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Estética e arte

Mestrado em Filosofia Contemporânea

Faculdade de Letras da Universidade do


Porto

Professor Doutor Vítor Guerreiro

Arte como André Rocha


up202003971@letras.up.pt

movimento
Uma abordagem ao problema de definir arte
Índice

Motivação ......................................................................................................................... 2

Há um problema em definir arte ....................................................................................... 2

Morris Weitz ................................................................................................................. 3

Arthur Danto ................................................................................................................. 3

T. Adorno ..................................................................................................................... 4

O problema em conceber arte ........................................................................................... 5

Wassily Kandinsky ....................................................................................................... 5

Onde está a origem do problema ...................................................................................... 9

Arte como movimento .................................................................................................... 11

Bibliografia....................................................................................................................... 14

Anexos ............................................................................................................................ 15

1
Motivação
Há uma proximidade minha com a arte, quer académica, quer profissional. Estudei
artes, colaborei com museus e galerias e exerço uma profissão que lida diretamente com
componentes criativas. A abordagem filosófica à arte, no entanto, tem-se apresentado como
uma perspetiva bem distinta daquela que é tida quando estou embrenhado na expressão
artística. O distanciamento e a profundidade atribuído ao conceito tem-me fascinado cada vez
mais, o pensar sobre arte torna-a cada vez maior, mais profunda e mais complexa.

Foi na densidade em interpretar aquilo que é arte que a minha atenção mais se tem
focado, daí que, assim que me deparei com a possibilidade da indefinição do conceito por
Morris Weitz, imediatamente estruturei o meu raciocínio sobre essa problemática.

No presente artigo, apresento algumas noções de três filósofos: Morris Weitz, Arthur
Danto e Theodor Adorno, segundo as quais revelam o problema de definir de arte. Tenciono
também explorar um caso concreto, no sentido de articular a argumentação teórica como um
exemplo prático de uma reconhecida obra de arte. Identificado o problema, a minha
investigação recairá na razão que gera esse problema para os filósofos em questão, nos
artigos identificados. O principal objetivo deste artigo será em apresentar uma proposta que
possa estar na origem do problema em definir arte, ou seja, uma possível resposta à questão:
porque é que não conseguimos definir arte 1?

Há um problema em definir arte


Há, nitidamente, um problema em definir arte. Vão surgindo novas teorias, vão sendo
abordadas e incorporadas recentes abordagens artísticas, mas ainda assim não demonstram
esgotar o conceito. Focar-me-ei em explorar qual o problema em definir arte.

1
Artes visuais – irei referir arte como algo pictórico ou virtual, observável e fixado num suporte.
Tenderei sempre a um conceito sobre arte em torno daquilo que é estimulado quando contemplamos, por
exemplo, uma pintura – cor, forma, tonalidade, representação ou abstração, etc. Sei e considero a arte muito
mais que isto – é música, literatura, teatro, cinema, performance, instalação, dança, e muitas outras formas que
existiram e ainda estão para aparecer. Porém, noto que a abordagem a arte de forma generalista fica ainda mais
ambígua. Lendo um artigo filosófico e substituindo o termo “arte” por “teatro” ganha um sentido percetivo
diferente que ler o mesmo artigo com a substituição de “arte” por “pintura”. Quando penso em teatro, o que está
a acontecer (quer pelo movimento, fugacidade, quer pela interpretação e pela complexidade que é um humano
em expressão) é totalmente díspar do que acontece quando penso em pintura, como tal, proponho fixar uma
referência para o termo, de modo a permitir ao leitor uma proximidade mais idêntica à que eu mesmo refiro
durante a escrita.

2
Morris Weitz

“Compreender o papel da teoria estética não é concebê-la como uma definição” (Weitz, 2004, p. 9).

No artigo de Weitz: “O papel da teoria na estética”, o filósofo põe em causa a


capacidade humana em definir arte de forma aceitável: “Consequentemente, mesmo que a
arte tenha um conjunto de propriedades necessárias e suficientes, nenhuma das teorias que
referimos, nem nenhuma das teorias propostas até à data, enumerou esse conjunto de
propriedades de modo satisfatório para todos” (Weitz, 2004, p. 3). Toda uma série de teorias
existentes com o intuito de conceber um conceito partilhado de arte são colocadas em causa
no artigo, com argumentações críticas no sentido de apresentar as razões para as refutar.
Weitz propõe uma diferente perspetiva, uma elucidação do conceito que exige uma
reformulação da abordagem ao problema: a questão não deverá ser o que é, mas que tipo de
conceito é arte. Compreender o desempenho da função do conceito arte na linguagem
necessita de um “critério de reconhecimento” que passará pelas “cadeias de similaridade”, as
malhas de parecenças que, tal como nos jogos, coincidem entre as várias obras de arte. Deste
modo, o autor conclui que é a sua “estrutura aberta” e a similaridade básica entre os conceitos
(Weitz, 2004, p. 5) que permitem distinguir determinados objetos como obras de arte.

Para Weitz, estarem sempre a surgir novos casos que desvendam possibilidades
imprevisíveis, é a razão pela qual não conseguimos definir arte. Tem de haver um contínuo
reajuste do conceito, fechando-se ele torna-se definível, mas novamente terá de se abrir a
outros novos que não se abrangem.

Arthur Danto

“Arte é o tipo de coisa que depende, para sua existência, de teorias; sem teorias, uma tinta preta é apenas
uma tinta preta e nada mais” (Lima, 2008, p. 99).

Arthur Danto apresenta uma problemática em definir arte relativamente aos limites que
esta compreende. Para o filósofo, há um constrangimento em encontrar propriedades
descritivas intrínsecas nos objetos, sejam estas propriedades percetíveis sensorialmente;
sejam estas propriedades estéticas pré-concebidas: “[n]ão se pode esperar que um mero
objeto «obtenha significado de sua contraparte estrutural»” (Lima, 2008, p. 99). Seria
desejável poder apresentar propriedades relacionais que estabelecessem pontes constantes
entre os vários objetos a que chamamos arte. Uma vez que não é possível estipular com rigor
os limites até onde determinada propriedade pode prefigurar no objeto de arte, fica
comprometida a precisão na definição.

3
O filósofo refere também um problema atual, inerente ao facto de a arte contemporânea
ter sido parte significativa do seu objeto de estudo. Com o advento da arte moderna,
movimentos como a pop-art ou o dadaísmo colocaram sérios desafios às obras de arte que
desenvolviam: meros objetos vulgares seriam revestidos de uma conceptualização que
permitiria as suas instalações em meios artísticos e, por conseguinte, viriam a ser
considerados obras de arte – ainda que exatamente iguais a outros que, não fazendo parte do
mesmo meio, não passariam de meros objetos comuns; “para cada x que é uma obra de arte, é
possível haver um y que não o é, apesar de y ser indistinguível de x no que diz respeito a suas
propriedades sensíveis” (Lima, 2008, p. 96). O problema dos objetos indiscerníveis prende-
se, assim, por compreender a razão de um objeto de produção industrial, com uma função
muito específica e desenvolvido por indivíduos não artistas, poder vir a ser arte se for
apresentado por uma determinada forma específica por uma artista, ou seja, como pode uma
obra de arte ser um apoderamento de um mero objeto vulgar? Além disso, após o objeto
comum vir a ser considerado arte, a mesma obra de arte apenas é direcionada para esse
mesmo objeto, sem incluir os restantes múltiplos iguais.

T. Adorno

“A arte não pode satisfazer o seu conceito” (Adorno, 1970, p. 69)

Identifico o problema em T. Adorno, quando o autor a refere como “livre”. O filósofo,


ao referir a arte como absoluta liberdade, não me parece estar a aludir à arte como podendo ir
além daquilo que se possa imaginar. Ele refere-a como livre sobre um domínio particular e,
como tal, aparenta referir-se a um tipo de liberdade pelo facto de não poder ser aprisionada,
ao ter-se desembaraçado da função cultural, e, por isso, estar constantemente a escapar-se de
todo o alcance / amarras que lhe possam atribuir. É curioso notar que há um momento
histórico com características aparentemente fixadoras da arte: “mesmo a obra de arte mais
sublime adota uma posição determinada em relação a realidade empírica, ao mesmo tempo
que se subtrai ao seu sortilégio, não de uma vez por todas, mas sempre concretamente e de
modo inconscientemente polémico contra a sua situação a respeito do momento histórico”
(Adorno, 1970, p. 16); contudo, essas características necessitam de distanciamento, o seu
efeito dilui-se na contemporaneidade. Segundo Adorno, pela negatividade presente, uma
intensa relação mediada por interesse e a recusa, arte pode vir a transformar-se em prazer,
mas não em positivo - o artista não a considera como objeto, ao desaparecer na sua criação; o
consumidor da obra de arte lida com uma postura de estranheza, por estar alienado à obra, há

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um efeito feiticista que desperta sensualidade. Deste modo, há um domínio sobre a liberdade
na obra de arte, mas que não interfere na autonomia por ela adquirida.

Destaco também o problema na dialética entre racionalidade e mimese. Este processo


dialético é responsável pelo que o filósofo vai considerar a aporia da arte:

“A sentimentalidade e a fragilidade de quase toda a tradição do pensamento estético deve-se a que


ele [o desencantamento do mundo / a técnica] silenciou a dialética de racionalidade e mimese, inerente à
arte. Isso prolonga-se no espanto perante a obra de arte técnica como se ela tivesse caído do céu: as duas
noções são intrinsecamente complementares. No entanto, o palavreado sobre a magia da arte evoca algo
de verdadeiro. A sobrevivência da mimese (…) define a arte como uma forma de conhecimento (…). A
arte completa o conhecimento naquilo que dele é excluído e prejudica também, desta maneira, o seu
carácter de conhecimento, a sua univocidade, a qual ameaça desmembrar-se porque a magia, que ela
seculariza, a isso se recusa, enquanto a essência mágica, em plena secularização, se degrada em resquício
mitológico, em superstição” (Adorno, 1970, p. 69).

É conhecimento na sua negatividade, por um misticismo presente que não se mostra por
ser frágil na sua conceção. A deambulação torna a obra de arte como transitória constante
entre pontos, mais ou menos extremado, mais ou menos dialéticos, mas que, por existirem,
não deixam de a problematizar.

O problema em conceber arte


Wassily Kandinsky

Seleciono uma pintura de um artista russo, precursor do abstracionismo ao “expor uma


pintura sem qualquer objeto reconhecível” (Gombrich, 2005, p. 570). Trata-se da obra de arte
“On White II” 2 do pintor Wassily Kandinsky (1866-1944). Na sua investigação teórica, em:
Do espiritual na arte (1912), ele investiga o modo como a cor interfere na psicologia da
perceção. Ele refere similaridades na afetação psicológica entre, por exemplo, um vermelho
brilhante e um toque de clarim. Nesta sua exploração sensorial, mística e espiritual, foi-lhe
possível uma conceção de pinturas que vieram a ser interpretadas como música cromática.
Havia, portanto, fundamentação teórica ao seu trabalho, havia investigação e exploração
plástica / pictórica, havia um resultado estético conseguido e havia, por fim, capacidade de

2
Opto por mostrar a obra em anexo ao trabalho, contudo deixo a referência para consulta na internet, da
fonte onde extraí a obra: https://arthistoryproject.com/artists/wassily-kandinsky/on-white-ii/

5
exposição, bem como aceitação pública por parte da crítica: emergia uma nova forma de arte,
estava inaugurada a arte abstrata.

A razão por ter selecionado uma obra para analise sobre um novo movimento na
história da arte, permite fundamentar o conceito aberto de arte de Weitz. Algo que não se
inseria em qualquer tipo de arte pictórica até então, surgiu e, por cadeias de similaridade, veio
a ser considerada uma obra de arte. Se tal tem vindo a ser recorrente, sabemos, por
conseguinte, que muito certamente voltará a acontecer. Sabemos, porém, que nem todos os
objetos que desvendam novos rumos e possuidores de cadeias de similaridade com obras de
arte chegam a ser considerados obras de arte – destaco, por exemplo, a problemática em
conceber o objeto de joalharia como obra de arte. Há uma serie de joalheiros/autores que
desenvolvem um reconhecido trabalho plástico e cujo circuito se aproxima muito do circuito
da obra de arte, é inclusivamente reconhecido como tal, contudo deparam-se com um
problema inerente à joia que será sempre distinto da escultura – o seu sentido de
funcionalidade é particular e “fechado”. Uma joia estará sempre condicionada a um objeto de
ornamento de alguém, é isso que a torna joia, e como tal, não é fácil demovê-la dessa
condição que não parece sujeitar outros objetos escultóricos artísticos.

O “é” a que Danto se refere como presente nas obras de arte: “o é da identificação
artística” (Danto, 2006, p. 18) não é apontado com clareza por Kandinsky. Este é que se apoia
na “oração proposicional” aplicada à obra de arte, neste artista não poderíamos dizer como “é
Ícaro” ou, como em “On White II”, é S. Jorge com uma lança. Isto deve-se ao intuito do
próprio artista querer não identificar artisticamente algo de uma forma que estaríamos mais
familiarizados pelas nossas buscas representacionais em tudo que observamos. Ainda assim,
há algo que podemos descobrir em Kandinsky da identificação artística dantoniana: é
“representação visual do espiritual em cores e formas abstratas” (Düchting, 2004, p. 38).
Haverá sempre qualquer motivação necessária à obra de arte que a identifique artisticamente
como um propósito a ser arte e não uma coisa qualquer, que poderia ter sido feita por
qualquer outro. Neste caso, a motivação não é direcionada como aludindo à representação de
algo, mas talvez como exprimindo algo, numa busca em proporcionar sensações no contínuo
do trabalho do artista. Apreciar Kandinsky não pode ser procurar o objeto A, B ou C, deverá
ser experimentar sentir X, Y ou Z, sendo que X, Y ou Z não serão tanto emoções como
alegria ou surpresa, mas antes vibrações, melodias, acordes musicais, equilíbrios e
desequilíbrios, altas e baixas frequências.

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Na Teoria Estética de Adorno também encontramos a posição assumida por
Kandinsky. O filósofo defende uma necessidade da arte se afastar da indigência humana, daí
que o excessivo materialismo apresenta uma fraqueza para a conceção de obras de arte: “[o]
excesso de realidade é a sua decadência; ao distribuir o sujeito, mata-se a si mesma” (Adorno,
1970, p. 44), como tal, a arte tem de ir além da componente objetiva que é o colocar
pigmentos numa tela e refletir a imaginação do artista para além daquilo que o próprio
consegue imaginar. Adorno nota que as obras escapam-se daquilo que lá foi “imaginado”
pelo artista para abarcarem ainda mais, para além do idealizado. A obra de arte torna-se
natureza, como tal, liberta-se e se torna “senhora de si-mesma”. Neste abrir-se, ela permite-se
a uma “estrutura interrogativa” onde a experiência da obra tem de ser mais que o imediato,
mas antes um aprofundar refletido. Parados perante uma tela de Kandinsky, permitindo-lhe
esta abertura e iniciando uma introspeção, despoleta faculdades espirituais que Adorno
considera o “éter das obras de arte” e que foi precisamente o foco de Kandinsky na sua obra
Do espiritual na arte.

Kandinsky é-me importante pelo “mundo interior” tão profundamente estimulado pelo
seu trabalho. É “um mundo de imagens onde a abstração não deveria, em si, ser mais do que
um objetivo e a sua linguagem formal não um «nado-morto», mas sim o nascer da vontade de
criar um teor vivo” (Düchting, 2004, p. 88). A espiritualidade aprofundada pelo artista,
trespassa o mero objeto realizado e adquire uma vivência, estando ela na triangulação entre a
obra de arte, o seu criador e aquele que a contempla.

O quadro em análise, “On White II”, não tem qualquer descrição específica do seu
autor. O título nada acrescenta a qualquer possível leitura da mesma, as formas nela
representadas não permitem uma identificação clara e lógica com quaisquer elementos
familiares. A única pista que o autor nos refere é a sua obsessão pelo impacto da cor na
psicologia humana.

Não havendo representação, nem havendo qualquer referência daquilo que é o intuito
comunicativo do autor, como conseguimos definir a mestria presente na obra? Como é
possível distinguir um traço ou mancha de cor intencionais e bem concebidas, de um mero
acaso ou devaneio? Como conseguimos apurar as propriedades intrínsecas dantonianas?
Neste caso, o problema dos limites terá de ser também apurado através das propriedades
extrínsecas que sabemos do autor que a concebeu – o artista já contava com exposições de
arte em Moscovo, Paris, Munique, etc.; encontrava-se a lecionar na prestigiada escola
artística de Walter Gropius – Bauhaus; tinha já proposto a “[r]utura para a Abstracção”

7
(Düchting, 2004, p. 37) numa famosa exposição coletiva do grupo chamado “Der Blaue
Reiter” (O Cavaleiro Azul) na Moderne Galerie Thannhauser, onde também publicava o seu
livro Do Espiritual na Arte, onde fundamentava teoricamente o trabalho que estava a
desenvolver. É este reconhecimento almejado que permite situar Kandinsky no “mundo da
arte” a que Danto se refere, como propriedades necessárias para possibilitar distinguir “On
White II” como arte e não como simples manchas e riscos numa tela.

“On White II” trata-se de uma pintura a óleo sobre tela. Data de 1920 e encontra-se
atualmente exposta no centro cultural de Paris – Centre Georges Pompidou. O seu autor
quase nada disse sobre a sua obra, além de que foi concebida pela obsessão de Kandinsky no
impacto que a cor provoca na psicologia humana (Enger, 2021). No entanto este tipo de
referência do autor nem sequer está direcionada apenas a uma obra, mas a um vasto espólio
característico do seu percurso artístico. A crítica, segundo apresenta R. Enger, revela
influências estilísticas de outros artistas como K. Malevich. Na leitura representativa da obra,
a crítica alude para uma espécie de erupção vulcânica de cores e formas despoletada do
centro da obra; encontra também uma possível representação abstrata de S. Jorge, santo
devoto na cultura religiosa russa, pelo facto de ser um tipo de influência também presente
noutras obras do autor; por fim, refere a prática comum de Kandinsky à alusão a uma peça
musical, como se a própria pintura descrevesse determinada peça.

A razão de ter recorrido a esta obra de análise prende-se com o facto da mesma ter uma
relação semelhante ao que procuro defender no presente artigo. Este abstrato parte de um
controle formar nos elementos pintados, não são “baldadas de tinta” depositadas. É uma obra
de formato quadrado onde os elementos do centro parecem apontar em várias direções, como
vetores que indicam vários caminhos possíveis. Parece também haver um relógio
ligeiramente acima do centro do quadro, apontando para as doze horas e cinquenta e cinco
minutos – tais elementos como setas, curvas ondulatórias e triângulos pontiagudos são
responsáveis pela sensação de movimento na própria obra. É um movimento sentido, não um
movimento real, é um movimento vetorial, um movimento de leis humanas num conceito
lógico, dedutível e abstrato. Este movimento que interpreto em “On White II” serve-me assim
como “ilustração” do presente artigo e, como tal, é desta forma aqui apresentado.

Parece-me haver algo de muito pertinente nesta atitude perante a obra de arte: o que
será que Kandinsky pretenderá ao deixar-nos esta grande ambiguidade? Ele concebeu-a,
pintou-a com propósitos e com uma coerência e uma lógica discernível, mas não a revela.
Estará a passar-nos a responsabilidade de procurar representações / significados? Ou por

8
outro lado estará a tentar ausentar-nos de quaisquer significados? Não estará a propor
simplesmente que “sintamos” a obra como se estivéssemos perante uma experiência de cores
e formas? Não estará, eventualmente, a propor que procuremos na arte o seu movimento em
vez de nos determos pelo seu conceito?

Onde está a origem do problema


Havendo realmente um problema em definir arte, sabendo qual é esse mesmo
problema, o que procurarei compreender será a raiz desse mesmo problema. O que afeta a
arte de tal forma que gera sempre contínuos problemas em lidar como o seu conceito?

Em Weitz identifico como origem ao problema o facto de estarem sempre a surgir


novas abordagens: “estão sempre a surgir ou a antever-se condições novas ou imprevisíveis”
(Weitz, 2004, p. 5). Uma vez que os artistas esquivam-se a uma abordagem protocolar,
tradicionalista e institucionalizada sobre aquilo que é a sua conceção artística, surge sempre
novidade por identificar e a quebrar estereótipos. Ainda que tipicamente a formação clássica
em pintura numa universidade de belas-artes tenha uma base institucional com recurso à
tradição do desenho e da pintura, é durante a carreira artística do pintor que, geralmente, as
novas investigações e os rumos vão apontando a um caminho particular. Há uma expressão
muito curiosa frequentemente empregue pelos pintores: “busca do torto direito” – significa
que um traço torto não é considerado torto, mas propositado apenas pelos que já deram
mostras de ser capazes de fazer o traço direito, ou seja, de acordo com a norma da tradição
academia. Weitz concebe, portanto, o conceito como sendo aberto:

“Um conceito é aberto se as suas condições de aplicação são reajustáveis e corrigíveis;


isto é, se uma situação ou um caso pode ser imaginado ou obtido, o qual requeresse algum tipo
de decisão da nossa parte de modo: ou a alargar o uso do conceito para abranger o novo caso;
ou a fechar o conceito inventando um novo para abranger o novo caso e a sua nova
propriedade” (Weitz, 2004, p. 5).

Segundo o filósofo, as cadeias de similaridade vão sendo encontradas nas obras


existentes até a apresentação de uma nova abordagem, caberá depois socialmente o problema
de decisão: “se devemos ou não alargar o nosso conjunto de condições de aplicação
conceito”. Esta decisão que Weitz atribui a “nós” origina uma ambiguidade no problema,
visto não ser possível saber se “nós” iremos ou não aceitar determinada obra como arte. A
crítica é imprevisível, tendenciosa e com traços conservadores com o intuito de permanecer

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credível dentro do meio artístico. Os jovens artistas passam por um difícil escrutínio no início
de carreira, com uma enorme exigência em termos de volume de trabalho, como numa
insistente busca para conseguirem algum espaço de reconhecimento. É um arranque tão
conturbado que deixará vários desistentes pelo caminho. Perde-se potencial, perdem-se
talentos. O conceito de arte abre-se, mas a sua “generosidade” nunca foi completamente
democrática.

Em Danto a origem do problema está no conteúdo ao qual o conceito abrange ser


interminável: “obras de arte são representações que não se esgotam no seu conteúdo”, e,
como tal, torna-se inacessível a correta definição do conceito. A posição de Danto, diferente
da de Weitz que rejeita a possibilidade de acertar numa teoria, para Danto há uma aceitação
maior face às diversas teorias. O filósofo identifica a importância de diversas teorias que
serão estruturantes a permitir “ver algo (…) que o olho não pode repudiar – uma atmosfera de
teoria artística, um conhecimento da história da arte: um mundo da arte” (Danto, 2006, p. 20).
Este mundo de arte vive das teorias que o preenchem, como tal elas são imprescindíveis e
necessárias. Não vão resolver o problema, mas vão alimentando o “mundo de arte”.

Qualquer uma das propostas dos filósofos referidos parece assentar em algo alheio à
obra de arte. Numa tentativa de representação, parece haver um ponto onde está situada a
obra de arte, outro ponto distinto onde se situa o autor da obra e num terceiro ponto aquele
que aprecia a obra. Os três estão ligados, mas não por estruturas rígidas, claramente definidas
e interpretáveis. As ligações parecem-se, ora diretas como relâmpagos e feixes de luz, ora
sinuosas como vibrações sonoras, ligações tão intensas como momentâneas, sem
tangibilidade, umas vezes estritas, outras deambulatórias. Seria assim que ilustraria uma
ligação espiritual entre os três pontos de contacto.

Adorno veio a revelar-se um autor importante na fundamentação do presente argumento


precisamente pelo seu livro Teoria Estética ser igualmente uma oscilação de conceitos tão
intensamente ricos como dificilmente interpretáveis. Não há um índice, capítulos e uma
estrutura linear. Sente-se uma espontaneidade numa escrita rebuscada, mas sem compreender
nitidamente o objetivo pretendido. O movimento sentido na construção da sua narrativa é
altamente inspirador à conclusão da minha argumentação, porque todo o seu livro é a
problemática em definir arte. Ele reveste-se da complexidade daquilo que está a abordar.
Percebo a abstração do autor, tão complexa como a própria arte.

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A arte “é tão abstrata como as relações dos homens de tornaram” (Adorno, 1970, p. 44),
o autor revela-o tal como a sua escrita assim se revela. É na abstração cada vez mais
complexa para onde aponta o vetor da arte: uma arte de cada vez maior especificidade e
erudição - direcionada para densos requisitos intelectuais e que se arrisca a tornar-se
interpretável apenas por especialistas, que se concertam, confrontam e se contradizem; assim
como uma arte amplamente aberta ao processo de conceção e focada na componente
experimental - disposta à exploração de todo o tipo de conceções, por mais bizarras que
possam ser, mostrando-se sem limites e explorando o impacto que desperta nos observadores
e proporcionando uma experiência altamente imersiva; ou até uma arte de “ribalta” para
iluminar figuras icónicas, controversas e levianas - uma arte de status e mercantil, uma arte
de espetáculo e entretenimento, onde o mecenato almeja o lucro quase momentâneo e
contabiliza os artistas e as suas criações como ações de bolsas de valores. É, nestas premissas
que constato a similaridade da arte com os fluxos e tendências sociais, tal como Adorno
refere.

Para este filósofo há um caráter enigmático que vive enquanto vive a obra: qualquer
obra de arte diz e oculta algo ao mesmo tempo, uma vez que, na acentuação da compreensão
da obra, permanece a noção de insuficiência. Há sempre algo que ainda não ficou completo e,
assim, fica identificada a origem adorniana no problema em definir arte.

Arte como movimento


É nesta alusão que concluo o meu argumento sobre a razão do problema em definir
arte. O facto de “arte” enquanto conceito apresentar-se em constante movimento, impede a
sua definição estanque e definitiva, abarcando, porém, as teorias recorrentes, possíveis e (tal
como Danto as considera) necessárias ao mundo da arte.

No dicionário de Filosofia, o conceito de movimento ascende a Platão e Aristóteles. O


segundo distinguia quatro espécies de movimento: alteração, translação, “movimento
substancial (geração e corrupção) e o movimento quantitativo (aumento e diminuição)”
(Abbagnano, 2007, p. 686). Qualquer um, dos quatro tipos de movimentos aristotélicos,
parece poder relacionar-se com o conceito de arte. Alteração, porque “[u]m conceito é aberto
se as suas condições de aplicação são reajustáveis e corrigíveis” (Weitz, 2004, p. 5);
translação, no sentido em que, para determinadas obras “fossem aceitas como arte, numa

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espécie de transfiguração, (…) requereu-se não tanto uma revolução no gosto quanto uma
revisão teórica de proporções muito consideráveis” (Danto, 2006, p. 15); movimento
substancial e quantitativo, pela geração / aumento de novas obras, novas corrente, novas
abordagens – como é exemplo o abstracionismo de Kandinsky, bem como pela corrupção /
diminuição na já referida decadência adorniana derivada ao “excesso de realidade” (Adorno,
1970, p. 44) que é conducente à destruição do sujeito.

Aristóteles vai ainda recorrer ao “motor” na busca do que faz algo se mover, assim
também o procurarei referir um pouco mais abaixo. Mantendo-me, para já na definição do
dicionário de Filosofia, porque me resta ainda um conceito extremamente curioso: a forma
fluente segundo J. Duns Escoto: “um corpo que se move adquire alguma coisa: a todo o
instante não o lugar, que não é um atributo seu, residindo nos corpos que o circundam, mas
uma espécie de determinação qualitativa, análoga ao calor adquirido pelo corpo que se
aquece. Essa determinação é o onde. O movimento, portanto, é a perda ou a aquisição
contínua do onde e nesse sentido é uma «forma fluente»” (Abbagnano, 2007, p. 686). Parece-
me bastante interessante esta “forma fluente” na busca do onde, precisamente por aquilo que
julgo ser imperativo no conceito de arte: onde está agora e para onde se está a deslocar.
Quando Hegel nivela as três realizações espirituais 3, Arte, Religião e Filosofia, é a procura
por algo de verdadeiro que está na base das três realizações. A importância deste: para onde
se está a deslocar a arte, reside no facto de compreender a qual verdade a mesma estará em
busca.

Movendo-se, certamente que terá algum fundamento para tal. Foi nesse aspeto que
recorri a Adorno. Arte não é um conceito estanque: um marceneiro trabalha com madeira, um
ferreiro com metais ferrosos e um artista com variados materiais possíveis; um joalheiro
concebe joias, um padeiro concebe pão, bolos e pasteis e um artista concebe obras de arte de
variadíssimos tipos. Enquanto muitos dos conceitos que temos apontam para uma finalidade
objetiva, já o sentido teleológico da arte não é materialmente necessário. Aquilo que arte
procura é espiritual, implicitamente transcendental à consciência e à sensibilidade (estes dois
apenas existem momentaneamente, numa noção de pausa fugaz que é também ilustrativa
desse mesmo movimento). Embora haja a materialização de “ingredientes intelectuais”

3
Em Hegel, a experiência consciente é tida através de uma “certeza sensível”. Ele refere três conceitos
envoltos nas realizações de espírito Absoluto: Arte, Religião e Filosofia, sendo a arte a única que tem uma
relação direta como o objeto, a imaterialidade do espiritual ao coabitar com a fisicalidade do objeto dá enfase à
própria noção hegeliana de “motor dialético” - a realidade que assenta num princípio contraditório ao ser
pensável (Miguens, 2019).

12
(Adorno, 1970, p. 105), pelo processo de abertura que transcende para fora do objeto
artístico, essa materialidade converte-se numa relação de alteridade com quem contempla a
obra, estabelecendo-se novas relações cada vez mais distantes daquilo que uma vez foi a
criação do seu autor. Tal só acontece porque, uma vez finalizada a obra de arte, a mesma
adquire autonomia de traços naturais – algo semelhante a um tipo de emergência hegeliana –
e, como tal mostra-se “senhora de si mesma” (Adorno, 1970, p. 78). Isto tem
implicativamente que dizer respeito à deslocação que por ela é exercida. É, como tal, este
espiritual maior do que apenas objetividade e que serve de combustível ao movimento da
arte.

A arte move-se continuamente, alimentando-se de cada artista e de cada criador. Os


objetos criados não são arte só por si, ou só pelo autor, ou pela forma que foram concebidos,
ou pela metodologia seguida, ou pelo que possam representar ou não-representar, os objetos
tornam-se obras de arte pela sua integração numa atmosfera específica, num encadeamento
histórico, num “mundo da arte” dantoniano. Dentro desse mundo há um movimento
específico gerado, os objetos tornam-se obras de arte assim que se tornam parte integrante
desse mesmo movimento.

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Bibliografia
Abbagnano, N. (2007). Dicionário de Filosofia (5ª ed.). São Paulo: Martins Fontes.

Adorno, T. (1970). Teoria estética. Lisboa: Edições 70.

Danto, A. (2006). O mundo da arte. (O. Preto, Ed.) Artefilosofia, 13-25. Obtido de
https://moodle.ufsc.br/pluginfile.php/1560412/mod_resource/content/1/artefilosofia_0
1_01_mundo_arte_arthur_danto.pdf

Düchting, H. (2004). Wassily Kandinsky. (Casa da Línguas, Lda, Trad.) Köln: Taschen
GmbH.

Enger, R. (19 de Maio de 2021). Obtido de Obelisk Art History:


http://arthistoryproject.com/artists/wassily-kandinsky/on-white-ii/

Gombrich, E. (2005). A História da Arte. (A. Sabler, Trad.) Lisboa: Público - Comunicação
Social, SA.

Lima, E. (2008). A percepção após a interpretação na filosofia da arte de Danto. Artefilosofia,


96-107.

Miguens, S. (2019). Uma leitura da filosofia contemporânea. Lisboa: Edições 70.

Weitz, M. (2004). O papel da teoria na estética. Obtido de


https://criticanarede.com/weitz.html

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Anexos
Obra de arte analisada
Título: On White II (1923)

Material: Óleo sobre tela

Autor: Wassily Kandinsky

Exibida em: Centre Georges Pompidou, Paris

Experiência musical – Chrome Music Lab


Os meios digitais permitem sintetizar determinados conceitos de formas muito
particulares. A Google, num projeto designado “Chrome Music Lab”, explora o conceito
musical de forma gráfica e manipulável pelo utilizador. Uma das experiências propostas é,
precisamente, a composição de uma tela gráfica como elementos variados. O botão de
reprodução vai permitir “ouvir” o que está representado.

Receio que esta experiência seja adultera ao proposto por Kandinsky nas suas telas,
precisamente pelo facto de haver som. Julgo que o autor pretendia uma experiência cromática

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que aludisse à musicalidade, não musicalidade literalmente associada ao cromatismo /
formalismo. Havendo música, dilui-se ou altera-se a experiência. Tal como o professor Vítor
Guerreiro disse numa das suas aulas de Estética e Arte: “Podemos ver, ora o pato, ora o
coelho, mas nunca conseguimos ver os dois ao mesmo tempo.”

A razão que me leva, apesar disso, a apresentar aqui este projeto reside apenas no facto
de considerar que tal projeto dedicado a Kandinsky é revelador de duas coisas: a
particularidade da intemporalidade do abstracionismo, podendo revelar-se a qualquer
momento novo e em exploração por variados media, como um movimento que não tem um
rumo definido e permite-se oscilar em qualquer altura; e a ambiciosa simbiose do artista entre
composição cromática e a composição melódica por exercer uma atração tão particular no
espectador, que (diria eu) “quase dá vontade de escutar”.

Tal como, ainda no final do século passado, Düchting escrevia, “até aos nossos dias, as
ideias e conceções teóricas deixadas por Kandinsky ainda não foram esgotadas” (Düchting,
2004, p. 89).

https://musiclab.chromeexperiments.com/Kandinsky/

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