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Novas relações entre política e religião

Haverá sempre fricções entre religião e política e não se vê como poderia ser de outra
maneira. Mas esta tensão é benéfica. Evita que o Estado se reduza a um papel
tecnocrático, de pura gestão, e que, por outro lado, a Igreja se feche no culto e na
sacristia.

1. A Europa multicultural e multi-religiosa não pode escapar à crise civilizacional que


afecta todas as dimensões da vida em todo o planeta. A título diferente, a política e a
religião nasceram para cuidar das boas conexões com a natureza, com a vida, com os
outros, com o sobrenatural. Paul Valadier, um conhecido filósofo jesuíta, a propósito da
sua última obra sobre a "fraqueza do político e a força do religioso" (1), observa que a
relação entre religião e política não é estática e nunca estará definitivamente resolvida.
A distinção entre ambas é de origem cristã. Ninguém se atreve a dizer que a distinção
entre César e Deus, entre o temporal e o espiritual, entre política e religião, não seja
libertadora.

Quem ousará defender, explicitamente, a teocracia? Esta ruptura é benéfica para o poder
político porque evita que ele se feche sobre si mesmo de forma totalitária. É benéfica
também para a Igreja porque a obriga a uma autodelimitação.

Mas só a cegueira ideológica não vê as fraquezas de um regime de total "separação".


Não acabará por marginalizar as religiões, subestimando a sua importância na vida
social de muitos cidadãos que encontram nelas fonte de empenhamento e de esperança e
tornar anémicas as próprias democracias? Estas não dispõem, por si mesmas, de
recursos suficientes para enfrentar os riscos da mundialização, gerar a paz e gerir as
questões de sociedade que têm a ver com as crenças e as opiniões dos cidadãos.

A filosofia democrática e a moral laica estão um pouco gastas. O progresso não traz, por
si mesmo, a paz. A escola não basta para erradicar a violência e a malícia humanas.

Os discursos não conseguem nenhuma reforma dos corações. Segundo Valadier, a


democracia francesa, em particular, não sabe como ser tolerante e republicana, não sabe
o que fazer com o islão, não sabe como assumir a tradição da Europa.

Por outro lado, a religião é muito mais e está muito melhor do que aquilo que alguns
ignorantes dizem acerca dela. No caso da religião cristã, que outrora foi factor de
guerras civis, encontra-se, hoje, numa dinâmica ecuménica e de paz movida pelo sinal
da unidade do Pentecostes em vez da uniformidade totalitária de Babel.

O essencial da mensagem cristã sobre a política é a sua relativização: impedir o seu


absolutismo e tornar-se uma defesa contra toda a forma de totalitarismo. Os grandes
debates sobre a sociedade desvendam valores que a democracia é incapaz de fundar por
si mesma e que dizem respeito às próprias crenças dos cidadãos.

2.Jesus anunciava o Reino de Deus - que não entra em competição com o reino dos
homens - no qual a autoridade não se exerce à maneira dos senhores deste mundo.
Funda, ao lado da política, uma comunidade própria, com regras distintas daquelas que
regem a política. O amor dos inimigos e o perdão não são virtudes políticas enquanto
tais. A "anormalidade" cristã consiste, precisamente, na coexistência destes dois reinos e
na convicção de que o Reino de Deus, sem se substituir ao reino dos homens, está
secretamente presente nele.

As questões que actualmente se levantam implicam não apenas a distinção entre


teologia e política, mas a sua inevitável articulação. Haverá sempre fricções entre
religião e política e não se vê como poderia ser de outra maneira. Mas esta tensão é
benéfica. Evita que o Estado se reduza a um papel tecnocrático, de pura gestão, e que,
por outro lado, a Igreja se feche no culto e na sacristia.

O laço entre religião e política é tão forte que o cristianismo tem muita dificuldade em
se desfazer dele. Mas o Concílio Vaticano II consagrou a ideia da autonomia do político
e afastou qualquer tentação teocrática. Reconhece à Igreja um papel de fecundação dos
espíritos e das liberdades, mas recusa a tomada do poder político. Paulo VI tirou,
corajosamente, as consequências desta opção.

3.Paul Valadier, ao valorizar o papel das religiões, não esconde a conversão


democrática que elas precisam: "Não quero falar em nome das outras religiões. No que
diz respeito a Igreja católica, parece-me que a participação no debate público implica
uma mudança muito forte de mentalidade. É evidente que há, na Igreja católica, uma
hierarquia que ofende o espírito democrático. Além disso, os últimos dois Papas, João
Paulo II e Bento XVI, desenvolveram uma palavra muito autoritária e um discurso de
cima para baixo. Temos aí um problema de sensibilidade porque as sociedades
democráticas são profundamente reticentes - não diante de qualquer autoridade, mas
diante do autoritarismo. Quando não se escuta o espírito da voz dos interlocutores, não
se pode esperar ser ouvido. As Igrejas não têm de se calar, mas devem encontrar um
modo de falar que permita fazer ouvir aquilo que julgam importante. Se esta evolução
não se fizer, a Igreja sairá muito prejudicada." "Amas-me mais do que estes?" - eis a
única pergunta que Jesus Cristo faz a quem deve guiar a Igreja. É a pergunta da
Eucaristia deste domingo.(1) Faiblesse du Politique, Force du Religieux, Paris, Seuil,
2007. Cf. o dossier "L"Engagement Politique", Lumière & Vie 273 (2007)

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