Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
UM MIsÃO INTE9R D *
José Pinheiro de Souza
Resumo
1 INTRODUÇÃO
As reflexões sobre a atividade tradutória têm mani-
festado, por mais de dois mil anos, posicionamentos por
O título do artigo é “teorias” (e não “teoria”) da tra-
vezes radicais ou frontalmente opostos. A velha tensão en-
dução, porque
tre tradução literal e livre, por exemplo, ainda não foi sa-
tisfatoriamente resolvida. Mesmo se manifestando, ainda não existe nenhuma teoria unificada da tradu-
contemporaneamente, sob rótulos diferentes, é sempre, es- ção no sentido técnico de “um conjunto coerente de
sencialmente, a mesma velha tensão que vem à tona. Par- proposições gerais usadas como princípios para ex-
tindo do pressuposto de que as posições extremas sempre plicar uma classe de fenômenos”, mas existem algu-
erram o alvo, uma vez que geralmente enfatizam um mas “teorias” no sentido lato de “um conjunto de
princípios úteis para compreender a natureza da tra-
aspec- to em detrimento de outros, este artigo defende uma
dução ou para estabelecer critérios de avaliação de
visão integrada do fenômeno tradutório. Anexo ao artigo, um texto traduzido” (Nida, 1993:155).1
encon- tra-se um questionário com perguntas e respostas
sobre te- orias da tradução. Por não haver nenhuma teoria unificada da tradu-
ção, também não existe definição de tradução que seja
Palavras-chave: tradução; tradução literal; tradução aceita por todos.
livre. O próprio termo tradução é polissêmico e pode
signi- ficar (a) o produto (ou seja, o texto traduzido; (b) o
Abstract processo do ato tradutório; (c) o ofício (a atividade de
Reflections on the activity of translation have traduzir); ou (d) a disciplina (o estudo interdisciplinar e/ou
manifested, for over two thousand years, both radical and autônomo).
diametrically opposed postures. The old tension between O modo de conceituar a tradução varia, de acordo
literal and free translation, for example, has still not been com a polissemia do termo e com as diferentes
satisfactorily resolved. Despite manifesting itself, in the perspectivas dos teóricos da tradução. Existem diversas
present day, under different labels, it is always, posturas teóri- cas, algumas bastante radicais e outras que
essentially, the same old tension that arises. Starting with são frontalmente opostas. Neste artigo, analisaremos
the assumption that extreme positions always miss the apenas algumas posições opostas, sobretudo as que são
mark, as they generally emphasize one aspect at the relacionadas com a velha ten- são bimilenar entre tradução
expense of others, this article defends an integrated view literal e tradução livre, procu- rando equilibrar e integrar
of the phenomenon of translation. In the appendix to the as forças contrárias.
article, a questionnaire may be found with questions and
answers about theories of translation. 2 TRADUÇÃO LITERAL E LIVRE
Key words: translation; literal translation; free translation. A controvérsia mais antiga em torno da tradução
diz respeito à tensão entre tradução literal e livre, duas
posições
* Nossos agradecimentos ao Prof. Myrson Lima, da Universidade Estadual do Ceará, e ao Prof. Marcus Vinícius Fontes Dodt, da Universidade Federal do
Ceará, pela colaboração que emprestaram ao aspecto redacional deste artigo.
Rav. da Latras - N0. 20 - V0I. 1/2 - jan/daz. 1008 1
1
É de nossa autoria a tradução de citações ocorrentes neste artigo.
mesmo lhe seja compreensível. Seu conhecimento de volta para a Estrutura Cognitiva (Figura 1) significa o
forma (formas grafofônicas, lexicais, sintáticas, semânticas es- tágio do processo quando o leitor integra a
e retó- ricas) cria-lhe determinadas expectativas sobre a compreensão glo- bal do texto à sua estrutura cognitiva.
linguagem do texto. Com essas expectativas, durante o ato Vemos, portanto, por esse modelo de leitura, que a
físico da lei- tura, ele terá condições de fazer, rápida e compreensão leitora envolve uma interação entre leitor e
automaticamente, identificações precisas das formas texto, e entre conhecimento lingüístico, de um lado, e co-
lingüísticas, utilizando um número mínimo de pistas nhecimento não lingüístico, de outro. Graças ao primeiro
visuais. Simultaneamente, seu co- nhecimento de tipo de conhecimento, o leitor identifica/percebe os signi-
substância (conhecimento cultural, pragmá- tico e do ficados (valores) lingüísticos (relativamente objetivos e es-
assunto específico) cria-lhe determinadas expecta- tivas táveis) do texto e, ao mesmo tempo, através do segundo
sobre a estrutura conceptual do texto como um todo. Com tipo de conhecimento, ele produz interpretações subjetivas
essas expectativas, durante o processo da leitura, ele da compreensão leitora.
poderá fazer predições corretas sobre a interpretação do Qual a implicação desse modelo de leitura para a
sig- nificado global do texto e atingir, assim, a teo- ria da tradução? Com base nessa perspectiva, já que
compreensão, ou seja, uma reconstrução (ou produção) do todo tradutor é, antes, um leitor, toda tradução terá que
significado do tex- to como um todo. A seta apontando ser, em
da Compreensão de
Rav. da Latras - N0. 20 - V0I. 1/2 - jan/daz. 1008 11
primeiro lugar, um processo de identificação e de cassez ou alto preço, duas ou três vezes [...] mediante
interpreta- ção/produção de significados, em relação à raspagem do texto anterior” (Arrojo, 1986:23)7
compreensão leitora do texto original e, em segundo lugar,
um processo de substituição e de produção de significados Essa visão é unilateral, pois, se, por um lado,
em relação ao texto de chegada.6 enfatiza o aspecto da interpretação subjetiva da leitura e da
Analogamente ao processo de leitura, o ato tradução de um texto, por outro lado, pretende anular o
tradutório envolve uma interação (ou negociação) entre outro pólo da verdade, ou seja, o aspecto objetivo da
leitor-tradutor e texto, e entre conhecimento lingüístico, de compreensão e tra- dução de um texto.
um lado, e co- nhecimento não lingüístico, de outro, tanto Como já afirmamos alhures (Souza, 1999) e como
em relação ao texto de partida quanto em relação ao texto foi visto em seções anteriores deste artigo, o elemento da
de chegada. Gra- ças ao primeiro tipo de conhecimento, o interpretação criativa está presente não somente em qual-
tradutor identifica e substitui os significados (valores) quer tradução, mas, antes, em qualquer tipo de
lingüísticos (relativamen- te objetivos e estáveis) da língua processamento textual, uma vez que a compreensão de um
de partida por significados equivalentes (também texto sempre en- volve negociação entre autor, texto e
relativamente objetivos e estáveis) da língua de chegada e, leitor. Em outros ter- mos, o sentido de um texto não está
simultaneamente, graças ao segundo tipo de conhecimento nem totalmente no autor, nem totalmente no texto, nem
(e demais liberdades e/ou finalidades tradutórias), ele totalmente no leitor. É o resul- tado de uma negociação
produz o lado subjetivo/interpretativo de sua tradução. O entre todas as partes envolvidas. Inversamente, podemos
ato tradutório envolve, em suma, dois processos afirmar que o sentido de um texto está parcialmente: no
complementares e simultâneos, mas distintos: substituição autor, no texto (enquanto objeto lingüístico), no leitor e no
(relativamente objetiva/literal) e produção (relativamente contexto situacional. E o sentido de um texto traduzido
subjetiva/livre) de significados. não pode fugir a esta regra.
6
A expressão “substituição de significados” está sendo usada, aqui, no sentido de “reposição dos significados (valores) lingüísticos” da LF, identificados no ato da
compreensão leitora, por significados (valores) lingüísticos equivalentes da LM, conforme a definição lingüística de tradução proposta por Catford
(1980:22).
9
Adaptado de uma palestra que ouvimos.
10
Esse texto foi extraído da Revista Visão Espírita, vol. 2, nº 17, 1999, p. 39.
1. Por que o nome “teorias” da tradução, e não “teoria” da balho terá de se enquadrar dentro das normas que
tradução? regem a produção de trabalho, estabelecidas, explícita
ou im- plicitamente, pela comunidade sócio-cultural a
R. Porque “ainda não existe nenhuma Teoria Unificada que per- tence. (Arrojo, ibid.)
da Tradução no sentido técnico de ‘um conjunto
coerente de proposições gerais usadas como princípios 6. Explique a polissemia do termo “tradução”.
para explicar uma classe de fenômenos’, mas existem
algumas “teori- as” no sentido lato de ‘um conjunto de R. O termo “tradução” é polissêmico e pode significar:
princípios úteis para compreender a natureza da a) o produto (ou seja, o texto traduzido);
tradução ou para esta- belecer critérios de avaliação de b) o processo do ato tradutório;
um texto traduzido’ ” (Nida, 1993:155). c) o ofício (a atividade de traduzir); e
d) a disciplina (a ciência que estuda o fenômeno da
2. Distinga “teoria” de “modelo”. tradução).
R. “Teoria” é um conjunto de proposições integradas, 7. Qual a controvérsia mais antiga em torno da tradução?
coe- rentes, para explicar um determinado fenômeno,
enquanto “modelo” é uma representação externa (uma R. “Tradução literal” (ou seja: tradução do estilo e do
fórmula, um diagrama, um esquema, etc.) de uma modo de escrever do autor original) vs. “tradução
teoria. (Cf. Bell, 1991:24-25). livre” (ou seja: tradução só do sentido e do espírito do
original. (Bell, 1991:11) Ao conceito de tradução literal
3. O que é “abordagem”? está asso- ciada a idéia de tradução “fiel” e ao
conceito de tradu- ção livre, a idéia de tradução
R. É a maneira de encarar (de ver ou de estudar) um “infiel”.
assun- to ou um fenômeno. Muitas vezes, se usa esse
termo como sinônimo de teoria. 8. Como podemos especificar a competência do tradutor?
(Que tipos de conhecimentos e de habilidades deve o
4. Pode haver teoria separada da prática e, vice-versa, prá- tra- dutor possuir?)
tica sem teoria?
R. a) conhecimento de duas línguas (nos níveis fonético-
R. Em termos absolutos, dizemos que não. Toda prática fonológico, morfossintático, semântico, retórico/dis-
su- põe e gera teoria e toda boa teoria gera prática, cursivo, pragmático, ortográfico e estilístico);
donde o famoso aforismo de Kurt Lewin: ‘Nada existe de
mais prá- tico do que uma boa teoria’ (apud Ur, 1996:4) b) conhecimento de duas culturas;
(Ver tam- bém Arrojo, 1992:107-112). c) conhecimento da área do assunto;
d) conhecimento contrastivo (lingüístico e cultural);
5. Qual a relação entre teoria/prática e ideologia? (O que é e) conhecimento do mundo;
ideologia?) f) habilidades de leitura e de composição (redação);
g) competência sociolingüística;
R. Ideologia é o conjunto de convicções que produzem os h) conhecimento das teorias da comunicaçào e da
significados que impomos aos objetos e constituem a infor- mação;
pers- pectiva a partir da qual teorizamos e classificamos i) qualidades artísticas (inatas ou adquiridas);
o mun- do (Arrojo, op. cit., p. 111-112). Assim, tanto a
j) conhecimento de língüistica textual;
teoria quan- to a prática são ideológicas;
k) conhecimento da arte literária;
exemplificando com a tra- dução, quando um tradutor
l) conhecimento de princípios e de procedimentos técni-
produz uma tradução, seu tra-
cos da tradução; etc.
12
Esse questionário vem sendo utilizado na disciplina Teorias da Tradução, por nós ministrada no Curso de Mestrado em Lingüística Aplicada da
Universidade Estadual do Ceará (UECE).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS