Você está na página 1de 9

Segurança Pública e Democracia: um novo paradigma

por Fernanda da Rosa Cristino

Resumo

A Constituição Federal de 1988 determinou uma nova concepção de segurança


pública com a ampliação de seus agentes. A segurança passou a ser
considerada dever de todo o cidadão, descaracterizando teoricamente a
exclusividade dos órgãos policiais no tratamento do assunto. Todavia, a
abordagem repressiva da violência e da criminalidade, em virtude das
conseqüências desastrosas de seu crescimento, tem preponderado nesta
sociedade, ainda que considerada democrática. Por isso, mesmo com vinte
anos de promulgação, a luta pela efetivação da disposição constitucional de
uma política cidadã referente ao tema constitui caráter recente. Ante ao
exposto, o presente trabalho pretende apresentar o paradigma atual da
segurança pública, sua fundamentação e pretensões.

Palavras – Chave: Segurança pública – democracia - cidadania – direitos


humanos – polícia comunitária.

PUBLIC SECURITY AND DEMOCRACY: A NEW PARADIGM

Summary

The Federal Constitution of 1988 determined a new conception of public


security with the amplification of its agents. Security started being considered a
duty of every citizen, theoretically uncharacterizing the exclusivity of police
departments to deal with this subject. However, the repressive approach of
violence and criminality, due to their growth disastrous consequences, has
preponderated in this society, even though being it considered democratic.
Therefore, in spite of the twenty years of promulgation, the struggle for the
accomplishment of constitutional availability of a citizenly politics referring to the
theme is of recent character. Herein, this work intends to present the current
paradigm of public security, its fundamentation and pretensions.

Key-Words: Public Security – democracy – citizenship – human rights – police


community.

Sumário. Introdução. 1. Segurança pública: previsão constitucional e sua


prática. 2. Evolução da estrutura política federal em segurança. 3. Segurança
Cidadã. Conclusão. Referências bibliográficas.

Introdução

A análise histórica brasileira demonstra uma sociedade caracterizada pela


reprodução de modelos e conceitos provenientes de culturas em destaque
mundial. Com isso, devido à falta de correspondência ao momento vivenciado
pela realidade nacional, muitas determinações legislativas e comportamentais
disciplinadas não foram efetivamente incorporadas. Considerando a abertura
política promovida pela Constituição Federal de 1988, houve a legitimação de
garantias sequer questionadas na época, tornando imprescindível o
planejamento de sua implementação. A lacuna gerada pela ausência dessa
etapa resultou na atuação incoerente dos órgãos atingidos por essa mácula.

A segurança, como dever e garantia da cidadania, tornou-se um dos mais


relevantes instrumentos da democracia. Entretanto, mobilizada segundo
orientações arcaicas, promoveu o retrocesso aos valores totalitários. Ainda
predomina na população a compreensão da segurança como função exclusiva
da polícia, bem como que a redução da violência e da criminalidade se obtém
através do aumento do contingente policial, de sua manifestação invasiva e
rigorosa. A própria instituição mantém opiniões conflitantes oriundas de
remanescentes teóricos calcados no militarismo, em um conservadorismo
inerte.

Ocorre que o fenômeno da criminalidade, por ser demasiadamente complexo,


envolve questionamentos que superam as meras exigências provenientes da
crescente demanda por serviços de proteção. A violência propriamente dita é
considerada uma reação a algo, uma tentativa de corrigir o que o diálogo não
foi capaz de resolver (DUTRA, 2008); uma resposta ao fracasso, às
frustrações, ao desrespeito e à prepotência. Enfim, pode assumir significados
que extravasam as relações interpessoais, abrangendo o processo de
vitimização, a violência estrutural propagada pela desigualdade da distribuição
de renda e pela dominação de classes (STRAUB, 2005). Portanto, a violência e
a criminalidade podem ser consideradas sintomas sociais que exigem o
diagnóstico de sua causa, para o tratamento específico; comprovando-se,
através do exposto, a ineficácia da abordagem repressiva e mecânica do tema
(DUTRA, 2005).

A atenção ao diagnóstico, à avaliação e ao planejamento de ações em


segurança pública pelo Estado adquiriu relativa estabilidade somente a partir
de 2000 com o Plano Nacional de Segurança Pública e em 2003 com a
consolidação da Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), órgão
responsável pela implantação e execução da política nacional de segurança.
Atualmente, a noção de Segurança Cidadã constitui referência central na luta
pela exclusão definitiva do modelo repressivo e pela construção de um novo
paradigma, cuja apresentação é um dos objetivos deste estudo.

1. Segurança Pública: Previsão Constitucional e sua Prática


A Constituição Federal de 1988 destinou um capítulo específico para o
tratamento da matéria. No Título V, artigo 144, consagra o dever do Estado,
bem como o direito e a responsabilidade de todos nas questões relativas a
essa garantia; destacando o exercício em prol da preservação da ordem
pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, efetuado pelas polícias
federal, rodoviária federal, ferroviária federal, civil, militar e corpo de bombeiros.
Não obstante a ausência de considerações explícitas, suas atividades incluem
a participação do Poder Judiciário, do Ministério Público e do Sistema
Penitenciário. Dessa forma, objetivou-se através da interação de órgãos
estatais e comunidade, a prevenção e o controle das manifestações da
violência, garantindo o exercício da cidadania, bem maior tutelado pelo sistema
democrático.

Entretanto, a gestão independente de cada unidade federativa sobre suas


respectivas forças policiais e as atribuições específicas de cada órgão exige
extremo equilíbrio na coordenação das diversas políticas públicas
implementadas, para concretizar a interação necessária prevista pela
abordagem eleita. A omissão da análise deste aspecto contribuiu para o
fracasso dos projetos implementados, bem como a fomentação de discursos
demagógicos e na retórica vazia segundo os quais a brutalidade policial
significa, sobretudo, competência (SOARES, 2006). Com isso, o policiamento
brasileiro assumiu as características de um sistema moderadamente
descentralizado e multiplamente descoordenado, haja vista o exercício de mais
de uma força sobre a mesma área, enfatizando a competição e sobreposição
de autoridades (JÚNIOR, 2008).

A colaboração e a integração comunitária, concebidas como relevantes


fundamentos para a nova concepção da ordem pública, experimentam lento
desenvolvimento. Em virtude do intenso processo de exclusão social que
assola a sociedade brasileira, a população mais carente em segurança
conhece apenas a face repressiva e retrógrada da força policial. Sua cultura se
ressente do espírito comunitário, permitindo que o individualismo e o
paternalismo dificultem os esforços destinados a sua participação. A
urbanização acentua a secessão. Mesmo quando superado este óbice,
prevalecem reivindicações em detrimento da mobilização para a autoproteção,
autoajuda e solidariedade. Além disso, o próprio poder público desconfia da
participação da comunidade na resolução de seus problemas (SULOCKI,
2007).

A reforma constitucional negligenciou o tema, uma vez que sequer elaborou


projetos para a adequação das instituições policiais ao regime democrático. A
segurança pública permaneceu indiferente e imóvel, mantendo estruturas
funcionais e organizacionais conservadoras, herdando a tradição autoritária.
Foi necessária a atitude extrema de um cidadão sobrevivente da chacina da
Candelária, para que surgisse o primeiro plano de segurança desenvolvido
após a redemocratização. 1

2. Evolução da Estrutura Política Federal em Segurança

O movimento para a inovação da segurança pública iniciou em 1995, com a


Medida Provisória nº 813, que instituiu a Secretaria de Planejamento de Ações
Nacionais de Segurança Pública (SEPLANSEG), primeiro órgão direcionado à
articulação de ações nacionais referentes ao assunto. Logo em seguida, em
1997, foi convertida em Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP),
tendo competências e atribuições ampliadas. Sofreu várias alterações nos anos
seguintes, alcançando destaque com a instituição do Plano Nacional de
Segurança Pública e a criação do Fundo Nacional de Segurança Pública
(FNSP) em 2000. Todavia, consolidou-se como órgão central de planejamento
das ações de segurança com a execução do Sistema Único de Segurança
Pública (SUSP) em 2003 (PRONASCI, 2007).

À Secretaria Nacional de Segurança Pública compete, entre outros objetivos, o


planejamento, a implementação e a avaliação de programas do Governo
Federal para a área; a promoção da integração dos órgãos de segurança
pública, da interface de ações com organismos governamentais e não-
governamentais; o estímulo e a proposição de planos aos órgãos estaduais. Ao
Fundo Nacional de Segurança Pública cabe apoiar projetos estatais, municipais
e sociais de prevenção à violência, formando um sistema de distribuição de
recursos. Nesta legislação está implícita a concepção de um Sistema Único de
Segurança Pública, uma vez que se percebe a coordenação descentralizada e
compartilhada da política pública, através da articulação de fundos
provenientes dos três níveis de governo e da participação de diversas esferas
da sociedade. Estimula-se a elaboração de planos de segurança pública pelos
Estados, haja vista que o repasse do recurso exige apresentação e apreciação
conjunta, aliada à execução dos projetos previstos (PRONASCI, 2007).

3. Segurança Cidadã

A noção de segurança cidadã constitui a síntese teórica que fundamenta a


política de segurança pública apresentada, visando sua compatibilização com o
modelo democrático. Nesta senda, visa resgatar a cidadania, a solidariedade e
o respeito aos direitos humanos no cerne dos órgãos estatais envolvidos na
efetivação da segurança, bem como em toda a sociedade. Sua atuação prioriza
ações que promovam a valorização dos direitos humanos, mobilizando
principalmente a educação como instrumento de transformação e de
sistematização do conhecimento de seus participantes.

Tais atitudes superam o sistema policial convencional, instituindo a atuação


preventiva e repressiva qualificadas, valorizando a resolução pacífica dos
conflitos, motivando a interação das instituições à comunidade. Dessa forma, a
sociedade civil além de exigir o cumprimento de metas, atua como fiscalizador
da probidade do sistema, controlando, inclusive, a prestação da justiça
(PRONASCI, 2007).
O Projeto Segurança Cidadã adotou a abordagem estratégica de suas
atividades. Haja vista que empresas utilizam este método para superar as
instabilidades do mercado e vencer a concorrência, também as vicissitudes
ocasionadas por conflitos destrutivos podem ser amenizadas. No cerne da luta
contra a violência e a criminalidade, as organizações representam um meio de
alcançar essa pretensão, desde que seja mobilizada a estratégia como
instrumento e que a redução das taxas delitivas configure entre os resultados
esperados. Considerando que o planejamento estratégico determina a
avaliação das peculiaridades do contexto, para a partir da construção de seu
diagnóstico destinar o tratamento específico; constitui, então, procedimento
compatível às exigências exaradas pela abordagem da criminalidade.

Amparando-se nessas constatações, foi instituído o Programa Nacional de


Segurança Pública com Cidadania, através da edição da Medida Provisória nº
416, prevendo a realização de um conjunto de 94 ações, articulando órgãos,
estados, municípios e comunidade. Entre os valores endossados pela medida,
destaca-se a possibilidade de aliar-se os direitos humanos à prática policial
eficiente, já que ambos são considerados imprescindíveis nesse contexto; a
legitimidade da prevenção e da repressão qualificada; a valorização da função
histórica da polícia; o aparelhamento das instituições policiais e o
aperfeiçoamento da educação pública, os quais resultam na igualdade material
do acesso à justiça (PRONASCI, 2007).

Conclusão

A República Federativa do Brasil, por constituir um Estado Democrático de


Direito, visa à transformação da realidade social a partir da tutela dos ideais
democráticos e do respeito aos direitos fundamentais, apoiando-se
eminentemente na valorização da cidadania e da dignidade da pessoa
humana. Segundo essa afirmação, seu compromisso de construir uma
sociedade livre, justa e solidária e de erradicar as formas de discriminação não
correspondia às práticas de segurança pública adotadas, mesmo diante de
explícita determinação constitucional.

Todavia, ainda que aos vinte anos da promulgação xda Constituição Federal, o
modelo de segurança pública idealizado principia sua adequação material às
garantias fundamentais, bens maiores perseguidos por todo cidadão. Não há
democracia onde a liberdade é considerada uma exceção, onde a punição, a
atuação inquisitiva rotula como crime disparidades sociais, políticas e culturais.

Ainda há muito a ser feito, entretanto, sugere-se a ênfase no estímulo da


atuação do poder público como aglutinador das forças comunitárias, a fim de
inseri-las na formação de políticas públicas de segurança e com isso usufruir a
possibilidade de resolução democrática dos conflitos proposta pela
Constituição.

Referências Bibliográficas

BRASIL, Caderno Pronasci – Programa nacional de segurança pública com


cidadania. Brasília: Ministério da Justiça, 2007.

BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.


Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988.

DUTRA, Carla. Matador aos 16 anos. Zero Hora, Porto Alegre, p.4, 28 mar.
2008.
JÚNIOR, Jesus T. Barreto; ASSUNÇÃO, Rosângela P. de Abreu. Curso:
sistemas de gestão em segurança pública. SENASP/MJ, Brasília, p.1-95, jun.
2008.

SOARES, Luiz Eduardo. Segurança tem saída. Rio de Janeiro: Sextante, 2006.

STRAUB, Richard O. Psicologia da saúde. Porto Alegre: Artmed, 2005.

SULOCKI, Victori-Amália de Barros Carvalho G. Segurança pública e


democracia: aspectos constitucionais das políticas públicas de segurança. Rio
de Janeiro: Lúmen Júris, 2007.

Nota de rodapé

1 Caso do “ônibus 174” - sobrevivente da chacina da Candelária seqüestra um


ônibus, na cidade do Rio de Janeiro, ganhando repercussão nacional - exigiu a
reflexão estatal sobre a promoção da segurança pública no contexto
democrático.

Revista Jus Vigilantibus, Quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Você também pode gostar