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Universidade de São Paulo- FFLCH

Ciências Sociais

O tratado de Brest Litovsk: elementos de política externa marxista em um


caso concreto

O momento é a transição entre 1917 e 1918.


O cenário é a Europa do início do século 20, mergulhada em uma hecatombe
sem precedentes: Eclode a Primeira guerra mundial que, prolongando-se por
cinco anos traz ao então chamado “centro do mundo” incontáveis mortes,
miséria, destruição de forças produtivas e esgotamento nunca antes vistos na
História.
As mortes se contam aos milhões nos países beligerantes; a capacidade
produtiva de muitos destes, apesar do impulso dado a indústria bélica, reduz-se
fortemente em comparação aos resultados anteriores a 1914, nos tempos de
paz; os fronts de guerra, e em particular o front oriental, se encontram em
situação limite, com o exército russo em franca desagregação, sendo as
distâncias as únicas dificuldades sérias em sua defesa contra os invasores
alemães, austro-hungaros, turcos, etc.
Diante deste cenário caótico e, aparentemente, desfavorável a qualquer
mobilização social eclode, como concretização de um processo revolucionário
de raízes profundas, cuja explanação não nos cabe como objetivo neste
pequeno ensaio, a revolução Russa que, de fevereiro a outubro de 1917
revirou, em fases sucessivas, do avesso as estruturas institucionais, políticas,
econômicas e sociais na Rússia, derrubando o antigo regime do Czar e sua
aristocracia.
Posteriormente, tal processo segue sua marcha alçando os marxistas
revolucionários, chamados de “Bolcheviques”, ao poder após conquistarem a
maioria nos órgãos de organização e ação das massas de trabalhadores,
conhecidos como sovietes e derrubarem a coalizão entre “socialistas
moderados”(mencheviques e socialistas revolucionários, os “SR”) e a
burguesia.
Desde o início da Guerra, quando os “comunistas” a frente da Rússia
Revolucionária ainda se chamavam “socialdemocratas” e estavam nos mesmos
partidos que muitos de seus futuros inimigos, como foi o caso de Rosa
Luxemburgo e Karl Liebknietch, assassinados por ordem de antigos dirigentes
do Partido social democrata alemão a frente do Estado alemão em 1918, uma
profunda cisão se desenvolveu no seio do movimento socialista mundial
levando a ruptura da então conhecida 2ª Internacional, uma espécie de
organização internacional que congregava –ou quase - todos os partidos
socialistas do mundo.
O motivo desta ruptura foi a eclosão da Grande Guerra e a posição de defesa
por parte de socialdemocratas de suas respectivas burguesias, suas ações de
guerra e, em suma, dos interesses imperialistas, como diria Lênin, de cada
burguesia imperialista.
Assim, os antigos mais admirados socialdemocratas alemães, em sua maioria,
se converteram em “social-patriotas” e “social-imperialistas”, votando os
créditos de guerra com seus parlamentares e defendendo a guerra imperialista,
levando os operários não a revolta contra a ave de rapina burguesa e sua
guerra, mas ao assassinato em massa de milhões de outros trabalhadores
explorados das demais nações.
Esta ruptura foi um marco na trajetória dos marxistas no século 20 e traçou
uma linha divisória entre os que se mantinham internacionalistas, defensores
da transformação da “guerra imperialista em guerra civil contra a burguesia” e
os então definidos como traidores da classe operária.
Desta ruptura também surge o movimento de Zimmerwald, uma conferência de
grandes lideres marxistas revolucionários ocorrida na Suíça que, após
processos de síntese e rupturas, assentou as bases para a futura formação,
em 1919, da 3ª Internacional que, até 1943, foi o “partido mundial” dos
marxistas e congregava todos os partidos comunistas do mundo.
É particularmente importante demonstrar tal cisão, tanto por um objetivo de
delimitar os campos “marxistas” em embate, uma vez que, mesmo em apoio a
guerra, em alguns casos a frente de estados capitalistas, como a Alemanha, os
socialdemocratas se consideravam marxistas. Além deste nosso objetivo
delimitador, resta em nível análogo de importância a necessidade de
demonstrar que a base da diferença entre estes dois grandes grupos se dava
em relação a princípios políticos há muito defendidos pelos marxistas dentre os
quais, talvez um dos mais importantes, seja a chamada “autodeterminação dos
povos”, ideal fortemente defendido pelos bolcheviques e, posteriormente, com
a eclosão de diversos partidos comunistas pelo mundo, pela 3ª Internacional.
Após a ruptura e ao longo dos anos de guerra, as diferenças entre as alas do
movimento socialista se tornavam cada vez mais agudas, se decantando entre
a ala esquerda, o futuro embrião dos comunistas, o “centro”, composto por
membros hesitantes e os “social-patriotas”, defensores das hostilidades
militares de seus países.
Dessa ruptura, os futuros comunistas identificavam grande parte da
responsabilidade pela traição da 2ª internacional na postura “eurocentrista” de
seus dirigentes e sua visão de mundo adotada que, afirmavam, ignorava os
povos de outras etnias e/ou raças e, desta forma, integravam-se as nações
capitalistas e aos projetos burgueses pela via das concessões que a burguesia
imperialista concedia a classe operária e a este setor dirigente desta.
Assim surgiria a burocracia operária e a aristocracia operária, advogando pela
vitória pacífica, lenta e gradual de um socialismo por reformas, numa ideologia
paga com os salários melhores, melhores condições de vida e direitos sociais
mais abrangentes, resultado da espoliação, exploração e massacre das
colônias.
Contra tal realidade, os marxistas revolucionários “antiguerra” e
internacionalistas invocavam o ideário da “autodeterminação dos povos”,
segundo o qual os povos tinham o direito de dispor de si próprios, seu futuro e
de tudo o que estiver em seus domínios culturais, sociais e territoriais sem a
intervenção de qualquer nação estrangeira.
Tal bandeira não apenas era um princípio passivo e abstrato de relações
internacionais, mas tinha objetivos políticos precisos de defesa das
nacionalidades oprimidas (um aliado estratégico dos bolcheviques na
revolução) e de apontar ao ideal máximo marxista que era o fim da opressão
do homem pelo homem.
Tão importante era tal princípio que, no dia mesmo da tomada do poder, em 26
de outubro de 1917, os bolcheviques ao aprovarem no congresso de todos os
sovietes da Rússia o decreto por uma paz imediata, democrática e sem
anexações, invocava o princípio de autodeterminação dos povos, chamando a
que os povos trabalhadores e camponeses da Europa determinassem o futuro
das ações de suas nações e dispusessem de seu próprio destino, num
discurso que também se destinava as nacionalidades oprimidas dentro da
Rússia.
Tal declaração e decreto, obviamente, não foi bem recebido nem pela Entente
(França e Inglaterra) nem pelos impérios centrais (Império Austro-Hungaro e
Alemanha) que viam nestas declarações muito mais táticas para manutenção
do poder dos bolcheviques do que princípios ordenadores para negociações.
A paz, de fato, era a bandeira mais importante e que conduziu os bolcheviques
ao poder, logo, para estes era crucial tomar medidas efetivas em seu sentido e
conquista-la o quanto antes diante da possibilidade de dissolução espontânea
dos soldados. É por isto que as medidas se deram ininterruptamente desde o
primeiro dia da tomada do poder até a assinatura do tratado de Brest em 1918.
De início, nem a Alemanha e seus aliados nem a Inglaterra e os seus trataram
de reconhecer o governo soviético tentando, estabelecer contatos com
generais representantes do antigo regime que, efetivamente, não possuíam
poder político e capacidade de controle algum das tropas russas,
absolutamente esfaceladas e esgotadas pela guerra.
No entanto, diante da insistência soviética e dos contatos estabelecidos por
Krilenko, ex-alferes e posterior comandante-em-chefe das forças armadas da
federação russa, estabeleceu-se contatos entre o Governo soviético e os
Aliados e a Entente.
Num movimento duplo, os soviéticos tentavam tanto arrancar a paz menos
danosa nas negociações com a Alemanha, quanto obter a confirmação dos
aliados de que negociariam em conjunto a paz.
Assim, após diversas tentativas de contato e as subsequentes ameaças contra
os soviéticos, as negociações de paz começaram no dia 9 de dezembro de
1917, com uma declaração de princípios em defesa de uma paz democrática,
justa e sem anexações, resultando em um armistício, aceitas hipocritamente
pela Alemanha e os aliados e ignoradas pelos países da Entente que, a este
momento, haviam interrompido as ameaças de intervenção caso uma paz em
separado fosse assinada.
De fato, os aliados, exasperados pela ousadia soviética, ameaçaram invadir a
Sibéria pelo Japão e, por mais que lutassem pela abertura das negociações os
bolcheviques não tinham, ainda, abertura para a aceitação de uma paz em
separado.
Aqui, no início das negociações, se evidenciou a profunda inovação dos
soviéticos no que diz respeito ao início de sua diplomacia e as relações
internacionais e exteriores. O objetivo soviético era ganhar o máximo de tempo
para que, tanto pudessem fortalecer suas posições internas, defesas, quanto
pudesse amadurecer a convulsão social na Europa Ocidental e pudessem
eclodir processos revolucionários, principalmente na Alemanha.
Os bolcheviques e dentre eles, principalmente, Trotsky que era chefe da
delegação de negociação soviética em Brest, acreditavam firmemente que uma
revolução eclodiria em nações da Europa ocidental e isto seria a melhor ajuda
a revolução russa e para a obtenção de uma paz democrática, bem como do
avanço da construção do socialismo em toda a Europa.
Sua atitude, então, sempre foi a de um duplo apelo, em seus pronunciamentos,
manobras, táticas e debates nas negociações sempre buscando tirar vantagem
das diferenças internas e externas entre os membros da Entente e dos
Impérios aliados, assim como incentivar e dialogar diretamente com os
trabalhadores e camponeses pobres nos exércitos e cidades dos países
beligerantes. Mesmo negociando, o governo soviético não se privava do direito
de agitar a ideia do socialismo e da defesa de todos os povos oprimidos.
Tal política de duplo apelo deixou a diplomacia tradicional europeia
completamente atordoada, principalmente diante das medidas soviéticas.
Frente as ameaças imperialistas em relação a obtenção de paz, os Soviéticos
proclamavam uma nova era na relação entre os povos de todo o mundo e
declaravam anulados todos os tratados antigos estabelecidos pela Rússia
Czarista. E mais: anunciaram o fim das correspondências, diálogos e tratados
secretos entre a Federação Russa e toda e qualquer nação, bem como
prometiam sua publicação completa.
Esta medida pôs em pânico a diplomacia europeia, absolutamente exposta
pela publicação dos tratados secretos, enquanto os soviéticos afirmavam sua
honestidade internacional e compromisso de não tomar parte nas barganhas,
negociatas e espoliações secretas estabelecidas pelos imperialistas. Seu
objetivo era, além da simpatia dos povos em todo mundo, igualmente, se
beneficiar da tentativa dos governos europeus em tirar vantagem das
informações publicadas.
Com esta publicação que resultava na eliminação da diplomacia secreta,
proclamada como a base de uma política externa democrática, honesta e
popular, os soviéticos viravam do avesso a diplomacia e apontavam para
novos, porém baseados em antigas posições, princípios dos marxistas,
duráveis até pelo menos o início da era stalinista no partido e na futura URSS.
Temos então uma proposta de paz democrática, sem anexações, baseada no
ideal de autodeterminação dos povos e com o estabelecimento de negociações
abertas diante de todos os povos das nações, com o fim das barganhas e
diplomacia secreta, como base de uma inovadora e audaz política marxista no
que diz respeito as relações exteriores e internacionais.
Dentro desta política geral, é claro, surgiram diferenças táticas quanto ao que
fazer nas idas e vindas das negociações de Brest Litovsk. Embora nosso
objetivo seja o de expor e explanar os princípios e a política geral marxista em
Brest e não relatar uma história da negociação, tona-se importante a exposição
das diferenças internas aos bolcheviques e seus aliados.
Como sabemos, o governo soviético não era monolítico em seu início, mas
contava com a participação e uma importante Ala, os “SR” de esquerda,
advinda do antigo partido de camponeses, o Socialista Revolucionário, que
apoiou e construiu a revolução em oposição as outras alas de seu partido e
tomou parte do Governo soviéticos e suas responsabilidades. Para estes, a
questão da terra e da Paz era crucial, na medida em que sua base camponesa
as via com a maior importância. Logo, a questão da paz era fonte de
apreensão e choque também na relação dos bolcheviques com este seu aliado.
Internamente, os bolcheviques se dividiram ao longo do processo em três alas
que, com os vai e vens, acordavam, discordavam, estabeleciam pactos e,
apesar de todas as diferenças, conseguiram chegar a uma solução satisfatória,
apesar de não ideal, para a guerra.
A primeira ala podemos chamar de “comunistas de esquerda” que, com sua
“fraseologia revolucionária” descolada da análise da situação objetiva ,
segundo as palavras de Lênin, pregavam a guerra revolucionária diante das
absurdas exigências de indenizações e anexações feitas pelos impérios
centrais, defendendo uma espécie de mobilização geral da população contra os
imperialistas alemães em primeiro lugar, mas contra qualquer agressor que
tentasse impor sua vontade contra a república soviética.
A frente do comissariado para negócios exteriores, Trotsky, seguido por muitos
bolcheviques, defendia uma posição intermediária, diante do esgotamento do
exército e do povo russos após 12 anos de guerra civil e imperialista, que,
segundo sua avaliação, permitiria ganhar tempo para a eclosão de um
processo revolucionário na Alemanha e Europa Ocidental, bem como,
secundariamente, para reorganizar as defesas Russas.
Era a política de “nem paz, nem guerra” que se implementou no primeiro
momento das negociações, culminando na desmobilização do front de guerra
russo, o retorno dos soldados e, ainda assim, a não assinatura do tratado de
paz. Buscava assim, novamente, a política de duplo apelo, numa inovação
impensável para os diplomatas da época, tentando obter uma posição
politicamente defensiva e fomentar a revolta dos povos contra qualquer
eventual agressão alemã.
Uma política arriscada que obteve a maioria do partido, contra a qual Lênin e
sua minoria se contrapuseram e com a qual, após se ver em minoria, buscou
estabelecer um acordo de que se alterasse para a assinatura de qualquer
tratado de paz em caso de ruptura do acordo pelos alemães, reinício das
agressões e estabelecimento de um ultimato.
Tal foi a realidade dos fatos e então, prontamente, diante da retomada de
hostilidades dos alemães, retornava a maioria Lenin e sua proposta de
assinatura de qualquer tratado, que, mesmo não dando vida a uma paz
democrática, não-anexionista e justa, possibilitaria a defesa da revolução,
manutenção do poder soviético e tempo para que estes “pedaços de papéis”
pudessem ser “rasgados” quando estivessem a altura do desafio.
Todos eles, afinal, compartilhavam do mesmo objetivo estratégico, qual seja, a
defesa da nova república soviética, concordavam com os princípios de uma
paz justa, a autodeterminação dos povos, o absurdo de uma diplomacia
secreta ao povo de todos os países, mas divergiam na tática, no como se
chegar a tais objetivos estratégicos e como os princípios e as táticas se
ligariam a uma estratégia.
Lênin sairia vitorioso, como em outras vezes, por observar a realidade de forma
não retilínea, mas dialética, entendendo que o caminho para os objetivos
estratégicos dos revolucionários não seguem necessariamente em linha reta,
mas podem percorrer caminhos tortuosos, recuos, desvios e manobras, desde
que respeitados os princípios e a “honestidade”, com objetivos emancipatórios,
diante de todos os povos oprimidos do mundo.
E, assim, a assinatura de paz com as potências centrais, em conjunto com
todas as operações realizadas, foram uma manobra que possibilitou aos
soviéticos o tempo para a consolidação de seu poder, a simpatia de milhões de
trabalhadores pelo mundo que, organizados nas alas esquerdas dos partidos
socialistas, grandes organizações de massas de seu tempo, rompiam e
formavam novos partidos comunistas e, finalmente, e a coesão interna para
formar um dos maiores, senão o maior, exército da história humana: o exército
vermelho com mais de 5 milhões de homens na ativa.
Exército este que enfrentou e saiu vitorioso do embate com mais de 14 países
intervencionistas que, na guerra civil russa, tentaram derrubar o governo dos
sovietes da Europa até a Sibéria no extremo oriente.

Bibliografia e referências:

-Trotsky, León: Minha vida;


História da revolução Russa; A revolução de outubro;

-Deutscher, Isaac: O profeta armado;

-Bukharin, Nicolai e Preobrazhensky, Evgeny: O ABC do comunismo

-Lênin, Vladimir: Peace or War?;


- Strada, Vittorio: Brest-Litovsk, O debate sobre paz;

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