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Leis de incentivo: a reforma tributária pode ajudar a criar uma

cultura de doação?
Sistema atual, com diversas leis e regras, precisa ser mais simples e mais
claro, defendem especialistas
Mecanismos são responsáveis por captar quase R$ 3,5 bilhões por ano, mas
valor poderia superar R$ 6 bilhões
Legislação atual dá ênfase excessiva a projetos e permite apoio só a algumas
causas

Dez entre dez captadores de recursos apregoam a importância, mais ainda, a


necessidade de se criar uma cultura de doação no Brasil. Sabemos todos que isso
depende de inúmeras mudanças, do lado de quem doa e do lado de quem recebe. Mas
também do lado de quem cobra e fiscaliza: o poder público.

E estamos numa época propícia para discutir este último lado, o do Estado que, por
meio de leis de incentivo, abre mão de parte de seus impostos para estimular as
pessoas a serem solidárias. Há uma comissão de deputados e senadores discutindo
reforma tributária, e o governo federal já enviou ao Congresso um projeto que pretende
ser o primeiro de vários para alterar os tributos no Brasil.
As organizações da sociedade civil precisam engajar-se nesse debate com uma premissa
fundamental: é necessário simplificar, como defenderam os participantes do webinar
“Incentivos fiscais para doações”, o terceiro da série “Reforma Tributária Sem Fins
Lucrativos”, organizada pela Associação Brasileira dos Captadores de Recursos (ABCR) e
pela Escola Aberta do Terceiro Setor. “A palavra de ordem tem de ser simplificar”,
resumiu o diretor de responsabilidade social do Hospital de Amor, Henrique Moraes
Prata, durante o evento, realizado em 19 de março (assista ao vídeo na íntegra).

Quais são os tipos de incentivo para as OSCs no Brasil?


São muitos. Todos os estados têm leis de incentivo, por exemplo; muitas capitais
também. Em nível federal, são principalmente seis tipos. A Lei de Incentivo à Cultura
(mais conhecida como Lei Rouanet), a Lei do Audiovisual, a Lei de Incentivo ao Esporte,
os dois programas da área da saúde (Programa Nacional de Apoio à Atenção Oncológica,
o PRONON, e Programa Nacional de Apoio à Atenção da Saúde da Pessoa com
Deficiência, o PRONAS/PCD), os fundos (Fundos dos Direitos da Criança e do
Adolescente e Fundos do Idoso) e as doações diretas para entidades (leis 9.249/95 e
13.204/2015).

Como eles funcionam?


Com exceção dos aportes diretos, os mecanismos geralmente dão desconto integral
para as doações no Imposto de Renda. As informações apresentadas no evento pelo
diretor da consultoria Criando, Michel Freller, estão resumidos na tabela abaixo (veja a
íntegra da apresentação do consultor, que também é vice-presidente da ABCR e
professor da Escola Aberta do Terceiro Setor). Observe que, ao todo, empresas podem
abater até 9% de seu Imposto de Renda usando as doações; indivíduos, até 8%.

Leis de incentivo que dão desconto no Imposto de Renda


Quanto abate do IR
Empresas* Indivíduos
% Restrições % Restrições

Cultura e
Incentivo à Cultura 4 Audiovisual, 6
somados, Cultura,
podem abater Audiovisual,
no máximo 4% Esporte e
Fundos,
somados,
podem abater
no máximo 6%
Incentivo ao Audiovisual 3 6
Incentivo ao Esporte 1 — 6

Fundo dos Direitos da Criança


e do Adolescente 1 — 6
Fundo do Idoso 1 — 6
Pronon 1 — 1 —
Pronas/PCD 1 — 1 —
TOTAL 9 8
*Apenas empresas que operam no regime de lucro real. Não há leis federais de incentivo para
empresas que declaram por lucro presumido

As doações diretas funcionam de modo diferente. Como explicou no webinar o


advogado Renato Dolabella, da Dolabella Costa Campos Advocacia e Consultoria, a
empresa doadora (esse mecanismo não se aplica a pessoas físicas – aliás, também não
se aplica a empresas que operam no regime de lucro presumido) não abate o valor
doado do Imposto de Renda. A doação entra como despesa operacional e encolhe a
base de cálculo de alguns tributos. O desconto não é integral: para cada R$ 100 doados,
a empresa arca de fato entre R$ 61 e R$ 66. As mesmas regras se aplicam a doações
para instituições de ensino e pesquisa sem fins lucrativos.
Somando-se esse mecanismo aos anteriores, uma empresa pode abater algo em torno
de 10% e 10,5% de seu imposto com as doações, disse Freller. Simplificando um pouco,
uma empresa que tivesse de pagar R$ 100 mil de IR sobre seu lucro poderia doar até
R$ 10 mil por meio dos seis tipos de mecanismo e pagar efetivamente R$ 90 mil em
tributos.

A importância desses mecanismos ficou clara na fala de Henrique Prata, do hospital de


Barretos, maior instituição de atendimento oncológico gratuito do país. “O hospital
depende de leis de incentivo”, resumiu. “Os incentivos são em grande parte
responsáveis por nosso atendimento ser 100% via SUS. Conseguimos custear o
tratamento de idosos e crianças graças às leis de incentivo. Conseguimos desenvolver
vários projetos graças ao Pronas e ao Pronon. Todas as nossas ações de humanização
são tratadas à luz de projetos culturais incentivados – e são um sucesso.”

Quanto as leis de incentivo geram de doação?


Mais de R$ 3 bilhões por ano, levando-se em conta apenas os mecanismos federais
citados por Freller. O consultor mostrou dados de 2013 a 2019 e destacou que, em geral,
há uma curva ascendente: o valor captado vem subindo, sem contar a inflação. A
exceção foi em 2016, quando a Petrobras, na esteira das investigações da Lava Jato,
estancou os investimentos em cultura. “Muita gente achava que em 2020 iria cair, que
seria zero. Pelo dado que nós já temos, que é o de cultura, não caiu nada”, adiantou.

Vale frisar que nem todo esse valor vai para entidades sem fins lucrativos. Os incentivos
para a área de cultura, por exemplo – responsáveis por cerca de 45% do total captado –
, também beneficiam empresas como produtoras culturais, companhias de teatro e
estúdios de cinema.

Valores recebidos via leis de incentivo


(em R$ milhões, sem descontar inflação)

3,444
3,307 3,238
3,098 3,164 3,108
2,967 2,996
2,831 2,869
2,712 2,715
2,554 2,660

106 119 131 154 168 199 207

2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019

Empresas Indivíduos Total


Poderiam gerar mais?
Muito mais. Pelas contas de Freller, se todas as empresas que declaram por lucro real
colocassem 9% do imposto nas leis de incentivo, elas captariam R$ 6 bilhões. Em 2019,
foram R$ 3,24 bilhões. “Há R$ 2,5 bilhões disponíveis que nós, como organizações da
sociedade civil e produtores culturais, não conseguimos acessar”, observou.
Para indivíduos (pessoas físicas), não há dados da Receita Federal. O consultor estima
que seria possível obter entre R$ 4 bilhões e R$ 6 bilhões. “Mesmo se a estimativa
estiver errada e forem R$ 3 bilhões, estamos muito, muito, muito longe de chegar a
esses valores. Estamos captando apenas, junto a pessoas físicas, pouco mais de R$ 206
milhões”, declarou. “É gota no oceano. O governo abre mão de receber esse valor e nós,
da sociedade civil, não estamos conseguindo pôr a mão nesse dinheiro.”

O que precisa melhorar: as leis são restritas a algumas causas


Durante o evento, o diretor-executivo da ABCR, João Paulo Vergueiro, provocou: “Quero
doar R$ 30 por mês para uma organização de meio ambiente que trabalha com
Amazônia. Posso pedir abatimento do Imposto de Renda?”. Volte à tabela mais acima,
com a lista das leis. Encontrou a expressão direitos humanos? Não. Educação? Não.
Meio ambiente? Não.
“Não existe incentivo fiscal para pessoa física fora dos projetos de: cultura, esporte,
saúde, idoso e criança”, resumiu Freller. Ele lembrou que havia essa possibilidade até
décadas atrás, mas, em razão de irregularidades envolvendo algumas organizações, os
incentivos foram restringidos.
Assim, entidades de outras áreas têm de fazer parcerias ou conseguir benefícios “de
maneira lateral”, como denominou Freller. Por exemplo, uma OSC de direitos humanos,
em parceria com uma OSC da área esportiva, pode organizar uma caminhada que
divulgue a causa – e pagá-la com recursos captados pela Lei de Incentivo ao Esporte. Ou
fazer um documentário sobre direitos humanos, com recursos da Lei Rouanet. “Ela
consegue usar os incentivos para divulgar a causa, mas não para suas atividades”,
comparou o consultor.
Para as empresas, há a possibilidade das doações diretas, por meio das leis 9.249/95 e
13.204/2015, que podem beneficiar qualquer uma das cerca de 800 mil organizações
sociais do Brasil. “Sou muito simpático a esse mecanismo, talvez seja o mais transversal
que temos”, comentou o advogado Renato Dolabella. “Mas tem um benefício
econômico menor, o que gera dificuldades”, acrescentou, fazendo referência ao fato de
que a doação, nesse caso, não é 100% descontada dos tributos.

O que precisa melhorar: incentivo só para projetos


A grande maioria das leis de incentivo é atrelada a “um projeto previamente aprovado
junto a uma entidade, a um órgão público”, explicou Dolabella. Veja que os exemplos
citados durante o evento para uma OSC de direitos humanos usar os mecanismos
envolvem atividades pontuais: uma caminhada, um documentário. Ou seja, um projeto.
A exceção, mais uma vez, são as doações diretas. Elas dão “uma flexibilidade de gestão
maior, uma liberdade maior”, disse o advogado. “A condicionante é que a entidade
aplique os recursos em atividades que estejam dentro de seus objetivos estatutários.”.

O que precisa melhorar: falta transparência


Nesse ponto, os principais comentários no webinar foram relacionados aos fundos de
infância, adolescência e idosos. Embora regulados por lei federal, os detalhes da
operação de tais mecanismos são definidos em nível municipal. E em algumas cidades
só é possível doar para o fundo, genericamente.
“Muitas vezes o doador não sabe para onde está indo o recurso: fica parado no fundo,
não chega à organização”, disse a professora Ana Paula Cavalcante, da UniCesumar.
Dolabella citou o caso da cidade do Rio de Janeiro como um contraexemplo. Lá, por
determinação do Ministério Público, a doação direta a entidades específicas foi
suspensa, e passou a ser permitida apenas a doação ao Fundo da Infância e da
Adolescência. “As doações sumiram”, contou. “Quem cativa o doador não é a
ferramenta tributária sozinha. É o trabalho das entidades, dos captadores – esse pessoal
que mostra credibilidade, que mostra resultados impactantes. É isso que motiva, que
faz brilhar o olho do doador, para ele poder se engajar na causa.”

O que precisa melhorar: falta simplicidade


Volte à tabela do início do texto. Várias linhas, algumas restrições, nota com
observação... E ela apenas resume superficialmente o funcionamento daquelas leis de
incentivo – na prática, há mais regras, exceções e subdivisões. Não precisa ser assim.
Um modelo elogiado por Freller e Prata no webinar foi o dos Estados Unidos. “Gosto do
modelo americano: uma lei atende a todas as causas, para todas as pessoas, físicas ou
jurídicas, pequenas ou grandes”, resumiu o consultor. Ele próprio é autor de um pré-
projeto com modelo parecido, que está sendo debatido na ABCR.
“É impossível ter uma cultura de doação com esse emaranhado de leis tributárias, com
essa insegurança que temos”, avaliou Prata. Para ele, um objetivo crucial da reforma
tributária tem de ser diminuir a insegurança nessa área. “Uma pessoa qualquer precisa
saber quanto vai pagar de imposto e quanto pode doar. Se a gente conseguir isso, quer
dizer que a reforma deu certo”, acrescentou. “Uma reforma precisa obrigatoriamente
simplificar os modelos tributários atuais e precisa dar clareza. Com isso vem a
segurança. E com a segurança aumenta o número de doações.”
Ana Cavalcante salientou a importância de promover a participação política dos
cidadãos – por exemplo, nos conselhos municipais – e de esclarecer os processos de
doação.

O que precisa melhorar: cultura de doação... nos órgãos fiscalizadores


Mudanças na legislação são necessárias, porém não suficientes. Dolabella defendeu a
necessidade de criar uma cultura de doação nos próprios órgãos públicos de controle. “Eles
precisam entender a relevância desses instrumentos e como devem ser geridos e executados
para chegar ao resultado social.”

Ele nota uma “insegurança muito grande” de alguns técnicos responsáveis por análises de
prestações de contas. O advogado citou casos de diligências feitas anos ou mesmo décadas
depois da entrega dos resultados do projeto. “Isso gera um custo operacional gigante tanto para
o poder público como para as entidades. Gera um descrédito nas ferramentas de captação
incentivada.”

Série Reforma Tributária Sem Fins Lucrativos

Incentivos Fiscais para Doação


19 de março de 2021

Abertura: Débora Verdan (Escola Aberta do Terceiro Setor) e João Paulo Vergueiro (ABCR)
Debatedores: Michel Freller, moderador (ABCR), Henrique Moraes Prata (Hospital de
Amor), Ana Paula Cavalcanti (UniCesumar), Renato Dolabella (Dolabella Costa Campos
Advocacia e Consultoria)

Assista na íntegra

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