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FUTUR

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Literatura & Tecnologia

A Cidade do Átomo
Thiago Ambrósio Lage
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A Cidade do Átomo

Thiago Ambrósio Lage

No aeroporto de Munique, aproveito para esticar as pernas


e caminhar um pouco após o voo de quase doze horas saindo
de São Paulo. Um voo insone, preenchido com a leitura de
fichas e projetos. Depois desta escala, mais um voo de pouco
mais de duas horas, o mesmo tempo de carro e chegarei
exausta no destino. Mais de um dia de viagem contando desde
Foz do Iguaçu. Sem saber meia palavra de alemão, consigo
me guiar com a ajuda das placas bilíngues em russo.
Meu russo não é perfeito, e apesar de ter seguido
estudando após o segundo grau, tenho alguma dificuldade
especialmente em conversação. Me disseram que não seria
tão importante na área de Engenharia Ambiental, mas graças
ao russo, e também a alguns estágios, consegui meus cargos
no Ministério do Meio Ambiente, e agora no de Minas, Energia
e Infraestrutura. E hoje viajo ao exterior pela primeira vez,
substituindo às pressas o meu diretor. Me ligaram no meio
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da noite, ele tinha sofrido um infarto e estava hospitalizado,


em observação. Em poucas horas arrumei a mala, peguei as
anotações dele com a filha e corri para o aeroporto. Alguns
dos projetos eu acompanhei de perto, e algumas propostas
eu só vi por alto. A semana será longa.
A comunicação na lanchonete do aeroporto é um pouco
mais difícil, seja pelo meu sotaque ou o do solícito caixa: um
rapaz loiro de olhos claros como a maioria aqui. Eu sou a maior
exceção com minha pele castanho-claro avermelhada, olhos
castanhos e cabelo de um preto profundo, azulado, amarrado
num coque. Entre palavras quebradas e mímica, consigo um
copo grande de cerveja e um pão com linguiça. Antes de
partir, fui alertada que enjoaria de comer pão e batata na
próxima semana e parece que o cardápio já será este bem
antes de chegar à União Soviética. No televisor, uma jovem
repórter tem suas falas empolgadas intercaladas com vídeos
da queda do muro de Berlim. Já se vão vinte e cinco anos e
parece que 1989 foi ontem. Lembro de ainda criança ver no
telejornal as imagens de como a Alemanha Oriental recebeu
de braços abertos a Alemanha Ocidental no processo de
unificação. Verificando a hora no grande relógio analógico
acima da televisão, me apresso. Próxima parada, Kiev!
No aeroporto internacional de Kiev, um rapaz muito branco,
moreno de olhos azuis e uniforme militar me aguarda com
uma placa na mão: Dra. Lúcia Ferreira da Silva. Me identifico
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e ele se apresenta: Yakiv Nudylo, o motorista responsável por


me levar até o destino. Pergunto a hora local para acertar
o relógio de pulso e me adaptar logo, resistindo a fazer as
contas de fuso horário. O céu está limpo, mas o brilho do sol
ucraniano é insuficiente para espantar o frio. Mantenho o
casaco que vestia no avião. O auge do verão soviético era
pouca coisa mais quente que meus invernos.
Observo a estranha paisagem pontilhada de plantas
desconhecidas no caminho para Pripyat. Leio as placas
subvocalizando de forma discreta, e repasso mentalmente os
detalhes das apresentações e a programação do evento: a
VII Cúpula Mundial de Matrizes Energéticas. Todos os países
alinhados à União Soviética enviaram representantes. Não sei
se foi sorte ou azar eu ter vindo. A construção de mais oito usinas
nucleares no Brasil está em jogo e precisarei ser habilidosa
para convencer os soviéticos a cederem mais mão de obra e
tecnologia. Meu objetivo tem uma margem de segurança: se
fecharmos em cinco usinas está bom o suficiente. Pripyat, a
Cidade do Átomo, se aproxima com seus icônicos conjuntos
habitacionais padronizados. No Brasil, algumas cidades os
adotaram com poucas adaptações devido ao nosso clima
mais quente.
O cronograma é apertado, mas mesmo assim inclui visitas
ao Museu Nuclear e à usina-modelo de Chernobyl, onde foi
descoberto e aprimorado o modelo de usina C-123.47 e os
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reatores de terceira e quarta geração. Cresci ouvindo histórias


sobre estes avanços e por pouco não me tornei engenheira ou
física nuclear. De certa forma, fui um pouco para esta área
em meu doutorado.
No dormitório, me apresentam a minha colega de quarto
dos próximos dias: uma física tchecoslovaca baixinha e com
óculos grossos chamada Vlasta Svoboda. Trocamos poucas
palavras em russo enquanto nos preparamos para a cerimônia
de abertura.
O desfile militar é rápido, mas nem assim prende a minha
atenção: estou mais interessada nas arquibancadas, em
identificar entre o público os membros do comitê que
precisarei convencer.
Seguimos para o auditório, onde uma apresentação do
Coro do Exército Vermelho antecede aos discursos das
autoridades locais. Enquanto as vozes potentes dos cantores
trazem os últimos acordes da Korobeiniki, um painel com um
imenso mapa-múndi é desfraldado ao fundo do palco. Nele,
coloridos em vermelho, todos os países signatários do Pacto
de Pripyat, e em laranja os observadores. A América do Sul
me enche de orgulho: a área vermelha engloba Brasil, Chile,
Bolívia, Equador, Colômbia, Venezuela e Guiana. Sonho com
o dia em que o Paraguai esteja também colorido. Na África,
o vermelho cobre boa parte das costas oriental e ocidental
e alguns países do Norte. Isso me lembra da mesa redonda
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de que participarei com os companheiros de todos os países


lusófonos, com exceção de Portugal. Mais uma mesa para a
qual não me preparei. Serão dias difíceis, espero que bebam
café por aqui.
No percurso do auditório ao refeitório, observo os reflexos
dourados e avermelhados do pôr do sol e imagino que seja
algo entre seis e sete da noite. O relógio me diz que já são
quase nove, a ardência em meus olhos que é alta madrugada
e o buraco em meu estômago que é a hora do almoço.
Na minha mesa, se sentam alguns cientistas soviéticos,
chineses e do sudeste asiático. Sou a mais nova. Não da
mesa, mas do refeitório. Incapaz de acompanhar a conversa
de nativos e de lidar com sotaques carregados, participo
com monossílabos e frases curtas e me concentro na comida.
Pra piorar, estou em uma mesa de entusiastas de energias
alternativas e ditas renováveis. Como primitivos, se encantam
com o vento e o sol, enquanto já domesticamos o urânio e
logo nos encaminharemos para o stellarator ou a fusão a frio.
Se tivesse ficado na mesa dos camaradas africanos, poderia
conseguir algum apoio para pressionar os soviéticos, ou ao
menos uma conversa mais descontraída em português.
Resistindo ao impulso de desabotoar a calça, raspo o molho
do strogonoff do prato com um pedacinho de pão e me deixo
esticar na cadeira. O vozerio das mesas preenche o salão
com animadas conversas em russo. Cansada do esforço de
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entender e me fazer entender no idioma estrangeiro, e zonza


com tanto vinho, solto num suspiro quase inaudível:
− Nossa, comi que nem padre.
− Come padre? O que significa isso? − pergunta com sotaque
carregado a cientista russa sentada ao meu lado, que tinha
passado quase toda a noite calada.
− Ora, você fala português? − Me aprumo na cadeira,
prestando nova atenção à minha vizinha, a engenheira
eletricista Yekaterina Azarova, enquanto tento explicar a ela
as expressões idiomáticas brasileiras de origem católica.
Satisfeita com minha explicação, ela desenrola muito
bem o português, apesar do sotaque. Me explica que já
foi casada com um brasileiro e chegou a morar um tempo
no interior de Minas Gerais. Quando a conversa vai para o
trabalho, encontro logo algumas divergências. Yekaterina
é entusiasta da energia hidrelétrica e a depender dela seu
país incorporaria mais hidrelétricas na matriz, ao passo que
eu… vivo as consequências de Itaipu. Além de todo o impacto
ambiental direto da cobertura das águas, também perdi meu
avô aos três anos de idade no acidente da ponte no Salto
de Sete Quedas causado pelo enchimento da represa. Se
tivéssemos acesso às usinas C-123.47 naquela época, quem
sabe a hidrelétrica não seria desnecessária e eu poderia ter
meu avô ainda aqui?
Enfadada após tantos voos, eventos e vodca, me despeço
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de Yekaterina antes que nossas discordâncias gerem atrito,


e sigo para o alojamento. Desorientada entre as horas e
fusos, penso em ligar para o Brasil, mas nem sei como fazer
isso e muito menos as horas lá. Escovo os dentes e observo
a água escoar pelo ralo. É isso, tenho que aproveitar esta
oportunidade! O sono me abandona e dá espaço a uma
ideia que percorre meu corpo como uma corrente. Uma ideia
ousada, talvez tão ousada quanto as dos pioneiros da Cidade
do Átomo. Preciso fazer cálculos e projeções, e tem que ser
agora. Minha colega de quarto ressona com o vigor de quem
bebeu dois ou três copos de vodca a mais do que deveria, e
para não incomodá-la sigo para a área de convivência com
meu notebook. Na falta de um bom café me contento com a
alternativa local, um chá preto bem forte. Para acompanhar,
mapas, diagramas e planilhas.
O nascer do sol indica um novo dia, mas ainda faltam
algumas horas para o café da manhã ser servido. Corro
para a cama com a cabeça a mil, mas com a esperança de
dormir três ou quatro horas antes do primeiro compromisso
da manhã. Preciso de no mínimo catorze usinas. Deveria
falar com Brasília, mas não é prerrogativa do cargo ao qual
represento algum grau de autonomia? Durmo decidida a
pedir perdão ao invés de permissão. Seja o que Deus quiser.
Talvez o meu russo travado na noite anterior fosse excesso
de sono, falta de costume ou ausência de vodka e chá preto.
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Ou de um forte objetivo. Ou tudo isso. Sou outra mulher:


navego entre os eventos e mesas, deslizando de um círculo
a outro no primeiro dia de evento. Apresento os relatórios
e a atual estrutura de nossa matriz energética com poucos
deslizes, e sou elogiada por todos. Enfatizo a necessidade de
uma estrutura descentralizada com usinas de pequeno porte
devido à extensão territorial brasileira. Assim lanço a semente
dos argumentos que retomarei amanhã para defender a
liberação da instalação de um número expressivo de usinas
no Brasil.
Para recobrar a insônia da noite anterior, evito a
confraternização no fim do dia. Com o céu ainda claro
fico na cama imaginando conversas futuras. Em dois dias
terei conversas cruciais e uma resposta que poderá alterar
radicalmente a minha região, o Brasil e sua relação com
países vizinhos.
No segundo dia já consigo identificar com facilidade as
pessoas com quem posso contar. Cheguei a comentar detalhes
do meu plano com os companheiros de Moçambique e Angola
após nossa mesa redonda, atraindo a simpatia de um e a
desconfiança do outro. Estou escalada para o grupo que fará
as visitas guiadas hoje, e aproveito cada momento para gastar
meu russo e minha simpatia com os representantes de outros
países. Amanhã apresentaremos nossas propostas, e pedirei
dezessete usinas. Catorze mais a margem de segurança.
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Chega o grande dia, e com ele a assembleia. Todos os


países tentam tomar um pouco dos recursos humanos e
tecnológicos da URSS para si. Eu não sou diferente em minha
defesa apaixonada da energia nuclear e de como é essencial
ao desenvolvimento do Brasil. Insisto no rótulo de país
continental, algo que não impressiona em nada os soviéticos
ou os chineses, mas comove com facilidade os delegados
de paisecos sem território ou população relevante. Enfatizo
a implantação de grande quantidade de usinas como algo
vital ao povoamento de regiões isoladas e à criação de polos
biotecnológicos, que por sua vez beneficia a comunidade
socialista internacional. Apresento a preservação ambiental
não como antagônica ao progresso, mas complementar se
facultada pela energia nuclear.
Sigo falando de forma sutil de nossa influência na América
do Sul e nos países lusófonos da África. E de forma menos
sutil do Paraguai. A noite mal dormida e os ensaios mentais a
cada intervalo entre reuniões, palestras e refeições mostram
seu resultado e consigo mostrar com segurança os mapas,
tabelas e projeções. Minha demanda são vinte usinas. A
contrapartida são o aumento de nossa influência no Paraguai,
enfraquecendo a sua matriz energética, e a reversão de
impactos ambientais de hidrelétricas, especialmente Itaipu.
Finalizo com um vídeo antigo do Salto de Sete Quedas, cujo
restauro pode ser um presente nosso para o mundo. Afinal
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de contas, o turismo é uma indústria sustentável, reforço sem


acreditar muito.
Quebrando o protocolo, alguns camaradas aplaudem.
Percebo Yekaterina revirar os olhos. Apesar da pressão dos
delegados, somos apenas um corpo consultivo, e quem decide
são os soviéticos, a portas fechadas. A tarde de espera será
longa.
− Belas palavras, mas ouso discordar de você em diversos
pontos. − Yekaterina se aproxima de mim durante o almoço,
compenetrada. − Uma diversificação da matriz poderia ser
mais interessante do ponto de vista estratégico.
− A represa da usina seria esvaziada, mas ela continuaria
lá. Poderia ser reativada caso necessário. Na época das
chuvas o lago se encheria em poucos dias. − Largo o garfo
ainda espetado em uma batata no prato.
− Interessante, mas não é bobagem abrir mão desta
produção de energia neste momento? − Ela puxa uma cadeira
e se senta de frente para mim.
− Creio que o retorno no turismo e o efeito positivo na
recuperação da área de represa compensará com sobra.
Eu projetei uma área para reflorestamento e outra para
agricultura de forma a tirar proveito do solo fértil, rico em
sedimentos. Eu não apresentei todos os dados hoje pela
restrição de tempo − blefo, já que este desdobramento
eu apenas teorizei, mas em momento algum estimei as
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consequências de forma quantitativa.


− Mas o número de usinas necessárias é muito elevado e…
− É exatamente este o objetivo − interrompo −, descentralizar
a rede e ter uma dependência menor de linhas de transmissão
a longas distâncias. Isso inclusive torna o sistema mais robusto
em caso de ataques. Com a Argentina nunca se sabe.
A conversa se desenrola por quase meia hora. Não me
recordo da última vez em que fui envolvida em uma conversa
tão intelectualmente estimulante, acho que foi na minha defesa
de tese. Se ela não sair convencida da minha proposta, pelo
menos entenderá meu ponto. Trocamos contatos para que eu
envie a ela uma cópia de minha tese sobre a comparação dos
impactos de usinas nucleares, hidrelétricas e termelétricas, e
quando digo que parto no dia seguinte, juro que percebo um
certo ar de desapontamento.
À tarde, consolidamos os relatórios dos grupos de trabalho,
mas minha mente insiste em vagar até a sala onde se reúnem os
soviéticos. Alguns colegas vêm me parabenizar pela proposta
da manhã e por meu afinco na defesa da energia nuclear.
Minhas idas ao banheiro são a desculpa para observar a
porta da sala de reuniões.
Pouco depois das dezesseis horas, as portas se abrem e me
surpreendo ao ver Yekaterina saindo de lá. Enquanto seguimos
todos para o auditório, me aproximo dela e pergunto em
português:
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− E aí? Aprovaram minha requisição?


− Eu fui voto vencido − ela diz, resignada, e me entrega
um cartão com um número escrito à caneta vermelha. − É
meu celular pessoal, me escreva assim que a cerimônia de
encerramento acabar. Quero conversar com você. Sem
conflito de interesses. − Ela pisca e se afasta conversando alto,
em russo, amenidades com os outros membros do comitê.
Me sento no fundo do auditório lotado para acompanhar
a comunicação das propostas contempladas e o plano de
desenvolvimento para os próximos três anos. Se Yekaterina foi
voto vencido, negaram minha concessão, a não ser que ela
tenha votado contra. Não consigo decifrar a fisionomia dessa
mulher e muito menos sua piscadela. De qualquer forma, a
procurarei. A palavra Brasil ecoa nos alto-falantes e corta
minha linha de pensamento.
− Brasil. Concedida permissão de transferência de tecnologia
e emprego de mão de obra soviética para a implantação de
quinze usinas.
Quinze. As catorze que precisava e mais uma de brinde.
Aplausos entusiasmados. Um passo importante e definitivo em
direção à conversão total de nossa matriz à energia nuclear
será dado em poucos anos. Adeus, hidrelétricas! Procuro os
olhos de Yekaterina na bancada, e quando eles cruzam com
os meus, ela sorri e faz um gesto de telefone de forma sutil.
Sorrio de volta, sinto minhas bochechas esquentarem e aponto
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para o meu telefone. Agora sim, sem conflito de interesses.


Meu avô, esteja onde estiver, deve estar sorrindo também.
Demorou, mas vou devolver o Salto de Sete Quedas a ele.

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Thiago Ambrósio Lage é um professor


e cientista mineiro, hoje morando
no Tocantins. Ele escreve textos de
fantasia e ficção científica que já foram
publicados em sites, na primeira edição
da Eita! Magazine, e na coletânea de
contos de ficção científica de autores
LGBTQIA+ intitulada Violetas, unicórnios &
rinocerontes, lançada pela Patuá Editora.

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