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Epígrafe
Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve
comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas
vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que
me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida.
Clarice Lispector
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que Jacques-Alain Miller denominou de retificação subjetiva: um novo
posicionamento do sujeito vis-à-vis seu desejo. Em “Verdade, irmã de
Gozo”, seminário sobre o Avesso da psicanálise, Lacan se pergunta: ‘O que
é que tem um corpo e não existe?’ E ele mesmo responde: “O grande
Outro”. P.62. Pois é a fantasia desse Outro onipotente, não castrado, à qual
deve se ater o analista para produzir a destituição que aí incide do gozo do
Outro sobre o sujeito. E este modo de incidência é o modo de gozar do
sujeito nesta sua vertente da pulsão de morte. Apelo, grito surdo parado
no ar que, em sua insistência e recalcitrância, precisa ser escutado pelo
analista. Aturdido, os aturditos do analisante ressoam no não-sentido do
dizer além do dito. Deambulante, o que era certeza e razão até aqui, torna-
se o epicentro de um turbilhão de emoções que chacoalham o sujeito para
além de suas garantias.
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minarete que o analista pode fazer uma interpretação que vise concernir à
causa do desejo, como expõe Lacan no Aturdito. A estrutura de uma
interpretação é a do saber no lugar da verdade. Este é o discurso do
psicanalista como Lacan nos ensina em seu seminário O avesso da
psicanálise, livro 17. “O inconsciente (real), permite situar (a causa) do
desejo.” (p.43) O estranho e paradoxal é que no real não é preciso que nada
seja tudo, ou que se venha verificar a existência do objeto, pois do que se
trata é da ex-sistência, uma existência não-sem o fora-dentro de das Ding,
da Coisa. O mais íntimo exterior da Coisa.
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Então, só é possível a interpretação se o sujeito se abre ao equívoco?
É possível uma análise onde isso não aconteça? Seria como perguntar se é
possível uma análise para um sujeito que não se angustie. A angústia se
manifesta ali onde surge o sujeito do inconsciente. Portanto, seria o mesmo
que perguntar também se seria possível uma análise sem que este sujeito
dividido, dividido pelos significantes não surgisse. Assim, podemos afirmar
que é no momento no qual surge o sujeito do inconsciente, há a emergência
do real da angústia de castração. Ou, ao menos, seu horizonte de
possibilidades. Não é no nível das formações do inconsciente, onde
também há a divisão do sujeito num efeito de a posteriori, no qual a
angústia surge. Embora os tropeços da linguagem, os atos falhos, os chistes
possam fazer eloquência à angústia, esta aparece num outro lugar fora da
linguagem. Outrossim, não devemos desprezar o aforisma do inconsciente
estruturado como uma linguagem. Ele está aí para nos fisgar a todo
momento. Lacan, na Introdução à Edição alemã dos Escritos nos diz que um
analista se define a partir das experiências das formações do inconsciente.
É o Schiboleth freudiano para Lacan. Mas o que devemos escutar é algo
para além da palavra: um engasgo, um tropeço na respiração, um efeito de
corpo, ou seja, algo do real enquanto impossível de dizer.
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Os efeitos de lalangue, alíngua, apontam para um real difícil de
soletrar. Essa rasura de traço é a angústia d’Acoisa, como diz Lacan em
Lituraterra. Litura pura é o literal. Na vida, o risco avança sobre a solidão da
ilha e faz-se continente. De traço em traço, as identificações ganham laço,
espaço e a terra se abre, não-sem a dor do parto. Abrir-se em novos rumos,
desfolhar a condição litoral, é uma contingência para que o real possa
passar pelo simbólico e, no um a um de cada análise, fazer travessia.
A ‘mulher dos furúnculos’ que queria ser capa de revista, para que
seu pai, um militar, a passasse em revista (não é preciso que se explique o
cunho sexual dessa expressão), no auge de sua angústia, seu gozo no corpo
parece colocá-la numa atopia, num fora-do-tempo. Essa disrupção, essa
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posição disruptiva - suspensão da linearidade constitutiva do tempo do
sujeito -, corresponde a uma dimensão máxima de irrupção do real, da
angústia de castração por um lado (você não pode tudo com seu pai), e a
fratura do simbólico pelo outro (emergência de furos no real do corpo) até
então recobertos pela lamele.
Lacan, ainda na Introdução à Edição alemã dos Escritos, nos diz que
“o inconsciente trabalha sem pensar, nem calcular, nem tampouco julgar e
que, ainda assim, o fruto está aí: um saber que se trata de decifrar já que
ele consiste num ciframento. No ciframento está o gozo. O gozo sexual e
que é isso que faz obstáculo à relação sexual.”
Para o amor, diz Lacan, há o feliz acaso [bom heur]. Aliás, só existe
isso: a felicidade do acaso.
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