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Revista Pistis & Praxis: Teologia e

Pastoral
ISSN: 1984-3755
pistis.praxis@pucpr.br
Pontifícia Universidade Católica do
Paraná
Brasil

de Itoz, Sonia
Ethos, fato religioso e diversidade: como selecionar conteúdos e trabalhar estratégias
Revista Pistis & Praxis: Teologia e Pastoral, vol. 6, núm. 2, mayo-agosto, 2014, pp. 399-
421
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Curitiba, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=449748251003

Como citar este artigo


Número completo
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doi: 10.7213/revistapistispraxis.06.002.DS02

ISSN 1984-3755
Licenciado sob uma Licença Creative Commons

[T]
Ethos, fato religioso e diversidade: como
selecionar conteúdos e trabalhar estratégias
[I]
Ethos, religious fact and diversity: how to select
content and work with strategies

[A]
Sonia de Itoz

Mestra em Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP),
São Paulo, SP – Brasil, e-mail: soniadeitoz@gmail.com

Resumo

Propomos com este ensaio discutir questões metodológicas do Ensino Religioso no


que se refere a conteúdos e estratégias. Tomamos como referência o eixo temático
Ethos, pautando-nos primeiramente por uma definição e compreensão de seu sentido
e significado, e discutindo o que implica a construção da figura de um “alguém” e de
uma coletividade situados na cultura humana. Entendemos aqui que o indivíduo e as
organizações socioculturais tornam-se o lugar-espaço da manifestação de existir, nos
quais também se configura a concretude do fato religioso. Daí a importância do tra-
balho com a diversidade de concepções, de organizações e de expressões para que a
escola e o Ensino Religioso colaborem com a formação integral do indivíduo-cidadão.
Em seguida, partimos das indagações de cunho pedagógico “o quê?” e “como?” e
buscamos situar uma compreensão de conteúdos e estratégias, para o trabalho do

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componente curricular Ensino Religioso. Entendemos, assim, ser necessário ter clare-
za e conhecimento para escolher, eleger e selecionar, para cada faixa etária, conteú-
dos adequados e apropriados, e saber que estratégias desenvolver para um ensino e
uma aprendizagem significativos. A premissa básica e primeira que se coloca é que o
trabalho pedagógico-educacional do Ensino Religioso deve contribuir com o currículo
escolar e com a formação de um cidadão integrado e atuante. Por consequência, o
indivíduo elabora instrumentos de leitura de mundo e insere-se no contexto da própria
vida, a partir da apropriação do conhecimento, contribuindo no respeito ao outro e ao
diferente e desenvolvendo relações de paz e de dignidade para todos.

Palavras-chave: Ethos. Ensino Religioso. Conteúdos. Estratégias.

Abstract

The objective of this essay is to discuss methodological issues in Religious Education in


regards to content and strategies. We will focus on Ethos as the main theme, starting
by its definition, significance and meaning, and then discuss the construction of the
“person” and of a collective whole and their implications in a human cultural context.
The individual and sociocultural organizations are the place and space for the mani-
festation of existence, in which the religious fact also materializes. Thus the impor-
tance of working with diversity in conception, organization and expression, wherewith
the school and Religious Education become contributing agents in the formation of
the citizen and person. We then move from the pedagogical questions “what?” and
“how?” to define contents and strategies for teaching Religious Education as a cur-
riculum subject. Therefore, one must have ample understanding and knowledge in
order to choose, select and designate appropriate and adequate content for different
ages ranges, as well as to define the teaching strategies for significant learning. The
foundation and first premise is that the educational and pedagogical work of Religious
Education should contribute to the school curriculum and to the upbringing of an in-
tegrated and active person. Thereby the individual develops tools for understanding
the world within his life context, by acquiring knowledge, respecting others and their
diversity and developing relationships of peace and dignity for all.

Keywords: Ethos. Religious Education. Content. Strategies.

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Introdução

As diretrizes do Ensino Fundamental homologadas pelo Conselho


Nacional de Educação (BRASIL, 1998) tratam, em seus artigos 6º e 7º, dos
princípios que devem nortear as ações pedagógicas da Educação Básica e
de como tratar da organização dos componentes curriculares, entre os
quais se insere também o Ensino Religioso. Os princípios colocados para
a elaboração e desenvolvimento das ações pedagógicas referem-se aos as-
pectos éticos, políticos e estéticos. São eles:

1) Éticos: de justiça, solidariedade, liberdade e autonomia, de respeito


à dignidade da pessoa humana e de compromisso com a promoção
do bem de todos, contribuindo para combater e eliminar quaisquer
manifestações de preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação.
2) Políticos: de reconhecimento dos direitos e deveres de cidadania,
de respeito ao bem comum e à preservação do regime democrá-
tico e dos recursos ambientais; da busca da equidade no acesso à
educação, à saúde, ao trabalho, aos bens culturais e outros bene-
fícios; da exigência de diversidade de tratamento para assegurar a
igualdade de direitos entre os alunos que apresentam diferentes
necessidades; da redução da pobreza e das desigualdades sociais
e regionais.
3) Estéticos: do cultivo da sensibilidade juntamente com o da racio-
nalidade; do enriquecimento das formas de expressão e do exer-
cício da criatividade; da valorização das diferentes manifestações
culturais, especialmente a da cultura brasileira; da construção de
identidades plurais e solidárias.

Esses princípios devem colaborar para desenvolver o educando,


assegurar-lhe a formação básica, indispensável para o exercício da cidada-
nia, e fornecer-lhe os meios para progredir no mundo do trabalho e para
dar continuidade aos estudos, de acordo com os objetivos propostos para
essa etapa da escolarização, ou seja:

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-- o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios


básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo;
-- a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político,
das artes, da tecnologia e dos valores em que se fundamenta a
sociedade;
-- a aquisição de conhecimentos e habilidades,  e a formação de
atitudes e valores como instrumentos para uma visão crítica do
mundo;
-- o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade
humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social.

Os conteúdos, no componente curricular Ensino Religioso, têm


como referência a compreensão do fenômeno humano-religioso, o que
desencadeia um trabalho na perspectiva da compreensão de si mesmo,
do outro, do fenômeno religioso e do mundo. As estratégias que se colo-
cam, nessa perspectiva, são as de perceber e tratar o educando como co-
participante do processo, pois só assim ele construirá um conhecimento
que irá subsidiá-lo frente à vida.
As ações e práticas pedagógicas do Ensino Religioso precisam ser
motivadoras de uma aprendizagem que se coloca no universo das diver-
sidades e, por meio delas, levar ao desenvolvimento de cidadãos críticos
e que pensam no bem comum. Tratar da compreensão de si mesmo, do
outro, do mundo e do fenômeno religioso segundo a proposta de conte-
údos é oportunizar modos de pensar, de discutir, de perceber e de cons-
truir valores e de definir comportamentos de respeito à pluralidade. É
possibilitar o desenvolvimento do imaginário, da criatividade e de um
senso crítico-politizado.
A sociedade do conhecimento precisa ser antes, e acima de tudo,
uma sociedade de humanos, formada por indivíduos com pleno acesso
à informação, porém humanizados, não rotulados, sensíveis e que exer-
çam uma cidadania soberana a qualquer movimento ou credo. Propor
uma reflexão sobre a seleção de conteúdos e as estratégias de trabalho
no Ensino Religioso é colocar em pauta a função social de educar e o
compromisso com o processo de construir um ser humano sensível,
aberto e aprendiz de práticas cidadãs-solidárias.

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O processo de sensibilização para o conhecimento de si, do outro,


do mundo e do fenômeno religioso consiste em desencadear na ação
pedagógico-educacional do Ensino Religioso um encontro efetivo e afe-
tivo com um aprendizado marcante para a construção de um indivíduo
autônomo e constituidor da pluralidade que lhe é peculiar.
É por isso que o aprendizado primordial do Ensino Religioso se
coloca nas condições de: possibilitar sensibilizações que levem a uma
ação comprometida com a dignidade do outro; permitir a criação e in-
corporação de imagens afetivo-mentais do bem, do bom e do belo; fazer
a correlação entre as diversas experiências e as manifestações religiosas;
possibilitar o conhecimento do outro e de outras experiências; estabe-
lecer relações de aprendizado e de respeito à diversidade; vivenciar a
dimensão da ética.
Didaticamente, a eleição ou seleção dos conteúdos que fomentam
a construção de valores perpassa pelo conhecimento e pela elaboração
de novos horizontes para o aprendiz e, por isso, suscita pensar estraté-
gias significativas para que se transforme em aprendizado. No entanto,
os conteúdos pensados e propostos para avançar no aprendizado sem-
pre irão pressupor partir dos conhecimentos já constituídos no indiví-
duo e na realidade local.
E, se ensinar é levar a apreender, então é necessário apresentar
o contexto conceitual do conteúdo com recursos que deem sentido ao
aprendizado e manifestem as finalidades (os significados) do conheci-
mento. Como processo pedagógico, o conteúdo selecionado é explorado
em todas as suas dimensões e possibilidades, para que se torne uma
rede que leva a um ambiente mais amplo de conhecimento. Como es-
tratégia, é preciso garantir a autonomia de quem conhece para buscar,
aprofundar e aprender e, assim, dê-se a dinâmica do conhecimento.
De qualquer forma, o conteúdo é só o pontapé inicial para um
aprendizado que deverá ser bem maior. Ele precisa remeter a algo que
possa propor um sentido para estar no mundo e instigar as mais diver-
sas correlações. Nesse aspecto, educador e educando apoiam-se mutu-
amente para aprender e para ensinar, e podem interagir e compartilhar
diversos recursos e diferentes aprendizados. O aprender é algo colaborati-
vo, compartilhado pelo outro, pela cultura e história das quais se é parte.

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Conteúdos aliados a estratégias significantes provocam no indi-


víduo um conhecer melhor e mais amplo, promovem relacionamentos
e intercâmbios de sínteses, desenvolvem o senso crítico e a construção
de valores.
A seleção de conteúdos tem o objetivo de obter outras informa-
ções, socializar conhecimentos elaborados no processo histórico, ter
contato e conhecer culturas, apreender e propor novas sistematizações.
Serve, enfim, como ferramenta e recurso para se adentrar ao outro e às
culturas no seu tempo e história, propõe a troca e a colaboração, o que
vai organizando o pensamento e sistematizando o conhecimento.
Quanto aos critérios para a seleção de conteúdos, é importante
destacar que o referencial primeiro é o ser humano, suas característi-
cas, suas capacidades, suas necessidades, seu contexto, sua cultura e sua
história.

Ethos como eixo temático e conteúdo

Para Amossy (2005, p.10), “os antigos designavam pelo termo


Ethos a construção de uma imagem de si”, o que implica a constituição
da figura de um alguém. Mas, correlativamente, a formação da imagem
de um alguém só pode se dar mediante um outro. Ethos então tem a ver
com construção de uma imagem, daquilo que não é dito explicitamente,
mas que, logicamente, precisa ser evidenciado por um caráter e tornado
real numa corporeidade, no sentido diverso de corpo, o da integridade
humana, tanto na subjetividade como nos comportamentos.
Imagem é o que é criado pelo destinatário — o “outro”—, du-
rante o processo de mostrar-se, de “manifestar-se” e de “aparecer” de
um alguém. É por isso que caráter e corporeidade não se separam, já
que são os diretamente responsáveis por mostrar e autorizar a cons-
trução da imagem ou daquilo que se manifesta de um indivíduo. E é
um corpo físico, por sua vez, que dá e garante legitimidade ao caráter e
à corporeidade. Caráter e corporeidade, no entanto, para serem reais,

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apoiam-se nas representações1 do indivíduo e nos modelos e conven-


ções de uma cultura.
Portanto, a prova da existência de alguém será elaborada no de-
correr da construção do próprio caráter e dado numa corporeidade es-
pecífica. Isso vai acontecendo à medida que a pessoa for se inserindo na
vida, tratando das questões do cotidiano, organizando inserções, estando
presente, construindo argumentos que compartilhem crenças e, assim,
demonstre certa identificação e diferenciação dos seus semelhantes.
A relação caráter-corporeidade coloca-se, assim, na condição da
apropriação de um “outro” Ethos que, ao permitir formar uma represen-
tação dinâmica e uma assimilação de quem se apresenta, estabelece o Eu-
Tu. O resultado desse duplo processo se dá numa apropriação do outro e
permite a incorporação imaginária desse Eu-Tu.
O termo Ethos aponta, então, para o aspecto subjetivo, ou no que
está centrado no comportamento individual do sujeito. E aponta ainda
para o aspecto do intersubjetivo, ou no que está num modo coletivo de
vida. Ethos, então, é a própria morada-corpo do ser e do existir humano.
Morada, no sentido de casa-espaço, onde se instaura o indivíduo e
ainda onde se configura a sua existência a partir de um processo de mão
dupla, que vai do coletivo para o indivíduo (que o internaliza de forma
própria), e que volta do indivíduo para o coletivo, alterando, potencial-
mente, o Ethos estabelecido da ética de uma cultura. A morada pode ser
também o local onde se dá o processo formador do hábito, da espacialida-
de interna do indivíduo e do locus da cultura, numa incessante construção,

“Nas sociedades modernas, somos diariamente confrontados com uma grande massa de informações. As
1

novas questões e os eventos que surgem no horizonte social frequentemente exigem, por nos afetarem de
alguma maneira, que busquemos compreendê-los, aproximando-os daquilo que já conhecemos, usando
palavras que fazem parte de nosso repertório. Nas conversações diárias, em casa, no trabalho, com os
amigos, somos instados a nos manifestar sobre eles procurando explicações, fazendo julgamentos e tomando
posições. Estas interações sociais vão criando ‘universos consensuais’ no âmbito dos quais as novas
representações vão sendo produzidas e comunicadas, passando a fazer parte desse universo não mais como
simples opiniões, mas como verdadeiras ‘teorias’ do senso comum, construções esquemáticas que visam dar
conta da complexidade do objeto, facilitar a comunicação e orientar condutas. Essas ‘teorias’ ajudam a forjar
a identidade grupal e o sentimento de pertencimento do indivíduo ao grupo” (MAZZOTTI, 2008, p. 21).

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nunca pronta e acabada, já que não há indivíduo nem sociedade que possa
afirmar-se pronto ou completo.
O “Ethos como ninho, identidade, coerência, consciência profun-
da remete para a profundidade maior dos seres humanos, lá onde eles se
encontram com o divino” (MOSER; SOARES, 2006, p. 10), tornando-se
ponto de partida para a compreensão do ser humano, de seus alicerces
interno (subjetivo) e externo (objetivo), que o sustentam. A definição de
Ethos segundo Houaiss (2011) é: “conjunto de costumes e hábitos funda-
mentais, no âmbito do comportamento (instituições, afazeres) e da cultu-
ra (valores, ideias ou crenças), características, costumes e hábitos de uma
determinada coletividade, época ou região” que designa “caráter pessoal;
padrão relativamente constante de disposições morais, afetivas, compor-
tamentais e intelectivas de um indivíduo”.
Nessa dimensão e significado, Ethos torna-se um dos eixos estrutu-
rantes para o trabalho de Ensino Religioso. Pois é a partir do Ethos, ou do
jeito de ser e viver dos indivíduos e grupos, que se estabelece o entendimen-
to para a moral, os costumes e a dimensão de religiosidade no seu aconteci-
mento mais real e palpável, que é o Fato Religioso. Entende-se, desse modo,
que é o ser humano que habita um local que dignifica e faz dele a experiên-
cia localizada, o espaço concreto da presença de transcendência.
Portanto, o jeito de ser e a maneira de viver, o lugar e a morada, ga-
nham um sentido histórico-cultural e definem o Ethos. É a própria prática
existencial, desenvolvida na concretude do espaço-tempo e mediada por
símbolos e significados, que dá sentido e suporte às vivências do cotidia-
no humano. A prática existencial vai tecendo, organizando e confirmando
a complexa realidade das relações sociais, políticas, econômicas, culturais
e religiosas e instaurando um movimento que constitui a dinâmica de ser
e de viver das pessoas e das culturas.
O Ethos pode ser entendido, nesse aspecto, como se fosse uma “se-
gunda natureza”, o “substrato” vital do existir humano e de sua cultura,
mas sempre em permanente processo simbiótico entre o ser e o proce-
der humano, entre o compromisso e a responsabilidade com a alteridade,
entre o que representa e as disposições interiores do agir do indivíduo.
Torna-se dever aclamado e reclamado pela consciência socioindividual,

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construído, garantido e transmitido, por meio do existir e da inserção-


-educação nos sistemas culturais.
O Ethos também é a própria dimensão manifesta da transcendên-
cia do indivíduo, no sentido do entendimento e do estabelecimento de
uma compreensão permanente da busca profunda do significado maior
da vida. É nessa perspectiva que o modus operandi do Ensino Religioso
não pode ser simplesmente o estudo ou o trabalho com a(s) religião(ões).
Essas passam a ser apenas meios, espaços, terreiros, caminhos para a
compreensão do humano. É necessário olhar para o horizonte e a comple-
xidade do ser humano, de como ele coloca, manifesta, organiza e constitui
suas crenças e esperanças frente à vida. Isso requer iniciar crianças e jo-
vens na percepção de uma transcendência primeira, aquela que se coloca
nele próprio e, em consequência, coloca-se, apresenta-se e constitui-se na
realidade sociocultural.

Ethos: conteúdo do ensino religioso

Na condição do Ethos, tratado anteriormente, é que o componente


curricular Ensino Religioso encontra campo para a sua ação pedagógica,
tanto no contexto subjetivo, a casa onde se estabelece o indivíduo, como
no contexto intersubjetivo, a casa onde se estabelece o espaço coletivo-
-cultural do ser humano. Ao se considerar e tratar o Ensino Religioso
como uma área de conhecimento, a disciplina encontra nesse espaço de
compreensão e de apropriação/transformação do Ethos questões fun-
damentais para abordar e desenvolver, de modo que venha a contribuir
com o seu objeto de trabalho — o Fenômeno Religioso — numa educa-
ção que se quer integral, produzindo, assim, uma real compreensão da
existência humana.
Nesse aspecto, o Ethos, enquanto identidade de uma comunidade,
evoca o componente Ensino Religioso para um conhecimento intercul-
tural do ser e do existir humano, dando lugar ao repensar e reconstruir
constantes do conceito de cultura e de seu processo, pois é a cultura
que faz com que pessoas, de sexos, raças e credos diferentes tenham

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comportamentos diferentes, e não a transmissão genética ou apenas o


ambiente geográfico em que vivem. Justamente por viverem culturas es-
pecíficas e terem recebido uma educação diferenciada de outras é que há
diversos comportamentos entre os humanos.
Percebemos, assim, que a cultura, no seu processo sócio-histórico,
e as representações coletivas do comportamento humano são reveladoras
de um sentido transcendente2, não como fuga da concretude e da reali-
dade da vida, mas como abertura para uma dimensão mais ampla, um
mergulhar para a interioridade das próprias coisas, conhecendo-as e com-
preendendo-as, num envolvimento que seja profundo, dinâmico e real.
É por isso que “o fenômeno religioso, numa perspectiva atual, é
uma resposta articulada culturalmente para afrontar as questões existen-
ciais do ser humano, diante de um mundo em constante transformação e
continuamente desafiado pelas condições socioculturais de sua realidade”
(JUNQUEIRA, 2002, p. 139).
Parte da perspectiva dessa compreensão envolve desenvolver outro
modelo de Ensino Religioso para a educação/formação básica do indiví-
duo. A configuração para outro paradigma de Ensino Religioso é descrita
pelo art. 33 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL,
1996), com a redação dada pela Lei n. 9.475 (BRASIL, 1997).
Já não há mais como “maquiar”: um outro modelo para o Ensino
Religioso se coloca no que constitui uma sociedade que é plural, na sua
história e na sua cultura. Para isso é que o Ensino Religioso necessita de
eixos temáticos que correspondam e deem conta da diversidade huma-
na e cultural, e dentre eles se coloca o eixo Ethos. Logo, os eixos temáti-
cos estruturantes do trabalho de Ensino Religioso devem corresponder
aos critérios de organização e seleção de conteúdos e pressupostos di-
dáticos escolares, atendendo à demanda das culturas inseridas em seu
tempo e época.

“O tempo é ‘a tardança daquilo que está por vir’. Acho genial essa formulação, pois mostra o processo de
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realização do tempo (tardança), vindo do futuro em direção do presente” (BOFF, 2000, p. 4).

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Ethos e fato religioso: conteúdo e linguagem

Retrocedendo no tempo, encontramos a gênese da experiência re-


ligiosa humana que se torna fato real — o Fato Religioso — e instaura-se
no meio da cultura, situada no tempo e no espaço histórico do ser huma-
no. O Fato Religioso apresenta concretamente a transcendentalização do
humano e da natureza, e coloca-se na dimensão da defesa da vida, dos
seus perigos, das trevas, da penumbra, do incógnito do mundo e da invi-
sibilidade da razão.
Assiste-se, assim, na perspectiva da própria evolução, ao nascimen-
to dos “deuses” e à formulação das crenças. Com o passar do tempo, o Fato
Religioso se desloca da esfera do “misterioso” para a esfera do concre-
to, do sociocultural. As religiões se organizam e, no rastro das “ciências”,
também fazem interpretação e leitura dos fenômenos.
Paralelamente a isso, uma vez que a inscrição do ser humano no
universo do “religioso” está ligada a uma forma de entender o “vazio” co-
locado nele e à busca do entendimento dos sistemas de “sentido”, o pró-
prio indivíduo que vivencia a experiência do sagrado se vê então impelido
a dizer algo sobre isso. Dessa forma, colocar o Fato Religioso em pauta,
percebendo-o concreto, passa pela ideia de que a experiência religiosa é
vivenciada como a consciência da existência de um “Outro”, que se dá a
conhecer nas práticas que regem as relações entre os humanos, o mundo
e o que os Transcende.
Para falar do Fato Religioso e das qualidades que dele são consti-
tuintes é necessário abandonar certas diretrizes e caminhos que a razão
oferece. O Fato Religioso pode ser investigado e entendido nos termos
de sua própria cosmovisão, pois é da natureza da própria religião confi-
gurar a experiência por meio de suas categorias de linguagem e de com-
portamento. Por isso, sabemos que o Fato Religioso deve ser estudado e
entendido não apenas em termos de seus contextos sociais, mas também
em termos de suas próprias concepções e convicções religiosas. Na reli-
gião sempre existem a experiência pessoal e o ponto de vista de um cren-
te, que devem ser observados e considerados como fatos constituintes
do Fato Religioso. Logo, ao ser estudado, o Fato Religioso precisa partir

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da manifestação social dos acontecimentos religiosos e ser considerado a


partir de suas próprias concepções e crenças.
Trabalhar e conhecer o Fato Religioso exige pautar-se em docu-
mentos históricos, sabendo, no entanto, que os próprios documentos
dizem algo mais do que o simples fato de situações históricas. De fato,
de algum modo, os documentos revelam também importantes verdades
acerca do ser humano e de sua relação com o universo religioso.
Nas ciências em geral, atualmente não mais se colocam dúvidas
quanto ao aspecto sociocultural-religioso do ser humano. Ao contrário,
o Fato Religioso é concreto na vida cotidiana de um povo e dos indiví-
duos, está integrado aos aspectos culturais e vivenciais das sociedades
humanas. A religiosidade é algo que perpassa e fundamenta diferentes
esferas de toda a existência humana e de suas culturas, e com estas co-
existe de forma articulada. Tanto no aspecto da existência quanto no
das culturas, os diferentes sistemas de valores e significados não são en-
tendidos mais como algo isolado ou fragmentado, mas estão em relação
com o todo da realidade, são parte integrante da mesma.
Religiosidade3 é o próprio Ethos, o “modo de ser das coisas e das
pessoas” (BOFF, 2003 p.34), ou um tecido vivo de relações e inter-rela-
ções entre os elementos da cultura e da tradição, a fonte do dever para
o agir moral do ser humano. Religiosidade tornou-se um “conjunto de
princípios que rege, transculturalmente, o comportamento humano
para que seja realmente humano no sentido de ser consciente, livre e
responsável” (BOFF, 1999 p. 195).
Cada Fato Religioso tem uma linguagem própria e esta funciona
como um mapa de uma realidade situada. Para o crente, a linguagem
religiosa não é tratada como fantasia nem como imaginação, pois essa
linguagem recoloca e reformula a visão de mundo. A religião define e
estabelece mundos e lhes dá forma; por isso, ela também mobiliza a

“Chamamos religiosidade a atitude de abertura da pessoa ao que realmente importa, ao sentido radical
3

de sua existência. Implica em não acomodar-se, não ficar parado; alimentar a esperança; ser criativo;
empenhar-se por crescer, estar aberto ao mais profundo, o mais alto, o melhor — não do que os outros, mas
em relação a si mesmo; ultrapassar-se; sair de si, ver as necessidades dos outros — pessoas, categorias,
povos, gêneros, etnias; também dos animais, do nosso planeta. Transcender” (GRUEN, 2010).

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Ethos, fato religioso e diversidade 411

humanidade e suas culturas. Ou seja, a religião cria uma ordem de mun-


do e se constitui como uma fonte geradora de concepções de história,
tempo, espaço, cosmovisão, natureza e humanidade.
O Fato Religioso, do universo do imaginário pessoal e coletivo,
socioculturalmente se coloca em paralelo às organizações políticas e
econômicas e às ciências, já que sua linguagem funciona como norma-
tiva e se constitui como um mapa da própria realidade humana.
Trazer o Fato Religioso para o espaço do conhecimento escolar e
apontar que epistemologia se torna constitutiva para o mesmo é con-
ferir à religião uma identidade. Isso implica perceber quais conheci-
mentos se constituem capazes para dar pertinência ao componente
curricular Ensino Religioso. Desse modo, coloca-se em discussão a
questão acerca do que é possível e cabível conhecer. É por isso que,
nesse percurso, faz-se necessário também se perguntar qual epis-
temologia poderá servir ao Ensino Religioso, de modo a proporcio-
nar-lhe a possibilidade de um trabalho consistente, fundamentado,
acadêmico-científico.
O Ensino Religioso, diante do Fato Religioso, coloca-se justamen-
te para oferecer uma visão menos restrita, mais abrangente. Por isso,
sua linguagem não é apenas um modo de explicar o mundo — visto que
a ciência hoje o faz com mais sentido—, mas, sim, uma ferramenta que
percebe o modo como o indivíduo e as culturas habitam o mundo, ou
seja, percebe o Ethos que constitui o ser humano e suas culturas.
A linguagem no Ensino Religioso é um meio para comunicar o
Ethos, o “habitar” a si próprio e o mundo, condicionado por uma for-
ma de ser–estar do indivíduo e pelo contexto histórico cultural. O Fato
Religioso exige ser pensado e estudado nos limites da própria razão. Por
isso, é necessário discernir e perceber que a compreensão não se encer-
ra apenas no ser humano da concretude, nem apenas num conjunto de
representações que exprimem a natureza das coisas religiosas ou suas
relações. É necessário compreender que o Fato Religioso, como experi-
ência humana, é relacional, portanto, é vivência com o Outro e com as
Culturas, já que é aí que o indivíduo elabora concretamente a experiên-
cia do religioso.

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Ethos e diversidade: conteúdo e cultura

Colocar o campo de trabalho do componente curricular Ensino


Religioso no horizonte do ser humano significa dizer que a pluralida-
de cultural na sua diversidade é o espaço de estudo, pesquisa e enten-
dimento do Fato Religioso. O Ensino Religioso poderá, assim, ser mais
um dos componentes do currículo escolar a colaborar para uma “leitu-
ra e uma interpretação da realidade, essenciais para garantir a possi-
bilidade de participação do cidadão na sociedade de forma autônoma”
(JUNQUEIRA, 2002, p. 24), já que se coloca como mediador para a com-
preensão do ser humano e se constitui mediante um campo amplo e plu-
ral do conhecimento da cultura, da transcendência e das representações
de religiosidade.
Portanto, é a partir do conhecimento culturalmente constituído e
em processo de reconstrução que o Ensino Religioso trabalha conceitos e
estruturas de significação, que organizam o saber e recolocam pressupos-
tos “despertadores” e “libertadores” do próprio indivíduo e de sua histó-
ria. O objetivo primordial é compreender o processo de fazer-se pessoa
nas suas culturas e opções e nelas encontrar os significados e as riquezas
maiores de viver com a Diversidade.
É por isso que no diálogo e no auscultar o outro se estabelece a pos-
sibilidade da democratização da função sociocultural da escola. Dialogar
e auscultar pressupõe que partes distintas entrem em relação, conheçam-
-se e estabeleçam vínculos de participação efetiva e afetiva, sem perder a
identidade própria (seu Ethos) e sem negar a possibilidade de transforma-
ção de ambas as partes. Isso pressupõe vontade pessoal para abrir-se ao
outro, às suas posições e às suas diferenças, e para dialogar, não formando
iguais, mas para promovendo, respeitando e valorizando a pluralidade,
num processo de conhecimento, aprendizagem e vinculação ao diferente
que exercita e estabelece relações democráticas.
Trabalhar o humano e suas culturas, nas suas Diversidades, é
transcender padrões de leitura e concepções exclusivas da própria cul-
tura e compreender o ser em relação, entendendo o campo de visão
do outro e os distintos modos (Ethos) de conceber, de viver e de fazer

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religião4. O pluralismo cultural-religioso tem lugar na incansável recolo-


cação dos outros Ethoi (plural de Ethos) para a transformação e constitui-
ção de novas culturas, denominações e percepções.
Na dimensão do Ethos, a Diversidade se mostra um bem humano-
-cultural necessário e, por isso, é mister também desejá-la, promovê-la e
respeitá-la, acima de tudo, como um patrimônio da humanidade.
No espaço do Ensino Religioso, que se propõe a contribuir com a
formação sociocultural do humano, as ações educativas visam à promoção
e ao respeito ao “diferente”, de forma a ajudar no desenvolvimento de um
Ethos voltado para uma cidadania que seja ética e que perceba no outro a
complexa riqueza que compõe a teia da vida.
Constatamos, contudo, que infelizmente a “discriminação” e certo
“juízo de valor” estão instaurados nas relações socioculturais construídas
e, naturalmente, também no que concerne ao Fato Religioso. No entanto,
sabemos também que desde a mais tenra idade o senso crítico é aprendido
e se instaura no indivíduo e no seio cultural, possibilitando um processo
de respeito, convivência e compreensão no cotidiano escolar, favorecen-
do, assim, a aprendizagem, abertura e convivência com a Diversidade.
“Primeiramente, é preciso aceitar que a discriminação, qualquer
que seja ela, é aprendida. Ninguém nasce supondo que é ‘normal’, me-
lhor ou inferior em relação a outros indivíduos”, diz professora Zilda Del
Prette (2010, p. 1). Na função sociocultural de ensinar, o Ensino Religioso
torna possível educar crianças e jovens para a alteridade, desconstruindo
tabus, superando preconceitos e distorções da percepção do fato humano-
-religioso, e constatando, assim, a riqueza e a beleza que compõem o pai-
nel humano-cultural com e na sua mais múltipla Diversidade.
No componente curricular Ensino Religioso, há espaço para explo-
rar as condições socioculturais que reproduzem e reforçam a discrimina-
ção. Isso se deve ao fato de que o fazer pedagógico-educacional organiza
ideias, concepções, envolvimento pessoal e ações de práticas coletivas a

“O ser humano é espaço-temporal: normalmente, o sentimento religioso se expressa e realimenta em


4

sistemas formais próprios das diversas culturas: constitui-se religião, com suas agremiações, símbolos,
cultos, preces, formulações de crenças e normas” (GRUEN, 2010).

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partir de uma proposta/projeto que tanto pode ser homogeneizadora,


quanto promotora da Diversidade dos Ethoi dos indivíduos.

Estamos todos habituados a buscar as semelhanças e a valorizá-las, mui-


to mais do que as diferenças, mesmo elas sendo tão presentes. A própria
Ciência se constrói sobre a busca da regularidade, da estabilidade e, em-
bora este esforço seja necessário, por vezes acaba ficando obscurecida a
importância da Diversidade e da variação, inclusive como forma de ga-
rantir a continuidade da vida em um mundo que muda constantemente
(APRENDENDO..., 2010, p. 1).

No processo do trabalho do Ensino Religioso, como em todo ato


pedagógico-educacional, existem situações e exemplos concretos que
mostram que há diferentes dispositivos para fomentar o desenvolvimen-
to de práticas que promovam a Diversidade. Na base da ação pedagógi-
ca há sempre uma “politicidade”5 que estabelece diretrizes que assegu-
ram as condições para se alcançar os objetivos e metas voltados para a
Diversidade ou para a homogeneidade.
Concretamente, é necessário desenvolver e estabelecer claramente
uma cultura de abertura, acolhimento e de respeito à Diversidade dentro
da própria escola, envolvendo, por uma ação pedagógico-educacional es-
tratégica, toda a comunidade. Na ação pedagógica em particular, o profis-
sional-professor de Ensino Religioso é quem pode oferecer um modelo de
respeito e de valorização da Diversidade presente nas crianças e jovens,
pois é ele o agente mediador de interações socioeducativas e inclusivas da
Diversidade na sala de aula.

“A politicidade da aprendizagem conjuga educação muito mais com aprendizagem, do que com ensino. Aos
5

professores cabe assumir a função de facilitadores da autonomia do estudante, abrindo oportunidades de


reconstrução permanente do conhecimento. Sendo manejo do conhecimento possivelmente a vantagem
comparativa mais decisiva do mundo globalizado, as crianças na escola precisam ter a chance de trabalhar
conhecimento com criatividade, partindo sempre de sua base cultural própria. A politicidade do conhecimento
inclui sempre o reconhecimento de que todos são sujeitos capazes de história própria, dependendo das
oportunidades que se abrem e da capacidade de iniciativa. [...] O humano da relação humana é sobretudo
sua politicidade. Com efeito, a participação política é muito mais fenômeno emocional, que reclama
dedicação, entrega, envolvimento, entusiasmo, do que meramente cerebral. Não se pode mais dizer que
vida é cognição. Este cartesianismo passou. Mas vida é aprendizagem, porque vida é o que sabemos e
aprendemos a fazer dela” (DEMO, 1999).

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Em relação ao professor, a primeira coisa é ele próprio não discriminar


o aluno ‘diferente’, seja em termos de rendimento, de estética ou de ha-
bilidades. A segunda é colocar esse tópico na pauta de seus objetivos de
ensino e criar condições diárias para envolver os alunos no processo de
aprendizagem (APRENDENDO..., 2010, p. 1).

É necessário, para isso, entender que não há alunos bons ou ruins,


melhores ou piores, normais ou anormais, há apenas alunos. É preciso,
também, partir do princípio de que há tipos e graus de necessidades em
cada indivíduo e que o processo de aprender se faz de forma diversifica-
da, personalizada e, por isso, diferente. Para lidar com a Diversidade de
Ethos e do conhecimento do Fato Religioso, coloca-se a necessidade de se
saberem e de se verificarem as possibilidades e os limites do ensino e da
aprendizagem no Ensino Religioso.
A partir disso é que o Ensino Religioso visualiza, elabora e trabalha
a demanda da Diversidade e as diferenças em classe e no espaço escolar.
Faz-se necessário, para tanto, um projeto/plano que tenha uma progra-
mação de conteúdos, metodologias e retomadas que atendam às aprendi-
zagens na especificidade do processo de cada indivíduo.
Para que a Diversidade esteja presente e seja contemplada na sua ple-
na dimensão, não é possível que o Ensino Religioso trate a todos e a todas
de forma indiferenciada, já que as experiências religiosas estão em distin-
tos e diversos fatos religiosos. O acolhimento à Diversidade, presente em
cada indivíduo, precisa ser feito de forma acadêmica e qualitativa, ou seja,
com profissionalismo. Assim, crianças e jovens se sentirão valorizados e
aprenderão a valorizar, a respeitar e a desenvolver o exercício da cidadania.
Todos, de algum modo e dentro de seus limites e potencialidades, partici-
pam colocando suas experiências e conhecimentos, ouvindo e fazendo-se
ouvir, e num processo de aprendizagem vão constituindo e elaborando es-
truturas internas de alteridade e de convivência com a Diversidade.

Ensino religioso escolar: adequação de conteúdos

Pautando o ensino e a aprendizagem, o Ensino Religioso poderá


propor um programa e selecionar conteúdos, sabendo que na faixa etária

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dos 3 aos 5 anos a criança desenvolve sentimentos e imagens internas


de olhares reconhecedores, sorrisos reconfirmadores e toques cuidado-
res. É a fase em que a criança amplia os laços sociais e afetivos; cria
vínculos e socializa-se com o outro e com o meio cultural, elaborando
possibilidades e limites; desenvolve noções básicas de identidade; na re-
lação de alteridade, conhece e vivencia manifestações cultural-religiosas
do seu cotidiano; e consegue identificar o significado dos espaços e sim-
bologias do seu universo.
Na faixa etária dos 6 aos 10 anos, o educando percebe, valoriza e
respeita a vida presente em si mesmo, no outro e nos espaços em que vive.
Tem um conhecimento elaborado sobre a diversidade de simbologias e de
espaços religiosos. As organizações família, escola e espaços religiosos/sa-
grados das quais faz parte são referência para a sua vida. Consegue perce-
ber e entender as diferenças que se colocam entre as Matrizes Religiosas,
percebendo a diversidade cultural-religiosa como espaço de aprendizado,
convivência, troca, respeito e solidariedade com o diferente, ou seja, dá-se
conta do pluralismo sociocultural e da complexidade humana.
Entre as idades de 11 e 15 anos, é possível começar a trabalhar com
um conhecimento que exija uma abstração maior. Assim, é possível tratar
conceitualmente o significado das organizações sociocultural-religiosas e
compreender a concepção da religiosidade no humano, percebendo que
são sinalizações que orientam e são referências para a vida das pessoas e
dos grupos. O aluno consegue compreender a evolução das organizações
socioculturais no decorrer dos tempos, conhecer e decifrar textos sagra-
dos escritos e orais, entendendo-os como fontes literárias para a leitura
e compreensão dos sistemas religiosos. Compreende concepções e espe-
cificidades de Religiosidade, Espiritualidade, de Tradição Religiosa e de
Ciência, percebendo-as como conhecimentos e valores que determinam
“verdades” para o ser humano.
A partir dos 15 anos é possível discutir, conhecer e compreender
elementos que explicitam o fenômeno religioso, numa leitura e interpre-
tação do fato religioso presente na história e na cultura humanas; fazer
uma leitura analítica interpretativa e crítica para tratar , conhecer e en-
tender; o fato religioso presente em documentos, fontes literárias, textos
sagrados orais e escritos; compreender o significado dos mitos e ritos e

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reconhecer a diversidade presente nas manifestações religiosas, elaboran-


do uma compreensão de mundo e de cosmos; elaborar o significado e sen-
tido da ética e da moral, como valores humanos que sustentam a opção
pelo bem, pela verdade, pela justiça e pelo amor, numa permanente ação/
reflexão instigadora, solidária e fraterna com o outro e com o Universo;
formular questionamentos existenciais, elaborar perguntas e respostas,
buscando a transposição dos limites, identificando possibilidades e reco-
nhecendo a diversidade; situar-se como sujeito cocriador, responsável e
inserido no processo de transformação da realidade, da evolução e com-
preensão humana da Vida; e colocar-se como promotor/construtor do
bem comum.

Estratégias para a ação pedagógica

Na perspectiva das Estratégias, o plano de ensino, os planejamen-


tos, os objetivos a serem alcançados, os conteúdos estruturantes, as ati-
vidades de aprendizagem, as metodologias nos seus métodos e a veri-
ficação dos resultados atingirão as metas traçadas se contemplarem as
peculiaridades do indivíduo e da cultura no Ethos, na Diversidade e no
Fato Religioso.
É bom destacar que os objetivos não tratam de conteúdos a serem
transmitidos, mas de competências a serem promovidas nas crianças e jo-
vens para a leitura, interpretação, inserção e reconstrução da realidade da
qual são partes. Portanto, o componente Ensino Religioso deve propor e
promover atividades de aprendizagem lúdicas, de trocas e de construção
coletiva, que demonstrem concretamente o acolhimento e o respeito pelo
outro, por suas opções, seu jeito, seu Ethos, tendo consciência de que o
“outro” sempre pode ampliar os horizontes da nossa própria vida.
O Ensino Religioso por natureza é um componente que deve va-
lorizar as ações daqueles que apresentam respeito e aproximação ao di-
ferente. A dimensão da Diversidade, tratada conscientemente nas ações
pedagógico-educacionais, cumpre o papel de preparar crianças e jovens
para a atuação cidadã, de respeito e tolerância às diferenças. Tratar do
Fato Religioso na sua dimensão da Diversidade é parte do processo de

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construção de outra cultura escolar e se coloca na perspectiva do compro-


misso com uma sociedade mais justa para todos.
O Ensino Religioso é componente curricular com o papel primor-
dial de formar pessoa-cidadão capaz de produzir bem-estar para si e para
aqueles com quem os alunos convivem. É necessário aprender não apenas
a conviver com tolerância à Diversidade — como se fosse uma deferência
para com os mais diferentes —, mas a desejá-la, promovê-la e respeitá-la
como um dado precioso da imensa riqueza do humano.
O planejamento de cada aula e, por consequência, de cada atividade
revela a dimensão do processo de ensino e de aprendizagem. Planejamento
é o instrumento primordial para o professor pensar e elaborar estratégias
de ação de acordo com o objetivo a atingir.
Como instrumento, não é cabível um planejamento único e igual
para diferentes salas, ou um planejamento repetido de um ano para ou-
tro. Considerando o perfil, o processo e as necessidades, o planejamento
precisa ser específico e adequado para cada turma e deverá contar com a
flexibilidade para recolocar as “novidades” do processo, de acordo com o
caminho que vai sendo traçado e os interesses e necessidades que surgem,
sejam do educador ou do educando.
O planejamento é elaborado a partir de alguns elementos que facili-
tam sua execução e a sistematização do aprendizado adquirido. Nesse caso,
o registro ou sistematização é a memória do ponto de partida e de chegada,
por isso, ajuda e faz avançar o conhecimento. Para tanto, um planejamento
didático-pedagógico precisa contemplar: clareza e objetividade de seus ob-
jetivos; espaço e condições para recolocar e/ou atualizar objetivos e estraté-
gias, de acordo com o percurso e os interesses dos aprendizes; os recursos
disponíveis para sua execução; o conhecimento que os educandos possuem
sobre o conteúdo abordado; a articulação entre a teoria e a prática; estraté-
gias diversificadas, inovadoras e que auxiliem o ensino e a aprendizagem;
momentos e condições de sistematização das atividades no decorrer do de-
senvolvimento; flexibilidade frente às situações e aos imprevistos; pesqui-
sas, buscando diferentes referências; e a execução das aulas de acordo com
a realidade e as condições socioculturais dos educandos.
Planejar hoje pressupõe aliar-se também à utilização dos mais di-
ferentes recursos, como filmes, mapas, poesias, músicas, computador,

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jogos, aulas práticas, sites, portais, atividades criativas e dinâmicas, entre


outras, e constituir o educando como protagonista de seu aprendizado.
Contribui para isso a realização de aulas em que educandos e professores
executem, pesquisem, elaborem — enfim, ensinem e aprendam juntos.
As estratégicas serão adequadas se instigarem o “aprofundamen-
to” ou a um “novo” conhecimento e desinstalarem professor e educando
da situação de conforto do que já sabem, ajudando-os a transpor limi-
tes, condicionamentos e fragilidades. Estratégias são ferramentas utili-
zadas para envolver, motivar, desenvolver a criatividade e a participação.
Quando bem estabelecidas, as estratégias ajudam a identificar o que já se
sabe, o que é prazeroso fazer e, principalmente, os passos a serem dados
para avançar no conhecimento. Estratégia é o caminho pensado e a ser
percorrido, é a maneira utilizada para atingir os objetivos propostos.
Num plano de aula, as estratégias devem tratar claramente das in-
tenções e tendências de quem ensina e do aprendizado dos diretamen-
te envolvidos. Uma aula sempre expositiva, por exemplo, não cabe para
quem tem a intenção de formar pessoas autônomas, críticas e reflexivas,
pois sem a participação dos educandos não há um favorecimento da cons-
trução da autonomia, mas sim a criação da dependência do pensar e agir.

Para ajudar a ver — concluindo

Este pequeno ensaio nos fez explorar uma compreensão inicial das
questões metodológicas do Ensino Religioso, buscadas no entendimento
do Ethos, como jeito de ser e como uma maneira de viver do ser humano.
Como algo concreto da vida cotidiana de um povo e dos indivíduos, situ-
amos o Fato Religioso, integrado aos aspectos culturais e vivenciais das
sociedades humanas. Apresentamos também a ideia da impossibilidade
de avançar como humanidade se a Diversidade não for contemplada e in-
tegrada à vida e ao cotidiano do educar.
Entendemos, assim, que no tratamento e compreensão do Eixo
Temático Ethos o Fato Religioso e a Diversidade são conteúdos e tornam-
-se condições para a construção de um cidadão inserido, situado, crítico,
reflexivo. Ethos, o Fato Religioso e a Diversidade dão origem a estratégias

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de trabalho ao desencadear envolvimento e participação — o que se in-


sere na transformação e reconstrução do conhecimento e do contexto so-
ciocultural-religioso, econômico, ambiental no qual o indivíduo-cidadão
está inserido. Por essa razão, parece-nos absolutamente imprescindível
que tais aspectos ilustrem a prática e componham a identidade do com-
ponente escolar Ensino Religioso.

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Received: 04/10/2013

Aprovado: 04/07/2013
Approved: 07/04/2013

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