


I - os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil;
II - os afins em linha reta;
III - o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do
adotante;
IV - os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau
inclusive;
V - o adotado com o filho do adotante;
VI - as pessoas casadas;
VII - o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de
homicídio contra o seu consorte.”

Vale ressaltar que, havendo o impedimento do inciso VI, mas sendo a pessoa casada
separada de fato, é possível que a união estável se consolide. A separação de fato permite
que a pessoa casada contraia união estável com outra, na forma do artigo 1.723, § 1º, do
CC:

“Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e
a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida
com o objetivo de constituição de família.
§ 1º A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521;
não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar
separada de fato ou judicialmente.
§ 2º As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da união
estável.”

As causas suspensivas do casamento, ao contrário, não obstam a formação da união


estável.
Tem surgido um pesado questionamento acerca de qual é a situação jurídica daquele
que, impedido de constituir união estável, contrai uma relação que preencha todos estes
requisitos desta união. Veja um exemplo: o homem casado validamente, não separado de
fato ou de direito, contrai uma nova relação paralela com uma mulher, relação esta que
preenche absolutamente todos os requisitos positivos da união estável – é contínua,
duradoura, estável, pública e tem finalidade de constituição de família. O único requisito
não preenchido é o negativo, pois há um impedimento de constituição da união estável, o
do artigo 1.521, VI, supra. Como solucionar esta questão?
Hoje, a discussão pende para a literalidade: a falta do requisito negativo, ou seja, a
presença clara do impedimento, impede que se reconheça união estável naquela segunda
relação. Contudo, há alguns poucos anos não era assim pacífica a jurisprudência. Isto

Michell Nunes Midlej Maron 136


EMERJ – CP V Direito Civil V

porque, se a família hoje é baseada no afeto, o impedimento legal não contrariaria a


realidade dos fatos, que, neste caso, revela uma real pluralidade de famílias concomitantes.
No entanto, o STF se pronunciou sobre um caso destes, e foi peremptório: o
ordenamento veda terminantemente a concomitância de relações maritais, e por isso a
união estável não se aperfeiçoa quando há impedimentos ao casamento. Veja o julgado, o
RE 397.762, emblemático sobre o tema, e um mais recente, do STJ, reiterando esta posição,
o REsp. 988.090:

“RE 397762 / BA – BAHIA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Relator: Min.


MARCO AURÉLIO. Julgamento: 03/06/2008. Órgão Julgador: Primeira Turma.
Ementa: COMPANHEIRA E CONCUBINA - DISTINÇÃO. Sendo o Direito uma
verdadeira ciência, impossível é confundir institutos, expressões e vocábulos, sob
pena de prevalecer a babel. UNIÃO ESTÁVEL - PROTEÇÃO DO ESTADO. A
proteção do Estado à união estável alcança apenas as situações legítimas e nestas
não está incluído o concubinato. PENSÃO - SERVIDOR PÚBLICO - MULHER -
CONCUBINA - DIREITO. A titularidade da pensão decorrente do falecimento de
servidor público pressupõe vínculo agasalhado pelo ordenamento jurídico,
mostrando-se impróprio o implemento de divisão a beneficiar, em detrimento da
família, a concubina.”

“REsp 988090 / MS. RECURSO ESPECIAL. Relator Ministro LUIS FELIPE


SALOMÃO. Órgão Julgador - QUARTA TURMA. Data do Julgamento:
02/02/2010. Data da Publicação/Fonte: DJe 22/02/2010.
Ementa: DIREITO CIVIL. CONCUBINATO. INDENIZAÇÃO DECORRENTE
DE SERVIÇOS DOMÉSTICOS. IMPOSSIBILIDADE. INTELIGÊNCIA DO
ART. 1.727 DO CC/02. INCOERÊNCIA COM A LÓGICA JURÍDICA
ADOTADA PELO CÓDIGO E PELA CF/88, QUE NÃO RECONHECEM
DIREITO ANÁLOGO NO CASAMENTO OU UNIÃO ESTÁVEL. RECURSO
ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO.
1. A união estável pressupõe ou ausência de impedimentos para o casamento ou, ao
menos, separação de fato, para que assim ocorram os efeitos análogos aos do
casamento, o que permite aos companheiros a salvaguarda de direitos patrimoniais,
conforme definido em lei.
2. Inviável a concessão de indenização à concubina, que mantivera relacionamento
com homem casado, uma vez que tal providência eleva o concubinato a nível de
proteção mais sofisticado que o existente no casamento e na união estável, tendo
em vista que nessas uniões não se há falar em indenização por serviços domésticos
prestados, porque, verdadeiramente, de serviços domésticos não se cogita, senão de
uma contribuição mútua para o bom funcionamento do lar, cujos benefícios ambos
experimentam ainda na constância da união.
3. Na verdade, conceder a indigitada indenização consubstanciaria um atalho para
se atingir os bens da família legítima, providência rechaçada por doutrina e
jurisprudência.
4. Com efeito, por qualquer ângulo que se analise a questão, a concessão de
indenizações nessas hipóteses testilha com a própria lógica jurídica adotada pelo
Código Civil de 2002, protetiva do patrimônio familiar, dado que a família é a base
da sociedade e recebe especial proteção do Estado (art. 226 da CF/88), não
podendo o Direito conter o germe da destruição da própria família.
5. Recurso especial conhecido e provido.”

Há concubinato, portanto, na relação que, mesmo preenchendo os requisitos da


união estável, é contraída por pessoa impedida. Ocorre que, com esta posição, algumas
questões quanto ao tratamento a ser dado à concubina são levantadas. Quando se

Michell Nunes Midlej Maron 137


EMERJ – CP V Direito Civil V

reconhecia a união estável concomitante, os direitos da cônjuge eram divididos com a


companheira, mas isto hoje não é possível. Hoje, a solução dada à segunda relação, da
concubina, é o reconhecimento de uma sociedade de fato com o impedido, o que gera o
seguinte efeito: haverá partilha de bens com esta concubina apenas quando e se ela provar
que contribuiu efetivamente para sua aquisição, ou seja, não há a presunção de esforço
comum na aquisição do patrimônio. A participação efetiva é necessária, não se admitindo a
mera contribuição moral, porque senão uma pessoa alheia estaria invadindo a meação da
cônjuge que tem o casamento válido.
Veja que sequer a indenização por serviços prestados pela concubina é admitida,
porque se assim fosse, diz o STJ, se estaria entregando à concubina direitos maiores do que
à própria cônjuge, pois, afinal, se quando o casamento se dissolve, não há este tipo de
indenizabilidade, não pode havê-la na dissolução de uma relação concubinária.
O raciocínio do impedimento se aplica quando a concomitância não é de um
casamento e de uma união estável, mas sim de duas relações que preenchem o requisito da
união estável? O entendimento é de que a existência de duas famílias concomitantes não é
tolerada em nosso ordenamento, pelo que a mesma dinâmica da relação concubinária
quando um dos relacionandos é casados se aplica exatamente da mesma forma: se ambas as
relações forem absolutamente idênticas nos requisitos, inclusive – e especialmente – na
intenção em formar família, a primeira relação, no tempo, será reconhecida como união
estável; a segunda, ter-se-á como concubinato, e a solução será a mesma do concubinato no
casamento.
Note que se a casuística indicar que uma das relações tem maior força no requisito
da finalidade de constituir família, esta deverá prevalecer sobre a outra, mesmo se vier
posteriormente, pois este requisito tem um peso axiológico maior do que qualquer outro, de
fato. Se há mais de uma relação aparentemente iguais em requisitos, mas fica claro que em
uma delas a intenção em constituir família é mais forte, esta será a reconhecida como união
estável.
Veja, a respeito, a súmula 122 do TJ/RJ, e o REsp. 789.293:

“Súmula 122, TJ/RJ: É inadmissível o reconhecimento de uniões estáveis


concomitantes.”

“REsp 789293 / RJ. RECURSO ESPECIAL. Relator Ministro CARLOS


ALBERTO MENEZES DIREITO. Órgão Julgador - TERCEIRA TURMA. Data
do Julgamento: 16/02/2006. Data da Publicação/Fonte: DJ 20/03/2006 p. 271.
Ementa: União estável. Reconhecimento de duas uniões concomitantes.
Equiparação ao casamento putativo. Lei nº 9.728/96.
1. Mantendo o autor da herança união estável com uma mulher, o posterior
relacionamento com outra, sem que se haja desvinculado da primeira, com quem
continuou a viver como se fossem marido e mulher, não há como configurar união
estável concomitante, incabível a equiparação ao casamento putativo.
2. Recurso especial conhecido e provido.”

Cristiano Chaves critica todo este posicionamento, esta orientação do STF, e


defende que o reconhecimento de famílias simultâneas é imperioso, devendo a
jurisprudência se render à realidade dos fatos. Ora, se a família é fundada em afeto, e este
está presente em mais de um núcleo, como se negar esta constituição plural? Além disso,
argumenta, a segunda relação é reconhecida para fins previdenciários, o que torna o sistema

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EMERJ – CP V Direito Civil V

contraditório. É isolado em sua crítica, porém, não repercutindo na jurisprudência, como


visto.

1.3. União estável homoafetiva

Um requisito para constituição da união estável, que a todo ver estaria expresso na
lei, é o da diversidade de sexos dos companheiros, pois a CRFB fala em “homem e
mulher”, como visto no artigo 226, § 3º, transcrito há pouco.
Contudo, esta questão, hoje, é das mais discutidas. Há quem defenda que a redação
da CRFB disse mais do que intentava o legislador constituinte – deveria ter dito “pessoas”,
e não “homem e mulher”. Sendo assim, a união entre pessoas do mesmo sexo não teria
óbice. Pelo outro lado, há corrente que defende que a união estável homoafetiva é
impossível, baseando-se justamente na literalidade constitucional, na expressa menção à
diversidade de sexos.
De qualquer forma, a união homoafetiva existe na realidade fática, bastando analisar
se será reconhecida como união estável ou não, pois daí decorrem os direitos dos consortes,
que, se reconhecidos como companheiros, terão sua relação equiparada ao casamento. A
discussão será aprofundada em tópico próprio.

1.4. Efeitos da união estável

Os efeitos pessoais, que se formam entre os companheiros, consistem em:


possibilidade de adoção do sobrenome; possibilidade da adoção de um filho em conjunto; a
formação de relações de parentesco por afinidade; e o surgimento de deveres comuns,
recíprocos.
Sobre os deveres comuns, note-se que para o casamento existe o dever de
fidelidade, e para a união estável o dever imposto é de lealdade; haveria diferença? A
resposta é negativa, para a melhor doutrina, porque não há lealdade sem fidelidade, e vice-
versa. Contudo, há vozes dissonantes que reputam diferentes estes deveres, mas não
apresentam descrição destas diferenças.
Ponto bastante controvertido na união estável é se as regras de presunção de
paternidade previstas para o casamento no artigo 1.641 do CC são estendidas ao
companheiro ou não. A maior corrente entende que não: a presunção surge do casamento
porque este ato jurídico oferece certeza suficiente das datas em que se constitui, podendo
traçar marcos expressos de sua constituição e desconstituição, o que não ocorre na união
estável. Mas há uma corrente que entende que a presunção precisa ser estendida, porque do
contrário se estaria criando uma discriminação aos filhos oriundos de união estável, o que é
constitucionalmente inadmissível.
Se a união estável for certificada por escritura pública, vale dizer, a segunda tese
ganha força, porque o argumento da segurança perde um pouco de seu peso. Contudo, a
corrente majoritária ainda é a da não extensão.
Já os efeitos patrimoniais se limitam à simples aplicação das regras do regime de
comunhão parcial de bens, da mesma forma que este regime se aplica ao casamento.

Michell Nunes Midlej Maron 139


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Casos Concretos

Questão 1

Marilene ajuizou ação de reconhecimento de união estável em face dos herdeiros


de Carlos. Alega que pretende receber uma pensão previdenciária, já que não possuindo,
nem agora, nem durante os 22 anos em que viveu com Carlos, atividade econômica, agora
que o filho completou 21 anos, a cessação do pagamento da pensão a deixará ao
abandono, sendo justo que a parte que o filho recebia passe a ser destinada a ela.
Apresentada contestação, os herdeiros argüiram preliminar de ilegitimidade passiva, vez
que inexiste patrimônio a partilhar, limitando-se o pedido a fins previdenciários. No
mérito, pugnam pela improcedência do pedido, por faltar o requisito da estabilidade a
configurar a união estável, pois a intenção e interesse do falecido era manter seu
casamento com sua esposa, o que se demonstra inclusive pelo fato de ter mantido como seu
endereço o da esposa para fins de recebimento de correspondências, assim como o fato de
ter incluído como seu dependente só Marlos, paralelamente à inscrição já existente de sua
esposa Ruth, e não Marilene. Marcada audiência, foi ouvido o filho Felipe, que declarou
que seu pai mantinha as duas relações, mas que sua mãe desconhecia a existência do
relacionamento extra-conjugal de seu pai; que nos últimos anos, não obstante vivessem
sob o mesmo teto, o casal já não mantinha relacionamento de marido e mulher, não viviam
no mesmo quarto. O Ministério Público deu parecer pela improcedência do pedido pois o
Código Civil, em seu artigo 1.723 estabelece como requisito para existência de uma união
estável o objetivo de constituir família, o que é inviabilizado se um dos conviventes é
casado. Decida a questão, fundamentadamente, considerados comprovados os fatos
alegados.

Resposta à Questão 1

Acerca da legitimidade passiva, podem os herdeiros e o espólio figurar no pólo


passivo da ação de reconhecimento de união estável em face do de cujus.
No mérito, a falta da affectio maritatis entre o de cujus e a sua esposa, claramente
colhida nas provas, revela que, a despeito de coabitarem, não havia mais casamento de fato:
a separação de fato está clara. Sendo assim, havendo separação de fato, como parece haver,

Michell Nunes Midlej Maron 140


EMERJ – CP V Direito Civil V

o impedimento para a constituição de nova família não mais subsiste, e a união estável deve
ser reconhecida.
De outro lado, se se entender que não há separação de fato – o que, repita-se, é
questão de provas nos autos –, haverá o impedimento do artigo 1.521, VI, do CC, e a
presença deste impedimento, segundo a jurisprudência hoje unânime, impede que a união
estável seja reconhecida.
A respeito, veja a Apelação Cível 2004.001.09609, do TJ/RJ:

“2004.001.09609 - APELACAO CIVEL - DES. LEILA MARIANO - Julgamento:


04/08/2004 - SEGUNDA CAMARA CIVEL.
ACAO DECLARATORIA. UNIAO ESTAVEL. FINS PREVIDENCIARIOS.
RECURSO PROVIDO. AÇÃO DECLARATÓRIA. UNIÃO ESTÁVEL. FINS
EXCLUSIVAMENTE PREVIDENCIÁRIOS. RELAÇÃO CONCUBINÁRIA
POR 22 ANOS, COM FILHO. Falecimento do varão que mantinha vida dupla,
pois não estava separado de sua esposa. Fato conhecido por toda sua família,
inclusive filhos havidos do casamento, que freqüentavam a casa onde o pai morava
com a concubina, mantendo relacionamento harmonioso com ela e o filho havido
deste relacionamento. Sendo ela doméstica, sem qualquer atividade econômica
presume-se sua dependência econômica do concubino, oficial militar. Ante os fatos
que demonstram que o casal convivia ostensivamente como se casados fossem, não
se pode negar, apenas por argumentos morais, aquela mulher que se dedicou por
mais de duas décadas a seu companheiro, o direito de ser amparada,
previdenciariamente, dividindo com a esposa a pensão. Modernização do
entendimento do STJ a respeito do tema.”

Questão 2

Em 2003, Carlos passou a viver com Maria, tendo recebido em sua casa alguns
parentes que assistiram a um culto em razão da união. Na mesma semana, fizeram um
contrato de união e o registraram no registro de títulos e documentos. Em 2005, Maria
faleceu. Atualmente Carlos pretende contrair matrimônio com Glória, mãe de Maria.
Indaga-se:
a) Há algum vínculo jurídico entre Glória e Carlos? Em caso positivo, de que
natureza?
b) Com a morte de Maria é possível o casamento de Carlos com Glória? Justifique,
indicando os dispositivos legais pertinentes.

Resposta à Questão 2

a) Existe o vínculo de parentesco por afinidade entre Carlos e Glória, o qual


permanece perene, tal como no casamento, impedindo a constituição de família
entre eles.
b) Como dito, não há possibilidade de casamento ou mesmo de união estável entre
eles, porque há o impedimento do artigo 1.521, II, do CC, impediente da
constituição de família entre afins em linha reta.

Questão 3

Michell Nunes Midlej Maron 141


EMERJ – CP V Direito Civil V

Andréia propõe ação declaratória de reconhecimento de união estável em face do


espólio de Zé Luis, representado por Carla. Relata que conviveu com Zé Luis, como se
casados fossem, desde 1980 até a data do óbito do alegado companheiro, em 1996,
advindo da relação duas filhas, atualmente com 25 e 18 anos de idade. Informa que o
falecido foi casado com Carla, da qual se encontrava separado de fato desde o início da
convivência com a autora. No entanto, aludida separação jamais foi formalizada
judicialmente. Sustenta, ainda, ser pensionista reconhecida pelo INSS em decorrência da
condição de companheira do falecido, pensão esta que partilha com a viúva. Em
contestação, alega-se que o falecido nunca se separou de fato ou se afastou definitivamente
da esposa, fato este comprovado pela juntada de fotografias retratando a autora e o
falecido, o que comprova, assim, o convívio. A autora e a esposa juntaram documentos
comprovando que mantinham endereço comum com Zé Luis perante órgãos oficiais. O
convívio simultâneo com as duas mulheres foi confirmado pelas testemunhas. Pergunta-se:
Pode ser reconhecida judicialmente como união estável a relação concomitante a
casamento válido?
Resposta à Questão 3

A jurisprudência, hoje, é pacífica em negar a possibilidade da constituição de


famílias simultâneas. Desde o RE 389.762, já abordado, não mais se admite a constituição
de união estável por pessoa casada, devendo a concubina ser tratada como integrante de
mera sociedade de fato com o amásio casado, resolvendo-se a questão patrimonial pela
partilha do patrimônio que efetivamente foi construído com a participação concreta desta
concubina, e não meramente a participação moral.

Michell Nunes Midlej Maron 142


EMERJ – CP V Direito Civil V

Tema XIV

União estável. Regime de bens. Contrato convivencial. Obrigação alimentar. Conversão da união estável em
casamento. Dissolução por via judicial. Consensual e contenciosa.

Notas de Aula19

1. Dissolução da união estável

A ação de reconhecimento e dissolução da união estável não é conhecida pelo CPC.


É uma ação inominada, que não conta com diploma específico para norteá-la. Por isso, esta
medida é jurisprudencial e doutrinariamente equiparada à separação judicial, e não ao
divórcio, porque permite que haja discussão de culpa em seu bojo, o que não ocorre no
divórcio.
Tal como na separação judicial, os alimentos côngruos são afastados quando há o
reconhecimento de culpa, em relação ao companheiro culpado, mantendo-se possíveis os
alimentos subsistenciais, naturais – repete-se a mesma dinâmica do casamento. De fato, a
dinâmica material e a processual, na dissolução da união estável, é exatamente a mesma da
separação judicial, com algumas ressalvas. Em que pese a discussão da culpa ser hoje muito
criticada, ainda é admitida, tanto no casamento quanto na união estável.
Exemplo das poucas diferenças é que, ao contrário da separação falência, em que é
preciso provar um ano de separação de fato, na dissolução falência da união estável não há
este requisito temporal: basta a perda da affectio, perda do ânimo de formar família, ser
demonstrada, a qualquer que seja o momento.
Na união estável, não existe a cautelar de separação de corpos, mas a jurisprudência
reconhece a cautelar de afastamento, análoga à separação de corpos.
A dissolução da união estável pode ser também contenciosa ou consensual, e todos
os elementos da ação de separação judicial são repetidos, inclusive a cumulação com
pedido de alimentos, com uma outra diferença: como a dissolução da união estável segue o
procedimento comum ordinário, o pedido de alimentos também seguirá este rito comum

19
Aula ministrada pelo professor Sandro Gaspar Amaral, em 5/3/2010.

Michell Nunes Midlej Maron 143


EMERJ – CP V Direito Civil V

ordinário, e não o rito especial de alimentos – sendo cabível, peculiarmente, o pedido de


alimentos provisionais nesta ação.
Ocorrendo a dissolução da união estável, o companheiro que permanecer no imóvel
tem direito a continuar o contrato de locação, mesmo se não foi ele quem o pactuou. Este
entendimento jurisprudencial consolidado agora é positivado, como se viu na transcrição do
artigo 12 da Lei 8.245/91.
O regime de bens da união estável é o da comunhão parcial, como se vê no artigo
1.725 do CC:

“Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-
se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de
bens.”

Como o próprio dispositivo menciona, é admissível a adoção de novo regime pelos


consortes, como não poderia deixar de ser, ante o princípio da mutabilidade dos regimes de
bens, vigente para o casamento e obviamente vigente para a união estável. A mutabilidade,
no entanto, difere na união estável do casamento, porque enquanto neste ela depende de
pedido conjunto dos consortes, e a sentença que a defere não é meramente homologatória,
eis que traz uma análise meritória dos motivos para tal alteração pelo juiz, na união estável
a alteração é feita pelos próprios companheiros, em cartório, por mero registro contratual de
tal opção, nem passando pelo Judiciário.
A doutrina faz uma ressalva sobre este dispositivo, no que diz respeito às situações
em que o regime do casamento é o da separação legal. Se a lei impõe a separação
obrigatória no casamento, idem na união estável. Os institutos familiares, como visto,
pendem à equiparação. Há quem diga que não se pode ampliar a norma restritiva, a
imposição do regime, se a lei não a cominou expressamente para a união estável, mas é
posição minoritária, porque não se trata de uma interpretação extensiva, mas sim
teleológica.
A união estável contraída antes de se completar sessenta anos segue o regime da
comunhão parcial. Por isso, se o casal que tinha união estável antes de completar sessenta
anos resolver converter sua relação em casamento após completar esta idade, é assente que
o regime legal da separação não será imposto: manter-se-á, a rigor, o regime da comunhão
parcial, e manter-se-á igualmente a mutabilidade do regime. Para tanto, é necessário que
este casamento seja feito judicialmente, sem a necessidade de se seguir o rito solene do
casamento, contudo, porque o juiz, e o MP, já operam esta análise amiúde da relação,
quando do processo da conversão.
Os alimentos entre companheiros seguem a mesma dinâmica dos alimentos entre
cônjuges, como visto. Uma boa adição a este tema seria a discussão do cabimento da
alegação dos institutos da teoria da confiança, em matéria de alimentos. Veja: se um
companheiro se afasta do outro e, por longos anos, deixa de exercer alimentos, não teria
com isto criado uma legítima expectativa, para o outro, de que a eles renunciou? Poder-se-
ia falar em supressio, nos alimentos? Há que se ter enorme cautela na aplicação destas
teorias, sendo realmente difícil se transpor os conceitos desta seara contratual para a
familiar. Não é que não possa haver aplicação, mas ela precisa ser muito cuidadosa, para
não conflitar com princípios especiais desta seara, como o da solidariedade. Em regra, a
solidariedade prevalece, sendo devidos os alimentos neste caso – haja vista a previsão do
artigo 1.702 do CC –, mas a casuística pode tornar invocável a teoria da confiança.

Michell Nunes Midlej Maron 144


EMERJ – CP V Direito Civil V

“Art. 1.702. Na separação judicial litigiosa, sendo um dos cônjuges inocente e


desprovido de recursos, prestar-lhe-á o outro a pensão alimentícia que o juiz fixar,
obedecidos os critérios estabelecidos no art. 1.694.”

Casos Concretos

Questão 1

Ronaldo, mantendo união estável com Moema há dois anos, não desejando mais
manter a relação, propõe perante o Juízo de Família, Ação Declaratória de Existência e
Dissolução de União Estável c/c Oferecimento de Alimentos em face de Moema. Citada,
esta pede a extinção do feito, sem julgamento do mérito, alegando falta de interesse de
agir, já que da união não restou prole nem bens a partilhar. Chegando os autos às suas
mãos, você, juiz, como decidiria?

Resposta à Questão 1

Deverá ser acolhido o pedido do autor, pois tem ele legítimo interesse em formalizar
a extinção da união que mantinha com a ré, ainda que inexistam bens a partilhar. E nenhum
óbice há em cumular a ação de natureza declaratória com o oferecimento de alimentos, com
inspiração no artigo 24 da Lei 5.478/68, mas que aqui seguirá pelo procedimento comum
ordinário.
A respeito, veja o REsp. abaixo:

“REsp 285961 / DF; Relator: Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR; Data do


Julgamento: 06/02/2001 - UNIÃO ESTÁVEL. Ação declaratória. Alimentos.
Legítimo interesse. O companheiro tem legítimo interesse de promover ação
declaratória (art. 3º do CPC) da existência e da extinção da relação jurídica
resultante da convivência durante quase dois anos, ainda que inexistam bens a
partilhar. Igualmente, pode cumular seu pedido com a oferta de alimentos, nos
termos do art. 24 da Lei 5478/68. Recurso conhecido e provido.”

Questão 2

Maria, alegando a existência de união estável com João, falecido em 2005, propôs
ação em face dos herdeiros do de cujus, inclusive sua esposa, Madalena, pleiteando o
reconhecimento da entidade familiar. Sustenta, em síntese, que, embora formalmente

Michell Nunes Midlej Maron 145


EMERJ – CP V Direito Civil V

casado, João mantivera com ela relacionamento amoroso nos últimos trinta anos. Afirmou
que a convivência entre os dois era pública, contínua e estável, tal como o casamento, e
que a legislação pátria não impõe monogamia para a caracterização da união estável.
Regularmente citados, os réus apresentaram resposta na qual alegaram que o casamento
de João e Madalena perdurara por cerca de quarenta anos sem que o cônjuge houvesse
abandonado o lar; inclusive, as contas pessoais eram endereçadas ao domicílio do casal e
a família era vista unida em eventos sociais e familiares. Afirmaram que a sociedade
conjugal só foi dissolvida com a morte do cônjuge para, ao final, postularem o julgamento
de improcedência da pretensão autoral. Em audiência de instrução e julgamento, as
testemunhas elencadas pelas partes ratificaram as alegações de cada uma delas. Os autos
vieram conclusos para sentença. Decida a questão.

Resposta à Questão 2

Restaram provados os fatos alegado tanto por uma quanto por outra parte, e por isso
a análise se reduz a definir se há a união estável ou não. Se há união estável, há direito à
meação e direito sucessório; se não há, não há estes direitos.
Admitindo-se que haja união estável, sobre a sucessão, neste caso, a corrente que
predomina é que os bens adquiridos até o início da união estável serão sucedidos pelo
cônjuge sobrevivente; nos bens adquiridos a partir da união estável, sucede a companheira.
Se Maria não for considerada companheira, mas sim concubina, os direitos
sucessórios assistem somente à cônjuge supérstite. No caso, a todo ver, há união estável, e a
solução é a apresentada acima, ou seja, a sucessão separada pelos períodos de casamento ou
união estável, cada uma sucedendo nos bens do respectivo período.

Michell Nunes Midlej Maron 146


EMERJ – CP V Direito Civil V

Tema XV

Da tutela e da curatela. Sujeitos à tutela. Tutela testamentária, legítima e dativa. Exercício. Garantia.
Protutor. Administração dos bens. Prestação de contas. Cessação da tutela. Curatela dos interditos. Sujeitos
à curatela. Interdição. Procedimento. Sentença de interdição. Natureza jurídica e efeitos. Levantamento da
interdição. Curatela do nascituro. Curatela do deficiente físico.

Notas de Aula20

1. Tutela

O CC não conceitua tutela, e o conceito vem da doutrina: trata-se do instituto que


visa a proteger o menor que está alheado do poder familiar. A regra é que o menor até os
dezoito anos seja considerado incapaz: até os dezesseis anos, é absolutamente incapaz,
devendo ser representado; dos dezesseis aos dezoito anos, é relativamente incapaz,
precisando de assistência. Estes papéis, de representantes ou assistentes, são
desempenhados pelos pais, por força do poder familiar, que naturalmente lhes entrega tal
poder-dever.
Por isso, não existindo pai ou mãe, ou os havendo, mas estando estes destituídos do
poder familiar, é necessário que outra pessoa assuma tal papel. Este será o tutor.
Estão sujeitos à tutela, portanto, os filhos menores, quando nas situações do artigo
1.728 do CC, ou seja, na falta de quem lhos haja em poder familiar:

“Art. 1.728. Os filhos menores são postos em tutela:


I - com o falecimento dos pais, ou sendo estes julgados ausentes;
II - em caso de os pais decaírem do poder familiar.”

Há três classes de tutela. A primeira, do artigo 1.729 do CC, é a tutela


testamentária:

“Art. 1.729. O direito de nomear tutor compete aos pais, em conjunto.

20
Aula ministrada pela professora Lucia Mothe Glioche, em 5/3/2010.

Michell Nunes Midlej Maron 147


EMERJ – CP V Direito Civil V

Parágrafo único. A nomeação deve constar de testamento ou de qualquer outro


documento autêntico.”

Nesta, o tutor é nomeado pelos pais, em testamento, ou em outro ato autêntico, na


forma do artigo 1.634, IV, do CC:

“Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:
(...)
IV - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais
não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar;
(...)”

Para que os pais possam nomear tutor, é preciso que estejam eles ainda no exercício
do poder familiar, eis que, destituídos deste poder, não mais têm esta faculdade, que a ele é
inerente.
Não havendo tutela testamentária, não havendo tutor válido nomeado pelos pais,
tem lugar a segunda classe de tutela, a legítima, prevista no artigo 1.731 do CC:

“Art. 1.731. Em falta de tutor nomeado pelos pais incumbe a tutela aos parentes
consangüíneos do menor, por esta ordem:
I - aos ascendentes, preferindo o de grau mais próximo ao mais remoto;
II - aos colaterais até o terceiro grau, preferindo os mais próximos aos mais
remotos, e, no mesmo grau, os mais velhos aos mais moços; em qualquer dos
casos, o juiz escolherá entre eles o mais apto a exercer a tutela em benefício do
menor.”

A ordem de escolha do tutor não é rígida: pode o juiz optar por quem seja mais
benéfico ao menor, mesmo subvertendo esta ordem legal.
A terceira classe de tutela é a dativa, ou judicial, prevista no artigo 1.732 do CC:

“Art. 1.732. O juiz nomeará tutor idôneo e residente no domicílio do menor:


I - na falta de tutor testamentário ou legítimo;
II - quando estes forem excluídos ou escusados da tutela;
III - quando removidos por não idôneos o tutor legítimo e o testamentário.”

Aos irmãos deve ser nomeado tutor comum, como dispõe o artigo 1.733 do CC, o
que é dito também no artigo 28, § 4º, do ECA:

“Art. 1.733. Aos irmãos órfãos dar-se-á um só tutor.


§ 1º No caso de ser nomeado mais de um tutor por disposição testamentária sem
indicação de precedência, entende-se que a tutela foi cometida ao primeiro, e que
os outros lhe sucederão pela ordem de nomeação, se ocorrer morte, incapacidade,
escusa ou qualquer outro impedimento.
§ 2º Quem institui um menor herdeiro, ou legatário seu, poderá nomear-lhe curador
especial para os bens deixados, ainda que o beneficiário se encontre sob o poder
familiar, ou tutela.”

“Art. 28. A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou


adoção, independentemente da situação jurídica da criança ou adolescente, nos
termos desta Lei.
(...)

Michell Nunes Midlej Maron 148


EMERJ – CP V Direito Civil V

§ 4º Os grupos de irmãos serão colocados sob adoção, tutela ou guarda da mesma


família substituta, ressalvada a comprovada existência de risco de abuso ou outra
situação que justifique plenamente a excepcionalidade de solução diversa,
procurando-se, em qualquer caso, evitar o rompimento definitivo dos vínculos
fraternais. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)
(...)”

Sendo nomeados dois ou mais tutores para os irmãos órfãos, sem que os pais
tenham traçado preferência, a tutela se concentrará no primeiro.
O § 2º do artigo 1.733, supra, estabelece previsão que não está muito bem colocada
aqui, porque trata de bens: consiste no curador especial de bens do menor, que também não
se confunde com o curador que será estudado no instituto da curatela.

1.1. Ilegitimidade e recusa à tutela

O artigo 1.735 do CC trata dos que não podem ser tutores. O CC fala de
incapacidade para a tutela, mas se trata, tecnicamente, de ilegitimidade. Veja:

“Art. 1.735. Não podem ser tutores e serão exonerados da tutela, caso a exerçam:
I - aqueles que não tiverem a livre administração de seus bens;
II - aqueles que, no momento de lhes ser deferida a tutela, se acharem constituídos
em obrigação para com o menor, ou tiverem que fazer valer direitos contra este, e
aqueles cujos pais, filhos ou cônjuges tiverem demanda contra o menor;
III - os inimigos do menor, ou de seus pais, ou que tiverem sido por estes
expressamente excluídos da tutela;
IV - os condenados por crime de furto, roubo, estelionato, falsidade, contra a
família ou os costumes, tenham ou não cumprido pena;
V - as pessoas de mau procedimento, ou falhas em probidade, e as culpadas de
abuso em tutorias anteriores;
VI - aqueles que exercerem função pública incompatível com a boa administração
da tutela.”

Diferente da ilegitimidade, que é não poder ser tutor, é a escusa à tutela, que é uma
defesa que aquele nomeado que pode ser tutor, mas não o quer, podendo se opor à sua
indicação para este encargo. O artigo 1.736 do CC trata destas escusas:

“Art. 1.736. Podem escusar-se da tutela:


I - mulheres casadas;
II - maiores de sessenta anos;
III - aqueles que tiverem sob sua autoridade mais de três filhos;
IV - os impossibilitados por enfermidade;
V - aqueles que habitarem longe do lugar onde se haja de exercer a tutela;
VI - aqueles que já exercerem tutela ou curatela;
VII - militares em serviço.”

O inciso I fala em mulher casada, mas pela isonomia constitucional a mesma escusa
é permitida ao homem de família, ou a qualquer pessoa que já se vê na contingência de ter
uma família sob seus cuidados.

Michell Nunes Midlej Maron 149


EMERJ – CP V Direito Civil V

1.2. Procedimentos

Qualquer das três classes de tutela que seja será seguida pela prestação do
compromisso pelo tutor, o que se vê no artigo 1.187 do CPC:

“Art. 1.187. O tutor ou curador será intimado a prestar compromisso no prazo de 5


(cinco) dias contados:
I - da nomeação feita na conformidade da lei civil;
II - da intimação do despacho que mandar cumprir o testamento ou o instrumento
público que o houver instituído.”

Assinado o compromisso, o tutor precisa prestar caução para o exercício da tutela,


na forma da especialização de hipoteca de bens imóveis seus, como diz o artigo 1.188 do
CPC:

“Art. 1.188. Prestado o compromisso por termo em livro próprio rubricado pelo
juiz, o tutor ou curador, antes de entrar em exercício, requererá, dentro em 10 (dez)
dias, a especialização em hipoteca legal de imóveis necessários para acautelar os
bens que serão confiados à sua administração.
Parágrafo único. Incumbe ao órgão do Ministério Público promover a
especialização de hipoteca legal, se o tutor ou curador não a tiver requerido no
prazo assinado neste artigo.”

O artigo seguinte, 1.189 do CPC, determina que o MP será o tutor do menor e seus
bens:

“Art. 1.189. Enquanto não for julgada a especialização, incumbirá ao órgão do


Ministério Público reger a pessoa do incapaz e administrar-lhe os bens.”

O CC prevê que a caução pode ser dispensada pelo juiz, como se vê no seu artigo
1.745, a pessoas por ele consideradas idôneas:

“Art. 1.745. Os bens do menor serão entregues ao tutor mediante termo


especificado deles e seus valores, ainda que os pais o tenham dispensado.
Parágrafo único. Se o patrimônio do menor for de valor considerável, poderá o juiz
condicionar o exercício da tutela à prestação de caução bastante, podendo
dispensá-la se o tutor for de reconhecida idoneidade.”

Prestada ou dispensada a caução, o tutor entrará no exercício da tutela. O exercício


pode ser dividido em duas partes: a tutela em proteção à pessoa do pupilo, e a tutela
proteção ao patrimônio do pupilo.
Em relação à pessoa do tutelado, diz o artigo 1.740 do CC como se dará a proteção:

“Art. 1.740. Incumbe ao tutor, quanto à pessoa do menor:


I - dirigir-lhe a educação, defendê-lo e prestar-lhe alimentos, conforme os seus
haveres e condição;
II - reclamar do juiz que providencie, como houver por bem, quando o menor haja
mister correção;
III - adimplir os demais deveres que normalmente cabem aos pais, ouvida a
opinião do menor, se este já contar doze anos de idade.”

Michell Nunes Midlej Maron 150


EMERJ – CP V Direito Civil V

Vê-se que o tutor desempenha verdadeiro papel que incumbiria aos pais, exercendo
os atos de gerência da vida do menor tal como aqueles deveriam exercer. Todas estas
incumbências requerem dinheiro para seu custeio, pelo que o artigo 1.746 do CC dispõe
que:

“Art. 1.746. Se o menor possuir bens, será sustentado e educado a expensas deles,
arbitrando o juiz para tal fim as quantias que lhe pareçam necessárias, considerado
o rendimento da fortuna do pupilo quando o pai ou a mãe não as houver fixado.”

Em relação aos bens do tutelado, diz o artigo 1.745 do CC, supra, que são entregues
ao tutor para que os gerencie, mediante caução. O artigo 1.741 do CC fala que a
administração dos bens do tutelado incumbe ao tutor, sob a inspeção do juiz. Veja:

“Art. 1.741. Incumbe ao tutor, sob a inspeção do juiz, administrar os bens do


tutelado, em proveito deste, cumprindo seus deveres com zelo e boa-fé.”
A fiscalização do juiz sobre esta administração dos bens pode ensejar a nomeação,
pelo juiz, de um auxiliar, denominado protutor. Veja o artigo seguinte, 1.742 do CC:

“Art. 1.742. Para fiscalização dos atos do tutor, pode o juiz nomear um protutor.”

Além do tutor, podem exercer a administração de bens do menor outras pessoas,


inclusive jurídicas, cuja capacidade técnica, não detida pelo tutor, seja essencial. Veja o
artigo 1.743 do CC:

“Art. 1.743. Se os bens e interesses administrativos exigirem conhecimentos


técnicos, forem complexos, ou realizados em lugares distantes do domicílio do
tutor, poderá este, mediante aprovação judicial, delegar a outras pessoas físicas ou
jurídicas o exercício parcial da tutela.”

Sobre todas estas pessoas que administrem os bens do menor recairá


responsabilidade civil por seus atos nesta condição.
O tutor ainda pode desempenhar outros atos de administração dos bens do menor,
como dispõe o artigo 1.747 do CC. Já os atos previstos no artigo 1.748 do CC só poderão
ser praticados sob expressa autorização judicial. Veja os dispositivos:

“Art. 1.747. Compete mais ao tutor:


I - representar o menor, até os dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-lo,
após essa idade, nos atos em que for parte;
II - receber as rendas e pensões do menor, e as quantias a ele devidas;
III - fazer-lhe as despesas de subsistência e educação, bem como as de
administração, conservação e melhoramentos de seus bens;
IV - alienar os bens do menor destinados a venda;
V - promover-lhe, mediante preço conveniente, o arrendamento de bens de raiz.”

“Art. 1.748. Compete também ao tutor, com autorização do juiz:


I - pagar as dívidas do menor;
II - aceitar por ele heranças, legados ou doações, ainda que com encargos;
III - transigir;
IV - vender-lhe os bens móveis, cuja conservação não convier, e os imóveis nos
casos em que for permitido;

Michell Nunes Midlej Maron 151


EMERJ – CP V Direito Civil V

V - propor em juízo as ações, ou nelas assistir o menor, e promover todas as


diligências a bem deste, assim como defendê-lo nos pleitos contra ele movidos.
Parágrafo único. No caso de falta de autorização, a eficácia de ato do tutor depende
da aprovação ulterior do juiz.”

Os bens imóveis sob administração do tutor, precisam não só da autorização


judicial, mas também da avaliação judicial. Veja o artigo 1.750 do CC:

“Art. 1.750. Os imóveis pertencentes aos menores sob tutela somente podem ser
vendidos quando houver manifesta vantagem, mediante prévia avaliação judicial e
aprovação do juiz.”

Vê-se então que a regra, para os bens imóveis do menor tutelado, é a sua
inalienabilidade, porque a sua venda será sempre excepcional e burocrática. São legalmente
indisponíveis, portanto.
Há atos que a lei veda ao tutor, sem qualquer exceção: nem mesmo sendo
judicialmente autorizados serão válidos, sendo esta autorização uma providência errônea do
juízo que assim proceder. São aqueles previstos no artigo 1.749 do CC:

“Art. 1.749. Ainda com a autorização judicial, não pode o tutor, sob pena de
nulidade:
I - adquirir por si, ou por interposta pessoa, mediante contrato particular, bens
móveis ou imóveis pertencentes ao menor;
II - dispor dos bens do menor a título gratuito;
III - constituir-se cessionário de crédito ou de direito, contra o menor.”

1.3. Responsabilidade civil na tutela

O artigo 1.752 do CC dá a nota:

“Art. 1.752. O tutor responde pelos prejuízos que, por culpa, ou dolo, causar ao
tutelado; mas tem direito a ser pago pelo que realmente despender no exercício da
tutela, salvo no caso do art. 1.734, e a perceber remuneração proporcional à
importância dos bens administrados.
§ 1º Ao protutor será arbitrada uma gratificação módica pela fiscalização efetuada.
§ 2º São solidariamente responsáveis pelos prejuízos as pessoas às quais competia
fiscalizar a atividade do tutor, e as que concorreram para o dano.”

A responsabilidade do tutor é subjetiva, como dispõe o caput do artigo supra. o


dispositivo, no § 2º, ainda prevê que o protutor e quaisquer delegatários de parte da tutela
respondem solidariamente, quando concorrerem para o dano subjetivamente.
O juiz também responde por prejuízos, só que na forma do artigo 1.744 do CC:

“Art. 1.744. A responsabilidade do juiz será:


I - direta e pessoal, quando não tiver nomeado o tutor, ou não o houver feito
oportunamente;
II - subsidiária, quando não tiver exigido garantia legal do tutor, nem o removido,
tanto que se tornou suspeito.”

Michell Nunes Midlej Maron 152


EMERJ – CP V Direito Civil V

Como o dispositivo não fala se a responsabilidade do juiz é objetiva, ele responde


seguindo a regra geral, do artigo 133 do CPC, que lhe impõe responsabilidade subjetiva e
limitada ao dolo:

“Art. 133. Responderá por perdas e danos o juiz, quando:


I - no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude;
II - recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de
ofício, ou a requerimento da parte.
Parágrafo único. Reputar-se-ão verificadas as hipóteses previstas no nº II só depois
que a parte, por intermédio do escrivão, requerer ao juiz que determine a
providência e este não lhe atender o pedido dentro de 10 (dez) dias.”

1.4. Administração dos bens

Os artigos 1.753 e 1.754 do CC tratam da forma de administração dos bens do


pupilo:
“Art. 1.753. Os tutores não podem conservar em seu poder dinheiro dos tutelados,
além do necessário para as despesas ordinárias com o seu sustento, a sua educação
e a administração de seus bens.
§ 1º Se houver necessidade, os objetos de ouro e prata, pedras preciosas e móveis
serão avaliados por pessoa idônea e, após autorização judicial, alienados, e o seu
produto convertido em títulos, obrigações e letras de responsabilidade direta ou
indireta da União ou dos Estados, atendendo-se preferentemente à rentabilidade, e
recolhidos ao estabelecimento bancário oficial ou aplicado na aquisição de
imóveis, conforme for determinado pelo juiz.
§ 2º O mesmo destino previsto no parágrafo antecedente terá o dinheiro
proveniente de qualquer outra procedência.
§ 3º Os tutores respondem pela demora na aplicação dos valores acima referidos,
pagando os juros legais desde o dia em que deveriam dar esse destino, o que não os
exime da obrigação, que o juiz fará efetiva, da referida aplicação.”

“Art. 1.754. Os valores que existirem em estabelecimento bancário oficial, na


forma do artigo antecedente, não se poderão retirar, senão mediante ordem do juiz,
e somente:
I - para as despesas com o sustento e educação do tutelado, ou a administração de
seus bens;
II - para se comprarem bens imóveis e títulos, obrigações ou letras, nas condições
previstas no § 1º do artigo antecedente;
III - para se empregarem em conformidade com o disposto por quem os houver
doado, ou deixado;
IV - para se entregarem aos órfãos, quando emancipados, ou maiores, ou, mortos
eles, aos seus herdeiros.”

1.5. Cessação da tutela

Os artigos 1.763 a 1.766 do CC tratam das hipóteses de extinção da tutela:

“Art. 1.763. Cessa a condição de tutelado:


I - com a maioridade ou a emancipação do menor;
II - ao cair o menor sob o poder familiar, no caso de reconhecimento ou adoção.”

“Art. 1.764. Cessam as funções do tutor:


I - ao expirar o termo, em que era obrigado a servir;

Michell Nunes Midlej Maron 153


EMERJ – CP V Direito Civil V

II - ao sobrevir escusa legítima;


III - ao ser removido.”

“Art. 1.765. O tutor é obrigado a servir por espaço de dois anos.


Parágrafo único. Pode o tutor continuar no exercício da tutela, além do prazo
previsto neste artigo, se o quiser e o juiz julgar conveniente ao menor.”

“Art. 1.766. Será destituído o tutor, quando negligente, prevaricador ou incurso em


incapacidade.”

Assim, se o tutelado não mais demanda tutela, por se tornar maior ou emancipado,
ou ainda sobrevier poder familiar que torne descabida tutela alheia, a tutela se extingue.
Também se finda por causas relacionadas ao tutor: se o tempo de múnus do tutor se expirar
(dois anos, no mínimo, como dispõe o artigo 1.765 supra), ou se sobrevier escusa que o
permita exonerar-se do múnus, ou ainda por ser removido ou destituído, termina a tutela
para aquele tutor – se ainda for necessária tutela, outro tutor será nomeado.
O artigo 1.766 do CC, supra, define que será destituído o tutor se for negligente,
prevaricador, ou tornar-se incapaz.

1.6. Prestação de contas

Diz o artigo 1.755 do CC:

“Art. 1.755. Os tutores, embora o contrário tivessem disposto os pais dos tutelados,
são obrigados a prestar contas da sua administração.”

É exigido um balanço anual das contas da gerência dos bens, na forma do artigo
seguinte, 1.756 do CC:

“Art. 1.756. No fim de cada ano de administração, os tutores submeterão ao juiz o


balanço respectivo, que, depois de aprovado, se anexará aos autos do inventário.”

Além disso, a cada biênio, o tutor deverá apresentar prestação de contas detalhada.
Pode o juiz entender que esta prestação de contas seja necessária em períodos menores, ou
a qualquer tempo, a seu critério. Veja o artigo 1.757 do CC:

“Art. 1.757. Os tutores prestarão contas de dois em dois anos, e também quando,
por qualquer motivo, deixarem o exercício da tutela ou toda vez que o juiz achar
conveniente.
Parágrafo único. As contas serão prestadas em juízo, e julgadas depois da
audiência dos interessados, recolhendo o tutor imediatamente a estabelecimento
bancário oficial os saldos, ou adquirindo bens imóveis, ou títulos, obrigações ou
letras, na forma do § 1º do art. 1.753.”

Note que também quando do termo final da tutela será necessária uma última
prestação das contas gerais, qualquer que seja o motivo do fim da tutela.

1.7. Competência

Michell Nunes Midlej Maron 154


EMERJ – CP V Direito Civil V

A competência para tratar dos assuntos da tutela dependerá da situação do menor: se


ele estiver em situação irregular (menores abandonados ou em risco), na forma do artigo
98 do ECA, é competente a vara da infância e da juventude, ou equivalente.

“Art. 98. As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre


que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados:
I - por ação ou omissão da sociedade ou do Estado;
II - por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável;
III - em razão de sua conduta.”

Quando o menor estiver em situação regular – fora do artigo 98 do ECA –, a


competência para a tutela é da vara de família.
A dinâmica é a mesma da ação de guarda, que compete à vara da infância quando o
menor estiver em situação irregular, e à família, quando regular. Veja que difere, portanto,
da ação de adoção, que é sempre competência da vara da infância e juventude, a despeito da
situação do menor.
2. Curatela

O conceito doutrinário de curatela é de instituto que visa à proteção do maior


incapaz. A incapacidade induzida não pela menoridade, mas sim pela perturbação mental,
gera a necessidade de que seja alguém nomeado para proteger esta pessoa. Esta ideia
decorre da análise das pessoas que a lei diz serem sujeitas à curatela, como dispõe o artigo
1.767 do CC:

“Art. 1.767. Estão sujeitos a curatela:


I - aqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário
discernimento para os atos da vida civil;
II - aqueles que, por outra causa duradoura, não puderem exprimir a sua vontade;
III - os deficientes mentais, os ébrios habituais e os viciados em tóxicos;
IV - os excepcionais sem completo desenvolvimento mental;
V - os pródigos.”

A interdição, que é o evento que precede à curatela, constitui a incapacidade


daquela pessoa, ou apenas a declara? A sentença de interdição tem natureza constitutiva ou
declaratória?
Veja, por exemplo, o inciso IV do artigo acima: o deficiente mental já é incapaz
desde sempre, desde quando surgida a sua deficiência. É a doença mental que a torna
incapaz, e não a sentença de interdição. Sendo assim, a sentença seria meramente
declaratória da condição de incapaz daquela pessoa. O artigo 1.763 do CC parece amparar
esta tese:

“Art. 1.773. A sentença que declara a interdição produz efeitos desde logo, embora
sujeita a recurso.”

Esta posição, majoritária, não é a única, porém. Isto porque há casos em que a
enfermidade mental ensejadora da incapacidade não estão evidentes, tomando-se de
exemplo o inciso I do artigo 1.767 do CC: a falta de discernimento nem sempre está
evidente. Por conta disso, não se pode reputar que esta pessoa tenha sido desde sempre
incapaz, sob pena de se agredir a confiança depositada pela sociedade, que não podia

Michell Nunes Midlej Maron 155


EMERJ – CP V Direito Civil V

perceber sua incapacidade, com ele celebrando tratos. Neste sentido, a sentença de
interdição seria constitutiva, passando a dar segurança social sobre o estado daquela pessoa
– é uma sentença que altera a situação jurídica do interditado, e por isso é constitutiva. O
CPC suporta esta tese, no artigo 1.184:

“Art. 1.184. A sentença de interdição produz efeito desde logo, embora sujeita a
apelação. Será inscrita no Registro de Pessoas Naturais e publicada pela imprensa
local e pelo órgão oficial por três vezes, com intervalo de 10 (dez) dias, constando
do edital os nomes do interdito e do curador, a causa da interdição e os limites da
curatela.”

Para a pessoa necessitar da curatela, ela deve estar em uma das situações do artigo
1.767, supra, e é preciso que seja maior de idade, como diz a doutrina clássica civilista.
Para os menores, a incapacidade é legal, e já há suprimento desta pelos pais ou pelo tutor,
não sendo caso de curatela – menor não precisa de interdição, eis que já está protegido pelo
poder familiar ou pelo tutor.
Esta falta de interesse na interdição é incontroversa no que diz respeito ao menor
absolutamente incapaz. Ocorre que o menor relativamente incapaz não tem o mesmo nível
de proteção que tem o absolutamente incapaz, porque a assistência não é tão acobertante
quanto a representação. Sendo assim, uma segunda parcela da doutrina afirma que a partir
da completitude de dezesseis anos, aquele menor que está inserido numa das situações do
artigo 1.767 do CC precisa, sim, ser interditado, porque a absoluta incapacidade que deve
ser-lhe reconhecida só pode vir por meio desta sentença, eis que não vem da conformação
natural dos fatos, porque a idade não mais lhe empresta tal característica.
Assim, de forma unânime, o menor absolutamente incapaz, até dezesseis anos,
mesmo que diante de uma das situações do artigo 1.767 do CC, não precisa ser interditado.
Já o menor relativamente incapaz, se estiver sob uma das circunstâncias que demandem
curatela, para os processualistas deve ser interditado – mas para os civilistas não há esta
diferenciação.
O menor emancipado, maior que é para efeitos legais, não mais está sob poder
familiar. Sendo assim, se se amoldar a uma das circunstâncias do artigo 1.767 do CC, será
alvo de interdição, e jamais tutela.

2.1. Procedimento de interdição

Ainda que se diga que a sentença de interdição é declaratória, ela tem um efeito
claramente constitutivo: é a partir dela que nasce a figura do curador, situação que inexiste
até então. É na sentença que se nomeia o curador.
São legitimados para pedir interdição aqueles arrolados no artigo 1.768 do CC:

“Art. 1.768. A interdição deve ser promovida:


I - pelos pais ou tutores;
II - pelo cônjuge, ou por qualquer parente;
III - pelo Ministério Público.”

A legitimidade do MP, porém, é restrita aos casos do artigo 1.769 do CC:

“Art. 1.769. O Ministério Público só promoverá interdição:


I - em caso de doença mental grave;

Michell Nunes Midlej Maron 156


EMERJ – CP V Direito Civil V

II - se não existir ou não promover a interdição alguma das pessoas designadas nos
incisos I e II do artigo antecedente;
III - se, existindo, forem incapazes as pessoas mencionadas no inciso antecedente.”

Proposta a ação de interdição, o interditando será citado na forma do artigo 1.181 do


CPC, a fim de que compareça a uma audiência de inspeção pessoal a ser empreendida pelo
juiz:

“Art. 1.181. O interditando será citado para, em dia designado, comparecer perante
o juiz, que o examinará, interrogando-o minuciosamente acerca de sua vida,
negócios, bens e do mais que lhe parecer necessário para ajuizar do seu estado
mental, reduzidas a auto as perguntas e respostas.”

Esta audiência pode ser dispensada, se na inicial já vier comprovada a incapacidade


do interditando.
O interditando pode apresentar defesa, por advogado nomeado, na forma do artigo
1.182 do CPC. Se não o fizer, diz o artigo em questão que o MP será o representante deste
interditando, quando não for o próprio parquet o autor do pedido de interdição, o que
também é expresso no artigo 1.770 do CC:

“Art. 1.182. Dentro do prazo de 5 (cinco) dias contados da audiência de


interrogatório, poderá o interditando impugnar o pedido.
§ 1º Representará o interditando nos autos do procedimento o órgão do Ministério
Público ou, quando for este o requerente, o curador à lide.
§ 2º Poderá o interditando constituir advogado para defender-se.
§ 3º Qualquer parente sucessível poderá constituir-lhe advogado com os poderes
judiciais que teria se nomeado pelo interditando, respondendo pelos honorários.”

“Art. 1.770. Nos casos em que a interdição for promovida pelo Ministério Público,
o juiz nomeará defensor ao suposto incapaz; nos demais casos o Ministério Público
será o defensor.”

Ocorre que o MP não desempenha jamais este papel de advogado do interditando. O


seu advogado será aquele constituído ou a Defensoria Pública, ou ainda o advogado dativo,
ao contrário do que dispõem os artigos supra. O MP funciona sempre como custos legis,
quando não for proponente da ação.
Apresentada a defesa, será produzido exame de sanidade mental, na forma do artigo
1.183 do CPC:

“Art. 1.183. Decorrido o prazo a que se refere o artigo antecedente, o juiz nomeará
perito para proceder ao exame do interditando. Apresentado o laudo, o juiz
designará audiência de instrução e julgamento.
Parágrafo único. Decretando a interdição, o juiz nomeará curador ao interdito.”

Em seguida, haverá audiência de instrução e julgamento, e após prolatará sentença.


É na sentença que se nomeia o curador, pessoa que será escolhida na forma do artigo 1.775
do CC:

“Art. 1.775. O cônjuge ou companheiro, não separado judicialmente ou de fato, é,


de direito, curador do outro, quando interdito.

Michell Nunes Midlej Maron 157


EMERJ – CP V Direito Civil V

§1º Na falta do cônjuge ou companheiro, é curador legítimo o pai ou a mãe; na


falta destes, o descendente que se demonstrar mais apto.
§ 2º Entre os descendentes, os mais próximos precedem aos mais remotos.
§ 3º Na falta das pessoas mencionadas neste artigo, compete ao juiz a escolha do
curador.”

Este artigo fala de duas classes de curador: o legítimo, previsto em lei, ou o judicial,
ou dativo, eleito pelo juiz quando não houver legítimo presente e hábil. A ordem de escolha
do curador legítimo não é rígida, tal como a ordem da tutela legítima, porque o juiz deverá
primar pela nomeação que seja mais favorável, mais interessante ao curatelado.
Na sentença de interdição, o juiz traçará os limites do exercício da curatela,
traçando os atos que o curador pode ou não pode praticar. Veja o artigo 1.772 do CC:
“Art. 1.772. Pronunciada a interdição das pessoas a que se referem os incisos III e
IV do art. 1.767, o juiz assinará, segundo o estado ou o desenvolvimento mental do
interdito, os limites da curatela, que poderão circunscrever-se às restrições
constantes do art. 1.782.”

Para o pródigo, os limites estão no artigo 1.782 do CC:

“Art. 1.782. A interdição do pródigo só o privará de, sem curador, emprestar,


transigir, dar quitação, alienar, hipotecar, demandar ou ser demandado, e praticar,
em geral, os atos que não sejam de mera administração.”

O exercício da curatela se faz nos moldes do exercício da tutela, já abordado, como


exprime o artigo 1.781 do CC:

“Art. 1.781. As regras a respeito do exercício da tutela aplicam-se ao da curatela,


com a restrição do art. 1.772 e as desta Seção.”

A curatela se estende aos filhos do curatelado, na forma do artigo 1.778 do CC. A


autoridade do curador se estende àqueles que estão sob poder familiar do curatelado.

“Art. 1.778. A autoridade do curador estende-se à pessoa e aos bens dos filhos do
curatelado, observado o art. 5º.”

2.2. Curatela do nascituro

O feto nascituro não precisa de curador, por óbvio. Sua representação, para efeito de
proteção a seus direitos futuros, incumbe à mãe, na forma do artigo 1.779 do CC:

“Art. 1.779. Dar-se-á curador ao nascituro, se o pai falecer estando grávida a


mulher, e não tendo o poder familiar.
Parágrafo único. Se a mulher estiver interdita, seu curador será o do nascituro.”

Se a mulher grávida for ela própria interditada, o seu curador é também curador do
feto. Se ela estiver fora do poder familiar, o representante é o pai. Não havendo pai, ou
estando ele também sem poder familiar, somente então nomear-se-á curador.
Não corre ação de interdição contra o nascituro, por óbvio.

2.3. Curatela do deficiente físico

Michell Nunes Midlej Maron 158


EMERJ – CP V Direito Civil V

O artigo 1.780 do CC determina:

“Art. 1.780. A requerimento do enfermo ou portador de deficiência física, ou, na


impossibilidade de fazê-lo, de qualquer das pessoas a que se refere o art. 1.768,
dar-se-lhe-á curador para cuidar de todos ou alguns de seus negócios ou bens.”

Trata-se de curador de bens, apenas, e não da pessoa deficiente. Este curador não é
nomeado em ação de interdição, pois o deficiente físico não será interditado. Seguir-se-á o
procedimento geral de jurisdição voluntária.

Casos Concretos

Questão 1

Tendo falecido a mãe, sendo o pai doente, uma de suas filhas, Paula, foi nomeada
curadora provisória de Cintia, jovem de dezesseis anos, portadora de anomalia psíquica.
Estando em curso a ação de interdição, morre o pai, que antes, fizera testamento deixando
toda sua disponível para Cintia, com o objetivo de possibilitar a ela maior conforto e
possibilidade de tratamento, em razão da anomalia. Ocorre que não se conformando em
que a irmã tivesse maior benefício com a herança, impugnou em juízo o testamento.
Analise o pedido, inclusive quanto à possibilidade da interdição de pessoa menor de idade.

Resposta à Questão 1

As circunstâncias não recomendam a nomeação, já que a curadora provisória tem


interesses contrários e colidentes com os interesses da curatelada, estando impedida de
exercer a curatela, nos termos do artigo 1.735 do CC c/c 1.774 e 1.781, todos do Código
Civil.
Quanto à curatela do menor de idade, é perfeitamente possível se, apesar de ser
relativamente incapaz em razão da idade, sofrer de anomalia mental que prive de
discernimento, fazendo-o absolutamente incapaz, pois a partir de dezesseis anos os pais ou
tutor não mais representam o filho ou o tutelado – apenas o assistem –, praticando
juntamente com ele o ato jurídico, ou autorizando-o. Não há que se falar em interdição do
menor de dezesseis anos, pois estes já têm a representação legal dos pais ou do tutor por
serem absolutamente incapazes em razão da idade.
A respeito, veja o seguinte julgado:
“REsp 138599/SP; Relator: Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR; Data do
Julgamento: 08/10/1997.
CURATELA. INTERDIÇÃO. NOMEAÇÃO DE CURADORES. CONJUGE.
HAVENDO LITIGIO ENTRE O INTERDITANDO E AQUELE QUE A LEI
ESTABELECE COMO POSSIVEL CURADOR, NÃO PODE SER OBEDECIDA
A ORDEM LEGAL, POR EXIGENCIA NATURAL DAS COISAS. ESTANDO A
MULHER LITIGANDO COM O MARIDO EM AÇÃO DE DIVORCIO, NÃO
DEVE SER NOMEADA CURADORA PROVISORIA DELE. ART. 454 DO
CCIVIL. RECURSO NÃO CONHECIDO.”

Michell Nunes Midlej Maron 159


EMERJ – CP V Direito Civil V

Questão 2

Antonio, morador do Rio de Janeiro, vizinho de Francisco e seu colateral no 4º


grau, requereu a curatela deste, sob o argumento de que Francisco, que conta com apenas
8 anos de idade, necessita de cuidados, pois é portador da síndrome de Down, sendo seus
pais alcoólatras, já tendo sido destituídos do poder familiar através de procedimento
judicial próprio. O Ministério Público se opõe ao pedido, sustentando que: a) a medida
pretendida não é correta, eis que, em se tratando de menor, a hipótese seria de tutela; b)
existem outros parentes em linha reta, quais sejam, Maria e José, avós paternos da
criança, residentes em São Paulo, que precederiam Antonio na ordem de vocação para o
múnus, prevista em lei. Decida a questão.
Resposta à Questão 2

Deve ser rejeitado o pedido, pois somente se sujeita a tutoria menor de dezoito anos,
não emancipado, que esteja fora do poder familiar, o que pode ocorrer por falecimento de
ambos os pais; se forem destituídos; ou se forem julgados ausentes. No caso sob análise,
trata-se de pedido único de tutela de criança que encontra-se sob o poder familiar do pai, o
que torna impossível o pedido. Trata-se da mera aplicação dos artigos 1.728, 1.630 e 1.631
do CC, e 21 do ECA.

Questão 3

Caio, interdito, proprietário de um apartamento e de uma casa, requereu por seu


pai e curador autorização judicial para a venda da casa à empresa imobiliária que
apresentara boa proposta de compra, tendo em vista não só o preço oferecido, mas
também os altos custos de manutenção do referido imóvel. Esclareceu o requerente que o
produto da venda seria aplicado em caderneta de poupança cujo rendimento seria
empregado na conservação do apartamento, utilizado como residência, e no custeio de
despesas pessoais. Opine.

Resposta à Questão 3

O código civil de 1916 exigia hasta pública no artigo 429, o que muitas vezes era
prejudicial, pois toda hasta pública traz despesas altas pagamento de leiloeiro, etc. Veja o
revogado artigo:

“Art. 429. Os imóveis pertencentes aos menores só podem ser vendidos quando
houver manifesta vantagem, e sempre em hasta pública.”

A jurisprudência do STJ, algumas vezes, afastava a hasta pública. O Código atual


não repetiu a exigência de hasta pública: o artigo 1.750 do CC só exige a avaliação e
aprovação do juiz, e o procedimento de autorização de venda é jurisdição voluntária,
cabendo ao juiz apreciar a conveniência e a oportunidade da venda, segundo o artigo 1.109
do CPC. Veja os dispositivos:

Michell Nunes Midlej Maron 160


EMERJ – CP V Direito Civil V

“Art. 1.750. Os imóveis pertencentes aos menores sob tutela somente podem ser
vendidos quando houver manifesta vantagem, mediante prévia avaliação judicial e
aprovação do juiz.”

“Art. 1.109. O juiz decidirá o pedido no prazo de 10 (dez) dias; não é, porém,
obrigado a observar critério de legalidade estrita, podendo adotar em cada caso a
solução que reputar mais conveniente ou oportuna.”

Assim, a venda não mais precisa ser feita em juízo, bastando a sua autorização em
juízo – e, in casu, a venda é recomendável.

Tema XVI

Bioética e Biodireito. Princípios. Morte encefálica. Pesquisas e patrimônio genético. Embriões


excedentários. Transexualismo.

Notas de Aula21

1. Bioética e biodireito

A bioética é a seara de estudo e princípios que trata de questões intrincadas acerca


da condição humana. Uma vez que se veja, nestas relações, a necessidade de normas
jurídicas a regulamentá-las, passa-se a falar em biodireito.
O caso mais debatido em relação a este tema é o da anencefalia fetal. Há vários
tipos de anencefalia, alguns tão graves que determinam o nascimento da criança já sem
vida, eis que sequer o comando para respirar é emitido, ante a ausência do sistema nervoso
que o emitiria. Outros casos até permitem a sobrevida da criança, por algum tempo, sendo
que o caso mais famoso documentado é de uma criança que sobreviveu oito meses.
O sofrimento de uma gestante que espera um filho nestas condições é inegável, e
por isso o pedido de antecipação de parto, nos casos de anencefalia, é frequente. Não é
correto se falar em abortamento, pois este termo foi apropriado pelo direito penal para
indicar a conduta típica. O pedido de antecipação de parto é deduzido na vara criminal,
porque a conduta a ser autorizada seria crime, sem esta autorização.
O Conselho Nacional de Saúde editou resolução permitindo e regulamentando a
antecipação de parto de anencéfalo, mas este ato não tem força legal. O Conselho Federal
de Medicina emitiu resolução dispondo que os fetos anencéfalos não podem ser doadores
de órgãos.
Uma ADPF foi ajuizada com o escopo de que seja permitida a realização desta
antecipação de parto. A polêmica, neste julgamento, foi severa. Os ministros que se
colocaram a favor da antecipação do parto se basearam na dignidade da pessoa humana da
gestante, que não poderia ser obrigada a levar a cabo gravidez tão pesarosa, carregando a
morte dentro de si. Aqueles que se colocaram contra a legalidade desta interrupção da
gravidez, na verdade, calcaram-se em argumento formal, mas poderoso: para eles, a tarefa
de permitir esta antecipação, torná-la legal, é do legislador, e não do Judiciário.
21
Aula ministrada pela professora Elida Lucia Sá Seguin, em 9/3/2010.

Michell Nunes Midlej Maron 161


EMERJ – CP V Direito Civil V

A discussão central também passou pelo critério de morte hoje adotado. Isto porque
se a morte for ausência de manifestação cerebral, o anencéfalo jamais teve ou terá esta vida
cerebral, sendo desde sempre considerado morto – e por isso a sua retirada do ventre não
seria aborto, por não haver vida intrauterina, que é o bem jurídico penalmente protegido.
A ADPF não foi ainda julgada. Segue abaixo sua última decisão relevante:

“ADPF 54 QO / DF - DISTRITO FEDERAL. QUESTÃO DE ORDEM NA


ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL.
Relator Min. MARCO AURÉLIO. Julgamento: 27/04/2005. Órgão Julgador:
Tribunal Pleno. Publicação: 31-08-2007.
Ementa: ADPF - ADEQUAÇÃO - INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ - FETO
ANENCÉFALO - POLÍTICA JUDICIÁRIA - MACROPROCESSO. Tanto quanto
possível, há de ser dada seqüência a processo objetivo, chegando-se, de imediato, a
pronunciamento do Supremo Tribunal Federal. Em jogo valores consagrados na
Lei Fundamental - como o são os da dignidade da pessoa humana, da saúde, da
liberdade e autonomia da manifestação da vontade e da legalidade -, considerados
a interrupção da gravidez de feto anencéfalo e os enfoques diversificados sobre a
configuração do crime de aborto, adequada surge a argüição de descumprimento de
preceito fundamental. ADPF - LIMINAR - ANENCEFALIA - INTERRUPÇÃO
DA GRAVIDEZ - GLOSA PENAL - PROCESSOS EM CURSO - SUSPENSÃO.
Pendente de julgamento a argüição de descumprimento de preceito fundamental,
processos criminais em curso, em face da interrupção da gravidez no caso de
anencefalia, devem ficar suspensos até o crivo final do Supremo Tribunal Federal.
ADPF - LIMINAR - ANENCEFALIA - INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ -
GLOSA PENAL - AFASTAMENTO - MITIGAÇÃO. Na dicção da ilustrada
maioria, entendimento em relação ao qual guardo reserva, não prevalece, em
argüição de descumprimento de preceito fundamental, liminar no sentido de afastar
a glosa penal relativamente àqueles que venham a participar da interrupção da
gravidez no caso de anencefalia.”

Outra polêmica ligada a esta questão é o uso de células-tronco embrionárias. Esta


questão é tratada na Lei de Biossegurança, Lei 11.105/05, e neste diploma se vê que há uma
mescla de tratamento de matérias de biogenética humana e vegetal, o que é um tanto
estranho.
O problema, aqui, é também a definição do momento em que se dá o começo da
vida. O principal argumento, médico, de que não há vida a ser protegida no embrião, é que
até o décimo quinto dia as células não estão especializadas, ou seja, trata-se de uma mera
massa de células-tronco – e por isso a lei, ao permitir esta pesquisa, não estaria permitindo
a violação da vida. Veja o artigo 5º da Lei 11.105/05:

“Art. 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco


embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e
não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições:
I – sejam embriões inviáveis; ou
II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação
desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de
completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento.
§ 1º Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.
§ 2º Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia
com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à
apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa.

Michell Nunes Midlej Maron 162


EMERJ – CP V Direito Civil V

§ 3º É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e


sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro
de 1997.”

Aqueles que são contrários à utilização de células-tronco embrionárias defendem


que as células adultas, do cordão umbilical, têm o mesmo efeito. Contudo, este argumento é
tecnicamente refutado, porque simplesmente não é cientificamente verdadeiro – as células
são diferentes.
As questões referentes à paternidade – e hoje, maternidade – são tratadas pelo CC
no que pertine às presunções, mas estas regras estão longe de regulamentar
satisfatoriamente este tema, que é intimamente ligado à evolução tecnológica. Veja o artigo
1.597 do CC:

“Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:


I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência
conjugal;
II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal,
por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;
III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;
IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários,
decorrentes de concepção artificial homóloga;
V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia
autorização do marido.”

A lei não permite a chamada “barriga de aluguel” – a inseminação excedentária não


pode ser comerciada. Quanto à inseminação homóloga, a qualquer tempo se opera a
presunção, mesmo após o falecimento do suposto pai.
Um caso peculiar da jurisprudência foi o de um doador de esperma que, tendo
doado material para um casal de amigas em união homoafetiva, para gestação por uma
delas, foi posteriormente responsabilizado pela paternidade da criança, sendo condenado a
pensioná-la, ao argumento de que quando doou direcionadamente, renunciou à
irresponsabilidade pela criança que o anonimato imporia – o que parece ser uma afronta a
sua boa-fé em doar o material. Hoje, porém, o próprio direito ao anonimato do doador tem
sido questionado, em face do direito à ascendência biológica, detido pela criança.
A inseminação artificial, outrora, permitia a implantação de um número enorme de
embriões, de forma a majorar as chances de sucesso, o que acabava gerando casos de
gravidez múltipla. Hoje, não é mais admitido o livre implante de embriões, pelo risco que
este tipo de metodologia implica.
A questão da transexualidade tem sido bastante discutida em nosso Judiciário,
especialmente no que diz respeito à mudança de nome e sexo do transexual. Um julgado
recente do TJ/RJ, da relatoria do Desembargador Alexandre Câmara, é tremendamente
esclarecedor sobre o tema. Veja a ementa e o corpo do voto:

“Direito civil. Transexual. Mudança do “sexo registral”. Possibilidade.


Precedentes. Necessidade de que do registro de nascimento conste que as
mudanças de prenome e do sexo foram determinadas por decisão judicial.
Provimento do recurso.
(...)
Inicialmente, este relator precisa – por uma questão de transparência intelectual –
tecer algumas considerações acerca do modo como vê a questão aqui examinada.

Michell Nunes Midlej Maron 163


EMERJ – CP V Direito Civil V

É de se considerar, inicialmente, que a divisão da espécie humana em apenas dois


sexos, ou gêneros, não é pacífica. Basta dizer que o professor Ronaldo Pamplona,
docente do cadeira Sexualidade no curso de pós-graduação da Sociedade Brasileira
da Sexualidade Humana e diretor do Departamento de Sexualidade da Associação
Paulista de Medicina, faz alusão à existência de onze sexos, a saber: mulheres
heterossexuais; homens heterossexuais; homens homossexuais; mulheres lésbicas;
mulheres bissexuais; homens bissexuais; homens travestis; mulheres travestis;
transexuais masculinos; transexuais femininas; hermafroditas.
A parte apelante, conforme se constata pelo exame dos autos, pertence à nona das
categorias acima listadas: transexual masculino. O próprio professor Ronaldo
Pamplona da Costa assim define essa categoria:
9. Transexuais Masculinos
Os transexuais masculinos não são homens que querem ser mulheres. Do ponto de
vista psicológico, eles são mulheres. Têm vergonha de seus órgãos sexuais, não
permitem ser tocados nessa região, nem se masturbam. Os transexuais masculinos
não buscam o prazer sexual nos órgãos sexuais, por isso, geralmente desejam
realizar a operação para troca de sexo. São divididos em dois grupos: os primários,
aqueles que desde meninos sentem que pertencem ao gênero feminino, e os
secundários, que sentem-se meninas, mas que procuram imitar os meninos por
pressões da família.
Este, evidentemente, não é um entendimento pacífico. Mas a ideia de que se devem
reconhecer mais do que apenas dois gêneros já começa a ganhar importantes
defensores. Merece referência, entre outros, o professor A. H. Devor, Ph. D., que
apresentou importante trabalho sobre o tema ao Departamento de Sociologia da
Universidade de Victoria, no Canadá. Reconhecer a existência de sexos distintos
dos dois “tradicionais” poderia evitar uma série de problemas que, identificados
pelo juízo de primeiro grau de jurisdição ou análogos aos que por ele foram
indicados, o levaram a proferir a decisão ora apelada.
Assim é que, por exemplo, a afirmação de que a parte apelante é do sexo feminino
poderia levar a problemas em uma possível investigação criminal. Basta ver o
seguinte: biologicamente, há indivíduos com cromossomos XX (sexo feminino) e
XY (sexo masculino). Um exame pericial pode indicar, então, que a pele
encontrada sob as unhas da vítima de um homicídio é de uma mulher ou de um
homem. Agora imagine-se o caso de se ter encontrado naquele material
cromossomos XY, o que levará a Polícia a ter a certeza de que o crime foi
cometido por um homem, e o criminoso ser alguém de cujo registro consta ser do
sexo feminino (por força de decisão judicial, em razão de ter realizado cirurgia de
redesignação sexual). Outro exemplo se poderia ter no caso de um homem vir a
casar-se, sem saber, com alguém cujo “sexo registral” foi alterado para o feminino
sem ter notícia disso. Um fato como esse pode ter repercussões jurídicas (com a
postulação, posterior à descoberta da modificação, da anulação do casamento por
erro essência quanto à pessoa) e metajurídicas. Basta pensar que esse homem, por
razões religiosas, pode ser levado a crer que tenha cometido um grave pecado, para
o qual talvez não haja perdão. Diga-se, por exemplo, que para o catolicismo a
hipótese se configuraria como sendo de luxúria, um dos pecados capitais.
Assim, talvez fosse o mais correto determinar-se que, no registro do nascimento de
pessoas com as mesmas características da parte apelante, constasse a indicação de
que a mesma é transexual, não se apontando a mesma como do sexo masculino ou
feminino.
De outro lado, porém, há de se considerar que o transexualismo ainda é incluído
entre as patologias constantes do CID – Código Internacional de Doenças, sob o nº
F64.0 (diferentemente da homossexualidade, por exemplo, que já há bastante
tempo não integra tal classificação). Há já Estados, contudo, que deixaram de tratar
a transexualidade como doença, como se deu, por exemplo, na França.
Pois é por conta dessa necessidade de se reconhecer a transexualidade como um
fenômeno real, presente na sociedade, que a doutrina tem admitido a mudança do

Michell Nunes Midlej Maron 164


EMERJ – CP V Direito Civil V

“sexo registral”. Neste sentido, por exemplo, manifesta-se o eminente magistrado


José Roberto Neves Amorim, Desembargador no Tribunal de Justiça de São Paulo,
para quem é admissível a mudança de nome e sexo no registro civil, o que deve
ocorrer nos casos de comprovado transexualismo.
Assim também tem entendido a jurisprudência. Confira-se, por exemplo, o
seguinte aresto do Superior Tribunal de Justiça:
REGISTRO PÚBLICO. MUDANÇA DE SEXO. EXAME DE MATÉRIA
CONSTITUCIONAL. IMPOSSIBILIDADE DE EXAME NA VIA DO
RECURSO ESPECIAL. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SUMULA
N. 211/STJ. REGISTRO CIVIL. ALTERAÇÃO DO PRENOME E DO SEXO.
DECISÃO JUDICIAL. AVERBAÇÃO. LIVRO CARTORÁRIO.
1. Refoge da competência outorgada ao Superior Tribunal de Justiça apreciar, em
sede de recurso especial, a interpretação de normas e princípios de natureza
constitucional.
2. Aplica-se o óbice previsto na Súmula n. 211/STJ quando a questão suscitada no
recurso especial, não obstante a oposição de embargos declaratórios, não foi
apreciada pela Corte a quo.
3. O acesso à via excepcional, nos casos em que o Tribunal a quo, a despeito da
oposição de embargos de declaração, não regulariza a omissão apontada, depende
da veiculação, nas razões do recurso especial, de ofensa ao art. 535 do CPC.
4. A interpretação conjugada dos arts. 55 e 58 da Lei n. 6.015/73 confere amparo
legal para que transexual operado obtenha autorização judicial para a alteração de
seu prenome, substituindo-o por apelido público e notório pelo qual é conhecido
no meio em que vive.
5. Não entender juridicamente possível o pedido formulado na exordial significa
postergar o exercício do direito à identidade pessoal e subtrair do indivíduo a
prerrogativa de adequar o registro do sexo à sua nova condição física, impedindo,
assim, a sua integração na sociedade.
6. No livro cartorário, deve ficar averbado, à margem do registro de prenome e de
sexo, que as modificações procedidas decorreram de decisão judicial.
7. Recurso especial conhecido em parte e provido.
(REsp 737.993/MG, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUARTA
TURMA, julgado em 10/11/2009, DJe 18/12/2009)
Confira-se, ainda, o seguinte acórdão:
Direito civil. Recurso especial. Transexual submetido à cirurgia de redesignação
sexual. Alteração do prenome e designativo de sexo. Princípio da dignidade da
pessoa humana. - Sob a perspectiva dos princípios da Bioética – de beneficência,
autonomia e justiça –, a dignidade da pessoa humana deve ser resguardada, em um
âmbito de tolerância, para que a mitigação do sofrimento humano possa ser o
sustentáculo de decisões judiciais, no sentido de salvaguardar o bem supremo e
foco principal do Direito: o ser humano em sua integridade física, psicológica,
socioambiental e ético-espiritual.
- A afirmação da identidade sexual, compreendida pela identidade humana, encerra
a realização da dignidade, no que tange à possibilidade de expressar todos os
atributos e características do gênero imanente a cada pessoa. Para o transexual, ter
uma vida digna importa em ver reconhecida a sua identidade sexual, sob a ótica
psicossocial, a refletir a verdade real por ele vivenciada e que se reflete na
sociedade.
- A falta de fôlego do Direito em acompanhar o fato social exige, pois, a invocação
dos princípios que funcionam como fontes de oxigenação do ordenamento jurídico,
marcadamente a dignidade da pessoa humana – cláusula geral que permite a tutela
integral e unitária da pessoa, na solução das questões de interesse existencial
humano.
- Em última análise, afirmar a dignidade humana significa para cada um manifestar
sua verdadeira identidade, o que inclui o reconhecimento da real identidade sexual,
em respeito à pessoa humana como valor absoluto. - Somos todos filhos agraciados

Michell Nunes Midlej Maron 165


EMERJ – CP V Direito Civil V

da liberdade do ser, tendo em perspectiva a transformação estrutural por que passa


a família, que hoje apresenta molde eudemonista, cujo alvo é a promoção de cada
um de seus componentes, em especial da prole, com o insigne propósito
instrumental de torná-los aptos de realizar os atributos de sua personalidade e
afirmar a sua dignidade como pessoa humana.
- A situação fática experimentada pelo recorrente tem origem em idêntica
problemática pela qual passam os transexuais em sua maioria: um ser humano
aprisionado à anatomia de homem, com o sexo psicossocial feminino, que, após
ser submetido à cirurgia de redesignação sexual, com a adequação dos genitais à
imagem que tem de si e perante a sociedade, encontra obstáculos na vida civil,
porque sua aparência morfológica não condiz com o registro de nascimento,
quanto ao nome e designativo de sexo.
- Conservar o “sexo masculino” no assento de nascimento do recorrente, em favor
da realidade biológica e em detrimento das realidades psicológica e social, bem
como morfológica, pois a aparência do transexual redesignado, em tudo se
assemelha ao sexo feminino, equivaleria a manter o recorrente em estado de
anomalia, deixando de reconhecer seu direito de viver dignamente.
- Assim, tendo o recorrente se submetido à cirurgia de redesignação sexual, nos
termos do acórdão recorrido, existindo, portanto, motivo apto a ensejar a alteração
para a mudança de sexo no registro civil, e a fim de que os assentos sejam capazes
de cumprir sua verdadeira função, qual seja, a de dar publicidade aos fatos
relevantes da vida social do indivíduo, forçosa se mostra a admissibilidade da
pretensão do recorrente, devendo ser alterado seu assento de nascimento a fim de
que nele conste o sexo feminino, pelo qual é socialmente reconhecido.
- Vetar a alteração do prenome do transexual redesignado corresponderia a mantê-
lo em uma insustentável posição de angústia, incerteza e conflitos, que
inegavelmente atinge a dignidade da pessoa humana assegurada pela Constituição
Federal. No caso, a possibilidade de uma vida digna para o recorrente depende da
alteração solicitada. E, tendo em vista que o autor vem utilizando o prenome
feminino constante da inicial, para se identificar, razoável a sua adoção no assento
de nascimento, seguido do sobrenome familiar, conforme dispõe o art. 58 da Lei
n.º 6.015/73.
- Deve, pois, ser facilitada a alteração do estado sexual, de quem já enfrentou
tantas dificuldades ao longo da vida, vencendo-se a barreira do preconceito e da
intolerância. O Direito não pode fechar os olhos para a realidade social
estabelecida, notadamente no que concerne à identidade sexual, cuja realização
afeta o mais íntimo aspecto da vida privada da pessoa. E a alteração do designativo
de sexo, no registro civil, bem como do prenome do operado, é tão importante
quanto a adequação cirúrgica, porquanto é desta um desdobramento, uma
decorrência lógica que o Direito deve assegurar.
- Assegurar ao transexual o exercício pleno de sua verdadeira identidade sexual
consolida, sobretudo, o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana,
cuja tutela consiste em promover o desenvolvimento do ser humano sob todos os
aspectos, garantindo que ele não seja desrespeitado tampouco violentado em sua
integridade psicofísica. Poderá, dessa forma, o redesignado exercer, em amplitude,
seus direitos civis, sem restrições de cunho discriminatório ou de intolerância,
alçando sua autonomia privada em patamar de igualdade para com os demais
integrantes da vida civil. A liberdade se refletirá na seara doméstica, profissional e
social do recorrente, que terá, após longos anos de sofrimentos, constrangimentos,
frustrações e dissabores, enfim, uma vida plena e digna.
- De posicionamentos herméticos, no sentido de não se tolerar “imperfeições”
como a esterilidade ou uma genitália que não se conforma exatamente com os
referenciais científicos, e, consequentemente, negar a pretensão do transexual de
ter alterado o designativo de sexo e nome, subjaz o perigo de estímulo a uma nova
prática de eugenia social, objeto de combate da Bioética, que deve ser igualmente

Michell Nunes Midlej Maron 166


EMERJ – CP V Direito Civil V

combatida pelo Direito, não se olvidando os horrores provocados pelo holocausto


no século passado. Recurso especial provido.
(REsp 1008398/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA,
julgado em 15/10/2009, DJe 18/11/2009)
Também este Tribunal de Justiça assim tem decidido:
0012432-13.2005.8.19.0021 (2006.001.61104) - APELACAO - 1ª Ementa DES.
FRANCISCO DE ASSIS PESSANHA - Julgamento: 15/08/2007 - SEXTA
CAMARA CIVEL REGISTRO CIVIL DE NASCIMENTO TRANSEXUALISMO
MUDANCA DO SEXO POSSIBILIDADE
Apelação Cível. Registro Civil. Alteração. Possibilidade. Transexual. Cirurgia de
transgenitalização. Sentença que atende somente ao pedido de alteração do nome.
Reforma do julgado para permitir a alteração do sexo no registro de nascimento.
Precedentes deste tribunal. Recurso provido. 0016418-72.2005.8.19.0021
(2006.001.61108) - APELACAO - 1ª Ementa DES. VERA MARIA SOARES
VAN HOMBEECK - Julgamento: 06/03/2007 - PRIMEIRA CAMARA CIVEL
TRANSEXUAL. REGISTRO CIVIL. ALTERAÇÃO. POSSIBILIDADE.
CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO. APLICAÇÃO DO ART. 4º DA LEI
DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL DIANTE DA AUSÊNCIA DE LEI
SOBRE A MATÉRIA. SENTENÇA QUE ATENDE SOMENTE AO PEDIDO DE
ALTERAÇÃO DO NOME. REFORMA PARCIAL PARA TAMBÉM PERMITIR
A ALTERAÇÃO DO SEXO NO REGISTRO DE NASCIMENTO.
PROVIMENTO DO APELO. A jurisprudência tem assinalado a possibilidade de
alteração do nome e do sexo no registro de nascimento do transexual que se
submete a cirurgia para redesignação sexual, com fundamento no princípio da
dignidade da pessoa humana.
0000037-52.2005.8.19.0000 (2005.001.01910) - APELACAO - 1ª Ementa DES.
LUIS FELIPE SALOMAO - Julgamento: 13/09/2005 – QUARTA CAMARA
CIVEL TRANSEXUALISMO REGISTRO CIVIL DE NASCIMENTO
RETIFICACAO MUDANCA DE PRENOME MUDANCA DO SEXO
Apelação. Registro Civil. Transexual que se submeteu a cirurgia de mudança de
sexo, postulando retificação de seu assentamento de nascimento (prenome e sexo).
Adequação do registro `a aparência do registrando que se impõe. Correção que
evitara' repetição dos inúmeros constrangimentos suportados pelo recorrente, além
de contribuir para superar a perplexidade no meio social causada pelo registro
atual. Precedentes do TJ/RJ. Inexistência de insegurança jurídica, pois o apelante
manterá o mesmo número do CPF. Recurso provido para determinar a alteração do
prenome do autor, bem como a retificação para o sexo feminino.
É preciso, então, reconhecer-se o direito da parte apelante à mudança de seu “sexo
registral”. Com o objetivo de preservar interesses de terceiros, porém, e a fim de se
preservar a veracidade dos registros civis, é preciso que do assento de nascimento
da parte autora conste a informação de que o sexo foi alterado por determinação
judicial. Tal exigência tem sido feita em decisões proferidas pelo Superior Tribunal
de Justiça, como se pode ver pela seguinte:
SENTENÇA ESTRANGEIRA Nº 4.179 - IT (2008/0273512-4) REQUERENTE :
N J C ADVOGADO : NESLENE RUVIERE DE AMORIM DECISÃO
Vistos.
N J C, brasileiro, qualificado na inicial, formulou pedido de homologação de
sentença estrangeira, proferida pelo Tribunal de Monza, República Italiana, que,
em 19 de setembro de 2006, em razão de procedimento cirúrgico autorizado pela
Justiça Italiana, determinou a retificação de seu registro civil, para a alteração da
designação do gênero e de se prenome. O Ministério Público Federal, em parecer
às fls. 23-26, manifestou-se pelo deferimento do pedido.
Passo a decidir.
Inexiste óbice à presente homologação. Conforme assinalado por esta Corte na
Sentença Estrangeira n. 2.149/IT, “a jurisprudência brasileira vem admitindo a

Michell Nunes Midlej Maron 167


EMERJ – CP V Direito Civil V

retificação do registro civil de transexual, a fim de adaptar o assento de nascimento


à situação decorrente da realização de cirurgia para mudança de sexo”.
No caso dos autos, consoante ressaltado na sentença homologanda “ocorrem na
pessoa de N. J. C modificações definitivas de suas características sexuais, de
masculinas para femininas, que comportam uma atribuição sexual diversa daquela
descrita na certidão civil” (fl. 09). Por outro lado, os documentos necessários à
homologação foram apresentados: inteiro teor da sentença estrangeira autenticada
por autoridade consular brasileira (fls. 11-15 verso), respectiva tradução por
profissional juramentado no Brasil (fls. 07-10) e a comprovação do trânsito em
julgado da decisão (fls. 10 e 15). Verifica-se, assim, que os pressupostos
indispensáveis ao deferimento do pleito foram observados. Ademais, a pretensão
não ofende a soberania nacional, a ordem pública ou os bons costumes (art. 17 da
LICC e arts. 5º e 6º da Resolução n. 9/2005 do STJ). Posto isso, homologo o título
judicial estrangeiro, observando, no entanto, que, conforme ressaltado em
precedente desta Corte (REsp 678.933/RS) e nos termos dos parágrafos 4º e 6º do
art. 109 da Lei 6.015/1973, deverá ficar consignado às margens do registro civil do
requerente que as modificações do nome e do sexo decorreram de decisão judicial.
Expeça-se a carta de sentença. Publique-se. Brasília, 07 de abril de 2009.
MINISTRO CESAR ASFOR ROCHA Presidente.
Assim, vota-se por DAR PROVIMENTO ao recurso, a fim de se julgar procedente
também o pedido de mudança de sexo no registro civil, a fim de que ali conste a
indicação de que a apelante é do sexo feminino, devendo constar de tais registros
que a mudança de nome e de sexo se deu por determinação judicial.
Rio de Janeiro, 24 de fevereiro de 2010. Des. Alexandre Freitas Câmara. Relator.”

A cirurgia de mudança de sexo é extensamente regulada pelo Conselho Federal de


Medicina, e, se realizada corretamente, permite a retificação do sexo registral da pessoa,
com a só ressalva da alteração ter sido feita por ordem judicial, para resguardo de terceiros.
Outra questão que passa pela bioética é a possibilidade ou não de a pessoa testar que
quer ter os aparelhos desligados, caso venha a se encontrar em situação de vida assistida
por maquinário. Esta “autorização de eutanásia”, hoje chamada de testamento vital, não é
admissível em nosso ordenamento, e se atendida aquela ordem testamentária, aquele que o
fizer estará cometendo homicídio.

Michell Nunes Midlej Maron 168


EMERJ – CP V Direito Civil V

Casos Concretos

Questão 1

Zenaide, casada com Antero, que padece de azoospermia, foi autorizada pelo
marido a inseminar-se com sêmen de doador estranho, através de técnica de reprodução
assistida hetoróloga. Ao nascer a criança, o marido nega a paternidade em razão de não
haver identidade biológica entre ele e a criança. Pode recusar-se a esta paternidade?

Resposta à Questão 1

O Código Civil atual dilargou as hipóteses de presunção legal da paternidade, dentre


elas, a do filho havido por concepção heteróloga, desde que seja a mulher expressamente
autorizada pelo marido. Neste caso, a presunção é absoluta, pois autorizar sua mulher a
proceder a inseminação, sabia que não haveria identidade genética entre ele e o filho, o que
torna inviável a negatória de paternidade.
“1995.001.00954 - APELACAO CIVEL - DES. C. A. MENEZES DIREITO -
Julgamento: 19/09/1995 - PRIMEIRA CAMARA CIVEL
RECONHECIMENTO DA PATERNIDADE. IMPUGNACAO. NULIDADE DA
SENTENCA. MANDADO DE CITACAO. INSEMINACAO ARTIFICIAL.
LEGITIMIDADE ATIVA. ART. 362 C.CIVIL DE 1916. Ação de impugnação do
reconhecimento da paternidade.
Sentença: nulidade por falta de juntada do mandado de citação; inocorrência.
Inseminação artificial heterologa. Legitimidade ativa.
1. A falta de juntada do mandado de citação não gera a nulidade da sentença.
2. O fato do reconhecimento ter decorrido de inseminação artificial heterologa não
desqualifica a incidência do art. 362 do Código Civil, sendo, pois, o menor,
representado por sua mãe, parte ilegítima para o ajuizamento da ação de
impugnação do reconhecimento.
3. Apelo improvido.”

Questão 2

Joana ajuizou ação, com pedido antecipatório, objetivando autorização judicial


para realizar operação terapêutica de antecipação de seu parto, pelo fato de seu feto ser
anencefálico (sem cérebro).

Michell Nunes Midlej Maron 169


EMERJ – CP V Direito Civil V

Na inicial, a demandante demonstra a deformidade por meio de laudo médico que


afirma ter margem de certeza igual a 100%. Sustenta, ainda, que a antecipação do parto
não caracteriza o crime de aborto, pois este pressupõe a potencialidade de vida extra-
uterina do feto. Citando a literatura médica aponta, que a má-formação por defeito do
fechamento do tubo neural durante a gestação, não apresentando o feto os hemisférios
cerebrais e o córtex, leva-o ou à morte intra-uterina, alcançando 65% dos casos, ou à
sobrevida de, no máximo, algumas horas após o parto. Argumenta que o critério de morte
adotado no Brasil é o encefálico. A permanência do feto anômalo em seu útero mostra-se
potencialmente perigosa, podendo gerar danos à sua saúde e à sua vida. Que lhe impor o
dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza, nunca
poderá se tornar um ser vivo, lhe causa dor, angústia e frustação, resultando em violência
às vertentes da dignidade humana. Pede, então, a concessão de liminar para a abreviação
do parto.
Autos conclusos, decida o pedido.

Resposta à Questão 2

Veja a atual posição do STF:

“Prosseguindo no julgamento, o Tribunal, por maioria, resolveu questão de ordem


suscitada pelo Procurador-Geral da República, no sentido de assentar a adequação
da argüição de descumprimento de preceito fundamental ajuizada pela
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde - CNTS, na qual se pretende
obter posicionamento do STF sobre o aborto de feto anencéfalo — v. Informativos
354, 366 e 367. A argüente aponta como violados os preceitos dos artigos 1º, IV
(dignidade da pessoa humana); 5º, II (princípio da legalidade, liberdade e
autonomia da vontade); 6º, caput, e 196 (direito à saúde), todos da CF, e, como ato
do Poder Público, causador da lesão, o conjunto normativo ensejado pelos artigos
124, 126, caput, e 128, I e II, do Código Penal, requerendo, em última análise, a
interpretação conforme à Constituição dos referidos dispositivos do CP, a fim de
explicitar que os mesmos não se aplicam aos casos de aborto de feto anencéfalo.
Entendeu-se, nos termos do voto do relator, que os requisitos concernentes à ação
foram devidamente atendidos (Lei 9.882/99, arts. 1º, 3º e 4º, § 1º). Salientando de
um lado a presença de argumentos em torno de valores básicos inafastáveis no
Estado Democrático de Direito e, de outro, os enfoques do Judiciário com arrimo
em conclusões sobre o alcance dos dispositivos do Código Penal que dispõem
sobre o crime de aborto, concluiu-se pela necessidade do pronunciamento do
Tribunal, a fim de se evitar a insegurança jurídica decorrente de decisões judiciais
discrepantes acerca da matéria. Assentou-se a inexistência de outro meio eficaz de
sanar a lesividade alegada, apontando-se, como fundamento, o que verificado
relativamente ao habeas corpus 84025/RJ (DJU de 25.6.2004), da relatoria do Min.
Joaquim Barbosa, no qual a paciente, não obstante recorrer a essa via processual,
antes do pronunciamento definitivo pela Corte, dera à luz a feto que veio a óbito
em minutos, ocasionando o prejuízo da impetração. Ressaltou-se, também, o que
consignado na ADPF 33 MC/PA (DJU de 6.8.2004), por seu relator, Min. Gilmar
Mendes, quanto ao caráter acentuadamente objetivo da ADPF e a necessidade de o
juízo da subsidiariedade ter em vista os demais processos objetivos já consolidados
no sistema constitucional — a ação direta de inconstitucionalidade e a ação
declaratória de constitucionalidade. Assim, incabíveis estas, como no caso de
controle de legitimidade do direito pré-constitucional, possível a utilização
daquela. Em acréscimo aos fundamentos do relator, o Min. Carlos Britto asseverou
a possibilidade do emprego da interpretação conforme à Constituição, tendo em

Michell Nunes Midlej Maron 170


EMERJ – CP V Direito Civil V

conta a pluralidade de entendimentos quanto ao conteúdo e alcance dos citados


artigos do CP, bem como a diversidade de decisões dela resultantes.
O Min. Gilmar Mendes retomou fundamentos por ele adotados na citada ADPF 33
MC/PA. O Min. Sepúlveda Pertence, também acompanhando o voto do relator,
mas, ressalvando a tese de que só o cabimento de um processo objetivo outro
obstaria a utilização da ADPF, entendeu ser patente a relevância da controvérsia
constitucional e que apenas uma medida extrema, como a utilizada, com efeitos
erga omnes e eficácia vinculante, seria capaz de reparar a lesão ocorrida ou obviar
a ameaça identificada. Refutou, ainda, o fundamento de que a ADPF se reduziria a
requerer que fizesse incluir uma 3ª alínea no art. 128 do CP, por considerar que a
pretensão formulada é no sentido de se declarar, em homenagem aos princípios
constitucionais aventados, não a exclusão de punibilidade, mas a atipicidade do
fato. Por sua vez, o Min. Nelson Jobim, Presidente, ressaltou que o art. 128 e seus
incisos pressupõem sempre que há vida possível do feto, e que essa potencialidade
de vida nos conduz a examinar o art. 124 para discutir se, sob sua égide, se inclui
um tipo de feto que não tenha essa possibilidade, a fim de verificar se essa
interpretação é ou não compatível com o caput do art. 5º da CF, que se refere à
inviolabilidade do direito à vida. Concluiu estar tanto aí quanto na insegurança
jurídica das decisões contraditórias a controvérsia constitucional posta. Vencidos
os Ministros Eros Grau, Cezar Peluso e Ellen Gracie que não conheciam da ação
por considerar, em síntese, que o pedido de interpretação conforme dos artigos
implicaria ofensa ao princípio da reserva legal, criando mais uma hipótese de
excludente de punibilidade. Vencido, da mesma forma, o Min. Carlos Velloso que
julgava incabível a argüição, em razão de a pretensão da argüente equivaler, em
última análise, a uma declaração de inconstitucionalidade parcial, sem redução de
texto, de disposições legais pré-constitucionais. Determinou-se, por fim, o retorno
dos autos ao relator para examinar se é caso ou não da aplicação do art. 6º, § 1º da
Lei 9.882/99. (ADPF 54/STF).”

Questão 3

O autor ajuíza pedido de alteração de registro para que seu nome seja alterado de
Victor para Paloma, afirmando que desde cedo manifesta comportamento
predominantemente afeito ao genótipo feminino. Afirma que foi submetido à cirurgia de
redesignação sexual em agosto de 2002. A sentença julgou procedente o pedido para que
seja procedida a retificação pretendida no assento de nascimento do requerente,
determinando que seu nome seja alterado, bem como para que o sexo seja alterado de
masculino para feminino, vedando por ocasião do fornecimento de certidões, referência à
sua situação anterior. O expediente deverá ser arquivado em segredo de justiça.
Informação ou certidão não poderá ser dada a terceiros, salvo ao próprio interessado ou
no atendimento de requisição judicial. O Ministério Público apelou, alegando, em suma, o
possível prejuízo aos terceiros de boa-fé que venham a se envolver com o recorrido pela
não-publicidade da condição transexual do apelado. Decida a questão
fundamentadamente.

Resposta à Questão 3

Veja a posição do TJ/RJ:

“Processo: 0066812-72.2007.8.19.0002 (2009.001.67949). 1ª Ementa -


APELACAO DES. ALEXANDRE CAMARA - Julgamento: 24/02/2010 -
SEGUNDA CAMARA CIVEL.

Michell Nunes Midlej Maron 171


EMERJ – CP V Direito Civil V

TRANSEXUALISMO. REGISTRO CIVIL DE NASCIMENTO. RETIFICACAO.


MUDANCA DE PRENOME. MUDANCA DO SEXO. POSSIBILIDADE.
Direito civil. Transexual. Mudança do "sexo registral". Possibilidade. Precedentes.
Necessidade de que do registro de nascimento conste que as mudanças de prenome
e do sexo foram determinadas por decisão judicial. Provimento do recurso.
Ementário: 19/2010 - N. 18 - 20/05/2010. Precedente Citados: STJ REsp
737993/MG, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 10/11/2009e REsp
1008398/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 15/10/2009. TJRJ AC
2006.001.61104,Rel. Des. Francisco de Assis Pessanha, julgada em 15/08/2007 e
AC 2006.001.61108, Rel. Des. VeraMaria Soares Van Hombeeck, julgada em
06/03/2007.”

Tema XVII

Famílias homoafetivas. Sociedade de fato. União Estável. Adoção. Bens. Legislações estaduais protetivas de
relações homoafetivas (Lei estadual/RJ 285/79 e suas alterações). Resolução Normativa nº 77, 29/01/08 -
Ministério do Trabalho e Emprego (Conselho Nacional de Imigração). Decisões judiciais.

Notas de Aula22

1. Famílias homoafetivas

Como já se pôde ver, as famílias hoje têm sua definição muito mais baseada no
afeto do que em qualquer estruturação clássica. Sendo assim, é possível se cogitar de uma
família formada por pessoas do mesmo sexo em relação de união? E, se o é, como
qualificar esta família, enquadrando-a juridicamente?
Que a união homoafetiva é uma realidade, consubstanciando uma família, não se
questiona. No TJ/RJ, ainda há jurisprudência vacilante, mas a jurisprudência do STJ já é
relativamente pacífica em admitir a existência desta modalidade familiar. É no seu
enquadramento, porém, que se encontram as maiores problemáticas.
Do TJ/RJ, negando ainda a possibilidade de família fundada em união do mesmo
sexo, veja os julgados:

“Processo: 0003423-95.2007.8.19.0202 (2008.001.22470). 1ª Ementa –


APELACAO. DES. ANTONIO ILOIZIO BARROS BASTOS - Julgamento:
21/05/2008 - DECIMA SETIMA CAMARA CIVEL.
Apelação cível. Ação ordinária pleiteando a partilha de bens adquiridos em relação
homoafetiva entre mulheres. Provas robustas da existência de relacionamento
amoroso entre as partes, que apenas servem para demonstrar a existência de
verdadeira sociedade de fato. Patrimônio comum em nome apenas de uma das
conviventes, que não provou a origem de recursos para aquisição, sozinha, dos
bens. Sentença que manda partilhar os bens, com base na sociedade de fato, que
deve ser mantida. Recurso conhecido e improvido.”

“Processo: 0071932-36.2006.8.19.0001 (2006.001.59548). 1ª Ementa –


APELACAO. DES. ROBERTO GUIMARAES - Julgamento: 16/05/2007 -
DECIMA PRIMEIRA CAMARA CIVEL.
HOMOSSEXUALISMO. UNIAO ESTAVEL. RECONHECIMENTO.
ENTIDADE FAMILIAR. PARTILHA DO PATRIMONIO COMUM.
IMPOSSIBILIDADE JURIDICA DO PEDIDO.

22
Aula ministrada pela professora Elisa Costa Cruz, em 8/3/2010.

Michell Nunes Midlej Maron 172


EMERJ – CP V Direito Civil V

Direito Civil. União homossexual. Pretendido reconhecimento e dissolução da


união civil entre pessoas do mesmo sexo como se entidade familiar fosse, com
meação de bem imóvel e direito de habitação. Pedido impossível na via eleita.
Extinção do processo que se mantém. 1. Não se discute, neste julgamento, a
possibilidade, ou o direito, de opção sexual por parte de cada pessoa, decisão essa
que diz respeito à vida privada e à intimidade, cuja inviolabilidade mereceu
proteção no inc. X do art. 5. da C.F. 2. O princípio da igualdade de direitos prevê o
tratamento idêntico pela lei para todos, em consonância com os critérios do
ordenamento jurídico, vedando apenas as diferenciações arbitrárias e as
discriminações absurdas. O tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em
que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça. Somente
se tem por lesado o princípio constitucional, quando o elemento discriminador não
se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito (Alexandre de
Moraes, "Direito Constitucional"). 3. Não são todos os direitos da personalidade,
decorrentes do princípio da dignidade humana, que se apresentam com natureza de
indisponibilidade, ou de imunidade a restrições de natureza constitucional ou
infraconstitucional. Ensina o Professor José de Oliveira Ascensão que ditos direitos
podem compor três classes: 1a.- o núcleo duro, ao qual pertencem os direitos
sempre indisponíveis,como os que respeitam à liberdade individual e à própria
vida; 2a. - a periferia, com relação aos quais "As limitações são sempre admitidas",
desde que nenhum aspecto ético esteja implicado; 3a. - a orla, "em que se admitem
as limitações voluntárias, dentro da autonomia de cada um". 4. Desde os
primórdios do século XX, as Constituições Federais (1934, 1937, 1946, 1967 e
E.C. de 1969) entendiam a família como a união de pessoas de sexos diferentes, e
de cuja união a descendência ganhava especial relevo e importância. 5. A
Constituição Cidadã de 1988, chama a família de "base da sociedade" e afirma que
ela "tem especial proteção do Estado". Definiu ela três espécies de entidades
familiares, sempre prevendo a existência ou a pré-existência de um casal composto
pela união de um homem e de uma mulher, a saber: a - a constituída pelo
casamento civil ou religioso com efeitos civis (CF, art. 226, pars. 1. e 2.); b - a
constituída pela união estável entre o homem e a mulher, devendo a lei facilitar sua
conversão em casamento (CF art. 226, par. 3.); c - a comunidade formada por
qualquer dos pais e seus descendentes (CF, art. 226, par. 4.). 6. Da mesma forma as
Leis Federais ns. 9.278/1996 e 10.406/2002 (Código Civil em vigor),
regulamentando o par. 3. do art. 226 da C.F., colocam como pressuposto da
entidade familiar a união entre um homem e uma mulher. Assim, a conceitua o
Código Civil/2002,em seu art. 1.723: "É reconhecida como entidade familiar a
união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública,
contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família". 7.
Ressalta-se que o objetivo dessa união não se exaure em si mesma, mas visa à
formação de descendência e de laços consanguíneos, e não apenas afetivos, com
vista à organização da sociedade e à própria existência da Nação e do Estado. 8.
Daí porque o notável constitucionalista e eminente Desembargador Nagib Slaib
Filho, em seu conhecido tratado de "Direito Constitucional", pontifica que "já a
união homossexual não é entidade familiar com proteção constitucional, embora
possa ensejar o reconhecimento de efeitos jurídicos". E arremata,dizendo que a
legislação infraconstitucional ou o próprio sistema jurídico pode conferir efeitos a
tal relacionamento e pode também vedá-lo (como, por exemplo, na legislação
militar sobre a tipificação penal de pederastia), mas tudo em atenção aos valores a
serem ponderados caso a caso. E, na hipótese de atribuição patrimonial em
decorrência da união homossexual, há de incidir a regra geral de que ninguém pode
se enriquecer sem justa causa (art. 964, C.C./1916, e art. 884, C.C./2002),
conduzindo à "actio de in rem verso" para reprimir o enriquecimento sem causa
jurídica. (Editora Forense, 2a. edição, 2006, pg. 725/726). 9. Portanto, eventuais
direitos, que possam ter se originado da alegada união homossexual pelo autor-
apelante, deverão ser buscados através do reconhecimento e dissolução da

Michell Nunes Midlej Maron 173


EMERJ – CP V Direito Civil V

sociedade de fato e do direito obrigacional, e não com supedâneo no Direito de


Família e no reconhecimento de Entidade Familiar, como pretendeu o apelante. 10.
Precedentes jurisprudenciais citados e recurso desprovido.”

“Processo: 0133347-25.2003.8.19.0001 (2007.001.08140). 1ª Ementa –


APELACAO. DES. JESSE TORRES - Julgamento: 11/04/2007 - SEGUNDA
CAMARA CIVEL.
APELAÇÃO. Relação homo-afetiva entre mulheres, supostamente mantida por 53
anos, pode caracterizar sociedade de fato, extinta pelo óbito de uma delas, mas não
configura união estável. Se a Constituição da República apenas reconhece união
estável entre o homem e a mulher (art. 226, § 3º), não é possível estender o
conceito às relações homossexuais, para o fim de atribuir à parceira sobreviva
direito à meação; agravo retido que se rejeita, com o fim de manter-se a
competência do Juízo Cível para conhecer e julgar o pleito sucessivo, de natureza
obrigacional, não de família, que almejava o reconhecimento da sociedade de fato
e a partilha do patrimônio que a falecida houvesse adquirido com a colaboração da
parceira. A prova produzida não sustenta a contribuição desta, decoradora, para a
formação do conglomerado de estabelecimentos de ensino constituído por aquela,
notória educadora, com recursos próprios ou obtidos mediante empréstimos
bancários, inclusive com garantia hipotecária incidente sobre bens da família. A
presença da primeira como titular de cotas de sociedades comerciais das quais a
segunda era sócia majoritária garante-lhe, apenas, a participação que resultar da
apuração de haveres, no âmbito da liquidação comercial dessas sociedades. Em
termos de sociedade de fato, seria imperioso que a decoradora provasse haver
contribuído, com dinheiro ou trabalho, para a formação do patrimônio privado da
indigitada companheira, o que não se encontra nos autos. Improcedência do
pedido. Honorários advocatícios fixados com razoabilidade, nos termos do art. 20,
§ 4º, do CPC. Desprovimento de ambos os recursos.”

Os argumentos de quem refuta a existência de família na união homoafetiva são: a


ausência de previsão legal; a violação de valores sociais e morais por esta forma de união; e
o atentado contra a instituição da família pelo casamento. Note-se que o único argumento
efetivamente jurídico é o primeiro, pois os demais são fundados exclusivamente em
preceitos sociológicos, e por isso não têm muita força argumentativa.
O argumento jurídico, de que não há previsão legal, alega que o artigo 226 da
CRFB não contempla este tipo de família, e o § 3º deste dispositivo fala em “homem e
mulher”. Reveja o dispositivo:

“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.


§ 1º - O casamento é civil e gratuita a celebração.
§ 2º - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o
homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão
em casamento.
§ 4º - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por
qualquer dos pais e seus descendentes.
§ 5º - Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos
igualmente pelo homem e pela mulher.
§ 6º - O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação
judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação
de fato por mais de dois anos.
§ 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade
responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao

Michell Nunes Midlej Maron 174


EMERJ – CP V Direito Civil V

Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito,


vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
§ 8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a
integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.”

Ocorre que esta suposta tipicidade constitucional não persiste, porque a família é
um conceito aberto, e o principal parâmetro para configurá-la, hoje, é a presença de afeto
sólido e com ânimo de continuidade a reunir os membros – a família eudomonista, como se
viu. A Constituição meramente exemplifica famílias possíveis.
Uma vez que seja reconhecida a união homoafetiva como entidade familiar, passa-
se ao próximo passo: como se qualificar esta entidade familiar? É uma entidade autônoma,
uma espécie própria, ou é uma modalidade de união estável?
Neste ponto, a divergência ainda é severa. Há quem defenda que seja união estável,
por realizar interpretação histórica da CRFB: o constituinte não previu esta modalidade não
por um silêncio eloqüente, mas sim por uma mera questão temporal, pois não se podia
prever a evolução social neste sentido. Outra corrente defende que, mesmo sendo entidade
familiar, a união homoafetiva não se configura união estável, pela literalidade do
dispositivo constitucional.
Sendo reconhecida união estável homoafetiva, o regramento desta modalidade se
aplica diretamente. Não sendo reconhecida, ainda assim se aplicam as regras da união
estável à entidade familiar homoafetiva, mas agora por analogia.
Neste regramento da união estável, que, diga-se, é legislação parca, encontra-se por
exemplo a Instrução Normativa do INSS de número 25/2000. Esta IN teve origem numa
ACP movida pelo MPF da Quarta Região, em que se pediu a inserção do companheiro
homoafetivo como dependente previdenciário do consorte. Esta ACP foi julgada
procedente, e em razão dela se editou a IN mencionada: reconhece-se o companheiro para
fins previdenciários, portanto.
No Rio de Janeiro, a Lei Estadual 5.260/08 regula o benefício previdenciário no
âmbito das entidades da administração pública do Estado, e nesta há suporte ao
companheiro homoafetivo. Veja o artigo 14, I, deste diploma estadual:

“Art. 14- São beneficiários da pensão por morte, na qualidade de dependentes do


segurado:
I - o cônjuge, a companheira ou o companheiro, os parceiros homoafetivos e os
filhos não emancipados, de qualquer condição, menores de 21 (vinte e um) anos ou
até 24 (vinte e quatro) anos, se estudantes universitários, ou maiores, se inválidos
ou interditados;
(...)”

Há ainda uma decisão administrativa do STF, o Ato Deliberativo 27/09, no qual se


autoriza a inclusão de companheiro homoafetivo no plano de saúde dos servidores do
Supremo.
Além disso, há projetos de lei sobre o tema, tendendo a reconhecer esta união, e há
duas ADPFs em curso para obter o reconhecimento da união homoafetiva, ambas
fundamentadas no direito à igualdade, à não discriminação, à busca da felicidade, e direito
à diferença (que é o lado substancial da igualdade, em verdade).
Para a corrente que entende que sequer é família, a união homoafetiva se
regulamenta pelas regras da sociedade de fato, sendo todas as questões resolvidas pelo
direito obrigacional. Todavia, passemos agora a tratar do tema partindo da premissa de que

Michell Nunes Midlej Maron 175


EMERJ – CP V Direito Civil V

a união homoafetiva é reconhecida como família, para enfrentar as consequências deste


reconhecimento.
Reconhecendo-se como família, a união homoafetiva gera reflexos patrimoniais
exatamente como os da união estável, como dito, quer por aplicação direta das normas a
esta modalidade aplicáveis, se se reconhecer a união homoafetiva como união estável, quer
por analogia, se a recusar este enquadramento.
Trazendo-se o regramento da união estável, há ainda quem defenda que se deve
ampliar seu alcance, a fim de que se reconheça a presunção de esforço comum na aquisição
de bens.
A jurisprudência não é muito afeita a esta tese, aplicando as regras da sociedade de
fato, por, mesmo reconhecendo como família, não reconhecer união estável, nem aplicar as
regras desta por analogia. Assim, só terá direito à participação patrimonial aquele
companheiro que provar ter contribuído efetivamente para a construção do ativo (não sendo
suficiente o esforço moral). É uma solução infeliz, diga-se, mas ainda marcante na
jurisprudência, especialmente do TJ/RJ e no STJ. Veja:

“0003423-95.2007.8.19.0202 (2008.001.22470) - APELACAO - 1ª Ementa JDS.


DES. ANTONIO ILOIZIO BARROS BASTOS - Julgamento: 21/05/2008 -
DECIMA SETIMA CAMARA CIVEL
Apelação cível. Ação ordinária pleiteando a partilha de bens adquiridos em relação
homoafetiva entre mulheres. Provas robustas da existência de relacionamento
amoroso entre as partes, que apenas servem para demonstrar a existência de
verdadeira sociedade de fato. Patrimônio comum em nome apenas de uma das
conviventes, que não provou a origem de recursos para aquisição, sozinha, dos
bens. Sentença que manda partilhar os bens, com base na sociedade de fato, que
deve ser mantida. Recurso conhecido e improvido.”

“REsp 648763 / RS. RECURSO ESPECIAL. Relator Ministro CESAR ASFOR


ROCHA. Órgão Julgador - QUARTA TURMA. Data do Julgamento: 07/12/2006.
Data da Publicação/Fonte: DJ 16/04/2007 p. 204.
Ementa: RECURSO ESPECIAL. RELACIONAMENTO MANTIDO ENTRE
HOMOSSEXUAIS. SOCIEDADE DE FATO. DISSOLUÇÃO DA SOCIEDADE.
PARTILHA DE BENS. PROVA. ESFORÇO COMUM.
Entende a jurisprudência desta Corte que a união entre pessoas do mesmo sexo
configura sociedade de fato, cuja partilha de bens exige a prova do esforço comum
na aquisição do patrimônio amealhado. Recurso especial parcialmente conhecido
e, nessa parte, provido.”

Esta posição, inclusive, por reputar mera questão obrigacional, sequer reconhece a
competência da vara da família para estas relações – encaminha à vara cível. Veja o Agravo
de Instrumento 2009.002.28923, do TJ/RJ:

“Processo: 0037118-93.2009.8.19.0000 (2009.002.28923). 1ª Ementa - AGRAVO


DE INSTRUMENTO. DES. VERA MARIA SOARES VAN HOMBEECK -
Julgamento: 18/01/2010 - PRIMEIRA CAMARA CIVEL.
AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL
HOMOAFETIVA. PRETENSÃO DE REFORMA DA DECISÃO QUE
DECLINOU PARA A COMPETÊNCIA DAS VARAS CÍVEIS. INTELIGÊNCIA
DO ARTIGO 85 DO CÓDIGO DE ORGANIZAÇÃO E DIVISÃO JUDICIÁRIA
DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO- CODJERJ. RECURSO A QUE SE NEGA
SEGUIMENTO NA FORMA DO ART. 557, CAPUT, DO CPC.”

Michell Nunes Midlej Maron 176


EMERJ – CP V Direito Civil V

“2ª Ementa - AGRAVO DE INSTRUMENTO. DES. VERA MARIA SOARES


VAN HOMBEECK - Julgamento: 23/02/2010 - PRIMEIRA CAMARA CÍVEL.
AGRAVO INOMINADO. AGRAVO DE INSTRUMENTO.
RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA. PRETENSÃO
DE REFORMA DA DECISÃO QUE DECLINOU PARA A COMPETÊNCIA
DAS VARAS CÍVEIS. INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 85 DO CÓDIGO DE
ORGANIZAÇÃO E DIVISÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DO RIO DE
JANEIRO- CODJERJ. DESPROVIMENTO DO AGRAVO.”

O TJ/RS é notoriamente vanguardista nesta seara. Veja, por exemplo, a Apelação


Cível 70012836755:

“Apelação Cível 70012836755.RELATOR: Maria Berenice Dias.


EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO HOMOAFETIVA.
RECONHECIMENTO. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E
DA IGUALDADE. É de ser reconhecida judicialmente a união homoafetiva
mantida entre duas mulheres de forma pública e ininterrupta pelo período de 16
anos. A homossexualidade é um fato social que se perpetua através dos séculos,
não mais podendo o Judiciário se olvidar de emprestar a tutela jurisdicional a
uniões que, enlaçadas pelo afeto, assumem feição de família. A união pelo amor é
que caracteriza a entidade familiar e não apenas a diversidade de sexos. É o afeto a
mais pura exteriorização do ser e do viver, de forma que a marginalização das
relações homoafetivas constitui afronta aos direitos humanos por ser forma de
privação do direito à vida, violando os princípios da dignidade da pessoa humana e
da igualdade. Negado provimento ao apelo. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Apelação
Cível Nº 70012836755, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator:
Maria Berenice Dias, Julgado em 21/12/2005).”

Por consequência, o TJ/RS reconhece claramente como competente a vara da


família:

“Conflito de Competência 70000992156. RELATOR: José Ataídes Siqueira


Trindade.
EMENTA: RELACOES HOMOSSEXUAIS. COMPETENCIA DA VARA DE
FAMILIA PARA JULGAMENTO DE SEPARACAO EM SOCIEDADE DE
FATO. A COMPETENCIA PARA JULGAMENTO DE SEPARACAO DE
SOCIEDADE DE FATO DE CASAIS FORMADOS POR PESSOAS DO
MESMO SEXO, E DAS VARAS DE FAMILIA, CONFORME PRECEDENTES
DESTA CAMARA, POR NAO SER POSSIVEL QUALQUER
DISCRIMINACAO POR SE TRATAR DE UNIAO ENTRE HOMOSSEXUAIS,
POIS E CERTO QUE A CONSTITUICAO FEDERAL, CONSAGRANDO
PRINCIPIOS DEMOCRATICOS DE DIREITO, PROIBE DISCRIMINACAO DE
QUALQUER ESPECIE, PRINCIPALMENTE QUANTO A OPCAO SEXUAL,
SENDO INCABIVEL, ASSIM, QUANTO A SOCIEDADE DE FATO
HOMOSSEXUAL. CONFLITO DE COMPETENCIA ACOLHIDO. (Conflito de
Competência Nº 70000992156, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS,
Relator: José Ataídes Siqueira Trindade, Julgado em 29/06/2000).”

Não se reconhece direito sucessório ao companheiro homoafetivo, mesmo


reconhecida a família. Somente se se reconhecer união estável, sem ressalvas, se pode
enquadrar a união homoafetiva no quadro sucessório, na forma do artigo 1.790 do CC:

Michell Nunes Midlej Maron 177


EMERJ – CP V Direito Civil V

“Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro,


quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas
condições seguintes:
I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por
lei for atribuída ao filho;
II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do
que couber a cada um daqueles;
III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da
herança;
IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.”

A pensão por morte previdenciária, porém, é pacificamente concedida ao


companheiro homoafetivo supérstite.
A adoção unilateral por um dos companheiros homoafetivos não encontra qualquer
óbice, pois a orientação sexual do adotante não tem relevância, na adoção. A discussão está
na adoção pelo casal. Há dois entendimentos: o primeiro entende que como o artigo que
permite adoção bilateral só a faculta a quem esteja casado ou em união estável, não confere
esta adoção aos companheiros homoafetivos; segunda corrente defende que, como a lei não
nega esta possibilidade expressamente, nada a obstaria, e como em de matéria adoção o
princípio maior é o do melhor interesse da criança, este pode indicar que a adoção bilarteral
é a melhor solução para o adotando. Já houve, novamente no TJ/RS, não a adoção, mas o
reconhecimento de filiação de um filho orgânico de um companheiro homoafetivo pelo seu
consorte.
A questão dos alimentos em união homoafetiva é também peculiar. Esta obrigação,
decorrente de lei, simplesmente inexiste em relação à união homoafetiva, do que se extrai a
corrente majoritária que assim defende. Porém, em se aplicando as regras de união estável,
seriam devidos, tal como qualquer obrigação alimentar entre companheiros.
O STJ tem uma recente decisão na qual a Ministra Nancy Andrighi traça verdadeira
lição sobre o tema. Veja o REsp. 1.026.981:

“REsp 1026981 / RJ. RECURSO ESPECIAL. Relatora Ministra NANCY


ANDRIGHI. Órgão Julgador - TERCEIRA TURMA. Data do Julgamento:
04/02/2010. Data da Publicação/Fonte: DJe 23/02/2010.
Ementa: Direito civil. Previdência privada. Benefícios. Complementação. Pensão
post mortem. União entre pessoas do mesmo sexo. Princípios fundamentais.
Emprego de analogia para suprir lacuna legislativa. Necessidade de demonstração
inequívoca da presença dos elementos essenciais à caracterização da união estável,
com a evidente exceção da diversidade de sexos. Igualdade de condições entre
beneficiários.
- Despida de normatividade, a união afetiva constituída entre pessoas de mesmo
sexo tem batido às portas do Poder Judiciário ante a necessidade de tutela,
circunstância que não pode ser ignorada, seja pelo legislador, seja pelo julgador,
que devem estar preparados para atender às demandas surgidas de uma sociedade
com estruturas de convívio cada vez mais complexas, a fim de albergar, na esfera
de entidade familiar, os mais diversos arranjos vivenciais.
- O Direito não regula sentimentos, mas define as relações com base neles geradas,
o que não permite que a própria norma, que veda a discriminação de qualquer
ordem, seja revestida de conteúdo discriminatório. O núcleo do sistema jurídico
deve, portanto, muito mais garantir liberdades do que impor limitações na esfera
pessoal dos seres humanos.
- Enquanto a lei civil permanecer inerte, as novas estruturas de convívio que batem
às portas dos Tribunais devem ter sua tutela jurisdicional prestada com base nas

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leis existentes e nos parâmetros humanitários que norteiam não só o direito


constitucional, mas a maioria dos ordenamentos jurídicos existentes no mundo.
Especificamente quanto ao tema em foco, é de ser atribuída normatividade idêntica
à da união estável ao relacionamento afetivo entre pessoas do mesmo sexo, com os
efeitos jurídicos daí derivados, evitando-se que, por conta do preconceito, sejam
suprimidos direitos fundamentais das pessoas envolvidas.
- O manejo da analogia frente à lacuna da lei é perfeitamente aceitável para
alavancar, como entidade familiar, na mais pura acepção da igualdade jurídica, as
uniões de afeto entre pessoas do mesmo sexo. Para ensejar o reconhecimento,
como entidades familiares, de referidas uniões patenteadas pela vida social entre
parceiros homossexuais, é de rigor a demonstração inequívoca da presença dos
elementos essenciais à caracterização da união estável, com a evidente exceção da
diversidade de sexos.
- Demonstrada a convivência, entre duas pessoas do mesmo sexo, pública,
contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituição de família,
haverá, por consequência, o reconhecimento de tal união como entidade familiar,
com a respectiva atribuição dos efeitos jurídicos dela advindos.
- A quebra de paradigmas do Direito de Família tem como traço forte a valorização
do afeto e das relações surgidas da sua livre manifestação, colocando à margem do
sistema a antiga postura meramente patrimonialista ou ainda aquela voltada apenas
ao intuito de procriação da entidade familiar. Hoje, muito mais visibilidade
alcançam as relações afetivas, sejam entre pessoas de mesmo sexo, sejam entre o
homem e a mulher, pela comunhão de vida e de interesses, pela reciprocidade
zelosa entre os seus integrantes.
- Deve o juiz, nessa evolução de mentalidade, permanecer atento às manifestações
de intolerância ou de repulsa que possam porventura se revelar em face das
minorias, cabendo-lhe exercitar raciocínios de ponderação e apaziguamento de
possíveis espíritos em conflito.
- A defesa dos direitos em sua plenitude deve assentar em ideais de fraternidade e
solidariedade, não podendo o Poder Judiciário esquivar-se de ver e de dizer o novo,
assim como já o fez, em tempos idos, quando emprestou normatividade aos
relacionamentos entre pessoas não casadas, fazendo surgir, por consequência, o
instituto da união estável. A temática ora em julgamento igualmente assenta sua
premissa em vínculos lastreados em comprometimento amoroso.
- A inserção das relações de afeto entre pessoas do mesmo sexo no Direito de
Família, com o consequente reconhecimento dessas uniões como entidades
familiares, deve vir acompanhada da firme observância dos princípios
fundamentais da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da liberdade, da
autodeterminação, da intimidade, da não-discriminação, da solidariedade e da
busca da felicidade, respeitando-se, acima de tudo, o reconhecimento do direito
personalíssimo à orientação sexual.
- Com as diretrizes interpretativas fixadas pelos princípios gerais de direito e por
meio do emprego da analogia para suprir a lacuna da lei, legitimada está
juridicamente a união de afeto entre pessoas do mesmo sexo, para que sejam
colhidos no mundo jurídico os relevantes efeitos de situações consolidadas e há
tempos à espera do olhar atento do Poder Judiciário.
- Comprovada a existência de união afetiva entre pessoas do mesmo sexo, é de se
reconhecer o direito do companheiro sobrevivente de receber benefícios
previdenciários decorrentes do plano de previdência privada no qual o falecido era
participante, com os idênticos efeitos operados pela união estável.
- Se por força do art. 16 da Lei n.º 8.213/91, a necessária dependência econômica
para a concessão da pensão por morte entre companheiros de união estável é
presumida, também o é no caso de companheiros do mesmo sexo, diante do
emprego da analogia que se estabeleceu entre essas duas entidades familiares.
- “A proteção social ao companheiro homossexual decorre da subordinação dos
planos complementares privados de previdência aos ditames genéricos do plano

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básico estatal do qual são desdobramento no interior do sistema de seguridade


social” de modo que “os normativos internos dos planos de benefícios das
entidades de previdência privada podem ampliar, mas não restringir, o rol dos
beneficiários a serem designados pelos participantes”.
- O direito social previdenciário, ainda que de caráter privado complementar, deve
incidir igualitariamente sobre todos aqueles que se colocam sob o seu manto
protetor. Nessa linha de entendimento, aqueles que vivem em uniões de afeto com
pessoas do mesmo sexo, seguem enquadrados no rol dos dependentes preferenciais
dos segurados, no regime geral, bem como dos participantes, no regime
complementar de previdência, em igualdade de condições com todos os demais
beneficiários em situações análogas.
- Incontroversa a união nos mesmos moldes em que a estável, o companheiro
participante de plano de previdência privada faz jus à pensão por morte, ainda que
não esteja expressamente inscrito no instrumento de adesão, isso porque “a
previdência privada não perde o seu caráter social pelo só fato de decorrer de
avença firmada entre particulares”.
- Mediante ponderada intervenção do Juiz, munido das balizas da integração da
norma lacunosa por meio da analogia, considerando-se a previdência privada em
sua acepção de coadjuvante da previdência geral e seguindo os princípios que dão
forma à Direito Previdenciário como um todo, dentre os quais se destaca o da
solidariedade, são considerados beneficiários os companheiros de mesmo sexo de
participantes dos planos de previdência, sem preconceitos ou restrições de
qualquer ordem, notadamente aquelas amparadas em ausência de disposição legal.
- Registre-se, por fim, que o alcance deste voto abrange unicamente os planos de
previdência privada complementar, a cuja competência estão adstritas as Turmas
que compõem a Segunda Seção do STJ.
Recurso especial provido.”

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Casos Concretos

Questão 1

Dois homens moram juntos há sete anos, dividindo as despesas da casa, como
qualquer casal heterossexual. Ambos são portadores do vírus HIV, o que levou o primeiro
a aposentar-se e pedir a inclusão do companheiro em seu plano de saúde, o que foi negado
pela Caixa Econômica Federal, ao argumento de que a Constituição e as leis brasileiras
vedam o reconhecimento da união estável nesses casos, uma vez que esta só é possível
quando se trata de pessoas de sexos opostos. Se você fosse o juiz da causa, como decidiria
a questão? Justifique.

Resposta à Questão 1

A questão é muito discutida, ainda. Há uma certa tendência a reconhecer direitos ao


companheiro homoafetivo, mas a jurisprudência ainda debate quais, e a qual título.
Veja o AgRg. no Ag. 971.466:

“AgRg no Ag 971466 / SP. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE


INSTRUMENTO. Relator Ministro ARI PARGENDLER. Órgão Julgador -
TERCEIRA TURMA. Data do Julgamento: 02/09/2008. Data da Publicação/Fonte:
DJe 05/11/2008.
Ementa: PLANO DE SAÚDE. COMPANHEIRO. "A relação homoafetiva gera
direitos e, analogicamente à união estável, permite a inclusão do companheiro
dependente em plano de assistência médica" (REsp nº 238.715, RS, Relator
Ministro Humberto Gomes de Barros, DJ 02.10.06). Agravo regimental não
provido.”

Questão 2

Marieta ajuizou ação de reconhecimento de sociedade de fato cumulada com


partilha de bens em face de Joana. Pleiteia o reconhecimento da existência de sociedade
de fato entre as partes, no período de janeiro de 1986 até dezembro de 1995; a partilha do
imóvel, assim como a do automóvel VW/Fusca, ano 1972.Em contestação, a demandada
argüiu preliminar de impossibilidade jurídica do pedido. Ainda, que, se admitida a
existência da sociedade de fato, não é possível presumir-se o esforço comum, porquanto
não se trata de entidade familiar, sendo necessária e imprescindível a prova do capital
social que cada sócio emprestou à sociedade, a fim de que haja sua liquidação e reembolso
até o valor de suas quotas. Finaliza afirmando que a partilha do imóvel acarretará
enriquecimento sem causa por parte da demandante, vez que o bem foi adquirido com
recurso exclusivo seu, oriundo de FGTS. Você, como juiz, como decidiria a questão?
Fundamente.

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Resposta à Questão 2

O pedido é certamente possível. No mérito, a presunção do esforço, realmente, não


vige, para a maior corrente, sendo necessária a prova da contribuição efetiva, e como o
FGTS é exclusivo de um dos companheiros, tudo o que com ele for adquirido está excluído
da partilha – partilhando-se apenas o restante. É ponto controvertido, porém, a partilha do
FGTS, especialmente em relações em que se presume o esforço comum, nas quais o FGTS,
e seu produto, é partilhado (o que não é o caso).
Veja o julgado abaixo, do TJ/RS:

“Apelação Cível 70007243140. RELATOR: José Ataídes Siqueira Trindade.


EMENTA: RELAÇÃO HOMOSSEXUAL. UNIÃO ESTÁVEL. PARTILHA DE
BENS. Mantém-se o reconhecimento proferido na sentença da união estável entre
as partes, homossexuais, se extrai da prova contida nos autos, forma cristalina, que
entre as litigantes existiu por quase dez anos forte relação de afeto com
sentimentos e envolvimentos emocionais, numa convivência more uxoria, pública
e notória, com comunhão de vida e mútua assistência econômica, sendo a partilha
dos bens mera conseqüência. Exclui-se da partilha, contudo, os valores
provenientes do FGTS da ré utilizados para a compra do imóvel, vez que "frutos
civis", e, portanto, incomunicáveis. Precedentes. Preliminar de não conhecimento
do apelo rejeitada. Apelação parcialmente provida, por maioria. (Segredo de
Justiça) (Apelação Cível Nº 70007243140, Oitava Câmara Cível, Tribunal de
Justiça do RS, Relator: José Ataídes Siqueira Trindade, Julgado em 06/11/2003).”

Questão 3

Caio manteve durante 15 anos relação homoafetiva com Tício. Durante os anos do
enlace amoroso, Caio, hoje com 45 anos, engenheiro formado, jamais trabalhou, pois era
desejo de Tício que aquele desempenhasse as atividades do lar. Hoje, solteiro e
desempregado, ingressa com ação de reconhecimento e dissolução de união estável
homossexual combinada com pedido de alimentos em face de Tício, na qual sustenta a
existência de união estável homoafetiva com fulcro no artigo 226, §3º, da CRFB c/c artigos
1723 e ss. do Código Civil. Tício, por sua vez, apresenta defesa, na qual não nega os fatos,
mas afirma ser o pedido juridicamente impossível, e sem provar, sustenta que mesmo
reconhecida a união estável, o término da relação amorosa se deu por motivo de traição de
Caio com Mévio, fato que, por si só, afasta o suposto direito a alimentos. Decida a questão
fundamentadamente.

Resposta à Questão 3

O pedido é perfeitamente possível, devendo ser refutada a preliminar de


impossibilidade do pedido, segundo a melhor doutrina e jurisprudência. O pedido, em
verdade, é de reconhecimento de entidade familiar, dissolução desta, prestação alimentar e
partilha de bens – e isto é perfeitamente possível.
Veja o REsp. abaixo:

“REsp 820475 / RJ. RECURSO ESPECIAL. Relator Ministro ANTÔNIO DE


PÁDUA RIBEIRO. Relator p/ Acórdão Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO.

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Órgão Julgador - QUARTA TURMA. Data do Julgamento: 02/09/2008. Data da


Publicação/Fonte: DJe 06/10/2008.
Ementa: PROCESSO CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE UNIÃO
HOMOAFETIVA. PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ. OFENSA
NÃO CARACTERIZADA AO ARTIGO 132, DO CPC. POSSIBILIDADE
JURÍDICA DO PEDIDO. ARTIGOS 1º DA LEI 9.278/96 E 1.723 E 1.724 DO
CÓDIGO CIVIL. ALEGAÇÃO DE LACUNA LEGISLATIVA. POSSIBILIDADE
DE EMPREGO DA ANALOGIA COMO MÉTODO INTEGRATIVO.
1. Não há ofensa ao princípio da identidade física do juiz, se a magistrada que
presidiu a colheita antecipada das provas estava em gozo de férias, quando da
prolação da sentença, máxime porque diferentes os pedidos contidos nas ações
principal e cautelar.
2. O entendimento assente nesta Corte, quanto a possibilidade jurídica do pedido,
corresponde a inexistência de vedação explícita no ordenamento jurídico para o
ajuizamento da demanda proposta.
3. A despeito da controvérsia em relação à matéria de fundo, o fato é que, para a
hipótese em apreço, onde se pretende a declaração de união homoafetiva, não
existe vedação legal para o prosseguimento do feito.
4. Os dispositivos legais limitam-se a estabelecer a possibilidade de união estável
entre homem e mulher, dês que preencham as condições impostas pela lei, quais
sejam, convivência pública, duradoura e contínua, sem, contudo, proibir a união
entre dois homens ou duas mulheres. Poderia o legislador, caso desejasse, utilizar
expressão restritiva, de modo a impedir que a união entre pessoas de idêntico sexo
ficasse definitivamente excluída da abrangência legal. Contudo, assim não
procedeu.
5. É possível, portanto, que o magistrado de primeiro grau entenda existir lacuna
legislativa, uma vez que a matéria, conquanto derive de situação fática conhecida
de todos, ainda não foi expressamente regulada.
6. Ao julgador é vedado eximir-se de prestar jurisdição sob o argumento de
ausência de previsão legal. Admite-se, se for o caso, a integração mediante o uso
da analogia, a fim de alcançar casos não expressamente contemplados, mas cuja
essência coincida com outros tratados pelo legislador.
5. Recurso especial conhecido e provido.”

No mérito, quanto aos alimentos, a corrente majoritária entende descabida esta


pretensão, por ausência de imposição alimentar legal.
Veja a Apelação Cível 2007.001.04634, do TJ/RJ:

“Processo: 0004220-87.2006.8.19.0208 (2007.001.04634). 1ª Ementa –


APELACAO. DES. MARCOS ALCINO A TORRES - Julgamento: 24/04/2007 -
DECIMA SEXTA CAMARA CIVEL.
RELACAO HOMOAFETIVA. ALIMENTOS. VARA DE FAMILIA. UNIAO
ESTAVEL. INTERPRETACAO ANALOGICA. IMPOSSIBILIDADE.
Relação homoafetiva. Ação de alimentos. Competência. Vara de família. Analogia
com a união estável. Impossibilidade. 1. As ações de alimentos cuja causa de pedir
seja a relação homoafetiva, pretendendo equiparação por analogia com a união
estável entre um homem e uma mulher, devem ser analisadas pelo juízo de família,
considerando que não se está discutindo sociedade de fato. 2. No mérito, a
equiparação da relação homoafetiva com a instituição da família não se mostra
admissível enquanto o texto constitucional, bem como o direito infraconstitucional
(art. 1.723 do C. Civil), referirem expressamente que a entidade familiar é formada
por um homem e uma mulher. 3. A única semelhança que de princípio se pode
apontar da relação homossexual com a família nascida do relacionamento entre
pessoas de sexos diferentes, é o afeto. Mas o afeto, ainda que seja reconhecido pela
doutrina moderna do direito de família como o elemento mais importante da

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relação familiar, ainda não é fonte por si só de obrigações. 4. Ainda assim, se a


relação chegou ao fim, e portanto não há mais afeto, é impossível julgar a ação
reconhecendo obrigação alimentar cuja fonte seria exatamente o afeto, inexistente
a esta altura. Quando se desfaz um vínculo afetivo que resultou em família
reconhecida pela ordem jurídica, como a decorrente do casamento ou da união
estável, o que gera a continuidade do devedor de solidariedade é o vínculo jurídico,
inexistente na relação homoafetiva. 5. Portanto, ainda que a relação entre as partes
tenha se formado com base na liberdade e no afeto, hoje estão elas desavindas,
sendo certo que não pode existir vínculo obrigacional sem fonte, que se resumem,
na lição de Caio Mário, a duas: a vontade e a lei.

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