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RARTELOS: O ESTRANHO REAL DA ANGÚSTIA

Carlos Eduardo Leal

Epígrafe

Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve
comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas
vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que
me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida.
Clarice Lispector

De repente a vida perde o sentido. Há um torvelinho e o mal-estar


inaugura um lugar fora de lugar. Não é uma sensação de onipotência, mas
justo o contrário. O mundo se colocou ao contrário e é sobre este fora-de-
si que acossa ao sujeito e o coloca num mundo distópico que é rartelos: o
estranho e o real enquanto impossibilidade de dizer a vida.

Em tempos de pandemia, tudo ficou extremamente acentuado,


superlativo, agudo, o que era tradição da instância do real sobre o
simbólico. Marca característica da angústia, a instância do real, esse
impossível de ser dito, que revela o ex-sistir, como diz Lacan em seu
‘Aturdito’, não cessa de não se inscrever.

O que tenho sustentado em minha pesquisa em meu seminário é que


na fulguração do instante do olhar na angústia de castração, o tempo
psíquico é igual a zero. Há uma suspensão da cronologia temporal e a
fulguração do tempo lógico transforma-se numa epifania da dor. O sujeito
na suspensão de suas certezas, encontra-se numa desestabilização do
imaginário. Talvez seja o momento numa análise no qual o analista possa
trabalhar a destituição subjetiva do gozo do Outro para poder alavancar o

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que Jacques-Alain Miller denominou de retificação subjetiva: um novo
posicionamento do sujeito vis-à-vis seu desejo. Em “Verdade, irmã de
Gozo”, seminário sobre o Avesso da psicanálise, Lacan se pergunta: ‘O que
é que tem um corpo e não existe?’ E ele mesmo responde: “O grande
Outro”. P.62. Pois é a fantasia desse Outro onipotente, não castrado, à qual
deve se ater o analista para produzir a destituição que aí incide do gozo do
Outro sobre o sujeito. E este modo de incidência é o modo de gozar do
sujeito nesta sua vertente da pulsão de morte. Apelo, grito surdo parado
no ar que, em sua insistência e recalcitrância, precisa ser escutado pelo
analista. Aturdido, os aturditos do analisante ressoam no não-sentido do
dizer além do dito. Deambulante, o que era certeza e razão até aqui, torna-
se o epicentro de um turbilhão de emoções que chacoalham o sujeito para
além de suas garantias.

Neste momento topológico, o sujeito cai diante de uma vertigem em


que nada o ampara. Talvez um momento de eleição de um objeto fóbico
que pretenda toscamente fazer frente à angústia de castração, mas com
isso, só faz presentificá-la a cada novo encontro com este objeto, afinal de
constas, nos diz Freud em seu mal-Estar na Civilização, “a fobia é uma
variante topográfica da angústia”.

O apelo ao pai é evidente frente ao desamparo diante do objeto


fóbico. Ali onde falta o pai, deve o objeto fóbico advir. A eleição desse
objeto, como podemos observar em Hans, não é aleatória. O sujeito escolhe
o objeto da fobia segundo critérios muito precisos em sua história. Assim
também é com os lobos na janela no sonho de Sergei Pankejeff.

São principalmente essas análises com crianças que nos ensinam


situar o lugar do objeto fóbico na fantasia de cada um. É a partir deste

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minarete que o analista pode fazer uma interpretação que vise concernir à
causa do desejo, como expõe Lacan no Aturdito. A estrutura de uma
interpretação é a do saber no lugar da verdade. Este é o discurso do
psicanalista como Lacan nos ensina em seu seminário O avesso da
psicanálise, livro 17. “O inconsciente (real), permite situar (a causa) do
desejo.” (p.43) O estranho e paradoxal é que no real não é preciso que nada
seja tudo, ou que se venha verificar a existência do objeto, pois do que se
trata é da ex-sistência, uma existência não-sem o fora-dentro de das Ding,
da Coisa. O mais íntimo exterior da Coisa.

Diante da emergência do real, pela desestabilização do imaginário -


suas garantias, e a fratura da palavra no simbólico - sua detumescência, a
interpretação deve advir aí jogando com o equívoco, para que se questione
o saber nas malhas da verdade. Lacan, ainda no Aturdito, nos fala a espeito
de três tipos de equívocos: a homofonia, os da gramática e os da lógica. A
homofonia evidência a ambiguidade significante adubando a semente de
um real impossível. Coisa que a ortografia não conseguiria porque a sintaxe
em suas relações de concordância, subordinação e ordem numa frase, é
fixa. Já o significante abre-se como uma flor à interpretação das
sazonalidades da palavra.

No plano da gramática aparece o paradoxo lógico: o ‘eu não te faço


dizer’, já aponta para o ‘você disse’.

Já no registro da lógica, o que está em jogo é o equívoco no saber


provocado justamente por um sujeito suposto saber: o analista. A
interpretação não é o enunciado de um saber, mas sim sua enunciação, ou
seja, o que vai nas entrelinhas deste saber não sabido sob transferência.

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Então, só é possível a interpretação se o sujeito se abre ao equívoco?
É possível uma análise onde isso não aconteça? Seria como perguntar se é
possível uma análise para um sujeito que não se angustie. A angústia se
manifesta ali onde surge o sujeito do inconsciente. Portanto, seria o mesmo
que perguntar também se seria possível uma análise sem que este sujeito
dividido, dividido pelos significantes não surgisse. Assim, podemos afirmar
que é no momento no qual surge o sujeito do inconsciente, há a emergência
do real da angústia de castração. Ou, ao menos, seu horizonte de
possibilidades. Não é no nível das formações do inconsciente, onde
também há a divisão do sujeito num efeito de a posteriori, no qual a
angústia surge. Embora os tropeços da linguagem, os atos falhos, os chistes
possam fazer eloquência à angústia, esta aparece num outro lugar fora da
linguagem. Outrossim, não devemos desprezar o aforisma do inconsciente
estruturado como uma linguagem. Ele está aí para nos fisgar a todo
momento. Lacan, na Introdução à Edição alemã dos Escritos nos diz que um
analista se define a partir das experiências das formações do inconsciente.
É o Schiboleth freudiano para Lacan. Mas o que devemos escutar é algo
para além da palavra: um engasgo, um tropeço na respiração, um efeito de
corpo, ou seja, algo do real enquanto impossível de dizer.

Recordo de uma paciente que aproximando-se o final de sua análise,


começou a brotar-lhe furúnculos pelo corpo. O cúmulo do sentido a fazer-
lhe enigma. “A cifra”, diz Lacan na mesma Introdução à edição alemã, “a
cifra funda a ordem do signo. Falamos de valor que tem o estalão do
sentido. Chegar a ele não impede de fazer furo. Uma mensagem decifrada
pode continuar a ser um enigma”. É o sentido sexual da estrutura. “Para
ser”, ainda Lacan, “é preciso ex-sistir”. P. 552, Outros Escritos.

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Os efeitos de lalangue, alíngua, apontam para um real difícil de
soletrar. Essa rasura de traço é a angústia d’Acoisa, como diz Lacan em
Lituraterra. Litura pura é o literal. Na vida, o risco avança sobre a solidão da
ilha e faz-se continente. De traço em traço, as identificações ganham laço,
espaço e a terra se abre, não-sem a dor do parto. Abrir-se em novos rumos,
desfolhar a condição litoral, é uma contingência para que o real possa
passar pelo simbólico e, no um a um de cada análise, fazer travessia.

O excesso que nos habita, os acontecimentos de corpo, os


transbordamentos caudalosos de nossos rios, a angústia que teima em não
fazer borda, é a aposta que da literatura possamos fazer lituraterra. Litura
pura é o literal. Na vida, o risco avança sobre a solidão da ilha e faz-se
continente. De traço em traço, as identificações ganham laço, espaço e a
terra se abre, não-sem a dor do parto. Abrir-se em novos rumos, desfolhar
a condição litoral, é uma contingência para que o real possa passar pelo
simbólico e, no um a um de cada análise, fazer travessia.

Da clínica, nossa eterna parceira, minarete de onde prescrutamos as


incidências daquilo que não anda bem, daquilo que manca, da falta-a-ser
do sujeito, as linhas geográficas, as topologias da fala, os litorais insabidos
de um oceano por navegar. Esse grão de fantasia, esse grão de poesia,
“Esforço de poesia”, segundo Miller, é a própria análise que ao buscar
restaurar um estado anterior de coisas, iça velas e se põe ao vento, na
bruma navegável e incerta, das fragilidades da vida. , num fora-do-tempo.

A ‘mulher dos furúnculos’ que queria ser capa de revista, para que
seu pai, um militar, a passasse em revista (não é preciso que se explique o
cunho sexual dessa expressão), no auge de sua angústia, seu gozo no corpo
parece colocá-la numa atopia, num fora-do-tempo. Essa disrupção, essa

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posição disruptiva - suspensão da linearidade constitutiva do tempo do
sujeito -, corresponde a uma dimensão máxima de irrupção do real, da
angústia de castração por um lado (você não pode tudo com seu pai), e a
fratura do simbólico pelo outro (emergência de furos no real do corpo) até
então recobertos pela lamele.

Lacan, ainda na Introdução à Edição alemã dos Escritos, nos diz que
“o inconsciente trabalha sem pensar, nem calcular, nem tampouco julgar e
que, ainda assim, o fruto está aí: um saber que se trata de decifrar já que
ele consiste num ciframento. No ciframento está o gozo. O gozo sexual e
que é isso que faz obstáculo à relação sexual.”

Para o amor, diz Lacan, há o feliz acaso [bom heur]. Aliás, só existe
isso: a felicidade do acaso.

Se é difícil soletrar a vida é porque às vezes, ela nos aparece ao


contrário como RARTELOS. Aqui antevejo o ‘télos’, a finalidade, o fim último
de uma Coisa, a última parte, a última palavra, o arremate de uma análise.
Diante desse enigma, diante da angústia inevitável, será que o discurso
analítico poderia produzir um pouco mais da felicidade dos bons acasos?

Carlos Eduardo Leal

Psicanalista, escritor e artista plástico

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