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O Desejo

e sua Interpretação
Nota a esta edição

A presente versão foi produzida por membros e colaboradores da Asso­


ciação Psicanalítica de Porto Alegre, a partir do texto estabelecido pela
Association Freudienne Internationale.
Constitui material destinado à circulação interna e de responsabilidade
da Associação Psicanalítica de Porto Alegre estando aberto à discussão e in­
clusão, em próximas edições, de outras propostas de tradução, sugeridas por
colegas ou que surjam como efeito da circulação do texto em nossa língua.
Nesta edição optou-se por manter a pontuação francesa, embora difira
da portuguesa, por não termos acesso a originais (transcrições esteno-grafadas,
gravações, videos, etc.) que possam esclarecer sobre a fala de Lacan e definir
opções quanto às nuances que o estabelecimento de um texto escrito permite.
Por isso, deixamos ao leitor a tarefa de trabalhar com o que até aqui foi possí­
vel resgatar deste seminário de Lacan considerando as diversas leituras possí­
veis.
A versão francesa inclui, em anexo, o capítulo V do texto L 'analyse des
réves - Manuel pratique destine auxpsychanalystes, de Ella Sharpe, em inglês
e francês, referidos por Lacan em algumas das lições. Este capítulo não foi
incluído nesta edição.

Março/2002
Sumário

Aviso ao leitor...................................................................................................... 11
Lição 1 (12 de novembro de 1.958)...................................................13
Lição 2 (19 de novembro de 1958)....................................................35
Lição 3 (26 de novembro de 1958)....................................................53
Lição 4 (3 de dezembro de 1958)..................................................................... 73
Lição 5 (10 de dezembro de 1958)....................................................... ......;...... 93
Lição 6 (17 de dezembro de 1958)......................................................................111
Lição 7 (7 de janeiro de 1959).......................................................................... 129
Lição 8 (14 de janeiro de 1959)........................................................................ 149
Lição 9 (21 de janeiro de 1959)...........................................................................169
Lição 10 (28 de janeiro de 1959)....................................................................... 189
Lição 11 (4 de fevereiro de 1959)......................................................................209
Lição 12 (11 de fevereiro de 1959)................................................................... 229
Lição 13 (4 de março de 1959).......................................................................... 249
Lição 14 (11 de março de 1959)........................................................................ 265
Lição 15 (18 de março de 1959)........................................................................ 287
Lição 16 (8 de abril de 1959)............................................................................. 307
Lição 17 (15 de abril de 1959)........................................................................... 323
Lição 18 (22 de abril de 1959)........................................................................... 341
Lição 19 (29 de abril de 1959)........................................................................... 359
Lição 20 (13 de maio de 1959).......................................................................... 377
Lição 21 (20 de maio de 1959)........................................................................... 397
Lição 22 (27 de maio de 1959)....................................................................... ....415
Lição 23 (3 dejunho de 1959).............................................................................433
Lição 24 (10 dejunho de 1959)........................................................................ 449
Lição 25 (17 dejunho de 1959)...........................................................................465
Lição 26 (24 dejunho de 1959)......................................................................... 485
Lição 27 (1 de julho de 1959).............................................................................501
Aviso ao leitor

. O estabelecimento do texto deste Seminário revelou-se particularmente


difícil. Não é este o sitio para desenvolver os motivos numerosos que o expli­
cam. Indiquemos no entanto que os importantes comentários de Lacan sobre o
texto de Ella Sharpe e sobre o de Hamlet que ocupam um grande número de
lições acompanham-se de frequentes inexatidões nas citações e de traduções
muitas vezes muito livres. Devem evidentemente ser respeitadas mas, por isso,
pareceú-nos oportuno dar em anexo o texto integral de Ella Sharpe sobre o
qual se apoia Lacan com uma nova tradução o mais próxima possível do texto,
às vezes mesmo à custa da sua qualidade literária, assim como um conjunto de
notas muito mais importante do que aquele que damos habitualmente. Encon-
trar-se-á, em particular a versão de Letoumeur à qual Lacan se refere a maioria
das vezes. A paginação do texto inglês é a da versão de André Lorant publicada
em 1988 em Aubier, numa edição bilíngue. Recordemos que a de Yves Bonnefoy
é contemporânea do seminário.
O princípio com efeito é sempre o mesmo, fornecer um texto o mais
próximo do que foi articulado por Lacan, com as suas suspensões, as suas
incorreções sintáticas, mesmo os seus erros, ou seja um texto destinado à for­
mação dos analistas. E pois acima de tudo um instrumento de trabalho.
No que diz respeito ao grafo dito «do desejo», é evidente que Lacan o
introduz sob formas parcelares em numerosos sítios, fazendo-o sofrer numero­
sas pequenas modificações que se destinam a fazer valer simultaneamente a
sua utilidade e os seus limites. Quer dizer que o comentário prima e foi ele que
determinou a escolha daqueles que conservamos.
A complexidade do texto levou-nos a utilizar ao máximo as possibilida­
des da tipografia. Eis as características:

Os itálicos:
- referências bibliográficas (livros, artigos, etc.);
- as palavras estrangeiras; (no caso da tradução portuguesa por-se-ão em
itálico entre colchetes as palavras francesas cuja tradução em português possa
trair-lhes o sentido);
- salientar as diferentes ocorrências de uma palavra por Lacan (por exem­
plo: ne discordante, on).

Os colchetes [ ]:
Quando aparecem três pontinhos entre colchetes, [...], trata-se de uma
palavra que falta.
Quando aparece uma palavra entre colchetes, [código], trata-se:
- duma palavra proposta para o lugar de um branco na estenotipia;
- duma palavra acrescentada para facilitar a leitura;
- ou duma palavra mudada quando concluímos que tinha sido mal perce­
bida, por exemplo, échine no lugar de échelle\

Os asteriscos * * :
- Indicam uma palavra ou fragmento de frase incompreensível que não
se conseguiu elucidar.

As aspas inglesas “ “ :
- Indicam a tradução de uma palavra ou duma frase;
- Sublinham uma palavra, um exemplo gramatical, uma expressão;
- Indicam uma citação feita por Lacan de forma aproximativa.

As aspas ou comas « » :
- Indicam as citações exatas extraídas de textos citados por Lacan, que
foi possível reencontrar e verificar.

O texto dos sonhos e os seus comentários


Fomos levados a pôr em relevo as diferentes partes do texto da seguinte
maneira:
- o próprio texto do sonho em « itálico + negrito »
- as associações relativas ao sonho em « negrito »
- o comentário de Freud ou de Ella Sharpe entre « ».
Lição 1
12 de novembro de 1958

Este ano vamos falar do desejo e de sua interpretação.


Diz-se que uma análise é uma terapêutica: digamos um tratamento, um
tratamento psíquico que toca diversos níveis do psiquismo sobre, inicialmente,
isso foi o primeiro objeto científico de sua experiência, o que chamaremos os
fenômenos marginais ou residuais, o sonho, os lapsos, o chiste (no ano passado
insisti nisso); sobre os sintomas por outro lado, se entramos nesse aspecto cu­
rativo do tratamento, sobre os sintomas no sentido amplo, na medida em que
eles se manifestam no sujeito pelas inibições, que elas estão constituídas em
sintomas e sustentadas por esses sintomas.
Por outro lado, esse tratamento modificador de estruturas, dessas estru­
turas que se chamam neuroses ou neuropsicoses que Freud começou na reali­
dade por estruturar e qualificar como “neuropsicoses de defesa”, a psicanálise,
intervém para tratar em diversos níveis com essas diferentes realidades feno­
menais na medida em que elas põem em jogo o desejo. E nomeadamente sob
essa rubrica do desejo, como significativos do desejo que os fenômenos que há
pouco chamei residuais, marginais, foram inicialmente apreendidos por Freud,
nos sintomas que vemos descritos de uma ponta à outra do pensamento de
Freud. É a intervenção da angústia, se fizermos dela o ponto chave da determi­
nação dos sintomas, mas na medida em que esta ou aquela atividade que vai
entrar no jogo dos sintomas é erotizada, digamos melhor, quer dizer, tomada
no mecanismo do desejo. Enfim, o que significa realmente o termo defesa a
propósito das neuropsicoses, a não ser uma defesa contra quê? Contra algo que
ainda não é outra coisa senão o desejo.

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E no entanto essa teoria analítica no centro da qual basta indicar que se
situa a noção de libido, que não é outra coisa senão a energia psíquica do dese­
jo, é alguma coisa, se trata de energia, em que, já o indiquei de passagem,
lembrem-se outrora da metáfora da fábrica, certas conjunções do simbólico e
do real são necessárias para que subsista mesmo a noção de energia. Mas não
quero aqui, nem parar nem insistir. Essa teoria analítica repousa então comple­
tamente sobre esta noção de libido, sobre a energia do desejo. Eis que desde há
algum tempo, nós a vemos cada vez mais orientada na direção de alguma coisa
que esses mesmos que sustentam essa nova orientação, articulam eles próprios
muito conscientemente, pelo menos para os mais conscientes dentre os que
retomaram Fairbairn (ele o escreveu várias vezes, porque ele não pára de arti­
cular nem de escrever, nomeadamente na coletânea que se chama Psychoanalytic
Studies of the Personality') que a teoria moderna da análise modificou alguma
coisa no eixo que Freud lhe tinha dado de início fazendo ou considerando que
a libido já não é para nós pleasure-seeking, como se exprime Fairbairn, que ela
é object-seeking. Isto quer dizer que o senhor Fairbairn é o representante mais
típico dessa tendência moderna.
O que significa essa tendência orientando a função da libido em função
de um objeto que lhe seria de algum modo predestinado, é alguma coisa a que
já fizemos alusão cem vezes, e da qual lhes mostrei sob mil formas as incidên­
cias na técnica e na teoria analítica, com o que acreditei por várias vezes poder
aí designar como acarretando desvios práticos, alguns não sem incidências pe­
rigosas.
A importância do que quero lhes assinalar para lhes fazer abordar hoje o
problema é, em suma esse velamento da própria palavra “desejo” que aparece
em toda a manipulação da experiência analítica, e de algum modo qual impres­
são, eu não diria de renovação, eu diria de estranheza, nós produzimos ao
reintroduzi-la; quero dizer que [se] no lugar de falar de libido ou de objeto
genital, falamos de desejo genital, parecer-nos-á talvez imediatamente muito
mais difícil de considerar como evidente que o desejo genital e sua maturação
impliquem por si só esta espécie de possibilidade, ou de abertura, ou de pleni­
tude de realização sobre o amor que parece assim ter-se tomado doutrinai de
uma certa perspectiva da maturação da libido -tendência e realização e impli-

' FAIRBAIRN W.R.D.: «A revised psychopatology of the psychoses and psychonevroses»,id ■


vol. XXII, 1941, pp. 250-279.

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cação quanto à maturação da libido, que parecem apesar de tudo tanto mais
surpreendentes que elas se produzam no seio de uma doutrina que foi precisa­
mente a primeira não só a pôr em relevo, mas mesmo a explicar o que Freud
classificou sob o título de Ravalement de la vie amoureuse2. E a saber que se
com efeito o desejo parece arrastar consigo um certo quantum com efeito de
amor, é justa e precisamente, e muito frequentemente de um amor que se apre­
senta à personalidade como conflituoso, de um amor que não se confessa, de
um amor que se recusa mesmo a se confessar.
Por outro lado, se reintroduzimos também essa palavra “desejo”, ali onde
termos como “afetividade”, como “sentimento positivo” ou “negativo”, são
empregados correntemente -numa espécie de abordagem envergonhada, se
pode-se dizer, das forças ainda eficazes, e nomeadamente para a relação analí­
tica, para a transferência- parece-me que pelo simples fato do emprego dessa
palavra, uma clivagem se produzirá que terá por si mesma algo de esclare­
cedor.
Trata-se de saber se a transferência é constituída, não mais por uma
afetividade ou por sentimentos positivos ou negativos, com o que esses termos
comportam de vago e de velado, mas trata-se, e aqui se nomeia o desejo expe-.
rimentado por um só termo, desejo sexual, desejo agressivo em relação ao
analista, que nos aparecerá imediatamente e à primeira vista. Esses desejos não
são tudo na transferência, e por isso mesmo a transferência necessita ser defini­
da por outra coisa que por referências mais ou menos confusas à noção positiva
ou negativa de afetividade; e enfim de modo que se pronunciamos a palavra
desejo, o último benefício desse uso pleno é isso que nós nos questionaremos:
o que é o desejo?
Essa não será uma questão a qual teremos ou poderemos responder. Sim­
plesmente, se eu não estivesse aqui ligado pelo que eu poderia chamar o encon­
tro urgente que tenho com minhas necessidades práticas experienciais, ter-me-
ia permitido uma interrogação sobre o tema do sentido dessa palavra desejo,
junto daqueles que foram mais qualificados para lhe valorizar o uso, ou seja, os
poetas e os filósofos. Não o farei, primeiro porque o uso da palavra desejo, a
transmissão do termo e a função do desejo na poesia, é alguma coisa que, eu

2 FREUD, Sigmund.: (19l2)«Überdie allgemeinste Emiedrigung des Liebeslebens» in Beitrãge


zur Psychologic des Liebeslebens, segunda parte, G.W. VIII, pp. 78-91. Trad. fr. in La vie
sexuelle, Paris, 1969, P.U.F., pp. 55-65.

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diría, reencontraremos depois se prosseguirmos bastante longe em nossa in­
vestigação. Se é verdade, como é o que será todo a continuação do meu desen­
volvimento este ano, que a situação é profundamente marcada, depositada,
fixada a uma certa função da linguagem, a uma certa relação do sujeito com o
significante, a experiência analítica nos levará, pelo menos assim o espero,
bastante longe nessa exploração para que tenhamos todo o tempo para ajudarmo-
nos talvez com uma evocação propriamente poética que pode dela ser feita, e
igualmente compreender mais profundamente, no fim, a natureza da criação
poética nas suas relações com o desejo.
Simplesmente, farei notar que as dificuldades no próprio fundo do jogo
de ocultação que vocês verão estar no fundo disso que a nossa experiência nos
descobrirá, já aparecem nisto por exemplo que precisamente se vê bem na po­
esia o quanto a relação poética com o desejo se acomoda mal, se pode-se dizer,
à pintura do seu objeto. Diria que a esse respeito a poesia figurativa -evoco
quase as “rosas e os lírios” da beleza- tem sempre alguma coisa que não expri­
me o desejo senão no registro de uma singular frieza, que pelo contrário a lei
propriamente falando desse problema da evocação do desejo, se encontra numa
poesia que curiosamente se apresenta como a poesia que se chama “metafísica”,
e para aqueles que lêem o inglês, tomarei aqui apenas a referência mais emi­
nente dos poetas metafísicos da literatura inglesa, John Donne, para que a ela
se reportem para constatar o quanto é muito precisamente o problema da estru-
' tura das relações do desejo que aí é evocada num poema célebre, por exemplo,
The Extasie? e cujo título indica bastante os esboços, em que direção se elabora
poeticamente, pelo menos no plano lírico, a abordagem poética do desejo quando
ele é procurado, visado ele mesmo propriamente falando. Deixo de lado isto
que seguramente vai muito mais longe para presentificar o desejo, o jogo do
poeta quando ele se arma da ação dramática. É precisamente a dimensão sobre
a qual teremos que voltar esse ano. Anuncio-lhes desde já porque tínhamo-nos
aproximado dela no ano passado, é a direção da comédia. Mas deixemos aí os
poetas. Só os nomeei aqui a título de indicação liminar e para dizer-lhes que
nós os reencontraremos mais tarde, mais ou menos difusamente.
Quero parar mais ou menos no que foi a esse respeito a posição dos
filósofos, porque creio que ela foi muito exemplar do ponto em que se situa

’DONNE, J. (1573-1631): “The Extasie", in Poèmes, (trad. J. Fuzier e Y. Denis), ed. bilingue,
Paris, 1962, Gallimard, pp. 172-177. A ortografia original é “The Ecstasy” (N. d. E.).

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para nós o problema. Tive a preocupação de lhes escrever ali em cima estas três
palavras: pleasure-seeking, object-seeking. Na medida em que elas procuram o
prazer, em que procuram o objeto, é assim que desde sempre se colocou a
questão para a reflexão e para a moral -entendo a moral teórica, a moral que se
enuncia em preceitos e em regras, em operações de filósofos, muito especial­
mente diz-se, de eticistas. Já lhes indiquei: notem de passagem que no fim das
contas a base de toda a moral que se poderia chamar “fisicalista”, se poderia
ver em que o termo tem o mesmo sentido, em que na filosofia medieval, fala-se
de teoria física do amor, no sentido em que precisamente ela é oposta à teoria
extática do amor.
A base de toda a moral que se exprimiu até agora, até um certo ponto, na
tradição filosófica, consiste em suma nisso que se poderia chamar a tradição
hedonista que consiste em fazer estabelecer uma espécie de equivalência entre
esses dois termos do prazer e do objeto, no sentido em que o objeto é o objeto
natural da libido, no sentido em que ele é um benefício, em síntese, a admitir o
prazer na categoria dos bens procurados pelo sujeito, até mesmo a recusar-se a
isso a partir do momento em que se tem esse mesmo critério, na categoria do
soberano bem.
Esta tradição hedonista da moral é uma coisa que seguramente não é
capaz de parar de surpreender senão a partir do momento em que se está de
algum modo implicado no diálogo da escola, em que não mais se apercebe dos
seus paradoxos. Porque no final das contas o que há de mais contrário a isso
que chamaremos a experiência da razão prática, que esta pretensa convergên­
cia do prazer e do bem? No fim das contas, se olharmos de perto, se se olhar
por exemplo, o que essas coisas contam em Aristóteles, o que é que nós vemos
se elaborar? E está muito claro, as coisas são muito puras em Aristóteles4. E
certamente alguma coisa que não chega a realizar esta identificação do prazer e
do bem senão no interior do que chamarei uma ética de mestre, ou alguma
coisa cujo ideal adulador, os termos da temperança ou da intemperança, ou
seja, algüma coisa que diz respeito ao domínio do sujeito em relação aos seus
próprios hábitos. Mas a inconsequência desta teorização é realmente impressi­
onante. Se vocês relerem essas passagens célebres que concernem precisamen­
te ao uso dos prazeres, verão aí que nada entra nessa ótica moralizante que
[não] seja do registro desse domínio, de uma moral de mestre, do que o mestre

4 ARISTOTE: Éthique à Nicomaque. (Trad. J. Tricot), Paris, 1987, Vrin.

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I ii»If ili'ii ... .......... Ill' | ii ii !<i 11 rir 111111 in i 1111111 ns ci dsns, pt incipul rnenlc sen com-
|nii ifiiiii’iiin if lnilviiiiiriiin iinii ticiis hábitos, (iii scja, ao inancjo e ao uso do seu
mi, Mm, pmii ii i|uc c do desejo, vocês verão a que ponto o próprio Aristóteles
deve reconhecer ele c muito lúcido e muito consciente de que o que resulta
dessa teorização moral prática e teórica- é que os etuOvjiux (épithémia), os
desejos se apresentam rapidamente para além de um certo limite que é precisa­
mente o limite da mestria e do eu no domínio daquilo a que ele chama nomea­
damente a bestialidade. Os desejos são exilados do campo próprio do homem,
se se admitir que o homem se identifica à realidade do mestre, eventualmente é
mesmo alguma coisa como as perversões. E aliás, existe a esse respeito uma
concepção singularmente moderna pelo fato que alguma coisa no nosso voca­
bulário podería muito bem traduzir-se pelo fato de que o mestre não poderia
ser julgado por isso, o que equivalería quase a dizer que, no nosso vocabulário,
ele não poderia ser reconhecido como responsável. Esses textos merecem ser
relembrados. Vocês se esclarecerão ao aí se reportarem.
No oposto dessa tradição filosófica, há alguém que eu gostaria também
de nomear aqui, nomear como a meus olhos o percursor dessa alguma coisa
que eu creio ser nova, que nos é preciso considerar como nova, digamos, no
progresso, o sentido de certas relações do homem consigo mesmo, que é o da
análise que Freud constitui, é Espinosa, porque apesar de tudo creio que é nele,
em todo o caso com um acento bastante excepcional, que se pode ler uma
fórmula como esta: o desejo é a própria essência do homem5. Para não isolar o
princípio da fórmula de sua continuação acrescentaremos: Na medida em que
ela é concebida a partir de algumas de suas afeições, concebida como deter­
minada e dominada por qualquer uma de suas afeições a fazer alguma coisa.
Já se poderia fazer muita coisa a partir daí para articular o que nesta
fórmula ainda resta, se posso dizer isto, irrevelado; digo irrevelado porque,
bem entendido, não se pode traduzir Espinosa a partir de Freud, ele é no míni­
mo muito singular, dou-lhes como um testemunho muito singular. Sem dúvida
pessoalmente tenho talvez mais propensão a isso que qualquer outro e em tem­
pos muito antigos pratiquei muito Espinosa. No entanto não creio que seja por
isso que ao relê-lo a partir da minha experiência parece-me que alguém que

5 SPINOZA: L 'Éthique démontrée selon l ’ordre géométrique et divisée en cinq partie. III partie:
De la nature et de 1’origine des affects. Definition des affects, I. (Texto original e trad. B.
Pautrat) Paris, 1988, Seuil.

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participa na experiência freudiana pode também encontrar-se à vontade nos
textos daquele que escreveu De Servitute humana6, e para quem toda a realida­
de humana se estrutura, se organiza em função dos atributos da substância
divina.
Mas deixemos de lado por hora, prontos a aí voltar, este fragmento. Quero
dar-lhes um exemplo muito mais acessível, e sobre o qual encerrarei essa refe­
rência filosófica concernindo nosso problema. Tomei-o aqui ao nível o mais
acessível, até mesmo o mais vulgar a que podem ter acesso. Abram o dicioná­
rio do encantador finado Lalande, Vocabulaire Philosophique, que é sempre,
devo dizer, em qualquer espécie de exercício dessa natureza, o de fazer um
Vocabulário, sempre uma das coisas mais delicadas e ao mesmo tempo das
mais frutuosas, de tal modo a linguagem é dominante quando se trata de pro­
blemas. É certo que ao organizar um Vocabulário se fará sempre alguma coisa
de sugestivo. Aqui, encontraremos isto: “Desejo: Begehren, Begehrung -não
é inútil relembrar o que articula o desejo no plano filosófico alemão- tendência
espontânea e consciente para um fim conhecido ou imaginado. O desejo re­
pousa pois na tendência da qual ele é um caso particular e mais complexo. Por
outro lado ele opõe-se à vontade (ou à volição) na medida em que ela supõe a
mais: 1° a coordenação, pelo menos momentaneamente, das tendências; 2°a
oposição do sujeito e do objeto; 3oa consciência da sua própria eficácia; 4°o
pensamento dos meios através dos quais se realizará o fim desejado". Estes
avisos são muito úteis, no entanto há que notar que num artigo que quer definir
o desejo, há duas linhas para situá-lo em relação à tendência, e que todo esse
desenvolvimento se refere à vontade. É efetivamente a isto que se reduz o
discurso sobre o desejo nesse Vocabulário, com a pequena diferença que se
acrescenta ainda: “Enfim segundo certos filósofos, há ainda na vontade um
“fiat“ de uma natureza especial irredutível às tendências, e que constitui a
liberdade. ” Há não sei que ar de ironia nestas últimas linhas, é surpreendente
de vê-lo surgir nesse autor filosófico. Em nota: “O desejo é a tendência a se
procurar uma emoção já experimentada ou imaginada, é a vontade natural de
um prazer (citação de Rauh e Revault d ’Allones) ", este termo de vontade natu­
ral tendo todo o seu interesse de referência. Ao que Lalande pessoalmente
acrescenta: “Esta definição aparece muito limitada porque ela não leva sufici­

6 SPINOZA: op. cit, IV parte: «De la Servitude humaine, autrement dit, des forces des ajfects».

19
entemente em conta a anterioridade de certas tendências em relação às emo­
ções correspondentes. 0 desejo parece ser essencialmente o desejo de um ato
ou de um estado, sem que ele seja necessário em todos os casos da representa­
ção do caráter afetivo desse fim Penso que isto quer dizer do prazer, ou de
alguma outra coisa. Seja o que for, não deixa de pôr o problema de saber do
que é que se trata, se é da representação do prazer, ou se é do prazer. Certamen­
te não penso que a tarefa a que se procede pela via do Vocabulaire para tentar
apreender a significação do desejo seja uma tarefa simples, tanto mais que
talvez a tarefa, vocês não a tenham mais pela tradição para a qual ela se revela
absolutamente preparada.
Finalmente o desejo é uma realidade psicológica rebelde a toda organi­
zação, e no final das contas, seria pela subtração dos caracteres indicados para
ser os da vontade que nós poderiamos chegar à nos aproximar do que é a reali­
dade do desejo?
Teremos então o contrário do que abandonamos, a não coordenação,
mesmo momentânea, das tendências, a oposição do sujeito e do objeto, seriain
verdadeiramente retiradas. Ao mesmo tempo estaríamos aí perante uma ten­
dência sem consciência de sua própria eficácia, sem pensar as palavras através
das quais ela realizará o fim desejado. Em suma, seguramente estamos aqui
num campo no qual em todo caso a análise trouxe certas articulações mais
precisas, visto que no interior dessas determinações negativas, a análise dese­
nha muito precisamente ao nível, a esses diferentes níveis, a pulsão, na medida
em que ela é justamente isto: a não-coordenação, mesmo momentânea, das
tendências, o fantasma na medida em que ele introduz uma articulação essenci­
al, ou mais exatamente uma espécie completamente caracterizada no interior
dessa vaga determinação da não oposição do sujeito e do objeto. Estará preci­
samente aqui este ano o nosso objetivo de tentar definir o que é o fantasma,
talvez mesmo um pouco mais precisamente do que a tradição analítica não
chegou até aqui a definir.
Quanto ao resto, últimos termos do idealismo [e do] pragmatismo que
aqui estão implicados, de momento não reteremos mais que uma coisa: muito
precisamente o quanto parece difícil situar o desejo e analisá-lo em função de
referências puramente objetais.
Vamos parar aqui para entrar propriamente falando nos termos nos quais
eu penso poder este ano articular para vocês o problema de nossa experiência,
na medida em que eles são nomeadamente os do desejo, do desejo e de sua

20
interpretação. Já a ligação interna, a ligação de coerência na experiência analí­
tica do desejo e de sua interpretação, apresenta em si mesma alguma coisa que
somente o hábito nos impede de ver: o quanto é subjetivajáporsi só a interpre­
tação do desejo, e alguma coisa que seja de certa forma ligada de modo interno,
assim parece, à manifestação do desejo. Vocês sabem de que ponto de vista, eu
não diria nós partimos, nós caminhamos, pois não é de hoje que estamos juntos
-quero dizer que já há cinco anos que tentamos designar os contornos da com­
preensão por certas articulações de nossa experiência. Vocês sabem que esses
contornos vêm este ano convergir no problema que pode ser o problema do
ponto de convergência de todos esses pontos, alguns afastados uns dos outros,
dos quais quero de início poder prep.arar a abordagem.
A psicanálise -e nós caminhamos juntos ao longo desses cinco anos- a
psicanálise nos mostra essencialmente isso a que chamaremos a tomada do
homem no constituinte da cadeia significante. Que esta tomada está sem dúvi­
da ligada ao fato do homem, mas que esta tomada não é coextensiva a esse fato
no sentido que o homem fala sem dúvida, mas para falar ele tem que entrar na
linguagem e no seu discurso preexistente. Eu diria que esta lei da subjetividade
que a análise põe especialmente em relevo, sua dependência fundamental à
linguagem é algo de tal modo essencial que literalmente nisto escorrega toda a
psicologia *neles mesmos* [?].
Diremos que há uma psicologia que é servida, na medida em que possa­
mos definí-la como a soma dos estudos referentes ao que em sentido amplo
podemos chamar uma sensibilidade na medida em que ela é função da manu­
tenção de uma totalidade, ou de uma homeostase -em suma, as funções da
sensibilidade em relação a um organismo. Verão que aí tudo está implicado,
não somente todos os dados experimentais da psicofísica mas igualmente tudo
isso que pode colocar, na ordem mais geral, a entrada em jogo da noção de
forma quanto à apreensão dos meios de manutenção da constância do organis­
mo. Todo um campo da psicologia está aqui inscrito, e a experiência própria
apoia esse campo nõ qual a investigação prossegue.
Mas a subjetividade da qual se trata, na medida em que o homem é to­
mado na linguagem, na medida em que é tomado, quer queira ou não, e que ele
é aí tomado para além do saber que tem dela, é uma subjetividade que não é
imanente a uma sensibilidade, na medida em que aqui o termo “sensibilidade”
quer dizer o par estímulo-resposta, pela seguinte razão, é que o estímulo aí é
dado em função de um código que impõe sua ordem à necessidade que aí deve

21
iiiiiIii/ii, Ailiciilo aqui a emissão não dc um.signo como a rigor se pode
<liz.rn, pelo menos na perspectiva experimental, na prova experimental do que
clmmo o ciclo estímulo-resposta. Pode-se dizer que é um signo que o meio
exterior dá ao organismo para responder, para se defender. Se fizerem cócegas
na planta dos pés de uma rã, ela fará certamente um signo, ela responde fazen­
do um certo disparo muscular-mas, na medida em que a subjetividade é toma­
da na linguagem, há emissão, não de um signo, mas de um significante. Ou
seja, retenham bem isto que parece simples, que alguma coisa, o significante,
vale não como se diz quando se fala na teoria da comunicação de alguma coisa
que vale em relação a uma terceira coisa que este signo representa; ainda muito
recentemente, pode-se ler isso com três termos, esses são os termos mínimos: é
preciso que haja um [códigoj, aquele que ouve, a seguir basta um significante;
nem sequer é necessário falar de emissor, basta um signo e dizer que este signo
significa uma terceira coisa, que ele simplesmente representa. Ora a constru­
ção é falsa, porque o signo não vale em relação a uma terceira coisa que ele
representa, mas ele vale em relação a um outro significante que ele não é.
Quanto a esses três esquemas7 que acabo de colocar no quadro, quero
mostrar-lhes, não direi a gênese, pois não imaginem que se trata aqui de etapas,
ainda que algo possa se encontrar aí, nesse caso, de etapas efetivamente reali­
zadas pelo sujeito. É preciso que o sujeito aí tome seu lugar, mas não vejam
[etapas no sentido em que] se trataria das etapas típicas, das etapas [de desen­
volvimento], trata-se mais de uma geração, [e para dizer tudo], de uma anteri-
oridade lógica de cada um de [estes
esquemas em relação à] aquele que
o segue. O que é que representa isto
a que chamaremos D? Para partir de
D grande, isso representa a cadeia
significante. O que dizer? Esta es­
trutura basal, fundamental, submete
toda manifestação de linguagem a
esta condição de ser regida por uma
sucessão, dito em outras palavras por
uma diacronia, por alguma coisa que
se desenrola no tempo. Nós deixa­

7 Estes esquemas estão integrados no texto em relação aos comentários.

22
mos de lado as propriedades temporais interessadas, talvez tenhamos que vol­
tar a elas a seu tempo.
Digamos que seguramente toda a plenitude da matéria temporal, como
se diz, não está aí implicada. Aqui as coisas se resumem à noção de sucessão,
com o que ela pode já trazer e implicar da noção de escanção. Mas nem sequer
aí chegamos ainda. O único elemento discreto (ou seja, diferencial) é a base
sobre a qual vai se instaurar nosso problema da implicação do sujeito no
significante. Isto implica, dado o que venho lhes fazer notar, ou seja que o
significante se define pela sua relação, seu sentido, e toma seu valor da relação
a um outro significante, de um sistema de oposições signifícantes, isso desen­
volve-se numa dimensão que implica do mesmo modo e ao mesmo tempo uma
certa sincronia dos signifícantes. E essa sincronia dos signifícantes, ou seja a
saber a existência de uma certa bateria significante a propósito da qual se pode
pôr o problema de saber qual é a bateria mínima. Tentei exercitar-me neste
pequeno problema. Isso não os levaria muito longe de sua experiência de saber
se depois de tudo se pode fazer uma linguagem com essa bateria que parece ser
a bateria mínima: uma bateria de quatro. Não creio que isso seja impensável,
mas deixemos isto de lado. Está claro que, no estado atual das coisas, estamos
longe de estar reduzidos a esse mínimo.
O importante é isso que está indicado pela linha pontilhada que vem
recortar da frente para trás, cortando-a em dois pontos, a linha representativa
da cadeia significante. Isso que é representado pela linha pontilhada representa
o primeiro encontro ao nível sincrônico, ao nível da simultaneidade dos
signifícantes. Aqui, [C] é aí o que chamo o ponto de encontro do código. Em
outras palavras, é na medida em que a criança se dirige a um sujeito que ela
sabe falante, que ela viu falando, que a penetrou de relações desde o princípio
do seu despertar para a luz do dia; é na medida em que há alguma coisa que
joga como jogo de significante, como moinho de palavras, que o sujeito tem de
aprender muito cedo que está aí uma via, um desfiladeiro por onde devem
essencialfnente inclinar-se as manifestações de suas necessidades para serem
satisfeitas.
Aqui, o segundo ponto de intersecção [M] é o ponto em que se produz
a mensagem e é constituído por isto, é que é sempre por um jogo retroativo da
sequência dos signifícantes que a significação sé afirma e se precisa, quer dizer
que é après-coup que a mensagem toma forma a partir do significante que aí
está antes dela, do código que aí está antes dela, e sobre o qual inversamente

23
ela, a mensagem, enquanto se formula constantemente, antecipa, desconta uma
promissória.
Já lhes indiquei o que resulta desse processo. Em todo caso o que resulta
e que é notável nesse esquema, é isso, que o que está na origem sob a forma de
eclosão da necessidade, da tendência como dizem os psicólogos, que está aí
representada no meu esquema, aí ao nível deste “isso” que não sabe o que ele é,
que sendo tomado na linguagem não se reflete desse contributo inocente da
linguagem na qual o sujeito primeiro se faz discurso; disso resulta que, mesmo
reduzido a suas formas mais primitivas de apreensão disto pelo sujeito que ele
é em relação com outros sujeitos falantes, se produz essa alguma coisa no fim
da cadeia intencional a que eu chamei aqui a primeira identificação primária
[ I ], a primeira realização de um ideal do qual nem sequer se pode dizer neste
momento do esquema que se trata de um Ideal do eu, mas que certamente o
sujeito aí recebeu a primeira rubrica, signum, da sua relação com o Outro.
A segunda etapa do esquema pode recobrir de uma certa forma uma
certa etapa evolutiva, com essa simples condição que não as considerariam
como separadas. Há coisas separadas na evolução, não é ao nível dessas etapas
do esquema que essas cesuras se encontram aí. Estas cesuras, como Freud o
notou algures, marcam-se ao nível do julgamento de atribuição em relação à
nomeação simples. Não é disso que lhes falo agora, aí voltarei mais tarde.
Na primeira parte do esque­
ma e na segunda, trata-se da diferen­
ça de um nível infans do discurso,
porque não é talvez mesmo neces­
sário que a criança fale ainda para
que já esta marca, esta impressão
posta sobre a necessidade pela de­
manda, se exerça já ao nível dos va­
gidos altemantes. Isso pode bastar.
A segunda parte do esquema impli­
ca, que mesmo se a criança ainda não
sabe ter um discurso, mesmo assim
ela já sabe falar e isso vem muito
cedo. Quando eu digo “sabe falar”,
quero dizer que se trata, ao nível da
segunda etapa do esquema, de algu­

24
ma coisa que vai além da tomada na
linguagem. Há relação propriamente
dita na medida em que há apelo do
Outro como presença, este apelo do
Outro como presença, como presen­
ça sobre fundo de ausência nesse mo­
mento assinalado do fort-da que tão
vivamente impressionou Freud na
data que podemos fixar em 1915, ten­
do sido chamado para junto de um
dos seus netos que se tomou ele mes;
mo um psicanalista -falo da criança
que foi objeto da observação de
Freud.
Eis o que nos faz passar ao ní­
vel dessa segunda etapa de realiza­
ção do esquema, nesse sentido que
aqui, para além do que articula a ca­
deia do discurso como existindo para
além do sujeito e impondo-lhe, quer
ele queira ou não, sua forma para
além dessa apreensão, se pode-se dizer, inocente da forma linguajeira pelo
sujeito, alguma outra coisa vai se produzir que está ligada ao fato de que é
nessa experiência da linguagem que se funda a sua apreensão do Outro como
tal, desse Outro que pode lhe dar a resposta, a resposta ao seu apelo, esse Outro
ao qual fundamentalmente ele coloca a questão que nós vemos, no Diable
Amoureux de Cazotte8, como sendo o mugido da forma terrifica que representa
a aparição do supereu, em resposta àquele que o invocou numa caverna
napolitana, Che vuoi? O que queres tu? A questão posta ao Outro sobre o que
ele quer, em outras palavras, daí onde o sujeito faz o primeiro encontro com o
desejo, o desejo como sendo de início o desejo do Outro, o desejo, graças ao
que ele se apercebe que ele realiza como sendo esse para além em tomo do que
gira isto, que o Outro fará que um significante ou outro esteja, ou não, na

’CAZOTTE. J.: Le Diable amoureux (com uma apresentação de J. L. Borges), Paris,


1978, Retz-Franco Maria Ricci.

25
presença da fala: que o Outro lhe dá a experiência do seu desejo ao mesmo
tempo que uma experiência essencial, porque até aqui era em si que a bateria
dos signifícantes estava aí, na qual uma escolha podia ser feita, mas agora é na
experiência que essa escolha aparece como comutativa, que está ao alcance do
Outro fazer que um ou outro dos signifícantes esteja aí, que se introduzem na
experiência, e a esse nível da experiência, os dois novos princípios que vêm se
adicionar ao que era primeiro puro e simples princípio de sucessão implicando
esse princípio de escolha. Nós temos agora um princípio de substituição, por­
que -e isto é essencial- é essa comutatividade a partir da qual se estabelece
para o sujeito o que chamo, entre o significante e o significado, a barra; ou seja
que há entre o significante e o significado esta coexistência, esta simultaneida-
de que é ao mesmo tempo marcada de uma certa impene-trabilidade, quero
dizer a permanência da diferença, da distância entre o significante e o signifi­
cado: S/s.
Coisa curiosa, a teoria dos grupos tal como se aprende no estudo.abstra­
to dos conjuntos, mostra-nos a ligação absolutamente essencial de toda comu­
tatividade com a possibilidade mesmo de usar o que chamo aqui o signo da
barra, da qual nos servimos para a representação das frações. De momento
deixemos isso de lado, é uma indicação lateral sobre isso de que se trata.
A estrutura da cadeia significante a partir do momento em que ela reali­
zou o apelo do Outro, ou seja, em que a enunciação, o processo da enunciação
se superpõe, se distingue da fórmula do enunciado, exigindo como tal, alguma
coisa que é justamente a posse do sujeito, posse do sujeito que era inicialmente
inocente, mas que aqui -a nuance está aí no entanto, é essencial- é inconscien­
te na articulação da fala a partir do momento em que a comutatividade do
significante aí se toma uma dimensão essencial para a produção do significa­
do. Quer dizer que é de uma forma efetiva, e ressonante na consciência do
sujeito, que a substituição de um significante por um outro significante será
como tal a origem da multiplicação dessas significações que caracterizam o
enriquecimento do mundo humano.
Um outro termo igualmente se desenha, ou um outro princípio que é o
princípio da similitude, dito de outra forma, que faz com que no interior da
cadeia, é em relação ao fato de que na sequência da cadeia significante, um dos
termos signifícantes será ou não semelhante a um outro, que se exerce igual­
mente uma certa dimensão de efeito, que é propriamente falando a dimensão
metonímica. Lhes mostrarei depois que é nessa dimensão, essencialmente nes-

26
sa dimensão que se produzem os efeitos que são característicos e fundamentais
do que se pode chamar o discurso poético, os efeitos da poesia.
É portanto ao nível da segunda etapa do esquema que se produz isto que
nos permite colocar ao mesmo nível que a mensagem, ou seja, na parte esquer­
da do esquema, o que é a mensagem no primeiro esquema, a aparição do que é
significado do Outro [s (A)] em oposição ao significante dado pelo Outro [S (A)]
que, ele, é produzido na cadeia, sendo ela pontilhada visto que é uma cadeia
que só em parte é articulada, que é apenas implícita, que só representa aqui o
sujeito na medida em que ele é o su­
porte da fala. Já lhes disse, é na ex­
periência do Outro, enquanto Outro
que tem um desejo, que se produz
essa segunda etapa da experiência.
O desejo [d], desde seu aparecimen­
si
to, sua origem, manifesta-se nesse in­
tervalo, nessa abertura que separa a
articulação pura e simples,
linguajeira da fala, disto que marca
que o sujeito realiza aí algo de si
mesmo que não tem alcance, senti­
do, senão em relação a essa emissão
da fala e que é propriamente falando
isso que a linguagem chama seu ser.
É entre os avatares da sua demanda
e naquilo em que estes avatares o
tomaram, e por outro lado essa exi­
gência de reconhecimento pelo Ou­
tro, que neste caso se pode chamar
exigência de amor, em que se situa
um horizonte de ser para o sujeito,
tratando-se de saber se o sujeito, sim ou não, pode atingi-lo. É nesse intervalo,
nessa abertura, que se situa uma experiência que é a do desejo, que é primeira­
mente apreendida como sendo aquela do desejo do Outro e no interior da qual
o sujeito tem que situar seu próprio desejo. Seu próprio desejo como tal não
pode se situar senão nesse espaço.
Isto representa a terceira etapa, a terceira forma, a terceira fase do esque­

27
ma. Ela é constituída por isto, é que na presença primitiva do desejo do Outro
como opaco, como obscuro, o sujeito fica sem recursos. Ele está hilflos,
-Hilflosigkeit- emprego o termo de Freud, em francês chama-se o desamparo
do sujeito. Isto constitui o fundamento do que, na análise, foi explorado, expe­
rimentado, situado como a experiência traumática.
O que Freud nos ensinou depois do caminho que lhe permitiu situar,
enfim, no seu verdadeiro lugar a experiência da angústia, é alguma coisa que
não tem nada desse caráter, na minha opinião devido a certos aspectos difusos,
do que se chama a experiência existencial da angústia. Que se foi possível
dizer numa referência filosófica que a angústia é algo que nos confronta com o
nada, certamente estas fórmulas são justificáveis numa certa perspectiva da
reflexão. Saibam que, sobre esse sujeito, Freud tem um ensino articulado, po­
sitivo, ele faz da angústia algo completamente situado numa teoria da comuni­
cação: a angústia é um sinal. Não é ao nivel do desejo, se é que o desejo deve se
produzir no mesmo lugar onde primeiro se origina, se experimenta o desampa­
ro, não é ao nível do desejo que se produz a angústia. Retomaremos este ano
atentamente, linha por linha, o estudo de Inhibition, Symptôme, Angoisse de
Freud. Hoje, nesta primeira lição, não posso senão iniciar alguns pontos mais
importantes para saber reencontrá-los em seguida, nomeadamente este: Freud
nos diz que a angústia se produz como um sinal no eu, sobre o fundamento da
[Hilflosigkeit] a qual ela é enquanto sinal chamada a remediar. Sei que vou
muito depressa, (que isto merecerá todo um seminário para lhes falar disto),
mas não posso lhes falar de nada se não começar por lhes mostrar o desenho do
caminho, que temos a percorrer.
É assim, na medida então que ao nível desta terceira etapa intervém a
experiência especular, a experiência da relação à imagem do outro, na medida
em que ela é fundadora da Urbild do eu, que nós vamos em outros termos
encontrar este ano, e utilizar num contexto que lhe dará uma ressonância com­
pletamente diferente, o que articulamos no fim do nosso primeiro ano a respei­
to das relações do eu ideal e do Ideal do eu. É nessa medida que vamos ser
levados a repensar tudo isso neste contexto, que é a ação simbólica que lhes
mostro aqui como essencial. Vocês vão ver qual a utilização que ela poderá
enfim ter. Não faço alusão aqui unicamente ao que disse e articulei sobre a
relação especular, ou seja, a confrontação no espelho, do sujeito com sua pró­
pria imagem: faço alusão ao esquema dito A - A’, ou seja, ao uso do espelho
côncavo que nos permite pensar a função de uma imagem real ela própria refle­

28
tida, e que só pode ser vista como refletida a partir de uma certa posição, de
uma posição simbólica que é a do Ideal do eu.
Trata-se disto: na terceira etapa do esquema temos a intervenção como
tal do elemento imaginário da relação do eu [m] ao outro [i (a)] como sendo o
que vai permitir ao sujeito parar este desamparo na relação ao desejo do Outro,
através do quê? Por algo que é tomado do jogo de domínio que a criança, numa
idade eletiva, aprendeu a manejar numa certa referência ao seu semelhante
como tal -a experiência do semelhante no sentido em que ele é olhar, em que
ele é o outro que o olha, em que ele faz jogar um certo número de relações
imaginárias entre as quais em primeiro plano as relações de superioridade, tam­
bém as relações de submissão e de derrota. É por meio disto, em outras pala­
vras, como Aristóteles diz que o homem pensa (é preciso dizer que o homem
pensa, não se deve dizer que a alma pensa, mas o homem pensa com sua alma),
é preciso dizer que o sujeito se defende, é isso que nossa experiência nos mos­
tra, com seu eu. Ele se defende contra esse desamparo, e com esse meio que a
experiência imaginária da relação com o outro lhe dá, ele constrói algo que é,
diferentemente da experiência especular, flexível com o outro. Porque o que o
sujeito reflete, não são simplesmente jogos de superioridade, não é a sua apari­
ção ao outro no prestígio e no fingimento, é ele próprio como sujeito falante, e
é por isso que o que lhes designo aqui [$ y a] como sendo esse lugar de saída,
esse lugar de referência por onde o desejo vai aprender a se situar, é o fantas­
ma. É por isso que o fantasma, eu o simbolizo para vocês, eu o formulo por
estes símbolos. O $ aqui, eu lhes direi daqui a pouco porque é que ele é barrado
como-S, ou seja, o sujeito como falante, enquanto se refere ao outro como
olhar, ao outro imaginário. Cada vez que se depararem com algo que é propri­
amente falando um fantasma, verão que ele é articulável nesses termos de refe­
rência do sujeito como falando ao outro imaginário. É isto que define o fantas­
ma e a função do fantasma como função de nível de acomodação, de situação
do desejo do sujeito como tal, e é exatamente por isso que o desejo humano
tem esta propriedade de ser fixado, de ser adaptado, de ser coaptado, não a um
objeto, mas sempre essencialmente a um fantasma.
Isto é um fato de experiência que pôde permanecer misterioso durante
muito tempo, é com certeza o fato de experiência, não esqueçamos, que a aná­
lise introduziu na corrente do conhecimento. É só a partir da análise que isso
deixa de ser uma anomalia, algo de opaco, algo da ordem do desvio, do
desencaminhamento, da perversão do desejo, é a partir da análise que mesmo

29
tudo isso que pontualmente pode se chamar desencaminhamento, perversão,
desvio ou até mesmo delírio, é concebido e articulado numa dialética que é
aquela que pode, como acabo de lhes mostrar, conciliar o imaginário com o
simbólico. Eu sei que não lhes conduzo para começar por uma vereda fácil,
mas se não começo por colocar imediatamente os nossos termos de referência,
o que é que vou chegar a fazer? Indo lentamente, passo a passo, para lhes
sugerir a necessidade de uma referência, e se não lhes trago imediatamente o
que chamo o grafo, é preciso pelo menos que eu lhes traga como o-fiz no ano
passado, pouco a pouco, ou seja, de uma maneira que será no entanto mais
obscura. Eis então porque comecei por aí, não digo que lhes tomei nessa medi­
da a experiência mais fácil.
E por isso que agora para descontraí-la, esta experiência, eu queria dar-
lhes dela imediatamente pequenas ilustrações. Essas ilustrações, começarei por
pegar uma de início e verdadeiramente ao nível mais simples visto que se trata
das relações do sujeito com o significante; a mínima e a primeira coisa que se
possa exigir de um esquema, é de ver para que ele pode servir a respeito do fato
de comutações.
Lembrei-me de alguma coisa que tinha lido outrora no livro de Darwin
sobre a expressão no homem e no animal9, e que devo dizer, me divertiu bas­
tante. Darwin conta que um tal Sidney Smith que eu suponho que devia ser um
homem da sociedade inglesa de seu tempo, e de quem ele diz isto -ele coloca
uma questão- Darwin, ele diz, «ouvi Sidney Smith, num serão, dizer muito
calmamente a seguinte frase: chegou-me aos ouvidos que a querida velha Lady
Cock escapou dessa». Na realidade overlook quer dizer que o vigilante não
reparou nela, sentido etimológico. Overlook é de um uso corrente na língua
inglesa. Não há nada de correspondente no nosso uso corrente. É por isso que
o uso das línguas é simultaneamente tão útil e tão prejudicial, porque ele nos
evita fazer esforços, fazer esta substituição de significantes na nossa própria
língua graças a qual podemos chegar a visar um certo significado, porque se
trata de mudar todo o contexto para obter o mesmo efeito em uma sociedade
análoga. Isto poderia querer dizer “o olho passou-lhe por cima”. E Darwin
fascina-se que tenha sido absolutamente, perfeitamente claro para todos, mas

’DARWIN, Ch.: L'Expression des émotions chez I’homme et les animaux, (Trad. S.Pozzi e
R.Benoit), Paris, 1874, C. Reinwald et Cie Libraires-éditeurs. A passagem aqui citada se refere
à autobiografia de Charles Darwin (Trad. J. M. Goux), Paris, 1985, Belin. (N. d. E.)

30
sem nenhuma dúvida que isso queria dizer que o diabo a tinha esquecido, que­
ro dizer que ele tinha esquecido de levá-la para a sepultura -o que parece ter
sido nesse momento no espirito do auditor o seu lugar natural, ou mesmo dese­
jado. E Darwin deixa verdadeiramente o ponto de interrogação em aberto; «como
é que ele fez para obter este efeito?», diz Darwin, «sou verdadeiramente inca­
paz de dizê-lo». Notem que podemos lhe ser reconhecidos, a ele, por marcar a
experiência que ali faz, de uma maneira especialmente significativa e exem­
plar, do seu próprio limite na abordagem desse problema. Que ele tenha toma­
do de uma certa maneira o problema das emoções, dizer que a expressão das
emoções se encontra aí mesmo assim em questão, justamente por causa do fato
que o sujeito não manifesta estritamente nenhuma, que ele diga isso placidely
talvez seja levar as coisas um pouco longe. Em todo caso Darwin não o faz, ele
está verdadeiramente muito surpreendido com essa alguma coisa que é preciso
tomar ao pé da letra, porque como sempre quando estudamos um caso, não se
deve reduzi-lo tomando-o vago. Darwin diz: todo mundo compreendeu que o
outro falava do diabo, enquanto que o diabo não está em nenhuma parte. E é
isso que é interessante, é que Darwin nos diga que o arrepio do diabo passou
pela assembléia.
Tentemos agora compreender um pouco. Não vamos demorarmo-nos
com as limitações mentais próprias a Darwin, aí voltaremos forçoSamente, mas
não imediatamente. O que é certo é que há, desde o início, alguma coisa que
faz parte de um conhecimento surpreendente, porque enfim não é necessário
ter colocado os princípios do efeito metafórico, quer dizer, da substituição de
um significante por outro significante; em outras palavras, não há necessidade
de exigir de Darwin que ele tenha o pressentimento disso para que ele se aper­
ceba imediatamente que o efeito, de qualquer modo, se deve em primeiro lugar
àquilo que ele não chega a articular (no fato que uma frase que começa, quando
se diz “Lady Cock”, se termina normalmente por “ill, doente”), “ouvi dizer que
mesmo assim há alguma coisa que não bate certo”, que a substituição, de “al­
guma coisa” (parece que se espera uma notícia relativa à saúde da velha senho­
ra, pois é sempre de saúde que nos ocupamos em primeiro lugar quando se trata
de velhas senhoras) é substituída por alguma outra coisa, até mesmo em certos
aspectos irreverente. Ele não diz, nem que ela está à morte, nem que ela está
muito bem, ele diz que ela foi “esquecida”.
Então aqui o que é que intervém para esse efeito metafórico, ou seja em
todo o caso outra coisa do que o que isso queria dizer se overlook pudesse ser

31
JV HU H! ■«* w Mil ’V «»* VM •»» V») -W

esperado? E na medida em que não é esperado, que ele é substituído por um


outro significante, que um efeito de significado se produz que é novo, que não
está na linha do que se esperava, nem na linha do inesperado. Se esse inesperado
não tivesse justamente sido caracterizado como inesperado, é algo de original que,
de certo modo, tem que ser realizado no espírito de cada um segundo seus próprios
ângulos de refração. Em todo o caso há nisso a abertura de um novo significado
para esse algo que faz, por exemplo, com que Sidney Smith passe globalmente por
ser um homem de espírito, ou seja, que não se exprime por clichês.
Mas porque diabo? Se nos reportarmos ao nosso pequeno esquema, isso
vai ajudar-nos muito. É para isso que eles servem, se se faz esquemas, é para
servir-se deles. Aliás, pode-se chegar ao mesmo resultado sem eles, mas de
alguma forma o esquema nos guia, mostra-nos com muita evidência o que se
passa no real. Isto que se presentifica, é um fantasma propriamente falando, e
por quais mecanismos? É aqui que o esquema pode ir mais longe que o que
permite, eu diria, uma espécie de noção ingênua: que as coisas são feitas para exprimir
alguma coisa que em resumo se comunicaria, uma emoção como se diz, como se as
emoções em si mesmas não colocassem por si próprias tantos outros problemas, ou seja,
o que elas são, ou seja, se elas também não necessitam, elas, de comunicação.
O nosso sujeito, dizem-nos, está aí perfeitamente tranquilo, quer dizer
que ele se apresenta em certa medida em estado puro, a presença de sua falá
sendo seu puro efeito metonímico, quero dizer a sua fala enquanto fala na sua
continuidade de fala. E nesta continuidade de fala precisamente, ele faz inter­
vir isto, a presença da morte na medida em que o sujeito pode ou não escapar-
lhe, ou seja, na medida em que ele evoca essa presença de alguma coisa que
tem o maior parentesco com a vinda ao mundo do próprio significante -quero
dizer que se há uma dimensão em que a morte (ou o fato de que não haja mais)
pode por sua vez ser diretamente evocada, e ao mesmo tempo velada, mas de
qualquer modo encarnada, tomar-se imanente a um ato, é bem a articulação
significante. É então na medida em que o sujeito que fala tão facilmente da
morte, está claro que ele não quer especialmente bem a essa dama, mas por
outro lado a perfeita placidez com a qual ele fala dela, implica justamente que
a esse respeito ele dominou seu desejo, na medida em que esse desejo como em
Volponeia, poderia exprimir-se pela amável fórmula: «fede e morre!». Ele não

10 JONSON, B.: (1605), Volpone ou le Renard. (trad. Maurice Castelain), Paris, 1990, Les Belles
Lettres.

32
diz isso, ele articula simplesmente serenamente que aquilo que nos vale, que é
o nível desse [destino] cada um por sua vez, por um momento esquecido -mas
isto, se assim posso me exprimir, não é o diabo- é [a morte], essa virá mais dia,
menos dia! E,ao mesmo tempo esse personagem, ele, coloca-se como alguém
que não teme igualar-se àquela de quem fala, de se colocar ao mesmo nível,
sob o golpe da mesma falta, da mesma legalização terminal pelo mestre abso­
luto aqui presentificado.
Em outras palavras, o sujeito aqui revela-se no lugar daquilo que está
velado da linguagem como tendo aí essa espécie de familiaridade, de
completitude, de plenitude do manejo da linguagem que sugere o quê? Justa­
mente alguma coisa na qual quero terminar, porque é o que faltava a tudo o que
eu disse no meu desenvolvimento em três etapas, para que aqui a mola do que
eu lhes queria articular seja completa.
Ao nível do primeiro esquema temos a imagem inocente. Ele é incons­
ciente, é claro, mas é uma inconsciência que não pede senão para passar a
saber. Não esqueçamos que na inconsciência essa dimensão de “ter consciên­
cia”, mesmo em francês implica essa noção.
Ao nível da segunda e da terceira etapas do esquema, disse-lhes que nós
tínhamos um uso muito mais consciente do saber. Quero dizer que o sujeito sabe
falar e que ele fala. É o que ele faz quando chama o Outro e no entanto é aqui
propriamente falando, que se encontra a originalidade do campo que Freud desco­
briu e que chama o inconsciente, ou seja, essa alguma coisa que sempre coloca o
sujeito a uma certa distância de seu ser e que faz com que precisamente esse ser
não o reencontre nunca. E é por isto que se toma necessário, que ele não pode fazer
de outro modo senão atingir seu sernessa metonímia do ser no sujeito que é o desejo.
E por quê? Porque ao nível em que o sujeito está implicado, introduzido
ele próprio na fala e por isso tia relação com o Outro como tal, como lugar da
fala, há um significante que falta sempre. Por quê? Porque é um significante.
Esse significante é especialmente delegado à relação do sujeito com o
significante. Esse significante tem um nome, é o falo.
O desejo é a metonímia do ser no sujeito: o falo é a metonímia do sujeito
no ser. Voltaremos a isso. O falo, na medida em que é elemento significante
subtraído à cadeia da fala, na medida em que ela engaja toda relação com o
outro. Este é o princípio limite que faz com que o sujeito, sem dúvida, e na
medida em que está implicado na fala, cai sob o golpe disso que se desenvolve
em todas as suas consequências clínicas, sob o termo de complexo de castração.

33
O que sugere toda espécie de uso, não diria puro, mas talvez mais impu­
ro das «palavras da tribo»11, toda espécie de inauguração metafórica por pouco
que se tome audaciosa e apesar daquilo que a linguagem sempre esconde, e o
que ela sempre esconde, em última análise, é a morte. Isto tende sempre a fazer
surgir, a fazer sair esta figura enigmática do significante que falta, do falo que
aparece aqui, e como sempre, bem entendido, sob a forma que se chama diabó­
lica, orelha, pele ou mesmo o próprio falo, e se neste uso, bem entendido, a
tradição dojogo.de palavras inglês, dessa alguma coisa de contido que nem por
isso dissimula o desejo violento, mas esse uso basta por si só para fazer apare­
cer no imaginário, no outro que está ai como espectador, no pequeno a, esta
imagem do sujeito enquanto ele é marcado por esta relação ao significante
especial que se chama o interdito. Aqui, neste caso, na medida em que ele viola
um interdito, na medida em que ele mostra que para além dos interditos que
fazem a lei das linguagens (não se fala deste modo das velhas senhoras) há, no
entanto, um senhor que entende por bem falar o mais placidamente do mundo
e que faz aparecer o diabo, e isto ao ponto que o caro Darwin se pergunta como
diabo ele fez isto!
Eu lhes deixarei aqui hoje. Na próxima vez retomaremos um sonho em
Freud, e tentaremos aplicar-lhe os nossos métodos de análise, o que ao mesmo
tempo nos permitirá situar os diferentes modos de interpretação.

"MALLARMÉ, S.: «Le Tombeau d’Edgar Poe», in.: Oeuvres completes, Poésies (edição
crítica apresentada por Carl Paul Barbier e Charles Gordon Millon), Paris, 1983, Flammarion,
p. 272.

34
Lição 2
19 de novembro de 1958

Queria em primeiro lugar colocar os limites do que queria fazer hoje,


quero dizer mesmo nesta lição, enunciar-lhes o que lhes mostrarei hoje, e para
começar abordando o exemplo da interpretação de um sonho, assim como o
uso do que convencionalmente desde há algum tempo chamamos o grafo.
Como não prossigo esse discurso, se é que posso me exprimir assim,
simplesmente acima das suas Cabeças, gostaria que se estabelecesse através
dele uma certa comunicação, como se diz. Não deixei de ter eco das dificulda­
des que tiveram já na última vez, ou seja no momento em que estava longe de
ser novo para todos, e o que a reposição desse grafo constituiu ainda para al­
guns, para muitos mesmo. Ele continua, não dizemos ainda manejável pois na
verdade o que não é extraordinário, esse grafo, construimo-lo em conjunto no
ano passado, ou seja mais ou menos progressivamente; viram-no de certo modo
edificar-se pelas necessidades de uma certa formulação centrada em tomo do
que chamei Les formations de l 'inconscientn. Que vocês não possam, como
alguns o observam, aperceber-se que o seu uso não lhes é ainda unívoco, não é
razão para se surpreender visto que precisamente uma parte do que teremos
para articular este ano sobre o desejo nos mostrará a utilidade e ao mesmo
tempo, nos ensinará o manejo.

12 LACAN, J.: Seminário V, Les formations de l 'inconscient, 1957-58. Inédito.

35
Trata-se pois em primeiro lugar da sua compreensão. É isto mesmo que
parece ser para um certo número, em diferentes graus, talvez mesmo menos do
que eles próprios se pronunciam, que parece constituir dificuldade. A propósi­
to desse termo “compreensão”, queria fazer notar -asseguro-lhes que não há
aqui nenhuma ironia- que é um termo problemático. Se há entre vocês quem
compreenda sempre, em qualquer situação, e em qualquer momento o que fa­
zem, felicito-os e invejo-os. Não é o que corresponde, mesmo depois de vinte
e cinco anos de exercício, à minha experiência e à verdade, ele mostra-nos
bastante os perigos que comporta em si mesmo, perigo de ilusão de toda com­
preensão, para que, eu penso, não seja duvidoso que aquilo que eu procuro lhes
mostrar, não é tanto de compreender o que faço, mas de o saber. Não é sempre
a mesma coisa, isso não se pode confundir e verão justamente que há razões
intemas para que isso não se confunda, ou seja que possam em certos casos
saber o que fazem, saber onde se encontram, sem sempre saber compreender,
pelo menos imediatamente, do que se trata.
O grafo é feito precisamente para este uso de referência, ele é destinado
a anunciar imediatamente alguma coisa. Penso hoje, se tiver tempo para isso,
poder começar a ver por exemplo como esse grafo, e creio que somente esse
grafo ou algo bem entendido de análogo -não é ao uniforme sob o qual possa
apresentar-se que devemos agarrarmo-nos- lhes parecerá de um uso eminente
para distinguir, digo isto para lhes suscitar o interesse, para distinguir por exem­
plo três coisas que, devo dizê-lo, é muito frequente que confundam, ao ponto
de escorregar sem precauções de uma para a outra, o recalcado por exemplo...
Nós teremos coisas a dizer, ou simplesmente tomar o modo como Freud ele
mesmo as define: o recalcado, o desejo e o inconsciente.
Refaçamos pelo menos devagarinho, antes de aplicá-lo, para que não
haja dúvidas do que representa ao menos o que nós chamamos os dois andares,
ainda que bem entendido, (e é isto mesmo que seria a dificuldade para muitos
dentre vocês) esses dois andares não correspondam em nada ao que habitual­
mente lhes é apresentado ao nível do que eu poderia chamar a arquitetônica das
funções superiores e inferiores, automatismos e funções de síntese, É justa­
mente porque não a encontram que esses dois andares lhes embaraçam, e é por
isso que vou tentar rearticulá-los diante de vocês, pois parece que o segundo
andar da construção -andar evidentemente abstratamente definido, porque como
esse grafo é um discurso, não se pode dizer tudo ao mesmo tempo- esse segun­
do andar, que não é forçosamente uma segunda etapa, constitui para alguns

36
dificuldade.
Retomo então as coisas. Qual é o objetivo desse grafo? É de mostrar as
relações, para nós essenciais, tanto mais que somos analistas, do sujeito falante
com o significante. No fim das contas, a questão em tomo da qual se dividem
esses dois andares é a mesma para ele, o sujeito falante (é um bom sinal) é a
mesma que para nós. Eu dizia há pouco, sabemos nós o que fazemos? Então,
ele também sabe ou não o que faz falando? O que quer dizer: poderá ele signi­
ficar-se eficazmente sua ação de significação? E justamente em tomo desta
questão que se repartem esses dois andares de que lhes digo desde já -porque
isto parece ter escapado a alguns da última vez- digo-lhes desde já, que é pre­
ciso pensar que eles funcionam os dois ao mesmo tempo no mínimo ato de fala,
e verão o que entendo, e onde estendo o termo “ato de fala”.
Noutros termos, se pensarem
nos processos do que se passa no
sujeito, no sujeito na medida em que
o significante intervém na sua ativi­
dade, é preciso que pensem nisto
(que tive a oportunidade de articu­
lar para um de vocês a quem dava
um pequeno suplemento de explica­
ções após meu seminário, e se o su­
blinho, é porque o meu interlocutor
me fez notar o que podia ter para ele
de não-percebido o que lhes vou di­
zer) ou seja, por exemplo isso que é
necessário que considerem, é que os
processos em causa partem ao mes­
mo tempo dos quatro pontos, A, A,
D, d, ou seja -vão ver o que é esta
contribuição hoje da minha exposi­
ção- nessa relação respectivamente
a intenção do sujeito [A], o sujeito
enquanto Eu falante [A], o ato da de­
manda [Dj e este [d], que chamare­
mos daqui a pouco de um certo nome
e que deixo por agora reservado.

37
Os processos são pois simultâneos nestes quatro trajetos: D - A -1 - s(A),
penso que fica bastante sublinhado. Há pois dois andares no fato que o sujeito
faz alguma coisa que se relaciona com a ação prevalente, a estrutura prevalente
do significante. No andar inferior ele recebe, ele suporta esta estrutura. Isto é
especialmente aparente. Entendam bem o que digo, porque isto não tem nada
de improvisado, e é por isto que aqueles que tomam notas estão muito certos.
Isto toma o seu valor de ser especialmente -não unicamente, mas especialmen­
te- ilustrado. Quero dizer que é aqui que é especialmente compreensível mas,
ao mesmo tempo, é também isto que pode fazer que não vejam toda a genera­
lidade, ou seja que isto engendra certas incompreensões. Digam-no desde logo:
cada vez que compreendem, é aí que começa o perigo.
É especialmente aí que isto toma o seu valor no contexto, digo contexto
da demanda, é neste contexto que o sujeito enquanto que aqui a esse nível,
neste andar, a linha da intencionalidade do sujeito, do que supomos ser o sujei­
to, um sujeito enquanto não se tomou o sujeito falante, enquanto é o sujeito de
quem sempre se fala, do qual direi mesmo, se fala até aqui, porque não tenho
conhecimento que alguém jamais tenha verdadeiramente feito a distinção como
tento aqui lhes introduzir. O sujeito do conhecimento para dizer tudo, o sujeito
correlativo do objeto, o sujeito em tomo do qual gira a eterna questão do idea­
lismo, e que é ele mesmo um sujeito ideal, tem sempre algo de problemático,
ou seja que afinal como foi notado, e como o seu nome o indica, ele não é senão
suposto.
O mesmo não acontece, irão ver, para o sujeito que fala, que se impõe
com uma completa necessidade. O sujeito pois, no contexto da demanda, é o
primeiro estado se posso dizer informe do nosso sujeito, daquele de quem ten­
tamos articular por esse grafo as condições de existência. Esse sujeito não é
outra coisa que o sujeito da necessidade porque é o que ele exprime na deman­
da, e não preciso voltar mais a isto, todo o meu ponto de partida consiste em
mostrar como esta demanda do sujeito é, ao mesmo tempo, pro fundamente
modificada pelo fato que a necessidade deve passar pelos desfiladeiros do
significante.
Não insisto mais porque o suponho adquirido, mas quero simplesmente
a esse respeito fazer-lhes notar isto que é precisamente nesta troca que se pro­
duz entre a posição primitiva inconstituída do sujeito da necessidade e as con­
dições estruturais impostas pelo significante, que reside o que se produz e que
está aqui representado nesse esquema pelo fato que a linha D-S é contínua até

38
A, enquanto que mais adiante ela se apresenta fragmentada; que inversamente
é enquanto que anterior à.s(A) que a linha dita da intencionalidade, no momen­
to, do sujeito, é fragmentada e que ela não é contínua senão depois, digamos
especialmente nesse segmento [s(A)I], e mesmo provisoriamente, porque é
secundariamente que terei de insistir nisto, na medida em que não têm de ter
em conta a linha A - m - i(a) - s(A).
Por que é que é assim? É necessário apesar de tudo que eu não me retar­
de etemamente neste grafo, tanto mais que teremos que voltar a ele. O que é
que representa, em outros termos, esta continuidade da linha até esse ponto A
que sabem que é o lugar do código, o lugar onde jaz o tesouro da língua na sua
sincronia, quero dizer a soma dos elementos taxemáticos sem o que não há
meio de comunicar entre seres submetidos às condições da linguagem. O que
representa a continuidade da linha D-S até o ponto A é isto: é esta sincronia da
organização sistemática da língua. Quero dizer que sincronicamente, ele está
dado ali como um sistema, como um conjunto no interior do qual cada um
desses elementos têm o seu valor enquanto distinto dos outros, dos outros
signifícantes, dos outros elementos do sistema. Está aqui eu lhes repito, a mola
de tudo o que articulamos a respeito da comunicação, é isso que é sempre
esquecido nas teorias da comunicação, é que o que é comunicado não é o signo
de outra coisa, e é simplesmente o signo de que aí no seu lugar, não está um
outro significante.
É da solidariedade desse sistema, sincrônico enquanto que repousando
no lugar do código, que o discurso da demanda enquanto anterior ao código
toma a sua solidez, noutros termos, que na diacronia, ou seja no desenvolvi­
mento desse discurso, aparece isto que se chama mínimo de duração exigível
para a satisfação -ainda que ela seja o que se chama uma satisfação mágica- ou
ao menos de repulsa, ou seja o tempo de falar. E devido a esta relação que a
linha do discurso significante, do discurso significante da demanda que, em si
mesmo, visto que é composto por signifícantes, deveria aparecer aqui e repre­
sentar-se sob a forma fragmentada que vemos subsistir aqui, ou seja sob a
forma de uma sucessão de elementos discretos, os quais separados por interva­
los; é em função da solidez sincrônica do código ao qual esses elementos su­
cessivos são emprestados que se concebe esta solidez da afirmação diacrônica
e a constituição do que se chama na articulação da demanda, o tempo da fór­
mula. Por isso é anteriormente ao código ou aquém do código que esta linha se
apresenta como contínua.

39
Em contrapartida o que é que representa aqui esse grafo, pela linha frag­
mentada que é a da intencionalidade do sujeito, o que é que é? Observemos que
já o fato de afirmar o contexto da demanda simplifica a diversidade suposta do
sujeito, ou seja aquilo que se apresenta como essencialmente movediço, mo­
mentos, variações desse ponto. Vocês sabem, esse problema da continuidade
do sujeito há muito se colocou aos psicólogos, a questão de saber porque é que
um ser essencialmente entregue ao que se pode chamar as intermitências -não
simplesmente do coração como foi dito, mas de muitas outras coisas- pode se
colocar e se afirmar como um eu. É este o problema de que se trata, e certamen­
te a colocação em jogo de uma necessidade na demanda já é alguma coisa que
o simplifica, esse sujeito, relativamente às interferências mais ou menos caóti­
cas, mais ou menos contingentes das diferentes necessidades.
O que representa o aparecimento nesse esquema da forma fragmentada
que representa a primeira parte da linha A-I, aqui até esse A, é outra coisa, é a
retroação sobre esta mobilidade ao mesmo tempo contínua e descontínua, se­
guramente confusa, devemos supô-la ser a da forma primitiva da manifestação
primitiva da tendência. É a retroação sobre ela precisamente da forma de ele­
mentos discretos que lhe impõe o discurso, é o que ela suporta retroativamente
da discursividade, é porque nessa linha, é aquém não do código, mas da própria
mensagem, que a linha aparece na forma fragmentada. O que se produz para
além disso, é o que já sublinhei suficientemente noutros momentos para agora
por aí passar depressa, é isto: é a identificação que resulta do sujeito ao Outro
da demanda enquanto este é todo-potente. Penso que não seja um tema ao qual
eu tenha necessidade de voltar, o da onipotência por vezes do pensamento, por
vezes da fala na experiência analítica. E quase isto o que lhes fiz notar o quanto
era abusivo colocá-lo na posição depreciativa que toma habitualmente o psicó­
logo, na medida em que ele é sempre mais ou menos, no sentido original do
termo, um pedante, de colocá-lo a cargo do sujeito enquanto que a onipotência
de que se trata, é a do Outro, na medida em que dispõe da soma dos significances,
muito simplesmente.
Em outras palavras, para dar o sentimento de que não nos afastamos de
algo de concreto articulando as coisas assim, vou designar muito expressamen­
te o que quero dizer com isto na evolução, no desenvolvimento, na aquisição
da linguagem, nas relações criança-mãe, para dizê-lo enfim: é muito precisa­
mente isto, que a alguma coisa de que se trata e sobre a qual repousa esta
identificação primária que designo pelo segmento s(A), significado de A, e

40
que chega ao primeiro núcleo -como é expresso correntemente na análise pela
escrita do Senhor Glover, verão isto articulado: «o primeiro núcleo da forma­
ção do eu». O núcleo de identificação ao qual isto chega, esse processo, trata-
se do que se produz quando a mãe não é simplesmente aquela que dá o seio, já
lhes disse, ela é também aquela que dá a marca da articulação significante, e
não somente na medida em que ela fala à criança como é bem claro que ela lhe
fala, e muito antes que ela possa presumir que a criança compreende alguma
coisa, embora estajá entenda alguma coisa muito antes que ela o imagine. Mas
já que todos os tipos de jogos da mãe, os jogos por exemplo de ocultação que
tão rapidamente desencadeiam na criança o sorriso, até mesmo o rir, são pro­
priamente falando já uma ação simbólica no decurso da qual o que lhe é reve­
lado, é justamente a função do símbolo enquanto revelador. Ela lhe revela nes­
ses jogos de ocultação, do fazer desaparecer alguma coisa ou no fazer reapare­
cer, o fazer desaparecer seu próprio rosto ou do fazê-lo reaparecer, ou a escon­
der a figura da criança ou a descobri-la: ela lhe revela a função reveladora. É já
de uma função de segundo grau que se trata. É no interior disto que se fazem as
primeiras identificações ao que se chama neste caso a mãe, a mãe como toda-
poderosa, e vocês o verão, isto tem outro alcance além da pura e simples satis­
fação da necessidade.
Passemos ao segundo andar desse grafo, aquele que na última vez, pare­
ce, pelo menos para alguns, a apresentação provocou algumas dificuldades.
Esse segundo andar do grafo não é outra coisa que o sujeito na medida em que
ele passa sob os desfiladeiros da articulação significante. É o sujeito que assu­
me o ato de falar: é o sujeito enquanto Eu, e ainda tenho que me suspender a
alguma articulação de reserva essencial. Em todo o caso, esse Eu, não me dete-
rei nele, faço-lhes notar, na origem esse Eu, embora lhe tenha feito alusão em
algum desenvolvimento, não é o nosso problema, é no entanto o Eu do «Eu
penso, logo sou». Saibam simplesmente que se trata aqui de um parêntesis,.
todas as dificuldades que me foram submetidas me foram a propósito do «Eu
penso, logo sou», saiba-se que isto não tinha nenhum valor de prova, visto que
o Eu já foi posto no «Eu penso» e finalmente só há um cogitatum, isso pensa, e
porque razão estaria Eu [Jé\ aí dentro? Creio que todas as dificuldades aqui se
criaram precisamente desta não-distinção dos dois sujeitos, tal como inicial­
mente eu lhes tenho articulado; quer dizer que mais ou menos erroneamente,
acho que mais ou menos erroneamente nos reportamos, nesta experiência à
qual nos convida o filósofo, à confrontação do sujeito a um objeto -por

41
coii'irqiienciii íi um objeto imaginário entre os quais não causa surpresa que o
liu não sc considere ser senão um objeto entre os outros. Se pelo contrário
colocamos a questão ao nível do sujeito definido como falante, a questão vai
tomar um outro alcance, como a fenomenologia, que vou simplesmente indi­
car-lhes agora, vou lhes mostrar. Para aqueles que querem referências a respei­
to de toda esta discussão em tomo do Eu, do cogito, lembro-lhes que há um
artigo já citado do senhor Sartre em Recherches philosophiques'3.
O Eu de que se trata não é simplesmente o Eu articulado no discurso, o
Eu como se pronuncia no discurso e o que os linguistas chamam, pelo menos
desde há algum tempo, um shifter. É um semantema que não tem emprego
articulável senão em função do código, quero dizer em função pura e simples­
mente do código articulável lexicalmente. Quer dizer que como a experiência
mais simples o mostra, o Eu não se refere nunca a algo que possa ser definido
em função de outros elementos do código, então um semantema, mas simples­
mente em função do ato da mensagem. O Eu designa aquele que é o suporte da
mensagem, ou seja alguém que varia a cada momento. Não é mais complicado
do que isto, mas eu lhes farei notar o que resulta disso, é que esse Eu é essenci­
almente, então, distinto a partir desse momento, como lhes farei rapidamente
sentir, do que se pode chamar o sujeito verdadeiro do ato de falar enquanto tal,
e é mesmo o que dá ao discurso um Eu mais simples, diria uma presunção
sempre de discurso indireto; quero dizer que esse Eu poderia facilmente ser
seguido no discurso até de um parêntesis: “eu (que falo)”, ou “eu (digo que)”,
isto que aliás é tomado muito evidente como outros o notaram antes de mim,
pelo fato que um discurso que formula “eu digo que”, e que acrescenta a se­
guir: “e eu o repito”, não diz nesse “eu o repito” algo de inútil pois é justamente
para distinguir os dois Eu que estão em causa: «aquele que disse que» e aquele
que adere ao que «aquele que disse que» disse. Em outros termos ainda, quero
simplesmente, se forem necessários ainda outros exemplos para fazê-lo sentir,
sugerir-lhes a diferença que há entre o Eu de “eu vos amo” ou de “eu amo
você” e o Eu de “eu estou aqui”.
O Eu de que se trata é particularmente sensível (justamente por causa da 11

11 SARTRE, J.-P.: La transcendance de 1'ego (1936). Biblioteca de textos filosóficos, Paris,


1992, J. Vrin.

42
estrutura que evoco) lá onde ele está plenamente oculto, e lá onde ele está
plenamente ocultado é nessas formas do discurso que realizam o que eu cha­
marei a função vocativa, ou seja aquelas que não deixam aparecer na sua estru­
tura significante que o destinatário não é de modo nenhum o “eu”. É o Eu de
“Levanta-te e anda”, é esse mesmo Eu fundamental que se encontra em não
importa qual forma vocativa imperativa e um certo número de outras. Coloco-
as todas provisoriamente sob o título de vocativo, é o Eu se quiserem evocativo,
é o Eu do qual já lhes falei na ocasião do Seminário do Presidente Schreber,
porque era essencial de fazê-lo aparecer (não sei se nesse momento o consegui
plenamente, nem sequer o retomei no que dei sobre o resumo do meu Seminá­
rio sobre o Presidente Schreber): é o Eu subjacente a “Tu és aquele que me
seguirás” e sobre o qual tenho insistido tanto, e do qual verão como ele se
inscreve com todo o problema de um certo futuro, aliás no interior de vocativos
propriamente falando, de vocativos da vocação.
Relembro para aqueles que não estavam aqui, a diferença que há em
francês, é uma sutileza que nem todas as línguas permitem pôr em evidência,
entre “tu és aquele que me seguirás” e “tu és aquele que me seguirá”. Esta
diferença de poder performante do Tu no caso é efetivamente uma diferença
atual do Eu na medida em que ele opera neste ato de falar que representa e que
se trata de mostrar uma vez mais e a esse nível que o sujeito recebe sempre a
sua própria mensagem, ou seja o que se trata de confessar aqui, ou seja o Eu
sob uma forma invertida, ou seja por intermédio da forma que ele dá ao Tu.
Esse discurso, o discurso então que se formula ao nível do segundo andar, e
que é o discurso de sempre -nós não distinguimos senão arbitrariamente esses
dois andares-, esse discurso que, como todo o discurso, é o discurso do Outro
mesmo quando é o sujeito que o faz, é fundamentalmente nesse segundo andar
um apelo do ser com mais ou menos força. Ele contém sempre, e isto é mais um
dos maravilhosos equívocos homofônicos que contém o francês, ele contém
sempre mais ou menos umse/a, em outros termos um flat, um flat que é a fonte
e a raiz do que, da tendência, se toma para o ser falante e se inscreve no registro
do querer, ou ainda do Eu na medida em que ele se divide nos dois termos
estudados de um ao outro, do imperativo, do “levanta-te e anda” do qual falava
há pouco, ou em relação ao sujeito, da ereção do seu próprio Eu.
A questão se posso dizer, a que na última vez aqui articulei sob a forma
do Che vuoi? agora vêem a que nível ela se coloca. Esse Che vuoi? que é, se
assim se pode dizer, a resposta do Outro a este ato de falar do sujeito. Ela

43
responde, esta questão, direi como sempre, ela responde esta resposta antes da
questão a isto, ao ponto de interrogação redutível cuja própria forma no meu
esquema articula este ato de falar. Será que falando, o sujeito sabe o que faz? É
justamente isso que nos perguntamos aqui, e é para responder a esta pergunta
que Freud diz não. O sujeito no ato de falar, e na medida em que este ato de
falar vai bem entendido muito mais longe que simplesmente sua fala, pois toda
a sua vida é implicada nos atos de falar, pois a sua vida como tal, ou seja todas
as suas ações são ações simbólicas -ainda que não fosse porque elas, são
registradas, elas estão sujeitas a registro, elas são muitas vezes ação para se
tomar ato, e que finalmente, tudo o que ele fizer como se diz, e contrariamente
ao que se passa, ou mais exatamente conforme a tudo o que se passa no juiz de
instrução, «tudo o que ele fizer pode ser considerado contra ele»- todas as suas
ações serão impostas num contexto de linguagem e os seus gestos mesmos são
gestos que não são jamais senão gestos a escolher num ritual preestabelecido,
ou seja numa articulação de linguagem. E Freud a isto: «Ele sabe o que faz?»
responde não. Não é senão isso o que exprime o segundo andar do meu grafo,
é a saber que esse segundo andar só é válido a partir da questão do Outro, ou
seja Che vuoi?, «O que queres?»; que até o momento da questão, bem entendi­
do ficamos na ignorância e na tolice...
Tento fazer aqui a prova de que o didatismo não passa obrigatoriamente
pela tolice. Não pode evidentemente ser sobre vocês que nos baseamos para
que a demonstração seja terminada!
Onde então em relação a esta questão, e nas respostas, o segundo andar
do esquema articula onde se colocam os pontos de recruzamento -entre o dis­
curso verdadeiro que é tido pelo sujeito e o que se manifesta como “querer” na
articulação da fala- onde esses pontos de recruzamento se colocam, aí está
todo o mistério desse símbolo que parece constituir opacidade para alguns den­
tre vocês.
Esse discurso que se apresenta a esse nível como apelo do ser, não é o
que parece ser, sabemo-lo por Freud, e é isso que o segundo andar do grafo
tenta nos mostrar. A primeira vista não se pode senão surpreender-se, que não
seja reconhecido, porque é o que diz Freud. O que é. que nós fazemos todos os
dias? Senão isto, de mostrar que a esse nível, ao nível do ato da fala, o código
é dado por algo que não é a demanda primitiva, que é uma certa relação do
sujeito a esta demanda na medida em que o sujeito ficou marcado pelas suas
transformações. E isto que nós chamamos as formas orais, anais, e outras, da

44
articulação inconsciente, e é por isso que não me parece levantar muitas dis­
cussões. Falo simplesmente, como admissão das premissas que situamos aqui
ao nível do código, a fórmula $ yD, o sujeito enquanto marcado pelo significante
na presença de sua demanda como dando o material, o código desse discurso
verdadeiro que é o verdadeiro discurso do ser a esse nível.
Quanto à mensagem que ele
recebe, a essa mensagem já fiz vári­
as vezes alusão -dei-lhe várias for­
mas, todas elas não sem algumas ra­
zões mais ou menos escorregadias,
como acontece com todo o proble­
ma do alcance analítico, ou seja qual
é a mensagem- eu posso deixá-la por
hoje, e nesse momento pelo menos
do meu discurso, no estado proble­
mático, e simbolizá-la por um
significante presumido como tal. E
uma forma puramente hipotética, é
um X, um significante, um signi­
ficante do Outro visto que é ao nível
do Outro que a questão é colocada,
de um Outro que falta por um lado,
que é justamente o elemento proble­
mático na questão que se relaciona
com a mensagem14.
Resumamo-nos. A situação do sujeito ao nível do inconsciente tal como
Freud a articula, -não sou eu, é Freud que a articula- é que ele não sabe com o
que é que fala, é preciso revelar-lhe os elementos propriamente signifícantes
de seu discurso, e que ele também não sabe a mensagem que lhe chega real­
mente ao nível do discurso do ser-digamos verdadeiramente se quiserem, mas
esse “realmente” não o recuso de modo nenhum.
Noutros termos, ele não sabe a mensagem que lhe chega da resposta a

14 O X marca aqui a passagem do S(A) a S(40, introduzido como tal, pela primeira vez, na lição
7 (7 de janeiro de 1959). (N.d.E)

45
■um i Im mi ii In mi rm n| >< i du i |ur rlc qucr. Ji'i snbcni, vocês, a resposta, a verda-
i leu a lei.ponla, chi só pode ser uma: é a saber o significante e mais nada, que é
especial mente destinado a designar as relações do sujeito com o significante.
Disse-lhes, quero mesmo assim exprimi-lo, porque este significante era o falo.
Mesmo para aqueles que o ouvem pela primeira vez, peço-lhes provisoriamen­
te para aceitarem isto. O importante não está aí, o importante é que é por isso
que ele não pode ter a resposta porque, como a única resposta possível é o
significante que designa as suas relações com o significante. Ou seja, se já
estava em questão, em toda a medida em que ele articula esta resposta, ele, o
sujeito anula-se e desaparece. É justamente o que faz que a única coisa que ele
possa sentir, é esta ameaça diretamente dirigida ao falo, ou seja a castração ou
esta noção de falta do falo que, num e noutro sexo, é essa alguma coisa em que
vem se terminar a análise, como Freud -fiz-lhes notar- a articulou.
Mas não estamos a repetir essas verdades primeiras. Sei que isto enerva
um pouco alguns que façamos demasiados malabarismos desde há algum tem­
po com o ser e o ter, mas isto passar-lhes-á, pois isto não quer dizer que no
percurso não tenhamos que fazer uma colheita preciosa, uma colheita clínica,
uma colheita que permita que se produza mesmo no interior do meu ensino de
se produzir com todas as características do que eu chamaria o ilusório médico.
Trata-se agora no interior disto de situar o que quer dizer o desejo.
Dissemo-lo, há pois nesse segundo andar também um tesouro sincrônico, há
uma batería de signifícantes inconscientes para cada sujeito, há uma mensa­
gem onde se anuncia a resposta ao Che vuoi? e onde ela se anuncia como
vocês podem constatá-lo, perigosamente. Mesmo isto, faço-o notar de passa­
gem, como para lhes evocar lem­
branças ilustradas que fazem da his­
tória de Abelardo e Heloísa a mais
bela história de amor.
O que é que quer dizer o de­
sejo? Onde ele se situa? Podem no­
tar que na forma completa do esque­
ma, vocês têm aqui uma linha pon­
tilhada que vai do código do segun­
do andar à sua. mensagem por inter­
médio de dois elementos: d signifi­
ca o lugar de onde o sujeito desce, e
S em face do pequeno a significa

46
-já o disse, portanto o repito- o fantasma. Isto tem uma forma, uma disposição
homológica à linha que, de A, inclui no discurso o eu, (o m no esquema, diga­
mos «a pessoa bem ataviada» [lapersonne étoffée]'’") com a imagem do outro
[1(a)], ou seja, essa relação especular que lhes coloquei como fundamental na
instauração do eu. Existe na relação entre os dois andares, algo que merece ser
mais plenamente articulado. Não o faço hoje, unicamente não porque não te­
nho tempo pois estou disposto a tomar todo o meu tempo para lhes comunicar
o que tenho a dizer-lhes, mas porque prefiro tomar as coisas de um modo indi­
reto, porque elas me parecem suscetíveis de lhes fazer sentir todo o seu alcan­
ce. Não são desde já incapazes de adivinhar o que pode ter de rico o fato que
isso seja uma certa reprodução de uma relação imaginária ao nível do campo
de abertura determinado entre os dois discursos, na medida em que essa rela­
ção imaginária reproduz homologicamente o que se instala na relação com o
outro do jogo de submissão. Não são incapazes de pressenti-lo desde já, mas
está claro que é completamente insuficiente pressenti-lo, quero simplesmente
antes de articulá-lo plenamente, reter-lhes um instante sobre o que comporta
no interior, situado, plantado no interior desta economia, o termo de desejo.
Sabem-no, Freud introduziu esse termo desde o início da análise. Ele o
introduziu a propósito do sonho e sob a forma do fflimsch, ou seja, certamente,
alguma coisa que se articula nesta linha. O Wunsch não é em si mesmo, sozi­
nho, o desejo, é um desejo formulado, é um desejo articulado. Aquilo em que
quero por um momento detê-los, é à distinção disso que merece -no que instalo
e introduzo este ano- ser chamado desejo e desse fflunsch.
. Não deixaram de ler La science des rêves, e esse momento em que disso
lhes falo marca o momento em que nós próprios vamos este ano começar a
falar disso. Do mesmo modo que no ano passado começamos pelo Le trait
d'esprit, este ano começamos pelo sonho. Não deixaram de reparar desde as
primeiras páginas, e até o fim, que se pensam no desejo sob a forma que, eu
diria, têm-no çonstantemente na experiência analítica, ou seja aquela que lhes
dá a dificuldade pelos seus excessos, pelos seus desvios, por finalmente digamo-
lo, muitas vezes pelas suas falhas, quero dizer o desejo sexual, aqüele que goza
de alguém (embora desde sempre se exerça sobre todo o campo analítico uma

l5DAMOURETTE, J. et PICHOU, E.: «La personne étoffée», in. Des mots à lapensée. Essai de
grammaire dela langue française, 1911-1940, t.6, cap. VIII, Paris, 1970, d'Artrey.

47
tendência de apagamento muito notável), aquela de que se trata constantemen­
te na análise. Devem portanto notar a diferença -à condição bem entendido
que leiam verdadeiramente, quer dizer que não continuem a pensar nos seus
pequenos problemas enquanto os seus olhos percorrem a Traumdeutung, vocês
se aperceberão que é muito difícil encontrar, esse famoso desejo que em cada
sonho pretensamente se encontra sempre.
Se eu tomar o sonho inaugural, o sonho da injeção de Irma, do qual já
falamos várias vezes, sobre o qual escrevi um pouco, (e sobre o qual reescreve-
rei) e do que poderiamos falar excessivamente durante muito tempo... Lem­
brem-se do que é o sonho da injeção de Irma. O que é que ele quer dizer exata­
mente? Isso mantém-se muito incerto mesmo naquilo que acontece. Ele mes­
mo, Freud, no desejo do sonho quer fazer ceder Irma, que ela não esteja mais,
como se diz lá dentro, crispando-se a propósito de todas as aproximações de
Freud. O que é que ele quer? Ele quer despi-la, quer fazê-la falar, quer desacre­
ditar os seus colegas, quer forçar sua própria angústia até vê-la projetada no
interior da garganta de Irma, ou quer acalmar a angústia do mal ou do prejuízo
causado a Irma? Mas este mal é, parece-nos, sem recurso, ele está bastante
articulado justamente no sonho. É disso que se trata, que não tenha havido
crime? E o que não impede que se diga que, visto que não houve crime, tudo
correrá bem visto que tudo é reparado, e depois que tudo isso é devido ao fato
que fulano e sicrano tomam estranhas liberdades e que é o terceiro termo que é
responsável por isso, e assim continuando. Poderiamos ir desta maneira exces­
sivamente longe.
Aliás faço-lhos notar que o próprio Freud sublinha em um ponto da
Traumdeutung, e com a maior energia, pelo menos até a sétima edição, que ele
nunca disse em parte alguma que o desejo de que se trata no sonho seja sempre
um desejo sexual. Ele também não disse o contrário, mas enfim não disse isso,
isto para as pessoas que, ao nível desta sétima edição, o censuram.
Não nos enganemos no entanto. Saibamos que a sexualidade aí está sem­
pre mais ou menos implicada. Simplesmente ela está de certo modo lateral­
mente, digamos em derivação. Trata-se justamente de saber por que, mas para
saber por que, quero simplesmente por um momento parar nessas coisas evi­
dentes que nos dão o uso e o emprego da linguagem, ou seja: o que é que isto
quer dizer, quando se diz a alguém, se é um homem ou se é uma mulher, e
sobre o que é necessário escolher que é um homem e que isto pode provocar
numerosas referências contextuais, o que é que isto quer dizer quando se diz a

48
uma mulher “eu desejo você”? Quer isto dizer-como o otimismo moralizante
sobre o qual me vêem de tempos em tempos combater no interior da análise-
será que quer dizer: “estou pronto a reconhecer ao seu ser tantos, senão ainda
mais direitos que ao meu, a satisfazer todas as suas necessidades, a pensar na
sua satisfação? Senhor que a vossa vontade seja feita antes da minha!” É isto
que isto quer dizer? Penso que basta evocar esta referência para lhes provocar
os sorrisos que vejo desabrocharem nesta assembléia, felizmente! Ninguém
aliás, quando são empregadas as palavras que convêm, se engana sobre o que
quer dizer o alcance de um termo como este, por genital que ele seja.
A outra resposta é esta: “eu desejo (digamos para empregar os bons
palavrões tal e qual) dormir com você, [foder]”, é muito mais verdadeiro, é
preciso reconhecê-lo, mas é assim tão verdade como isso? É verdade num certo
contexto, diria social, e também porque talvez, dada a extrema dificuldade de
dar a sua saída exata a esta formulação “eu a desejo”, não se encontra, final­
mente, nada de melhor para o provar.
Acreditem-me, talvez baste que esta palavra não esteja ligada aos inco-
mensuráveis embaraços e quebra de pratos que arrastam os discursos que têm
um sentido, é suficiente talvez que esta palavra só seja pronunciada no interior
para que imediatamente compreendam que se esse termo tem um sentido, é um
sentido bastante difícil de formular. “Eu a desejo”, articulado no interior se o
posso dizer, a respeito de um objeto, é isto mais ou menos: “você é bela”, em
tomo do que se fixam, se condensam todas essas imagens enigmáticas cuja
vaga se chama para mim o meu desejo, ou seja: “eu lhe desejo porque você é o
objeto do meu desejo”, em outras palavras, “você é o denominador comum dos
meus desejos” e Deus sabe (se eu posso meter Deus no assunto, e porque não?)
Deus sabe o que é que o desejo agita com ele. E alguma coisa que na realidade
mobiliza, orienta na personalidade algo diferente que isso em direção ao que
por convenção parece ordenar-se seu fim preciso.
Noutros termos, para nos referirmos a uma experiência muito menos
infinitàmente poética talvez, parece que não tenho necessidade de ser analista
para evocar quão depressa e imediatamente a esse nível, a propósito da mínima
distorção como se diz da personalidade ou das imagens, quão depressa e em
primeiro plano vêm surgir a propósito desta implicação no desejo, o que pode,
o que no mais das vezes, o que por direito aí aparece como prevalente -ou seja
a estrutura do fantasma.
Dizer a alguém “eu o desejo”, é muito precisamente dizer-lhe, mas isto

49
nik> é a experiência que lhe dá sempre, salvo para os corajosos e os instrutivos
pequenos perversos, pequenos e grandes, é dizer “eu o implico no meu fantas­
ma fundamental”.
E aqui, visto que decidi que não me demoraria este ano para além de um
certo tempo (espero ainda fazê-lo), a prova que lhes peço me ouvir; está aqui,
ou seja, muito antes do ponto em que pensava hoje concluir, que me deterei.
Terminarei designando esse ponto do fantasma que é um ponto essenci­
al, que é o ponto chave em tomo do qual lhes mostrarei na próxima vez logo a
fazer girar, o ponto decisivo onde se deve produzir, se esse termo “desejo” tem
um sentido diferente de “voto” no sonho, onde deve se produzir a interpretação
do desejo. Esse ponto está então aqui, e podem fazer notar que faz parte do
circuito pontilhado que é esse desta espécie de pequena cauda que se encontra
no segundo andar do grafo. Queria dizer-lhes simplesmente, para lhes deixar
um pouco de apetite, que esse circuito pontilhado, não é senão o circuito no
qual nós podemos considerar que giram -é por isso que ele é construído assim,
é porque isso gira, uma vez que é alimentado de início, põe-se a girar indefini­
damente no interior- que giram os elementos do recalcado. Noutros termos, é o
lugar, no grafo, do inconsciente como tal. E disso, e unicamente disso que
Freud falou até 1915 quando concluiu pelos dois artigos que se chamam res­
pectivamente: L 'inconscient e Le refoulement.
É aqui que retomarei para lhes dizer a que ponto está articulado em Freud
de um modo que se mantém, que é a própria substância do que tento fazer-lhes
compreender a respeito do significante, é a saber que o próprio Freud articula
do modo menos ambíguo alguma coisa que quer dizer: nunca são, nunca po­
dem ser recalcados senão os elementos signifícantes. Está em Freud! Só falta a
palavra significante. Eu lhes mostrarei sem ambiguidades que aquilo que Freud
fala no seu artigo sobre L 'inconscient a respeito do que pode ser recalcado,
Freud o designa, só podem ser signifícantes.
Veremos isso na próxima vez. E então vêem dois sistemas opor-se aqui:
esse sistema aqui pontilhado, dissemo-lo, é isso de que se trata, é o lugar do
inconsciente e o lugar onde o recalcado entra em círculo vicioso até o ponto em
que se faz sentir, ou seja onde qualquer coisa da mensagem ao nível do discur­
so do ser vem desordenar a mensagem ao nível da demanda, o que constitui
todo o problema do sintoma analítico.
Há um outro sistema, é o que prepara o que chamo aqui o pequeno pata­
mar, ou seja a descoberta da metamorfose, descoberta porque já se tinha tido

50
'Qgj ’‘lir'

r
tanta dificuldade a habituar-se ao primeiro sistema que como Freud nos fez o
fatal benefício de fazer ele mesmo o passo seguinte antes da sua morte, quer
dizer que Freud na sua segunda tópica descobriu o registro do outro sistema
pontilhado: pequeno patamar, é justamente a isto que corresponde a sua segun­
da tópica. Noutros termos, é a respeito do que se passa, é na medida em que ele
se interrogou sobre o que se passa ao nivel do sujeito-pré-discurso, mas em
função mesmo desse fato que o sujeito que fala não sabia o que fazia falando,
ou seja a partir do momento em que o inconsciente é descoberto como tal, que
Freud tem, se quiserem assim para esquematizar as coisas, aqui procurado a
que nível deste lugar original de onde isso faia, em que nível e em função de
quê, ou seja justamente em relação a um objetivo que é o do desembocar do
processo em I, em que momento se constitui o eu [mor] (ou seja o eu [mor] na
medida em que ele tem que se referir em relação à primeira formulação, a
primeira tomada na demanda do isso). Também foi assim que Freud descobriu
esse discurso primitivo enquanto puramente imposto, e ao mesmo tempo en­
quanto marcado pelo seu profundo arbitrário, que isso continua a falar, ou seja
o supereu. Também é aqui que bem entendido ele deixou alguma coisa de
aberto, é aqui, ou seja nesta função profundamente metafórica da linguagem,
que ele nos deixou alguma coisa para descobrir, para articular, que completa a
sua segunda tópica e que permite restaurá-la, ressituá-la, de restitui-la no con­
junto de sua descoberta.

51
&

Lição 3
26 de novembro de 1958

Começo por cumprir as minhas promessas. Na última vez tinha-lhes in­


dicado o artigo de Sartre que se chama: La transcendence de I'ego, esquisse
d'une description phénoménologique. Este artigo encontra-se no volume V
das Recherches philosophiques, excelente revista que deixou de aparecer com
a guerra e com o desaparecimento do seu editor, Boivin, pp.85 a 103'6.
A observação feita por Freud que «a afirmação que todos os sonhos têm
uma significação sexual, (mais precisamente exigem uma interpretação sexu­
al) contra a qual toda a literatura levantou infatigavelmente uma polêmica, é
absolutamente alheia à minha Traumdeutung, nas sete edições deste livro (isto
está escrito naturalmente na VIF). Ela está numa contradição particularmente
perceptível com o restante do conteúdo» (que se encontra no tomo 2-3 que
contém a Traumdeutung, na página 402IS * 17)18.
Muitos de vocês ouviram ontem à noite o relato clínico de um dos nos­
sos colegas e excelente psicanalista, sobre o tema do obsessivo”. Ouviram-no
falar acerca do desejo e da demanda. Nós procuramos aqui pôr em relevo,
porque ela não é unicamente uma questão teórica mas está ligada ao essencial

IS Op.cit.
”P. 341 dá edição francesa.
11 Aqui estava previsto um esquema do qual nenhum rastro foi encontrado.
19 LECLAIRE S., «Philon ou 1’Obsessionnel et son désir» (1959), retomado em Démasquer le
réel, Paris, 1971, Le Seuil.

53
da nossa prática, esta questão que é aquela em torno da qual se põe o problema
da estrutura do desejo e da demanda, e que é alguma coisa que sem dúvida se
aplica de imediato à clínica, a vivifica, a toma, diria, compreensível. Quase
diria que é um signo, que ao tê-la manejado demasiado ao nível da compreen­
são, pudessem experimentar não sei qual sentimento de insuficiência. E aliás é
verdade, que o nível da compreensão está longe de esgotar os recursos disso
que é a estrutura que procuramos penetrar, porque é sobre ela que procuramos
agir; e que a chave em tomo da qual devemos fazer girar esta' distinção da
demanda e do desejo -por mais que ela desde logo clarifique a demanda, mas
que em contrapartida ela situe bem no seu lugar, quer dizer no seu ponto estri­
tamente enigmático, a posição do desejo do homem- a chave de tudo isto, é a
relação do sujeito com o significante. O que caracteriza a demanda, não é uni­
camente que é uma relação de sujeito a um outro sujeito, é que essa relação se
faz por intermédio da linguagem, quer dizer por intermédio do sistema dos
signifícantes. •
Já que abordamos -eu lhes tinha anunciado- agora a questão do que é o
desejo na medida em que ele é o fundamento do sonho, sabem logo que não é
simples saber o que é esse desejo. Se ele é o motor do sonho, sabem que no
mínimo é duplo: 1) que esse desejo antes de mais nada está na manutenção do
sono, Freud o formulou da maneira mais espressa, quer dizer deste estado em
que para o sujeito se suspende a realidade; 2) o desejo é desejo de morte, ele o
é por outro lado e ao mesmo tempo e perfeitamente compatível diria, na medi­
da em que muitas vezes é por intermédio desse segundo desejo que o primeiro
é satisfeito, o desejo sendo aquilo em que o sujeito do Wunsch se satisfaz.
E esse sujeito, queria pô-lo numa espécie de parèntesis: o sujeito, não
sabemos o que é, e o sujeito do Wunsch, do sonho, a questão é de saber quem
ele é. Quando alguns dizem o eu [moi], enganam-se, Freud certamente afirmou
o contrário. E se dizemos é o inconsciente, é não dizer nada. Portanto quando
digo: o sujeito do Wunsch se satisfaz, ponho esse sujeito entre parèntesis, e
tudo o que Freud nos diz, é que é um Wunsch que se satisfaz. Satisfaz-se de
quê? Eu diria que ele se satisfaz do ser, quer dizer do ser que se satisfaz. É tudo
o que podemos dizer, porque na verdade é bem claro que o sonho não traz
consigo nenhuma outra satisfação senão a satisfação ao nível do Wunsch, quer
dizer uma satisfação se pode-se dizer verbal. O Wunsch contenta-se aqui com
aparências, e.é bem claro trata-se de um sonho; e de igual modo aliás o caráter
desta satisfação é aqui refletido na linguagem pela qual ele no-la expressou,

54
esse “satisfeito do ser” como ainda agora me expressei, e onde se trai esta
P^biguidade da palavra “ser” na medida em que ele está aí, que desliza para
t do o la^o e que da mesma maneira, ao formular-se assim, tem esta forma
tical de reenvio do ser -o “ser satisfeito”, quero dizer-: ele pode ser
tomado por este lado substancial? Não hâ nada de substancial no ser senão essa
palavra mesma, “ele se satisfaz do ser”, nós [não] podemos tomá-lo por isso
que é do ser, senão ao pé da letra.
Afinal, é mesmo de fato cotno alguma coisa da ordem do ser que satisfaz
o Wunsch. Não é em suma senão no sonho, pelo menos no plano do ser, que o
Wunsch possa se satisfazer.
Queria aqui quase fazer esta coisa que eu faço muitas vezes, esse peque­
no preâmbulo se quiserem, esse olhar para trás, esta observação que lhes per­
mite abrir os olhos sobre [esse] não sei o quê que [não] compreende nada me­
nos que o conjunto da história da especulação psicológica na medida em que
ela está ligada, que a psicologia moderna começou por formular, como sabem,
nos termos do atomismo psicológico, aqui todas as [teorias associacionistas].
Cada um sabe que nós já não estamos aí, no associacionismo como se diz, e
que fizemos progressos consideráveis desde que tomamos em consideração a
demanda da totalidade, a unidade do campo, a intencionalidade e outras forças.
Mas eu diria que a história não está de todo ordenada, e ela não está de todo
ordenada precisamente por causa da psicanálise de Freud, mas não se vê de
todo como é que na realidade a mola jogou nesse ajuste de contas que não o é,
quero dizer que se deixou escapar dele completamente a essência, e ao mesmo
tempo-também a persistência daquilo que aí foi pretensamente reduzido.
No inicio é verdade, o associacionismo da tradição da escola psicológica
inglesa, onde é o jogo articulado e um amplo desprezo, se assim posso me
exprimir, onde eu diria se nota o campo do real, no sentido em que aquilo de
que se trata é a apreensão psicológica do real, e onde se trata de explicar, em
suma, não só que há homens que pensam, mas que há homens que se deslocam
no mundo apreendendo nele de uma maneira mais ou menos conveniente o
campo dos objetos.
Onde está então este campo dos objetos, seu caráter fragmentado,
estruturado? De quê? Da cadeia significante muito simplesmente, e eu vou
verdadeiramente tentar escolher um exemplo para tentar fazer-lhes sentir, que
[não] se trata de nada mais, e que tudo o que se confere na teoria associacionista
dita estruturada -para conceber a progressividade da apreensão psicológica a

55
partir da escansão- é apenas o fato de dotar de imediato esses campos do real
do caráter fragmentado e estruturado da cadeia significante.
A partir daí é certo, se percebe que o jogo está viciado e que deve haver
relações mais originais, se pode-se dizer, com o real, e para tal parte-se da
noção proporcionalista -e vai-se para todos os casos em que esta apreensão do
mundo é de certo modo mais elementar, justamente menos estruturada pela
cadeia significante, sem saber que é disso que se trata- vai-se rumo à psicolo­
gia animal, evoca-se todos os lineamentos estigmáticos graças aos quais o ani­
mal pode vir a estruturar o seu mundo e tenta reencontrar aí o ponto de referên­
cia.
Imagina-se que, quando se fez isto, se resolveu -numa espécie de teoria
do campo animado do vetor do desejo primordial-, se tenha feito a reabsorção
desses famosos elementos que eram uma primeira e falsa apreensão da tomada
do campo do real pela psicologia do sujeito humano. Simplesmente não se fez
absolutamente nada, descreveu-se outra coisa, introduziu-se uma outra psico­
logia, mas os elementos do associacionismo sobrevivem perfeitamente ao esta­
belecimento da psicologia mais primitiva; quero dizer que procura apreender o
nível de coaptação no campo sensório-motor do sujeito com a sua Umwelt,
com o seu meio ambiente. Mas não deixa de ser verdade que tudo o que se
refere, que todos os problemas levantados a propósito do associacionismo so­
brevivem perfeitamente a isto, que ele não foi de nenhum modo uma redução,
mas uma espécie de deslocamento do campo de visão, e a prova disso é justa­
mente o campo analítico no qual permanecem reis todos os princípios do
associacionismo. Pois nada até aqui estrangulou o fato que quando começamos
a explorar o campo do inconsciente, nós o fazemos, nós o refazemos todos os
dias, na sequência de alguma coisa que se chama em princípio “associação
livre”, e até agora em princípio -embora é certo que seja um termo aproxima-
tivo, inexato para designar o discurso analítico- a intenção da associação livre
continua válida e que as experiências originais revelam palavras induzidas e
guardam sempre -ainda que obviamente não guardem valor terapêutico nem
prático- mas guardam sempre seu valor orientador para a exploração do cam­
po do inconsciente, e isto bastaria por si só para nos mostrar que estamos num
campo onde reina a palavra, onde reina o significante.
Mas se isto ainda não lhes bastar, eu completo este parêntesis porque
insisto em fazê-lo para lhes lembrar sobre o que se funda a teoria associacionista,
e sobre esse fundo de experiência o que vem em seguida, o que se coordena no

56
espírito de um sujeito a tal nível, ou para retomar a exploração tal como ela é
dirigida nessa primeira relação experimental, os elementos, os átomos, as idéi­
as como se diz, sem dúvida aproximadamente, insuficientemente, mas não sem
razão, essa primeira relação apresenta-se sob esta forma: na sua origem essas
idéias entraram por meio de quê? Trata-se de relações de contiguidade. Vejam,
sigam os textos, vejam de que se fala, em que exemplos se apoiam, e reconhe­
cerão perfeitamente que a contiguidade não é outra coisa senão esta combina­
ção discursiva na qual se funda o efeito que chamamos aqui a metonímia. Sem
dúvida contiguidade entre duas coisas que aconteceram, na medida em que
elas são evocadas na memória sobre o plano das leis da associação.
O que é que isto quer dizer? Isto significa como um acontecimento foi
vivido num contexto que podemos chamar grosso modo um contexto de acaso.
Uma parte do acontecimento sendo evocada, a outra virá ao espírito constituin­
do uma associação de contiguidade que não é mais do que um encontro. O que
é que isto quer dizer? Isto quer dizer em suma que ela se fragmenta, que os seus
elementos são tomados num mesmo texto de narração. E na medida em que o
acontecimento evocado na memória é um acontecimento narrado, que a narra­
tiva forma dele o texto, que podemos falar a esse nível de contiguidade.
Contiguidade por outro lado que distinguimos por exemplo numa expe­
riência de palavras induzidas. Uma palavra virá com uma outra: se a propósito
da palavra “cereja”, evoco evidentemente a palavra “mesa”, isso será uma rela­
ção de contiguidade porque em tal dia havia cerejas em cima da mesa; mas
[não] será relação de contiguidade se falamos de alguma coisa que não é mais
do que uma relação de similitude. Uma relação de similitude é igualmente
sempre uma relação de signifícantes uma vez que, a similitude, é a passagem
de um ao outro através de uma similitude que é uma similitude de ser, que é
uma similitude de um ao outro, entre o um e o outro na medida em que o um e
o outro sendo diferentes, há algum tema do ser que os toma parecidos.
Não vou entrar em toda a dialética do mesmo e do outro, com tudo o que
ela tem de difícil e de infínitamente mais rico que uma primeira abordagem
faria supor. Aqueles a quem isto interessa, remeto-os ao “Parmênides”, e eles
verão que aí passarão um certo tempo antes de esgotarem a questão.
O que digo simplesmente aqui e o que quero lhes fazer sentir é -dado
que falei antes mesmo de cerejas- que há outros usos que o uso metonímico. A
propósito dessa palavra, eu diria, justamente um uso metafórico: posso servir-
me dele para falar do lábio dizendo que este lábio é como uma cereja, e dar a

57
palavra cereja vinda como uma palavra induzida a propósito da palavra lábio.
Elas estão aqui ligadas por quê? Porque elas são ambas vermelhas, semelhan­
tes devido a que atributo? Não é que seja só isto, ou porque elas têm ambas a
mesma forma, analogicamente, mas o que é perfeitamente claro, é que, de qual­
quer forma, estamos imediatamente, e isso se sente, sob o efeito absolutamente
substancial que se chama o efeito de metáfora. Aqui não há nenhuma espécie
de ambiguidade quando falo, numa experiência de palavras induzidas, da cere­
ja a propósito do lábio. Estamos no plano da metáfora no sentido mais substan­
cial do que contém este efeito, esse termo, e sobre o plano mais formal, isto se
apresenta sempre, como eu lhes reduzi a este efeito de metáfora, a um efeito de
substituição na cadeia significante.
E na medida em que a cereja pode ser posta num contexto estrutural ou
não, a propósito do lábio, que a cereja está ali. Ao que podem me dizer “a
cereja pode vir a propósito dos lábios numa função de contiguidade (a cereja
desapareceu entre os lábios, ou ela deu-me a cereja a tomar nos seus Lábios)”.
Pois, bem entendido é também assim que ela pode se apresentar, mas de que é
que se trata? Trata-se aqui de uma contiguidade que precisamente é aquela da
narrativa da qual falava há pouco, porque o acontecimento no qual se integra
essa contiguidade, e que faz com que a cereja esteja efetivamente durante um
breve momento em contato com o lábio, é alguma coisa que evidentemente, do
ponto de vista real, não deve nos enganar. O que importa não é que a cereja
toque o lábio, é que ela seja engolida; de igual modo não é que ela seja tida com
os lábios no gesto erótico que evoquei, o que conta é que ela nos seja oferecida
nesse mesmo movimento erótico. Se por um instante retivermos esta cereja em
contato com o lábio, é em função de um flash que é o flash precisamente da
narrativa, em que é a frase, em que são as palavras que por um instante suspen­
dem esta cereja entre os lábios. E é aliás precisamente porque existe esta di­
mensão da narrativa na medida em que ela institui esse flash, que inversamente
esta imagem na medida em que ela é criada pela suspensão da narrativa, se
toma efetivamente neste caso um dos estímulos do desejo -na medida em que
impondo um tom que é aqui apenas implicação da linguagem no ato, a lingua­
gem introduz no ato esta estimulação a posteriori, este elemento estimulante
propriamente dito que é detido como tal e que vem nesse momento alimentar o
próprio ato desta suspensão que toma o valor de fantasma, que tem significa­
ção erótica na esquiva do ato.
Penso que isto é suficiente para lhes mostrar esta instância do significante

58
na medida em que ele está no fundamento da própria estruturação de um certo
campo psicológico (que não é a totalidade do campo psicológico), que é preci­
samente esta parte do campo psicológico que, até um certo grau, está por con­
venção no interior do que podemos chamar a psicologia, dado que a psicologia
se constituiría sobre a base do que eu chamaria uma espécie de teoria unitária
intencional ou apetitiva do campo.
Esta presença do significante, ela está articulada de uma maneira infini­
tamente mais eminente, infinitamente mais potente, infinitamente mais eficaz
na experiência freudiana, e é o que Freud nos lembra a cada instante. É igual­
mente o que se tende a esquecer da maneira mais singular, na medida em que
queiram fazer da psicanálise alguma coisa que iria no mesmo sentido, na mes­
ma direção que aquela em que a psicologia veio situar o seu interesse, quero
dizer no sentido de um campo clínico, área de um campo tensional onde o
inconsciente seria alguma coisa que teria sido uma espécie de poço, de cami­
nho, de furo se pode-se dizer, paralela à evolução geral da psicologia, e que nos
teria permitido também ir por um outro acesso ao nível dessas tensões mais
elementares, ao nível do campo das profundezas, de forma a que se suceda
alguma coisa de mais reduzido ao vital, ao elementar que o que vemos na
superfície que seria o campo dito do pré-consciente ou do consciente.
Isto, repito-o, é um erro. E mesmo precisamente nesse sentido que tudo
o que dizemos toma o seu valor e a sua importância. E se alguns dentre vocês
puderam na última vez seguir o meu conselho de se reportarem aos dois artigos
publicados em 1915, o que é que podem ler neles? Podem ler e ver isto repor­
tarem-se por exemplo ao artigo o Unbewufíte, no ponto que parece acerca dis­
so ser o mais sensível -no ponto diria ao encontro do qual numa descrição
superficial, no momento em que não se trata senão de elementos significantes,
de coisas que aqueles que não percebem absolutamente nada daquilo que aqui
digo, articulam e chamam constantemente uma teoria intelectualista. Iremos
pois situar-nos ao nível dos sentimentos inconscientes dado que Freud fala
deles, porque é evidente que se oporá naturalmente a tudo isto que falar de
significantes, não é a vida afetiva, a dinâmica. Isso é claro, estou longe de
procurar contestá-lo uma vez que é para explicá-lo de uma forma clara que eu
o abordo, ao nível do Unbewufíte.
O que vêem Freud nos articular? Ele nos articula muito precisamente
isso, é a terceira parte de Das Unbewufite'. Freud nos explica muito claramente
que só pode ser recalcado, nos diz, o que ele chama Vorstellungsreprãsentanz.
Só isso, nos diz, pode ser propriamente dito “recalcado”. Isso, por conseguinte,
quer dizer “representante da representação”. De quê? Do movimento pulsionai
que aqui é chamado Triebregung.
O texto não deixa nenhuma espécie de ambiguidade nesse momento.
Diz-nos isto expressamente, que a Triebregung, ela em todo o caso, é um con­
ceito e como tal visa o que se pode mesmo mais precisamente chamar a unida­
de de moção pulsionai, e aí não se trata de considerar esta Triebregung nem
como inconsciente, nem como consciente. Eis o que é dito no texto. O que é
que isto quer dizer? Isto quer simplesmente dizer que se deve tomar como um
conceito objetivo o que chamamos Triebregung. E uma unidade objetiva na
medida em que a observamos, e ela não é nem consciente nem inconsciente,
ela é simplesmente o que ela é, um fragmento isolado de realidade que conce­
bemos como tendo a sua incidência de ação própria.
Não há a meu ver nada mais destacável que isso seja o seu “representan­
te da representação” (é o valor exato do termo alemão) e [que] esse único re­
presentante de que se trata, a pulsão, Trieb, possa designar-se como pertencen­
do ao inconsciente na medida em que este último justamente implica o que eu
antes mesmo, coloquei com um ponto de interrogação, ou seja um sujeito in­
consciente.
Não preciso ir aqui muito mais longe, quero dizer que, devem bem senti-
lo, trata-se justamente de precisar o que é esse “representante da representa­
ção”, e isto, é claro, vêem logo, não onde quero chegar, mas onde chegaremos
necessariamente, é que esse Vorstellungsreprãsentanz -ainda que Freud no
seu tempo está no ponto em que as coisas podiam se dizer num discurso cien­
tífico- esse Vorstellungsreprãsentanz é estritamente equivalente à noção e ao
termo de significante. Isso não é outra coisa, ainda que só esteja anunciado e
claro que a demonstração esteja, parece-nos, já anunciada, porque então para
que é que serviría tudo o que lhes disse há pouco! Isso vai sê-lo evidentemente
ainda mais, sempre mais, é muito precisamente disso que se trata.
Que Freud pelo contrário esteja em oposição a isso está igualmente arti­
culado da maneira a mais precisa pelo próprio. Tudo o que se pode conotar sob
os termos que ele próprio reúne de sensação, sentimento, afeto, o que é que
Freud diz disso? Ele diz que é apenas por uma negligência da expressão que
tem, ou que não pode, ou que não tem, segundo o contexto, inconvenientes,
como todas as negligências, mas é um relaxamento dizer que é inconsciente.
Ele não pode em princípio, diz ele, nunca sê-lo, ele denega-lhe formalmente

60
toda a possibilidade de uma incidência inconsciente. Isto é expresso e repetido
de uma maneira que não pode comportar nenhuma espécie de dúvida, nenhu­
ma espécie de ambiguidade. O afeto, quando se fala de um afeto inconsciente,
isto quer dizer que ele é percebido, desconhecido; desconhecido em quê? Nas
suas ligações, mas não que ele seja inconsciente, porque ele é sempre percebi­
do, diz-nos, simplesmente ele foi prender-se a uma outra representação, não
recalcada. Dito de outro modo, ele teve de se acomodar ao contexto subsistin­
do no pré-consciente, o que lhe permite ser sustentado pela consciência, que
nessa circunstância não é difícil, para uma manifestação desse último contexto.
Isto está articulado em Freud. Não basta que ele o articule uma vez, ele o arti­
cula cem vezes, ele volta a isto a propósito de tudo.
É precisamente aí que se insere o enigma daquilo que se chama a trans­
formação deste afeto, daquilo que se apresenta a esse propósito particularmen­
te plástico, e do que todos os autores aliás a partir do momento que se aproxi­
mam desta questão do afeto, isto é, cada vez que nele derrubam o olhar, quer
dizer, espantaram-se na medida em que se ousa tocar nesta questão. Porque o
que há de absolutamente impressionante é que eu que faço “psicanálise
intelectualista”, vou passar o meu ano a falar disso, mas que em contrapartida
vocês contarão nos dedos os artigos consagrados à questão do afeto na análise
-ainda que os psicanalistas encham a boca quando falam de uma observação
clínica, porque é claro é sempre ao afeto que eles recorrem! Há segundo o meu
conhecimento um único artigo válido sobre esta questão do afeto, é um artigo
de Glover20 do qual se fala muito nos textos de Marjorie Brierley. Há nesse
artigo uma tentativa de passo à frente na descoberta desta noção do afeto que
deixa um pouco a desejar no que Freud diz sobre o assunto. Este artigo é aliás
detestável, como aliás o conjunto desse livro que -consagrando-se ao que se
chama “as tendências da psicanálise”- é uma bastante bela ilustração de todos
os lugares verdadeiramente impossíveis onde a psicanálise está em vias de se
aninhar, passando pela moral, a “personologia” e outras perspectivas eminen­
temente tão práticas em tomo das quais o blá-blá-blá da nossa época gosta de
se dispensar...
Pelo contrário se voltamos aqui às coisas que nos concernem, quer dizer
às coisas sérias, que leremos em Freud? Leremos o seguinte: o afeto, o proble-

M Glover E., «The psycho-analysis of affects». I. J. P. Vol XX, 1939, pp. 299-307.

61
mu é ilc Hubei ii que clc sc torna na medida cm que ele está’desprendido da
n-picscnlação recalcada e que já não depende mais da representação substitutiva
á qual tem ocasião de se ligar.
Ao “desprendido” corresponde esta possibilidade de anexação que é a
sua propriedade e na qual o afeto se apresenta na experiência analítica como
alguma coisa de problemático que faz com que, por exemplo no vivido de uma
histérica (é daí que parte a análise, é daí que Freud parte quando começa a
articular as verdades analíticas), é que um afeto surge no texto comum, com­
preensível, comunicável do vivido do dia a dia de uma histérica; e que este
afeto que está ali, -que parece aliás estar em concordância com o conjunto do
texto, exceto para um olhar um pouco exigente- este afeto que está ali é a
transformação de alguma outra coisa.
E algo que merece que nos detenhamos nele: algo outro que não é um
outro afeto que estaria, ele, no inconsciente. Isto, Freud o denega absolutamen­
te, não há absolutamente nada de semelhante. É a transformação do fator pura­
mente quantitativo. Não há absolutamente nada que, nesse momento, seja real­
mente no inconsciente esse fator quantitativo sob uma forma transformada, e
toda a questão é de saber como é que no afeto essas transformações são possí­
veis, ou seja por exemplo como é que um afeto que está na profundeza, e con­
cebível no texto inconsciente restituído como sendo tal ou tal, se apresenta sob
uma outra forma quando ele se apresenta no contexto pré-consciente.
O que é que Freud nos diz?
Primeiro texto: «Toda a diferença provém de que no inconsciente as
Vorstellungen são investimentos no fundo de vestígios de recordações, enquanto
que os afetos correspondem a processos de descarga cujas manifestações últi­
mas são percebidas como sensações». Tal é a regra da formação dos afetos.
E assim que, como lhes disse, o afeto remete para o fator quantitativo da
pulsão, com o que ele entende que ele não só é mutável, móvel, mas submetido
à variável que constitui esse fator, e articula-o precisamente ainda dizendo que
o seu destino pode ser triplo: «O afeto fica, subsiste na totalidade ou em parte
tal qual é, ou então sofre uma metamorfose numa quantidade de afetos qualita­
tivamente outros, antes de tudo em angústia, (é o que ele escreve em 1915, e
onde se vê esboçar uma posição que o artigo Inhibition, symptôme, angoisse
articulará na tópica) ou então ele é suprimido, quer dizer que o seu desenvolvi­
mento. fica entravado».
«A diferença, nos diz, entre o que tem a ver com o afeto e o que tem a ver

62
com Vorstellungsreprãsentanz, é que a representação após o recalcamento fica
como formação real no sistema ICS, enquanto que ao afeto inconsciente só
corresponde uma possibilidade anexa que não tinha nenhuma necessidade, es­
creve Freud, de se desenvolver»21.
É um preâmbulo absolutamente inevitável antes de entrar no modo como
eu entendo aqui colocar as questões a propósito da interpretação do desejo do
sonho. Disse-lhes que escolhería para isto um sonho tirado do texto de Freud,
porque afinal é ainda o melhor guia para se estar seguro do que ele quer dizer
quando fala do desejo do sonho. Vamos tomar um sonho que extrairei daquele
artigo que se chama Formulierungen, Formulations à propos des deuxpríncipes
de regulation de la viepsychique22, de 1911, publicado imediatamente antes de
Le cas Schreber. Extraio esse sonho, e' a maneira como Freud fala dele e o trata
neste artigo, porque ele está lá articulado de uma maneira simples, exemplar,
significativa, não ambígua, e para mostrar como Freud entende a manipulação
dessa Vorstellungsreprãsentanz, visto que se trata da formulação do desejo
inconsciente.
O que se retira do conjunto da obra de Freud no referente às relações
dessa Vorstellungsreprãsentanz com o processo primário, não deixa nenhuma
espécie de dúvida. Se o processo primário é capaz, na medida em que ele está
submetido ao primeiro princípio, dito princípio de prazer... Não há nenhuma
outra maneira de conceber a oposição que em Freud é marcada entre o princí­
pio de prazer e o princípio de realidade, a não ser a de nos apercebermos que
isso que nos é dado como o surgimento alucinatório onde o processo primário
(quer dizer o desejo ao nível do processo primário) encontra a sua satisfação,
diz respeito não simplesmente a uma imagem, mas a algo que é um significante.
É aliás coisa surpreendente que ninguém se tenha dado conta disso de outra
forma, quero dizer a partir da clínica. Nunca ninguém se deu conta disso de
outra forma, ao que parece, precisamente porquanto a noção de significante era
algo que não estava elaborado no momento da grande expansão da psiquiatria
clássica, porque enfim na massividade da experiência clínica, sob que formas
se apresentam a nós as formas problemáticas maiores as mais insistentes sob as

2lFreud S.: «Das Unbeviuflte» (1915), GWX, p. 276. «L’inconscient», in Métapsychologie, p.


83 ss.
“Freud S.: G.W. VIII, pp. 230-238. R.I.P. t. 1, Paris, 1984, P.U.F., pp. 135-143.

63
quais se põe para nós a questão da alucinação, senão nas alucinações verbais
ou de estrutura verbal, quer dizer na intrusão, ingerência no campo do real, não
de uma coisa qualquer, não de uma imagem, não de um fantasma, não daquilo
que muitas vezes sustentaria simplesmente um processo alucinatório. Mas se
uma alucinação nos põe problemas que lhe são próprios, é porque se trata de
significantes e não de imagens, nem de coisas, nem de percepções, enfim, de
“falsas percepções do real” como se espressa.
Mas ao nível de Freud isto não levanta qualquer espécie de dúvida, e
precisamente no fim deste artigo, para ilustrar o que ele chama a neurotische
Wãhrung, quer dizer, é um termo a reter: a palavra Wãhrung quer dizer “dura­
ção”, -ela não é muito habitual em alemão, está ligada ao verbo wãhren que é
uma forma durativa do verbo wahren— e esta idéia de “duração”, de “valoriza­
ção”, porque é o uso mais comum, se a palavra Wãhrung se refere à duração, o
uso mais comum que se faz dela, é o “valor”, a “valorização”. Para nos falar da
valorização propriamente neurótica, quer dizer na medida em que o processo
primário faz irrupção nela, Freud toma como exemplo um sonho, e eis esse
sonho.
É o sonho de um sujeito em luto pelo seu pai, que ele assistiu, nos diz
ele, nos longos tormentos do seu fim. Esse sonho apresenta-se assim: O pai
está ainda vivo e lhe fala como antes. Mediante o que nem por isso ele deixou
de vivenciar de modo extremamente doloroso o sentimento que o pai está no
entanto já morto, só que «ele não sabia nada» -refiro-me ao pai. É um sonho
curto, é um sonho, como sempre, que Freud nos traz ao nível da transcrição,
porque o essencial da análise freudiana se funda sempre na narrativa do sonho
enquanto que primeiramente articulada. Esse sonho pois repetiu-se com insis­
tência nos meses que seguiram o falecimento do pai, e como é que Freud vai
abordá-lo?
Está fora de dúvida evidentemente que Freud tenha jamais pensado em
algum momento, que um sonho -nem que seja por esta distinção que ele sem­
pre fez do conteúdo manifesto e do conteúdo latente referindo-se imediata­
mente ao que se poderia chamar, e ao que não se deixa de chamar a cada instan­
te na análise desse termo, que não tem creio eu equivalente, wishful thinking. É
o que eu quase gostaria que tocasse alguma nota equivalente com alarme. Só
isto bastaria para fazer um analista desconfiar, ou mesmo pô-lo em defesa, e
persuadi-lo de que ele esteja engajado em uma via falsa.
Está fora de questão que Freud alguma vez a contrarie, esta wishful, e

64
nos disse que é simplesmente porque ele precisa ver o seu pai e que isto lhe dá
prazer. Porque não é de todo suficiente, pela simples razão que isto não parece
de todo ser uma satisfação, e que tal se passa com elementos e um contexto
cujo caráter doloroso está mesmo suficientemente marcado para nos evitar esta
espécie de passo precipitado, que aliás aqui menciono para lhe marcar a possi­
bilidade ao limite. Não penso afinal de contas que um único psicanalista possa
ir até aí quando se trata de um sonho. Mas é precisamente porque não se pode
ir até aí quando se trata de um sonho, que os psicanalistas já nao'se interessam
mais pelo sonho.
Como é que Freud aborda as coisas? É o seu texto ao nível do qual
ficamos : «Nenhum outro meio, escre.ve neste artigo, completamente no fim,
nenhum outro meio conduz à inteligibilidade do sonho na sua sonoridade de
contra-senso, senão a adjunção «segundo o seu voto», ou «em consequência do
seu voto», depois das palavras «que seu pai no entanto estava morto» e o
corolário, se quiserem, que «ele o desejava» depois do fim da frase (o que dá o
seguinte: e que unicamente ele não sabia, o pai, que fôra esse o voto do seu
filho). O pensamento do sonho entende-se então que lhe seria doloroso lem­
brar-se que teria de desejar a morte ao seu pai, e quão terrível teria sido se ele-o
tivesse suspeitado».
Isto os leva a dar o seu peso à maneira como Freud trata o problema: é
um significante. São coisas que são cláusulas, de que vamos tentar articular no
plano linguístico o que elas são, o exato valor do que aí é dado de modo a
permitir aceder à inteligibilidade do sonho. Elas são dadas como tal, assim
como o fato que a sua colocação, a sua adaptação no texto, libera o sentido do
texto.
Peço-lhes que compreendam o que estou dizendo. Não estou dizendo
que está aí a interpretação -e talvez seja efetivamente uma interpretação, mas
ainda não o digo- suspendo-os no momento em que um certo significante é
designado como produzido pela sua falta. Aquilo de que se trata, o fenômeno
do sonho, qual é? É remetendo-o ao contexto do sonho que acedemos de ime­
diato a algo que Se nos é dado para ser a inteligibilidade do sonho, ou seja que
o sujeito se encontra no caso já conhecido, essa acusação que se faz a si mesmo
a propósito da pessoa amada, e que essa acusação nos leva de volta neste exem­
plo à significação infantil do desejo de morte.
Estamos pois perante um caso típico em que o termo transferência,
Ubertragung, é empregado no sentido em que é empregado primitivamente no

65
início em La science des rêves. Trata-se de retomar algo què é uma situação
original, o desejo de morte original neste caso, em alguma outra coisa, atual,
que é um desejo análogo, homólogo, paralelo, similar de alguma maneira, in-
troduzindo-se para fazer reviver o desejo arcaico de que se trata.
Isto merece naturalmente que nos detenhamos, porque é simplesmente a
partir daí que podemos antes de tudo tentar elaborar o que quer dizer interpre­
tação, porque deixamos de lado a interpretação do wishful. Para ordenar esta
interpretação, só há uma observação a fazer. Se não podemos traduzir wishful
thinking por “pensamento desejoso”, “pensamento desejante”, é por uma razão
muito simples: é que se wishful thinking tem um sentido, (bem entendido que
tem um sentido, mas é utilizado num dos contextos onde esse sentido não é
válido), se querem pôr à prova, cada vez que esse termo é utilizado, a oportuni­
dade, a pertinência do termo wishful thinking, basta-lhes distinguir que wishful
thinking, não é “tomar o seu desejo por realidades” como se diz, (é o sentido do
pensamento quando desliza, quando cede). Portanto a esse termo não se deve
atribuir a significação: “tomar os seus desejos por realidades”, como se diz
geralmente, mas “tomar o seu sonho por uma realidade”; justamente só a esse
título que é completamente inaplicável à interpretação do sonho, a esse tipo de
compreensão do sonho, isto quer simplesmente dizer nesse caso que se teve
esse sonho, em outras palavras que se sonha porque se sonha, e é mesmo por
isto que esta interpretação a esse nível não é nunca aplicável, em nenhum mo­
mento, a um sonho.
Temos pois que recorrer ao procedimento dito de adjunção de
signifícantes, o que supõe a subtração prévia de um significante. Falo do que
ele supõe no texto de Freud, subtração sendo nesse momento exatamente o
sentido do termo do qual ele se serve para designar a operação do recalcamento
na sua forma pura, eu diria no seu efeito unterdrückt.
É então que nos encontramos detidos por algo que, como tal, apresenta­
va para nós uma objeção e um obstáculo. Se não estivéssemos decididos de
antemão a achar tudo bem, quer dizer se não estivéssemos decididos de ante­
mão a “crer-crer” [croire-croire] como diz o Sr. Prévert, devemos apesar de
tudo nos deter nisto: é que a pura e simples restituição desses dois termos nach
seinem Wunsch e da/3 er wunschte, (quer dizer que ele a desejava o filho, esta
morte do pai) que a simples restituição dessas duas cláusulas, do ponto de vista
daquilo que Freud nos designa ele próprio como o fim último da interpretação,
ou seja a restauração do desejo inconsciente, não leva estritamente a nada,

66
porque o que é que se restitui nesse momento? É algo que o sujeito conhece
perfeitamente. Durante a doença extremamente dolorosa, o sujeito desejou efe­
tivamente ao seu pai a morte como solução e como fim dos seus tormentos e da
sua dor, e efetivamente é óbvio que ele não lhe mostrou, ele fez tudo para lhe
dissimular, o desejo, o voto que estava no seu contexto, no seu contexto recen­
te, vivido, perfeitamente acessível. Nem sequer é necessário falar a esse respei­
to de pré-consciente, mas de recordação consciente, perfeitamente acessível ao
texto contínuo da consciência.
Portanto se o sonho subtrai a um texto algo que não está de modo ne­
nhum ocultado à consciência do sujeito, se o subtrai, é se eu posso dizer esse
fenômeno de subtração que toma um-valor positivo. Quero dizer que é esse o
problema, é a relação do recalcamento, visto que sem dúvida nenhuma trata-se
aí de Vorstellungsreprãsentanz, e mesmo completamente típica. Porque se al­
guma coisa merece esse termo, é justamente algo que é, eu diria em si mesma,
uma forma vazia de sentido: «segundo seu voto», por si só isolado não quer
dizer nada, quer dizer «segundo seu voto», aquele de que se falou anteriormen­
te, que ele o desejava... o quê? Isto depende igualmente da frase que está antes,
e é mesmo nesse sentido que desejo levá-los para lhes mostrar o caráter
irredutível daquilo de que se trata em relação a toda a concepção que provém
de uma espécie de elaboração imaginária, ou mesmo de abstração dos dados
objetais de um campo, quando se trata do significante e do que faria a origina­
lidade do campo que, no psiquismo, no vivido, no sujeito humano, é instaurado
por ele, pela ação do significante. E isto que temos, essas formas signifícantes
que em si mesmas não se concebem, não se sustem senão na medida em que
elas são articuladas com outros signifícantes, e é disto que se trata de fato.
Eu bem sei que aí entro em algo que suporia uma articulação muito mais
longa de tudo aquilo de que se trata. Isto está ligado com toda espécie de expe­
riências que foram perseguidas com muita perseverança por uma escola dita
escola de Marburg, dita do pensamento sem imagens, espécie de intuição (nos
trabalhos desta escola que se faziam num pequeno círculo completamente fe­
chado de psicólogos) em que se era levado a pensar sem imagens essas espéci­
es de formas que não são outras senão justamente formas signifícantes sem
contexto e no estado nascente, que a noção de Vorstellung -e muito especial­
mente a propósito dos problemas que nos são aqui postos- merecia que se
recorde que Freud assistiu durante dois anos, como nós temos disso testemu­
nhos sem ambiguidade, ao curso de Brentano, e que a psicologia de Brentano,

67
na medida em que ela dá uma certa concepção da Vorstellung, está aí para nos
dar o peso exato do que podia, mesmo no espírito de Freud e não simplesmente
na minha interpretação, tomar o termo Vorstellung.
O problema é justamente da relação que há entre o recalcamento, se o
recalcamento é dito aplicar-se exatamente e como tal a qualquer coisa que é da
ordem da Vorstellung e, por outro lado esse fato de algo que não é senão a
aparição de um sentido novo por alguma coisa que é diferente para nós, no
ponto em que progredimos, que é diferente do fato do recalcamento, que é o
que podemos chamar, no contexto do pré-consciente, a elisão das duas cláusu­
las.
Esta elisão é a mesma coisa que o recalcamento? E ela exatamente o seu
simétrico, o contrário? Qual é o efeito desta elisão? E evidente que é um efeito
de sentido, quero dizer que é preciso, para nos explicarmos no plano mais
formal, que consideremos esta elisão -digo elisão e não alusão. Não é, para
empregar a linguagem corrente, uma figuração, esse sonho não faz alusão, lon­
ge disso, àquilo que precedeu, ou seja às relações do pai com o filho. Ele intro­
duz algo que soa absurdamente, que tem o seu alcance de significação no plano
manifesto, absolutamente original. Trata-se verdadeiramente de uma figura
verborum, de uma figura de palavras, de termos, para empregar o mesmo ter­
mo que é simétrico ao primeiro, trata-se de uma elisão, e esta elisão produz um
efeito de significado: esta elisão equivale a uma substituição dos termos que
faltam por um branco, um zero, -mas um zero não é o mesmo que nada- e o
efeito de que se trata pode ser qualificado de efeito metafórico.
O sonho é uma metáfora. Nesta metáfora alguma coisa de novo surge
que é um sentido, um significado, um significado sem dúvida nenhuma enig­
mático, mas que não é contudo alguma coisa que nós não tenhamos de conside­
rar como uma das formas, eu diria das mais essenciais, do vivido humano.
Visto que é esta mesma imagem que durante séculos atirou os seres a um tal
desvio do luto da sua existência, nos caminhos mais ou menos ocultos que os
levavam ao necromante, e o que ele fazia surgir no círculo do encantamento
era essa alguma coisa chamada sombra, perante a qual não se passava senão
aquilo que se passa nesse sonho; ou seja este ser que aí está sendo, sem que se
saiba como é que existe, e diante do qual literalmente não se pode dizer nada
-porque ele evidentemente fala. Mas pouco importa! Eu diria que até um certo
ponto o que ele diz é igualmente o que ele não diz, nem mesmo no-lo dizem no
sonho, esta fala não ganha o seu valor senão pelo fato que aquele que chamou

68
o ser amado do reino das sombras, ele, não pode literalmente dizer-lhe nada do
que é a verdade do seu coração.
Esta confrontação, esta cena estruturada, esse cenário, não nos sugere
que é nele mesmo que devemos tentar situar o seu alcance? O que é que é? Terá
isso este valor fundamental, estruturado e estruturante que é aquele que eu
tento precisar-lhes este ano perante vocês sob o nome de fantasma? É um fan­
tasma? Haverá um certo número de caracteres exigíveis para que numa tal
apresentação, num tal cenário, nós reconheçamos a esse cenário os caracteres
do fantasma?
É uma primeira questão que infelizmente não poderemos começar a ar­
ticular senão na próxima vez. Compreendam bem que lhe daremos respostas
absolutamente precisas, e que nos permitirão aproximar aquilo em que efetiva­
mente é um fantasma, e aquilo em que é um fantasma de sonho. Ou seja, articu­
lo-lhes desde já, um fantasma que tem formas muito particulares, quero dizer
que um fantasma de sonho, no sentido em que podemos dar um sentido preciso
a esta palavra “fantasma”, não tem o mesmo alcance que o de um fantasma em
vigília, isto seja ele inconsciente ou não. Eis um primeiro ponto acerca do qual
eu lhes responderei, à questão que se põe aqui, na próxima vez.
O segundo ponto, é a propósito disto e partindo daí, isto é desta articula­
ção da função do fantasma, como o devemos conceber, que reside a incidência
do que se pode chamar, do que Freud chamou os mecanismos de elaboração do
sonho: ou seja essas relações por um lado com o recalcamento suposto antece­
dente, e a relação desse recalcamento com os significantes dos quais lhes mos­
trei até que ponto Freud os isola e articula a incidência da sua ausência em
termos de puras relações significantes.
Esses significantes, quero dizer as relações que há entre os significantes
da narrativa, «ele está morto» por um lado, «ele não o sabia» por outro lado,
«segundo seu voto» em terceiro lugar, tentaremos pô-las, colocá-las, fazê-las
funcionar nas linhas, os trajetos das cadeias ditas respectivamente, cadeia do
sujeito e cadeia significante, tal como elas são aqui postas, repetidas, insisten­
tes perante nós sob a forma do nosso grafo. E verão ao mesmo tempo para que
é que pòde servir isto que não é senão a posição topológica dos elementos e das
relações sem as quais não há nenhum funcionamento possível do discurso, e
como só a noção das estruturas que permitem esse funcionamento do discurso’
pode igualmente permitir dar um sentido a isto que as duas cláusulas em ques­
tão podem ser afirmadas até um certo ponto, ser verdadeiramente o conteúdo,

69
-como diz Freud a realidade, o Real verdrãngt- o-que-é-realmente-recalcado.
Mas isto não é suficiente. Precisamos também distinguir como e porque
é que o sonho aqui faz uso desses elementos que sem dúvida nenhuma são
recalcados, mas precisamente, justamente aí, a um nível onde eles não o são,
quer dizer onde o vivido imediatamente antecedente os pôs em jogo como tais,
como cláusulas e onde, longe de serem recalcados, o sonho os elide. Por quê?
Para produzir um determinado efeito de quê? Eu diria de alguma coisa que
também não é tão simples dado que em suma é para produzir uma significação,
sem dúvida. E veremos que a mesma elisão do mesmo voto pode ter segundo
estruturas diferentes, efeitos completamente diferentes.
Para simplesmente despertar um pouco, estimular a sua curiosidade, que­
ria simplesmente fazer-lhes notar que há talvez uma relação entre a mesma
elisão, a mesma cláusula «segundo seu voto», e o fato que noutros contextos
que não são de sonho mas de psicose por exemplo, isto pode levar ao desco­
nhecimento da morte. O «ele não o sabia», ou «ele não queria saber nada»
articulam-se simplesmente de outro modo com o «ele está morto» ou mesmo,
num contexto ainda diferente, têm talvez interesse em serem distinguidos logo
de início como a Verwerfung se distingue da Verneinung. Isto pode levar àque­
les momentos, àqueles sentimentos ditos de invasão, ou de irrupção, ou a esses
momentos fecundos da psicose em que o sujeito pensa que tem à sua frente
efetivamente alguma coisa de muito mais próximo ainda da imagem do sonho
que aquilo que poderiamos esperar, ou seja que ele tem à sua frente alguém que
está morto, que ele vive com um morto, e simplesmente que ele vive com um
morto que não sabe que está morto. E talvez, digamos mesmo até um certo
ponto, que na vida completamente normal, aquela em que vivemos todos os
dias, acontece-nos talvez mais vezes do que acreditamos ter na nossa presença
alguém que, com todas as aparências de um comportamento socialmente
satisfatório, é alguém que ao mesmo tempo deseja por exemplo do ponto de
vista do interesse, do ponto de vista do que nos permite estar de acordo com um
ser humano, é definitivamente (nós conhecemos mais de um desses exemplos,
a partir do momento que eu lhes assinalo, procurem nas suas relações...) al­
guém que está definitivamente morto, e morto desde há muito tempo, morto e
mumificado, que não espera senão o pequeno golpe de báscula final, ou algo
semelhante, para se reduzir a esta espécie de pó que deve conduzi-lo ao seu
fim.
Não é também verdade que em presença dessa alguma coisa que final­

70
mente está talvez muito mais difusamente presente do que se crê nas relações
de sujeito a sujeito, ou seja que também tem este aspecto de semi-morto, e o
que há de semi-morto em toda espécie de ser vivo não deixa também de nos
permitir ter a consciência completamente tranquila, e que uma grande parte do
nosso comportamento com os nossos semelhantes -e talvez algo que devemos
ter em conta quando nos encarregamos de ouvir os discursos, a confidência, o
discurso livre de um sujeito numa experiência de psicanálise- introduz
porventura em nós uma reação que é muito mais importante de medir, sempre
presente, incidente, essencial que em nós corresponde a esta espécie de precau­
ção que temos de tomar para não fazer notar ao semi-morto que aí onde ele
está, onde ele nos está falando, ele é meio a presa da morte; e isto também
porque para nós mesmos sobre esse assunto, uma tal audácia da intervenção
não seria sem comportar para nós algum contra-golpe que é muito precisamen­
te aquilo contra o que nós mais nos defendemos, ou seja o que em nós há de
mais fictício, de mais repetido, ou seja também a semi-morte.
Em suma, como vêem, as questões são mais multiplicadas do que fecha­
das no ponto a que chegamos no fim deste discurso hoje. E sem nenhuma
dúvida se esse sonho lhes deve trazer alguma coisa dizendo respeito à questão
das relações do sujeito com o desejo, é que ele tem um valor do qual não nos
devemos admirar dado os seus protagonistas, ou seja um pai, um filho, a morte
presente e verão, a relação ao desejo. Não é pois por acaso que nós escolhemos
este exemplo e que teremos ainda de explorá-lo na próxima vez.

71
Lição 4
3 de dezembro de 1958

Artigo de Glover no livro de Brierley, I.J.P.XX -Julho-Outubro 1939


(isto é n° 3 do XX)- pp. 299 a 308 [referências ao quadro].
Deixei-os na última vez num sonho, esse sonho extremamente simples -
pelo menos aparentemente. Disse-lhes que nós nos exercitaríamos sobre ele ou
acerca dele, para articular o sentido próprio que damos a esse termo aqui que é
o desejo do sonho, e o sentido do que é uma interpretação. Vamos retomar isto.
Penso que no plano teórico ele também tem seu preço e seu valor.
Eu mergulho nesses últimos tempos numa releitura depois de tantas ou­
tras, desta Science des rêves da qual lhes disse que era ela que íamos primeiro
questionar este ano a respeito do desejo e de sua interpretação, e devo dizer que
até certo ponto, me deixei levar a fazer essa crítica que seja de um livro, e
sabemos bem, do qual se conhece muito mal os desvios na comunidade analí­
tica. Eu diria que esta crítica, como aliás toda a crítica, tem uma espécie de
outra face que é uma face de desculpa, porque para dizer a verdade não é sufi­
ciente ainda tê-la percorrido mais de cem vezes para retê-la, e creio que há aí
um fenômeno -isto me impressionou muito especialmente nestes dias- que
conhecemos bem. No fundo cada um sabe o quanto tudo o que diz respeito ao
inconsciente se esquece, quero dizer por exemplo que é muito sensível, e de
uma maneira absolutamente significativa, e verdadeira e absolutamente
inexplicada fora da perspectiva freudiana, como se esquece as histórias engra­
çadas, as boas histórias, o que se chama os chistes. Vocês estão numa reunião
de amigos e alguém faz um chiste, que nem é uma história engraçada, faz um

73
trocadilho no princípio da reunião ou no fim do almoço, e então quando se
passou para o café pensam: «O que pode ter dito de tão engraçado há pouco
esta pessoa que se encontra à minha direita?» e vocês não conseguem encon­
trar. É quase uma assinatura que aquilo que é justamente chiste escapa ao in­
consciente.
Quando se lê ou relê La Science des rêves, tem-se a impressão de um
livro, eu diría mágico, se a palavra mágico não se prestasse no nosso vocabulá­
rio, infelizmente, a tanta ambiguidade, ou mesmo erros. Deambula-se verda­
deiramente em La Science des rêves como no livro do inconsciente, e é por isto
que é tão difícil -esta coisa está tão articulada- mantê-la apesar de tudo reuni­
da. Creio que se há aí um fenômeno que merece ser a tal ponto e tão especial­
mente assinalado, é que se acrescenta a isto a deformação verdadeiramente
quase insensata da tradução francesa da qual verdadeiramente, quanto mais
avanço, mais acho que apesar de tudo não se pode verdadeiramente desculpar
as grosseiras inexatidões. Há entre vocês quem me peça explicações e eu me
reporto rapidamente aos textos: há na quarta parte, L 'elaboration des rêves,
um capítulo intitulado Égardspris à la mise en scene cuja tradução francesa da
primeira página é mais do que um tecido de inexatidões e não tem nenhuma
relação com o texto alemão23. Isto confunde, isto desconcerta. Não insisto.
Evidentemente tudo isto não toma especialmente fácil o acesso aos leitores
franceses de La Science des rêves.
Para voltar ao nosso sonho da última vez que começamos a decifrar de
uma maneira que não lhes pareceu talvez muito fácil, mas no entanto inteligí­
vel (pelo menos o espero!) para verem bem do que se trata, para articulá-lo em
função de nosso grafo, vamos começar por algumas observações.
Trata-se pois de saber se um sonho nos interessa, no sentido em que ele
interessa a Freud, no sentido de realização de desejo. Aqui o desejo e sua inter­
pretação é a princípio o desejo na sua função no sonho, na medida em que o
sonho é sua realização. Como vamos poder articulá-lo?
Vou primeiramente apresentar um outro sonho, um sonho primeiro que
lhes dei e do qual verão o valor exemplar. Ele não é verdadeiramente muito
conhecido, é preciso ir procurá-lo num canto. Há aí um sonho do qual nenhum

21 Freud S., L'Interprélalion des rêves (trad.I.Meyesson), Paris, 1926, P.U.F., p. 291 ss.

74
de vocês, creio, ignora a existência, está no início do capítulo III cujo título é
Le rêve est w«e réalisation de désir2i, e trata-se dos sonhos dé crianças na me­
dida em que eles nos são dados como o que eu chamaria um primeiro estado do
desejo no sonho.
O sonho do qual se trata está aí desde a primeira edição da Traumdeutung,
e nos é dado ao início de sua denominação face aos seus leitores de então, nos
diz Freud, como a questão do sonho. E preciso ver também esse lado de expo­
sição, de desenvolvimento que há na Traumdeutung, o que nos explica muitas
coisas, em particular que as coisas podem ser trazidas primeiramente de uma
forma de certa maneira maciça, que comporta uma certa aproximação. Quando
não se observa muito atentamente essa passagem, limitamo-nos aquilo que ele
nos diz do caráter de certa maneira direto, sem deformação, sem Entstellung,
do sonho; isto designando simplesmente a forma geral que faz com que o so­
nho nos apareça sob um aspecto que está profundamente modificado quanto ao
seu conteúdo profundo, seu conteúdo pensado, enquanto que na criança isso
seria muito simples: o desejo iria sem rodeios, da maneira mais direta ao que
ele deseja, e Freud nos dá aí vários exemplos, e o primeiro vale naturalmente
que se o retenha porque ele dá verdadeiramente a fórmula.
«Minha filha mais nova (é Anna Freud) que tinha nesse momento
dezenove meses, teve vômitos numa certa manhã e foi posta de dieta, e na noite
que se seguiu a esse dia de fome ouviu-se ela chamar durante seu sonho: «Anna
Freud, Er(d)beer (que é a maneira infantil de pronunciar morangos),
Hochbeer (que quer dizer igualmente morangos), Eier(s)peis (que
corresponde mais ou menos à palavra flan) e por íim Papp (mingau)!»25. E
Freud nos diz: «Ela servia-se então de seu nome para exprimir sua tomada de
posse e a enumeração de todos esses pratos prestigiosos, ou que tal lhe pareces­
sem, um alimento digno de desejo». Que os morangos aparecessem (aí sob a
forma de duas variedades, Erdbeer e Hochbeer, não consegui chegar a resituar
Hochbeer, mas o comentário de Freud assinala duas variedades) é uma de­
monstração, uma manifestação contra a polícia sanitária da casa, e tem seu
fundamento na circunstância muito bem observada por ela de que a ama tinha
atribuído sua indisposição da véspera a um pequeno abuso na ingestão de mo-

“ Freud S., op. cit., p. 113.


“Freud S., op. cit. p.120.

75
rangos, e desse conselho inoportuno, incômodo, desta observação, ela tinha
imediatamente se vingado no sonho».
Deixo de lado o sonho do sobrinho Hermann que coloca outros proble­
mas. Mas em contrapartida assinalo de bom grado uma pequena nota que não
está na primeira edição pela razão dela ter sido elaborada ao longo de discus­
sões (enfim de ecos resultantes da escola), e para a qual Ferenczi contribuiu
trazendo em auxílio o provérbio que diz isto: «O porco sonha com bolotas, o
ganso sonha com milho», e também no texto Freud mencionou nesse momento
um provérbio que, eu creio, ele não retira tanto do contexto alemão dada a
forma que o milho aí toma: «Com que sonha o ganso? Com milho»; e enfim o
provérbio judeu: «Com que sonha a galinha? Ela sonha com painço»26.
Vamos deter-nos sobre isso, vamos mesmo começar por fazer um pe­
queno parêntesis, porque afinal de contas é a esse nível que é preciso tomar o
problema que ontem à noite eu evocava a propósito da comunicação de Granoff27
sobre o problema essencial, a saber da diferença da diretriz do prazer e da
diretriz do desejo.
Voltemos um pouco à diretriz do prazer, e por uma vez, tão rapidamente
quanto possível, ponhamos os pingos nos is. Isto tem a relação evidentemente
também a mais estreita próxima com as questões que me são postas ou que se
põem a propósito da função que eu dou -no que Freud chama o processo pri­
mário- à Yorstellung para ser breve, isto é só um desvio. É preciso conceber
bem isto: é que de certa maneira ao entrar nesse problema da função da
Vorstellung no princípio de prazer, Freud corta o assunto. Em suma poderia­
mos dizer que lhe é necessário um elemento para reconstruir o que ele perce­
beu na sua intuição, enfim é necessário dizer que é próprio da intuição genial
introduzir no pensamento algo que até então não havia sido absolutamente
percebido, esta distinção do processo primário como sendo algo de separado
do processo secundário. Nós não nos apercebemos de nenhum modo do que há
aí de original. Poderiamos sempre pensar como isso foi algo de alguma manei­
ra comparável pela idéia que seja no instante anterior. No entanto na sua sínte­
se, na sua composição isso não tem absolutamente nada a ver: o processo pri­
mário significa a presença do desejo, mas não de qualquer um, do desejo aí
onde ele se apresenta como o mais fragmentado, e ò elemento perceptível do

KOp. cit.,p. 122.


nGRANOFF W., «Ferenczi, faux problème ou vrai malentendu», reunião cientifica da S.F.P.
de 2-XII-1958, in Psychanalyse n° 7, pp. 255-282.

76
qual se trata, é com isto que Freud vai se explicar, vai nos fazer compreender
do que se trata.
Em suma lembrem-se dos primeiros esquemas que Freud nos dá relati­
vamente ao que se passa quando só o processo primário está em jogo. O pro­
cesso primário quando ele é o único em jogo desemboca na alucinação, e esta
alucinação é algo que se produz através de um processo de regressão, de re­
gressão que ele chama muito precisamente regressão tópica. Freud fez vários
esquemas do que motiva, do que estrutura o processo primário, mas todos eles
têm em comum suporem como seu fundo algo que é para ele o percurso do arco
reflexo, via aferente e aferência de algo que se chama sensação; via eferente e
eferência de algo que se chama motilidade.
Nesta via, de uma maneira que eu diria horrivelmente discutível, a per­
cepção é colocada como algo que se acumula, que se acumula em algum lugar
do lado da parte sensorial, do afluxo de excitações, do estímulo do meio exte­
rior, e sendo colocadas nesta origem do que se passa no ato, toda a espécie de
outras coisas são supostas serem posteriores -e nomeadamente é aí que ele
inserirá toda a sequência de camadas superpostas que vão a partir do inconsci­
ente passando pelo pré-consciente e a seguir- para chegar aqui a algo que passa
ou que não passa em direção à motilidade.
Vejamos bem do que se trata cada vez que ele nos fala do que se passa
no processo primário. Passa-se um movimento regressivo. É sempre quando a
saída em direção à motilidade da excitação está por uma razão qualquer barrada,
que se produz algo que é de ordem regressiva e que aqui aparece uma
(''orstellung, algo que dá à excitação em questão uma satisfação alucinatória
propriamente falando.
Eis a novidade que é introduzida por Freud. Isto literalmente vale sobre­
tudo se se pensa na ordem, na qualidade da articulação dos esquemas de que se
trata, que são esquemas que são dados em suma pelo seu valor funcional, quero
dizer para estabelecer -Freud o diz expressamente- uma sequência, uma su­
cessão que ele sublinha que é ainda mais importante aliás considerá-la como
sequência temporal do que como sequência espacial. Isto vale, eu diria, por sua
inserção num circuito, e se digo que em suma o que Freud nos descreve como
sendo o resultado do processo primário, é que de alguma maneira, nesse circui­
to, algo se acende. Eu não farei aí uma metáfora, eu não farei senão dizer em
substância o que Freud extrai da explicação nesse caso, da tradução daquilo de
que se trata. Isto é, mostrar-lhes sobre o circuito com fim homeostático, sempre

77
T

hn|ilii ihmiriili-, n noçilo <hi irllcxíincti ia c distinguir esta série de relés, eque o j
hihi de que ncunlcçii alguma coisa ao nível de urn desses reles, alguma coisa
que nn ;;i adquire um certo valor de efeito terminal em certas condições, é algo . ’
que é absolutamente idêntico ao que vemos se produzir numa máquina qual- j
quer, sob a forma de uma série de lâmpadas se posso dizer, em que o fato de •
que uma dentre elas ao entrar em atividade indique precisamente, não tanto
aquilo que aparece, ou seja um fenômeno luminoso, mas uma certa tensão,
alguma coisa que se produz aliás em função de uma resistência e indica o esta­
do num dado ponto do conjunto do circuito. E então, digamos a palavra, isto
não responde de maneira alguma ao princípio da necessidade, pois bem enten­
dido nenhuma necessidade é satisfeita por uma satisfação alucinatória.
A necessidade exige para ser satisfeita a intervenção do processo secun­
dário, e mesmo dos processos secundários pois há uma grande variedade, cujos
processos, eles, não se contentam bem entendido, como o nome o indica, com
a realidade, eles são submetidos ao princípio de realidade. Se há processos
secundários que se produzem, eles não se produzem senão porque houve pro­
cessos primários. Somente não é menos evidente que este truismo (lapalissade*):
que aqui esta partição toma impensável o instinto sob qualquer forma que se o
conceba. Ele é volatilizado porque, vejam bem em que direção vão todas as
investigações sobre o instinto e mais especialmente as investigações modernas
as mais elaboradas, as mais inteligentes, o que elas visam? Dar-nos conta de
como uma estrutura que não é puramente pré-formada -já não estamos aí, não
vemos o instinto como o Sr. Fabre, é uma estrutura que engendra, que sustenta
sua própria cadeia- como essas estruturas desenham no real, caminhos em di- °
reção a objetos ainda não experimentados.
Está aí o problema do instinto e lhes é explicado que há um estádio
apetitivo, um estádio de conduta, de busca. O animal, numa dessas fases, põe-
se num determinado estado cuja motilidade se traduz por uma atividade em
toda espécie de direções. E no segundo estádio, na segunda etapa, é um estádio
de desencadeamento especializado, mas mesmo se esse desencadeamento es­
pecializado vai dar no fim em uma conduta que os engana, quer dizer se vocês
querem na captura, pelo fato que ele se apodera de uns trapos coloridos, nem
por isso deixa de ser verdade que esses trapos, eles foram detectados no real.
O que eu quero lhes indicar aqui, é que uma conduta alucinada se distin-

* N. d. T.: De La Palice, herói de uma canção cheia de verdades evidentes.

78
gue da maneira a mais radical de uma conduta de auto-regulação do investi­
mento regressivo se assim se pode dizer, de algo que se vai traduzir pelo acen­
der de uma lâmpada nos circuitos condutores. Isto pode a rigor iluminar um
objeto já experimentado,-se por acaso este objeto já estiver aí, e não indica de
modo algum o caminho, e ainda menos evidentemente se o mostra, mesmo
quando ele não está aí- o que se produz com efeito no fenômeno alucinatório;
porque quando muito ele poderá inaugurar a partir daí o mecanismo da busca,
e é efetivamente o que se passa. Freud o articula igualmente a partir do proces­
so secundário, o qual em suma desempenha o papel do comportamento instintual
mas, por outro lado, se distingue absolutamente dele, dado que esse processo
secundário, devido à existência do processo primário, vai ser (Freud o articula
-eu não o subscrevo inteiramente, repito o sentido daquilo que Freud articula)
um comportamento de pôr à prova da realidade esta Erfahrung primeiramente
ordenada como efeito da lâmpada sobre o circuito. Isto vai ser uma conduta de
juízo, a palavra é proferida quando Freud explica as coisas a esse nível.
Finalmente segundo Freud, a realidade humana se constrói sobre um
fundo de alucinação prévia, o qual é o universo do prazer no seu ilusório, na
sua essência, e todo esse processo é perfeitamente admitido, eu não digo traí­
do, nem isso, e perfeitamente articulado nos termos dos quais Freud se serve
sem cessar a cada vez que tem de explicar a sucessão das marcas nas quais se
decompõe o termo, e na Traumdeutung ao nível em que ele fala do processo do
aparelho psíquico, ele mostra esta sucessão de camadas onde vêm se imprimir,
e nem sequer é imprimir-se, inscrever-se -cada vez que fala nesse texto e em
todos os outros, são termos como niederschreiben- e que, registrados na su­
cessão das camadas, aí serão organizados. Ele os articula diferentemente se­
gundo os diferentes momentos do seu pensamento. Numa primeira camada por
exemplo, será por relações de simultaneidade; noutras, empilhadas umas sobre
as outras; noutras camadas, elas serão ordenadas. Essas impressões, através de
outras relações, separam o esquema de uma sucessão de inscrições, de
Niederschríften que se sobrepõem umas às outras numa palavra que não se
pode traduzir. [E] através de uma espécie de espaço tipográfico que devem ser
concebidas todas as coisas que se passam originalmente antes da chegada a
uma outra forma de articulação que é a da pré-consciência, ou seja muito pre­
cisamente no inconsciente.
Esta verdadeira topologia de signifícantes, porque não se pode fugir a
isso (desde que se siga bem a articulação de Freud, é disto que se trata) e na

79
carta 52 a Fliess, vê-se que ele é necessariamente levado a supor, na origem,
uma espécie de ideal, que não pode ser tomada como uma simples
Wahrnehmung, tomada de verdadeiro. Se a traduzirmos literalmente, esta
topologia dos significantes chega-se ao begreifen, é um termo que ele emprega
sem cessar, ao apreender da realidade, ele não chega lá de modo algum pela via
da seleção eliminatória, seletiva, do que quer que seja que se pareça com o que
foi admitido em toda a teoria do instinto como sendo o primeiro comportamen­
to aproximativo que dirige o organismo nas vias do êxito do comportamento
instintual.
Não é disto que se trata, mas de uma espécie de verdadeira crítica, de
crítica recorrente, de crítica desses significantes evocados no processo primá­
rio; a qual bem entendido, como toda crítica, não elimina o anterior a que se
refere mas o complica. Complica-o conotando-o com quê? Com índices da
realidade que são eles próprios da ordem significante. Não há absolutamente
nenhum meio de escapar a esta acentuação daquilo que eu articulo como sendo
o que Freud concebe e nos apresenta como o processo primário. Por pouco que
se refiram a um dos textos quaisquer que foram escritos por Freud, vocês verão
que nas diferentes etapas de sua doutrina ele articulou, repetiu cada vez que
teve de abordar esse problema, que se trate da Traumdeutung ou do que há na
introdução da Science des Rêves, e em seguida do que ele retomou mais tarde
quando trouxe o segundo modo de exposição de sua tópica, quer dizer a partir
dos artigos agrupados em tomo de La Psychologic du moi e de Au-delà du
príncipe de plaisir.
Permitam-me por um instante imaginar jogando com as etimologias, o
que quer dizer esta “tomada de verdadeiro” que conduziría uma espécie de
sujeito ideal ao real, às alternativas por onde o sujeito induz o real nas suas
proposições, Vorstellung(en), aqui eu o decomponho articulando assim: essas
PorstellungÇen) têm uma organização significante. Se quiséssemos falar disso
noutros termos que os termos freudianos, nos termos pavlovianos, diriamos
que elas fazem parte desde a origem, não de um primeiro sistema de significa­
ções, não de algo ligado à tendência da necessidade, mas de um segundo siste­
ma de significações. Elas se parecem com alguma coisa que é o acender da
lâmpada na máquina de moedas quando a bola caiu no buraco certo. E o sinal
de que a bola caiu mesmo no buraco certo, Freud também o articula: o buraco
certo, isso quer dizer o mesmo buraco no qual a bola caiu anteriormente. O
processo primário não visa a procura de um objeto novo, mas de um objeto a
reencontrar, e isto pela via de uma Yorstellung, reevocada porque era a
Vorstellung correspondente a uma primeira passagem, enquanto que o acender
desta lâmpada dá direito a um prêmio; e isto não é duvidoso, e é isto o princípio
do prazer. Mas para que este prêmio seja concretizado, é preciso que haja'uma
certa reserva de moedas na máquina, e a reserva de moedas na máquina neste
caso, ela está destinada a esse segundo sistema de processos que se chama os
processos secundários. Em outras palavras, o acender da lâmpada não é uma
satisfação senão no interior da convenção total da máquina na medida em que
esta máquina é a do jogador a partir do momento em que ele joga.
A partir daí, retomemos nosso sonho de Anna. Esse sonho de Anna nos
é dado como o sonho da nudez do desejo. Parece-me que é completamente
impossível, na revelação desta nudez, eludir, elidir o próprio mecanismo em
que esta nudez se revela, em outras palavras, que o modo desta revelação não
pode ser separado desta mesma nudez.
Tenho a idéia de que esse sonho por assim dizer nu, nós não o conhece­
mos na ocasião senão por ouvir dizer -e quando digo por ouvir dizer isso não
quer de modo algum dizer o que alguns me fizeram dizer, que em suma se
tratasse aí de uma observação acerca do fato que nunca saberiamos que alguém
sonha a não ser porque ele nos conta, e que em suma tudo o que se refere ao
sonho seria de colocar na inclusão, no parêntesis pelo fato de contá-lo.
Não é certamente indiferente que Freud dê tanta importância à
Niederschrift que constitui esse resíduo do sonho, mas está bem claro que esta
Niederschrift se refere a uma experiência da qual o sujeito nos dá conta. E
importante ver que Freud está muito longe de reter mesmo por um só instante
as objeções no entanto evidentes que surgem do fato de que outra coisa é uma
narrativa falada, outra coisa é uma experiência vivida. E é a partir daí que
podemos inserir a observação de que o fato que ele as separe com tal vigor, e
mesmo que conceda..., que faça partir daí expressamente toda sua análise -até
o ponto de lhe aconselhar como uma técnica da Niederschrift, do que está aí
“deitado por escrito” do sonho- mostra-nos justamente o que ele pensa no
fundo, desta experiência vivida, ou seja que ela tem toda a vantagem em ser
abordada assim dado que ele não tentou evidentemente articulá-la, ela própria
já está estruturada numa série de Niederschriften, numa espécie de escrita em
palimpsesto se pode-se dizer.
Se pudéssemos imaginar um palimpsesto em que os diversos textos
superpostos teriam uma certa relação, tratar-se-ía ainda de se saber qual, uns

81
com os outros. Mas se procurassem qual, veriam que essa seria uma relação
muito mais a procurar na forma das letras do que no sentido do texto. Não
estou dizendo isso.
Digo que, no caso, o que sabemos do sonho é propriamente aquilo que
nós sabemos atualmente, no momento em que ele se passa como um sonho
articulado; dito de outro modo que o grau de certeza que temos relativamente a
esse sonho é algo que está ligado ao fato de que estaríamos igualmente muito
mais seguros daquilo que sonham os porcos e os gansos se eles próprios nô-lo
contassem.
Mas nesse exemplo original temos mais! Quer dizer que o sonho surpre­
endido por Freud tem este valor exemplar de ser articulado em voz alta durante
o sono, o que não deixa nenhuma espécie de ambiguidade acerca da presença
do significante no seu texto atual.
Não há aí nenhuma dúvida possível a ser lançada acerca de um fenôme­
no dizendo respeito ao caráter, se se pode dizer, sobre-adicionado de informa­
ções sobre o sonho que poderia aí tomar a fala. Sabemos que Anna Freud so­
nha porque ela articula: «Anna Freud, Er(d)beer, Hochbeer, Eier(s)peis,
Papp!» As imagens do sonho, das quais não sabemos nada no momento, en­
contram então aqui um afixo se assim posso me exprimir com a ajuda de um
termo emprestado à teoria dos números complexos, um afixo simbólico nessas
palavras em que vemos de certa maneira o significante apresentar-se em estado
flocoso, quer dizer numa série de nominações, e esta nominação constitui uma
seqüência em que a escolha não é indiferente. Porque, como Freud nô-lo diz,
essa escolha é precisamente de tudo o que lhe foi interdito, inter-dito, daquilo a
cuja demanda lhe foi dito que «Não! não devia comer isso», e esse denomina­
dor comum introduz uma unidade na sua diversidade, sem que se possa igual­
mente deixar de observar que inversamente esta diversidade reforça esta uni­
dade, e até a designa. É em suma esta unidade que esta série opõe absolutamen­
te à eletividade da satisfação da necessidade, tal como o exemplo do desejo
imputado tanto ao porco como ao ganso. O desejo aliás, basta-lhes refletir no
efeito que isto faria se no lugar, no provérbio, de dizer que o porco sonha com
kukuruz (com milho), nós nos puséssemos a fazer uma enumeração de tudo
com que fosse suposto sonhar o porco, vocês veriam que isso faz um efeito
completamente diferente. E mesmo se quiséssemos pretender que só uma edu­
cação insuficiente da glote impede o porco e o ganso de nos fazer saber tanto,
e mesmo se pudéssemos dizer que poderiamos conseguir suprir isso ao
apercebermo-nos num caso como no outro, c ao cnconlim o cqinvulciilr,
querem, desta articulação em alguns frêmitos detectados nas suas mandibulus,
nem por isso deixaria de ser pouco provável que acontecesse isto, ou seja que
estes animais se nomeassem, como o faz Anna Freud na sequência. E admita­
mos mesmo que o porco se chame Toto e o ganso Bel Azor, mesmo se algo se
produzisse desta ordem, verificar-se-ia que eles se nomeariam numa lingua­
gem em que desta vez seria bem evidente aliás (nem mais nem menos evidente
que no homem, mas no homem isso se vê menos) que essa linguagem não tem
precisamente nada a ver com a satisfação de sua necessidade dado que esse
nome, eles o teriam no pátio, quer dizer em um contexto das necessidades do
homem e não deles.
Dito de outro modo, nós desejamos que nos detenhamos no fato, e o
dizemos agora mesmo, que Io) Anna Freud articula que há o mecanismo da
motilidade, e diremos que com efeito ele não está ausente nesse sonho, é por
isso que nós o conhecemos. Mas esse sonho revela, pela estruturação significante
de sua sequência que 2o) nós queremos que nesta sequência nos detenhamos no
fato que no início da sequência há literalmente uma mensagem, como podem
vê-lo ilustrado se souberem como é quê se comunica no interior de uma dessas
máquinas complicadas que são as da era moderna, por exemplo da frente à
cauda de um avião. Quando se telefona de uma cabina para a outra começa-se
a anunciar o quê? Anuncia-se, anuncia-se aquele que fala. Anna Freud aos
dezenove meses, durante o seu sonho-anúncio, ela diz: «Anna Freud», e ela
faz sua série. Diria quase que só se espera mais uma única coisa, depois de tê-
la ouvido articular seu sonho, é que ela diga no fim: «Acabou!»
Estamos então introduzidos àquilo que eu chamo a mais clara topologia
do recalcamento, a mais formal igualmente e a mais articulada, da qual Freud
nos sublinha que esta topologia não poderia em nenhum caso, se ela é aquela
de um outro lugar (como ele ficou espantado na leitura de Fechner, ao ponto
que se sente que isto foi para ele uma espécie de relâmpago, de iluminação, de
revelação), mas ao mesmo tempo, no momento mesmo em que ele nos fala, em
pelo menos duas vezes, *quando alguém* na Traumdeutung, do [andere
Schauplatz], ele sublinha sempre que não se trata de modo nenhum de um
outro lugar neurológico. Nós dizemos que este “outro lugar” deve ser procura­
do na estrutura do próprio significante.
Então o que eu tento lhes mostrar aqui, é a estrutura do próprio
significante, desde que o sujeito se engaja nele, quero dizer com as hipóteses

83
mínimas que exige o fato de que um sujeito entre no seu jogo -digo desde que
o significante estando dado e o sujeito sendo definido como o que vai aí entrar
no significante, e nada de outro, as coisas necessariamente se ordenam. E a
partir desta necessidade, todas as espécies de consequências vão resultar disso,
que há uma topologia com a qual é preciso e suficiente que nós a concebamos
como constituída por duas cadeias superpostas, e é por aí que avançamos.
Aqui, ao nível do sonho de Anna Freud, como as coisas se apresentam?
É certo que elas se apresentam de uma maneira problemática, ambígua, que
permite a Freud -que legitima até um certo ponto distinguir uma diferença
entre o sonho da criança e o sonho do adulto.
Onde se situa a cadeia das nomeações que constitui o sonho de Anna
Freud? Na cadeia superior ou na cadeia inferior? É uma questão sobre a qual
puderam observar que a parte superior do grafo representa esta cadeia sob for­
ma pontilhada, pondo o acento no elemento de descontinuidade do significante,
enquanto a cadeia inferior do grafo, nós a representamos contínua. E por outro
lado eu lhes havia dito que evidentemente em todos os processos estão interes­
sadas as duas cadeias.
Ao nível em que colocamos a questão, o que quer dizer a cadeia inferior?
A cadeia inferior ao nível da demanda, e na medida em que lhes disse que o
sujeito enquanto falante tomava aí esta solidez emprestada à solidariedade
sincrònica do significante, é bem evidente que é algo que participa da unidade
da frase, desse algo que deu o que falar de forma a fazer correr tanta tinta, da
função da holofrase, da frase enquanto “todo”. E que a holofrase existe, não há
dúvida, a holofrase tem um nome, é a interjeição.
Se quiserem, para ilustrar ao nível da demanda o que representa a função
da cadeia inferior, é “pão! ”, ou “socorro! ” -falo no discurso universal, não falo
do discurso da criança neste momento. Esta forma de frase existe, eu diria
mesmo que em certos casos ela toma um valor absolutamente insistente e exi­
gente. E disso que se trata, é a articulação da frase, é o sujeito na medida em
que essa necessidade, que sem dúvida deve passar pelos desfiladeiros do
significante enquanto necessidade, é expressa de uma maneira deformada mas
ao menos monolítica, ao ponto que o monólito de que se trata é o próprio
sujeito nesse nível que o constitui.
O que se passa na outra linha, é completamente outra coisa. O que se
pode dizer disso não é fácil de dizer, mas por uma boa razão, é que é justamente
isso que está na base daquilo que se passa na primeira linha, aquela de baixo.

84
Mas seguramente o que nós vemos, é que mesmo numa coisa que nos é dada de
tão primitiva quanto esse sonho de criança, o sonho de Anna Freud, algo nos
indica que aqui, o sujeito não é simplesmente constituído na frase e pela frase,
no sentido de quando o indivíduo, ou a multidão, ou os amotinados gritam:
“pão!”, sabe-se muito bem que aí todo o peso da mensagem assenta no emis­
sor, quero dizer que é ele o elemento dominante, e sabe-se mesmo que esse
grito por si só é suficiente justamente nas formas que acabo de evocar, para
constituir, esse emissor, ainda qtie ele tenha cem bocas, mil bocas, como um
sujeito efetivamente único. Ele não tem necessidade de se anunciar, a frase o
anuncia suficientemente.
Então nos encontramos apesar de tudo diante disto, que o sujeito huma­
no, quando opera com a linguagem, se conta, e é mesmo de tal modo sua posi­
ção primitiva que não sei se vocês lembram de um certo teste do Sr. Binet, ou
seja as dificuldades que o sujeito tem para franquear esta etapa que eu,.quanto
a mim, acho bem mais sugestiva que esta ou aquela etapa indicada pelo Sr.
Piaget, e esta etapa (não lhes direi porque não quero entrar em detalhes) apare­
ce como distintiva e consiste em que o sujeito se aperceba que há alguma coisa
que claudica na frase: «Tenho três irmãos, Paulo, Emesto e eu [moi]». Até uma
etapa bastante avançada, isto lhe parece perfeitamente natural e pela melhor
razão, porque efetivamente está tudo aí quanto à implicação do sujeito humano
no ato da fala: é que ele nesse caso se conta, se nomeia, e por conseguinte é
essa a expressão, se posso dizer, a mais natural, a mais coordenada. Simples­
mente a criança não encontrou a boa fórmula que seria evidentemente essa:
«Somos três irmãos, Paulo, Emesto e eu [moi]», mas a menos que estivésse­
mos muito longe de ter de lhe repreender por estabelecer as ambiguidades da
função do ser e do ter. E claro que é preciso que um passo seja franqueado para
que em suma aquilo do qual se trata, ou seja que a distinção do Eu [Je] enquan­
to sujeito do enunciado e do Eu [Je] enquanto sujeito da enunciação, seja feita,
porque é disto que se trata.
O que se articula ao nível da primeira linha quando damos o passo se­
guinte, é o processo do enunciado. No nosso sonho do outro dia, «ele está
morto». Mas quando anunciam algo de semelhante em que, lhes fiz notar de
passagem, toda a novidade da dimensão que introduz a fala no mundo já está
implicada, porque para poder dizer «ele está morto», só pode se dizer, dito de
outra forma, em toda outra perspectiva que aquela do dizer, «ele está morto»
isso não quer dizer absolutamente nada; «ele está morto», é: “ele não existe

85
mais", portanto ele não pode dizê-lo, ele já não está aí. Para dizer «ele está
morto», é preciso que seja já um ser suportado pela fala. Mas disto não pedi­
mos a ninguém que se aperceba, bem entendido, mas simplesmente ao contrá­
rio disto, é que o ato da enunciação de: «ele está morto» exige comumente no
próprio discurso toda a espécie de referências que se distinguem das referênci­
as tomadas a partir do enunciado do processo.
Se o que aqui digo não fosse evidente, toda a gramática se volatilizaria.
Estou simplesmente fazendo-lhes notar agora a necessidade do uso do futuro
anterior, na medida em que há duas indicações do tempo. Uma indicação do
tempo relativa ao ato do qual vai se tratar: “naquela época eu ter-me-ía tomado
o seu marido”, por exemplo, e trata-se da indicação daquilo que vai se transfor­
mar no enunciado devido ao casamento; mas por outro lado, porque o expri­
mem em termos de futuro anterior, é, no ponto atual donde falam, ao ato da
enunciação que se referem. Há então dois sujeitos, dois Eu [Jé], e a etapa a
franquear pela criança ao nível desse teste de Binet, ou seja a distinção desses
dois Eu [Je], parece-me algo que não tem literalmente nada a ver com esta
famosa redução à reciprocidade da qual Piaget nos faz o eixo essencial quanto
à apreensão do uso dos pronomes pessoais.
Mas deixemos isto de momento de lado. Chegamos a quê? A apreensão
dessas duas linhas como representando: uma o que se refere ao processo da
enunciação, a outra ao processo do enunciado. Que elas sejam duas -isso não é
que cada uma represente uma função- é que sempre esta duplicidade, a cada
vez que se trate das funções da linguagem, deveremos reencontrá-la. Digamos
ainda que não somente elas são duas, mas que elas terão sempre estruturações
opostas, descontínua aqui por exemplo para uma quando a outra é contínua, e
inversamente.
Onde se situa a articulação de Anna Freud?
Isso para que serve esta topologia, não é para que eu lhes dê a resposta,
quero dizer que declaro assim, livremente, porque me ficaria bem, ou mesmo
porque veria um pouco mais longe dado que sou eu quem fabricou a coisa e
que sei para onde vou, que eu lhes diga: ela está aqui ou ali. E que a questão se
põe. A questão se põe do que representa esta articulação neste caso, que é a
face sob a qual se apresenta para nós a realidade do sonho de Anna Freud, e que
nesta criança que foi muito bem capaz de perceber o sentido da frase de sua
ama-verdadeiro ou falso, Freud o implicate Freud o supõe, e com razão claro,
porque uma criança de dezenove meses compreende muito bem que sua ama

86
vai lhe fazer um incômodo- articula-se sob cstu foi ma qnc <*u cluuncí llocoiui
(esta sucessão de significantes numa certa ordem, algo que toma sua forma do
seu empilhamento, de sua superposição se eu posso dizer, cm uma coluna, pelo
fato de se substituírem uns aos outros, essas coisas como sendo metáforas cada
uma de outra). O que se trata agora de fazer saltar, é a saber a realidade da
satisfação enquanto inter-dita, e não iremos mais longe com o sonho de Anna
Freud.
Contudo daremos o passo seguinte. Então, uma vez que tenhamos co­
meçado a deslindar suficientemente esta coisa perguntando-nos agora o que,
dado que se trata da topologia do recalcamento, para o que é que vai poder nos
servir o que começamos a articular quando se trata do sonho do adulto, ou seja
como, qual é a verdadeira diferença entre o que vemos bem ser uma certa
forma que toma o desejo da criança neste momento no sonho, e uma forma
seguramente mais complicada dado que ela vai provocar bastante mais zum-
zum, em todo o caso na interpretação, ou seja o que se passa no sonho do
adulto.
Freud acerca disso não deixa nenhuma espécie de ambiguidade, não tem
nenhuma dificuldade, basta ler o uso e a função do que intervém, isso é da
ordem da censura. A censura se exerce muito precisamente nisto que eu pude
ilustrar no decurso de meus seminários anteriores. Não sei se lémbram-se da
famosa história que nos tinha agradado tanto: “Se o rei da Inglaterra é um
parvo então tudo é permitido”28, diz a datilografa envolvida na revolução irlan­
desa. Mas não era disto que se tratava. Eu tinha lhes dado uma outra explica­
ção, ou seja o que está em Freud para explicar os sonhos de punição. Muito
especialmente tínhamos suposto a lei: “Quem disser que o rei da Inglaterra é
um parvo terá a cabeça cortada”, e, eu lhes evoquei: na noite seguinte sonho
que tenho a cabeça cortada!
Há formas ainda mais simples que Freud igualmente articula. Dado que
desde há algum tempo conseguiram me fazer ler Tintin, tirarei dele o meu
exemplo. Tenho uma maneira de ultrapassar a censura quando se trata da mi­
nha qualidade Tintinesca, posso articular bem alto: “Quem quer que diga dian­
te de mim que o general Tapioca não vale mais que o general Alcazar, terá que

“LACAN J.: Le Moi dans la théorie de Freud et dans lapsychanalyse, Paris, 1978, Seuil.
Lição de 10 de fevereiro, 1995, p. 156 ss.

87
se haver comigo”. Ora, é bem claro que se articulo uma coisa semelhante, nem
os partidários do general Tapioca, nem os do general Alcazar ficarão satisfei­
tos, e eu diria que o que é bem mais surpreendente, é que os menos satisfeitos
serão aqueles que forem os partidários dos dois.
Eis então o que nos explica Freud da maneira mais precisa, é que é da
natureza do que é dito colocar-nos perante uma dificuldade muito, muito parti­
cular que ao mesmo tempo abre igualmente possibilidades muito especiais.
Aquilo de que se trata é simplesmente isto: o que a criança tinha de resolver,
era o inter-dito, o “diz que não”. Todo o processo de educação, quaisquer que
[sejam os] princípios da censura, vai então formar esse “diz que não”, dado que
se trata de operações com o significante, num dizível, e isto supõe também que
o sujeito se aperceba que o “diz que não”, se ele é dito, e mesmo se não é
executado, permanece dito. Daí o fato de que “não dizê-lo” é distinto de “obe­
decer” a “não fazê-lo”: dito de outro modo que a verdade do desejo é por si só
uma ofensa à autoridade da lei.
Então a saída dada a esse novo drama é a de censurar esta verdade do
desejo. Mas esta censura não é algo que, seja qual for a maneira como ela se
exerça, possa sustentar-se com uma pluma, porque aí é o processo da enunciação
que é visado, e que para impedi-lo, algum pré-conhecimento do processo do
enunciado é necessário, e que todo discurso destinado a banir este enunciado
do processo do enunciado vai encontrar-se em delito mais ou menos flagrante
com seu fim. E a matriz desta impossibilidade que a esse nível -e ela irá dar-
lhes muitas outras matrizes- é dada no nosso grafo. O sujeito, pelo fato de
articular sua demanda, é tomado em um discurso no qual ele não pode senão
estar ele próprio construído enquanto agente da enunciação, isso porque ele
não pode renunciar a ele sem este enunciado, porque é apagar-se então com­
pletamente como sujeito, sabendo do que se trata.
A relação de uma a outra dessas duas linhas do processo da enunciação
com o processo do enunciado, é muito simples, é toda a gramática! Uma gra­
mática racional que se articula nesses termos..., se a coisa os diverte eu podería
lhes dizer onde e como, em que termos e em que quadros isto foi articulado.
Mas de momento aquilo com o que temos a ver é isto, é que vemos que quando
o recalcamento se introduz, ele está essencialmente ligado à aparição absoluta­
mente necessária de que o sujeito se apague e desapareça ao nível do processo
da enunciação.
Como, por quais vias empíricas o sujeito acede a esta possibilidade? E

88
mesmo completamente impossível articulá-lo se não vemos qual é a natureza
desse processo da enunciação. Eu lhes disse: toda a fala parte desse ponto de
cruzamento que temos designado pelo ponto A, quer dizer que toda a fala na
medida em que p sujeito está implicado nela, é discurso do Outro. E por isto
precisamente que, primeiro, a criança não duvida de que todos os seus pensa­
mentos [não] sejam conhecidos, é porque a definição de um pensamento não é,
como o disseram os psicólogos, alguma coisa que seria um ato esboçado. O
pensamento é antes de mais nada algo que participa desta dimensão do não-
dito que acabo de introduzir através da distinção do processo da enunciação e
do processo do enunciado, mas que esse não-dito subsiste evidentemente, na
medida em que para que ele seja um nãp-dito, é preciso dizer, é preciso dizê-lo
ao nível do processo da enunciação, quer dizer enquanto discurso do Outro. E
é por que a criança não duvida, por um único instante, que o que representa
para ela esse lugar onde se sustenta esse discurso, quer dizer seus pais não
saibam todos os seus pensamentos.
É em todo o caso seu primeiro movimento, é um movimento que subsis­
tirá por muito tempo enquanto não se introduzir algo de novo que não temos
ainda articulado aqui dizendo respeito a essa relação da linha superior com a
linha inferior, isto é o que as mantêm fora da gramática, numa certa distância.
A gramática, não tenho necessidade de lhes dizer como ela as mantêm à
distância, as frases como: “eu não saiba que ele estivesse morto”, “ele não está
morto, que eu saiba”, “eu não sabia que ele fosse morto”, “é o receio que ele
[não] fosse morto”. Todas essas taxias sutis que vão do subjuntivo aqui a um
ne, que o Sr. Le Bidois chama (de uma maneira verdadeiramente incrível para
um filólogo que escreve no Le Mondei) o «ne expletivo». Tudo isto é feito para
nos mostrar que toda uma parte da gramática, a parte essencial, as taxias, são
feitas para manter a separação necessária entre essas duas linhas.
Eu lhes projetarei na próxima vez sobre essas duas linhas as articulações
de que se trata, mas para o sujeito que ainda não apreendeu essas formas sutis
está bem claro que a distinção das duas linhas se faz bem antes. Há condições
exigíveis, e são essas que formam a base da interrogação que hoje lhes trago.
Esta distinção é essencialmente ligada, como cada vez evidentemente que vocês
vêem que se trata de alguma coisa que não é um indicador temporal, mas um
indicador tensional, quer dizer de uma diferença de tempo entre essas duas
linhas, vocês verão bem a relação que pode haver entre isto e a situação, e a
topologia do desejo.

89
Estamos aí. A criança durante um tempo está em suma inteiramente to­
mada no jogo dessas duas linhas. Para que possa se produzir o recalcamento, o
que é preciso aqui? Diria que hesito antes de me engajar numa via que apesar
de tudo não queria que ela parecesse o que ela é no entanto, uma via concessiva.
Ou seja que ao fazer apelo a noções de desenvolvimento propriamente dito,
quero dizer que tudo esteja implicado, no processo empírico ao nível do qual
isto se produz, de uma intervenção, de uma incidência empírica e certamente
necessária, mas a necessidade a qual esta incidência empirica, este acidente
empírico, a necessidade na qual ela vem repercutir, que ela precipita na sua
forma, é de uma natureza outra.
Como quer que seja, a criança se apercebe a um dado momento que
esses adultos que são supostos conhecerem todos os seus pensamentos, e aqui
justamente ela não vai franquear esse passo... de uma certa maneira ela poderá
reproduzir mais tarde a possibilidade que é a possibilidade fundamental do que
nós chamaremos logo e rapidamente a forma dita “mental” da alucinação, que
aparece esta estrutura primitiva do que chamamos este pano de fundo do pro­
cesso da enunciação, paralelamente ao enunciado decorrendo da existência que
se chama o eco dos atos, o eco dos pensamentos expressos. Que o conhecimen­
to de uma Verwerfung, quer dizer de quê? Disso do qual vou lhes falar agora,
que não tenha sido realizado, e que é o quê? Que é isto, que a criança em dado
momento se aperceba que esse adulto que conhece todos os seus pensamentos,
não os sabe de modo nenhum. O adulto, ele não sabe, quer se tratasse no sonho
de «ele sabe» ou «ele não sabe que está morto». Veremos na próxima vez a
significação exemplar nesse caso dessa relação, mas de momento não temos
que aproximar esses dois termos pela razão que ainda não estamos suficiente­
mente avançados na articulação do que vai ser tocado no recalcamento. Mas a
possibilidade fundamental disso que não pode ser senão o fim desse
recalcamento, se ele é bem sucedido, quer dizer não simplesmente que ele afe­
te o não-dito de um signo “não” que diz que ele não é dito porém deixando-o
dito, mas que efetivamente o não-dito seja uma tal coisa, sem nenhuma duvida
esta negação é uma forma tão primordial que não há nenhuma espécie de dúvi­
da que Freud põe a Verneinung que parece todavia uma das formas as mais
elaboradas, no sujeito, do recalcamento -dado que o vemos nos sujeitos de
uma alta eflorescência psicológica- que mesmo assim Freud a ponha logo após
a Bejahung primitiva, portanto é mesmo como estou lhes dizendo, através de
uma possibilidade, através de uma gênese, e mesmo por uma dedução lógica

90
que ele procede -como o faço agora perante vocês- c não genética, lista
Verneinung primitiva, é isso do qual estou lhes falando a propósito do não-
dito, mas o «ele não sabe» é a etapa seguinte, e é precísamente por intermédio
desse “ele não sabe” que o Outro que é o lugar da minha fala é o abrigo dos
meus pensamentos, e que pode introduzir-se o Unbewusste no qual vai entrar
para o sujeito o conteúdo do recalcamento.
Não me façam ir mais longe nem mais rápido do que vou. Se lhes disse
que é a exemplo deste Outro que o sujeito procede para que nele se inaugure o
processo do recalcamento, eu não lhes disse que era um exemplo fácil de se­
guir. Desde logo lhes indiquei que há mais de uma maneira dado que enunciei
a esse propósito a Verwerfung e que fiz reaparecer aí -irei rearticulá-lo na
próxima vez- a Verneinung.
A Verdrângung, recalcamento, não pode ser algo que seja tão fácil de
aplicar. Porque se no fundo, aquilo de que se trata é que o sujeito se apaga, está
bem claro que o que é completamente fácil de [fazer] aparecer nesta ordem, [é]
ou seja que os outros, os adultos, não sabem nada. Naturalmente o sujeito que
entra na existência não sabe que se eles não sabem nada, os adultos, como cada
um sabe, é porque eles passaram por toda a espécie de aventuras, precisamente
as aventuras do recalcamento. O sujeito não sabe nada disso, e para imitá-los, é
preciso dizer que a tarefa não é fácil, porque para que um sujeito se escamoteie
a si mesmo como um sujeito, é um gesto de prestigitação um pouquinho mais
forte que muitos outros que sou levado a apresentar-lhes aqui. Mas digamos
que essencialmente e de uma maneira que não levanta absolutamente nenhuma
dúvida, se tivermos que rearticular os três modos sob os quais o sujeito pode
fazê-lo, em Verwerfung, Verneinung e Verdrângung. A Verdrângung vai con­
sistir nisto que para golpear de uma maneira que seja pelo menos possível,
senão durável, aquilo que se trata de fazer desaparecer desse não-dito, o sujeito
vai operar pela via que eu lhes tenho chamado a via do significante. É sobre o
significante, e sobre o significante como tal, que ele vai operar, e é por isto que
o sonho que eu proferi na última vez -em tomo do qual continuamos a andar
aqui às voltas apesar de eu não tê-lo reevocado completamente nesse seminá­
rio de hoje, o sonho do pai morto-, é por isto que Freud articula a esse propó­
sito que o recalcamento incide essencialmente sobre a manipulação, a elisão de
duas cláusulas, isto é nomeadamente «nach seinem Wunsch» e depois «ele não
sabia» que era «segundo seu voto», que se passou assim «segundo seu voto».
O recalcamento apresenta-se na sua origem, na sua raiz, como algo que

91
em Freud não se pode articular de outro modo senão como algo incidindo so­
bre o significante.
Não lhes fiz dar um grande passo hoje, mas é um passo mais adiante,
porque é o passo que vai nos permitir ver ao nivel de que espécie de significante
incide esta operação do recalcamento. Todos os significantes não são igual­
mente lesáveis, recalcáveis, frágeis. Que seja já sobre o que chamei duas cláu­
sulas que isso tenha incidido, isto é de uma importância essencial. Tanto mais
essencial quanto é isto que vai nos pôr em condições de designar aquilo de que
se trata propriamente falando quando se fala do desejo do sonho primeiro, e do
desejo sem mais em seguida.

92
Lição 5
10 de dezembro de 1958

Eu lhes deixei na última vez em algo que tende a abordar o nosso proble­
ma, o problema do desejo e da sua interpretação, uma certa ordenação da estru­
tura significante, do que se enuncia no significante como comportando esta
duplicidade interna do enunciado; processo do enunciado e processo do ato da
enunciação. Coloquei-lhes o acento na diferença que existe do Eu [Je], en­
quanto implicado num enunciado qualquer, do Eu [Jé\ enquanto que ao mes­
mo título que qualquer outro, é o sujeito de um processo enunciado por exem­
plo -o que não é aliás o único modo de enunciado- ao Eu [Je] enquanto impli­
cado em toda a enunciação, mas tanto mais enquanto ele se anuncia como o Eu
[Je] da enunciação.
Esse modo sob o qual ele se anuncia como o Eu [Je] da enunciação, esse
modo sob o qual ele se anuncia não é indiferente, se ele se anuncia nomeando-
se como o faz a pequena Anna Freud no início da mensagem do seu sonho.
Indiquei-lhes que permanece aqui algo de ambíguo, é a saber se esse Eu [Je],
enquanto Eu [Je] da enunciação, é autentificado ou não nesse momento. Dou-
lhes a entender que ele ainda não o é e que é isto que constitui a diferença que
Freud nos apresenta como a que distingue o desejo do sonho na criança, do
desejo do sonho no adulto; é que alguma coisa não está ainda realizada, preci­
pitada pela estrutura, ainda não se distinguiu na estrutura que é justamente essa
coisa da qual eu lhes dava alhures o reflexo e o rastro; rastro tardio, pois ela
encontra-se ao nível de uma prova que, bem entendido, supõe já condições
bem definidas pela experiência, que não permitem preconceber no seu fundo o

93
que disso existe no sujeito, mas a dificuldade que se mantém ainda muito tem­
po para o sujeito distinguir esse Eu [Je] da enunciação do Eu [Je] do enuncia­
do, e que se traduz por este tropeço ainda tardio diante do teste que o acaso e o
faro do psicólogo em Binet o fizeram escolher sob a forma: «Tenho três ir­
mãos: Paulo, Ernesto e eu [moi]»; a dificuldade que existe para que a criança
não considere, como aliás necessário, este enunciado: ou seja que o sujeito não
saiba ainda descontar-se.
Mas este rastro que eu lhes assinalei é alguma coisa, um índice, e exis­
tem outros, deste elemento essencial que constitui a distinção, a diferença para
o sujeito do Eu [Je] da enunciação e do Eu [Je] do enunciado. Ora, disse-lhes,
nós tomamos as coisas não por uma dedução, mas por uma via que não posso
dizer que seja empírica visto que ela já está traçada, que já foi construída por
Freud quando ele nos diz que o desejo do sonho no adulto é um desejo que, ele,
é emprestado e que é a marca de um recalcamento, de um recalcamento que a
esse nível aparece como sendo uma censura. Quando ele entra no mecanismo
desta censura, quando ele nos mostra o que é uma censura, ou seja as impossi-
bilidades de uma censura, porque é isso que ele acentua, é sobre isso que eu
tentava por um instante deter-lhes a reflexão dizendo-lhes uma espécie de con­
tradição interna que é a de todo o não-dito ao nível da enunciação, quero dizer
esta contradição intema que estrutura o “Eu não digo que”.
Disse-lhes no outro dia sob diversas formas humorísticas: “Aquele que
disser isto ou aquilo sobre este ou aquele personagem cujas palavras é necessá­
rio respeitar, não ofender, dizia eu, terá que se haver comigo!” Que se há de
dizer senão que proferindo esta tomada de posição que é evidentemente irôni­
ca, eu pronuncio, eu me encontro pronunciando precisamente o que não deve
ser dito. E Freud, ele próprio, sublinhou amplamente quando nos mostra o
mecanismo, a articulação, o sentido do sonho, quão frequentemente o sonho
toma esta via, quer dizer que o que ele articula como não devendo ser dito é
justamente o que há para dizer, e por onde passa o que no sonho é efetivamente
dito.
Isto nos conduz a algo que está ligado à mais profunda estrutura do
significante. Gostaria de me deter aqui ainda um instante porque este elemen­
to, essa força do “Eu não digo” como tal, não é por nada que Freud, no .seu
artigo da Verneinung, a coloca na raiz mesma da frase mais primitiva na qual o
sujeito se constitui como tal e se constitui especialmente como inconsciente. A
relação desta Verneinung com a Bejahung mais primitiva-com o acesso de um

94
significante na questão, pois é isto uma Bejahung- é algo que começa a sc
colocar. Trata-se de saber sempre o que se coloca ao nível mais primitivo: será,
por exemplo, a dupla bom e mau? Quer escolhamos ou não escolhamos este ou
aquele desses termos primitivos, estamos já optando por toda uma teorização,
toda uma orientação do nosso pensamento analítico e vocês sabem o papel que
representou esse termo de bom e de mau numa certa especificação da via ana­
lítica; é certamente uma dupla muito primitiva.
Sobre esse não-dito e sobre a função do não [ne], do não [ne] em “Eu
não digo”, é nisto que eu me deterei um instante antes de dar um passo a mais,
pois creio que está aí a articulação essencial; esta espécie de não [ne] do “Eu
não digo” que faz que precisamente dizendo que não se o diz, dizèmo-Io -coisa
que parece quase uma espécie de evidência pelo absurdo- é algo em que é
preciso nos determos recordando o que já lhes indiquei como sendo a proprie­
dade mais radical por assim dizer, do significante e, se vocês se lembram, já
tentei conduzi-los através de uma imagem, de um exemplo mostrando-lhes ao
mesmo tempo a relação que existe entre o significante e uma certa espécie de
índice ou de signo que eu chamei o rastro que ele já contém em si, a marca de
não sei que espécie de avesso da impressão do real.
Falei-lhes de Robinson Crusoé e do passo, do rastro do passo de Sexta-
Feira29, e detivemo-nos um instante nisto: será isso já o significante? E disse-
lhes que o significante começa não no rastro, mas no fato de que se apaga o
rastro, e não é o rastro apagado que constitui o significante, é algo que se colo­
ca como podendo ser apagado que inaugura o significante; dito de outra forma,
Robinson Crusoé apaga o rastro do passo de Sexta-Feira mas que faz em seu
lugar? Se quiser mantê-lo, este lugar do pé de Sexta-Feira, faz no mínimo uma
cruz, quer dizer uma bana e uma outra barra sobre esta: isto é o significante
específico. O significante específico é algo que se apresenta como podendo ser
ele próprio apagado e que justamente nesta operação de apagamento como tal
subsiste. Quero dizer que o significante apagado, apresenta-se já como tal, com
suas propriedades próprias do não-dito. Enquanto com a barra eu anulo esse
significante, perpetuo-o como tal indefinidamente, inauguro a dimensão do
significante como tal. Fazer uma cruz é propriamente falando o que não existe
em nenhuma forma de determinação que seja de alguma maneira permitida.

2’LACAN J.: Les Psychoses, Paris, 1981, Seuil. Lição de 14 de março de 1956.

95
Não se deve crer que os seres não-falantes, os animais, não indiquem nada,
mas que eles não deixam intencionalmente com o dito, mas com os rastros dos
rastros. Retomaremos, quando tivermos tempo, os costumes do hipopótamo,
veremos o que ele deixa, atrás de seus passos intencionalmente aos seus
congêneres.
O que o homem deixa atrás de si é um significante, é uma cruz, é uma
barra enquanto barrada, coberta de um lado por uma outra barra, que indica
que como tal está apagada. Esta função do não do nome, enquanto que ele é o
significante que se anula a si próprio, é algo que, seguramente, merece por si só
um longo desenvolvimento. É muito chocante ver até que ponto os lógicos, por
serem como sempre demasiado psicólogos, deixaram estranhamente de lado,
na sua classificação, na sua articulação da negação, o mais original. Vocês
sabem, ou não, e vendo bem eu não tenho intenção de lhes fazer entrar nos
diferentes modos da negação, quero simplesmente dizer-lhes que mais origi­
nalmente -que tudo o que pode se articular na ordem do conceito, na ordem do
que distingue o sentido da negação, da privação, etc.- mais originalmente é no
fenômeno do falar, na experiência, no empirismo linguístico que devemos en­
contrar na origem o que para nós é mais importante, e é por isto que só nisto,
me deterei.
E aqui não posso, pelo menos por um instante, deixar de referir algumas
pesquisas que têm valor de experiência e nomeadamente aquela que foi devida
a Edouard Pichon que foi, como sabem, um dos nossos mais velhos psicanalis­
tas, que morreu no início da guerra vítima de uma grave doença cardíaca.
Édouard Pichon, a propósito da negação, fez esta distinção sobre a qual é pre­
ciso que vocês tenham pelo menos, um pequeno esboço, uma pequena noção,
uma pequena idéia. Ele apercebeu-se de alguma coisa, ele queria muito como
lógico -manifestamente ele queria ser psicólogo, deixou-nos escrito que o que
ele faz é uma espécie de exploração "Des mots à la pensée"y\ Como muita
gente, ele é susceptível de ilusões sobre si próprio, felizmente, é precisamente
o que ele tem de mais fraco no seu trabalho, esta pretensão de remontar das
palavras ao pensamento. Mas, pelo contrário, demonstrou ser um admirável
observador, quero dizer que ele tinha um sentido da matéria linguajeira que faz
com que ele nos tenha ensinado muito mais sobre as palavras do que sobre o

30 DAMOURETTE J. et PICHON Éd. : Des mots à lapensée. Essai de grammaire de la langue


française. 1911-1927. Tome I. Éd. D’Artrey.

96
pensamento. E quanto às palavras, e quanto a este uso da negação -é espe­
cialmente no francês que ele se deteve sobre este uso da negação -e aí, não
pôde deixar de fazer esta descoberta que faz esta distinção, que se articula
nesta distinção que ele faz, do «forclusivo» [forclusif] e do «discordante»
[discordantiel],
Vou dar-lhes, já em seguida, exemplos da distinção que ele faz entre
eles. Tomemos uma frase como: “Não há ninguém aqui.” [II n 'y a personne
ici], isto é forclusivo, está de momento excluído que haja aqui alguém. Pichon
detém-se nesta questão notável que cada vez que em francês nós estamos face
a uma forclusão pura e simples, é sempre necessário empregarmos dois ter­
mos: um “ne” e depois algo que aqui é representado pelo "personne”, que
poderia sê-lo pelo "pas “Je n ‘aipas oü loger”, “Je n 'ai rien à vous dire” por
exemplo. Por outro lado, ele observa que um grande número de usos do ne e
justamente os mais indicativos -aí como em toda parte, os que colocam os
problemas mais paradoxais- se manifestam sempre, ou seja, que primeiramen­
te nunca um ne puro e simples -ou quase nunca- foi usado para indicar a pura
e simples negação, o que, por exemplo em alemão ou inglês, se encarnará no
nicht ou no not. O [ne] sozinho, abandonado a si próprio, exprime o que ele
chama uma «discordância» e esta «discordância» é muito precisamente algo
que se situa entre o processo da enunciação e o processo do enunciado.
Para completar e para ilustrar imediatamente aquilo de que se trata, vou
justamente dar-lhes o exemplo sobre o qual efetivamente Pichon mais se de­
tém pois ele é especialmente ilustrativo: é o uso desses ne que as pessoas que
nada compreendem, ou seja aquelas que querem compreender, chamam o «ne
expletivo». Eu lhes digo isto uma vez que já o esbocei na última vez, em que
fiz alusão a isso a propósito de um artigo que me pareceu ligeiramente escan­
daloso no Le Monde, sobre o chamado «ne expletivo»; esse “ne expletivo” -
que não é um “ne expletivo”, que é um ne essencial ao uso da língua francesa-
é o que se encontra na frase como esta: “Temo que ele venha” [‘Ve crains qu 'il
ne vienne”]. Todos sabem que “Temo que ele venha” [“Je crains qu’il ne
vienne”] quer dizer “Temo que ele venha” [“Je crains qu’il vienne”] e não
“Temo que ele não venha” [“Je crains qu 'il ne vienne pas”] mas, em francês,
diz-se: “Temo que ele venha” [“Je crains qu’il ne vienne”].
Em outras palavras, o francês nesse ponto de seu uso linguístico apode­
ra-se, se assim o posso dizer, do ne algures ao nível se podemos dizer, da sua
errância, da sua descida de um processo da enunciação em que o ne incide

97
sobre a articulação da enunciação, incide sobre o significante puro e simples
dito em ato: “Não digo que...” [“Je ne ditpas que..."], “Não digo que sou tua
mulher” [“Je ne dis pas que Je suis ta femme”] por exemplo, ao ne do enuncia­
do onde ele está: “não sou tua mulher” [“Je ne suis pas ta femme”].
Sem nenhuma dúvida não estamos aqui para fazer a gênese da lingua­
gem, mas algo está implicado mesmo na nossa experiência. Isto, é o que quero
mostrar-lhes que nos indica em todo o caso a articulação que dá Freud do fato
da negação, implica que a negação desça da enunciação ao enunciado; e de que
maneira isto nos surpreendería uma vez que toda a negação no enunciado con­
tém um certo paradoxo, porque coloca algo para colocá-lo ao mesmo tempo
-digamos num certo número de casos- como não-existente, entre os dois, al-
gures, entre a enunciação e o enunciado e nesse plano onde se instauram as
discordâncias, onde algo no meu receio precede o fato que ele venha e, alme­
jando que ele não venha, apenas pode articular esse “Temo que ele venha” [“Je
crains qu'il vienne"] como um “Temo que ele venha” [“Je crains qu'il ne
vienne”] agarrando de passagem, se posso dizer, esse ne de «discordância» que
se distingue como tal na negação do ne forclusivo forclusij].
Vocês me dirão, isto é um fenômeno particular da língua francesa, como
vocês mesmos evocaram há momentos ao falar do nicht alemão e do not inglês.
Bem entendido, só que o importante não é isso, o importante é que na língua
inglesa por exemplo, na qual articulamos coisas análogas, ou seja que nos aper­
ceberemos -e a isto não posso fazê-los assistir porque não estou aqui para lhes
dar um curso de linguística- que é algo análogo que se manifesta no fato de que
em inglês por exemplo, a negação não se pode aplicar de uma forma puramen­
te..., pura e simples ao verbo enquanto ele é o verbo do enunciado, o verbo
designando o processo no enunciado; não se diz: “I eat not”, mas “I don't eat”.
Em outras palavras, acontece que se temos rastros disto na articulação do siste­
ma linguístico inglês, é porque para tudo o que é da ordem da negação, o enun­
ciado é levado a tomar uma forma que é decalcada sobre o emprego de um
auxiliar, sendo o auxiliar o que tipicamente introduz no enunciado a dimensão
do sujeito. "Z don 't eat", "I won 't eat ” ou "I won't go " que é propriamente
falando “Não irei”, que não implica somente o fato, mas a resolução do sujeito
de não ir, o fato de que em toda a negação enquanto negação pura e simples,
aparece alguma coisa como uma dimensão auxiliar e aqui na língua inglesa, o
rastro dessa alguma coisa que une essencialmente a negação a uma espécie de
posição original da enunciação como tal.

98
O segundo tempo ou etapa daquilo que na última vez tentei articular
com vocês, é assim constituído: que para lhes mostrar por qual caminho, por
que via o sujeito se introduz nesta dialética do Outro enquanto ela lhe é impos­
ta pela estrutura mesma desta diferença da enunciação e do enunciado, levei-
lhes por uma via que fiz, disse-lhes, propositadamente empírica (não é a úni­
ca), quero dizer que introduzo aí a história real do sujeito.
Já lhes disse que o passo seguinte daquilo através do qual na origem o
sujeito se constitui no processo da distinção desse Eu [Je] da enunciação com o
Eu [Je] do enunciado, é a dimensão do “nada saber disso”, na medida em que
ele o experimenta, que ele o experimenta no fato de que é com base em que o
Outro sabe tudo dos seus pensamentos, -já que os seus pensamentos são, por
natureza e estruturalmente na origem, esse discurso do Outro- que é na desco­
berta de que, é um fato, que o Outro nada sabe dos seus pensamentos, que se
inaugura para ele esta via que é aquela que procuramos: a via na qual o sujeito
vai desenvolver esta exigência contraditória do não-dito, e encontrar o difícil
caminho por onde ele tem de efetuar esse não-dito no seu ser e tomar-se esta
espécie de ser do qual estamos a tratar, quer dizer um sujeito que tem a dimen­
são do inconsciente. Pois é este o passo essencial que, na experiência do ho­
mem, nos faz fazer a psicanálise, é isto; é que após longos séculos em que a
filosofia, de alguma forma, diria, se obstinou e cada vez mais, a levar sempre
mais longe esse discurso no qual o sujeito não é senão o correlativo do objeto
na relação do conhecimento -quer dizer que o sujeito é o que é suposto pelo
conhecimento dos objetos, esta espécie de sujeito estranho do qual eu não sei
mais onde é que disse que ele podia fazer os domingos do filósofo, porque o
resto da semana, quer dizer durante o trabalho bem entendido, qualquer um
pode negligenciá-lo abundantemente, esse sujeito que não é mais que a sombra
de certa forma e o duplo dos objetos- essa alguma coisa que está esquecida
nesse sujeito, [é] ou seja que o sujeito é o sujeito que fála.
Não podemos mais esquecê-lo unicamente a partir de um certo momen­
to, ou seja o momento em que o seu domínio enquanto sujeito que fala se
suporta sozinho, quer esteja ou não lá. O que muda completamente a natureza
de suas relações com o objeto, é esse ponto crucial da natureza de suas relações
com o objeto que se chama justamente o desejo. É nesse campo que tentamos
articular as relações do sujeito com o objeto no sentido em que elas são rela­
ções de desejo, pois é nesse campo que a experiência analítica nos ensina que
ele deve se articular. A relação do sujeito com o objeto não é uma relação de

99
necessidade, a relação do sujeito com o objeto é uma relação complexa que eu
tento precisamente articular diante de vocês.
De momento comecemos por indicar o seguinte: é porque ela se situa aí,
essa relação de articulação do sujeito com o objeto, que o objeto ocorre ser essa
alguma coisa que não é o correlativo e o correspondente de uma necessidade
do sujeito, mas essa alguma coisa que suporta o sujeito precisamente no mo­
mento em que ele tem de fazer face, se podemos dizer, à sua existência, que
suporta o sujeito na sua existência, na sua existência no sentidb mais radical,
ou seja justamente que ele existe na linguagem; quer dizer que ela consiste em
qualquer coisa que está fora dele, em algo que ele não pode agarrar na sua
natureza própria de linguagem senão no momento preciso em que ele, como
sujeito, se deve apagar, se desvanecer, desaparecer atrás de um significante, o
que é precisamente o ponto, se pode-se dizer, “pânico” em tomo do qual ele
tem de se agarrar a algo e é justamente ao objeto enquanto objeto do desejo que
ele se agarra.
Algures alguém que, para não armar confusões, eu não vou nomear hoje,
alguém bem contemporâneo (morto), escreveu: «Conseguir aprender o que é o
avarento... conseguir saber o que o avarento perdeu quando lhe roubaram o seu
cofre, aprender-se-ía muito»31. É exatamente o que nós temos que aprender,
quero dizer aprender para nós próprios e ensinar aos outros. A análise é o pri­
meiro lugar, a primeira dimensão na qual se pode responder a esta fala, e bem
entendido, porque o avarento é ridículo, -quer dizer próximo demais do in­
consciente para que vocês possam suportá-lo- será preciso que eu encontre um
outro exemplo mais nobre para lhes fazer apreender o que quero dizer.
Poderia começar por lhes articular nos mesmos termos que ainda há pouco
no que concerne à existência e em dois minutos tomar-me-ão por um
existencialista, e não é o que eu desejo. Vou pegar um exemplo em La Règle du
jeu, o filme de Jean Renoir. Algures o personagem que é representado por
Dalio, que é o velho personagem tal como se vê na vida numa certa zona social
-e não precisa crer que isso esteja limitado a esta zona social- é um coleciona­
dor de objetos e mais especialmente de caixas de música. Recordem-se, se
ainda se lembram desse filme, do momento em que Dalio mostra perante uma

” WEIL S. (1947): La Pesanteur et la Grace. Paris, Plon. 1988. Cap. «Désirer sans objet», p.
32. «Arriver à savoir exactement ce qu’a perdu 1’avare à qui on a volé son trésor; on apprendrait
beaucoup».

100
numerosa assistência a sua última descoberta: uma caixa de música particular­
mente bela. Nesse momento, o personagem está literalmente nesta posição que
poderiamos e devíamos chamar exatamente a do pudor: ele cora, ele apaga-se,
ele desaparece, ele está muito perturbado. O que ele mostrou, mostrou. Mas
como é que aqueles que ali estão poderíam compreender que nós nos encontra­
mos lá, nesse nível, nesse ponto de oscilação que agarramos, que se manifesta,
no extremo, nesta paixão pelo objeto do colecionador? Essa é uma das formas
do objeto do desejo.
O que o sujeito mostra não seria mais do que o ponto máximo, o mais
íntimo de si próprio; o que é suportado por este objeto, é justamente o que ele
não pode desvendar, nem mesmo a. si próprio, é essa alguma coisa que está
mesmo à beira do maior segredo. E isto, é nesta via que devemos procurar
saber o que é para o avarento o seu cofre. É preciso que avancemos certamente
mais um passo para ficar mesmo ao nível do avarento e é por isto que o avaren­
to não pode ser tratado senão pela comédia.
Mas, então é disso que se trata, aquilo pelo qual somos introduzidos é
isto: que aquilo em quê, a partir de um certo momento, o sujeito se encontra
empenhado, é nisto, articular o seu voto enquanto secreto. O voto, o que é o
voto se exprime como? Nessas formas da língua às quais já fiz alusão na última
vez, para as quais segundo as línguas, os modos, os registos, as diversas cordas
foram inventadas. Não se fiem sempre nisto no que dizem os gramáticos, o
subjuntivo não é tão subjuntivo como parece e o tipo de voto... -procuro na
minha memória algo que possa de alguma forma dar-lhes uma imagem e, não
sei porque, veio-me do fundo da minha memória esse pequeno poema que tive
aliás dificuldade em recompor, até mesmo em ressituar:

«Ser uma bela moça


loira e popular
que coloca alegria no ar
quando sorri
dá apetite
aos operários
de Saint-Denis»32.

12 DEHARME Lise: Voeuxsecrets, in Cahier de curieuse personne, Paris, 1933.Ed. des Cahiers
libres, p. 27 (Avec en exergue: «Des chansons sortaient de la bouche des égouts.» - Aragon).

e 101
Isto foi escrito por uma pessoa que é nossa contemporânea, poetisa dis­
creta mas de quem uma das características é ser pequena e negra e que sem
dúvida alguma exprime, na sua nostalgia de dar apetite aos operários de Saint-
Denis, algo que pode ligar-se intensamente a este ou aquele momento dos seus
devaneios ideológicos. Mas também não se pode dizer que resida aí a sua ocu­
pação habitual.
Aquilo sobre quê eu querería fazê-los deterem-se um instante, em tomo
desse fenômeno que é um fenômeno poético, é primeiramente b fato que en­
contramos aí algo de bastante importante quanto à estrutura temporal. Talvez
esteja aí a forma pura, não digo do voto mas do almejado, ou seja daquilo que
é enunciado no voto como almejado. Digamos que o sujeito primitivo é elidido,
mas isto não quer dizer nada, ele não é elidido porque o que está articulado
aqui é o almejado, é algo que se apresenta no infinitivo, como vocês vêem, e do
qual -se vocês tentarem introduzirem-se no interior da estrutura- verão que
isto se situa numa posição, uma posição de estar perante o sujeito e lhe deter­
minar retroativamente. Não se trata aqui nem de uma aspiração pura e simples,
nem de um pesar: trata-se de algo que se coloca perante o sujeito como deter­
minando-o retroativamente num certo tipo de ser.
Isto situa-se de fato no ar. Mas não deixa de ser assim que o almejado se
articula, dando-nos já algo que há que reter quando procuramos dar um sentido
à frase com a qual termina La Science des rêves, ou seja que «O desejo
indestrutível modela o presente à imagem do passado»33. Isto de que ouvimos
o ronrom como algo que inscrevemos rapidamente em beneficio da repetição
ou do après coup talvez não seja seguro, olhando bem de perto: é a saber que o
desejo indestrutível modela o presente à imagem do passado, talvez seja por­
que como a cenoura do burro, ele está sempre diante do sujeito, produzindo
sempre retroativamente os mesmos efeitos.
Isto nos introduz ao mesmo tempo, na ambiguidade deste enunciado
pelas suas características estruturais porque afinal, o caráter gratuito se pode­
mos dizer desta enunciação tem algumas consequências nas quais nada nos
impede de nos engajar. Quero dizer que nada nos impede de nos engajar na

31 «Le rêve nous mène dans 1’avenir puisque’iI nous montre nos désirs realises; mais cet avenir
présent lerêveur, estmodele, parle désir indestructible,à 1’image dupasse», ini'Interpretation
des rêves, op. cit., p.527.

102
seguinte observação: que esse voto poeticamente expresso (intitulado como
por acaso -tendo-me reportado ao texto- Voeux secrets, é pois isto que eu
encontrara na minha memória após alguns 25 ou 30 anos, ao procurar algo que
nos levaria ao, segredo do voto), esse voto secreto bem entendido, comunica-
se. Pois está aí todo o problema, como comunicar aos outros qualquer coisa
que se constituiu como secreto? Resposta: através de alguma mentira, porque
no fim das contas isto -para nós que somos um pouco mais astutos que os
outros- pode traduzir-se: «Por mais verdadeiro que eu seja uma bela moça
loira e popular, eu desejo pôr alegria no ar e dar apetite aos operários de
Saint-Denis» e não é seguro que todo o ser, mesmo generoso, mesmo poético,
mesmo poetisa, tenha tanta vontade como esta de pôr alegria no ar. Afinal por
quê? Por que, senão no fantasma, senão no fantasma e para demonstrar até que
ponto o objeto do fantasma é metonimico? Quer dizer que é a alegria que vai
circular assim -quanto aos operários de Saint-Denis, eles têm costas largas,
mesmo que partilhem o negócio entre si, eles são em todo o caso bastante
numerosos para que não se saiba a qual se dirigir...
Com esta digressão, introduzo-lhes na estrutura do voto pela via da poe­
sia. Podemos agora entrar nela pela via das coisas sérias, quer dizer pelo.efeti­
vo papel que o desejo desempenha, e esse desejo do qual vimos, como era de se
esperar, que ele devia com efeito, ter que encontrar o seu lugar em alguma
parte entre esse ponto de onde partimos dizendo que o sujeito nele se aliena,
essencialmente na alienação do apelo, do apelo da necessidade, na medida em
que ele tem de entrar nos desfiladeiros do significante; é este além onde vai
introduzir-se como essencial a dimensão do não-dito, é preciso que ele se arti­
cule em alguma parte.
Nós o vemos nesse sonho que eu escolhi, esse sonho que é seguramente
um dos sonhos mais problemáticos enquanto sonho da aparição de um morto.
Esse sonho da aparição de um morto, do qual Freud -na página 433 da
Traumdeutung na edição alemã, nas páginas 366 e 367 de La Science des
rêves34-, dizendo respeito à aparição dos mortos, está muito longe ainda de nos
ter revelado todo o seu segredo, ainda que ele aí articule já muitas coisas, isto é
essencial. E é a esse propósito que Freud acentuou mais ao longo desta análise
dos sonhos na Traumdeutung, o que há aí de profundo na primeira abordagem

34 Op. cit., pp. 366-371.

103
que foi aquela da psicologia do inconsciente, ou seja a ambivalência dos senti­
mentos relativamente aos seres amados e respeitados. É algo aliás que, no so­
nho que eu fiz a escolha para começar a tentar articular perante vocês a função
do desejo no sonho, é reabordado.
Vocês puderam ver que eu fiz a releitura recente da primeira edição da
Traumdeutung com certos objetivos e que ao mesmo tempo, na última vez, eu
tinha feito uma alusão ao fato de que, na Traumdeutung, se esquece sempre o
que ela contém. Eu esquecera que em 1930 esse sonho tinha sido acrescentado.
Ele foi em primeiro lugar acrescentado em nota pouco depois da publicação
nos Sammelung Kleiner Schriften Für Neurosen Lehre, 1913, tomo III, página
271, da 2a edição, e depois na edição de 1930, foi acrescentado no texto, está
pois no texto da Traumdeutung.
Esse sonho constitui-se assim, repito-lhes: o sujeito vê aparecer o seu
pai diante dele, -esse pai que ele acaba de perder depois de uma doença que lhe
provocou longos tormentos- ele o vê aparecer perante si e fica penetrado, nos
diz o texto, por uma dor profunda ao pensar que o seu pai está morto e que «ele
não o sabia», formulação da qual Freud insiste no caráter absurdamente resso­
nante, do qual diz que se completa, se compreende se juntarmos que ele estava
morto «segundo seu voto»: que
ele não sabia que era segundo seu
voto, bem entendido, que ele es­
tava morto.
Eis o que eu inscrevo so­
bre o grafo segundo a seguinte
sobreposição:
«Ele não sabia» reporta-
se essencialmente à dimensão da
constituição do sujeito, visto que
é sobre um «Ele não sabia» inú­
til que o sujeito tem de se situar,
e é precisamente aí -o que vamos
tratar de ver em detalhe, na ex­
periência- que ele tem de se cons­
tituir ele próprio como não saben­
do, único ponto de saída que lhe
é dado para que o que é não-dito

104
adquira efetivamente alcance de não-dito.
É ao nível do enunciado que isto se faz mas, sem dúvida alguma, ne­
nhum enunciado desse tipo se pode fazer, a não ser apoiado pela subjacência
de uma enunciação, pois para todo o ser que não fala -temos provas disso-
«Ele estava morto» não quer dizer nada. Eu diria mais: nós temos o teste, até
na indiferença imediata que a maior parte dos animais manifesta pelos resídu­
os, pelos cadáveres dos seus semelhantes assim que eles são cadáveres. Para
que um animal se ligue a um defunto, cita-se o exemplo dos cães, é necessário
precisamente que o cão esteja nesta postura excepcional de fazer que se ele não
tem inconsciente, tem um supereu -quer dizer que algo tenha entrado em jogo
que permita o que é da ordem de um certo esboço da articulação significante.
Mas deixemos isso de lado.
Que este «Ele estava morto» supõe já o sujeito introduzido a algo que é
da ordem da existência, a existência não sendo outra coisa que o fato de que o
sujeito a partir do momento em que se coloca no significante não pode mais
destruir-se, que ele entra neste encadeamento intolerável, que para ele se de­
senrola imediatamente no imaginário, que faz com que ele já não possa mais
conceber-se senão como jorrando sempre na existência.
Isto não é construção de filósofo, pude constatá-lo naqueles a quem se
chama os “pacientes” e lembro-me de uma paciente, para quem foi uma revira­
volta da sua experiência interior, que num certo sonho, precisamente em que
ela tocou sem dúvida nenhuma, não em um momento qualquer de sua análise,
em algo apreendido, vivido oniricamente que não era senão uma espécie de
sentimento puro de existência, de existir se podemos dizer de uma forma inde­
finida. E do seio desta existência jorrava sempre para ela uma nova existência
e esta estendendo-se, para sua intuição íntima se podemos dizer, a perder de
vista; a existência sendo apreendida e sentida como alguma coisa que, pela sua
natureza, não se pode extinguir senão para sempre jorrar mais longe, e isto era
acompanhado para ela, precisamente de uma dor intolerável.
Isto é algo que está muito próximo daquilo que nos dá o conteúdo do
sonho. Porque enfim, que temos nós? Temos aqui um sonho que é o de um
filho. É sempre bom fazer notar a propósito de um sonho que aquele que o faz
é o sonhador; é preciso lembrar-se sempre disso quando se começa a falar do
personagem do sonho.
O que é que temos aqui? O problema daquilo que se chama “identifica­
ção” coloca-se com facilidades muito particulares pois no sonho não há nenhu-

105
ma necessidade de dialética para pensar que existe alguma relação de identifi- ?
cação entre o sujeito e as suas próprias fantasias de sonho. I
O que é que temos? Temos o sujeito que está ali perante o seu pai, pene- 1
trado da mais profunda dor e em face dele temos o pai que não sabe que ele está 1
morto -ou mais exatamente, pois é preciso inseri-lo no tempo em que o sujeito |
o apreende e no-lo comunica, «Ele não sabia». Insisto nisso sem poder bem j
insistir até o fim de momento, mas acho sempre que não devo dar-lhes coisas *
aproximativas que me levam algumas vezes à obscuridade; já que também esta ;
regra de conduta me impede de lhes dar as coisas mais ou menos, e como não
posso precisá-las logo, naturalmente isto deixa portas abertas. Apesar disso, é j
importante no que concerne ao sonho, lembrar-lhes que a maneira como ele J
nos é comunicado é sempre um enunciado. ;
O sujeito dá-nos conta de quê? De um outro enunciado, mas não é de i
todo suficiente dizer isto. De um outro enunciado que ele nos apresenta como ■
uma enunciação, pois é um fato que o sujeito nos conta o sonho para que preci- i
samente, procuremos a chave, o sentido, ou seja o que ele quer dizer; ou seja i
por alguma outra coisa além do enunciado que ele nos traz. O fato pois que •
isto, «Ele não sabia», seja dito no imperfeito tem nesta perspectiva toda a sua j
importância. «Ele não sabia», naquilo que eu lhes enuncio -isto para aqueles |
a quem a questão das relações do sonho com a fala pela qual a recolhemos ?
[interesse]- pode abordar no esquema o primeiro plano da divagem (1). |
Mas continuemos. Eis então como as coisas se repartem: J
De um lado (2), do lado do que se apresenta no sonho como o sujeito, o í
quê? Um afeto, a dor, dor de quê? «Que ele estava morto»; ’
E do outro lado (3), o correspondente desta dor: «ele não sabia» o quê? |
A mesma coisa: «que ele estava morto». Freud nos diz que se encontra aí o seu '
sentido e implicitamente sua interpretação, e isto parece ser muito simples. Já i
lhes indiquei apesar de tudo suficientemente que não era. í
- Em complemento (4): «segundo seu voto». |

106
Mas o que é que isto quer dizer? Se estamos -como Freud formalmente
nos indica para fazê-lo, não apenas nessa passagem, mas naquela a qual eu pedi
que se reportassem, dizendo respeito ao recalcamento- se estamos ao nível do
significante, devem ver imediatamente que podemos fazer mais de um uso
desse «segundo seu voto». «Ele estava morto segundo seu voto», a que é que
isto nos conduz? Parece-me que alguns dentre vocês pelo menos podem lem­
brar-se desse ponto onde outrora, lhes conduzi, o do sujeito que, após ter esgo­
tado sob todas as formas a via do desejo, (enquanto não conhecida do sujeito, é
o castigo de que crime? De nenhum outro crime a não ser o de ter justamente
existido nesse desejo) encontra-se levado ao ponto em que não há outra excla­
mação a proferir que esse pT] tpuvai (mé phünaí), esse «não ter nascido» onde
desemboca a existência chegada à extinção, muito precisamente, do seu dese­
jo. E esta dor que o sujeito experimenta no sonho -não esqueçamos que é um
sujeito de quem nada sabemos senão este antecedente imediato de que ele viu
morrer seu pai nas aflições de uma longa doença cheia de tormentos- esta dor
está próxima na experiência, desta dor da existência quando mais nada a habita
senão esta existência mesma, e que tudo, no excesso do sofrimento, tende a
abolir esse termo inextirpável que é o desejo de viver.
Esta dor de existir, de existir quando o desejo já não está lá, se ela foi
vivida por alguém, foi por quem está longe de ser um estranho para o sujeito;
mas em todo o caso o que é claro, é que no sonho, o sujeito conhecia esta dor.
O sentido desta dor, não saberemos jamais se aquele que a sentiu no real o
sabia ou não o sabia, mas em contrapartida, o que é sensível, é que nem no
sonho sem dúvida, nem fora dele muito seguramente -antes que a interpreta­
ção nos conduza aí- o sujeito, ele, não sabe que o que assume é esta dor en­
quanto tal. E a prova é que não pode articulá-la no sonho senão de uma forma
fiel, cínica, que responde absurdamente a quê? Freud responde a isso se nos
reportarmos ao pequeno capítulo da Traumdeutung em que ele fala dos sonhos
absurdos, muito especialmente a propósito desse sonho -e é uma confirmação
do que eu aqui tentava articular perante vocês antes de tê-lo relido- veremos
que ele precisa que se o sentimento do absurdo está frequentemente ligado nos
sonhos a esta espécie de contradição, ligado à estrutura do próprio inconsciente
e que cai no risível, em certos casos, este absurdo -ele o diz a propósito desse
sonho- introduz-se no sonho como elemento do quê? Como elemento expres­
sivo de um repúdio particularmente violento do sentido aqui designado e segu­
ramente com efeito, o sujeito pode ver que seu pai não sabia do seu voto, ele,

107
do sujeito: que seu pai morra para acabar com seus sofrimentos. Quer dizer que
a esse nível, ele sabe, o sujeito, qual é seu voto.
Ele pode ver ou não ver, tudo depende do ponto da análise em que ele
está, que esse voto foi o seu no passado, que seu pai morra -e não por causa do
seu pai, mas por ele, o sujeito, que era o seu rival. Mas o que ele não pode ver
de todo, no ponto em que está, é o fato que assumindo a dor do seu pai sem o
saber, o que é visado é manter perante ele, no objeto, esta ignorância que lhe é
absolutamente necessária, aquela que consiste em não saber que mais vale não
ter nascido. Não há nada no último termo da existência senão a dor de existir,
vale mais assumi-la como a dor do outro que está lá e que fala sempre como eu,
o sonhador, eu continuo a falar, que ver desnudar-se esse último mistério que é
apenas o que no fim das contas? Senão o conteúdo mais secreto desse voto -
aquele do qual nós não possuímos nenhum elemento no próprio sonho a não
ser o que sabemos pelo conhecimento- o que é o conteúdo desse voto, é a saber
o voto da castração do pai, quer dizer o voto por excelência que, no momento
da morte do pai, faz retomo sobre o filho porque é a sua vez de ser castrado.
Quer dizer que aquilo que não se deve ver a qualquer preço -e não estou colo­
cando no momento os termos do ponto e dos tempos em que devem se colocar
pois, a interpretação-já será fácil mostrar-lhes sobre esse esquema que há uma
primeira interpretação que se faz imediatamente: ele não tem pena nenhuma, o
seu pai não sabia, segundo seu voto, a enunciação do voto.
Estamos aqui ao nível do que se encontra já na linha plena da fala do
sujeito e é muito bom que assim seja, mas é necessário uma certa introdução da
parte do analista, mas que já algo de problemático seja introduzido nesta obser­
vação que é de natureza a fazer surgir o que até aí estava recalcado e pontilha­
do, ou seja que ele estava já há muito tempo morto «segundo seu voto», segun­
do o voto de édipo; e a fazer surgir isto como tal do inconsciente.
Mas trata-se de saber, de dar o seu pleno alcance a essa alguma coisa
que, como há pouco, vai bem além da questão do que é esse voto pois esse voto
de castrar o pai, com o seu retomo sobre o sujeito, é alguma coisa que vai bem
além de todo o desejo justificável. Se é, como nós o dizemos, uma necessidade
estruturante, uma necessidade significante -e aqui o voto não é senão a másca­
ra do que há de mais profundo na estrutura do desejo tal como o sonho o de­
nuncia- não é outra coisa, não é apenas um voto, mas que a essência do «se­
gundo», da relação, do encadeamento necessário que proíbe o sujeito de esca­
par a esta concatenação da existência enquanto ela é determinada pela natureza

108
do significante.
Este «segundo», está aí o ponto para o qual quero lhes fazer observar, é
que no fim das contas nesta problemática do apagamento do sujeito, que na
ocasião é sua salvação, nesse último ponto em que o sujeito deve ser votado a
uma última ignorância, a força, a Verdrangung, está aí o sentido no qual tentei
introduzir-lhes completamente no final da última vez, repousa por completo
essa força da Verdrangung, não sobre o recalcamento de algo pleno, de algo
que se descobre, de algo que se vê e que se compreende, mas na elisão de um
puro e simples significante: do nach, do «segundo», do que assina o acordo ou
a discordância, o acordo ou o desacordo entre a enunciação e o significante,
entre o que é da relação no enunciado do que está nas necessidades da
enunciação. É em tomo da elisão de uma cláusula, de um puro e simples
significante, que tudo subsiste e que afinal, o que se manifesta no desejo do
sonho, é isto que «ele não sabia». O que é que quer dizer o fato na ausência de
qualquer outra significação que tenhamos ao nosso alcance?
Veremos que quando considerarmos um sonho de alguém que conhece­
mos melhor, pois nós na próxima vez consideraremos um sonho de Freud,
aquele que está muito perto desse, o sonho de Freud referente ao seu pai, aque­
le em que ele o revê sob a forma de Garibaldi; lá nós iremos mais longe e
veremos verdadeiramente qual é o desejo de Freud. E os que me censuram de
não fazer bastante caso do erotismo anal vão ver que ficarão saciados! Mas
agora ficamos por aqui, nesse sonho esquemático, nesse sonho do confronto do
sujeito com a morte.
O que é que isto quer dizer? Apelando a esta sombra é esse sentido que
vai cair porque isto quer dizer que esse sonho não é senão: ele não está morto,
ele pode sofrer no lugar do outro. Mas por trás deste sofrimento aquilo que se
mantém é o engano em tomo do qual nesse momento crucial, é o único ao qual
ainda se pode agarrar, justamente o do rival, do assassínio do pai, da fixação
imaginária. E é aqui também que retomaremos as coisas na próxima vez, em
tomo da explicação que eu penso ter suficientemente preparada pela articula­
ção de hoje, a elucidação da seguinte fórmula como sendo a fórmula constante
do fantasma no inconsciente: $ Q a.
£ Essa relação do sujeito enquanto barrado, anulado, abolido pela ação do
significante e que encontra seu suporte no outro, no que define para o sujeito
que fala o objeto como tal, ou seja que é ao outro que tentaremos identificar,
que identificaremos muito rapidamente porque -aqueles que assistiram ao pri­

109
meiro ano desse seminário ouviram falar disso durante um trimestre- este ou­
tro, este objeto prevaiente do erotismo humano, é a imagem do corpo próprio
no amplo sentido que nós lhe daremos. E aí, neste caso nesse fantasma humano
que é fantasma dele, e que é apenas uma sombra; é aí que o sujeito mantém sua
existência, mantém o véu que faz com que possa continuar a ser um sujeito que
fala.

110
Lição 6

17 de dezembro de 1958

Fiz alusão na última vez à gramática francesa de Jacques Damourette e


de ÉdouardPichon, editor P. d’Artrey33.0 que eu disse da negação, do forclusivo
e do discordante, está repartido em dois lugares desta gramática no segundo
volume onde está reunido um artigo sobre a negação, que fixa os dados do
forclusivo e do discordante. Esse forclusivo que é tão singularmente encarnado
na língua francesa por esses “não”, “ninguém”, “nada”, “patavina”, “nada”
[“pas, "point", ou "personne", "rien", "goutte", "mie"], que contêm ne­
les próprios esse signo da sua origem no rastro, como vêem; pois tudo isto são
palavras que designam o rastro, é aí que a ação de forclusão, o ato simbólico de
forclusão é rejeitado em francês, o "ne" ficando reservado ao que ele é mais
originariamente, ao discordante.
A negação, na sua origem, na sua raiz linguística é algo que emigra da
enunciação para o enunciado, como tentei mostrar-lhes na última vez. Mostrei-
lhes como se podia representá-lo nesse pequeno grafo de que nos servimos.
Ficamos, na última vez, nesta colocação dos termos, dos elementos do sonho
que «ele não sabia que ele estava morto», e foi em tomo de «segundo seu
voto» que nós tínhamos designado o ponto de incidência real, na medida em que
o sonho marca e contém o desejo.
Resta-nos continuar a avançar para nos perguntarmos em que e porquê
uma tal a(ft é possível e eu tinha, ao terminar, mostrado em tomo de que eu

!S Op. cit.

111
entendia interrogar esta função do desejo tal como ela é articulada em Freud,
ou seja nomeadamente, ao nível do desejo inconsciente. Eu entendia interrogá-
la em tomo desta fórmula que é aquela a qual tudo o que mostramos da estru­
tura desse sonho, disso em que ele consiste, ou seja deste confronto: o sujeito é
um outro, um pequeno outro nesse caso. O pai reaparece vivo a propósito do
sonho e no sonho, e ele chega a ser em relação ao sujeito nessa relação da qual
começamos a interrogar as ambiguidades, ou seja que é ele que faz com que o
sujeito se encarregue do que chamamos a dor de existir; é ele que viu a alma
agonizar, que desejou a morte; desejou a morte na medida em que nada é mais
intolerável que a existência reduzida a si mesma, esta existência para além de
tudo o que pode sustentá-la, esta existência sustentada na abolição precisa­
mente do desejo.
E temos indicado pressentir ai que [é] nesta repartição, eu diria das fun­
ções intra-subjetivas, que faz com que o sujeito se encarregue da dor do outro,
relançando sobre o outro aquilo que ele não sabe e que não é na ocasião outra
coisa senão a sua própria ignorância, do sujeito. A ignorância na qual é precisa­
mente do desejo do sonho que ele deseja sustentar-se, que ele deseja entreter-
se, e que aqui o desejo de morte toma o seu sentido pleno que é o desejo de não
acordar, de não acordar à mensagem que é precisamente aquela que é a mais
secreta, que é trazida pelo próprio sonho e que é esta, é que o sujeito pela morte
do seu pai fica confrontado com a morte, da qual até aí a presença do pai o
protegia. Quer dizer a esse algo que está ligado à função do pai, ou seja que
está aí presente nesta dor de existir, esse algo que é o ponto pivô em tomo do
qual gira tudo o que Freud descobriu no Complexo de édipo, ou seja o x, a
significação da castração. Tal é a função da castração.
Que significa assumir a castração? A castração é verdadeiramente al­
guma vez assumida? Esta espécie de ponto em tomo do qual se vêm quebrar as
últimas ondas da Analyse jlnie ou infinie, como diz Freud, o que é? E até que
ponto nesse sonho e a propósito desse sonho o analista não está somente no
direito, não está em posição, em potência, em poder de interpretá-lo?
E isso sobre o qual, no fim do que dizíamos na última vez desse sonho,
deixei a questão colocada: as três maneiras da parte do analista de reintroduzir
o «segundo seu voto». A maneira segundo a fala do sujeito, segundo aquilo que
o sujeito quis e do que ele tem perfeitamente a recordação que não é de manei­
ra nenhuma esquecida, quer dizer que «segundo seu voto» restabelece aí ao
nível da linha superior, que “segundo seu voto’’ -restabeleceu aí, ao nível do

112
enunciado escondido da recordação inconsciente as marcas do Complexo de
édipo, do desejo infantil da morte do pai que é essa alguma coisa da qual Freud
nos diz que está em toda a formação do sonho “o capitalista”; esse desejo
infantil, no momento de um desejo atual que tem de se exprimir no sonho e que
está longe de sér sempre um desejo inconsciente, encontra o empreendedor.
Esse «segundo seu voto» restaurado ao nível do desejo infantil, não é
alguma coisa que se encontra aí em suma, em posição de ir no sentido do
desejo do sonho. Visto que se trata de interpor nesse momento crucial da vida
do sujeito que se realiza pelo desaparecimento do pai; visto que se trata no
sonho de interpor esta imagem do objeto e, incontestavelmente, apresentá-lo
como suporte de um véu, de uma ignorância perpétua, de um apoio dado ao que
era em resumo até aí álibi do desejo; uma vez que apropria função da interdi­
ção veiculada pelo pai, é bem aí alguma coisa que dá ao desejo na sua forma
enigmática, mesmo abissal, essa alguma coisa de que o sujeito se encontra
separado, este abrigo, esta defesa no final das contas, que é, como muito bem
o entreviu Jones -e veremos hoje que Jones teve algumas percepções muito
extraordinárias de alguns pontos desta dinâmica psíquica- esse pretexto moral
a não afrontar de maneira nenhuma seu desejo.
Podemos dizer que a interpretação pura e simples do desejo edipiano
não seja aqui algo que em suma se agarra a alguma etapa intermediária da
interpretação do sonho? Permitindo ao sujeito fazer o quê? Propriamente fa­
lando essa alguma coisa da qual vocês irão reconhecer a natureza com a desig­
nação de “se identificar ao agressor”, é outra coisa que a interpretação do
desejo edipiano, a esse nível e nesses termos, em que vocês tenham desejado a
morte do seu pai em determinada data e por tal razão. Na infância de vocês,
algures na infância está a identificação ao agressor. Vocês não têm reconheci­
do tipicamente que por ser uma das formas da defesa, isto é essencial? Não há
aí alguma coisa que se propõe no próprio lugar onde foi elidido o «segundo seu
voto»? Será que o «segundo» e seu sentido não estão para uma interpretação
plena do sonho? Sem dúvida nenhuma. Isto, postas de lado as oportunidades e
as condições que permitem ao analista chegar até aí; elas dependerão do tem­
po do tratamento, do contexto da resposta do sujeito nos sonhos, pois nós sabe­
mos que na análise o sujeito responde ao analista, pelo menos ao que o analista
se tomou na transferência, pelos seus sonhos. Mas essencialmente eu diria, na
posição l^ica dos termos, será que ao «segundo seu voto» não é colocada uma
questão a qual nos arriscamos sempre dar alguma forma precipitada, alguma

113
resposta precipitada, alguma resposta prematura, algum cvilanicnlo oferecido
ao sujeito daquilo de que se trata, ou seja o impasse no qual o põe esta estrutura
fundamental que faz do objeto de todo o desejo o suporte de uma metonímia
essencial; e alguma coisa onde o objeto do desejo humano, como tal, se apre­
senta sob uma forma evanescente e da qual talvez possamos entrever que a
castração chega a ser aquilo que poderiamos chamar o último temperamento.
Eis-nos pois levados a retomar pela outra ponta, quer dizer por aquela
que não é dada nos sonhos, a interrogar mais de perto o que quer dizer, o que
significa o desejo humano. E esta fórmula, quero dizer este algoritmo, o $ con­
frontado, posto em presença, colocado em face de a, do objeto (e nós a temos
introduzido a esse propósito nessas imagens do sonho, e do sentido que aí nos é
revelado), não é alguma coisa que nós não possamos tentar pôr à prova da
fenomenologia do desejo tal como ela se nos apresenta, coisa curiosa, ao dese­
jo que está ai, que está aí desde que está aí no coração de [...]. Tentemos
ver sob que forma para nós, analistas, esse desejo se apresenta. Este algoritmo
vai poder levar-nos em conjunto ao caminho de uma interrogação que é da
nossa experiência comum, da nossa experiência de analistas; da maneira pela
qual no sujeito que não é obrigatoriamente nem sempre o sujeito neurótico do
qual não há nenhuma razão para presumir que sobre esse ponto a sua estrutura
não esteja incluída, porque reveladora de uma estrutura mais geral. Em todos
os casos está fora de dúvida que o neurótico se encontra situado algures naqui­
lo que representa os prolongamentos, os processos de uma experiência que
para nós tem valor universal. Está bem aí o ponto sobre o qual se desenrola
toda a construção da doutrina freudiana.
Antes de entrar numa interrogação sobre algumas das maneiras pelas
quais já foi abordada esta dialética das relações do sujeito a seu desejo, e no­
meadamente o que eu anunciei há pouco do pensamento de Jones -pensamen­
to que ficou pelo caminho- que seguramente entreviu, vocês vão ver, alguma
coisa, quero reportar-me a algo recolhido por uma experiência clínica a mais
comum, a um exemplo que me chegou bastante recentemente na minha expe­
riência e que me parece bastante bem feito para introduzir o que nós procura­
mos ilustrar.
Tratava-se de um impotente. Não está mal partir da impotência para
começar a interrogar-se sobre o que é o desejo. Nós estamos em todo o caso
seguros de estar ao nível humano. Era um sujeito jovem que, bem entendido,
como muitos impotentes, não era de modo nenhum um impotente. Ele tinha

114
feito amor muito nornlalmcntc no decurso da sua existência c tinIm tido alguns
casos; era casado e é corn sua mulher que as coisas não funcionavam mais.
Isto não é para ser levado à conta da impotência. Por estar localizado precisa­
mente no objeto com o qual as relações são para o sujeito das mais desejáveis
pois ele amava Sua mulher, o termo não parece apropriado. Ora era o que
ressaltava, ao fim de um certo tempo de prova analítica, dos dizeres do sujeito.
Não era em absoluto que todo o entusiasmo lhe faltara, mas se se deixava
conduzir por ele uma noite (e qualquer outra noite que fosse no período atual
vivido da análise) poderia ele, este entusiasmo, sustentá-lo? As coisas tinham
ido muito longe no conflito acarretado por esta carência que ele acabava de
atravessar: teria ele o direito de impor ainda à sua mulher alguma nova prova,
alguma nova peripécia de suas tentativas e de seus fracassos? Em resumo,
esse desejo do qual sempre se sentia seguramente que ele não estava de forma
alguma ausente de toda presença, de toda possibilidade de realização, esse
desejo era ele legítimo?
E sem poder levar aqui mais longe a referência a esse caso preciso do
qual, bem entendido, não posso aqui por toda a espécie de razões dar-lhes a
observação -ainda que não fosse porque se trata de uma análise em curso e
por muitas outras razões ainda, e é o inconveniente que há sempre em fazer
alusões a análises presentes- irei buscar em outras análises esse termo real­
mente decisivo em certas evoluções, (algumas vezes levando a alguns desvios,
até mesmo ao que se chama “perversões”) de uma outra importância estrutu­
ral, do que ele aí jogou a nu, se pode-se dizer, no caso de impotência.
Evocarei então essa relação que se produz em certos casos na experiên­
cia, no vivido dos sujeitos e que aparece à luz do dia na análise, uma experiên­
cia que pode ter uma função decisiva e que, como noutros lugares, revela uma
estrutura, o ponto onde o sujeito se coloca a questão, o problema: será que ele
tem um falo suficientemente grande? Sob certos ângulos, sob certas incidênci­
as, esta questão por si só pode levar o sujeito a toda uma série de soluções, as
quais sobrepondo-se umas às outras, sucedendo-se e adicionando-se, podem
conduzi-lo bem longe do campo de uma execução normal para a qual ele tem
todos os elementos.
Este “falo suficientemente grande” ou mais exatamente, esse falo es-,
sencial para o sujeito, num momento de sua experiência encontra-se foreluído;
e é algo que nós reencontramos sob mil formas, nem sempre bem entendido
aparentes, nem manifestas, latentes, mas é precisamente no caso em que, como

e
115
diria o Sr. de La Palice, esse momento desta etapa se encontra aí a céu aberto,
que podemos vê-la e tocá-la e também dar-lhe seu alcance.
O sujeito, se posso dizer, nós o vemos mais de uma vez na confrontação,
na referência com essa alguma coisa que precisamos tomar aí no momento da
sua vida -em tomo e no despertar da puberdade- no qual ele reencontra aí o
signo, o sujeito está aí confrontado com algo que, como tal, é da mesma ordem
do que acabamos de evocar ainda há pouco. O desejo, por qualquer outra
coisa, encontra-se legitimado, sancionado? De uma certa forma já aquilo que
aparece aqui de relâmpago se [escapa] na fenomenologia sob a qual o sujeito o
exprime. A fenomenologia sob a qual ele o exprime poderiamos assumi-la sob
a seguinte forma: o sujeito tem ou não a arma absoluta? Na falta de ter a arma
absoluta, ele vai encontrar-se arrastado numa série de identificações, de álibis,
de jogos de esconde-esconde que -repito-lhes, que não podemos mais aqui
desenvolver as dicotomias- podem levá-lo muito longe.
O essencial é isto, é que eu quero indicar-lhes como o desejo encontra a
origem de sua peripécia a partir do momento em que *se trata que* o sujeito
como que o “alienou” em algo que é um signo, numa promessa, numa antecipa­
ção comportando aliás como tal uma perda possível; como é que o desejo está
ligado à dialética de uma falta subsumida num tempo que, como tal, é um tempo
que não está aí, assim como o signo no caso também não é o desejo. Isso a que
o desejo tem de se confrontar, é a este medo que não se mantenha sob a sua
forma atual, enquanto artifex36-se posso exprimir-me assim- ele perece; mas
bem entendido, este artifex que é o desejo que o homem ressente, experimenta
como tal, este artifex não pode perecer senão ao olhar do artífice do seu pró­
prio dizer. É na dimensão do dizer que este medo se elabora e se estabiliza.
É aí que nós reencontramos esse termo tão surpreendente e tão curiosa­
mente abandonado na análise, que é aquele do qual lhes digo que Jones o tinha
emitido para suporte de sua reflexão, que é aquele da aphanisis. Quando Jones
pára, medita sobre a fenomenologia da castração, fenomenologia, vocês vêem-
no bem pela experiência (pelas publicações), que permanece cada vez mais
encoberta na experiência analítica se pode-se dizer moderna, Jones, na etapa
da análise em que ele se encontra confrontado com toda a espécie de tarefas

36 Do latim artifex, ids. m. (ars et facis). 1. Subst. a) que pratica uma arte, um métier; b) criador,
autor. 2 A.dj. a) hábil; b) faz com arte.

116
que são diferentes daquelas que dá a experiência moderna -uma certa relação
com o doente na análise que não é aquela que foi posteriormente reorientada,
segundo outras normas, a uma certa necessidade de interpretação, de exegese,
de apologética, de explicação do pensamento de Freud- Jones, se pode-se
dizer, tenta encontrar esse intermediário, esse meio de se fazer entender a
propósito do Complexo de castração, que aquilo do que o sujeito teme ser pri­
vado, é de seu próprio desejo.
Não é preciso surpreender-se que esse termo de aphanisis que quer
dizer isto, desaparecimento e nomeadamente do desejo, no texto de Jones ve­
rão que é bem disto que se trata, que é isto que ele articula, esse termo lhe
serve de introdução à razão de uma problemática que, o querido homem, lhe
deu muitas preocupações, é a das relações da mulher ao falo, de que ele não se
desembaraçou jamais. Logo em seguida ele usa essa aphanisis para pôr sob o
mesmo denominador comum as relações do homem e da mulher a seu desejo,
o que é engajá-lo num impasse, pois é desconhecer que, precisamente, essas
relações são profundamente diferentes e unicamente, pois está aí o que foi a
descoberta de Freud, na razão da sua assimetria em relação ao significante
falo. Isto, penso já lhes ter feito sentir bastante para que possamos considerar,
pelo menos a titulo provisório hoje, que há aí algo adquirido.
Do mesmo modo esta utilização da aphanisis, quer ela esteja na origem
da invenção, quer ela esteja somente nos seus seguimentos, marca uma espé­
cie de inflexão que em suma, desvia o seu autor do que é a verdadeira questão,
ou seja o que é que significa na estrutura do sujeito esta possibilidade de
aphanisis? Será que ela não nos obriga justamente a uma estruturação do
sujeito humano enquanto tal, justamente enquanto é um sujeito para quem a
existência é admissível e suposta para além do desejo, um sujeito que “ek-
siste”, que “sub-siste” fora do que é seu desejo.
A questão não é de saber se temos de ter em conta objetivamente o
desejo na sua forma mais radical, o desejo de viver, os instintos de viver, como
dizemos. Á questão é completamente diferente, ela é o que a análise nos mos­
tra, nos mostra como posto em jogo no vivido do sujeito, é isto mesmo, quero
dizer que não é somente que o vivido humano seja sustentado, como bem en­
tendido nós imaginamos, pelo desejo, mas que o sujeito humano tem isso em
conta, se posso dizer, que ele conta com esse desejo como tal, que ele tem
medo, se posso exprimir-me assim, que o entusiasmo vital -esse querido entu­
siasmo vitá®>esta encantadora encarnação, é bem aí o caso de falar de

117
antropomorfismo do desejo humano na natureza- que, justamente, esse famo­
so entusiasmo com o qual tentamos manter de pé esta natureza sobre a qual
não compreendemos grande coisa, é que esse entusiasmo vital, quando se trata
dele, o sujeito humano o vê perante si, tem medo que ele lhe falte.
Isoladamente, isto sugere bem apesar de tudo a idéia de que não faría­
mos mal em ter algumas exigências de estrutura, porque enfim trata-se apesar
de tudo aí de outra coisa que não apenas os reflexos do inconsciente; quero
dizer dessa relação sujeito-objeto imanente, se posso dizer, à pura dimensão do
conhecimento e que, desde que se trate do desejo, como aliás a experiência nô-
lo prova, quero dizer a experiência freudiana, isto vai de qualquer modo nos
colocar problemas um pouco mais complicados.
Com efeito, nós podemos, visto que partimos da impotência, ir a outro
termo; se a impotência não teme nem potência nem impotência, o sujeito huma­
no em presença do seu desejo, também lhe acontece satisfazê-lo, acontece-lhe
antecipá-lo como satisfeito. É igualmente muito notável ver esses casos em
que, prestes a satisfazê-lo, quer dizer não atingido de impotência, o sujeito re­
ceia a satisfação do seu desejo, e é muito frequente que por sua vez ele reduza
a satisfação do seu desejo como fazendo-o depender doravante justamente
daquele ou daquela que vai satisfazê-lo, ou seja do outro.
O fato fenomenológico é cotidiano, ele é mesmo o texto corrente da
experiência humana. Não há necessidade de ir aos grandes dramas que toma­
ram aspectos de exemplos e de ilustrações desta problemática, para ver como
uma biografia, ao longo do seu curso, passa o seu tempo a desenrolar-se num
sucessivo evitamento do que foi sempre aí pontuado como o mais significativo
desejo. Onde está esta dependência do outro, esta dependência do outro que de
fato é a forma e o fantasma sob o qual se apresenta o que é pelo sujeito re­
ceado e que o faz afastar-se da satisfação do seu desejo?
Não é talvez simplesmente o que se pode chamar “o temor do capricho
do outro” esse “capricho” que, não sei se vocês se dão conta, não tem muita
relação com a etimologia vulgar, a do dicionário Larousse que o relaciona com
a cabra. “Capricho”, capriccio, isso quer dizer “arrepio” em italiano do qual o
I
temos tomado; não é outra coisa senão a mesma palavra que aquela tão queri­
da de Freud que se chama sich strãuben, "eriçar-se”. E sabem que através
de toda sua obra, está aí uma das formas metafóricas sob a qual, para Freud, se
encarnava a todo o propósito -eu falo nos propósitos os mais concretos, quer
ele fale da sua mulher, quer fale de Irma, quer fale do sujeito que resiste em

118
geral- é uma das formas sob as quais ele encarna da maneira u mais sensível
sua apreciação da resistência.
Não é tanto que o sujeito dependa essencialmente, porque ele se repre­
senta o outro como tal, do seu capricho, é, e é isto que é ocultado, é justamènte
que o outro não marca esse capricho de signo e que não há signo suficiente da
boa vontade do sujeito, senão a totalidade dos signos em que ele subsiste; que
não há, na verdade, outro signo do sujeito, do signo, senão o signo de sua abo­
lição de sujeito.
É o que está escrito assim: $. Isto lhes mostra que quanto a seu desejo
em suma, o homem não é verdadeiro visto que por muita ou pouca coragem
que ele aí ponha, a situação lhe escapa radicalmente; que em todos os casos
este apagamento, esse algo que alguém chamou depois do meu último seminá­
rio, falando em seguida comigo: esta “umbilicação do sujeito ao nível do seu
querer”, e eu recolho de muito bom grado esta imagem do que eu quis fazer-
lhes sentir em tomo do $ em presença do objeto a. Tanto mais que é estrita­
mente conforme ao que Freud designa quando fala do sonho: ponto de conver­
gência de todos os signifícantes em que o sonhador finalmente se implicava
tanto quanto ele se chama o desconhecido ele próprio, não reconheceu que
este Unbekannt (termo muito estranho na pena de Freud), não é justamente
senão este ponto por onde tentei indicar-lhes o que fazia a diferença radical do
inconsciente freudiano, não é que ele se constitui, que ele se institui como in­
consciente, simplesmente na dimensão da inocência do sujeito, em relação ao
significante que se organiza, que se articula no seu lugar; é que há nessa rela­
ção do sujeito com o significante este impasse essencial, isto e eu acabo de
reformular que não há outro signo do sujeito que o signo da sua abolição de
sujeito.
As coisas não ficam por aí vocês pensem bem, porque, no fim das con­
tas, se não se tratasse mais que de um impasse como se diz, isso não nos
levaria longe. É que o que é próprio dos impasses, é justamente que eles são
fecundos e este impasse não tem interesse senão para nos mostrar aquilo que
ele desenvolve como ramificações que são justamente aquelas nas quais vai se
engajar efetivamente o desejo. Tentemos apercebê-la, esta aphanisis. Há um
momento ao qual é necessário que na sua experiência -quero dizer esta expe­
riência à medida que ela não seja simplesmente a experiência da sua análise,
mas também a experiência dos modos mentais sob os quais vocês são levados
a pensar esta experiência, sobre o ponto do Complexo de édipo no qual ela

119
aparece em relâmpago, que é: quando alguém lhes diz que no édipo invertido,
quer dizer no momento em que o sujeito entrevê a solução do conflito edipiano
no fato de atrair pura e simplesmente o amor do mais potente, quer dizer do
pai- o sujeito esquiva-se, dizem-nos, tanto mais quanto o seu narcisismo aí é
ameaçado, à medida que receber este amor do pai comporta para ele a castra­
ção. Isto é assim porque, bem entendido, quando não se pode resolver uma
questão, se a considera como compreensível. É o que faz habitualmente, que
não é todavia tão claro assim: que o sujeito liga esse momento de solução
possível, uma solução tanto mais possível quanto em parte isso será a via toma­
da, pois que a introjeção do pai sob a forma do Ideal do eu será bem alguma
coisa que se assemelha a isto. Há uma participação da função dita inversa do
édipo na solução normal que é apesar de tudo um momento posto em evidência
por uma série de experiências, de encontros, especialmente na problemática da
homossexualidade em que o sujeito experimenta este amor do pai como essen­
cialmente ameaçador, como comportando esta ameaça que nós qualificamos,
na falta de poder dar-lhe um termo mais apropriado... e no final das contas ele
não é, esse termo tão inapropriado, os termos guardaram na análise, felizmente,
suficiente sentido e plenitude, de caráter denso, pesado e concreto, para que
seja isto que no fim das contas nos dirige: compreende-se, descobre-se que há
narcisismo no assunto e que esse narcisismo está interessado nesse desvio do
Complexo de édipo.
Sobretudo a coisa nos será confirmada pelas vias ulteriores da dialética,
quando o sujeito for arrastado nas vias da homossexualidade. Elas são, vocês o
sabem, muito mais complexas, bem entendido, que aquelas de uma pura e sim­
ples exigência sumária da presença do falo no objeto, mas fundamentalmente
ela permanece aí ocultada.
Não é aí que eu quero engajar-me. Simplesmente, isto nos introduz a
esta proposição de que para fazer face a esta suspensão do desejo, à borda da
problemática do significante, o sujeito vai ter perante ele mais de uma astúcia,
se pode-se dizer. Essas astúcias incidem, bem entendido, de início essencial­
mente sobre a manipulação do objeto, do a na fórmula. Esta posse do objeto na
dialética das relações do sujeito e do significante não deve ser posta no princí­
pio de toda espécie de articulação da relação que eu tentei fazer nesses últimos
anos com vocês, pois vêmo-la todo o tempo e em todo o lado. Será necessário
lembrar-lhes esse momento da vida do pequeno Hans em que, a propósito de
todos os objetos, ele se pergunta: tem ele ou não tem um falo? Basta ver desde

120
logo uma criança para se aperceber sob todas as suas formas, dessa função
essencial que joga aí, bem a céu aberto. Trata-se, no caso do pequeno Hans, do
fazer xixi, do Wiwimacher. Vocês sabem durante qual período, a que propósito
e a qual desvio, aos 2 anos, esta questão se coloca para ele a propósito de todos
os objetos, definindo uma espécie de análise que Freud assinala incidentalmente
como um modo de interpretação desta forma.
Isto, bem entendido, não é uma posição que de alguma forma não faça
senão traduzir a presença do falo na dialética. Isto não nos esclarece de forma
alguma, nem sobre o uso -o fim que tentei a seu tempo fazer-lhes ver- nem
sobre a estabilidade do procedimento. O que quero simplesmente indicar-lhes,
é que nós temos todo o tempo testemunhos de que não nos perdemos, ou seja
que os termos em presença são bem estes: o sujeito, e isto pelo seu desapare­
cimento, seu confronto a um objeto, alguma coisa que de tempos em tempos se
revela como sendo o significante essencial em tomo do qual se joga o destino
de toda essa relação do sujeito ao objeto, e agora, para rapidamente evocar em
que sentido, no sentido mais geral, se dirige esta incidência referente ao objeto,
quero dizer o pequeno a do nosso algoritmo, do ponto de vista disso que pode­
riamos chamar a especificidade instintiva do ponto de vista da necessidade.
Já sabemos o que acontece numa relação impossível, se podemos dizer
tomada impossível ao objeto em presença, pela interposição do significante, na
medida em que o sujeito tem de se manter aí na presença do objeto. É bem
claro que o objeto humano sofre esta espécie de volatilização que é aquela que
nós chamamos na nossa prática concreta a possibilidade de deslocamento; o
que não quer simplesmente dizer que o sujeito humano, como todos os sujeitos
animais, veja o seu desejo deslocar-se de objeto em objeto, mas que este deslo­
camento mesmo é o ponto em que pode-se manter o frágil equilíbrio de seu
desejo.
No fim das contas, do que é que se trata? Trata-se, diria, de contemplar
de um certo lado, de impedir a satisfação guardando sempre um objeto de
desejo. De uma certa forma, é ainda um modo, se pode-se dizê-lo, de simboli­
zar metonimicamente a satisfação, e nós avançamos direto na dialética do co­
fre e do avaro. Ela está longe de ser a mais complicada, ainda que não se veja
nada do que se trata. E que é necessário que o desejo subsista nesta ocasião,
numa certa retenção do objeto como dizemos, fazendo intervir a metáfora anal.
Mas é na medida em que este objeto retido não é ele próprio objeto de nenhum
gozo que esta retenção do suporte do desejo, é bem o caso de dizê-lo! A

121
fenomenologia jurídica contém as marcas disso: diz-se que se tem o gozo de um
bem; o que é que isto quer dizer, se não é que justamente, é de fato humana­
mente concebível ter um bem do qual não se goza, e que seja um outro que
goza dele. Aqui o objeto revela a sua função de caução do desejo se pode-se
dizer, para não dizer refém. E se vocês querem que tentemos fazer aqui a ponte
com a psicologia animal, evocaremos o que foi dito no que se refere à etologia,
por um dos nossos confrades, do mais exemplar e do mais figurado. Quanto a
mim tenho bastante tendência a acreditá-lo. Apercebi-me disso com alguém
que acaba de publicar um pequeno volume, (não queria dizer-lhes porque isto
vai provocar-lhes distrações) esta brochura acaba de sair, ela chama-se: L 'Ordre
des choses. É felizmente um pequeno livro, publicado na Plon (1958), que é de
Jacques Brosse37, personagem completamente desconhecido até aqui.
Trata-se de uma espécie de pequena “história natural” -é como tal que
para vocês eu a interpreto- uma pequena história natural à medida do nosso
tempo. Quero dizer que: 1) isto nos restitui o que é tão sutil e tão encantador,
que nós encontramos na leitura de Buffon e jamais em nenhuma outra publica­
ção científica, ainda que apesar de tudo nos possamos nos entregar a este
exercício, pois o que sabemos sobre o comportamento, sobre a etologia dos
animais, é ainda muito mais que Buffon. Nas revistas especializadas é ilegivel.
2) O que está dito nesse pequeno livro, vocês o verão expresso num estilo, devo
dizer, muito muito notável. Devem ler sobretudo o que está no meio, que se
chama: Des vies parallèles, a vida da caranguejeira, a vida da formiga.
Pensei nesse pequeno livro porque o seu autor tem isto em comum comi­
go que para ele a questão dos mamíferos está resolvida. Não existe além do
homem -mamífero essencialmente problemático, basta ver o papel que desem­
penham as mamas na nossa imaginação- não existe além do homem, mamífe­
ros, a não ser um único mamífero verdadeiramente sério: é “o pótamo”. Todo o
mundo está de acordo sobre isso, desde que haja um pouco de sensibilidade. O
poeta T.S.Eliot38, que tem más idéias metafísicas, (mas que é contudo um gran­
de poeta) simbolizou desde a primeira vez a Igreja militante no Hippopotamus.
Voltaremos a isso mais tarde.
Voltemos ao hipopótamo. Que faz ele, este hipopótamo? Sublinham-nos
as dificuldades de sua existência. Elas são grandes parece, e uma das coisas

37 BROSSE J.: L 'Ordre des choses. Paris, 1986, Julliard.


38 ELIOT T.S.: Poèmes. 1910-1930, (trad.P.Leyris), éd.bil.Paris,1947, Le Seuii, pp. 68-69.

122
essenciais, é que eie guarda o campo da sua pastagem, porque é necessário
apesar de tudo que ele tenha algumas reservas de recursos, com seus
excrementos. Isto é um ponto essencial: ele marca portanto aquilo a que se
chama o seu território limitando-o por uma série de relevos, de pontos que
devem marcar sufícientemente para todos aqueles que tenham de se reconhe­
cer aí (ou seja seus semelhantes) que aqui, é o seu território. Isto para lhes
dizer que sabemos bem que não estamos sem esboços de atividade simbólica
nos animais. Como vocês o vêem, é um simbolismo muito especialmente
excrementício no mamífero.
Se em suma o hipopótamo chega a guardar sua pastagem com seus
excrementos, nós achamos que o progresso realizado pelo homem -e na ver­
dade isto não podería entrar na questão se não tivéssemos esse singular inter­
mediário da linguagem que, ela, não sabemos de onde vem, mas é ela que faz
intervir aí dentro a complicação essencial, quer dizer que ela nos levou a essa
relação problemática com o objeto- que o homem, ele, não é a sua pastagem
que ele guarda com a merda, assim: é a sua merda que ele guarda como cau­
ção da pastagem essencial, da pastagem essencialmente a determinar; e é isto
a dialética do que se chama o simbolismo anal, desta nova revelação das Noces
chymiques, se posso exprimir-me assim, do homem com o seu objeto, que é
uma das dimensões absolutamente insuspeitadas até aí, que a experiência
freudiana nos revelou.
No fim das contas, quis simplesmente aqui indicar-lhes em que direção,
e porque se produz isto em suma que é a mesma questão que Marx coloca sem
resolvê-la na sua polêmica com Proudhon, e do qual podemos apesar de tudo
dar um pequeno [esboço] pelo menos de explicação: o que é que acontece para
que os objetos humanos passem de um valor de uso a um valor de troca? E
preciso ler este excerto de Marx'porque é uma boa educação para o espírito.
Chama-se Misère de la philosophic, Philosophic de la misère. Ele endere-
ça-se a Proudhon e as poucas páginas durante as quais ele o põe em ridículo, o
caro Proudhon, por ter decretado que essa passagem de um a outro se fazia
por uma espécie de puro decreto de cooperadores, do qual se trata de saber por
que eles se tomaram cooperadores, e com a ajuda de que. Este modo através
do qual Marx o estripa durante algumas vinte, trinta boas páginas, sem contar
com a sequência da obra, é alguma coisa de bastante saudável e educativo
para o espírito.
Eis pois tudo aquilo que se passa para o objeto, seguramente, e o sentido

123
desta volatilizaçâo, desta valorização que é igualmente desvalorização do obje­
to, quero dizer o arrancamento do objeto do campo puro e simples da necessi­
dade. Essa alguma coisa que, enfim, não é senão uma lembrança da
fenomenologia essencial, da fenomenologia do bem propriamente falando e em
todos os sentidos da palavra bem, imaginem.
Mas agora deixemos isto hoje simplesmente em estado de esboço. Diga­
mos simplesmente que a partir do momento em que o que interessa como obje­
to é o outro, é outrem, é especialmente o parceiro sexual, isto bem entendido
acarreta um certo número de consequências. Elas são tanto mais sensíveis
quanto se tratava a pouco do plano social. É bem sensível aqui que aquilo do
qual se trata está na base mesma do contrato social, na medida em que há de se
ter em conta as estruturas elementares do pensamento, na medida em que o
parceiro feminino -sob uma forma que é ela própria uma forma que não está
sem latência e sem retomo- é aí, como nô-lo mostrou Lévi-Strauss, objeto de
troca. Esta troca não acontece sozinha. Para dizer tudo, diremos que como
objeto de troca, a mulher é, se podemos dizer, um negócio ruim para aqueles
que realizam a operação; pois que também isto nos engaja nesta mobilização se
pode-se dizer real, que se chama a prestação, o aluguel dos serviços do falo.
Colocamo-nos aí naturalmente na perspectiva do utilitarismo social e isto, como
vocês o sabem, não funciona sem apresentar alguns inconvenientes. Foi mes­
mo daí que eu parti há pouco.
Que a mulher nisto não sofra algo de muito inquietante como transfor­
mação, a partir do momento em que ela é incluída nesta dialética -ou seja
como objeto socializado- é alguma coisa que é verdadeiramente muito engra­
çado de ver como Freud, na inocência da sua juventude (na página 192 - 193 do
tomo I de Jones39), pode falar. A maneira pela qual, a propósito dos termos
emancipatórios da mulher em Mill -de quem sabem que Freud se fez o tradutor
num momento sobre as instâncias de Gomprezs- de que Mill fala dos temas
emancipatórios e de que, numa carta à sua própria noiva, ele lhe representa
para que serve uma mulher, “uma boa mulher”. Isto vale mil quando se pensa
que ele estava no máximo da sua paixão! Esta carta que termina com o fato de
que uma mulher deve ficar bem no seu lugar e prestar todos os serviços que

” JONES E.: The life and work of Sigmund Freud, vol. 1, Basic Books inc., New York, 1953. La
Vie et T Oeuvre de S.Freud, Paris, 1958, P.U.F.,1, pp. 194-195.

124
não são nada diferentes dos famosos: Kinder, Küche, Kirchew. Penso na épo­
ca em que ele se fazia ele mesmo voluntariamente o [mentor] eventual de sua
mulher. E o texto termina com uma passagem que lhes devo ler em inglês pois
esse texto não foi jamais publicado noutra língua: «Nem a lei nem os costumes
têm muito a dar à mulher que lhe tenha sido anteriormente retirado, mas fúnda-
mentalmente, a posição das mulheres deve seguramente ser o que ela é na
juventude, uma querida adorada (um adorável movelzinho, um potinho angélico)
e na sua maturidade uma mulher amada». Eis algo que não é de modo nenhum
sem interesse para nós e que nos mostra de que experiência partiu Freud, e nos
faz igualmente aperceber qual caminho que ele teve de percorrer.
A outra face possível -não é sem razão que entramos aqui na dialética
social- é que perante esta posição problemática, há uma outra solução para o
sujeito. A outra solução para o sujeito, sabemo-la igualmente por Freud: é a
identificação. A identificação a quê? A identificação ao pai. A identificação ao
pai, por quê? Já a indiquei para vocês: na medida em que é este, de alguma
maneira, que é percebido como aquele que conseguiu ultrapassar realmente
esse laço em impasse, a saber aquele que é tido como tendo realmente castra­
do a mãe. Diria que é “tido” porque, bem entendido, ele não é senão “tido” e
que aliás há aí alguma coisa que se apresenta essencialmente, é a problemática
do pai; e talvez se eu aí voltar hoje com alguma insistência, é na linha de alguma
coisa que foi agitada ontem à noite na nossa reunião científica, é a saber justa­
mente a função do pai, a senhorilidade do pai, a função imaginária do pai em
certas esferas da cultura.
E certo que há aí uma problemática que não deixa de apresentar toda a
espécie de possibilidades de deslize porque o que é necessário ver, é que a
solução aqui preparada, se podemos dizer, [é] uma solução direta: o pai é já um
tipo, no sentido próprio do termo, tipo presente nas variações temporais sem
dúvida alguma. Nós não estaríamos de tal forma interessados em que essas
variações não existissem, mas no fato de que não podemos conceber aqui a
coisa de outra forma senão nas suas relações com uma função imaginária,
negando a relação do sujeito com o pai, esta identificação ao ideal do pai graças
a qual talvez no fim das contas, podemos dizer que em média as noites de
núpcias têm êxito e correm bem, ainda que a estatística não tenha jamais sido

40 «Crianças, Cozinha, Igreja.»

9 125
feita de uma maneira estritamente rigorosa...
Isto está evidentemente ligado a dados de fato, mas também a dados
imaginários e não resolve em nada manter a problemática -aliás nem para nós
nem, bem entendido, para os nossos pacientes, e talvez sobre esse ponto nos
confundamos- não resolve em nada a problemática do desejo. Vamos ver com
efeito que esta identificação à imagem do pai não é senão um caso particular
daquilo que é preciso que nós agora abordemos como sendo a solução mais
geral, quero dizer nas relações, neste confronto do $ com o a do objeto: a
introdução sob a forma a mais geral da função imaginária, o suporte, a solução,
a via de solução que oferece ao sujeito a dimensão do narcisismo, que faz com
que o Eros humano esteja engajado numa certa relação com uma certa ima­
gem que não é outra coisa senão uma certa relação com o seu próprio corpo, e
na qual vai poder produzir-se esta troca, esta interversão na qual vou tentar
articular-lhes a maneira pela qual se apresenta o problema do confronto de $
com o pequeno a.
E nesse ponto que retomaremos (pois já são duas horas menos um quar­
to) após as férias. Retomarei dia 7 de janeiro pois hoje não pude levar as coisas
mais longe. Verão como sobre esse pequeno a que vamos enfim ter ocasião de
precisar na sua essência, na sua função, ou seja a natureza essencial do objeto
humano enquanto que, como já longamente esbocei nos seminários preceden­
tes, ele está profundamente marcado, como todo o objeto humano, por uma
estrutura narcísica, dessa relação profunda com o Eros narcísico.
Como este objeto humano enquanto marcado por isto se encontra, na
estrutura a mais geral do fantasma, a receber normalmente o mais essencial
das Ansâfte4' do sujeito, ou seja nem mais nem menos seu afeto em presença
do desejo, este temor, esta imanência na qual lhes designava há pouco aquilo
que retém por essência o sujeito à beira do seu desejo. Toda a natureza do
fantasma é de a transferir para o objeto.
Isto nós veremos estudando, retomando um certo número de fantasmas
que são aqueles dos quais desenvolvemos até aqui a dialética, e ainda que fosse
só a partir de um, fundamental porque um dos primeiros descobertos, esse
fantasma On bat un enfant*1, no qual verão os traços mais essenciais, dessa
transferência do afeto do sujeito em presença do seu desejo, sobre o seu objeto

41 Der Ansa[}("e) : disposição, equacionamento.


42 FREUD S.: Ein Kind wird geschlagen (1919), G.W. XII, trad. fr. in Névroses, Psychoses et
Perversions, P.U.F., pp. 219-243.

126
enquanto narcisico.
Inversamente aquilo que se toma o sujeito, o ponto no qual ele se estru­
tura, porque ele se estrutura como eu [moi] e Ideal do eu, isto não poderá
justamente, no fim das contas, ser-lhes dado, ou seja ser percebido por vocês
na sua necessidade estrutural absolutamente rigorosa, que como sendo o retor­
no, o reenvio desta delegação que o sujeito fez do seu afeto a este objeto, a
esse a do qual ainda nunca falamos verdadeiramente, como sendo o seu reenvio.
Quero dizer como necessariamente deve ele mesmo colocar-se não enquanto
a, mas enquanto imagem de a, imagem do outro, o que é uma só e mesma coisa
com o eu [moi], esta imagem do outro estando marcada deste índice, de um I
grande, de um Ideal do eu enquanto é ele mesmo o herdeiro de uma relação
primeira do sujeito não com o seu desejo, mas com o desejo de sua mãe, o Ideal
tomando o lugar do que, no sujeito foi sentido como o efeito de uma criança
desejada.
Esta necessidade, esse desenvolvimento é isso pelo qual ele vem insere-
ver-se num certo rastro, formação do algoritmo que posso inscrever já no qua­
dro para anunciar-lhes para a próxima vez:

dí a ±
$vI
Numa certa relação com o outro, à medida que ele é afetado por um
outro, quer dizer do sujeito ele próprio enquanto ele é afetado pelo seu desejo.
Isto, nós veremos na próxima vez.

e 127
Lição 7
7 de janeiro de 1957

[Há uma distinção com a qual] esta experiência nos confronta, entre
aquilo que no sujeito devemos chamar o desejo e a função na constituição
desse desejo, na manifestação desse desejo, nas contradições que no decurso
dos tratamentos explodem entre o discurso do sujeito e seu comportamento.
Distinção digo, essencial, entre o desejo e a demanda.
Se há alguma coisa que, não somente os dados de origem, o discurso
freudiano, mas precisamente todo o desenvolvimento do discurso freudiano
mantém em seguida, ou seja, as contradições que vão explodir, é devido ao
caráter problemático que aí joga a demanda, já que no fim das contas tudo
aquilo para que se dirigiu o desenvolvimento da análise desde Freud foi cada
vez mais dar importância ao que foi chamado diversamente e que, no fim das
contas, converge para uma noção geral de “neurose de dependência”, isto é, o
que foi escondido, o que está velado por trás desta fórmula, é o acento coloca­
do por uma espécie de convergência da teoria e dos seus deslizamentos, e dos
seus fracassos da prática também, isto é, de uma certa concepção sobre a
redução que tem de se obter pela terapêutica.
E isto que está escondido por trás da noção de “neurose de dependên­
cia”. O fato fundamental da demanda com os seus efeitos impressores, com­
pressores, opressores sobre o sujeito, que está ali e de quem se trata justamen­
te de procurar se no lugar dessa função -que nós revelamos como formadora,
segundo a formação da gênese do sujeito- nós adotamos a atitude correta,
quero dizer aquela que no fim das contas vai ser justificada, ou seja, a elucidação

129
por um lado e o levantamento, ao mesmo tempo, do sintoma. É com efeito claro
que se o sintoma não é simplesmente algo que devemos considerar como a
herança de uma espécie de subtração, de suspensão que se chama frustração;
se não é simplesmente uma espécie de deformação do sujeito, de qualquer
modo que se encare, sob o efeito de algo que se dosa em função de uma certa
relação com o real -como disse, uma frustração imaginária relaciona-se sem­
pre com alguma coisa de real a que se refere- se não é isso, se entre aquilo que
nós descobrimos efetivamente na análise como os seus seguimentos, suas se-
qüências, seus efeitos, ou mesmo seus efeitos duradouros, essas impressões de
frustração e o sintoma, há alguma outra coisa, de uma dialética infinitamente
mais complexa, e que se chama o desejo; se o desejo é algo que não se pode
apreender e compreender senão no mais estreito nó, não de algumas impres­
sões deixadas pelo real mas no ponto mais estreito onde se atam em conjunto,
para o homem, real, imaginário e seu sentido simbólico, o que é precisamente o
que tentei demonstrar -e é por isso que a relação do desejo com o fantasma se
exprime aqui nesse campo intermediário entre as duas linhas estruturais de
toda enunciação significante.
Se o desejo está aí, se é dai que
partem os fenômenos digamos meta­
fóricos, isto é a interferência do signi­
ficante recalcado sobre um significan­
te manifesto que constitui o sintoma,
é claro que é perder tudo não procu­
rar estruturar, organizar, situar o lugar
do desejo. Isto, havíamos começado
a fazê-lo este ano tomando um sonho
no qual me detive longamente, sonho
singular, sonho que Freud chegou por
duas vezes a pôr em evidência, quero
dizer, ter integrado secundariamente
na Traumdeutung depois de lhe ter
dado um lugar particular muito útil no
artigo Les Deux Príncipes de
Tévènement psychiquen, o desejo e

Op. cit.

130
o princípio de realidade (artigo publicado em 1911), este sonho é o da aparição
do pai morto. Havíamos tentado situar os seus elementos na cadeia dupla em
que mostrei a distinção estrutural, no que se pode chamar o grafo, da inscrição
do sujeito biológico elementar, do sujeito da necessidade nos desfiladeiros da
demanda e longamente articulado. Coloquei para vocês como devíamos consi­
derar essa articulação fundamentalmente dupla: à medida que ela não é nunca
demanda de alguma coisa, enquanto no fundo de toda demanda precisa, de
toda demanda de satisfação, o próprio fato da linguagem, simbolizando o outro
-o outro como presença e como ausência- como podendo ser o sujeito do dom
de amor que dá pela sua presença e apenas pela sua presença, quero dizer
enquanto não dá nada mais, isto é, enquanto precisamente o que dá está para
além de tudo o que pode dar, o que dá é justamente esse nada que é tudo da
determinação presença-ausência.
Articulamos este sonho atribuindo de forma didática a esta duplicidade
dos signos alguma coisa que nos permite apreender na estrutura do sonho, a
relação estabelecida por esta produção fantasmática da qual Freud tentou
elucidar a estrutura durante toda a vida, magistralmente na Traumdeutung, e
tentamos ver a função para esse filho de luto por um pai sem dúvida amado,
velado até o fim de sua agonia, que ele faz ressurgir em condições que o sonho
articula com uma simplicidade exemplar: isto é, que este pai aparece como
estando vivo, que fala, e que o filho diante dele mudo, compungido, constrangi­
do, tomado pela dor -a dor, diz, de pensar que «seu pai estava morto e que
não o sabia». Freud nos diz, é preciso completar “que ele estava morto, segun­
do seu voto”. Não sabia o quê? Que era “segundo seu voto”.
Tudo está portanto aí, e se tentamos entrar mais perto no que é a cons­
trução, a estrutura deste sonho, observamos isto: é que o sujeito se confronta
com uma certa imagem e em certas condições, eu diria que entre o que é
assumido no sonho pelo sujeito e essa imagem com que ele se confronta, uma
distribuição, uma repartição se estabelece que vai nos mostrar a essência do
fenômeno.
Já tínhamos tentado articular, limitar se posso dizer, repartindo sobre a
escala significante os temas signifícantes característicos. Sobre a linha superi­
or o «ele não o sabia», referência essencialmente subjetiva na sua essência,
que vai ao fundo da estrutura do sujeito: «ele não sabia» como tal, não se
refere a nada de fatual. É algo que implica a profundidade, a dimensão do
sujeito -e sabemos que aqui ela é ambígua, quer dizer que o «que ele não

131
sabia», vamos vê-lo, não é só e puramente atribuível aquele a quem é atribuído
paradoxalmente, absurdamente, de uma maneira que soa contraditória e mes­
mo como uma espécie de non-sens, aquele que está morto, mas soa também
no sujeito, e participa aí dessa ignorância. Precisamente esse algo é essencial.
Por outro lado eis como o sujeito se situa, na suspensão se posso dizer da
articulação onírica. Ele, o sujeito tal como se situa, tal como se assume é, se
pode-se dizer, já que o outro não sabe, a posição do outro subjetivo -e aqui de
ser em falta, se podemos dizer (que ele esteja morto, claro que é um enunciado
que no fim das contas não poderia atingi-lo). Toda expressão simbólica como
esta, de “estar morto”, o faz subsistir, no fim das contas o conserva; é precisa­
mente o paradoxo dessa posição simbólica: é que não há ser do ser, afirmação
do estar morto que de algum modo não o imortalize, e é exatamente disso que
se trata no sonho. Mas esta posição subjetiva do “ser em falta”, esta menos-
valia subjetiva, não visa que ele esteja morto, ela visa essencialmente isto que
ele é aquele que não sabe. E assim que o sujeito se situa diante do outro,
também esta espécie de proteção exercida relativamente ao outro -que faz
que não somente ele não sabe, mas que no limite, eu diria que não se deve
dizer-lhe- é alguma coisa que se encontra sempre mais ou menos na raiz de
toda a comunicação entre os seres, o que se pode e o que não se pode lhe fazer
saber. Eis algo de que devem sempre pesar as incidências a cada vez que estão
confrontados ao discurso analítico.
Falava-se ontem à noite dos que não podem dizer, exprimir-se, dos obs­
táculos, da resistência propriamente dita do discurso44. Esta dimensão é essen­
cial para aproximar desse sonho um outro sonho que é retirado da última página
do diário de Trotsky, no fim da sua estada na França, no início da última guerra,
creio eu, sonho que é uma coisa singularmente comovedora. É no momento em
que, talvez pela primeira vez, Trotsky começa a sentir nele os primeiros sinais
de não sei que abatimento da potência vital tão inesgotável neste sujeito. E ele
vê aparecer num sonho seu companheiro Lenine que o felicita pela sua boa
saúde, pelo seu caráter impossível de abater. E o outro, de um modo que tira
seu valor dessa ambiguidade que existe sempre no diálogo, lhe dá a entender
que talvez desta vez, haja nele alguma coisa que não está sempre ao mesmo
nível que seu velho companheiro sempre conheceu. Mas aquilo em que pensa,

44 Sessão científica da Société française de psychanalyse, 6 de janeiro de 1959. Georges Mauco,


«La fonction psychomotrice de la parole».

132
esse velho companheiro surgido assim de uma maneira tão significativa num
momento crítico, viragem da evolução vital, é em poupá-lo. E querendo lembrar
alguma coisa que precisamente se relaciona com o momento em que ele pró­
prio, Lenine, fraquejou no seu esforço, ele diz para lhe designar esse momento
em que ele está morto: «o momento em que tu estavas muito, muito doente»,
como se alguma formulação precisa daquilo que se tratava devesse só pelo seu
sopro dissipar a sombra diante da qual o mesmo Trotsky, no seu sonho, nesta
mesma viragem da sua existência, se mantém.'
Pois bem, se por um lado, nesta repartição entre as duas formas enfren­
tadas, ignorância emitida sobre o outro que lhe é imputada, como não ver que
inversamente há algo aí que não é senão a ignorância do próprio sujeito que não
sabe, não só qual é a significação do seu sonho, ou seja, tudo o que lhe está
subjacente (o que Freud evoca, ou seja sua história inconsciente, os votos anti­
gos, mortais, contra o pai), mas mais ainda qual é a natureza da própria dor, na
qual nesse momento o sujeito participa, ou seja essa dor (na qual, procurando o
caminho e a origem, reconhecemos essa dor experimentada, entrevista na par­
ticipação nos últimos momentos do pai) da existência como tal, à medida
que ela subsiste no limite, nesse estado em que mais nada é ainda apreendido,
o fato do caráter inextinguível dessa mesma existência e a dor fundamental que
a acompanha quando todo o desejo se apaga nela, quando todo o desejo se
desvaneceu.
É precisamente esta dor que o sujeito assume, mas como sendo uma dor
que ele motiva ela também absurdamente, já que a motiva unicamente pela
ignorância do outro, por alguma coisa que, no fim das contas, se olha-se de
muito perto não é mais um motivo daquilo que a acompanha como motivação,
do que o surgimento, o afeto numa crise histérica que se organiza aparente­
mente a partir de um contexto no qual ele é extrapolado, mas que de fato não o
motiva.
Essa dor, é precisamente por tomá-la sobre si que o sujeito se cega sobre
a sua proximidade, sobre o fato de que na agonia e no desaparecimento do seu
pai, é algo que o ameaça a si próprio, que ele viveu e de que se separa atual­
mente por esta imagem reevocada -esta imagem que o liga a esse algo que
separa e apazigua o homem- nesta espécie de abismo ou de vertigem que se
abre para ele a cada vez que é confrontado com o último termo de sua existên­
cia. Isto é justamente o que ele precisa interpor entre ele e essa existência,
nesse caso um desejo. Ele não cita um suporte qualquer do seu desejo, um

133
desejo qualquer, mas o mais próximo e o mais urgente, o melhor, aquele que ele
durante muito tempo dominou, aquele que agora o abateu. Precisa fazê-lo du­
rante um certo tempo reviver imaginariamente, porque nesta rivalidade com o
pai, no que há aí de fundo de poder, no fato que ele triunfa no fim das contas,
porque ele não sabe, o outro, enquanto que ele sabe, é essa a estreita passagem
graças à qual o sujeito não se sente ele próprio diretamente invadido, direta­
mente engolido, porque aquilo que se abre diante dele de hiante, de confronta­
ção pura e simples com a angústia da morte, tal como sabemos dê fato que a
morte do pai, a cada vez que ela se produz, é sentida pelo sujeito como o
desaparecimento (numa linguagem mais grosseira) dessa espécie de escudo,
de interposição, de substituição que é o pai, ab mestre absoluto, isto é, à morte.
Começa-se a ver aqui esboçar-se uma espécie de [...] que é constituída
pelo quê?. A fórmula que tento lhes apresentar como sendo a fórmula funda­
mental daquilo que constitui o suporte, a relação intra-subjetiva essencial em
que todo o desejo como tal deve inscrever-se; é sob essa forma mais simples, a
que está inscrita aqui, esta relação separada na relação quadrilátera, a do es­
quema L, a do sujeito ao grande Outro, à medida que esse discurso parcialmen­
te inconsciente que vem do grande Outro vem interpor-se nele. A tensão a-a’,
o que se pode ainda sob certos aspectos chamar a tensão imagem de a relativa­
mente à a; segundo o que se trata da relação a-a’, do sujeito ao objeto, da
relação imagem de a relativamente ao Outro, enquanto ela estrutura essa rela­
ção. É justamente o ausente que -como sendo característico da relação do
desejo à relação do sujeito, $, com as funções imaginárias, que é expressa na
fórmula $ J a- neste sentido que o desejo como tal, e em relação a todo objeto
possível para o homem, põe para ele a questão de sua elisão subjetiva.
Quero dizer que enquanto o sujeito, no registro, na dimensão da fala
enquanto ele está inscrito nela como alguém demandante, ao aproximar-se desse
algo que é o objeto mais elaborado, o mais evoluído -o que mais ou menos
habilmente a concepção analítica nos apresenta como sendo o objeto da
oblatividade, esta noção, muitas vezes o sublinhei, levanta dificuldades, é com
esta que tentamos também confrontar-nos, que tentamos formular de uma
maneira mais rigorosa- o sujeito, na medida em que como desejo, isto é na
plenitude de um destino humano que é o de um sujeito falante, ao aproximar-se
desse objeto encontra-se apanhado nessa espécie de impasse que faz que não
poderia atingi-lo, esse objeto como objeto, senão de algum modo encontrando-
se ele como sujeito, sujeito da fala, ou nessa elisão que o deixa na noite do

134
E traumatismo, propriainculr falando no qnc est.i puta almi d.i |n■ >|nhu'h .1 in,
| ou de ter que tomar 0 lugar, substituir-sc, subsiuuii ac sob um ccito aip.m11. ante
I que se encontra (articulo-o pura e simplesmente por enquanto, não ojusliíico já
| qUe é todo 0 nosso desenvolvimento que deve justificá-lo, e toda a experiência
Í analítica está aí para justificá-lo) ser 0 falo.
É daqui que parte 0 fato de que em toda a assunção da posição madura,
da posição que nós chamamos genital, algo se produz ao nível do imaginário
que se chama a castração e tem a sua incidência ao nível do imaginário. Por
quê? Porque 0 falo, entre outras coisas -é só nesta perspectiva que podemos
compreender toda a problemática que levantou 0 fato, verdadeiramente até ao
f infinito, e do qual é impossível de outro modo sair- a questão da fase fálica para
| os analistas, a contradição diria eu, 0 diálogo Freud-Jones sobre este assunto,
í que é singularmente patético -toda essa espécie de impasse em que Jones
| entra (quando revoltando-se contra a concepção demasiado simples de Freud
í sobre a função fálica como sendo o termo unívoco em tomo do qual gira todo o
l desenvolvimento concreto, histórico, da sexualidade no homem e na mulher),
1 põe em evidência o que ele chama as funções de defesa ligadas a essa imagem
| do falo. Um e outro no fim das contas dizem a mesma coisa, abordam-na de
| pontos de vista diferentes. Não podem encontrar-se seguramente à falta dessa
[ noção central, fundamental, que faz com que devamos conceber o falo como,
| nessa ocasião, tomado, subtraído se pode-se dizer, à comunidade imaginária, à
| diversidade, à multiplicidade das imagens que vêm assumir as funções corpo-
| rais, isolado em face de todas as outras nessa função privilegiada que faz dele
I. 0 significante do sujeito.
| Enfoquemos ainda mais aqui nossa lanterna e digamos isto, que, em suma,
| sobre os dois planos, que são: 0 primeiro plano imediato, aparente, espontâneo
! que é 0 apelo, (que é “socorro!”, que é “pão!”, que é um grito no fim das
! contas, que é em todo 0 caso alguma coisa em que, na forma mais total, 0
| sujeito é idêntico por um momento a essa necessidade) deve articular-se no
í nível interrogativo da demanda que se encontra, e|e na primeira relação, na
; experiência entre a criança e a mãe -função do que é articulado e que será
5 cada vez mais articulado seguramente na relação da criança e da mãe, de tudo
! 0 que ele lhe substitui do conjunto da sociedade que fala sua própria língua.
Entre este nível e o nível votivo, isto é, aí onde o sujeito, em todo 0 curso da sua"
! vida, tem de se encontrar, isto é, de encontrar aquilo que lhe escapou porque
| estando para além de, fora de tudo, a forma da linguagem, cada vez mais e à

1
135
W MT W W '■S W>

medida que ela se desenvolve, deixa passar, deixa filtrar, rejeita, recalca o que
inicialmente tendia a exprimir-se de sua necessidade. Esta articulação em se­
gundo grau é o que, como sendo justamente modelado, transformado pela sua
fala, ou seja este ensaio, esta tentativa de passar além desta própria transfor­
mação, é isto que fazemos na análise, e é por isso que se pode dizer que, do
mesmo modo que tudo o que reside daquilo que deve articular-se ao nivel
interrogativo está aí em A, como um código predeterminado -enquanto
preexistente à experiência do sujeito, como sendo aquilo que no Outro é ofere­
cido ao jogo da linguagem, à primeira bateria significante que o sujeito experi­
menta na medida em que aprende a falar...
O que é que nós fazemos na análise? O que é que nós encontramos, o
que é que nós reconhecemos quando dizemos que o sujeito está no estádio oral,
no estádio anal, etc., nada mais que aquilo que é expresso sob essa forma
madura da qual é preciso não esquecer o elemento completo: é o sujeito en­
quanto marcado pela fala e numa certa relação com sua demanda. E isto lite­
ralmente que em tal ou tal interpretação em que nós lhe fazemos sentir a
estruturação oral, anal, ou outra da sua demanda, nós não reconhecemos sim­
plesmente o caráter anal da demanda, confrontamos o sujeito com esse caráter
anal ou oral, não nos interessamos simplesmente por alguma coisa que está
imanente naquilo que articulamos como sendo a demanda do sujeito, confronta­
mos o sujeito a essa estrutura de sua demanda. E é ai justamente que deve
balançar, oscilar, vacilar a acentuação de nossa interpretação. Porque acentu­
ada de uma certa maneira ensinamos-lhe a reconhecer alguma coisa que, se
pode-se dizer, está nesse nível superior, nível votivo, nivel dos seus votos, do
que ele gostaria, enquanto eles são inconscientes. Ensinamos-lhe, se podemos
dizer, a falar, a reconhecer-se naquilo que corresponde ao [D] a este nível, mas
não lhe damos no entanto as respostas. Sustentando a interpretação inteira­
mente neste registro do reconhecimento dos suportes signifícantes escondidos
na sua demanda, inconscientes, nós não fazemos nenhuma outra coisa.
Se esquecemos aquilo de que se trata, isto é, de confrontar o sujeito com
sua demanda, não nos apercebemos que o que produzimos é justamente o co­
lapso, o apagamento da função do sujeito como tal na revelação deste vocabu­
lário inconsciente, solicitamos ao sujeito que se apague e desapareça. E é exa­
tamente em muitos casos aquilo de que se trata. Ou seja, que numa certa
aprendizagem que se pode fazer na análise do inconsciente, de uma certa for­
ma o que desaparece, o que foge, o que é cada vez mais reduzido, não é senão

136
esta exigência que é a do sujeito se manifestar além de tudo isto no seu ser: ao
reconduzi-lo constantemente ao nível da demanda acaba-se por algum lado -e
é o que se chama numa certa técnica “análise das resistências”- por reduzir
pura e simplesmente o que é seu desejo.
Ora, se é simples e fácil ver que na relação do sujeito ao Outro, a respos­
ta se dá retroativamente e noutro lugar; que aí alguma coisa volta para trás
sobre o sujeito para confirmá-lo no sentido da demanda, para identificá-lo no
caso à sua própria demanda, é igualmente claro, no nível em que o sujeito
procura situar-se, reconhecer-se justamente no que ele é para além desta de­
manda, que há um lugar para a resposta, que este lugar para a resposta, aqui
esquematizado por S significante de A barrado, S(4), isto é, o chamado que o
Outro, também ele, está marcado pelo significante, que também ele, o Outro,
está abolido de certa forma no discurso, isto não é senão indicar um ponto
teórico do qual nós veremos a forma que deve tomar. Essa forma, ela é essen­
cialmente, justamente, o reconhecimento do que tem de castrado tudo aquilo
que, do ser vivente, tenta aproximar-se do ser vivente tal como ele é evocado
pela linguagem. E bem entendido, não é nesse nível que podemos inicialmente
dar a resposta.
Mas pelo contrário, respeitar, visar, explorar, utilizar o que já se exprime
além deste lugar da resposta no sujeito, e que é representado pela situação
imaginária em que ele próprio se põe, se mantém, se suspende como numa
espécie de posição que seguramente participa em certos aspectos dos artifícios
da defesa, é exatamente isto que faz a ambiguidade de tantas manifestações do
desejo, do desejo perverso por exemplo.
É na medida em que aí algo se exprime que é o ponto mais essencial
onde o ser do sujeito tenta afirmar-se. Isto é tanto mais importante considerar
quanto é preciso considerar que é precisamente aí, nesse mesmo lugar que
deve produzir-se o que nós chamamos tão facilmente o objeto acabado, a
maturação genital, dito de outro modo tudo o que constituirá (como se exprime
algures biblicamente o Sr. Jones) as relações do homem e da mulher se achará,
pelo fato de que o homem é um sujeito falante, marcado por dificuldades estru­
turais que são as que se exprimem nesta relação do $ com o a.
Por quê? Porque precisamente, se se pode dizer que até um certo mo­
mento, um certo estado, um certo tempo do desenvolvimento, o vocabulário, o
código da demanda pode passar por um certo número de relações, as quais
comportam um objeto amovivel (ou seja a comida no que se refere à relação

137
oral, o excremento no que se refere à relação anal, para nos limitar por hora a
estas duas), quando se trata da relação genital é bem evidente que é apenas por
uma espécie de empréstimo, de prolongamento desta fragmentação significante
do sujeito na relação da demanda que alguma coisa pode nos aparecer -e
aparece-nos com efeito, mas a titulo mórbido, a título de todas essas incidênci­
as sintomáticas- ou seja o falo. Por uma muito simples e boa razão, é que
verdadeiramente o falo não o é, esse objeto amovivel, que não se toma ele
senão pela sua passagem ao nível de significante e que tudo aquilo de que se
trata numa maturação genital completa repousa nisto que tudo o que, no sujeito,
deve-se apresentar como sendo aqui o acabamento do seu desejo é, para dizê-
lo claramente, algo que não se pode demandar.
E a essência da neurose, e aquilo com que temos de tratar, consiste
muito precisamente nisto que o que não pode demandar-se nesse terreno -
justamente no neurótico, ou no fenômeno neurótico, ou seja, no que aparece de
mais ou menos esporádico na evolução de todos os sujeitos que participam da
estrutura da neurose- consiste justamente, reencontra-se sempre esta estrutu­
ra, nisto que o que é da ordem do desejo se inscreve, se formula, no registro da
demanda.
Durante uma releitura que eu fazia recentemente do Sr. Jones, retomava
tudo o que ele escreveu sobre [a fase fálica]45; é muito surpreendente em cada
instante o que ele traz da sua experiência mais fina, mais direta: «Eu queria
relatar alguma coisa de um grande número de pacientes masculinos que apre­
sentam uma deficiência em finalizar ou cumprir sua virilidade em relação a
outros homens ou mulheres, e em mostrar que sua failure, a sua falta nessa
ocasião, seu obstáculo, e da maneira mais estrita [...] sua atitude de necessida­
de em primeiro de adquirir alguma coisa das mulheres, alguma coisa que por
uma boa razão eles não podem nunca realmente adquirir». «Por quê?», diz
Jones, e quando ele diz «por quê?» no seu artigo e no seu contexto é um verda­
deiro «por quê?» Ele não sabe porquê mas ele o constata, ele o pontua como
um ponto de horizonte, uma abertura, uma perspectiva, um ponto em que as
rédeas lhe escapam. «Por que um ato, é imperfeito. Isso também pode dar ao
rapaz esse sentido da posse imperfeita do seu próprio pênis. Estou absoluta-

45 JONES E. (1933): «The Phallic Phase». I.P.J. Vol.XIV, 1933,1-33. Trad. fr. zmLaPsychanalyse
n° 7, PUF, pp. 271-312, e em Théorie et Pratique de la psychanalyse, Paris, 1969, Payot.

138
5 mente convencido de que as duas coisas estão rcalincnlc intimainentc ligiuhi»
| uma à outra, embora a conexão lógica entre estas duas coisas não seja ccrta-
mente evidente»46. Em todo o caso não evidente para ele...
A todo momento encontramos estes detalhes sobre a fenomenologia mais
í emergente, quero dizer, as sucessões necessárias pelas quais um sujeito desli-
za, para chegar à ação plena do seu desejo, os preliminares que lhe são neces-
sários. Podemos reconstitui-las, reencontrar o que eu chamaria os caminhares
i labirinticos em que se marca o fato essencial da posição que o sujeito tomou
* nesta referência, nesta relação, estrutural para ele, entre desejo e demanda. E
1 se a manutenção da posição incestuosa no inconsciente é algo que tem um
’ sentido, e que tem consequências efetiyamente diversamente destruidoras so-
I bre as manifestações do desejo, sobre o cumprimento do desejo do sujeito, não
i é justamente senão por isto: é que a posição dita incestuosa conservada algures
’ no inconsciente, é justamente esta posição da demanda.
I O sujeito, num momento, diz-se -e é assim que se exprime o Sr. Jones-
j tem que escolher entre seu objeto incestuoso e seu sexo. Se quer conservar
■ um, ele deve renunciar ao outro. Eu diria que aquilo entre quê e quê ele tem de
í escolher em tal momento inicial, é entre sua demanda e seu desejo.
1 Retomemos agora, depois destas indicações gerais, o caminho no qual
desejo introduzi-los para lhes mostrar a medida comum que tem esta estruturação
! do desejo e como efetivamente ela se encontra implicada. Os elementos imagi-
I nários na medida em que eles..., eles devem ser desviados, devem ser tomados
[ no jogo necessário da parte significante na medida em que ele é comandado,
i este jogo, pela estrutura dupla do votivo e do volitivo.
’ Tomemos um fantasma, o mais banal, o mais comum, aquele que o pró­
prio Freud estudou, ao qual dedicou uma atenção especial, o fantasma on bat
i un enfant. Retomemo-lo agora, com a perspectiva que c aquela da qual nos
i aproximamos, para tentar captar como se pode formular a necessidade do fan-
í tasma como suporte do desejo.
Freud, falando destes fantasmas tais como os observou num certo nú-
■ mero de sujeitos na época com uma predominância nas mulheres, nos diz que a
i primeira fase da Schlagfantasie é restituida, na medida em que consegue ser
i reevocada (seja nos fantasmas, seja nas recordações do sujeito) pela frase
| seguinte «der Vater schlãgt das Kind», e que a criança que é batida nesta
í
| 46 In La Psychanalyse n° 7, pp. 282-283.

139
ocasião, é em relação ao sujeito isto: «o pai bate na criança que eu odeio»
(sublinhado por Freud).
Ei-nos, portanto, levados por Freud, do ponto inicial ao próprio coração
de algo que se situa na qualidade a mais [aguda] do amor e do ódio, aquela que
visa o outro no seu ser, e na medida em que esse ser nesta ocasião é submetido
ao máximo da degradação, na valorização simbólica pela violência e pelo capri­
cho paterno, ele está aí. A injúria aqui, se se chama narcísica é algo que, em
suma, é total. Ela visa, no sujeito odiado, o que é demandado para além de toda
demanda. Ela visa isso que ele está absolutamente frustrado, privado de amor.
O caráter de degradação subjetiva que está ligado para a criança ao encontro
com a primeira punição corporal deixa vestígios diversos segundo o caráter
diversamente repetido. E cada um pode constatar na época em que vivemos,
em que essas coisas são extremamente poupadas às crianças que, acontece
que depois que uma criança jamais tenha sido batida, ela seja uma vez objeto de
algumas sevicias, por mais justificadas que fossem, pelo menos numa época
relativamente tardia, não se poderia imaginar as consequências, pelo menos no
momento, prostrantes que tem esta experiência para a criança.
De qualquer modo, podemos considerar como dado que a experiência
primitiva é aquilo de que se trata, tal como Freud no-la exprime: «Entre esta
fase e a seguinte devem passar-se algumas grandes transformações». Com
efeito essa segunda fase, Freud a exprime assim: «a pessoa que bate continuou
a ser o pai, mas a criança batida tomou-se regularmente, em regra, a própria
criança do fantasma. O fantasma é em alto grau tingido de prazer, e cumpre-se
de uma maneira absolutamente significativa da qual trataremos mais tarde» -e
com razão. «Sua fórmula articulada é agora assim: eu sou batido pelo pai»
(sublinhado por Freud).
Mas Freud acrescenta que isto que é «a mais importante e a mais pesa­
da em consequência de todas as fases, podemos dizer dela apesar de tudo num
certo sentido que ela não teve jamais existência real. Não é nunca em caso
algum re-evocada, nunca é levada à consciência. Ela é uma construção da
análise, mas não deixa de ser uma necessidade»'47.
Creio que não se pesa suficientemente as consequências de uma tal
afirmação em Freud. No fim das contas, já que não a encontramos nunca, esta

” G.W. XII, p. 204. Trad.fr. em Névroses, Psychoses et Perversions, p. 225.

140
fase mais significativa, é apesar de tudo muito importante ver, já que ela de­
semboca numa terceira fase, a fase em questão, que é necessário que conce­
bamos esta segunda fase como [necessária] e procurada pelo sujeito. E, bem
entendido, este algo que é procurado nos interessa no mais alto grau, já que não
é senão a fórmula do masoquismo primordial, isto é justamente esse momento
em que o sujeito vai procurar de perto sua própria realização, de sujeito, na
dialética significante.
Alguma coisa essencial, como diz Freud justamente, se passou entre a
primeira e a segunda fase. Ou seja, essa alguma coisa em que ele viu o outro
como precipitado da sua dignidade de sujeito ereto, de pequeno rival; alguma
coisa se abriu nele que lhe faz perceber que é nesta possibilidade mesma de
anulação subjetiva que reside todo o seu ser enquanto ser existente, que é aí,
roçando de perto essa abolição, que ele mede a própria dimensão na qual ele
subsiste como ser-sujeito-a-querer, como ser que pode emitir um voto.
O que é que nos dá toda a fenomenologia do masoquismo, de maneira
que é preciso ir buscar na literatura masoquista, quer esta nos agrade ou não,
quer seja pornográfica ou não? Tomemos um romance célebre, um romance
recente editado por uma casa semi-clandestina. O que é a essência do fantas­
ma masoquista no fim das contas? É a representação pelo sujeito de alguma
coisa, de uma inclinação, de uma série de experiências imaginadas, cuja ver­
tente, cuja margem consiste essencialmente nisto que no limite ele é pura e
simplesmente tratado como uma coisa, como uma coisa que no limite se nego­
cia, se vende, se maltrata, é anulado em toda a espécie de possibilidade propri­
amente falando votiva de se tomar autônomo. É tratado como um fantasma,
como um cão, diriamos nós, e não qualquer cão, um cão que é maltratado,
precisamente como um cão já maltratado.
Isto é a ponta, o ponto pivô, a base de transformação suposta no sujeito
que procura encontrar onde está esse ponto de oscilação, esse ponto de equilí­
brio, esse produto desse $ que é isso em que ele tem precisamente que entrar,
se entra, se uma vez entrado na dialética da fala ele tem em alguma parte que
se formular como sujeito. Mas no fim das contas, o sujeito neurótico é como
Picasso, “ele não procura, ele encontra” (porque é assim que se exprimiu um
dia Picasso), fórmula verdadeiramente soberana. E na verdade, há uma espé­
cie de gente que procura e há aqueles que encontram. Creiam-me, os neuróti­
cos, ou seja tudo o que se produz de espontâneo neste abraço do homem com
a sua fala, encontram. E farei notar que “trouver”, vem da palavra latina tropus,

141
muito expressamente aquilo de que falo constantemente: as dificuldades de
retórica. A palavra que nas línguas românicas designa trouver [encontrar] -
ao contrário do que se passa nas línguas germânicas em que é uma outra raiz
que serve para isso, é curioso que seja tirada da linguagem da retórica.
Detenhamo-nos um instante sobre esse momento terceiro, do [no] ponto
em que o sujeito encontrou. Este temo-lo imediatamente, talvez valha a pena
deter-se aí. No fantasma: on bat un enfant o que é que há? O que bate, é on,
é absolutamente claro, e Freud insiste nisso. Não há nada a fazer, diz-se-lhe:
mas quem bate? E fulano ou sicrano? O sujeito é verdadeiramente evasivo. E
só depois de uma certa elaboração interpretativa, quando se terá reencontrado
a primeira fase, que se poderá reencontrar aí uma certa figura ou imagem
paterna sob essa forma, a forma em que o sujeito encontrou o seu fantasma;
enquanto o seu fantasma serve de suporte ao seu desejo, à realização
masturbatória. Nesse momento aí, o sujeito está perfeitamente neutralizado.
Ele é on. E quanto ao que é tão batido, não é menos difícil de apreender, é
múltiplo; [immer nur Buben], muitas crianças, rapazes, [nur Mãdel] quando
se trata da moça, mas não necessariamente com uma relação obrigatória entre
o sexo da criança que fantasma e o sexo da imagem fantasmada.
As maiores variações, as maiores incertezas reinam igualmente sobre
este tema em que sabemos bem que, por qualquer lado que seja, a ou a’, quer
seja i(a) ou a, a criança, até um certo ponto, participa já que é ela que faz o
fantasma. Mas, enfim, em nenhuma parte de uma maneira precisa, de uma
maneira não equívoca, de uma maneira que não seja precisamente indefinida­
mente oscilante, a criança se situa.
Mas aquilo que quereriamos aqui acentuar, é algo muito vizinho do que
eu chamei há pouco a repartição entre os elementos intra-subjetivos do sonho.
Por um lado no fantasma sádico (este está entre os fantasmas que se pode
observar aproximadamente na sua maior expansão) perguntarei onde está o
afeto acentuado? O afeto acentuado -do mesmo modo que era no sonho trans­
portado para o sujeito sonhante essa forma da dor- é incontestavelmente um
fantasma sádico, é transportado para a imagem fantasmada do parceiro; é o
parceiro, não tanto enquanto aquele que seja batido, mas enquanto aquele que
vai ser, ou que nem sequer sabe como é que ele vai ser.
Este elemento extraordinário ao qual voltarei a propósito da fenomenologia
da angústia, e onde j á lhes indico esta distinção que está no texto de Freud (mas
que naturalmente nunca ninguém mencionou a propósito da angústia), entre

142
essas nuances que separam a perda pina c .'liniplr.s ih> iiii iiniic i|h
indeterminação subjetiva, e este algo que é lotalincnlc dileienie c qnc <■ ja
advertência, ereção, se pode-se dizer, do sujeito diante do perigo c que, como
tal é articulado por Freud em Inhibition, symptoms, angoisse, crn que I-rciid
introduz uma distinção ainda mais surpreendente, porque é tão sutil,
fenomenológica,-que não é fácil de traduzir em francês entre [abwarten] que
tentarei traduzir por “sofrer”, “não poder mas”, “curvar as costas”, e [erwarten |
que é “estar à espera de”48. E neste registro, nesta gama que se situa, no
fantasma sádico, o afeto acentuado e na medida em que está ligado ao outro,
ao parceiro, aquele que está em frente, neste caso a.
No fim das contas onde é que está esse sujeito que nessa ocasião, está
atormentado com alguma coisa que lhe falta justamente para saber onde está?
Seria fácil dizer que está entre os dois. Irei mais longe, direi que no fim das
contas o sujeito está de tal maneira, verdadeiramente entre os dois, que se há
alguma coisa aqui à qual ele seja idêntico, ou que ele ilustre de um modo exem­
plar, é o papel daquilo com que se bate, é o papel do instrumento. É ao instru­
mento que ele é aqui no fim das contas idêntico, já que o instrumento aqui nos
revela -e sempre para nosso espanto, e sempre com a maior razão para nos
surpreender, salvo se não quisermos ver- que ele intervém muito frequente­
mente como o personagem essencial naquilo que tratamos de articular da es­
trutura imaginária do desejo.
E é exatamente isto que é o mais paradoxal, o que mais nos adverte. E
que em suma é sob esse significante, aqui totalmente desvelado ná sua nature­
za de significante, que osujeito vem a abolir-se enquanto se apreende nessa
ocasião no seu ser essencial, se é verdade que com Espinoza nós poderiamos
dizer que esse ser essencial, é o seu desejo.
Com efeito, é a esta mesma encruzilhada que somos trazidos a cada vez
que se coloca para nós a problemática sexual. Se o ponto pivô do qual partimos
há dois anos, que era justamente o da fase fálica na mulher, é constituído por
esse ponto de passagem aó qual Jones volta sempre durante a sua discussão,
para voltar a partir daí, para o elaborar, para verdadeiramente o [...], o texto de
Jones sobre este assunto tem o valor de uma elaboração analítica: o ponto
central é esta relação do ódio à mãe com o desejo do falo, foi daí que Freud

48 Erwartung, ver G.W. XIV, p. 197 ss., I.S.A., pp. 94-98. A tradução francesa não restitui a
sutileza desenvolvida por Lacan.

143
partiu. É em tomo disto que ele faz partir o caráter verdadeiramente funda­
mental, genético, da exigência fálica, na saída do édipo no rapaz; na entrada do
édipo para a mulher. É este ponto de conexão: ódio à mãe, desejo do falo, o que
é o sentido próprio desse Penisneid.
Ora Jones, com razão, sublinha as ambiguidades que são encontradas a
cada vez que nos servimos dele. Ora, se é o desejo de ter um pênis relativa­
mente a um outro (isto é, uma rivalidade), é preciso apesar de tudo que ele se
apresente sob um aspecto ambíguo que nos mostra bem que é para além dele
que devemos procurar seu sentido. O desejo do falo, isso quer dizer desejo
mediatizado pelo mediatizante-falo, papel essencial que joga ,o falo na
materialização [mediatização] do desejo.
Isto leva-nos a pôr -para introduzir o que teremos de desenvolver ulteri-
ormente na nossa análise da construção do fantasma, a esta encruzilhada que é
esta- que o problema, no fim das contas, é de saber como vai poder ser mantida
esta relação do significante falo na experiência imaginária que é a sua, na
medida em que ela é profundamente estruturada pelas formas narcísicas que
regram as suas relações com seu semelhante como tal. É entre S, sujeito falan­
te, e a, ou seja a esse outro que o sujeito fala em si mesmo; a é, portanto, a isso
que o temos identificado hoje. É o outro imaginário, é o que o sujeito tem nele
mesmo como “pulsão”, no sentido em que a palavra pulsão é posta entre aspas,
em que não é a pulsão ainda elaborada, tomada na dialética significante, onde é
a pulsão no seu caráter primitivo onde a pulsão representa tal ou tal manifesta­
ção da necessidade no sujeito.
Imagem do outro, ou seja aquilo em que -por intermédio da reflexão
especular do sujeito a situar suas necessidades- está no horizonte algo diferen­
te, ou seja, o que eu inicialmente chamei a primeira identificação com o outro,
no sentido radical, a identificação às insígnias do outro, ou seja significante
grande I sobre a.
Vou dar um esquema, que reconhecerão aqueles que seguiram o primei­
ro ano do meu seminário: nós temos falado do narcisismo. Dei o esquema do
espelho parabólico graças ao qual pode-se fazer aparecer sobre uma bandeja,
num vaso, a imagem de uma flor escondida, seja iluminada por baixo, seja da
bandeja, e que, graças à propriedade dos raios esféricos, vem projetar-se, per-
filar-se aqui em imagem real -quero dizer produzir por um instante a ilusão de
que há no vaso precisamente essa flor.
Pode parecer misterioso ver que se pode imaginar que é preciso ter aqui

144
uma pequena tela para acolher esta imagem no espaço; não é assim. Fiz notar
que esta ilusão, ou seja a visão da ereção no ar desta imagem real, não se
apercebe senão de um certo campo do espaço que é precisamente determina­
do pelo diâmetro do espelho esférico, situado relativamente ao centro do espe­
lho esférico. Quer dizer que se o espelho é estreito, é preciso bem entendido
colocar-se num campo onde os raios que são refletidos do espelho vêm recruzar
o seu centro e, em consequência, numa certa extensão de uma zona no espaço,
para ver a imagem”.
A astúcia da minha pequena explicação, na época, era esta: se alguém
quer ver essa imagem produzir-se, fantasmática, no interior do pote -ou um
pouco de lado, pouco importa- vê-la produzir-se em alguma parte no espaço
onde já há um objeto real, e se esse observador se encontra ali, ele poderá
servir-se do espelho [plano]. Se ele está numa posição simétrica relativamente
ao espelho, a posição virtual daquele que está diante do espelho será, nesta
inclinação do espelho, de vir situar-se no interior do cone de visibilidade da
imagem que está a se produzir aqui.
Isto quer dizer que ele verá a imagem da flor justamente neste espelho
[plano], no ponto simétrico. Noutros termos o que se produz, se o raio luminoso
que se reflete em direção ao observador é estritamente simétrico da reflexão
visual, -do que se passa do outro lado- é porque o sujeito virtualmente terá
tomado o lugar do que está do outro lado do espelho [plano], que ele verá nesse
espelho [plano] o vaso -o que se pode esperar já que ele está lá- e por outro
lado a imagem real, tal como ela se produz no lugar onde ele não pode vê-la.
A relação, o inter-jogo entre os diferentes elementos imaginários e os
elementos de identificação simbólica do sujeito podem ser de certa maneira
representados neste aparelho ótico, de uma maneira que não creio não-tradici-
onal já que Freud a formulou em' alguma parte na sua Traumdeutung. Ele dá
algures o esquema das lentes sucessivas nas quais se refrata a passagem pro­
gressiva do inconsciente ao pré-consciente que ele procurava em referências
análogas -óticas, diz ele precisamente.
Elas representam efetivamente este algo que, no fantasma, tenta reen­
contrar seu lugar no simbólico. Isto em consequência faz de $ outra coisa que
um olho, isso não é mais que uma metáfora. Se ele designa que quer reencon­
trar seu lugar no simbólico, é de uma maneira especular, ou seja em relação ao

"LACAN, J.: Séminaire I. Les écrits techniques de Freud, Paris, 1975, Seuil, p. 143.

145
Outro que, aqui, é o grande A. Este espelho não é senão um espelho simbólico,
não se trata do espelho diante do qual a criança se agita.
Isto quer dizer que numa certa reflexão que é feita com a ajuda das
palavras na primeira aprendizagem da linguagem, o sujeito aprende a regular
algures, à boa distância, as insígnias em que se identifica, ou seja algo que dá de
outro lado, que lhe corresponde, nessas primeiras identificações do eu [moí], E
é no interior disto -na medida em que há já algo ao mesmo tempo pré-formado,
aberto à fragmentação, mas que não entra neste jogo de fragmentação senão
na medida em que o simbólico existe e lhe abre este campo- é no interior disto
que vai produzir-se essa relação imaginária na qual o sujeito se encontrará
tomado, e que, indico-o, faz com que na relação erótica ao outro, por muito
completa, por pujante que se a suponha, haverá sempre um ponto de redução
que podem apreender como extrapolações do desenho erótico entre os sujei­
tos. É que há transformação dessa relação primeira de a à a’, i(a), dessa rela­
ção fiindamentalmente especular que regra as relações do sujeito com o outro.
Há transformação disto, e uma repartição entre, por um lado, o conjunto dos
elementos fragmentários do corpo, e aquilo com que nós lidamos na medida em
que somos a marionete, e na medida em que o nosso parceiro o é, a marionete.
Mas à marionete não falta senão uma coisa, o falo. O falo está ocupado noutro
lugar, com a função significante. É por isso que há sempre, não digo no seio dos
[...] que se opõem sempre, mas que podem ser reencontrados em qualquer
momento da [...] interpretativa da situação.
O sujeito, enquanto se identifica ao falo em face do outro fragmenta-se
enquanto ele próprio, em presença de alguma coisa que é o falo. E para pôr os
pontos nos is direi que entre o homem e a mulher, peço-lhes que se detenham
nisto que na relação, mesmo a mais amorosa entre um homem e uma mulher,
na própria medida em que o desejo toma [...], o desejo encontra-se para além
da relação amorosa da parte do homem. Quero dizer que é na medida em que
a mulher simboliza o falo, que o homem encontra aí o complemento do seu ser;
é a forma, se posso dizer, ideal.
E justamente na medida em que o homem, no amor, está verdadeiramen­
te alienado a este falo, objeto do seu desejo que reduz no entanto no ato erótico
a mulher a ser um objeto imaginário, que esta forma do desejo será realizada. E
é mesmo por isso que se mantém, no próprio seio da relação amorosa a mais
profunda, a mais íntima, essa duplicidade do objeto sobre a qual tantas vezes
insisti a propósito da famosa relação genital. Volto à idéia que justamente se a

146
relação amorosa c aqui acabada, c na medida cm que o onlio d,ua i> qnc mb,
tem, e que é a definição mesma de amor.
Por outro lado, a relação da mulher com o homem, que cada um y.m.l.i <!<■
acreditar ser muito mais monogâmica, é algo que não apresenta menos n mes­
ma ambigüidade, com esta diferença que o que a mulher encontra no homem c
o falo real, e portanto seu desejo encontra ai, como sempre, sua satisfação.
Efetivamente ela encontra-se na postura de ver aí uma relação de gozo
satisfatória.
Mas justamente é na medida em que a satisfação do desejo se produz no
plano real que o que a mulher efetivamente ama, e não deseja, é esse ser que,
ele, está para além do encontro do desejo e que é justamente o outro, ou seja o
homem enquanto privado do falo, enquanto precisamente pela sua natureza de
ser acabado, de ser falante, é castrado.

147
Lição 8
14 de janeiro de 1959

Já que temos falado muito nas


últimas vezes do desejo, vamos co­
meçar a abordar a questão da inter­
pretação. O grafo deve nos servir
para alguma coisa50.
O que vou dizer-lhes hoje a
propósito de um exemplo, ou seja a
interpretação de um sonho, quero
introduzi-lo por algumas observa­
ções sobre o que resulta das indica­
ções que Freud nos dá precisamen­
te sobre a interpretação do sonho.
Eis com efeito aproximada­
mente o sentido da observação de
Freud que eu atualmente viso, está
no capítulo VI em que ele se inte­
ressa pelo sentimento intelectual re­
lativo ao sonho51. Por exemplo, no

!° Esquema dado tal qual no início da lição na retranscrição da estenotipia.


sl “Die intellektuellen Leistungen im Traum” in Traumdeutung, G.W. II-III, chap.VI, § G. “Absurde
Traüme”, p. 428.

149
momento em que o sujeito conta um sonho, tem o sentimento c'e que falta
alguma coisa que esqueceu, ou que alguma coisa é ambigua, duvidosa, incerta.
Em todos esses casos, nos diz Freud, o que é denunciado pelo sujeito a propó­
sito do sonho, relativamente a sua incerteza, sua colocação em dúvida, sua
ambigüidade -ou seja “é isto ou aquilo”, “já não me lembro mais”, “já não
posso dizer”- mesmo o seu grau de realidade, isto é, o grau de realidade com
que foi visto, quer seja alguma coisa que se afirma no sonho com um tal grau de
realidade que o sujeito o nota ou, pelo contrário, que seja um sonho [...], tudo
isto nos diz Freud, em todos estes casos, deve ser tomado como enunciando o
que Freud chama «um dos pensamentos latentes do sonho».
O que em suma é dito pelo sujeito em nota marginal no que conceme ao
texto do sonho, ou seja todos os acentos de tonalidade, o que numa música é.
acompanhado por anotações como allegro, crescendo, decrescendo, tudo
isto faz parte do texto do sonho. Não penso que para a maior parte de vocês
que suponho já terem tomado conhecimento da Traumdeutung, da técnica, isto
seja novo. E algo verdadeiramente fundamental para a interpretação de um
sonho. Não faço, portanto, senão lembrar porque não tenho tempo de dar exem­
plos que estão em Freud, e remeto-os para o texto da Traumdeutung. Verão o
uso que Freud faz desta observação essencial.
Ele interpreta o sonho integrando nele o sentimento de dúvida, por exem­
plo, que há nesse sonho no momento em que o sujeito o conta, como um dos
elementos do sonho sem o qual o sonho não poderia ser interpretado.
Partimos portanto da interpretação freudiana, e colocamo-nos a questão
de saber as implicações que isto comporta. Não basta aceitar esse fato, ou esta
regra de conduta, como devendo ser recebida religiosamente como fizeram
muitos discípulos de Freud, sem procurar ver mais longe, confiando de algum
modo no inconsciente. O que é que isto implica que Freud nos diga, não é
somente a tensão de seu inconsciente que está aí, no momento em que a recor­
dação do sonho lhes escapa ou, pelo contrário, se coloca numa certa rubrica,
sob um certo acento. Ele diz: «isto faz parte dos pensamentos latentes do pró­
prio sonho». E portanto aqui que o que convencionamos chamar o grafo nos
permite precisar, articular de um modo mais evidente, mais certo aquilo de que
se trata quando Freud nos dá uma tal regra de conduta na interpretação do
sonho.
E com efeito o que podemos dizer. Que fazemos nós quando comunica­
mos um sonho, quer seja dentro ou fora da análise? (Não se esperou pela

150
análise |)i|lu *|'ic pudéssemos diu uniu lóimuln <l>> rinun i.n,n<> i!<■ um >i<mhi> ipir
a especifique nu conjunto das cmmc.inçOr.!; possíveis, como tendo mmt crtlit
estrutura em relação ao sujeito). Naquilo que podemos, num discurso, tmz.ei
como enunciados fatuais, podemos iegitimamente distinguir isto que, entre es­
ses enunciados concernentes a acontecimentos, há alguns que têm um valor
absolutamente digno de ser distinguido em relação ao registro significante. São
os enunciados que podemos colocar sob essa rubrica geral de serem discurso
indireto; são os enunciados relativos às enunciações de outros sujeitos; é o que
é relato das articulações significantes de alguma outra pessoa. E muitas coisas
se introduzem aí, incluindo outros enunciados, isto é o ouvir-dizer: “contaram-
me...”, “fulano afirmou que isto se passou...”, “fulano ou sicrano...”. O que é a
forma, ou uma das formas mais fundamentais do discurso universal, a maior
parte das coisas da quais temos de dar conta fazem parte do que recolhemos
da tradição dos outros. Digamos portanto um relato de enunciado puro e sim­
ples, fatual, que tomamos como nosso e, por outro lado, isto comportando de
forma latente a dimensão da enunciação que não é forçosamente posta em
evidência, mas que o advém desde o momento em que se trata de relatar o
enunciado de alguma outra pessoa. Pode, igualmente, tratar-se do nosso. Po­
demos dizer que dissemos tal coisa, que demos testemunho diante de tal outro,
e podemos mesmo fazer-nos a enunciação de que o enunciado que fizemos é
completamente falso. Podemos testemunhar que mentimos.
Uma destas possibilidades é a que retém agora a nossa atenção. O que
é que fazemos na enunciação de um sonho? Fazemos algo que não é único na
sua classe, pelo menos na maneira que vamos usar para defini-lo agora. Pois
de uma maneira que é interessante sublinhar, que é a maneira espontânea que
temos frente a um sonho, antes de entrarmos na querela dos sábios -ou seja o
sonho não tem nenhuma significação, é um produto de decomposição da ativi­
dade psíquica, que é a posição dita cientifica, que foi mantida durante um perí­
odo bastante curto da história- Freud fazia notar ele próprio que não fazia mais
que retomar a tradição. E já uma coisa considerável o que temos avançado até
o momento, ou seja que a tradição nunca deixou de colocar, pelo menos relati­
vamente ao sonho, um ponto de interrogação quanto a sua significação.
Noutros termos, aquilo que enunciamos produzindo o enunciado do so­
nho, é algo a que é dado -na própria forma em que o produzimos a partir do
momento em que contamos o nosso sonho a alguma outra pessoa- esse ponto
de interrogação que não é qualquer um, que supõe que alguma coisa está sob

151
esse sonho, do qual esse sonho é o significante. Quero dizer, podemos escrever
isto na nossa formalização, que se trata de uma enunciação de um [enunciado],
que tem ele próprio um índice de enunciação, que é suposto ele próprio adquirir
valor, bem entendido, não fatual, concernente a acontecimentos.
E preciso que acrescentemos um tom suplementar para contar isto de
uma maneira e numa dimensão puramente descritiva. A atitude que permane­
ce espontânea, a atitude tradicional, tão ambígua da criancinha que começa a
contar-lhes os seus sonhos, que lhes diz: “esta noite sonhei”. Se observa as
coisas, tudo se passa como se, em algum momento, tivesse sido descoberta
para a criança a possibilidade que ela tem de exprimir essas coisas, e é no
ponto que muito frequentemente não se pode verdadeiramente saber, na idade
em que começa esta atividade confidencial da criança concernente aos seus
sonhos, se no fim das contas aquilo que ela lhes conta é verdadeiramente algo
que ela sonhou ou algo que ela lhes traz porque sabe que se sonha e se pode
contar sonhos.
Estes sonhos da criança têm esta característica de estar no limite da
fabulação, como o contato com uma criança o faz sentir. Mas justamente se a
criança o produz assim e o conta assim, é com o caráter desse pequeno e índice
de enunciação E(e). Algo está para além disso. Com isto justamente ela joga
com vocês o jogo de uma pergunta, de uma fascinação. E para dizer tudo, a
fórmula de toda espécie de relato referente ao sonho, quer seja intra ou extra
analítico sendo este E(e), o que nós diremos ser a fórmula geral de algo que,
portanto, não é particular ao sonho, é aquela do enigma.
A partir daí, que significa o que Freud quer dizer? Vejamo-lo no nosso
pequeno grafo que se propõe assim neste caso, ou seja que se supomos que a
produção do sonho... Para ver como vamos servir-nos deste grafo para proje­
tar aí os diferentes elementos desta formalização. Pode haver várias maneiras.
O interesse estrutural do grafo, é que é uma estrutura que nos permite situar a
relação do sujeito com o significante, na medida em que necessariamente, des­
de que o sujeito é tomado no significante -e é essencial que ele aí seja tomado,
é o que o define, é a relação do indivíduo com o significante, uma estrutura. E
uma rede impõe-se nesse momento e permanece de algum modo sempre fun­
damental. .
Procuremos ver aqui como podemos repartir as diversas funções
implicadas na enunciação do sonho no dito grafo neste caso. Aquilo de que se
trata, o ponto pivô, o enunciado diria eu total, o sonho -neste fato que criação

152
espontânea, ele se apresenta como algo que no seu primeiro aspecto tem um
caráter de relativa totalidade- o fato de um certo bloco. Se diz: “tive um so­
nho”, distingue-se este do outro sonho que se seguiu e que não é o mesmo. Ele
tem o caráter deste discurso, reflete-se enquanto nada aí faz aparecer, no mo­
mento em que nós o fazemos, essa fragmentação, essa decomposição do
significante sobre o qual temos toda a espécie de índices retroativos que esta
fragmentação está aí incidindo na função de todo discurso. Mas o discurso, na
medida em que o sujeito se agarra a ele, suspende a cada instante nossa esco-,
lha no momento de emitir um discurso, sem isso a nossa maneira de comunicar
teria algo de outro modo árduo.
Esse sonho nos é dado como um-todo. E este enunciado que se produz,
se posso dizer, no nível inferior do grafo. É uma cadeia significante que se
apresenta sob esta forma tanto mais global quanto ela é fechada, quanto ela se
apresenta justamente sob a forma habitual da linguagem, o quanto ela é algo
sobre o quê o sujeito tem de fazer um relato, uma enunciação, situar-se relati­
vamente a ela, tem de lhes fazer passar justamente com todos os seus acentos,
tem que pôr aí a maior ou menor adesão relativamente aquilo que lhes conta.
Quer dizer que em suma é ao nível do discurso para o outro, que é também o
discurso em que o sujeito o assume, esse sonho, que vai produzir-se esse algo
que acompanha o sonho e o comenta de algum modo a partir da sua posição
mais ou menos assumida pelo sujeito. Quer dizer que aqui, durante o relato do
que se passou, ele se apresenta já ele próprio no interior disso como o enunci­
ado do sonho. E aqui, no discurso em que o sujeito o assume para vocês a quem
ele o conta, que vamos ver se produzirem esses diferentes elementos, essas
diferentes acentuações que são sempre acentuações de maior ou menor
assunção pelo sujeito. Parece-me, pareceu-me que isto se passou nesse mo­
mento.
Nesse momento tudo se passou como se tal sujeito fosse ao mesmo
tempo tal outro, ou se transformasse em tal outro. E o que eu chamei há pouco
os seus acentos; esses diversos modos de assunção do vivido do sonho pelo
sujeito situam-se aqui na linha que é a do Eu [Je] da enunciação, na medida em
que justamente frente a este acontecimento psíquico, ele o assume mais ou
menos na sua enunciação.
O que isto quer dizer, senão que o que temos ai, é justamente o que no
nosso grafo, se apresenta sob a forma da linha fragmentada, descontínua, que
ele lhes indica como sendo a característica do que se articula ao nível da

153
riiiiin bn, Hu, i'iii|iuuiliH’ilu iniplii ii o sip,n11ii'iinle. I’ois, iiolcm islo, sc é vcidndc
i|iic n i|in' jii’.l11 mu ii Iiiihii iiilcnor, nqueln sobre a qual cm caiia ocasião coloca­
mos essa lelioaçilo do código sobre a mensagem que à cada instante dá à
lin.se o seu sentido, essa unidade frásica é de amplitude diversa: no fim de um
longo discurso, ao fim do meu seminário ou ao fim dos meus seminários, há algo
que fecha retroativamente o sentido do que lhes tenho enunciado anteriormen­
te, mas até um certo ponto, de cada uma das partes do meu discurso, cada um
dos parágrafos, há algo que se forma. Trata-se de saber em que grau o mais
reduzido é preciso determo-nos para que esse efeito que nós chamamos o
efeito de significação enquanto é algo essencialmente novo, que vai além do
que se chama os empregos do significante, constitui uma frase, constitui justa­
mente essa criação de significação feita na linguagem.
Onde é que isso se detém? Isso se detém evidentemente na menor uni­
dade que existe e que é a frase, justamente nessa unidade que neste caso se
apresenta de uma maneira totalmente clara no relato do sonho sob a forma
disto que o sujeito assume ou não assume, ou crê ou não crê, ou relata alguma
coisa, ou duvida daquilo que nos conta. O que quero dizer na ocasião, é que
esta linha, ou fecho da enunciação, ela se faz sobre fragmentos de frases que
podem ser mais curtos que o conjunto daquilo que é contado. O sonho, a propó­
sito de tal ou tal parte do sonho, lhes traz uma assunção pelo sujeito, uma
tomada enunciativa de um alcance mais curto que o conjunto do sonho. Nou­
tros termos, ela introduz uma possibilidade de fragmentação de amplitude muito
mais curta ao nível superior do que ao nivel inferior.
Isto nos põe na via do que implica Freud dizendo que este acento de
assunção pelo sujeito faz parte dos pensamentos latentes do sonho. É dizer-nos
que é ao nível da enunciação e na medida em que ela implica essa forma de
valorização significante que está implicado pela associação livre; ou seja que se
a cadeia significante tem dois aspectos:
- aquele que é a unidade de seu sentido, a significação frásica, o
monolitismo da frase, o holofrasismo ou mais exatamente, ou seja que uma
frase pode ser tomada como tendo um sentido único, como sendo algo que
forma um significante, digamos transitório, mas que, no tempo em que ele exis­
te, se mantém só como tal;
- e a outra face do significante, que se chama associação livre, compor­
ta que [para] cada um dos elementos dessa frase e tão longe quanto se possa ir
na decomposição, detendo-se estritamente no elemento fonético, alguma coisa

154
pode intervir que, fazendo saltar um desses signifícantes, implanta no seu lugar
um outro significante que o suplanta. E é aí que jaz a propriedade do significante:
é algo que se relaciona com esse lado do querer do sujeito. Alguma coisa, um
incidente, reçruza-o à cada instante, que implica -sem que o sujeito o saiba e de
uma maneira para ele inconsciente- que nesse mesmo discurso, dirigido para
além de sua intenção, algo na escolha desses elementos intervém, do qual ve­
mos emergir à superfície os efeitos, por exemplo, sob a forma mais elementar
do lapso fonemático: que se trata de uma sílaba modificada numa palavra, que
mostra aí a presença de uma outra cadeia significante que pode vir interceptar
a primeira e entrar, implantar um outro sentido.
Isto nos é indicado por Freud: de quem, ao nível da enunciação, ao nível
aparentemente portanto o mais elaborado da assunção do sujeito (no ponto em
que o Eu [Je] se põe como consciente em relação à, não diremos a sua própria
produção, já que justamente o enigma permanece inteiro), de quem é esse
enunciado do qual se fala? O sujeito não decide. Se diz “sonhei”, é com uma
conotação e um acento próprio que faz que aquele que sonhou, é apesar de
tudo algo que, relativamente a ele, se apresenta como problemático. O sujeito
desta enunciação contida no enunciado do qual se trata e com um ponto de
interrogação, foi considerado durante muito tempo como sendo “o Deus”, an­
tes de se tomar o “ele mesmo” do sujeito (mais ou menos com Aristóteles).
Para voltar a este para além do sujeito que é o inconsciente freudiano,
toda uma oscilação, toda uma vacilação se produz que deixa uma permanente
questão sobre sua alteridade. E o que, disto, o sujeito retoma em seguida é da
mesma natureza fragmentante, tem o mesmo valor de elemento significante
que o que se produz no fenômeno espontâneo de substituição, de
desordenamento do significante, que é o que Freud nos mostra por outro lado
ser a via normal para decifrar o sentido do sonho. Noutros termos, a fragmen­
tação que se produz ao nível da enunciação -enquanto a enunciação é assunção
do sonho pelo sujeito- é algo que Freud nos diz que está no mesmo plano e é da
mesma natureza que isto, de que o resto da doutrina nos mostra que é a via da
interpretação do sonho, ou seja a decomposição significante máxima, o soletrar
dos elementos signifícantes na medida em que é neste soletrar que vai residir a
valorização das possibilidades do sonho; quer dizer, destes entrecruzamentos,
destes intervalos que ele deixa e que não aparecem senão na medida em que a
cadeia significante é posta em relação, é interceptada, entrecruzada por todas
as outras cadeias que, a propósito de cada um dos elementos do sonho podem

155
entrecruzar-se, enredar-se com a primeira.
Noutros termos, é na medida, e de uma maneira mais exemplar a propó­
sito do sonho do que relativamente a qualquer outro discurso, é na medida em
que no discurso do sujeito, no discurso atual, fazemos vacilar, deixamos desli-
gar-se da significação atual o que de significante está implicado nesta enunciação;
é nesta via que nos aproximamos do que no sujeito é chamado, na doutrina
freudiana, “inconsciente”.
E na medida em que o significante está implicado, é nas possibilidades de
ruptura, nos pontos de ruptura desse inconsciente que jaz aquilo de que segui­
mos o rastro, aquilo que estamos a procurar, ou seja o que se passou de essen­
cial no sujeito que mantém certos signifícantes no recalcamento. E isto vai nos
permitir seguir a via precisamente de seu desejo, ou seja desse algo do sujeito
que, nessa tomada na rede significante é mantido, deve por assim dizer, para
ser revelado, passar através dessas malhas, é submetido a essa filtragem, a
essa crivação do significante, e é o que temos, por fim, de restituir e de restau­
rar no discurso do sujeito.
Como podemos fazê-lo? Que significa que o possamos fazer?
Disse-lhes, o desejo está essencialmente ligado pela doutrina, pela práti­
ca, pela experiência freudiana, nessa posição: ele está excluído, enigmático, ou
se coloca em relação ao sujeito como estando essencialmente ligado à existên­
cia do significante, recalcado como tal, e sua restituição, sua restauração está
ligada ao retomo desses signifícantes.
Mas isto não é dizer que a restituição desses significantes enuncia pura
e simplesmente o desejo. Uma coisa é o que se articula nesses significantes
recalcados e que é sempre uma demanda, outra coisa é o desejo, à medida que
o desejo é algo pelo que o sujeito se situa, pelo fato da existência do discurso,
relativamente a essa demanda. Não é do que ele pede que se trata, é do que ele
é em função dessa demanda e o que ele é, na medida em que a demanda está
recalcada, está mascarada, e é isto que se exprime de uma maneira fechada no
fantasma de seu desejo, é a sua relação a um ser do qual não seria questão se
não houvesse aí a demanda, o discurso que é fundamentalmente a linguagem,
mas do qual começa a ser questão a partir do momento em que a linguagem
introduz esta dimensão do ser e ao mesmo tempo a oculta. A restituição do
sentido do fantasma, quer dizer de algo imaginário, vem entre as duas linhas,
entre o enunciado da intenção do sujeito e esse algo que de uma maneira de­
composta ele liga, essa intenção profundamente fragmentada, refratada pela

156
língua. Entre as duas está esse fantasma onde habitualmente ele suspende sua
relação ao ser.
Mas esse fantasma é sempre enigmático, mais do que qualquer outra
coisa. E que quer ele? Que nós o interpretemos! Interpretar o desejo é restituir
isto a que o sujeito não pode aceder sozinho, ou seja o afeto que designa, ao
nível desse desejo que é o seu -eu falo do desejo preciso que intervém em tal
ou tal incidente da vida dõ sujeito, do desejo masoquista, do desejo-suicida,
eventualmente do desejo oblativo. Trata-se de que isto, que se produz sob esta
forma fechada para o sujeito, ao retomar seu lugar, seu sentido relativamente
ao discurso mascarado que está implicado nesse desejo, retome seu sentido
relativamente ao ser, confronte o sujeito relativamente ao ser, retome seu sen­
tido verdadeiro, aquele que é por exemplo definido pelo que eu chamarei os
afetos posicionais relativamente ao ser. É isto que chamamos amor, ódio ou
ignorância essencialmente, e muitos outros termos ainda que precisaremos exa­
minar e catalogar. Na medida em que o que se chama afeto não é esse algo de
pura e simplesmente opaco e fechado que seria uma espécie de para além do
discurso, uma espécie de conjunto, de nó vivido de que não saberiamos de que
céu ele nos cai, mas na medida em que o afeto é muito precisamente e sempre
algo que se conota numa certa posição do sujeito relativamente ao ser. Quero
dizer relativamente ao ser na medida em que o que se propõe a ele na sua
dimensão fundamental é simbólico, ou então que, pelo contrário, no interior
desse simbólico, ele representa uma erupção do real, esta vez muito pertur­
badora.
E é muito difícil não perceber que um afeto fundamental como o da
cólera não é senão isto: o real que chega no momento em que fizemos uma bela
trama simbólica, onde tudo vai muito bem, a ordem, a lei, nosso mérito e nossa
boa vontade... Apercebe-se de repente que as cavilhas não entram nos bura-
quinhos! É isto, a origem do afeto da cólera: tudo parece bem para a ponte de
barcos no Bósforo52 mas há uma tempestade, que faz agitar ornar. Toda a
cólera, é fazer agitar o mar.
E depois igualmente, é algo que se relaciona com a intrusão do próprio
desejo e que é também algo que determina uma forma de afeto a qual voltare­
mos. Mas o afeto é essencialmente e como tal, pelo menos para toda uma

52 HÉRODOTE, L 'Enquéte, VII, 34-35 (trad. A. Barguet), Paris, 1964, La Pléiade, Gallimard.

157
categoria fundamental de afetos, conotação característica de uma posição do
sujeito, de uma posição que se situa (se vemos essencialmente as posições
possíveis) nesse pôr em jogo, pôr em trabalho, pôr em obra de si mesmo em
relação às linhas necessárias que lhe impõe como tal seu envolvimento no
significante.
Vejamos agora um exemplo. Este exemplo, tomei-o na posteridade de
Freud. Permite-nos articular bem o que é o [desejo na] análise. E para proce­
der de um modo que não deixa lugar a uma escolha especialmente arbitrária,
tomei o capítulo V de Dream Analysis53 de Ella Sharpe, em que a autora toma
como exemplo a análise de um sonho simples -quero dizer, de um sonho que
ela toma como tal levando tanto quanto possível até o fim sua análise. Vocês
sabem que nos capítulos precedentes, ela mostrou um certo número de pers­
pectivas, de leis, de mecanismos, por exemplo a incidência do sonho na prática
analítica, ou mesmo mais longe, os problemas colocados pela análise do sonho
ou do que se passa nos sonhos das pessoas analisadas. O que constitui o ponto
pivô desse livro, é justamente o capítulo em que ela nos dá um exemplo singular
de um sonho exemplar no qual ela põe em jogo, em obra, ela ilustra tudo o que
ela pode ter por outro lado para nos apresentar concernente à maneira como a
prática analítica nos mostra que devemos ser efetivamente guiados na análise
de um sonho -e nomeadamente este aspecto essencial que é o que a prática
traz de novo depois da Traumdeutung, que um sonho não é simplesmente algo
que se revelou ter uma significância (é a Traumdeutung') mas algo que, na
comunicação analítica, no diálogo analítico, vem fazer o seu papel atual, não em
tal momento da análise como em tal outro, e que justamente o sonho vem de
uma maneira ativa, determinada, acompanhar o discurso analítico para iluminá-
lo, para prolongar seus caminhos, que o sonho é um sonho no fim das contas
feito não somente para a análise mas muitas vezes para o analista.
O sonho, no interior da análise se encontra, em suma, como portador de
uma mensagem. A autora em questão não recua, como não recuam os autores
que desde então tiveram que falar da análise dos sonhos. Trata-se unicamente
de saber qual pensamento, qual acento lhe daremos. E, vocês o sabem, chamei
a atenção para isso no meu relato de Royaumont, não é a menor questão que
põe a questão do pensamento relativamente ao sónho, que certos autores crei-

” SHARPE FREEMAN E.: Dream Analysis (1937), London,1978, The Hogarth Press and the
Institute of Psycho-analysis.

< 158
am poder afastar-se, na medida em que eles vêem aí algo como uma atividade.
Pelo menos, seguramente, é algo... Quero dizer que o fato, com efeito,
de que o sonho se apresenta como uma matéria de discurso, como matéria de
elaboração discursiva é aigo que, se não nos apercebemos que o inconsciente
não está senão nas latèncias, não de não sei que alforje psíquico onde estaria
em estado inconstituido, mas realmente, enquanto inconsciente, aquém ou -é
outra questão- imanente à formulação do sujeito, ao discurso dele próprio, à
sua enunciação, veremos como é perfeitamente legítimo tomar o sonho, como
ele sempre foi considerado, como “a via régia” do inconsciente.
Eis, portanto, como as coisas se apresentam nesse sonho que a autora
nos apresenta. Vou começar por ler o próprio sonho, vou mostrar a maneira
como os problemas se colocam a propósito dele. Ela dá-nos primeiro uma bre­
ve advertência sobre o assunto, que teremos de ter em consideração. Todo o
capítulo deverá de resto ser revisto, criticado, para nos permitir apreender como
o que ela nos enuncia é ao mesmo tempo, melhor que em qualquer outro regis­
tro, aplicável sobre as referências que são as nossas -e ao mesmo tempo,
como essas referências poderíam talvez permitir que nos orientássemos me­
lhor.
O paciente chega à sessão nesse dia em certas condições que relembrarei
daqui a pouco. É somente após certas associações que, como vão ver são
extremamente importantes, que ele se lembra: «isto lembra-me...» - voltarei
a estas associações naturais.
«Não sei porquê, acabo justamente de pensar, diz ele, no meu
sonho da noite passada. Era um sonho terrível, tremendous5*. Devo ter
sonhado durante uma eternidade [...]; não vou aborrecê-la com isso
pela simples razão de que não me lembro mais. Mas era um sonho
muito excitante, pleno de incidentes e pleno de interesse. Acordei com
calor e transpirando...»
Ele diz que não se lembra dessa infinidade de sonho, desse mar de so­
nho, mas o que surge é isto, [é] uma cena bastante curta que ele vai nos contar.
«Sonhei que fazia uma viagem com minha mulher...», há aqui uma
bonita nuance que talvez não seja suficientemente muito acentuada quanto à
ordem normal dos complementos na língua inglesa. Creio no entanto não me
enganar ao dizer que «Havia empreendido uma viagem com minha mu-

!i Tremendous: i. Enorme, gigantesco, interminável. 2. Terrível.

159
lher ao redor do mundo...» é algo que merece ser notado. Há uma diferença
entre “uma viagem ao redor do mundo còm minha mulher”, o que parecería a
ordem francesa normal dos complementos circunstanciais, e «empreendí uma
viagem com minha mulher ao redor do mundo». Creio que aqui a sensibili­
dade do ouvido em inglês deve ser a mesma.
«[...] chegamos à Tchecoslováquia, onde aconteciam todas as espé­
cies de coisas. Eu encontrava uma mulher na estrada, uma estrada que
agora me faz lembrar a estrada que lhe descreví em dois outros sonhos há
algum tempo, e nos quais eu fazia um jogo sexual com uma mulher dian­
te de uma outra mulher.» E sobre isto, é com razão que a autora muda a
tipografia, porque é uma reflexão lateral: «E assim que isso se passava
neste sonho».
«Desta vez (ele retoma o relato do sonho) minha mulher estava all
enquanto se produzia o acontecimento sexual. A mulher que eu encontra­
va tinha um aspecto muito apaixonado, very passionned looking». E aí,
modificação tipográfica com razão porque é um comentário, é já uma associ­
ação. «E isto fazia-me lembrar uma mulher que tinha visto na vés­
pera num restaurante. Ela era morena, dark, e tinha os lábios muito
cheios, muito vermelhos, passionned looking, (mesma expressão, mes­
mo aspecto apaixonado) e é evidente que se eu lhe tivesse dado o me­
nor encorajamento, ela teria respondido. Ela pode muito bem ter esti­
mulado este sonho. Neste sonho, a mulher queria ter comigo uma
relação sexual e tomava a iniciativa, o que, como você sabe, é uma
coisa que me ajuda muito,» e ele comenta «se a mulher quer fazer
isso, sou muito ajudado».
«No sonho, a mulher realmente estava em cima de mim; isto aca­
ba de me vir à cabeça. Ela tinha evidentemente a intenção de introduzir
nela o meu pênis.[...]Eu não estava de acordo, mas ela estava muito
desapontada, de modo que eu pensava que devia masturbá-la, but she
was so disappointed I thought I would masturbate her».
Aqui, retomada do comentário: «Isto soa mal, wrong, usar este
verbo de um modo transitivo, deve dizer-se «/ masturbated, eu mas­
turbava-me». O próprio do verbo inglês é não ter a forma reflexiva que
tem na língua francesa. Quando se diz 1 masturbate (em inglês) isto quer
dizer “Eu masturbo-me”. «[...] isto é absolutamente correto, mas é
absolutamente incorreto, observa ele, usar a palavra transitivamen-

160
)
te»55. A analista não deixa de sobressaltar com esta observação do sujeito...
E o sujeito, a este propósito, faz com efeito algumas observações confirmativas,
começa a associar sobre as suas próprias masturbações. De resto não fica por
aí.
Eis o enunciado deste sonho. Devo atrair o interesse para o que vamos
dizer. É, devo dizer, um modo de exposição absolutamente arbitrário, de certa
maneira, eu poderia dispensá-lo. Também não creiam que seja a via sistemáti­
ca na qual lhes aconselho que se apoiem para interpretar um sonho. É somente
uma maneira de colocar um marco que mostre o que nós vamos procurar ver e
demonstrar.
Do mesmo modo que no sonho de Freud, tomado em Freud, sonho de
morte de que falamos, pudemos designar de uma maneira em que puderam ver
ao mesmo tempo que ela não deixa de ser artificiosa, quais são os signifícantes
do ele está morto «segundo seu voto», que seu filho o desejava; do mesmo
modo aqui de certa maneira vão ver, o ponto onde culmina efetivamente o
fantasma do sonho, ou seja «Eu não estava de acordo, mas ela estava muito
desapontada, de modo que eu pensava que eu devia masturbá-la», com a
observação que o sujeito faz logo a seguir, que «é absolutamente incorreto
empregar este verbo transitivamente»; toda a análise do sonho nos vai
mostrar que é efetivamente restabelecendo essa intransitividade do verbo que
nós encontramos o sentido verdadeiro daquilo de que se trata,
Ela está «muito desapontada...» com quê? Parece que todo o texto do
sonho o indica suficientemente. Ou seja com o fato de que o nosso sujeito não
está nada participativo, se bem que indique que tudo no sonho seja feito para
incitá-lo a isso -ou seja que ele seria normalmente grandemente ajudado numa
tal posição. Sem dúvida é disto que se trata e diremos que a segunda parte da
frase cai bem no que Freud nos articula como sendo uma das características da
formação do sonho, ou seja a elaboração secundária: que ele se apresenta
como tendo um conteúdo compreensível.
No entanto o sujeito faz notar ele próprio que isso não vem só, já que o
proprio verbo que emprega é algo sobre o que nos indica que não acha que esse
emprego soe bem. Segundo mesmo a aplicação da fórmula que nos dá Freud,
devemos reter esta observação do sujeito como nos colocando na via, na pista

it sounds quite wrong to use that verb transitively, One can say "I masturbate" and that is
correct, but it is all wrong to use the word transitively".

161
daquilo de que se trata, ou seja do pensamento do sonho. E aí que está o
desejo. Dizendo-nos que «Ithought» deve comportar como continuação que a
frase seja restituída sob a forma seguinte: I thought she could masturbate, o
que é a forma normal na qual o voto se apresentaria, “Que ela se masturbe se
não está contente!”, o sujeito indica-nos aqui com bastante energia que a
masturbação se refere a uma atividade que não é transitiva no sentido de pas­
sar do sujeito a um outro mas, como ele se exprime, intransitiva. O que quer
dizer neste caso uma atividade do sujeito sobre ele próprio. Ele à sublinha cla­
ramente: quando se diz I masturbated, isto quer dizer “Eu masturbei-me”.
Isto é um procedimento de exposição, porque o importante não é, evi­
dentemente, decidir neste assunto -se bem que, repito-o, seja importante per­
cebermos que aqui, desde já, imediatamente, a primeira indicação que nos dá o
sujeito seja uma indicação no sentido da retificação da articulação significante.
O que é que isto nos permite, esta retificação? É mais ou menos isto:
tudo o que vamos agora ter que considerar é, de início, a entrada em jogo desta
cena, desta sessão. A autora no-la dá através de uma descrição que não é
necessariamente uma descrição geral do comportamento do seu sujeito; ela vai
mesmo até dar-nos um pequeno preâmbulo no que concerne à sua constelação
psíquica. Em suma, teremos que voltar a isto já que o que ela pôs nessas pre­
missas se reencontrará nos seus resultados e que esses resultados, teremos
que criticá-los.
Para ir imediatamente ao essencial, quero dizer ao que nos vai permitir
avançar, vamos dizer que ela nos faz notar que este sujeito é um sujeito eviden­
temente muito dotado e que tem um comportamento..., ver-se-á isto cada vez
melhor à medida que vamos centrar as coisas. E um senhor de uma certa
idade, já casado, que tem uma atividade, nomeadamente no tribunal. E ela nos
diz, isto vale a pena ser relevado nos próprios termos de que o sujeito se serve,
que «desde que o sujeito começou sua atividade profissional, desenvolveu fobi­
as severas. Pondo as coisas sucintamente, (é a isto que se limita a exposição do
mecanismo da fobia) isto significa, diz ela, (e nós confiamos totalmente porque
é uma das melhores analistas, uma das mais intuitivas e penetrantes que tenha
existido) não que ele não ouse trabalhar com sucesso, successfully, mas que
ele tem de parar de trabalhar na realidade porque não seria senão demasiado
successfull».
A nota que a analista traz aqui, que não é de uma afinidade com o fra­
casso que se trata mas que o sujeito pára, se pode-se dizer, diante da possibili­

162
dade imediata de pôr em relêvo as suas facilidades, é algo que merece ser
retido. Verão como o usaremos em seguida.
Deixemos de lado o que, desde o início, a analista indica como sendo
algo que aqui pode ser posto em relação com o pai. Voltaremos 2»isto. Saiba­
mos somente que 0 pai morreu quando 0 sujeito tinha três anos e que durante
muito tempo 0 sujeito não faz outra referência a esse pai senão precisamente
dizer que «ele está morto». O que, muito justamente, retém a atenção da ana­
lista, neste sentido que ela compreende, 0 que é bem evidente, que ele não quer
recordar que 0 seu pai tenha vivido -isto não parece poder ser contestado- e
que «quando ele se recorda da vida do seu pai, seguramente, diz ela, é um
acontecimento absolutamente startling», assusta-o, produz nele uma espécie
de terror.
Rapidamente, a posição do sujeito da análise implicará que 0 voto de
morte que 0 sujeito pôde ter relativamente ao seu pai é aqui a mola deste
esquecimento, e de toda a articulação do seu desejo, na medida em que 0 sonho
o revela. Compreendamos bem, no entanto, que nada, vão ver, nos indica de
nenhum modo essa intenção agressiva enquanto estaria na origem de um medo
de represálias. É justamente o que um estudo atento do sonho nos vai permitir
precisar. Com efeito, 0 que é que nos diz a analista deste sujeito? Ela nos diz
isto: «Nesse dia como nos outros dias, não o ouvi chegar». Aí um pequeno
parágrafo muito brilhante relativo à apresentação extra-verbal do sujeito, e que
corresponde a uma certa moda. Ou seja todos esses pequenos incidentes de
seu comportamento que um analista que tem olho sabe apanhar. «Este, nos diz
ela, nunca 0 ouço chegar». Compreende-se no contexto que se chega ao seu
gabinete subindo uma escada: «Há aqueles que sobem os degraus dois a dois, e
esses eu os identifico por um pff.pff»', a palavra inglesa, [u thud], não tem
equivalente: em inglês, quer dizer um barulho abafado, surdo, esse barulho que
faz um pé sobre um degrau de escada coberto com um carpete, e que se toma
um pouco mais forte quando se sobem os degraus dois a dois. «Um outro
chega, precipita-se...» Todo o capítulo é assim, e é literariamente muito saboro­
so. É, de resto, um puro desvio porque a coisa importante é 0 que faz 0 pacien­
te.
O paciente tem essa atitude de uma perfeita correção um pouco afetada
«que não muda nunca. Vai sempre para 0 divã da mesma maneira. Faz sempre
uma pequena saudação perfeitamente convencional com 0 mesmo Sorriso, um
sorriso absolutamente simpático, que não tem nada de forçado e que também

163
não cobre de uma forma manifesta intenções hostis». Aqui, o tato da analista
orienta-se muito bem, «não há nada que possa revelar que tal coisa possa exis­
tir. [...] nada é deixado ao acaso, as roupas são perfeitamente corretas, [...]
não há um cabelo desalinhado, [...] Ele se instala, ele cruza as mãos, ele está
muito tranqüilo...» E nunca nenhuma espécie de acontecimento absolutamente
imediato e perturbador como poderia ser o fato de que, justamente, antes de
partir, a sua criada lhe tivesse feito alguma coisa ou o tivesse atrasado, só se
saberá isso depois de um longo momento completamente no fim da sessão, ou
até da sessão seguinte. «O que ele contará durante toda a hora, fa-lo-á de um
modo claro, com uma excelente dicção, sem nenhuma hesitação, com muitas
pausas. Com essa voz distinta e sempre igual, ele exprime tudo o que pensa e
nunca, acrescenta ela, o que sente».
O que se deve pensar de uma distinção do pensamento e do sentimento,
claro que estaremos todos de acordo diante de uma apresentação como esta, o
importante é evidentemente saber o que significa este modo particular de co­
municação. Qualquer analista pensaria que há neste sujeito uma coisa que ele
teme, uma espécie de esterilização do texto da sessão, esta coisa que deve
fazer desejar ao analista que tenhamos na sessão algo de mais vivido. Mas,
naturalmente, o fato de se exprimir assim deve também ter um sentido. E a
ausência de sentimentos, como ela se exprime, não é algo que não tenha nada
a ver com a rubrica do capítulo sentimental.
Há pouco, falei do afeto como concernente à relação do sujeito com o
ser e revelando-a. Devemos perguntar-nos o que nesta ocasião pode, por esta
via, comunicar. É tanto mais oportuno perguntá-lo, quanto é exatamente sobre
isso, nesse dia, que se abre a sessão. E a discordância que há entre a maneira
como o analista aborda este problema desta espécie de [...] passando diante
dela, e a maneira que, ela própria o nota, o surpreende, mostra bem que espécie
de passo suplementar se deve fazer sobre a posição habitual do analista para,
justamente, apreciar de que é que se trata especialmente neste caso. Pois o
que começa a abrir-se aí, vê-lo-emos abrir-se cada vez mais até a intervenção
final da analista e ao seu fruto espantoso. Pois é espantoso não somente que
isso seja produzido, mas que isso esteja registrado como uma interpretação
exemplar pelo seu lado frutífero e satisfatório.
A analista, nesse dia, fica admirada com isto que no meio desse quadro
que se distingue por uma severa retidão, uma “compostura excessiva” do sujei­
to consigo mesmo, se produz alguma coisa que ela nunca até então ouviu. Ele

164
chega à porta e, mesmo antes de entrar, faz “hum, hum!” Ainda não é demais,
é a mais discreta das tosses. Era uma mulher muito brilhante, tudo o indica no
seu estilo; ela foi algo como professora primária antes de ser analista e é um
ponto de partida muito bom para a penetração dos fatos psicológicos. E é cer­
tamente uma mulher de grande talento.
Ela ouve essa «pequena tosse» como a chegada da pomba na Arca de
Noé. E uma anunciadora, aquela tosse: há algures, por trás, o lugar onde vivem
sentimentos. “Oh, mas nunca lhe falarei disso porque se eu disser uma palavra
ele vai voltar a esconder tudo!”, é a posição clássica nestes casos, nunca fazer
observações a um paciente numa certa etapa da sua análise, no momento em
que se trata de deixar que se manifeste, sobre o seu comportamento físico -a
sua maneira de tossir, de se deitar, de abotoar ou desabotoar seu casaco, tudo o
que comporta a atitude motriz reflexiva sobre si próprio, na medida em que ela
pode ter um valor de sinal, na medida em que isto toca profundamente o que é
do registro narcísico.
E aqui que se distingue a potência, a dimensão simbólica na medida em
que se estende, se espalha sobre tudo o que é do registro vocal; é que a mesma
regra não se aplicará de modo nenhum a algo como “uma pequena tosse”,
porque uma tosse, do que quer que se trate e independentemente de que isto
não dá a impressão de um acontecimento puramente somático, isto é da mes­
ma dimensão que esses “hum, hum...” esses “sim, sim...” que certos analistas
utilizam às vezes muito decisivamente, que têm decididamente todo o alcance
de um relançar.
A prova é que, para sua grande surpresa, é a primeira coisa de que lhe
fala o sujeito. Ele diz-lhe muito exatamente com sua voz habitual, sempre igual
mas muito deliberada:
«Estou a observar esta pequena tosse que tive mesmo antes de
entrar na sala. Nestes últimos dias tossi, apercebi-me disso, e pergun­
to a mim próprio se o notou. Hoje quando a criada que está embaixo me
disse para subir, preparei o meu espírito dizendo-me que não queria
tossir. Para minha grande contrariedade, tossi mesmo assim quando
acabei de subir a escada. E apesar de tudo desagradável que uma coisa
dessas nos possa acontecer, aborrecido, tanto mais aborrecido quanto
ela nos acontece em nós e por nós, por si mesmo, (ouçam) o que nós
não podemos controlar e que nós não controlamos. Perguntamo-nos
para que serve tal coisa, perguntamo-nos porque é que isto pode acon-

165
tecer, a que purpose pode servir unia pequena tosse cí.ste gênero».
A analista avança com a prudência da serpente e relança «Sim, a que
propósito pode servir?»
«Evidentemente, diz ele, é uma coisa que se é capaz de fazer se
se entra num quarto onde há amantes». Conta que fez alguma coisa seme­
lhante na sua infância, antes de entrar no quarto onde estava o seu irmão com
a sua girl-friend. Ele tossiu antes de entrar porque pensava que estavam tal­
vez se beijando e que era melhor que parassem antes e que, assim, se sentiríam '
menos embaraçados do que se ele os tivesse surpreendido.
Ela relança: «Para que é que isso pode servir, que você tussa antes de
entrar aqui?»
- «Sim, é um pouco absurdo, diz ele, porque naturalmente, não posso
perguntar-me se há alguém aqui, porque se me disseram embaixo para subir é
porque já não há ninguém. [...] Não há nenhuma espécie de razão que eu possa
ver para essa pequena tosse. E isso me traz à memória uma fantasia, um fan­
tasma que eu tive outrora (quando era criança). Era um fantasma que se refe­
ria a isto, estar num quarto onde não devia estar e pensar que alguém poderia
entrar, pensando que eu estava ali. E então eu pensava para impedir que al­
guém entrasse, coming in, e me encontrasse ali, que eu poderia ladrar como
um cão. Isso disfarçaria a minha presença, porque aquele que poderia entrar se
diria: “Oh, é só um cão que está aqui!»
- «A dog?» relança a analista com prudência.
- «Isto lembra-me, continua o paciente sem dificuldade, um cão
que veio esfregar-se contra a minha perna, realmente, ele se mastur­
bava. E eu tinha bastante vergonha de lhe contar isto porque não o
impedi, deixei-o continuar, e alguém teria podido entrar». Aqui ele tosse
ligeiramente e é aqui que ele encadeia seu sonho.
Retomaremos isto em pormenor na próxima vez, mas desde já, será que
não vemos que aqui a própria recordação do sonho veio imediatamente depois
de uma mensagem que, muito provavelmente -de resto a autora evidentemen­
te não duvidará disso e fa-lo-á entrar na análise do sonho, e mesmo no primeiro
plano- esta «pequena tosse» era uma mensagem, mas trata-se de saber de
quê.
Mas era por outro lado, na medida em que o sujeito falou dela, quer dizer
na medida em que ele introduziu o sonho, uma mensagem em segundo grau. Ou
seja da maneira mais formal, não inconsciente: uma mensagem que era uma

166 \
mensagem, já que o sujeito não disse simplesmente que tossiu. Mesmo se ele
tivesse dito “Tossi”, era já uma mensagem. Mas além disso ele diz “Tossi e isso
quer dizer alguma coisa” e imediatamente depois, começa a contar-nos históri­
as que são singularmente sugestivas. Isto quer dizer evidentemente: “eu estou
aqui, se você está fazendo alguma coisa que a diverte e que não a divertiría que
fosse visto, é tempo de lhe pôr um fim”.
Mas não seria ver justamente aquilo de que se trata se não tivéssemos
em conta também aquilo que, ao mesmo tempo, é trazido. Ou seja isto que se
apresenta como tendo todos os aspectos do fantasma; primeiro porque o sujeito
o apresenta como tal, e como um fantasma desenvolvido na sua infância, e
além disso porque talvez, se o fantasma se [desenvolveu] relativamente a um
outro objeto, é absolutamente claro que nada o realiza melhor do que este fan­
tasma, aquele de que ele nos fala quando nos diz: “pensei dissimular minha
presença -direi como tal, como presença de me ver, o sujeito, num quarto-
precisamente fazendo algo que é bem evidente que seria exatamente feito para
chamar a atenção, ou seja ladrar”.
Isto tem todas as características do fantasma que preenche melhor as
formas do sujeito na medida em que é pelo efeito do significante que ele se
encontra protegido. Ou seja o uso pela criança do que se apresenta como sen­
do já significantes naturais para servir de atributos a alguma coisa que se trata
de significar (a criança que chama um cão “au-au”). Aqui estamos incluídos
numa atividade fantasmática: é o próprio sujeito que se atribui o “au-au”. Se,
em suma, aqui, acontece que ele assinala a sua presença, de fato, ele assinala-
a justamente enquanto no fantasma-este fantasma sendo totalmente inaplicável-
é pela sua própria manifestação, pela sua própria fala que ele é suposto tomar-
se outro que ele não é, expulsar-se mesmo do domínio da fala, se fazer animal,
tomar-se ausente, literalmente naturalizado. Não se irá verificar se ele está ali,
porque ele se terá feito, apresentado, articulado exatamente num significante o
mais elementar, como sendo não “Não há nada aqui” mas, literalmente, “Não
há ninguém”. E verdadeiramente, literalmente o que nos anuncia o sujeito no
seu fantasma: na medida em que estou na presença do outro, não sou ninguém.
É o “Onde é que ele está” de Ulisses diante do Ciclope56.
Isto não são senão elementos. Mas vamos ver levando a análise mais

ss HOMÈRE: Odyssée (trad. V. Bérard), Paris, 1955, La Pléiade, Gallimard, Rhapsodie IX, p.
674-676.

167
longe que o que o sujeito associou ao seu sonho, que vai nos permitir ver como
se apresentam as coisas, ou seja em que sentido e como é que ele não é nin­
guém. A coisa não vai sem correlatives do lado precisamente do outro que se
trata aqui de prevenir, ou seja na ocasião que acontece ser, como no sonho,
uma mulher -o que não está certamente por nada na situação, esta relação
com a mulher como tal. O que vai nos permitir articular relativamente a esse
algo que o sujeito não é, não pode ser, vão ver, é algo que nos dirigirá para o
mais fundamental, já o dissemos, dos símbolos relativos à identificação do sujei­
to. Se o sujeito quer absolutamente que, como tudo o indica, a sua parceira
feminina se masturbe, se ocupe dela, é seguramente para que ela não se ocupe
dele. Porque é que ele não quer que ela se ocupe dele, e como não o quer, é
também o que hoje ao fim normal do tempo que nos é atribuído para esta
sessão não nos permite articular e que remeteremos para a próxima vez.

168
Lição 9
21 de janeiro de 1959

Na última vez ficamos em meio à análise do que Ella Sharpe chama


sonho singular, único, ao qual ela consagra um capítulo para onde converge a
parte ascendente de seu livro, e logo a seguir os complementos que acrescenta;
seu livro tendo a originalidade de ser um livro importante sobre os sonhos, feito
após três décadas de experiência analítica geral -se é que consideramos que
esses seminários de Ella Sharpe representam experiências referentes aos trin­
ta anos precedentes.
Esse sonho, que foi objeto de uma sessão de seu paciente, é um sonho
extremamente interessante, e os desenvolvimentos que ela dá, a conexão que
estabelece, não somente entre o que são associações do sonho propriamente
ditas, ou mesmo interpretações, mas também toda a mensagem da sessão no
seu conjunto -o mérito lhe deve ser reconhecido, pois indica nela uma grande
sensibilidade da direção, do sentido analitico. É, de outra parte, surpreendente
ver que esse sonho do qual lembrarei os termos (ela o interpreta, vê-lo-emos,
linha por linha como convém fazer), ela o interpreta no sentido de um desejo
ligado ao voto de onipotência no seu paciente, nós veremos isso em detalhe.
Justificadamente ou não mas, desde já, vocês devem com certeza pensar que,
se esse sonho pode interessar-nos, é aqui pelo viés por onde tentava mostrar-
lhes o que há de ambíguo e de enganador nesta noção unilateral, o que compor­
ta esse voto de onipotência, de possibilidades, de perspectivas de potência, a
que se pode chamar o voto neurótico.
Será que se trata sempre da onipotência do sujeito? Introduzí aqui esta

169
noção. É evidente que a onipotência de que se trata, ainda que seja a onipotên­
cia do discurso não implica minimamente que o sujeito se sinta o suporte e o
depositário: se tem de lidar com a onipotência do discurso, é por intermédio do
Outro que ele profere. Isto é esquecido, muito particularmente na orientação
que Ella Sharpe dá à sua interpretação do sonho. E para começar pelo fim,
verão como nós não chegaremos provavelmente a terminar isto nesta lição,
porque um trabalho tão elaborado levanta um mundo... Tanto mais um mundo,
quanto nos apercebemos afinal que quase nada foi dito -ainda que todos os
dias, esse seja o próprio terreno no qual operamos.
Começo então a indicar o que vai aparecer no fim. Veremos em detalhe
como ela argumenta com o seu paciente sobre o tema do seu voto de onipotên­
cia, e do seu «voto de onipotência agressiva»57, sublinha Ella Sharpe. E este
paciente do qual ela não nos dá absolutamente todas as coordenadas, mas a
quem acontece ter em primeiro plano as maiores dificuldades na sua profissão
-ele advoga- dificuldades cujo caráter neurótico é tão evidente que ela as
define de forma nuançada já que precisa que não se trata tanto de fracasso
quanto do medo de triunfar demasiado.
Ela tinha sublinhado na própria modulação da definição do sintoma algo
que merecia reter-nos pela divagem, a sutileza evidente da nuance aqui
introduzida na análise. O doente pois, que tem outras dificuldades do que as que
se produzem no seu trabalho, que tem, como ela própria o assinala, dificuldades
no conjunto das relações com os outros sujeitos -relações que vão além das
suas atividades profissionais, que podem exprimir-se muito especialmente no
jogo; e nomeadamente no jogo de tênis como veremos pelas indicações que ela
nos dá posteriormente sobre algumas outras sessões. Indica-nos a dificuldade
que tem para fazer o que lhe seria necessário quando quer ganhar um set, ou
um jogo, to comer, de cercar seu adversário, de encurralá-lo num canto da
quadra afim de lhe reenviar como é clássico, a sua bola para outro canto onde
não a apanhará. E o tipo do exemplo de dificuldades que o paciente segura­
mente tem. E não será um apoio de somenos que sintomas como esses possam
ser valorizados pela analista para confirmar que se trata no paciente de uma
dificuldade em manifestar sua potência, ou mais exatamente seu poder. Ela
intervirá, então de uma certa maneira, mostrar-se-á em suma toda contente

“Agressivephantasy of omnipotence".

170
com um certo número de reações que vão se seguir, o que será verdadeiramen­
te o momento-ápice em que ela vai indicar aonde está o desejo no sentido em
que verdadeiramente nós o definimos; quase se poderia dizer, assinalar que o
que ela aponta é exatamente para aquilo que nós situavamos numa certa refe­
rência em relação à demanda. Vocês o verão, é exatamente assim. Só que,
esse desejo, ela o interpreta de certa forma no sentido de um conflito agressivo,
ela o põe no plano de uma referência essencialmente e profundamente dual, do
conflito imaginário.
Mostrarei também porque é que se justifica que ela aborde as coisas sob
este viés. Somente coloco aqui a pergunta: será que podemos considerar como
uma sanção da oportunidade desse tipo de interpretação duas coisas que ela
própria vai nos declarar ser:
- a primeira, seguindo o primeiro esboço de sua interpretação do tipo
dual, do tipo interpretação da agressividade do sujeito na base de um retomo,
sobre uma transferência do voto de onipotência; ela nota esta coisa espantosa,
surpreendente num sujeito adulto, que o sujeito lhe traga este resultado de que
pela primeira vez desde os tempos imemoriais da sua infância, fez xixi na cama!
Voltaremos a isto em detalhe para mostrar onde se coloca o problema.
- E alguns dias após esta sessão que ela escolhe porque o sujeito conta
um belo sonho, mas também um sonho que foi um momento crucial de análise,
no tênis (onde precisamente ele experimenta esses embaraços bem conheci­
dos por todos os jogadores de tênis que podem ter a ocasião de observar-se um
pouco sobre a forma como põem em ação as suas capacidades, e de como
também às vezes lhes escapa o que é a última recompensa de uma superiorida­
de que eles conhecem mas que não podem manifestar) os seus parceiros habi­
tuais, com essa sensibilidade relativa às dificuldades, dos impasses inconscien­
tes que constituem no fim das contas a trama deste jogo de caracteres, das
formas como se impõem entre os sujeitos a esgrima do diálogo, a embirração, a
zombaria, a superioridade afirmada, escarnecem dele como de costume a pro­
pósito da partida perdida e ele encoleriza-se o bastante para pegar seu adver­
sário pelo pinto e encurralá-lo num canto da quadra, intimando-o a nunca mais
recomeçar com esse gênero de piada...
Não digo que nada funda a direção, a ordem na qual Ella Sharpe condu­
ziu sua interpretação. Verão que, com base na mais fina dissecação do materi­
al, os elementos dos quais ela se serviu são situados, ficam demonstrados por
ela. Tentaremos ver também que idéias a priori, que idéias preconcebidas, mui­

171
tas vezes fundadas, afinal -um erro jamais se engendra numa certa falta de
verdade- fundadas noutra coisa que ela não sabe articular, apesar de nos dar,
está aí o precioso dessa observação, os elementos de outro registro. Mas o
outro registro, ela nem sonha manejá-lo.
O centro, o ponto para o qual dirige sua interpretação tem um grau abai­
xo de complexidade. Verão o que quero dizer, ainda que eu pense que diga o
suficiente que compreendem: pondo-o no plano da rivalidade imaginária, do
conflito de poder, ela deixa de lado algo de que se trata agora, escolhendo a
bem dizer no seu próprio texto... E o texto dela que vai nos mostrar, e acho que
de forma brilhante, o que ela deixa escapar e que se manifesta, com uma tal
coerência, ser aquilo de que se trata nesta sessão analisada e o sonho que a
centra, permitindo-nos assim, evidentemente, tentar ver se as categorias que
são aquelas que proponho desde há muito tempo e de que tentei dar a referên­
cia, esse esquema topológico, esse grafo de que nos servimos, se não chega­
mos apesar de tudo a centrar melhor as coisas.
Lembro que se trata de um sonho em que o paciente faz uma viagem
com sua mulher de volta ao mundo. Chega à Tchecoslováquia onde vão acon-
tecer-lhe toda espécie de coisas. Ressalta que há um mundo de coisas anterio­
res a esse momento que vai contar muito rapidamente -pois o sonho não ocupa
senão uma sessão. São somente as associações que ele dá... O sonho é muito
curto para contar. E entre estas coisas que acontecem, encontra uma mulher
numa estrada que lhe lembra uma que ele já descreveu duas vezes a sua ana­
lista, onde se passava algo, um «sexual play com uma mulher diante de
uma outra mulher. Isto ainda acontece», diz ele, à margem deste sonho, e
retoma: «Desta vez é a minha mulher quem está presente aí enquanto o
ato sexual ocorre. A mulher que eu encontrava no sonho tinha um ar
verdadeiramente apaixonado, muito apaixonado. E isto lembra-me, diz
ele, uma mulher que eu encontrei no restaurante outro dia, exatamen­
te na véspera. Ela era preta e tinha os lábios muito cheios, muito ver­
melhos e tinha este mesmo aspecto apaixonado, era evidente que se
eu lhe tivesse dado o menor encorajamento, ela teria respondido a meus
avanços. Isso pode ter estimulado o sonho. E no sonho, a mulher que­
ria a relação sexual comigo, tomava a iniciativa e como bem sabe, evi­
dentemente é o que sempre me ajuda muito». Ele’ repete em forma de co­
mentário: «Se a mulher faz isso, eu sou grandemente ajudado. No sonho
a mulher de fato estava em cima de mim; só agora penso nisso. Ela tinha

172
evidentemente a intenção de to put my penis in her body (pôr o meu pênis
em seu corpo). Posso dizer isto por causa das manobras que ela fazia. Eu
não estava nada de acordo, ela estava tão desapontada que eu pensava
que devia masturbá-la». Logo depois, a observação que só faz sentido em
inglês: «Isto soa mal, mal mesmo, esta maneira de utilizar o verbo
masturbate na forma transitiva. Pode-se dizer simplesmente I masturbate
(que quer dizer “eu me masturbo”) e isto está correto». Ver-se-á na
continuidade do texto um outro exemplo que mostra bem que, quando se em­
prega to masturbate, trata-se de “se masturbar”. Esta característica primitiva­
mente reflexiva do verbo é suficientemente forte para que ele faça esta obser­
vação propriamente dita de filologia, e não é evidentemente por nada que ele a
faz naquele momento.
Já o disse, de certo modo podemos completar -se quisermos proceder
como fizemos com o sonho precedente- completar esta frase da maneira se­
guinte, restabelecendo os significantes eludidos, veremos que a sequência o
confirmará: «Ela estava muito desapontada» por não ter meu pênis (ou de
pênis), [de forma] que eu pensava: She should masturbate e não I should™.
Que ela se masturbe! Verão a seguir o que nos permite completar as coisas
assim.
Depois disto, temos uma série de associações, não é muito longo mas é
suficientemente amplo para nossas meditações. Há quase três páginas e para
não lhes cansar, só as retomarei depois de ter dado o diálogo com o paciente
que se segue ao sonho.
Ella Sharpe escreveu este capítulo com fins pedagógicos. Ela faz o catá­
logo do que o paciente, em suma, lhe trouxe. Ela saberá mostrar aqueles que
ensina a partir de que material vai fazer sua escolha, primeiramente sobre a sua
interpretação perante ela, em segundo lugar sobre o que, desta interpretação,
ela vai transmitir ao paciente, assinalando, insistindo ela própria sobre o fato de
que as duas coisas estão longe de coincidir visto que o que há para dizer ao
paciente não é provavelmente tudo o que há para dizer do assunto. Daquilo que
o paciente lhe forneceu, há coisas boas a dizer e outras a não dizer. Como ela
está numa posição didática, fará primeiro o balanço do que se vê, do que se lê
nesta sessão:

i! O paciente diz: “She was so disapointed I thought that I would masturbate her ",

173
- A tosse. Na última vez, disse-lhes do que se tratava: tratu-se daquela
«tossezinha» que o paciente teve naquele dia antes de entrar na sessão; essa
«tossezinha» em que Ella Sharpe, dada a maneira como o paciente se compor­
ta, tão contida, moderada, tão manifesta de uma defesa -em que ela própria
sente muito bem as defesas e as dificuldades- da qual ela está longe de admitir
desde logo que seja uma defesa da ordem da defesa-contra-os-seus-próprios-
sentimentos, vê algo que seria uma presença mais imediata que esta atitude em
que tudo está refletido, ou nada se reflete.
E é exatamente a isto que faz referência essa «tossezinha». E algo em
que outros não teriam talvez se detido. Por pouco que seja, é algo que lhe
permite ouvir o anúncio, literalmente como um ramo de oliveira, de não sei que
vazante, e ela diz-se “Respeitemos isto!”. Ora justamente produz-se exata­
mente o contrário. E o que o próprio paciente diz. Ele faz um longo discurso
sobre o tema dessa «tossezinha». Já o indiquei na última vez e voltaremos à
maneira como, simultaneamente Ella Sharpe o compreende e o que, a nosso
ver, é necessário compreender.
Eis, de fato, como ela própria analisa isto, ou seja [o] que ela aprende do
paciente, a partir da «tossezinha». Porque o sujeito está longe ainda de introdu­
zir o sonho; é por uma série de associações que lhe vieram na sequência da
observação que ele mesmo fez sobre essa tosse, -que ela lhe escapou e que,
sem dúvida, ela quer dizer algo, que aliás tinha-se dito que, desta vez, não
recomeçaria, visto que não é a primeira vez, que isto já lhe aconteceu. Depois
de ter subido a escada que ela não o ouve subir de tal modo ele é discreto, ele
teve aquela «tossezinha» -ele mesmo emprega o termo- e interroga-se sobre
ela.
Vamos agora retomar o que ele disse na perspectiva da forma como a
própria Ella Sharpe o registra. Ela faz o catálogo do que chama “Idéias relati­
vas ao objetivo de uma tosse”. Eis como o registra:
Primeiramente, «esta tossezinha traz a idéia de amantes que estão jun­
tos». Que disse o paciente? O paciente, após ter falado de sua tosse e colocado
a pergunta: «Que objetivo é que isto pode servir? diz: Sim! é uma das
coisas que-pode se fazer quando se vai entrar em um quarto onde dois
amantes estão juntos. Se nos aproximamos pode-se tossir um pouquinho
com discrição e lhes fazer saber que vão ser incomodados. Fiz isto, eu,
por exemplo, [...] quando meu irmão estava com a sua girl friend na
sala, costumava tossir um pouco antes de entrar de maneira a que, se

174
eles estavam beijando-se, pudessem painr. |...| pois nesse enso, eles
não ficariam apesar de tudo tão embaraçados como se eu os tivesse
surpreendido a fazê-lo».
Isto não é mais que sublinhar, a esse propósito, que primeiramente a
tosse, o paciente a manifestou, e nós duvidamos disto porque, toda a sequência
o desenvolveu, a tosse é uma mensagem. Mas observemos desde já o que, já
na maneira como Ella Sharpe analisa as coisas, aparece, é que ela não se dá
conta, que não põe em relevo -isto pode parecer um pouco reticente, um pouco
minucioso como observação, mas no entanto verão que esta ordem de obser­
vações que vou introduzir, é a partir dai que todo o resto se segue, ou seja, o que
chamei a queda de nível que vai marcar a interpretação de Ella Sharpe- que, se
a tosse é uma mensagem, é evidente (ressalta do próprio texto de Ella Sharpe)
que o que é importante notar, é que o sujeito não se tenha limitado a tossir, mas
justamente, é ela quem o sublinha para sua grande surpresa, é que o sujeito diz:
“É uma mensagem”.
Isto ela o elide, porque assinala no catálogo dos seus troféus de caça -
ainda não chegamos àquilo que ela vai escolher e que dependerá primeiro do
que tiver reconhecido. Ora é claro que ela elide isto que ela própria nos expli­
cou, isto de que primeiramente, há sem dúvida a tosse, mas de que o sujeito -é
este o ponto importante sobre esta tosse-mensagem, se é uma mensagem-
dizendo: «Qual seu objetivo?» “O que é que ela anuncia?” O sujeito exata­
mente começa por dizer dessa tosse -ele o diz literalmente- “É uma mensa­
gem”. Assinala-a como mensagem. E mais ainda, nessa dimensão em que
anuncia que se trata de uma mensagem, coloca uma pergunta «Qual o objeti­
vo dessa mensagem?»5’.
Esta articulação, esta definição que tentamos dar do que se passa na
análise, sem esquecer a trama estrutural, do que repousa no fato que o que se
passa na análise é antes de tudo um discurso, aqui sem procedimento de ne­
nhum refinamento especial para ser desarticulado, analisado no sentido propri­
amente dito. E se verá qual é a importância disso.
Diria mesmo que, até um certo ponto, podemos desde já começar a
determinar no nosso grafo. Quando coloca esta pergunta, “O que é esta tos-

J’ “One would think some purpose is served by it, but what possible purpose can be served by a
little cough of that description it is hard to think."

175
kw w *»

se?”, trata-se de uma pergunta de


segundo grau sobre o acontecimen­
to. É uma pergunta que faz a partir
do Outro, visto que é na medida em
que está em análise que começa a
fazê-la; que está, eu diria, neste mo­
mento -podemos vê-lo pela surpre­
sa de Ella Sharpe- bem mais longe
do que ela o imagina, mais ou menos
à maneira como os pais estão sem­
pre em atraso relativamente à ques­
tão do que os filhos compreendem e
não compreendem. Aqui, a analista
está em atraso quanto ao fato de que
o paciente topou com a coisa há muito tempo, ou seja, que se trata de interrogar
sobre os sintomas do que se passa [na] análise, do mínimo embaraço que está
aí colocando uma questão. Em suma, esta pergunta a propósito de “E uma
mensagem”, está bem presente na sua forma interrogativa na parte superior do
grafo. Ponho-lhes a parte inferior para lhes permitir situarem-se aonde estamos.
Trata-se justamente dessa parte que defini a propósito de outra coisa dizendo
que estava ao nivel do discurso do Outro.
Aqui, na medida em que é exatamente no discurso analítico que o sujeito
entra. E é literalmente uma questão referente ao Outro que está nele, referente
ao seu inconsciente. É a este nível de articulação sempre iminente em cada
sujeito na medida em que se pergunta: Mas o que é que ele quer?, mas que
aqui, não existe dúvida alguma na sua distinção do primeiro plano verbal do
enunciado inocente, na medida em que não é um enunciado inocente que é feito
no interior da análise. E que aqui, o lugar onde surge esta interrogação é exata­
mente aquele onde situamos o que deve ser por fim o schibboleth da análise:
ou seja o significante do Outro, mas que é precisamente o que, na neurose, está
velado -velado na justa medida em que ele não conhece esta incidência do
significante do Outro. E que, neste caso, não só o reconhece, mas aquilo sobre
o que ele o interroga, longe de ser a resposta, é a interrogação, é efetivamente:
O que é que é esse significante do Outro em mim?
Para completar, digamos no início da nossa exposição que ele está longe,
e não por acaso, de ter reconhecido o poder, de poder reconhecer que o Outro,

176
não mais do que ele, é castrado. Por um instante, simplesmente, ele se interro­
ga -com a inocência ou a ignorância douta que é constituída pelo fato de estar
em análise- sobre isto: o que é este significante, na medida em que é significante
de algo no meu inconsciente, que é significante do Outro?
Isto está elidido no progresso de Ella Sharpe. O que ela vai enumerar,
são “as idéias relativas à tosse”, é assim que ela toma as coisas. Claro, são
“idéias relativas à tosse”, mas são idéias que já dizem muito mais do que uma
simples cadeia linear de idéias que, nós o sabemos, está assinalada aqui nome­
adamente no nosso grafo. Ou seja, que algo já começa a se esboçar.
Ela nos diz: «O que é que ela traz, esta tossezinha? Traz primeiro, a idéia
de amantes juntos». Lhes li o que disse o paciente. O que foi que ele disse?
Disse algo que não me parece de nenhuma maneira poder resumir-se assim, ou
seja que isso traz «A idéia de amantes juntos». Parece-me ao ouvi-lo, a idéia
que traz é a de alguém que chega como um terceiro junto desses amantes que
estão juntos. Chega como um terceiro, não de qualquer maneira, já que arranja-
se para não chegar como terceiro de forma demasiado incomodativa.
Em outras palavras, é muito importante, desde a primeira abordagem,
indicar que se há três personagens, a sua junção comporta variações no tempo
e variações coerentes, ou seja que eles estão juntos enquanto o terceiro está
fora. Quando o terceiro entrou, eles não estão mais, isso salta aos olhos.
Diga-se de passagem que se fosse preciso -como vão ser necessários
dois seminários para cobrir a matéria que nos traz este sonho e sua interpreta­
ção- uma semana de meditação para esgotar o que o paciente nos traz, a
análise poderia parecer algo intransponível, sobretudo porque as coisas não
deixarão de se avolumar e seremos rapidamente ultrapassados. Mas na reali­
dade, não é de todo uma objeção válida pela simples razão de que, até um certo
grau, neste esquema que já se desenha, ou seja que, quando o terceiro está
fora, os dois estão juntos e que quando o terceiro está dentro os dois já não
estão juntos, não digo que tudo o que vamos ver a este propósito já esteja lá
porque isso seria um pouco simplista, mas vamos ver isto se desenvolver, se
enriquecer, em resumo, se involuir em si mesmo como um leitmotiv indefinida­
mente reproduzido e enriquecendo-se em todos os pontos da trama, constituir
toda a textura do conjunto. E verão qual.
O que é que Ella Sharpe aponta em seguida como sendo a continuação
da tosse?
a) Ele abordou as “idéias relativas aos amantes que estão juntos”.

177
b) “Rejeição de uma fantasia sexual relativa à analista”. Será que isto dá
conta do que trouxe o paciente? A analista colocou-lhe a pergunta: «E então,
essa tosse, antes de entrar aqui?» Logo depois que ele explicou para que servi­
ría se fossem amantes quem estava dentro, ele disse «E absurdo, porque
naturalmente não tenho razão para me perguntar... não teria sido convi­
dado a subir se tivesse alguém aqui, e além disso não penso em você
de forma nenhuma dessa maneira. Não há razão nenhuma para isso.
Isto lembra-me um fantasma que tive num quarto onde eü não deveria
estar...»
É aí que se detém o que visa Ella Sharpe. Podemos dizer que haja aqui
recusa de uma fantasia sexual relativa à analista? Parece que não haja absolu­
tamente recusa, mas que há mesmo admissão, admissão desviada é certo, ad­
missão por via das associações que vão se seguir. Não se pode dizer que na
proposição da analista relativa ao sujeito, o sujeito rejeite pura e simplesmente,
esteja numa posição de pura e simples negação. Isso parece ao contrário tipi­
camente o tipo de interpretação oportuna, já que vai arrastar tudo o que vai
seguir-se e que vamos ver.
Ora justamente, esta questão da fantasia sexual que está em jogo quan­
do desta entrada no gabinete da analista onde a analista é suposta estar só, é
algo que é com efeito o que está em questão e da qual creio que vai parecer-
lhes bem depressa que não é preciso ser grande clérigo para esclarecê-la.
c) O terceiro elemento que nos trazem as associações é, nos diz Ella
Sharpe, «o fantasma, fantasma de estar onde não deve estar e ladrando como
um cão para despistar...». É uma expressão metafórica que se encontra no
texto inglês, «to put off the scent»™. Não é jamais em vão que uma metáfora
seja empregada em lugar de outra, mas aqui não há traço de scent no que diz o
paciente, que esteja recalcado ou não, nós não temos nenhuma razão de con­
cluir. Digo-o porque o scent é o passeio dos tristes [joie des dimanches] de
certas formas de análise... Contentemo-nos aqui com o que diz o paciente.
A propósito da interrogação que lhe trouxe a analista ele lhe diz: «Isto
me faz lembrar aquela fantasia que tive de estar num quarto onde com
efeito -isto está de acordo com o que «surmises» a analista- não tenho
razões para estar», mais exatamente, «onde eu não devia estar. (...) de

60 “Phantasy of being where he ought not to be, and barking like a dog to put people offthe scent"
(toput off: fazer perder a pista, colocar em falta).

178*-
modo que qualquer um pode pensar...».
A estrutura é dupla, de referência à subjetividade do outro, c absoluta
mente constante. E isto que vou acentuar pois é do que se trata sempre, e é
aqui e só aqui, que podemos centrar onde está o desejo. É o que é constante­
mente eludido no relato que disto faz Ella Sharpe e na maneira como vai ter em
conta as diferentes incidências tendenciais.
Ele diz então «Penso que alguém pode pensar», tive esta fantasia dc
pensar que «alguém podia pensar que eu estava lá e então pensei que
para impedir alguém de entrar e me encontrar, eu poderia ladrar corno
um cão. Isso disfarçaria minha presença. Someone poderia então dizer:
“Oh! é só um cão, não há mais qu.e um cão aqui”».
O caráter paradoxal desta fantasia do sujeito apela muito provavelmente
-ele próprio diz que as lembranças são de uma infância tardia, de uma adoles­
cência- o caráter pouco coerente, mesmo absurdo de certos fantasmas, sem
deixar, por isso, de ser percebido em todo o seu valor, ou seja como sendo
apreciável e retido como tal pela analista. Então ela nos diz, seguindo as idéias
que lhe vêem, associativas: “E um fantasma de estar onde não deveria estar e
para despistar, de ladrar como um cão”.
A coisa está certa, só que, se ele imagina estar aí onde não deveria estar,
o objetivo do fantasma, o sentido do fantasma, o conteúdo evidente do fantas­
ma é mostrar que ele não está onde está. E a outra fase, fase muito importante
porque, nós vamos vê-lo, é o que vai ser a característica, a própria estrutura de
qualquer afirmação subjetiva por parte deste paciente; e ir direto ao fim em tais
condições dizendo-lhe que está em tal ponto onde quis matar o seu semelhante
e do qual é o troco e a revanche, é algo que é certamente tomar partido -e
tomar partido em condições nas quais as chances tanto de erro como de êxito,
ou seja, de fazer de fato adotar pelo paciente de uma maneira subjetiva o que
se conclui, são neste caso particularmente evidentes. E é o que faz o interesse
deste texto.
Se por outro lado, podemos ver que se trata de pôr em evidência o que
aqui se anuncia na sua estrutura, ou seja o que quer dizer aquilo que já aparece
no fantasma, ou seja que ele não está onde ele está, nós vamos ver o sentido
que isto talvez tenha. Talvez isto também possa nos levar, veremos, a uma
interpretação completamente outra.
Seja como for, ele não se serve de um eu [nroí] qualquer para se fazer
não estar aí onde ele está. E claro demais, bem entendido, que do ponto de vista

179
da realidade, este fantasma é insustentável, e que pôr-se a ladrar como um cão
num quarto onde não se deve estar, não é a melhor forma de escapar à aten­
ção. Deixemos de lado, bem entendido, esta frase que só serve para nos fazer
notar que não estamos no compreensível, mas na estrutura imaginária, que
afinal das contas ouvem-se coisas como estas no decurso das sessões, e
contentamo-nos por fim em crer que se compreende já que o doente tem ar de
compreender. Já lhes disse, o que é próprio de todo afeto, de toda esta margem,
este acompanhamento, estas bordas do discurso interior, pelo menos especial­
mente tal como o podemos reconstituir quando temos o sentimento de que esse
discurso não é, justamente, um discurso tão contínuo quanto se crê, é que a
continuidade é um efeito, e principalmente [produto] por meio do afeto. Ou
seja, quanto menos os afetos são motivados, mais -é uma lei- eles aparecem
compreensíveis para o sujeito...
Isto não é, para nós, razão para segui-lo, e é por isso que a observação
que fiz aí, por muito evidente que possa parecer, tem apesar de tudo o seu
alcance. O que se trata de analisar é o fantasma, sem compreendê-lo -quer
dizer, descobrindo-lhe a estrutura que revela. Ora, o que é que isto quer dizer,
este fantasma?
Assim como há pouco o importante era ver o que o sujeito nos dizia a
propósito da sua tosse “é uma mensagem”, trata-se de perceber que este fan­
tasma não tem realmente nenhum sentido, o caráter absolutamente irreal da
sua eficácia eventual. É que o sujeito ladrando diz simplesmente “é um cão”.
Também neste caso se faz outro, mas não é essa a questão, não se pergunta
qual é esse significante do Outro nele. No caso tem um fantasma e, isto é
apesar de tudo bastante precioso quando isso nos surge para que nos aperce­
bamos do que nos é dado, ele se faz outro com a ajuda de quê? De um
significante precisamente. O latido neste caso, é o significante do que ele não é:
não é um cão mas graças a esse significante, para o fantasma, o resultado é
perfeitamente obtido, ele é outro do que o que ele é.
Aqui vou pedir-lhes (pois não esgotamos o que apareceu em simples
associação com a tosse, há um quarto elemento que veremos daqui há pouco e
a propósito disto, ou seja, neste caso, a função do significante no fantasma,
pois aqui é claro que o sujeito se considera suficientemente coberto por este
latido fantasmático) que façamos um parêntesis.
Já não é do sonho que lhes falo, mas de certa pequena observação clíni­
ca elementar. No final de uma comunicação científica recente, fiz alusão ao

180
fato de que tinha isso para lhes trazer aqui. É necessário dizer que em uma
matéria tão abundante, o que haveria para ensinar é tão desmedido relativa­
mente ao que se ensina, quer dizer, ao que se repete, que há verdàdeiramente
dias em que eu próprio me sinto ridiculamente .esmagado pela tarefa que em­
preendí...
Tomemos este “é um cão”. Quero chamar-lhes a atenção para algo
relativo à psicologia da criança, o que se chama a psicologia genética. Tenta-
se, esta criança que queremos compreender, fazer com ela essa psicologia que
se chama genética e que consiste em se perguntar como é que este querido
pequenino que é tão pateta começa a adquirir as suas idéias. E perguntamo-nos
então, como é que a criança procede. O mundo dela seria primitivamente auto-
erótico, os objetos não viriam senão mais tarde. Espero, graças a Deus! que
todos tenham, senão diretamente experiência com crianças, pelo menos sufici­
entes pacientes que possam contar-lhes a história da sua pequena criança para
ver que não há nada mais interessado nos objetos, nos reflexos dos objetos do
que uma criança muito pequena. Deixemos isto de lado.
Trata-se por hora de nos apercebermos como é que entra em jogo nela a
operação do significante. Digo que podemos ver na criança, na fonte, na ori­
gem da sua apropriação do mundo que se lhe oferece e que é antes de tudo um
mundo de linguagem, um mundo em que as pessoas lhe falam -o que é, claro,
um afrontamento bastante espantoso- como é que ela vai entrar nesse mundo.
Já fiz alusão a isto que as pessoas podem observar, com a condição de
ter simplesmente o ouvido atento e de não considerar como forçosamente con­
firmadas as idéias preconcebidas com as quais podem entrar em contato com a
criança. Um amigo me fazia recentemente notar que tendo ele próprio decidido
querer tomar conta do seu filho ao qual consagra muito tempo, nunca lhe tinha
falado do cão senão como “o cão”. Não deixou de ficar um pouco surpreso
pelo fato de que a criança, que havia perfeitamente determinado o que era
nomeado pela nominação primitiva do adulto, se pôs a chamá-lo um “au-au”.
Outras pessoas que podem por vezes me falar de uma forma, não diria direta­
mente esclarecida pelos planos de pesquisa que lhes proponho, mas só pelo
fato do meu ensino, fizeram-me notar esta outra coisa, que não só a criança
limita à designação do cão este “au-au” que é algo que é escolhido no cão
primitivamente entre todas as suas características. E como se espantar, visto
que a criança não vai evidentemente começar já a qualificá-lo, seu cão, mas,
antes de poder ter o manejo de qualquer espécie de atributo, ele começa a

181
fazer entrar em jogo o que pode dizer dele, ou seja, o fato de que o animal se
apresenta como produzindo ele próprio um signo -que não é um significante.
Mas reparem aqui que é pela abordagem, que é graças ao que se lhe apresenta
do que há no que se manifesta, a presença precisamente de um animal, algo de
suficientemente isolado para lhe fornecer o material, algo que já é emissão
laríngea, que a criança toma este elemento, como quê ? Como algo que, já que
substitui “o cão” que ela já compreendeu perfeitamente e entendeu ao ponto de
poder tanto dirigir o seu olhar para esse cão quando se nomeia o cãó como para
uma imagem desse cão quando se diz “cão” e o substitui por um au-au, o que é
fazer a primeira metáfora, No que vemos esboçar-se, e da forma que é a mais
conforme com a verdadeira gênese da linguagem, a operação predicativa.
Notou-se que nas formas primitivas da linguagem, o que joga como fun­
ção de adjetivo, são metáforas. Isto é confirmado aqui no sujeito, com a dife­
rença de que não [nos] encontramos aqui diante de alguma misteriosa primitiva
operação do espirito, mas face a uma necessidade estrutural da linguagem que
exige que, para que algo se engendre na ordem do significado, é preciso que
haja substituição de um significante a um outro significante.
Dir-me-ão “Como é que você sabe?” -quero dizer, “Por que afirma que
o que é essencial é a substituição de “au-au” a cão?”
Primeiramente, eu lhes direi que é observação corrente e me foi contado
há pouco tempo, que a partir do momento em que a criança foi capaz de cha­
mar “au-au” a um cão, ela chamará “au-au” a um monte de coisas que não têm
absolutamente nada a ver com um cão, mostrando logo assim com isso que
aquilo de que se trata, é efetivamente da transformação do signo em significante
que se põe à prova com toda a espécie de substituições relativas ao que, nesse
momento, já não tem mais importância, que sejam outros signifícantes ou uni­
dades do real. Pois do que se trata é de pôr à prova o poder do significante.
O ponto culminante disto é assinalado naquele momento decisivo em que
a criança (é sobre isto que eu faço a observação no fim da comunicação cien­
tifica de que falava) declara com a maior autoridade e a maior insistência: “o
cão faz miau” ou “o gato faz au-au”; ponto absolutamente decisivo, pois é
neste momento que a primitiva metáfora que é constituída pura e simplesmente
pela substituição significante, pelo exercício da substituição significante, engen­
dra a categoria da qualificação.
Notem bem, podemos agora formalizar isto se quiserem, e dizer que o
passo, o progresso realizado consiste nisso que de início uma cadeia monolinear

182
é estabelecida que diz: “o cão” = “au-au”, que aquilo de que sc trata c que é
demonstrado da forma mais evidente pelo fato de que a criança sobrepõe,
combina uma cadeia com outra, é que veio fazer cruzar-se em relação à cadeia
“o cão faz au-au”, a cadeia “o gato faz miau”; que substituindo o “miau” ao
“au-au”, ela vai fazer entrar em jogo a possibilidade de cruzamento de uma
cadeia com outra, ou seja, uma redivisão de cada uma das cadeias em duas
partes, o que_provisoriamente será fixo e que, não menos provisoriamente, será
móvel, isto é, de algo que ficará de uma cadeia em tomo do que girará o que se
pode trocar.
S’. S
S . S’

Em outras palavras, é unicamente a partir do momento em que se asso­


ciou o S’ do gato enquanto significado por este signo, com o S, o “au-au”
significante do cão, e que isto supõe que embaixo -e para começar não existe
um embaixo- a criança liga as duas linhas, ou seja que o significado do “au-au”,
o cão, faz S’, o “miau”, significante do gato. Só a partir do momento em que
este exercício foi realizado e a importância que a criança lhe dá é perfeitamen­
te evidente e demonstrada por isso que, se os pais por inépcia intervém, a
corrigem, lhe repreendem ou a censuram por dizer tais disparates, a criança
tem reações emocionais muito vivas (chora, para dizer tudo...) porque sabe bem o
que está fazendo, ao contrário dos adultos que julgam que ela diz bobagem.
Pois é unicamente a partir desse momento e segundo a formulação que
dei da metáfora que consiste essencialmente nisto: que algo ao nível da linha
superior se deslocou, se elidiu relativamente a algo que, na linha inferior do
significado, também se deslocou. E, em outras palavras, na medida em que do
ponto de vista do grafo, a partir do momento em que este jogo foi introduzido (o
“au-au” pode ser elidido e situa-se na parte de baixo da enunciação relativa ao
cão), que esta enunciação se toma propriamente uma enunciação significante
e não simples conexão imitativa em relação à realidade. O cão, quer seja indi­
cado ou nomeado, dá no mesmo. Mas literalmente o fato de que, quando a
qualificação, a atribuição de uma qualidade do cão lhe é dada, isso não está na
mesma linha, é sobre a atribuição da qualidade como tal: há os que fazem “au-
au”, há os que fazem “miau”, e todos os que farão outros barulhos estão aqui
implicados na verticalidade, na altura, para que comece a nascer da metáfora,
a dimensão do adj etivo.

183
Como sabem, não foi ontem que estas coisas foram vistas! Darwin já se
tinha ocupado delas. Só que, à falta de aparelho linguístico, as coisas mantive­
ram-se para ele muito problemáticas. Mas é um fenômeno tão geral, tão essen­
cial, tão funcionalmente dominante no desenvolvimento da criança que mesmo
Darwin, que tinha mais tendência para as explicações naturalistas, não deixou
de se espantar com o seguinte: não deixava de ser bem engraçado que uma
criança que tinha já uma astúcia notável que lhe permitia isolar do pato o “quá-
quá” [“couac”] (é assim que é fonetizado pela criança o grito do pato no texto
de Darwin), que esse “quá-quá” está referido a toda uma série de objetos cuja
homogeneidade genérica será suficientemente observada pelo fato de que en­
tre eles, se bem me recordo, havia vinho e uma moeda [sou], Não sei bem o
que a palavra “moeda” designa, se designa um penny ou outra coisa. Não
verifiquei o que significava no tempo de Darwin, mas era uma moeda visto que
Darwin, em seu embaraço, não deixa de notar que essá moeda estava marcada
num canto com uma águia. Pode parecer que a explicação que uniria a relação do
“quá-quá” à espécie volátil em geral sob pretexto de que uma imagem tão ambí­
gua como a de uma águia de asas abertas numa moeda possa ser alguma coisa
que podemos considerar como devendo ser homogeneizado por uma criança ao
aperceber-se do pato. Evidentemente, a do vinho, do líquido, seria ainda um proble­
ma. Talvez possamos simplesmente pensar que há alguma relação entre o vinho,
algo que seria, digamos, o elemento líquido na medida que aí o pato chapinha.
Vemos que, em todos os casos, aquilo de que se trata é mais uma vez
melhor designado como marcado pela obliquidade do elemento significante en­
quanto tal. Aqui, admita-mo-lo na contiguidade da percepção se queremos aceinr
com efeito que é da qualidade líquida que se trata quando a criança lhe aplica o
“quá-quá” do pato. Como vêem é sempre no registro da cadeia significante que
podemos apreender o que se funda, na criança, de fundamental na sua apreen­
são do mundo, como mundo estruturado pela fala.
Também não é que ela procure o sentido, nem a essência dos pássaros,
do fluido ou das moedas... É que literalmente, ela os encontra pelo exercício do
non-sens. Pois afinal de contas, se tivermos tempo, colocar-nos-emos ques­
tões sobre o que é tecnicamente o non-sens, quero dizer na língua inglesa o
nonsense. É precisamente um gênero. A língua inglesa tem dois eminentes
exemplos de nonsense, nomeadamente Edward Lear61, autor de nonsenses

61 LEAR E., Book of Nonsense (1846), Poèmes sans sens, (trad. H. Parisot), Paris, 1968, Aubier
- Flaminarion.

184
que definiu como tais, e Lewis Caroil de quem penso que conheçam pelo me­
nos Les Aventures d’Alice au pays des merveilles^.
Devo dizer que se tivesse de aconselhar algo como livro de introdução
ao que deve ser um psiquiatra ou um psicanalista de crianças, mais do que
qualquer dos livros do senhor Piaget, eu lhes aconselharia a começar por ler
Les Aventures d'Alice au pays des merveilles, pois compreendería efetiva­
mente algo que tenho as melhores razões para pensar, dado o que se sabe
sobre Lewis Caroll, que é algo que repousa na profunda experiência do humor
da criança e que efetivamente nos mostra o valor, a incidência, a dimensão do
jogo de nonsense como tal.
Não posso aqui senão destacar esta indicação. Eu a abordei sob a forma
de parêntesis e a propósito do “é um cão” do nosso sujeito. Quero dizer da
maneira formulada, significante do qual convém interpretar o que aqui se esbo­
ça de fantasma e de que, pelo menos, situarão aqui, penso que facilmente, o
título nos termos do fantasma. Quero dizer, neste fantasma, “É um cão, não é
senão um cão.”
Reencontrarão o que lhes disse ser a fórmula do fantasma, ou seja, que
o sujeito parece elidido, não é ele, na
medida em que está presente um
outro, um outro imaginário, a. Primei­
ra indicação da conveniência desse
esquema para lhes fazer notar a va­
lidade do fantasma como tal.
(d) Chego ao 4o elemento
associativo que nos dá, nesta ocasião,
Ella Sharpe. Ainda que “um cão tra­
zido à memória sob essa forma de
um cão que se masturba63”, empre­
go naturalmente intransitivo. Trata-
se de um cão que se masturba, como
o paciente contou, ou seja, como logo
depois do esquema, um dog, um cão,

63 LEWIS CAROLL, Alice 's Adventures in Wonderland ([Sis'), Les Aventures d'Alice au pays des
merveilles (trad. H. Parisot), Paris, 1970, Aubier-Flammarion.
Md) "Dog again brought memory of masturbating a dog".

185
«hh> l< nibr;i inc um cão que se esfregava contra minha | erna, real-
...... mastnrbando-se a ele próprio, com muita vergonha de lhe falar
disso porque não o interrompí, deixei-o continuar e alguém podia ter
entrado nesse momento».
Será que a conotação da coisa como um elemento ao colocar na sequên­
cia da cadeia pela analista, ou seja “lembrança de um cão que se masturba” é
algo que deva aqui satisfazer-nos completamente? Creio que não. Porque este
elemento permite-nos avançar ainda um pouco mais longe, naquilo de que se
trata nesta mensagem trazendo o sonho. E para lhes mostrar a primeira bouclé
que foi percorrida pelas associações do paciente, e mostrar-lhes onde ela está,
dir-lhes-ei que nada é mais evidente neste caso que a linha associativa. É pre­
cisamente aquela que lhes desenho aqui em pontilhado, na medida em que está
na enunciação do sujeito. Estes elementos significantes, rompidos, vão passar
como na fala comum e normal por estes dois pontos-referência da mensagem
e do código e a mensagem e o código sendo aqui de natureza bem diferente do
parceiro que fala a mesma língua de que se trata no termo do Outro, A.
E o que vemos aqui, nesta linha associativa percorrida, é justamente
primeiro o fato de que chegamos aí sob a forma: trata-se do significante do
Outro que está em mim. E a questão. E o que o sujeito a esse propósito começa
a desenrolar não é nada menos do que passar por este ponto, [$ y a] ao qual
voltaremos mais tarde, depois aqui, em d, neste nível em que se situa a questão
de seu desejo.
O que é que ele faz ao ter essa “tossezinha”, isto é no momento de
entrar num lugar onde há algo que ele não sabe o que é: “Fantasia sexual a
propósito da analista”. Qual? O que se manifesta depois, é seu próprio fantas­
ma, ou seja ele lá, se estivesse no lugar do outro, pensaria primeiro em não
estar lá -ou mais exatamente em ser tomado por outro que não ele mesmo. E
agora, a que chegamos? Mas justamente ao que se passa. A cena aqui de
repente descobre-se, desenvolvida pelo paciente. O que é que se passa? Este
cão, na medida em que é ele próprio, não está lá. Este cão ei-lo já não mais
fantasmático, mas bem na realidade. É um outro desta vez, não mais totalmen­
te significante, mas uma imagem, um companheiro neste quarto e um compa­
nheiro tanto mais evidentemente próximo dele, assimilado a ele que está esfre­
gando-se na própria perna, do paciente, que o cão vem se masturbar.
Qual é o esquema do que se passa nesse momento? Ele é essencialmen­

186
te fundado no falo de que o outro, aqui o animal <-u<ju.nili> i r,il <■ ilu qiiul uniu
mos que tem uma relação com o sujeito porque este leve anirn o <unLulii <|<-
nô-lo informar, ele podia ser imaginariamente esse animal, com a cimdiç.to di­
sc apoderar do significante, ladrando. Este outro presente se masturba: mostra
lhe algo, muito precisamente ao se masturbar. Estará a situação assim determi­
nada? Não, como o próprio paciente nô-lo diz, há a possibilidade de que alguém
entre, e então que vergonha! a situação já não seria sustentável. O sujeito
desaparecería literalmente de vergonha diante desse outro, testemunha do que
se passa.
Em outras palavras, o que se articula aqui: mostra-me o que é preciso
que eu faça com a condição de que o outro, enquanto grande Outro, terceiro,
não esteja aí. Olho para o outro que eu sou, esse cão, com a condição de que o
Outro não entre, senão desapareço de vergonha. Mas, por outro lado, esse
outro que sou, ou seja esse cão, vejo-o como Ideal do eu, como fazendo o que
eu não faço, como “ideal de potência” como dirá mais tarde Ella Sharpe. Mas
não seguramente no sentido em que ela o entende, porque justamente isto não
tem nada a ver com as palavras. No caso, é justamente na medida em que o
cão, ele, não é um animal falante que ele pode ser aqui o modelo e imagem, e
que o sujeito pode ver nele o que deseja ver, ou seja que lhe mostrem o que
deve fazer, o que pode fazer, e isto enquanto estiver fora da vista do Outro, do
que pode entrar e do que fala.
E, em outras palavras, é na medida em que ainda não entrei no gabinete
da minha analista que posso imaginá-la, Ella Sharpe nomeadamente, a pobre
cara mulher, me mostrando a masturbar-se, e tusso para preveni-la, ela, de que
deve retomar uma posição normal.
É neste jogo entre os dois outro, aquele que não fala, que se imagina, e
aquele a quem se vai falar, que deve ter cuidado para que a confrontação não
se produza depressa demais, que o sujeito não se ponha a desaparecer. E este
o ponto-pivô onde de repente vai surgir à memória *como* o sonho...
Pois bem, o sonho, retoma-lo-emos na próxima vez para que nos aperce­
bamos que o interesse do sonho e do fantasma que ele vai nos mostrar, é muito
precisamente de ser o oposto deste fantasma foijado em estado de vigília, do
qual hoje delimitamos os rudimentos.

187
Lição 10
28 de janeiro de 1959

Esta investigação, este exercício que é o nosso para lhes mostrar como,
no uso que fazemos desde já na nossa experiência, praticamente, da noção do
desejo, supomos sem o saber um certo número de relações, de coordenadas
que são as que tento situar mostrando-lhes que essas são sempre as mesmas,
que há então interesse em reconhecê-las, porque se não as reconhecemos, o
pensamento desliza sempre um pouco mais à direita, um pouco mais à esquer­
da, agarra-se a coordenadas mal definidas, e isso não é sempre sem inconveni­
entes para a conduta da interpretação.
Vou continuar hoje a análise do sonho que escolhi em Ella Sharpe preci­
samente pelo seu caráter excepcionalmente bem elucidado. E vamos ver as
coisas sob esta dupla face: em que medida o que ela diz, o que diz de mais
agudo, de mais fino, de mais notável nesta observação da sessão em que este
sonho é analisado e nas duas sessões seguintes, o que há de mais notável é que
se trata de algo que se inscreve tão bem nas categorias que são as que tento
ensiná-los o uso, que é graças a isso que se pode dar a esses elementos todo o
seu valor e em que medida, na falta de justamente distinguir a originalidade
desses elementos, ela acaba por lhes reduzir de algum modo o alcance, por
baixar de um nível a cor, o relevo, por misturá-los, reduzi-los a noções mais
gastas, mais sumárias que a impedem de tirar todo o partido que poderia do que
ela tem na mão.
Mas desde já, para fixar se quiserem, no seu espírito algo destinado a
desenhar-se sempre com maior precisão e melhor, penso que começam a en­

189
trever o que quer dizer o duplo andar do grafo. Em suma, este percurso que
retoma sobre si próprio, da enunciação analítica na medida em que, eu diria,
liberada pelo princípio, a regra da associação livre, tende a quê? A valorizar,
tanto quanto possível o que está incluído em todo discurso, uma cadeia significante
enquanto fragmentada de tudo o que cada um sabe, isto é, de elementos
interpretáveis.
E esses elementos interpretáveis enquanto fragmentados surgem preci­
samente na medida em que o sujeito tenta reconquistar-se na sua originalidade,
estar para além do que a demanda fixou nele, aprisionou das suas necessida­
des. E na medida em que o sujeito, na expressão de suas necessidades se
encontra primitivamente apanhado, ligado às necessidades próprias à deman­
da, e que são essencialmente fundadas no fato de que já a forma da demanda
está alterada, alienada pelo fato de que temos de pensar sob esta forma de
linguagem, é já no registo do Outro como tal, no código do Outro que ela deve
se inscrever.
E a este nível que se produz o primitivo intervalo, a primitiva distância do
sujeito relativamente a algo que, na sua raiz, é sua necessidade, mas que não
pode na chegada ser a mesma coisa; já que não vai ser reconquistado na che­
gada (mas conquistado para além da demanda) senão numa realização de lin­
guagem (na forma do sujeito que fala) e que essa alguma coisa que se chama
o-que-o-sujeito-quer refere-se ao que o sujeito vai se constituir como sendo,
numa relação não mais de certa forma imanente, completamente incluída na
sua participação vital, mas pelo contrário como declarando, como sendo e por
isso numa certa relação ao ser.
Neste intervalo, é entre a linguagem pura e simplesmente quesitiva e a
linguagem que se articula-em que o sujeito responde à pergunta do que é que
ele quer, em que o sujeito se constitui em relação ao que é- é neste intervalo
que vai se produzir algo que vai se chamar nomeadamente o desejo. E esse
desejo, na sua dupla inscrição do grafo, é alguma coisa...
Que haja alguma homologia entre esse desejo (na medida em que está
situado algures na parte superior destas coordenadas) e a função que tem o eu
[moí] na medida em que este discurso do Outro se retoma a si próprio, e que o
apelo ao outro para a satisfação de uma necessidade se institua em relação ao
Outro no que eu chamei por vezes a fala plena, a fala de engajamento, numa
relação como esta, em que o sujeito se constitui ele-próprio em relação ao
outro, em que o sujeito diz ao outro “tu és meu mestre”, “tu és minha mulher”,

190
esta relação que toma o eu [moí] e que o institui relativamente a um objeto para
retomar aqui sob forma de mensagem.
Há alguma homologia entre esta relação em que o eu [moí] é tomado no
discurso do Outro e o simples fato de que alguém fala de mim como eu, de si
como si; há algo articulado de maneira fragmentária que necessita uma deci-
fração de uma ordem especial no desejo. Assim como o eu [moí] se constitui
numa certa relação imaginária ao outro, também o desejo se institui, se fixa
algures no discurso do Outro, a meio caminho desse discurso em que o sujeito,
por toda a sua vida tende a completar-se em algo onde o seu ser se declara a
meio-caminho.
O desejo é uma reflexão, um retomo nesse esforço por onde um sujeito
se situa algures face ao que eu lhes designo pelo fantasma, isto é a relação do
sujeito como evanescente, enquanto ele se evanesce numa certa relação a um
objeto eletivo. O fantasma tem sempre esta estrutura, não é simplesmente re­
lação de objeto. O fantasma é algo que corta, um certo desvanecimento, uma
certa síncope significante do sujeito em presença de um objeto. O fantasma
satisfaz a uma certa acomodação, a uma certa fixação do sujeito, a a algo que
tem um valor eletivo. A elegibilidade deste valor, é o que tento demonstrar-lhes
este ano com a ajuda de um certo número de exemplos.
Já esta oposição do sujeito a um certo objeto é algo que está implícito no
fantasma, tal que é o prefácio, o prelúdio do sonho enunciado pelo sujeito. Já o
fiz sentir-lhes, creio, na última vez. O sujeito chega e começa a falar de sua
tosse, mensagem sobre a mensagem, de sua tosse que é feita para misteriosa­
mente avisar, antes de entrar na sala onde poderíam estar os dois outros, os
dois outros que estariam se amando, para adverti-los de que é hora de se sepa­
rarem. Por outro lado, nas associações, vemos que essa tosse é algo que está
muito próximo de um fantasma que ele exprime logo: a saber que ele imaginou
num fantasma passado, que estando algures, e não querendo ser encontrado aí
porque não deveria estar aí, nesse lugar, ele poderia ladrar como um cão e todo
o mundo se diria: “olha, é um cão!”
Revela-se, o latido, como sendo o sinal pelo qual o sujeito se ausenta
profimdamente de onde está, se assinala como sendo outro, e a correlação da
tosse com o fato de que um casal de outros no qual uma terceira associação
nos mostra que o sujeito também está incluído -porque esse cão que ele foi
para ladrar, isto é para se fazer outro do que ele é, eis agora quê numa terceira
recordação, esta do real, ele nos diz que esse cão é um cão que veio se mastur-

191
bar contra sua perna, e o que teria acontecido se os tivessem surpreendido aos
dois? Em resumo, vemos se desenhar algo que, na ordem estrutural, é essenci­
al.
Quando os dois que estão no interior de certo recinto estão ai, confronta­
dos um face ao outro na relação propriamente dita imaginária que faz com que
aquilo de que se trata seja bastante bem marcado pelo fato que esse cão se
masturba contra sua perna, o cão no caso e pelo próprio fantasma a propósito
do qual é trazido, é também ele mesmo imaginário, aquele que mostra a se
masturbar, e também que ele não está ausente do casal daqueles amantes.
Mas o que é essencial, não é simplesmente descrever que a identifica­
ção do sujeito, como é de se esperar, está por todo o lado. Está tanto no sujeito
que está de fora e que se anuncia, como no sujeito que está dentro e que é
tomado na relação do casal com o que ela comporta de comum fascinação
imaginária. E que, ou os dois elementos do casal imaginário, dual, ficam juntos
nesta comum fascinação aqui do ato, entre o abraço, entre o acasalamento e a
fascinação especular; ou eles ficam juntos e o outro não deve estar ai, ou o
outro se mostra e então os outros se separam e se dissolvem.
É a estrutura que é importante pôr em relevo. É ela que falseia o proble­
ma, porque no fim das contas o que é que o sujeito nos diz? Que ele teve uma
«pequena tosse» antes de entrar na sala de sua analista quando é claro que se
o fizeram subir, é porque não havia mais ninguém, que ela está sozinha; e que
aliás, «não são estas coisas, diz ele, que me permitiría pensar a seu pro­
pósito». No entanto, é bem esse o problema...
O sujeito tossindo, ou seja, por um lado fazendo esse ato do qual ele
próprio não sabe a significação, visto que ele põe a questão da significação, ao
fazer-se com essa tosse, como o cão com o seu latido, outro que ele não é, não
sabe ele próprio qual é essa mensagem, e no entanto anuncia-se por essa tosse.
E se anunciando, o que é que ele imagina? O que é que ele imagina que há no
interior daquela sala para que essa tosse que ele nos assinala como sendo nesta
ocasião uma impulsão, uma compulsão, algo que o irrita porque isso transbor­
dou? (E ele próprio quem o assinala e pus em relevo a este respeito como é
espantoso que Ella Sharpe tenha julgado a esse propósito que não devia falar
do assunto, que o sujeito não tinha consciência dele, e que não se devia tomá-
lo consciente, quando é ele próprio quem traz essas questões, que diz é uma
mensagem, não sei qual, mas é muito claro). O que é que ele imagina que há no
interior, qual é o objeto que está ali enquanto ele está no exterior e se anuncia

192
desse modo que o aliena, por essa mensagem que ele não compreende, por
essa mensagem cuja associação com o latido do cão está ai para mostrar que é
para se anunciar como um outro, como alguém outro que ele mesmo, que esta
condição se manifesta?
Faço-lhes notar, após esta bouclé, uma primeira volta em que nos falou
inicialmente de sua tosse como mensagem, em seguida desse fantasma em que
se comprazeu a imaginar ser um cão, nos ter assinalado na realidade o
acasalamento dele próprio dom um cão num quarto, tendo de cèrta forma tra­
çado essa passagem de forma flutuante, ambígua porque ele passa sucessiva­
mente por algo que reflete seu desejo, depois encama seu fantasma, retoma
após ter fechado o círculo algures. Pois vai a partir de então mudar de registro.
«Nesse momento (onde terminava a minha última lição) o sujeito ainda
tosse» nos diz a analista. Tem uma tossezinha, como se pontuasse. Depois
dessa tossezinha enuncia o sonho que já li.
O que quero lhes dizer, é qual vai ser, a partir daqui e nesse sonho, sobre
esse sonho, nossa visada. Disse-lhes, o que se manifesta no sonho da relação
do desejo ao fantasma, manifesta-se com uma acentuação exatamente oposta
a que era dada no fantasma que viera nas associações. Aí o que estava acen­
tuado, era que o sujeito, ele, ladra. Ele ladra, é uma mensagem, um anúncio. Ele
anuncia-se como outro, essencialmente. E no plano de uma relação que o mas­
cara, na medida em que ladra como um cão, que ele não compreende porque
procede assim, que se põe em posição ou bem de não estar aí, ou, se está aí, de
se anunciar como um outro, e de tal forma que os outros nesse momento preci­
so (ou seja o que há para ver ali) se separam, desaparecem, não mostram mais
o que há para mostrar.
O enigma, é evidentemente o que ele imagina. O caráter enigmático
sendo bem sublinhado no fato de que com efeito, o que pode haver para anun­
ciar, para desejar anunciar para que no momento de entrar no gabinete de sua
analista, tenha essa tosse? O que está velado, é esse lado da relação com este
objeto x que é neste caso, eu não diria sua analista, mas o que está no quarto.
No sonho,- o que vamos ver posto completamente em primeiro plano, é
algo que está aqui, é um elemento imaginário nós vamos ver, que não é qual­
quer. E como é preciso esperar vocês aí, estando num sonho, está marcado por
uma certa função. O que lhes havia ensinado sobre o sonho não teria sentido se
esta função não fosse uma função de significante. Sabemos bem que o que
está desse lado da relação no fantasma do sujeito é algo também que deve ter

193
uma função complexa, não ser apenas uma imagem, mas algo áe significante.
Mas isto permanece velado, enigmático. Não podemos articulá-lo como tal.
Tudo o que sabemos, é que do outro lado da relação, o sujeito se anun­
ciou a si próprio como outro. Ou seja como sujeito marcado pelo significante,
como sujeito barrado. No sonho, é a imagem que temos, e o que não sabemos,
é o que está do outro lado, ou seja: o que é ele neste sonho? Isto é o que a
senhora Ella Sharpe vai, na sua interpretação do sonho, tentar articular para
ele.
Tomemos agora as associações a propósito do sonho, logo depois do
sujeito ter feito aquela observação que conclui o sonho, a propósito do uso do
verbo “masturbar-se” que ele usou no sentido transitivo e do qual ele faz notar
que é intransitivamente que ele devia empregá-lo para utilizá-lo de forma cor­
reta, que ao dizer «ela estava tão desapontada que tive a idéia de masturbá-
la», trata-se evidentemente de outra coisa. Trata-se de que o sujeito se mastur­
ba -é isso que pensa a analista e é o que ela logo vai lhe sugerir sublinhando o
que o próprio sujeito acabou de fazer notar, isto é, que o verbo deveria ter sido
usado no sentido intransitivo. O sujeito a esse propósito faz notar que de fato, é
excessivamente raro que tenha masturbado alguém. Só o fez uma vez com
outro rapaz. «É a única vez que consigo me lembrar», e continua «O so­
nho está muito vivo na minha memória. Não houve orgasmo, [...] Vejo a
frente das suas partes genitais, o fim da vulva» e descreve: «algo grande
que se projeta para frente e que pendia para baixo como uma prega
num capuz. Tal e qual um capuz. Era disto que a mulher fazia uso mano-
brando-o (é o termo que havia empregado no sonho), a vagina parecia aper­
tar em torno do meu dedo. O capuz parecia muito estranho, seemed
strange».
A analista retoma: «Em que você pensa mais? Deixe dizer o que há em
seu espírito.» O paciente retoma: «Penso em um antro, uma caverna. Ha­
via algo de semelhante, um antro, uma caverna sobre a colina onde eu
vivia quando era criança. Fui lá muitas vezes com minha mãe. Ela era
visível da estrada ao longo da qual nós andávamos. Seu traço mais
notável era que o cimo, the top, era saliente, overhanging, e parecia um
lábio enorme». Algo como a gruta do Ciclope, em Capri, cuja costa está
semeada de coisas semelhantes. Uma caverna com uma parte se projetando
para frente...
Ele faz sobre isto uma associação muito notável: «Há a joke a propósi-

194
to de lábios (no sentido genital do termo) correndo trunsversiilineiiic e
não longitudinalmente. Mas não me lembro como é que este joke esta­
va combinado, alguma comparação com a escrita chinesa e sua relação
com a nossa, cada uma partindo de lados diferentes, uma de cima para
baixo e a outra transversalmente. Claro, cs lábios estão side by side (ou
seja lado a lado), enquanto que as paredes da vagina são uma anterior,
outra posterior, ou seja uma longitudinal e a outra transversal. Eu pen­
so ainda, diz, no capuz».
Estes jokes que em inglês são como uma parte do patrimônio cultural
são muito conhecidos, estão em geral sob a forma de limericks. O limerick é
algo muito importante e revelador. Limito-me a mencioná-lo. Procurei numa
coleção bastante considerável de alguns três mil limericks. Este limerick se­
guramente existe, vi outros parecidos, nem sei porquê o tema da China é justa­
mente considerado. Havia essa espécie de inversão da linha da escrita -evocada
sempre que algo se aproxima de uma assimilação, também e em simultâneo, de
uma oposição da linha da fenda genital com a da boca, transversal, e também
com o que se supõe por detrás da fenda genital da transversalidade da vagina.
Ou seja, tudo isto é muito ambíguo. O que mais se aproxima e que é
divertido pelo fato que não se percebe por que especialmente a China intervém
nesta associação, é este, limerick 1381 de uma obra sobre o limerick:

Then was a young lady from China


Who mistook for her mouth her vagina
Her clitoris huge
She covered with rouge
And lipsticked her labia minor .

“Havia uma jovem da China


que um dia confundiu sua boca com sua vagina
seu clitóris enorme, ela pintou com batom
e pôs batom nos pequenos lábios.”

Traduzido, perde seu sal, mas é notável como é de qualquer forma o que

* LEGMAN G., The Limerick, 1700 exemples with notes, variants and index, London, 1974,
Jupiter books (n° 1388).

195
há de mais próximo do nosso assunto em causa, em que o autor nos sublinha
que a superposição de duas imagens, uma que é a imagem da boca, a outra que
é uma imagem genital, é bem essencial.
O que vou acentuar nisto? É que a propósito de algo em que logo o
pensamento analítico escorrega para elementos imaginários, ou seja assimila­
ção da boca à vagina, o seio da mãe considerado como o elemento engolidor ou
de devoração primitivo -e temos todas as espécies de testemunhos diversa­
mente etnológicos, folclóricos, psicológicos, que mostram esta relação primitiva
como a de continente a conteúdo, que a criança pode ter em relação ao que se
pode chamar a imagem materna.
Não lhes parece que merece ser retido a este nível algo que eu diria que
tem exatamente o mesmo acento que antes, o ponto no qual os detive quando
se tratava da grande e da pequena girafa? Não era apenas o elemento entre o
pequeno e o grande, entre a mãe e o falo, esses elementos, é o que com eles
fazia o pequeno Hans. Podia-se sentar-se em cima, amassá-los, eram símbo­
los. Eram já no fantasma coisas transformadas em papel, podería dizer-se, de
forma mais nuançada, mais interrogativa, mais sujeita à confirmação.
Mas digamos, para pontuar aquilo de que se trata, que isto não é nada,
que não é em vão que para introduzir aqui algo relativo a esse elemento imagi­
nário, representado, já tão notável, que está no sonho e que nos foi pintado
como algo muito precisamente descrito, a dobra de um capuz. Não é pouca
coisa! É algo que tem já uma certa estrutura que cobre, que penteia -que se
receia também. E o dedo introduzido, to close round64, neste elemento, este
suor também, é alguma coisa que nos dá algo de totalmente preciso como
imagem, algo impossível de afogar numa simples estrutura geral de envolvimento,
ou de devoração, ou de engolimento. Está já numa certa relação, precisamente
com o dedo do sujeito. Diria mesmo que toda a questão está aí. Mete ou não
mete aí o dedo? E certo que mete aí o dedo e não mete outra coisa, entre outras
não mete aí o seu pênis que está presente, que essa relação com o que vem
envolver, calçar a mão, é algo que no caso é totalmente prevalente, posto na
dianteira, puxado para a frente no limite da figurabilidade, como diz Freud para
designar o terceiro elemento em ação, o trabalho do sonho, Traumarbeit.

M “The vagina seemed to close round my finger".


N.d.T.: Expressões populares francesas para “chapéu”.

196
Trata-se de saber o que devemos fazer com isto. Se devemos resolvê-lo
logo numa série de significações redimidas, pré-formadas, ou seja tudo o que é
possível pôr por detrás disto, introduzir nós mesmos, nesta espécie de saco de
prestidigitador, tudo o que estamos habituados a encontrar aí, ou devemos pa­
rar, respeitar isto como algo que tem aqui um valor específico.
Vocês devem dar-se facilmente conta, quando digo valor específico, por
pouco que tenham um pouquinho mais do que noções livrescas sobre o que isto
pode ser, um fantasma semelhante, que afinal, é bem possível não afogarmos
tudo na noção por exemplo muito geral de interior do ventre da mãe, da qual se
fala tanto nos fantasmas.
Algo de tão elaborado no sonho merece que nos detenhamos. O que
temos neste caso diante de nós, não é certamente o interior de um útero, é
overhanging, esta borda que se projeta. E aliás, porque ela é extremamente
fina, Ella Sharpe sublinha adiante, numa passagem que poderemos ser levados
a encontrar na sequência, que se está diante de algo notável: «é uma projeção»
diz ela, e logo em seguida após na passagem ela anuncia «é o equivalente de
um pênis».
É possível, mas por que apressar-se? Tanto mais que ela sublinha tam­
bém nesse momento que é difícil fazer dessa projeção algo ligado à presença
da vagina. É muito acentuado nó sonho, e até pela própria manobra a qual o
sujeito se presta, eu diria se substitui a si próprio pondo ali o dedo e não o pênis.
Como não ver que muito precisamente esse algo está localizado, se pode-se
dizer, nesse fantasma que é com efeito como o sujeito o articula, algo que tem
a mais estreita relação com a parede anterior e posterior da vagina! O que
eqüivale a dizer, para um médico cuja profissão é praticar a medicina -o que
não era o caso de Ella Sharpe que era professora de letras e isso lhe dava
grandes aberturas sobre a psicologia- é um prolapso, algo que se produz na
parede da vagina, onde se produz essa prosecção da parede anterior, mais ou
menos seguida de prosecções da parede posterior e que, num estádio ainda
ulterior, faz aparecer no orifício genital, a extremidade do colo. É algo extrema­
mente freqüente que coloca toda a espécie de problemas ao cirurgião.
Não é disso que se trata. Claro que há aí algo que põe logo em jogo a
questão e o fantasma da mulher fálica. E tão verdade que me lembrava pen­
sando em vocês (não conseguí verificar a passagem, é um fato muito conheci-'
do, penso, para que não constitua novidade para alguns de vocês) da rainha
Cristina da Suécia, a amiga de Descartes, que era uma mulher rude como todas

197

■> \
as mulheres dessa época -não seria demais insistir sobre a influência na histó­
ria das mulheres dessa maravilhosa metade do século XVIII. A rainha Cristina
da Suécia um dia viu ela própria aparecer no orifício da vulva a ponta de um
útero que, sem que saibamos as razões, lhe aconteceu nesse momento de sua
existência, abrir-se num caso bem característico de prolapso uterino. Foi então
que, cedendo a uma bajulação enorme, seu médico cai aos seus pés dizendo:
“Milagre! Júpiter devolveu-te por fim ao teu verdadeiro sexo”. O que prova
que o fantasma da mulher fálica não data de ontem na história da'medicina e da
filosofia...
Não é isto que está no sonho, nem o que se deve ouvir -a analista men­
ciona mais tarde na observação- que a mãe do sujeito, por exemplo, teve um
prolapso. Ainda que, por que não, visto que na articulação da sua compreensão
do que se passa, a analista conta que, muito provavelmente, o sujeito viu um
monte de coisas por baixo, que algumas de suas imaginações permitem pensar
que ele [pôde ver], deve mesmo ter [visto], para que sua interpretação seja
coerente, algo análogo, ou seja uma certa apreensão, por baixo das saias, do
órgão genital (e o de sua mãe). Por que não pensar nesse sentido?
Mas não é isso. Teremos muito maior legitimidade para ir nesse sentido
que a própria analista, já que, daqui a pouco, ela vai passar necessariamente
por essa suposição. Quanto a nós não estamos aí. Só indico simplesmente que
na medida em que se trata de referências relativas a imagens do corpo, vamos
fazê-las entrar em jogo na interpretação. Não seríamos precisos, por que não
se distinguiria a obsessão, ou o desejo, ou o temor do retomo ao ventre mater­
no, e a relação muito especialmente com a vagina, que afinal não é algo, vê-se
bem nesta simples explicação, da qual o sujeito não possa ter alguma apreen­
são direta ou indireta?
O que eu quero simplesmente sublinhar aqui, depois de ter marcado o
acento especial desta imagem deste sonho, é que em todo caso algo deve nos
reter. E o fato de que o sujeito associa imediatamente a algo completamente de
outra ordem, a esse jogo poético e verbal do qual, se dei um exemplo, não foi só
para me divertir, foi para dar uma idéia do estilo, de um extremo rigor literário;
é um gênero que tem as leis, as mais estritas que sejam -e joke ou limerick,
pouco importa- que têm uma história definida literariamente e que dizem elas
próprias respeito a um jogo relativo à escrita. Porque o que não encontramos
no limerick que desenterramos, o sujeito, ele, afirma tê-lo ouvido: foi referindo-
se à direção diferente das linhas de escrita na nossa maneira de escrever e na

198
chinesa, que evocou então algo que não se impõe tanto nesta associação: ou
seja justamente o que põe no caminho de uma aproximação entre o orifício dos
grandes lábios e os lábios da boca.
Esta aproximação como tal, refiramo-la à ordem simbólica. O que pode
haver de mais simbólico, são as linhas de caracteres chineses, porque é algo
que está aí, que nos designa que em todo caso esse elemento no sonho é um
elemento que tem um valor significante, que nesta espécie de adaptação, de
adequação, de acomodamento do desejo enquanto ele se faz de algum modo
em relação a um fantasma que está entre o significante do Outro [S QK)] e o
significado do Outro [s (A)], pois é essa a definição do fantasma na medida em
que o desejo tem de se acomodar a ele.
E o que é que estou dizendo senão exprimir de uma forma mais articula­
da o que é a nossa experiência quando procuramos centrar o que é o desejo do
sujeito? É isto, algo que é uma certa posição do sujeito em face de um certo
objeto, na medida em que o coloca algures, intermediário entre uma pura e
simples significação, uma coisa assumida, clara, transparente para ele, e outra
coisa que não é de todo um fantasma, que não é uma necessidade, que não é
um ímpeto, um feeling, mas que é sempre da ordem do significante enquanto
significante, algo de fechado, de enigmático. Entre os dois, há o que aqui apare­
ce sob a forma de uma representação sensível extremamente precisa, imajada.
E o sujeito, pelas próprias associações nos adverte: isto é o que é significante.
Que vou fazer agora? Será que vou entrar na forma como a analista o
interpreta? E necessário então que eu lhes faça conhecer todo o material que
temos. Que diz a analista, prosseguindo nesse momento? Então o quê? Ela
volta ao fato que o sujeito retoma depois de ter tossido, volta ao capuz.
«- Penso no capuz, - Então o quê, diz a analista? - Um homenzinho
estranho, responde, uma vez, num dos meus primeiros campos de gol­
fe, lembro-me. (Andava atrás de mim e) disse-me que poderia dar-me um
saco para os tacos, barato e que o material seria o tecido utilizado nas
capotas de carro». Nisto, ele faz uma imitação depois de ter dito «É do seu
sotaque que me lembro, imitá-lo assim (falando dele próprio), lembra-me
uma amiga cujas imitações na rádio (Broadcast é a palavra que é importan­
te) são extremamente astuciosas e finas very dever, se bem que exage­
ro um pouco contando-lhe algo semelhante, tanto como se lhe contasse
que tinha a mais maravilhosa T.S.F. que se possa ter, ela pega todas as
estações sem a menor dificuldade. A minha amiga tem uma memória

r>9
esplêndida, diz ele. Ela lembra-se igualmente bem da sua infância, mas
a minha memória é francamente má abaixo dos onze anos. Lembro-me
no entanto de uma das primeiras canções que ouvimos no teatro, e ela
imitou o homem em questão, depois». Trata-se de uma canção do bom
gênero inglês do music-hall, que pode se traduzir mais ou menos “Onde é que
foste buscar esse chapéu, onde é que foste buscar essa telha?” A “te­
lha” designa mais especialmente o que se chama neste caso um “tube”, o
chapéu alto. Pode também significar “bitos” ou “galurin”.
«Minha cabeça, continua, voltou ao capuz outra vez e lembro-me
de um primeiro car que tive de início. Mas na época, claro, não se
chamava car, mas motor-car (o sujeito é de idade avançada)(...) a capota
deste motor tinha traços completamente notáveis. Estava recolhida atrás
com correias quando não estava posta. No interior havia desenhos ver­
melhos. E continua, a velocidade de ponta deste car estava em torno de
sessenta miles...» Fala daquele car como se falasse da vida de um car, como
se ele fosse humano. «Lembro-me de ter ficado enjoado naquele car, e
isso lembra-me do tempo em que tive de urinar num saco de papel
quando era criança [...] Eu penso ainda no capuz».
Vamos nos deter aqui nas associações. Elas não vão ainda muito longe,
mas quero no entanto fazer o contraponto entre o que lhes trago aqui com a
maneira como a analista começa a interpretar isso. «A primeira coisa de im­
portância, diz ela, é encontrar o fio cardeal da significação do sonho. Podemos
fazê-lo, diz ela com muita justeza, notando apenas o momento em que as coisas
vêm à cabeça do paciente». E nisto ela começa a falar do cão que se mastur­
bava contra sua perna no momento em que imedíatamente, antes, ele falou do
cão para dizer que ele próprio imitava esse cão, a seguir da tosse, depois do
sonho do qual acordou transpirando.
«A dedução, diz ela, relativa à significação geral do conjunto do sonho é
assim, para ela, a de uma fantasia masturbatória». Nisto estou totalmente de
acordo, isto é da maior importância, estamos de acordo com ela.
«A coisa seguinte a notar, diz ela, é, em conexão com esta fantasia de
masturbação, o tema da potência». Ela a entende não no sentido de potência
sexual, mas no sentido de potência no sentido mais universal do termo, como
dirá mais à frente, de onipotência.
. «Ele faz uma viagem de volta ao mundo; é o sonho mais comprido que já
teve» (é o que o sujeito diz), levaria uma hora inteira para contá-lo. Com isto,

200
podemos pôr em relação a desculpa de estar a armar ao falar das imitações da
sua amiga que está no rádio. E que está no rádio para o mundo inteiro, acres­
centa a analista, e seu próprio aparelho daT.S.F. que pega todas as espécies de
estações. Notemos também sua própria imitação do homem cujo sotaque o
divertira tanto, um sotaque fortemente cockney, e incidentemente o que ele
disse desse homem».
«As imitações pela voz de sua amiga e por sua própria voz significam
imitações de uma pessoa mais forte.» Será que ela se engana ? «É mais um fio
condutor em direção ao sentido da fantasia da masturbação, ou seja a fantasia
na qual ele encarna uma outra pessoa. É uma significação de um poder de
potência imensa».
Eis pois o que é tido pela analista como óbvio. Ou seja, que o simples fato
destas encarnações mimetizadas intervindo mais ou menos com -a fantasia
masturbatória sendo suposta no fundo do que se passa- o único fato que o
sujeito se tenha desculpado de exagerar, de se gabar, de se exibir em excesso,
significa que temos uma fantasia de onipotência que deve ser posta em
primeiríssimo plano.
Será isto algo que possamos desde logo subscrever? Uma vez mais lhes
peço aqui simplesmente acentuar que o menos que se possa dizer, é que há
uma confusão talvez quando se diz que se trata de uma onipotência desejada,
ou mais ou menos secretamente assumida pelo sujeito já que, parece, este
sujeito, se nos mantivermos na primeira abordagem do sonho, seu conteúdo
manifesto neste caso é antes pelo contrário para reduzi-la, para minimizá-la.
E a analista sublinha-o ela própria, em uma outra ocorrência do capuz. A
analista está de tal forma, de fato, muito para além da sua própria interpreta­
ção, sob a influência de uma certa apreensão disso, desse lado reduzido do
sujeito em toda sua presença neste fantasma que ela diz sempre, «ele viu ou
percebeu isso quando era uma criança minúscula». Com efeito, o que é que
vemos? Vemos mais é o sujeito fazendo-se bem pequeno na presença dessa
espécie de apêndice vagamente tentacular em direção ao qual, no máximo, mal
ousa aproximar um dedo, que não se sabe se deve ser tocado por ele, coberto,
protegido, em todo o caso afastando de si e do exercício próprio de sua potên­
cia, em todo caso sexual, esse objeto significante. Talvez seja ir um pouco
longe, e é sempre a mesma confusão, confundir a onipotência imputada ao
sujeito como mesmo mais ou menos recusada, com o que é pelo contrário
totalmente claro neste caso, a onipotência da fala.

201
Mas é que há um mundo entre as duas porque é precisamente no conta­
to com a fala que o sujeito está em dificuldade. E um advogado, cheio de
talento, e é tomado pelas mais severas fobias cada vez que se trata para ele de
comparecer, de falar. No início dizem-nos que o pai dele morreu aos três anos,
que o sujeito teve as maiores dificuldades em fazê-lo reviver um pouco na sua
lembrança. Mas qual é a única recordação que lhe resta absolutamente clara?
Foi que lhe transmitiram na família que as últimas palavras do pai foram “Robert
tomará meu lugar”. Qual o sentido? Será que a morte do pai é temida? Na
medida em que o pai está morto ou na medida em que o pai moribundo falou,
disse “ele deve tomar meu lugar”-isto é “aqui onde eu estou [ou então] onde
eu morro”?
A dificuldade do sujeito em relação à fala, esta distância que faz que da.
fala ele se serve justamente para estar alhures, e que inversamente nada é
mais difícil para ele do que não só falar, mas fazer falar seu pai -«esse passo
não foi senão muito recentemente franqueado e isso foi uma espécie de admi­
ração para ele, nos diz a analista, ver que seu pai falava»- não é algo que pelo
menos deva incitar-nos a acentuar nele mais do que para um outro esta divisão
entre o outro como falante e o outro como imaginário. Porque para dizer tudo
será que uma certa prudência não se impõe a este nível?
A. analista encontrará uma confirmação da onipotência do sujeito no ca­
ráter enorme do sonho. O caráter enorme do sonho, nós não podemos conhecê-
lo senão pelo sujeito. É ele que nos diz que teve um sonho enorme, que tinha
uma história enorme antes, que havia toda uma volta ao mundo, cem mil aven­
turas que levariam um tempo enorme para contar, que ele não vai aborrecer a
analista com isso. Mas, no fim das contas, a montanha pare uma historieta, um
camundongo. Se há também aqui uma noção de algo que é indicado como um
horizonte de toda potência, é uma narrativa... mas uma narrativa que não é
feita. A onipotência está sempre do lado do Outro, do lado do mundo da fala
enquanto tal.
Será que devemos desde já ver o sujeito neste caso como sendo, o que
supõe e o que toda a seqüència implicará no pensamento da analista, como
sendo a estrutura do sujeito -não somente esse fantasma como onipotente mas
com a agressividade que isso comporta?
É nisto que temos que desde já nos deter para situar justamente o que
estou tentando fazer-lhes notar, ou seja o que se produz às vezes, dir-se-ía, de
parcialidade nas interpretações, em toda a medida em que é ignorada uma

202
diferença de plano que, quando ela c suficientcnicntc accntuiidíi na própria
estrutura, deve ser respeitada. Só nesta condição sabemos que esta diferença
de plano existe.
«Qual é a questão que se põe imediatamente a seguir? nos diz a analista,
por quê esta fantasia de extrema potência? A resposta é dada no sonho. Ele
faz uma volta ao mundo. Eu poria isso como que ligado com a idéia da recorda­
ção real que lhe vem quando descreve o capuz no sonho, que era tão estranho,
porque isto põe em evidência não só o fato que ele descreveu uma projeção,
uma dobra do capuz, mas também que o capuz estava saliente como o lábio de
uma caverna. Assim, obtemos isso que o capuz e os lábios da vulva são compa­
rados com uma grande caverna sobre-o flanco da colina onde ele passeava
com a mãe. A fantasia da masturbação é pois uma fantasia associada com
uma potência imensa porque ele sonha estreitar, abraçar a terra-mãe, estar à
altura, ao nível da enorme caverna, sob os lábios projetados para frente. Isto é
a segunda coisa de importância».
Vêem como procede neste caso o pensamento da analista. Incontesta-
velmente, vocês não podem deixar de sentir aqui um salto. Que haja uma rela­
ção graças à associação, isso é demonstrado, entre a lembrança de infância,
em que ele próprio é coberto como se diz, e aquela da qual se trata, ou seja o
valor significante do fantasma que eu chamaria fantasma de prolapso, isso
claro não deve ser afastado. Que o sujeito seja considerado por isso mesmo
como sendo o sujeito clássico, se posso dizê-lo, da relação edipiana, isto é o
sujeito que se eleva ao nível deste abraço da mãe, que aqui se toma abraço
mesmo da terra-mãe, do mundo inteiro, há aí algo que me parece ser um passo
franqueado talvez um pouco depressa. Sobretudo quando sabemos quanto, ao
lado deste esquema clássico, grandioso, do herói edipiano desde que se mostre
à altura da mãe, quanto, ao contrário deste esquema, podemos ver o que [Freud]
tão bem destacou de uma fase da evolução da criança, ou seja o momento em
que muito precisamente a integração de seu órgão como tal está ligada a um
sentimento de inadequação -contrariamente ao que diz a analista- com aquilo
de que se trataria num empreendimento como a conquista ou o abraço da mãe.
Efetivamente, este elemento pode fazer um papel, faz um papel incontestável,
manifesto.de maneira bem apressada num grande número de observações re­
lativas precisamente a esta relação narcísica do sujeito a seu pênis na medida
em que, por ele, é considerado como mais ou menos insuficiente, pequeno de­
mais.

203
Não é só a relação com os semelhantes, os rivais masculinos que entram
em jogo. A experiência clínica nos mostra pelo contrário qué a inadequação do
pênis ao órgão feminino como suposto ser absolutamente enorme comparado
com o órgão masculino, é algo demasiado importante para que possamos aqui ir
tão depressa.
A analista continua: «Agora vou chamar-lhes a atenção sobre a associ­
ação relativa aos lábios e aos lábios vulvares. A mulher que foi um estímulo
para este sonho tinha os lábios vermelhos, cheios, apaixonados. No sonho, ele
tem uma pintura muito viva da imagem dos lábios e do capuz. Há a caverna
com um lábio saliente. Pensa em coisas longitudinais, [...] e noutras transver­
sais -o que agora nos sugere a boca comparada com a vulva». Isto sem co­
mentários... «Ele pensa por outro lado no primeiro motor, o primeiro carro que
teve e em sua capota recolhida com correias, atrás quando não está posta, no
desenho vermelho dessa capota. Pensa imediatamente na velocidade do car,
no “pico de velocidade” que era de tantas miles à hora. Fala depois “da vida do
car”, e observa que fala do car como se ele fosse um ser vivo. Por causa da
descrição deduzirei daqui que a memória da caverna verdadeira que visi­
tou com sua mãe constitui uma lembrança encobridora. Deduzirei que isto é
projetado no carro com seu capuz vermelho, que é da mesma lembrança que se
trata nos dois casos, nos diz ela, e que o pico da velocidade tem a mesma
significação que a projeção das partes genitais no sonho -o pico de velocidade
é assim a ponta do capuz. Deduzo que é uma lembrança real, reprimida, por ter
visto os órgãos genitais de alguém muito mais velho do que ele, quando era
muito pequeno; e o car, e a caverna, e dar a volta ao mundo ao mesmo tempo,
ponho-os em conjunção com esta potência imensa exigida por nós. O pico, o
capuz, interpreto-os como o clitóris».
Apesar de tudo, aqui, um pouco tal como eu dizia há pouco que a monta­
nha do sonho anunciada pare um camundongo, há algo análogo, patente no que
eu chamaria quase les ãnonnations da analista.
Aceito que esse “pico de velocidade” seja identificável ao capuz, mas se
é verdadeiramente algo de tão pontiagudo, de tão enorme, como associá-lo a
uma recordação real, vivida, da infância. Há apesar de tudo algum excesso ao
concluir tão ousadamente que se trata aí no sujeito de uma lembrança encobridora
relativa a uma experiência efetiva do órgão genital feminino ao tratar-se do
clitóris. E bem com efeito ao que no entanto se decide a analista ao expor nesse
momento como de um elemento chave, pelo fato de que “sua irmã tem oito

204
í
‘ anos mais do que ele, e às referências que ele fez à voz de mulher e à voz de
| homem imitada, que são semelhantes graças à imitação. Desta referência a ela
e em conexão com uma encarnação masculina, deduzo que, pelo menos quan­
do era muito pequeno, ele viu os órgãos de sua irmã, se apercebeu do clitóris e
, a ouviu urinar estendido no tapete». Tem aliás logo a seguir que evocar
i mais longe, «considerando o conjunto do trabalho de análise feito antes, que

1 além disso, havia alguma situação infantil na qual teve alguma ocasião de ver
as partes genitais de sua mãe». Todos os detalhes supõem nestas recordações,
nestas imagens, que ele teria estado nessa altura deitado no tapete, que teria
; visto isto e aquilo.
Vou mesmo assim pontuar-lhes aqui algo que lhes indica pelo menos
aonde quero chegar com estas críticas em que lhes ensino a olhar, a soletrar se
podemos dizer, em que sentido vão um certo número de inflexões na compre­
ensão do que nos é apresentado, que não se destina, creio, a aumentar-lhe a
evidência, nem também sobretudo, verão quando lá chegarmos, a dar-lhe a sua
r justa interpretação.
É necessário, no entanto, clarear um pouco o meu jogo, dizer-lhes onde
quero chegar, o que entendo dizer -em oposição a esse corredor no qual se
engaja o pensamento da analista. E verão que estas interpretações serão a
esse respeito extremamente ativas, mesmo brutais, sugerindo que o fundo da
} questão é o caráter agressivo de seu próprio pênis. Vocês o verão, que é seu
i pênis enquanto órgão agressivo, enquanto órgão fazendo entrar em jogo o ca-
’ ráter nocivo e deletério da água que emite, ou seja da urinação que viram
evocada no caso e à qual teremos de voltar, que a analista obtém um efeito que
í não deve surpreender tanto assim, que foi que um sujeito adulto e já avançado
em idade, lhe aconteça fazer uma micção na noite seguinte. Mas deixemos isto
de lado.
O que quero dizer é: creio que este sonho, para antecipar um pouco
s sobre o que creio poder demonstrar-lhes ao continuar este trabalho penoso e
i lento de análise linha a linha do que nos é apresentado... Onde é que a questão
se põe no que se pode chamar o fantasma fundamental do sujeito na medida
! em que ele é presentificado? O sujeito imagina algo, não sabemos o quê, refe-
; rente a sua analista -lhes direi o que a analista pensa ela própria do ponto em
que se está da transferência. Essa transferência é nesse momento uma trans­
ferência de tipo nitidamente imaginário. A analista é focalizada, centrada como
algo que é essencialmente, em relação ao sujeito, numa relação de um outro eu

205

ik
[moí]. Toda a atitude rígida, medida, de defesa (como a analista sente muito
bem) em presença de Ella Sharpe, é algo que indica uma relação especular das
mais estreitas com a analista. E contrariamente ao que diz Ella Sharpe, está
muito longe de ser a indicação de que não há transferência. É um certo tipo de
transferência à fonte, dual, imaginária.
Esta analista, na medida em que é a imagem dele, ela está fazendo o
quê? Já, isso se impõe, é bastante claro que contra o quê o sujeito a previne
com a sua «pequena tosse» é que ela sonha em masturbar-se. E isso que ela é
suposta estar fazendo. Mas como o sabemos? Não o sabemos logo, e isso é
muito importante. Como podemos saber? É na medida em que, no sonho, a
coisa é totalmente clara, visto que é exatamente o que o sujeito está dizendo, a
saber que há alguém que se masturba.
A analista reconhece com muita justeza que se trata de uma masturbação
do sujeito, que é ele que sonha. Mas que o sonho seja a intenção manifestada
no sujeito de masturbá-la -acrescentando que se trata de um verbo intransitivo
- indica-nos suficientemente a seguinte via: que o fantasma significante de que
se trata é o de uma estreita ligação de um elemento macho e fêmea, tomado
sobre o tema de uma espécie de envolvimento. Quero dizer que o sujeito não
está simplesmente tomado, contido no outro, na medida em que a masturba, ele
se masturba, mas também não se masturba.
Quero dizer que a imagem fundamental de que se trata, que está aí
presentificada pelo sonho, é uma espécie de bainha, de luva. São aliás, em
suma, as mesmas palavras, bainha é a mesma palavra que vagina65.
Eis duas ocorrências linguísticas que não deixam de ter uma significa­
ção. Sobre a bainha, a luva, a capa, haverá muito a dizer do ponto de vista
lingüístico, porque creio que há aí toda uma cadeia de imagens que é extrema­
mente importante marcar porque elas são muito mais constantes, verão, e pre­
sentes, não só no caso particular mas em muitos outros casos.
Aquilo de que se trata, é que o personagem imaginário, significante, é
algo onde o sujeito vê de alguma forma envolvida, tomada, toda espécie de
possibilidade de sua manifestação sexual. E em relação a esta imagem central
que ele situa seu desejo e que seu desejo está de certa forma cativo.
Vou tentar mostrá-lo porque é preciso que eu faça algo mais para justifi­
car esta noção que é a seguinte: na sequência das associações, vai aparecer

u Latim vagina: bainha ou capa da espada. .>t

206
uma idéia que atravessou o espírito do sujeito, nos diz a analista, quando dita
associações precedentes; O sujeito pelas suas funções deve ir a uni lugar onde
o rei e a rainha deverão ir. Está obcecado pela idéia de ter urna avaria no cano
no meio da estrada e de bloquear assim a passagem do automóvel rcnl, A
analista vê nisso mais uma vez as manifestações de onipotência teinidn pelo
sujeito para ele mesmo e vai ao ponto de ver nisso -veremos Indo cm ilrliilhr
na próxima vez- o fato de o sujeito ter tido a ocasião, quando dc mim crmi
primitiva, de intervir dessa forma, parando algo, os pais durante a cerni pnmiii
va.
O que é muito surpreendente, parece-nos pelo contrário, é a função jns-
tamente do cano à qual voltaremos. O sujeito está num carro e, bem longe
dessa parada separar seja quem for, ele pára sem dúvida alguma os outros (q uc
ele pára tudo, sabemo-lo certamente, visto que se trata disso, está em análise
por causa disso), tudo pára, ele pára o casal real, parental, no caso num carro,
e logo num só carro que os envolve como a capota do seu cano, aquele que ele
evoca com as suas associações, reproduzindo o caráter de cobertura da caver­
na.
Estamos na época em que Melanie Klein começa a subir na Sociedade
inglesa, e a produzir coisas articuladas que são de uma alta qualidade clínica. E
será que valeu mesmo a pena ter falado tanto do parente ambíguo, do monstro
bi-parental, se foi para não se saber aqui reconhecer de uma forma particular­
mente especificada, um certo caráter ambíguo, ligado a um certo modo da
apreensão da relação sexual.
Digamos para acentuar ainda o nosso pensamento que o que está em
questão no sujeito, é justamente isso precisamente de os separar, aos pais, de
separar neles os princípios macho e fêmea. E eu diria, de certo modo, o que se
propõe como visada no horizonte da interpretação analítica, não é senão uma
espécie de operação de circuncisão psíquica. Porque no fim de contas, essa
vagina saliente [praírus], deslocada que ali está e que vem aqui se apresentar
sob a forma de algo que por outro lado não está em nenhum lado, que se furta
-falei há pouco do saco do prestidigitador, mas na verdade, conhecemo-la, essa
operação do prestidigitador, chama-se o saco do ovo que se vira e revira e onde
se encontra altemativamente e não se encontra o que lá se mete, com uma
certa habilidade. Esta espécie de perpétua presença e não-presença do sujeito,
é também algo que tem uma outra face: é o que há na masturbação que já
implica aí um certo elemento fêmea presente. É por isso que falo de uma certa

y ' 207
circuncisão. Esta espécie de elemento saliente [protrus], é também o prepúcio
com que ele sonha, de certa forma. E isso do que se trata neste sujeito -e que
uma outra parte de suas lembranças vai nos fazer aparecer é incontestável, há
uma certa relação entre ele e a conjunção sexual. Houve uma na sua infância.
Mas onde ele estava? Estava na cama e, verão, severamente ensalsichado
com alfinetes de dama postos nos lençóis. Temos outros elementos que nos
mostram também o sujeito em seu carrinho de bebê com correias, loros.
A questão para o sujeito, tal como nos é apresentada aqui é esta: na
exata medida em que está atado, em que ele mesmo está parado, pode gozar
com o seu fantasma precisamente e participar nele por essa atividade de suple­
mento, essa atividade derivada, deslocada que é a urinação compulsiva. Na
exata medida em que estava atado, nesse momento mesmo essa espécie de
suplemento, de falso gozo que lhe dá essa urinação que constatamos justamen­
te nos sujeitos, tão frequentemente em relação com a proximidade do coito
parental, nesse momento, ele se toma o quê? Justamente esse parceiro de
quem nos diz que ela tanto precisa, que é ele quem deve lhe mostrar tudo e que
é ele quem precisa fazer tudo, quem se feminisa. Na medida em que está
impotente, se posso dizer, é macho. E que isto tenha suas compensações no
plano da potência ambiciosa, é evidente! Ai voltaremos na próxima vez, mas na
medida em que se libertou, ele se feminiza.
E nesta espécie de jogo de esconde-esconde, de duplo jogo, de não-
separação das duas faces nele da feminidade e da masculinidade, nesse tipo de
apreensão fantasmática única, fundamentalmente masturbatória, que é ainda
para ele a apreensão do desejo genital, que jaz o problema. E espero mostrar,
na próxima vez o quanto estamos justificados ao orientar nossas interpretações
nesse sentido para permitir ao sujeito o passo em frente.

208
Lição 11

04 de fevereiro de 1959

Chegamos então ao momento de tentar interpretar este sonho do sujeito


de Ella Sharpe, empreendimento que não podemos tentar-a título aliás pura­
mente teórico, como um exercício de investigação- senão por causa do caráter
excepcionalmente bem desenvolvido deste sonho que ocupa, no dizer de Elia
Sharpe a qual nós damos todo crédito neste ponto, um ponto crucial da análise.
O sujeito, que fez «um enorme sonho» que precisaria horas para contá-
lo, pois ele diz que o esqueceu, que resta apenas o que se passa numa estrada
da Tchecoslováquia na qual ele se encontra por ter empreendido uma viagem
ao redor do mundo com sua mulher. Eu mesmo sublinhei que ele dizia: «uma
viagem com minha mulher ao redor do mundo». Ele se encontra numa es­
trada e ai se passa isso, que ele está, em resumo, atormentado pelos assédios
sexuais de uma mulher, que, eu faço questão de observar, se apresenta de um
certo modo que não está dito nq primeiro texto do sonho. O sujeito diz: «Eu
me apercebo no instante mesmo, ela estava em cima de mim, ela fazia tudo
o que podia to get my penis». Tal é a expressão a qual voltaremos mais adian­
te.
«Certamente, diz o sujeito, isto não me agradava absolutamente, ao
ponto que eu pensava que diante de seu desapontamento eu deveria
masturbá-la». Ele faz uma observação aqui sobre a natureza profundamente
intransitiva do verbo to masturbate, em inglês, a qual nos interessa já, com o
próprio autor, -ainda que o autor tenha acentuado menos diretamente seu fun­
damento sobre a observação de algum modo gramatical do sujeito- ao obser­
var que se trata, evidentemente, de uma masturbação do sujeito.

209
Na última vez salientamos o valor do que aparece menos ainda nas asso­
ciações do que no desenvolvimento da imagem do sonho. Ou seja, o que forma
esta dobra, este «.hood»66 ao modo de uma dobra de um capuz, de que fala o
sujeito? E temos mostrado que seguramente o recurso à bagagem de imagens,
consideradas pela doutrina clássica e oriundas manifestamente da experiência,
quando se as faz agir de algum modo como tantos objetos separados sem repa­
rar muito bem na sua função em relação ao sujeito, leva a alguma coisa que
talvez possa ser forçada. Assim, sublinhamos na última vez isto que podia aí
haver de paradoxal na interpretação muito apressada deste singular apêndice,
desta protuberância do órgão genital feminino como sendo doravante o signo
de que se trata do falo da mãe.
Tanto mais, aliás, que uma tal coisa não é sem ocasionar no pensamento
da analista um outro salto, de tal modo que é verdade que um passo imprudente
não pode se retificar (contrariamente ao que se diz) senão por um outro passo
imprudente, que o erro é bem menos *erudito* do que se crê, pois a única
chance de se salvar de um erro é cometendo um outro que o compense.
Não dizemos que Ella Sharpe errou completamente, tentamos articular
melhores modos de direção que teriam permitido uma adequação mais com­
pleta. Isto sob toda reserva, bem entendido, pois não teremos jamais a experi­
ência crucial.
Mas o salto seguinte do qual eu falava é que isto de que se trata, é ainda
menos o falo do parceiro -do parceiro na ocasião imaginado no sonho- que do
falo do sujeito. Isto nós o sabemos, o caráter masturbatório do sonho, nós o
admitimos, coordenado por muitas outras coisas, além das que aparecem após,
nos ditos do sujeito. Mas este falo do sujeito, de agora em diante, somos condu­
zidos a considerá-lo como sendo este instrumento de destruição, de agressão,
de um tipo extremamente primitivo, tal que ele sai disto que se poderia chamar
a “imagerie”. E é neste sentido que doravante se orienta o pensamento da
analista, Ella Sharpe, na ocasião, e ainda que ela esteja longe de comunicar o
conjunto de sua interpretação ao sujeito. O ponto sobre o qual ela vai em segui­
da intervir, neste sentido que ela o diz, é após lhe ter feito observar os elemen­
tos que ela chama de onipotência. Segundo sua interpretação, o que aparecería
em seu dizer no sonho será em segundo lugar a masturbação, em terceiro lugar
esta masturbação é onipotente no sentido que se trata deste órgão perfurante e
qúe morde que é o próprio falo do sujeito.

“ ulike a fold on a hood. Hoodlike... »

210
É preciso dizer que há aí uma verdadeira intrusão, uma verdadeira
extrapolação teórica da parte da analista, pois na verdade nada, nem no sonho,
nem nas associações, dá alguma espécie de fundamento para fazer intervir em
seguida na interpretação esta noção junto do sujeito que o falo aqui interviria
enquanto órgão de agressão, e que o que seria temido seria de algum modo o
retomo, a retorsão da agressão implicada da parte do sujeito.
Não se pode deixar de sublinhar aí que vemos mal em que momento o
sujeito passa destas intrusões à análise do que ela tem efetivamente diante dos
olhos, e que ela sente com tanto detalhe e fineza: É claro que se trata de teoria.
Basta ler esta fórmula para se aperceber que depois de tudo, nada justifica isto
senão alguma coisa que a analista não nos diz. Mas ainda ela nos informou
suficientemente, e com muito cuidado-, dos antecedentes do sonho, do caso do
doente em suas grandes linhas, para que possamos dizer que aí há seguramente
alguma coisa que constitui um salto.
. Que isto se tenha mostrado necessário é precisamente o que depois de
tudo lhe concedemos de bom grado, mas que nos pareça a nós também neces­
sário, é sobre este ponto que colocamos a questão e que vamos tentar retomar
esta análise. Não de algum modo para substituir aos equivalentes imaginários
de interpretações no sentido em que se entende propriamente falando (“isto
que é um dado deve se compreender como aquilo”). Não se trata de saber o que
quer dizer em tal ou tal momento, no conjunto, cada elemento do sonho. No
conjunto apenas se pode dizer que estes elementos são mais que corretamente
apreciados. Eles estão baseados numa tradição da experiência analítica no
momento em que opera Ella Sharpe. E de outra parte eles são certamente
percebidos com um grande discernimento e uma grande fineza.
Não é disto que se trata. E de ver se o problema não pode se esclarecer ao
ser formulado, articulado, de um modo que ligue melhor a interpretação com
esta alguma coisa sobre a qual eu tento colocar o acento para vocês aqui, ou
seja a topologia intersubjetiva, aquela que sob diversas formas é sempre aquela
que aqui eu tento construir diante de vocês, restituir na medida em que é aquela
mesma de nossa experiência: aquela do sujeito, do pequeno outro, do grande
Outro, na medida que seus lugares devam sempre, no momento de cada fenô­
meno na análise, ser por nós marcado se queremos evitar esta sorte de emara­
nhado, de nó verdadeiramente cerrado como de um fio que não se pode desatar
e que forma, se assim se pode dizer, o cotidiano de nossas explicações analíti­
cas.
Este sonho, nós já o percorremos de diversas formas e podemos igual­
mente começar a articular alguma coisa simples, direta, alguma coisa que não

211
está mesmo ausente de toda observação, que decorre desta leitura que fize­
mos. Direi que no estádio do que precede, que conduz o sujeito, e do próprio
sonho, há uma palavra, que depois de tudo o que temos aqui como vocabulário
em comum, parece ser aquela que vem primeiro e que não teria sido excluído
que ela venha nesta época ao espírito de Ella Sharpe. Isto não é fazer intervir
de todo uma noção que não estava à sua disposição; estamos no meio inglês,
neste momento ai dominado por discussões tais como aquelas que se elaboram
por exemplo entre Sr. Jones e Sra. Joan Rivière que já foi colocada em questão
aqui a propósito de seu livro De la féminité comme une mascarade61. Eu falei
para vocês a propósito da discussão relativa à fase fálica e à função fálica na
sexualidade feminina67 68.
Há uma palavra que ele menciona neste momento, que é a palavra que é
verdadeiramente necessária a Jones para entrar na compreensão do que é bem
o ponto mais difícil de compreender, não simplesmente de colocar em jogo, da
análise, ou seja, o Complexo de castração. A palavra que Jones se serve é a
palavra aphanisis, que ele introduziu de modo interessante no vocabulário ana­
lítico, e que não podemos de todo considerar como ausente do.meio inglês, pois
ele faz forte menção disto69.
Aphanisis é “desaparecimento”, na medida em que ele a entende assim,
e o que ele quer dizer com isso veremos mais adiante. Mas eu vou fazer um uso
diverso no momento: o uso em suma impressionista do que está verdadeira­
mente aí todo o tempo no curso do material do sonho, do que o rodeia, do
comportamento do sujeito, de tudo o que já tentamos articular a propósito do
que se apresenta, do que se propõe a Ella Sharpe. Este sujeito mesmo que,
antes de se apresentar a ela de um modo que ela descreve tão belamente, com
esta espécie de ausência profunda que dá a ela mesma o sentimento de que
não há um propósito do sujeito nem um de seus gestos que não seja alguma
coisa inteiramente pensada, e que nada corresponde a algo que seja sentido;
este sujeito que se mantém tão bem nos limites, que aliás não se anuncia, que
aparece mas que, logo que aparece, é mais inapreensível do que se não estives­
se ali; este sujeito que ele mesmo nos deu nas premissas do que trouxe a res­
peito de seu sonho, esta questão que colocou a propósito de sua «pequena

67 RIVIERE J., «La féminité en tant que mascarade », trad. fr. V. Smirnoff, in La Psychanafyse n.7,
Paris, 1964, p. 257-270.
68 LACAN J., Séminaire V, Les Formations de I 'inconscient, lição de 5 de março de 1958, inédito.
‘’JONES E., op.cit.

*212
tosse».
E esta «pequena tosse» é feita para fazer o quê? Para fazer desapare­
cer alguma coisa que deve estar ali além da porta. Não se sabe o quê. Ele
mesmo o diz: no caso da analista, o que ele precisamente ali pode ter que fazer
desaparecer? Ele evoca a este respeito a advertência em outras circunstânci­
as, num outro contexto: que se trata que eles se separem, que eles se desunam,
pois a situação poderia ser embaraçante se ele próprio entrasse, e assim por
diante...
No sonho, estamos em presença de três personagens, pois não é preciso
esquecer que há sua mulher. O sujeito, após tê-lo dito uma vez, não fala mais
disto. Mas o que se passa bem exatamente entre [ele e] a parceira sexual, aque­
la em suma da qual ele foge? É certo que ele foge? A seqüência do que ele
enuncia prova que está longe de ser completamente ausente e ele colocou seu
dedo, diz, nesta espécie de vagina protuberante, revirada, esta espécie de vagi­
na prolabiada sobre a qual eu insisti. Aí também se colocam questões e iremos
colocá-las. Onde está o que está em jogo, onde está o interesse da cena? O que
-na medida em que se possa colocar esta questão a propósito de um sonho, e
só podemos colocá-la na medida em que toda a teoria freudiana nos impõe
colocá-la- o que se produzirá logo após nas associações do sonho, é alguma
coisa que interessa esta amante, por intermédio de uma recordação que lhe
veio relativa ao capuz que constitui o órgão feminino, de alguém que lhe propôs
num campo de golfe alguma coisa na qual poderíam estar envolvidos seus clu­
bes, e que ele achou realmente um personagem estranho. Ele fala disso como
uma espécie de regozijo divertido e vê-se bem o que se passa em tomo deste
personagem verdadeiro. E verdadeiramente este personagem a propósito do
qual se pode perguntar onde até aqui, ele pôde se aventurar. E o tom sobre o
qual ele fala disso. Com esta cara, e esta lábia, o que ele pôde ser? Talvez «um
açougueiro?», diz ele. Deus sabe porque, um açougueiro! Mas o estilo e a
atmosfera geral, o ambiente de imitação a propósito deste personagem -de
imediato aliás o sujeito se diverte em imitar- mostram bem que se trata bem
aí...
É por ai aliás que se introduz a noção de imitação, e a associação com
sua amante que imita tão bem os homens, que tem um tal talento, e um talento
que ela explora à Broadcasting. E a este propósito, a primeira idéia que vem
ao sujeito é que ele fala demais, que ele tem o ar de se vangloriar falando de
uma relação tão marcante, «de remeter a isso». Eu verifiquei a palavra inglesa
que ele utiliza: é uma palavra de uso bem recente, que se pode considerar como
sendo quase slang, e que tentamos traduzir aqui por «reconduzi-la». Ele a

213
utiliza para dizer: «Eu tenho escrúpulos em reconduzi-la a este propósi­
to»70. Para dizer tudo, ele desaparece, ele se faz bem pequeno, ele não quer
tomar demasiado lugar nesta ocasião.
Em resumo, o que se impõe a todo instante, que retoma como um tema,
como um leitmotiv em todo o discurso, os propósitos do sujeito, é alguma coisa
para a qual o termo aphanisis aparece aqui bem mais próximo do “fazer desa­
parecer” que do “desaparecer”, de alguma coisa que é um perpétuo jogo, onde
sentimos que sob diversas formas alguma coisa -chamemos isto se vocês que­
rem o objeto interessante- não está jamais aí.
A última vez, eu insisti sobre isso. Não está jamais onde se espera, des­
liza de um ponto a outro numa espécie de jogo escamoteador. Quero ainda
insistir nisso, e vocês verão onde isto vai nos levar que é o essencial, a caracte­
rística em todos os níveis da confrontação diante da qual a analista se encontra.
O sujeito nada pode avançar que logo, por qualquer lado, ele sutiliza o essenci­
al, se assim se pode dizer.
E farei a observação que em Jones também este termo aphanisis é um
termo que se oferece a uma crítica que resultará na denúncia de alguma inver­
são da perspectiva. Jones reparou nos seus sujeitos que na aproximação do
complexo de castração, o que ele sente, o que compreende, o que vê neles, é o
medo da aphanisis, do desaparecimento do desejo. E de alguma maneira o que
ele nos diz, é que a castração -ele não o formula assim na falta de ter o apare­
lho- é a simbolização desta perda.
Temos sublinhado como isto é um enorme problema que de ver, numa
perspectiva genética qualquer, como um sujeito, suponhamos no seu desenvol­
vimento, em algum momento, a um nível de alguma forma animal da subjetivi­
dade, começa a ver a tendência se destacar dela mesma para se tomar temor de
sua própria perda. E Jones faz da aphanisis a substância do temor da castração.
E eu farei observar aqui que é exatamente no sentido contrário que con­
vém tomar as coisas. E porque aí pode haver castração, é porque há o jogo de
signifícantes implicados na castração, que no sujeito se elabora esta dimensão
em que ele pode sofrer temor, alarme, do desaparecimento possível e futuro de
seu desejo.
Observemos bem que alguma coisa como o desejo se nós lhe damos um
sentido pleno, o sentido.da tendência no nível da psicologia animal, nos é difícil

™ Swank: «[...] It sounds "swank" to tell you, as swanky as telling you what a marvellous
wireless set I haven.

214
concebê-lo na medida em que na experiência humana isto seja alguma coisa
completamente acessível. 0 temor da falha do desejo é apesar disto um passo a
ser explicado. Para explicá-lo eu digo a vocês: o sujeito humano, na medida em
que ele tem que se inscrever no significante, encontra aí uma posição de onde
efetivamente ele põe em questão sua necessidade, enquanto que sua necessi­
dade é tomada modificada, identificada na demanda. E aí tudo se concebe
muito bem, e a função do complexo de castração nesta ocasião, ou seja isto em
que esta tomada de posição do sujeito no significante implica a perda, o sacrifí­
cio de um de seus signifícantes entre outros, é o que deixamos por enquanto de
lado.
0 que eu quero simplesmente dizer, é que o temor da aphanisis nos
sujeitos neuróticos corresponde, contrariamente ao que crê Jones, a alguma
coisa que deve ser compreendida na perspectiva de uma insuficiente formação,
articulação, de uma parcial forclusão do Complexo de castração. É na medida
em que o Complexo de castração não põe o sujeito ao abrigo desta espécie de
confusão, de arrebatamento, de angústia que se manifesta no temor da aphanisis,
que nós a vemos efetivamente nos neuróticos. E isto teremos certamente oca­
sião de examinar a propósito deste caso.
Continuemos e retomemos ao texto mesmo, ao texto do sonho, e a estas
imagens das quais falamos na última vez, ou seja a representação do sexo
feminino sob a forma desta vagina prolabiada. Nas imagens do sujeito, esta
espécie de estojo, esta espécie de saco, de espartilho, que faz aí uma imagem
tão estranha que não se pode igualmente, ainda que ela não seja de todo um
caso excepcional e único, mas que não é igualmente freqüente encontrar, que
não foi descrita de um modo perfeitamente caracterizada na tradição analítica,
aqui se pode dizer que a própria imagem -que é empregada na articulação
significante do sonho, ou seja o que isto quer dizer entre os personagens que
estão presentes- toma seu valor do que se passa, do porquê ela é utilizada.
De fato o que nós vemos, é que o sujeito vai aí meter, como ele diz, o
dedo. Ai ele não mete o seu pênis, certamente não, aí ele mete o dedo. Ele
revira, reembainha, reinvagina o que está ali desvaginado, e tudo se passa como
se aí se produzisse quase um gesto de escamoteador. Pois no fim das contas ele
mete alguma coisa no lugar do que ele deveria aí meter, mas também, mostra
que alguma coisa aí pode ser metida. E se tanto é que alguma coisa possa
efetivamente ser sugerida pela forma do que se apresenta, ou seja o falo femi­
nino, tudo se passa como se -este falo que com efeito está em questão do
15
modo o mais claro («to get my penis»)- estávamos no direito de nos pergun­
tar o que é que o sujeito está em vias de nos mostrar pois mais do que um ato de

215
copulação, trata-se aí de um ato de exibição. Isto se passa,'não esqueçamos,
diante de um terceiro. O gesto está aí, o gesto está já evocado do prestidigita-
dor no exercício do que se chama em. francês, "le sac à l ’oeuf". Ou seja este
saco de lã no qual o prestidigitadoraltemativamente faz aparecer o ovo e o faz
desaparecer, o faz aparecer no momento em que não se espera, e o mostra
desaparecido aí onde não se acreditava vê-lo, the bag of the eggs também se
diz em inglês.
O gesto se se pode dizer, a mostração da qual se trata, é tanto mais sur­
preendente que nas associações do sujeito, o que nós vimos é bem exatámente
sempre advertir o momento em que aparece, de modo que nada se veja do que
havia antes, ou ainda se fazer tomar ele mesmo, diz ele no seu fantasma, por
um cão latindo, de modo que se diga que aí havia apenas um cão. Sim, sempre
a mesma escamoteação na qual não sabemos o que é escamoteado, e segura­
mente é antes de tudo o próprio sujeito que é escamoteado. Mas o sonho nos
indica, e nos permite precisar que em todo caso, se procuramos precisar o que
se localiza no sonho como sendo o que está em jogo nesta escamoteação, é
certamente o falo, o falo de que se trata: «to get mypenis».
E nisso nós somos, eu diria, de tal modo habituados, endurecidos pela
rotina analítica, que quase não paramos neste dado do sonho. Contudo, a esco­
lha do sujeito do «to get» para designar o que aqui pretende fazer a mulher, é
um verbo de uso extremamente pòlivalente. É sempre no sentido de obter, de
ganhar, de apanhar, de pegar, de se ajuntar. Trata-se de alguma coisa que se
obtém, em grandes linhas, no sentido geral. Certamente entendemos isto com a
nota e o eco do [femina curam et penem devorei]7', mas não é tão simples.
Pois após tudo, o que é colocado em causa nesta ocasião é alguma coisa
que no fim das contas está muito longe de ser deste registro. E tanto mais que
a questão, se se trata com efeito sob qualquer forma que seja, real ou imaginá­
ria, de obter o pênis, a primeira questão a se colocar é, a saber: este pênis, onde
ele está? Pois parece evidente que ele está aí. Ou seja que sob o pretexto que
se disse, que o sujeito no relato do sonho disse que ela fazia manobras «to get
my penis», tem-se a impressão de acreditar que contudo, ele está em alguma
parte no sonho. Mas literalmente, se se olha bem o texto, absolutamente nada o
indica.
Não basta que a imputação do parceiro seja aí dada para que deduza-
mos que o pênis do sujeito aí está, basta de alguma maneira para nos satisfazer

"‘«Que eu me ocupe [tome cuidado] da mulher e ela [me] devora o pênis.»

216
a respeito desta questão: onde ele está? Talvez esteja completamente noutro
lugar que ali onde esta necessidade que temos de completar, numa cena onde
se suporia que o sujeito foge... Isto não é tão simples. E a partir do momento
em que colocamos esta questão, vemos bem com efeito que é aí que se coloca
toda a questão, e que é a partir daí também que podemos apreender qual é a
discordância singular, a estranheza que apresenta o signo enigmático que nos é
proposto neste sonho. Pois é certo que há uma relação entre o que se passa e
uma masturbação.
O que isto quer dizer, o que isso nos sublinha nesta ocasião? Vale a pena
recolher de passagem, pois ainda que isto não seja elucidado, é muito instruti­
vo. Quero dizer, ainda que isto não seja articulado pela analista nos seus propó­
sitos, é a saber que a masturbação do outro e a masturbação do sujeito é com­
pletamente a mesma, que se pode mesmo ir muito longe e dizer que tudo o que
há na apreensão do outro no próprio sujeito que se assemelha a uma masturbação,
supõe efetivamente uma secreta identificação narcísica que é menos aquela do
corpo a corpo que do corpo do outro ao pênis; que toda uma parte das ativida­
des da carícia -e isto se toma tanto mais evidente que ela toma um caráter de
prazer mais destacado, mais autônomo, mais insistente, e mesmo confinando a
alguma coisa que se chama mais ou menos propriamente nesta ocasião um
certo sadismo- é alguma coisa que põe em jogo o falo na medida em que, como
já mostrei para vocês, ele se perfila imaginariamente no além, do parceiro natu­
ral.
Que o falo tem interesse como significante na relação do sujeito com o
outro, faz que ele venha aí como alguma coisa que pode ser procurada neste
além do amplexo do outro sobre a qual se esboça, toma toda espécie de forma-
tipo mais ou menos acentuada no sentido da perversão.
De fato, o que vemos aí é que justamente esta masturbação do outro
sujeito difere completamente desta tomada do falo no amplexo do outro, [o]
que nos permitiría fazer equivaler estritamente a masturbação do outro à
masturbação do próprio sujeito, que este gesto do qual eu mostrei para vocês o
sentido, que é um gesto quase de verificação que o que está aí em face é segu­
ramente alguma coisa completamente importante para o sujeito, é alguma coi­
sa que tem a maior relação com o falo, mas é alguma coisa também que de­
monstra que o falo não está aí, que o «to get my penis» do qual se trata para o
parceiro é alguma coisa que foge, que desaparece, mas não simplesmente pela
vontade do sujeito, mas porque algum acidente estrutural, que é verdadeira­
mente o que está em questão, o que dá seu estilo a tudo o que retoma na
seqüência da associação, ou seja tanto esta mulher da qual ele nos fala, que se

217
conduz tão notavelmente nisto que ela imita perfeitamente os homens, como
esta espécie de incrível escamoteador do qual ele lembra depois de anos, e que
lhe propõe com uma lábia incrível alguma coisa que, singularmente, é ainda
uma coisa para uma outra, fazer um envoltório de alguma coisa com o envoltório
que é feito para outra coisa, nomeadamente o tecido destinado a fazer uma
capota de viatura, e para fazer o quê? Para lhe permitir colocar seus clubes de
golfe; esta espécie de falacioso homem, eis o que retomará.
Tudo tem sempre este caráter, de qualquer elemento que se trate, que
não é jamais completamente o que se apresenta de que se trata. Não é jamais da
coisa verdadeira que se trata, é sempre sob uma forma problemática que as
coisas se apresentam.
Tomemos o que vem imediatamente depois, e que vai desempenhar seu
papel. O caráter problemático do que insiste diante do sujeito segue-se imedi­
atamente, e por uma questão que lhe vem a propósito, que vai surgir das lem­
branças de sua infância. Por que diabo teve em outro momento uma outra
compulsão [que aquela] que teve no início da sessão, ou seja a tosse, ou seja
cortar as tiras de sua irmã? «Eu não pensava que era uma verdadeira
compulsão. É pela mesma razão que a tosse me aborrecia. Eu supunha
que cortava as sandálias de minha irmã no mesmo estilo. Tenho uma
recordação muito obscura de tê-lo feito. Eu não sei porque, nem o que
desejava deste couro para o qual eu fazia isto, destas tiras». Mas enfim
é preciso acreditar que «Eu queria fazer algo de útil mas, penso, total­
mente unnecessary». Era muito útil no meu espírito, mas isto não tinha ne­
nhuma necessidade séria.
Ai também nós nos encontramos diante de uma espécie de fuga na qual
vai se seguir uma outra fuga ainda, ou seja a observação que ele pensa imedi­
atamente nas correias que atam a capota da viatura, ou antes isto lhe faz pen­
sar nas correias que atam um pram, que é um carrinho de criança.
E neste momento aí, de um modo curioso, de um modo negativo, ele
introduz a noção de pram. Pensa que não havia pram em sua casa. Ora justa­
mente, «não há nada de mais besta, diz ele próprio, do que dizer que não
havia pram em nossa casa. Havia seguramente pois havia duas crianças».
Sempre o mesmo estilo de coisas que aparece sob a forma de alguma
coisa que falta e que domina todo o estilo de associações do sujeito. O passo
seguinte, encadeado diretamente sobre isto, qual é? «Olha, me lembrei imedi­
atamente, diz ele, que devia enviar duas cartas a dois membros que
devem ser admitidos em nosso clube. E eu me vangloriava de ser me­
lhor secretário do que o último, é igualmente muito engraçado, agora

tor
218
que eu acabo justamente de esquecer de dar aqueles a permissão de
entrar no clube». Em outras palavras, eu não lhes escreví. E encadeado em
seguida, e indicado entre aspas no texto de Ella Sharpe, ainda que ela não cite
porque para um leitor inglês estas linhas não têm nem necessidade de estar
entre aspas, uma citação de uma frase que se encontra no que se chama a
General Confession, ou seja uma das orações do Book of Common Prayer
do “Livre de prière pour tout le monde” que forma o fundamento dos deveres
religiosos dos indivíduos na Igreja da Inglaterra.
Devo dizer que minhas relações com o Book of Common Prayer não
datam de ontem e apenas evocarei aqui o lindo objeto que havia sido criado há
vinte ou vinte e cinco anos na comunidade surrealista pelo meu amigo Roland
Penrose, que tinha feito um uso, para os iniciados do círculo, do Common Book
of Prayer. Quando se o abria, de cada lado da face interior da capa havia um
espelho. Isto é muito instrutivo, pois aí está a única critica que se pode fazer a
Ella Sharpe para quem seguramente este texto era muito mais familiar do que
para nós, pois o texto do Book of Common Prayer não era completamente
igual à citação que o sujeito fornece: We have left undone, “deixamos não
feitas estas coisas que deveriamos fazer”, em vez de «não fizemos estas
coisas que devemos fazer» (citação do sujeito). E pouca coisa, mas em
seguida falta uma frase inteira que é de alguma maneira a contrapartida no
texto da Oração de confissão geral. “E fizemos estas coisas que não deveria­
mos fazer”.
Isso o sujeito não experimenta de jeito nenhum, a necessidade de se
confessar, por uma boa razão, é que no fim das contas trata-se verdadeiramen­
te para ele de jamais fazer as coisas. Mas fazer as coisas, isso não é seu
negócio. Com efeito é precisamente disto que se trata, pois ele acrescenta que
é completamente incapaz de fazer o que quer que seja de medo de dar certo,
como nos sublinhou a analista.
E depois, pois isto não é a menor coisa, é aí que eu quero chegar, o
sujeito continua a frase: «Não há nada de bom em nós». Isto é uma pura
invenção do sujeito, pois no Book of Common Prayer, não há nada disto. Há:
“Não há saúde em rips”. Creio que estç «those things» que ele colocou no
lugar é precisamente do que se trata. Diria que este bom objeto que não está aí,
é precisamente o que está em questão, e ele nos confirma uma vez mais que se
trata do falo.
É muito importante para o sujeito dizer que este bom objeto não está aí,
nós encontramos ainda o termo: não está aí, não está jamais aí oride se o espera.
E é certamente um «those things» que é para ele alguma coisa da mais extrema

219
importância, mas é não menos claro que o que ele tende a mostrar, a demons­
trar é sempre uma única e mesma coisa, a saber que ele não está jamais ai. Aí
onde o quê? Aí onde se poderia to get, se apossar, tomá-lo. E precisamente o
que domina o conjunto do material do qual se trata.
Que à luz do que aqui acabamos de adiantar, a aproximação entre as
duas compulsões, aquela da tosse e também aquela de ter cortado as tiras de
couro das sandálias de sua irmã, nos parece menos surpreendente -pois é
verdadeiramente uma interpretação analítica das mais correntes: o fato de cor­
tar as tiras de couro que seguram as sandálias de sua irmã tem uma relação
que nos contentamos aqui, como todo mundo, de aproximar globalmente com o
tema da castração. Tomem Sr. Fenichel e vocês verão que os cortadores de
tranças são pessoas que fazem isto em função de seu Complexo de castração.
Mas como poder dizer, salvo na avaliação mais exata de um caso, se é a retorsão
da castração, a aplicação da castração a um outro sujeito que a eles próprios
ou, ao contrário, domesticação da castração, colocação em jogo sobre o outro
de uma castração que não é uma verdadeira castração, e por conseguinte, que
não se manifesta tão perigosa como aquela: domesticação se se pode dizer, ou
menos-valia, desvalorização da castração no 'curso deste exercício -e tanto
mais que cortando as tranças, é sempre possível, concebível, que as ditas tran­
ças rechacem, isto é reassegurem contra a castração.
Isto é, certamente, tudo o que a soma de experiências analíticas permite
articular sobre este sujeito mas que, na ocasião, apenas nos aparece como en­
cobrindo... Mas que haja ligação com a castração não há nenhuma espécie de
dúvida.
Mas então isso do que se trata, se nos obrigamos a não ir mais rápido e
sustentar as coisas no nível em que as indicamos sufícientemente, isto é que
aqui a castração é alguma coisa que faz parte se se pode dizer, do contexto, da
relação, mas que nada nos permite até o presente fazer intervir de um modo tão
preciso como a analista o fez, a indicação do sujeito, postulada na ocasião, para
articular alguma coisa como sendo uma intenção agressiva primitivamente
voltada contra ele; mas o que sabemos depois de tudo? Não é muito mais
interessante colocar, renovar sem cessar a questão: este falo onde está ele?
Onde está ele com efeito, onde é preciso concebê-lo?
O que podemos dizer é que a analista vai muito longe, vai muito firme
dizendo ao sujeito: está em alguma parte muito longe em você, faz parte de
uma velha rivalidade com seu pai, está aí no princípio de todos os seus votos
primordiais de toda potência, está ai a fonte de uma agressão da qual você tem
nesta ocasião a retorsão. Ainda que nada propriamente falando permita apre­

220
ender no texto alguma coisa que se articula assim.
Tentemos quanto a nós, depois de tudo, nos colocar a questão talvez
mesmo um pouquinho mais ousadamente do que estaria naturalmente em nos­
sa alçada. Não podemos, parece, propor a respeito de uma observação impres­
sa como esta, escrita, alguma coisa que seria o que pediriamos a um aluno. Se
se tratasse de um aluno, eu falaria muito mais severamente, eu diría que mosca
te picou para dizer semelhante coisa! Eu colocaria a questão em um caso se­
melhante: onde está o elemento de contra-transferência?
Aí está o que pode parecer ousado, colocar uma semelhante questão a
propósito de um texto de um autor que, depois de tudo, é alguém a quem temos
todas as razões para dar nesta época a mais extrema confiança, ou seja Ella
Sharpe. Eu ri para mim mesmo no momento em que me coloquei esta questão
pois ela me parecia propriamente falando um pouco exorbitante. Bem, sempre
temos o direito, no fim das contas, de ser como tal um pouquinho demasiado
audaciosos. Acontece que seja como for, encontra-se o que se procura. E, na
ocasião, eu procurei primeiro antes de encontrar, quero dizer que tinha lido
quase distraidamente as primeiras páginas deste livro, quero dizer que como
sempre não se lê jamais bem, e havia contudo alguma coisa de extremamente
bonita.
Imediatamente após haver falado do pai morto, deste pai que ela não
consegue despertar na memória do sujeito, que ela conseguiu fazer mexer-se
um pouco nos últimos tempos -vocês se lembram que o sujeito se assombra
que seu pai, numa ocasião, havia falado-, imediatamente após, ela observa que
é a mesma dificuldade que tem com ela, ou seja que «ele não tem pensamentos
a meu respeito, este paciente». Já havia ai alguma coisa que poderia ter pren­
dido nossa atenção. «Ele não sente nada a meu respeito. Ele não pode acredi­
tar nisto»72. É inquietante, é preciso dizer. Que o sujeito não tome consciência
como tal, isto não significa que não tenha manifestação, pois igualmente há
uma espécie de desordenamento obscuro da ansiedade em tal e tal ocasião. E
aí que eu mal retive alguma coisa que se exprime aqui. Mas quando se lê isto,
se acredita que é uma dissertação geral como acaba de fazer à analista.
«Eu penso, diz ela, (se trata bem disto) que a análise poderia ser compa­
rada a um jogo de xadrez que estende na duração e deve continuar aqui, diz ela,
até que eu cesse de ser o pai que se vinga no inconsciente, que se emprega a lhe
«cornering him», a encurralá-lo, a lhe pôr em xeque, após o que não tem outra

72 «Nisto» indica aqui, para o paciente = «in the theorie of transference».

221
alternativa senão a morte». Esta referência curiosa ao jogo de xadrez nesta
ocasião, que na verdade nada implica, é igualmente o que merece nesta oca­
sião reter nossa atenção. Direi que no momento em que li esta página, eu a
achei efetivamente muito bonita, que imediatamente não me ative a seu valor
na ordem transferenciai. Quero dizer que no curso da leitura, o que fez vibrar
em mim é: é muito bonita!
Dever-se-ía comparar todo o desenrolar de uma análise ao jogo de xa­
drez. E por quê? Porque o que há de mais belo e de mais saliente no jogo de
xadrez, é que é um jogo que se pode descrever assim: há um certo número de
elementos que caracterizaremos como elementos significantes, cada peça é
um elemento significante. E, em suma, no jogo que se joga com o auxílio de
uma série de movimentos em réplica fundados sobre a natureza destes
significantes, cada um tendo seu próprio movimento caracterizado por sua po­
sição como significante, o que se passa é a progressiva redução do número de
significantes que estão no lance. E se pode depois de tudo descrever uma
análise assim: que se trata de eliminar um número suficiente de significantes
para que reste somente em jogo um número tão pequeno de signifícantes para
que se sinta bem onde está a posição do sujeito no seu interior.
Para retomar a isto na seqüência, creio que com efeito isto pode nos
levar muito longe. Mas o que é importante é isto: é que Ella Sharpe -efetiva­
mente tudo o que eu conheço ou podia conhecer aliás de sua obra o indica- tem
efetivamente esta concepção da análise, que há na sua interpretação da teoria
analítica esta espécie de profunda valorização do caráter significante das coi­
sas. Ela pôs o acento sobre a metáfora de um modo que não destoa absoluta­
mente das coisas que eu explico para vocês. E todo tempo, ela sabe valorizar
este elemento de substituição propriamente falando linguístico, nos sintomas,
que faz com que ela tenha colocado em suas análises temas literários que
constituem uma parte importante de sua obra. E tudo o que ela dá como regras
técnicas participa também de alguma coisa que é completa e profundamente
marcada por uma espécie de experiência, de apreensão do jogo de significantes
como tal.
De tal modo que a coisa que, nesta ocasião, se possa dizer que ela [as]
desconhece, eu diria que são suas próprias intenções que se exprimem neste
registro (no plano da fala da qual se trata no primeiro plano desta observação)
de “encurralar”. O «cornering him» é trazido inicialmente por ela. E unica­
mente nas sessões ulteriores à interpretação que ela deu deste sonho, que vere­
mos aparecer a mesma palavra no discurso do paciente, e logo direi com que
propósito.

222
É porque, vocês já o sabem, eu já indiquei o que se passa também duas
sessões após. Ou seja sua impossibilidade de «comer» seu parceiro num jogo
igualmente, o jogo de tênis, de encurralá-lo paradar o último golpe, aquele que
o tipo não pode ir recobrar. Trata-se precisamente com efeito disto que está
sobre este plano que a analista se manifesta. E eu não estou completamente
em vias de dizer que o sujeito se apercebe disto.
Certamente ela é uma boa analista. Ela o diz de todos os modos: é um
caso no qual vocês puderam observar, diz ela aos estudantes, que eu apenas fiz
a menor observação, ou que eu me calei. Por quê, diz ela, porque não há nada
neste sujeito que não me indica, de todos os modos, senão que sua pretensão
em querer ser ajudado quer dizer exatamente o contrário, ou seja que antes de
tudo ele quer ficar ao abrigo, e com sua pequena cobertura, sua capota de
carro sobre si.
O «hood», é verdadeiramente uma posição inteiramente fundamental.
Isto, ela o percebe, tudo o que se passa a respeito da lembrança do pram que é
apagada, é igualmente o que ele foi na sua cama «pinned in bed», isto é,
“alfinetado”. Aliás, parece que ele tem noções bem precisas acerca do que
pode provocar numa criança o fato de estar mais ou menos amarrada, ainda que
não haja nada de particular na sua lembrança que lhe permita evocar, mas que
seguramente neste posição atada, ela se mantém muito.
Pois ela está bem longe de deixar transparecer este elemento da contra-
transferência, quer dizer algo que seria muito intervencionismo no jogo. Um
jogo agressivo neste jogo de xadrez. Mas o que digo, é porque ela percebe tão
bem o alcance desta noção, este exercício agressivo do jogo analítico, que ela
não vê seu alcance exato, ou seja que isso do que se trata, é algo que tem a
mais estreita relação com os significantes.
Ou seja que se nos perguntamos onde está o falo, é neste sentido que
devemos procurá-lo. Dito de outro modo, se vocês querem, no quadrângulo do
esquema do sujeito, do outro, do eu enquanto imagem do outro e do grande
Outro, é disto que se trata: dai onde pode aparecer o significante como tal. E a
saber que este falo que não está jamais aí onde nós o esperamos, ele está ainda
assim aí. E está ai como a carta roubada, onde menos se espera, e aí onde
todavia tudo o designa.
Para se exprimir, como verdadeiramente a metáfora do jogo de xadrez
nos permite articular, direi que o sujeito não quer perder sua rainha, e me expli­
co. No sonho, o falo não é o sujeito que está aí e que o olha. Não é aí que está
o falo. Pois para este sujeito com efeito, -como o percebe obscuramente atra­
vés de um véu a analista na sua interpretação- o sujeito tem uma certa relação

223
Ilk. 1 ''t w

com a onipotência, com a potência simplesmente, com o poder. Seu poder,


nesta ocasião o faio, o que convém que ele preserve a todo preço, [que ele
consiga] manter fora do jogo porque este falo ele o pode perder no jogo, é aqui
neste sonho representado muito simplesmente pelo personagem ao qual se pen­
saria que ao menos ele o representa, ou seja sua mulher que está aí, bem longe
de ser o aparente testemunho que ela é -pois na verdade desta função de ver,
não está de modo algum indicado que isto seja algo de essencial...
Neste sujeito como em muitos outros sujeitos -e peço que vocês rete­
nham isso porque é um fato clínico tão evidente que é absolutamente surpreen­
dente que isso não seja um lugar comum da psicanálise- o parceiro feminino
enquanto Outro é justamente o que representa para o sujeito o que há de algum
modo de mais tabu no seu poder, e também que se encontra de igual modo
dominando toda a economia de seu desejo.
É porque sua mulher é seu falo que eu direi que ele fez esta espécie de
lapso ínfimo que notei para vocês de passagem, isto é fazer «uma viagem
com minha mulher ao redor do mundo» -«a journey with my wife round
the world»— e não round the world with my wife. O acento de onipotência é
colocado sobre «round the world» pela nossa analista. Eu creio que o segredo
da onipotência no sujeito está no «with my wife», e que o do que se trata é que
ele não perde isto, isto é, que ele não se apercebe justamente que está aí o que
é de colocar em causa, isto é, de se aperceber que sua mulher é, na ocasião, a
analista.
Pois afinal de contas é disto que se trata. O sujeito não quer perder sua
rainha, diriamos, ao modo dos maus jogadores de xadrez que imaginam que
perder sua rainha é perder a partida, enquanto que ganhar no xadrez é, afinal de
contas chegar ao que se chama um fim de partida, isto é com o sujeito, a facul­
dade de deslocamento a mais simples e a mais reduzida e o mínimo de direitos
-quero dizer que não tem o direito de ocupar uma casa que está posta em
xeque por uma outra- e com isto encontrar a vantagem da posição.
Tem-se ao contrário toda vantagem na ocasião em sacrificar sua rainha.
E o que não quer fazer de modo nenhum o sujeito porque o significante falo é
o que para ele é idêntico a tudo o que se produz na relação à sua mãe.
E é aqui que aparece, como a observação deixa nitidamente transpirar, o
caráter deficiente, coxo, do que pôde trazer o pai na ocasião. E bem entendido,
recaímos em alguma coisa, numa vertente já conhecida da relação do sujeito
com o casal parental. O importante não é isto. O importante, é efetivamente
acentuar esta relação muito escondida, muito secreta, do sujeito com sua par­
ceira, porque é tudo o que há de mais importante para colocar em evidência no

224
momento em que aparece na análise. Na análise em que em resumo o sujeito,
por sua tosse discreta, adverte do que se passa no interior, sua analista, se por
acaso ela tinha, como o que se passa no sonho, revirado se se pode dizer seu
saco ou seu jogo, de dissimular antes que ele chegue, porque ver isto, ver que
não há nada senão um saco, ele tem tudo a perder.
E a prudência da qual o sujeito faz prova e que de algum modo mantém
numa ligação fechada -com todo o pram pinned da posição de sua infância-
o sujeito numa relação com seu desejo que apenas pode ser fantasmática, ou
seja que lhe é preciso que ele mesmo seja amarrado a um pram ou outra coisa,
e completamente apertado e engomado para que possa estar além o significante,
a imagem de uma toda-potência sonhada.
E é assim também que é preciso’compreender o papel para ele capital da
onipotência, toda esta história e esta observação do automóvel. O automóvel,
este instrumento problemático de nossa civilização do qual cada um percebe
bem a relação de uma parte com a potência (os cavalos, a velocidade, o «pin of
speed»), e cada qual é de dizer evidentemente “equivalente fálico”, equivalen­
te da potência de ajuda de impotentes. Mas de outra parte, cada um sabe bem
do caráter infinitamente acasalado, feminino também. Pois automóvel, não é
por nada que o dizemos no feminino, que lhe damos oportunamente, a este
automóvel, toda sorte de lista de alcunhas que têm também o caráter de um
parceiro do outro sexo.
E bem, esse automóvel na ocasião, sobre o qual são feitas essas observa­
ções problemáticas: ou seja, «é divertido que se fale dele como de um ser
vivo»; são aí banalidades bem entendido, mas este automóvel, coisa muito
curiosa, é de tal modo evidentemente isto em que se produz esta espécie de
ambigüidade significante que faz que seja ao mesmo tempo o que o protege, o
que o liga e o envoltório, o que por relação a ele tem exatamente a mesma
posição que no sonho o capuz .protuberante (trata-se aliás da mesma palavra
que é empregada nos dois casos), que no sonho desta bizarra protuberância
sexual sobre a qual acontece de ele meter o dedo, que de outra parte -eu
sublinhei bem isto que eu mal traduzi- não é preciso ler “listrado de vermelho”,
mas «dublado de vermelho»... Mas o que nos diz a analista? A analista aqui
não se enganou. O momento, nos diz, onde ela introduz sua intervenção decisi­
va não é o momento em que ela começa a colocá-lo sobre a via de sua agres­
são, tendo.como resultado neste sujeito, aliás, esta curiosa manifestação que se
pode chamar psicossomática, da qual ela não repara absoiutamente o caráter, a
saber que no lugar da tosse, no dia seguinte ele experimenta uma pequena
cólica antes de entrar.

225
Deus sabe se ele fechou seu [jogo] por isso pois, como eu tinha dito há
pouco, ele tinha tudo a perder no momento de entrar para a sessão seguinte no
consultório da analista. Mas a interpretação que, à própria Ella Sharpe, parece
a mais iluminante, é na segunda sessão após esta interpretação, quando o sujei­
to lhe conta que ainda teve a cólica ao sair na última vez da sessão. Depois ele
fala do quê? ele diz: «Eu não pude ter meu carro, o garagista não havia
terminado; eu não pude xingá-lo porque ele é tão gentil que não se
pode brigar com ele, ele é extremamente honrado [...] e depois eu não
tinha nenhuma necessidade deste carro. (E acrescenta com um acento de
irritação) Mas verdadeiramente eu tenho uma enorme vontade, eu o
quero, eu adoro isso».
E ela não se engana. «Pela primeira vez, diz ela, eu tinha diante de mim
[a oportunidade de encontrar] libidinal wishes»11, aqui se trata da libido. En­
tão estamos bem de acordo com ela. Se faço esta crítica de Ella Sharpe, é
porque eu a acho em todos os pontos, nesta observação, admiravelmente sen­
sível. Ela compreende a importância disto, ou seja que o que está presente na
vida de um sujeito propriamente como desejo, o desejo sendo caracterizado por
seu caráter não-motivado -ele não tem nenhuma necessidade deste carro; o
fato que ele lhe declare seu desejo, que é a primeira vez que escuta semelhante
discurso, é alguma coisa que se apresenta por si mesma como insensato no
discurso do sujeito.
Ela nos diz que ela salta sobre isso, isto é o que ela lhe sublinha. Coisa
curiosa, aqui temos como uma espécie de flutuação do aparelho de projeção.
Ainda que ela sempre nos tenha dito muito o que ela disse para o sujeito, mes­
mo as coisas mais audaciosas, mais arriscadas, aí não sabemos exatamente o
que ela lhe disse. E muito instigante. O que ela nos diz, é que ela estava verda­
deiramente ébria de satisfação pela ocasião de lhe dizer: aí você confessa que
você deseja alguma coisa. Mas o que ela pôde lhe dizer, não o saberemos.
Sabemos simplesmente que ela pôde igualmente lhe dizer alguma coisa
de muito orientado no sentido do que ela lhe havia dito antes, para que fosse
justamente após o que ela lhe disse que no dia seguinte, o sujeito viesse lhe
dizer, meio-contente, meio-satisfeito, meio-descontente, que naquela noite, ti­
nha molhado sua cama.
Não podemos considerar que isto seja, já disse para vocês, em si mesmo
um sintoma que, tão transitório e tão significativo seja de que um golpe foi
aplicado, que certamente repercutiu, possa ser igualmente alguma coisa que

” «.Then for once I was able to deal with the libidinal wishes».

226
nos confirma absolutamente no que eu poderia chamar o sentido da boa dire­
ção do dizer-se dizer há. E a saber que se temos a noção desta alguma coisa
que representa uma enurese, é certamente a colocação em ação, direi pessoal­
mente, do pênis.
Mas enfim isto não é o mesmo que uma colocação em ação genital, é
justamente o pênis como real que intervém em eco muito frequentemente -é o
que a clínica nos mostra nas crianças- da atividade sexual dos pais; é na medi­
da em que os sujeitos, masculinos ou femininos, crianças, estão num período
onde têm profundo interesse pelo comércio sexual dos pais, que acontecem
estas manifestações enuréticas que na ocasião são a colocação em jogo no pla­
no real do órgão como tal. Mas o órgão como tal, como real, hão mais como
significante, que é precisamente algumá coisa que nos mostra que nesta oca­
sião a intervenção de Ella Sharpe teve com efeito um certo alcance.
Este alcance é oportuno? E bem entendido o que resta para ver de mais
perto. É bem claro que o que segue, ou seja a chegada, o surgimento, certas
reações que então o próprio sujeito tem, parece que com uma certa consciên­
cia de satisfação, em seu ativo e que é o fato de que no jogo não se deixa mais
caçoar pelos seus companheiros (isto é, que ele pegou um pela gola e estrangu­
lou num canto com tanta força que ele não teve mais vontade de recomeçar),
não pode de modo algum ser considerado como alguma coisa que esteja verda­
deiramente na linha que é de se obter.
Não esqueçamos igualmente que se há alguma coisa que é de permitir ao
sujeito, isto é, de corner o outro num jogo, isto não é absolutamente a mesma
coisa que o corner no pescoço a propósito deste jogo. Está justamente aí a
reação inadequada, aquela que não lhe toma um instante mais capaz de o comer
no jogo, isto é, enquanto que aí onde se passam as reações com o Outro, o
Outro como lugar da fala, como lugar da lei, como lugar das convenções do
jogo. É justamente isto que se encontra, por esta leve declinação do ato de
intervenção analítica, rateado.
Creio que hoje levamos as coisas muito longe. Farei na próxima vez o
último seminário do que se agrupa aqui em tomo da análise literária a respeito
do desejo e de sua interpretação, e tentarei reunir para vocês em algumas fór­
mulas como devemos conceber esta função do significante fálico em toda sua
generalidade a respeito da relação [...] e do modo como o sujeito se situa no
desejo. Tentarei reunir em tomo de noções que aqui tento articular com a ajuda
do grafo esta função que devemos dar muito precisamente ao significante fálico.
Tentarei mostrar para vocês também onde se situa exatamente, como a
título de balizamento no seu exercício de análise vocês podem tentar situar o

227
significante fálico neste esquema. Em resumo, e para dar alguma coisa que é
emprestada da obra de um escritor ao qual já fiz alusão aqui,' Lewis Caroil,
mostrarei para vocês isso que Lewis Caroll em algum lugar diz mais ou menos
assim:

Ele pensava que tinha visto uma porta de jardim

-esta famosa porta do jardim paradisíaco do interior do ventre- materno (em


tomo do qual se centram atualmente, ou se precipitam mesmo, todas as teorias
analíticas)-

Que se abria com uma chave.


Ele olhou de mais perto e se apercebeu que era
Uma dupla regra de três74.

A próxima vez eu mostrarei para vocês qual é esta regra de três.

74 CAROLL L., Sylvie et Bruno (1889), trad. fr. F. Deleuze, Paris, 1990, La Pléiade, Gallimard, p.
491.

228
Lição 12
11 de fevereiro de 1959

Eu anunciei na última vez que terminaria desta vez o estudo deste sonho
que folheamos particularmente do ponto de vista de sua interpretação, mas
serei obrigado a consagrar mais uma sessão.
Relembro rapidamente que é este sonho de um paciente advogado que
tem muitos embaraços no seu ofício. E Ella Sharpe não se aproxima de tais
embaraços senão com prudência, o paciente tendo sempre a aparência de se
manter precavido, sem que se trate de rigidez no seu comportamento. Ella
Sharpe não falhou em sublinhar que tudo o que ele relata é pensado, não senti­
do. E no ponto em que está na análise, fez um sonho marcante que foi uma
virada da análise e que nos é brevemente relatado. E um sonho em que o
paciente concentra em poucas palavras ainda que ele tenha tido, diz, «um enor­
me sonho», tão enorme que se o lembrasse, não acabaria de contar.
Emerge disto algo que até um certo ponto apresenta os caracteres de um
sonho repetido, isto é, de um sonho que ele já teve. Isto é, que em alguma parte
nesta viagem que empreendeu como diz, «com sua mulher ao redor do mun­
do» (e eu já sublinhei isto), em um ponto que é a Tchecoslováquia -é o único
ponto sobre o qual Ella Sharpe nos dirá que ela não obteve luzes suficientes
apesar de ter interrogado o paciente sobre o que significava a palavra
Tchecoslováquia, e ela o lastima pois esta Tchecoslováquia, depois de tudo,
podemos talvez pensar algo- ocorre «um jogo sexual com uma mulher di­
ante de sua mulher»15. A mulher com quem o jogo sexual se dá é alguém que-

” «Z was having a sexual play with a woman in front of an other woman.»

229
sc ,’>|»rsi'iii;i para clc coino numa posição superior. Doutra parte n3o aparece
tudo de imediato no seu dizer, mas o encontramos nas suas associações, que se
trata para ela de manobrai- «to get my penis».
Assinalei o caráter muito especial do verbo to get em inglês. To get, é
“obter”, de todos os modos possíveis do verbo obter. E um verbo muito menos
limitado do que obter, é obter, pegar, apoderar-se, acabar com. E to get, se a
mulher chega a «to get my penis», isto querería dizer que ela o tem.
Mas este pênis entra tanto menos em ação que o sujeito nos diz que o
sonho termina sobre este voto que diante do desapontamento da mulher ele
pensava que ela deveria mesmo se masturbar. E já expliquei a vocês que isto
do que se trata evidentemente é o sentido chave, o sentido secreto do sonho.
No sonho isto se manifesta pelo fato de que o sujeito diz «Eu bem que queria
masturbá-la»™. De fato, há uma verdadeira exploração de algo que é inter­
pretado, com muita insistência e cuidado na observação por Ella Sharpe, como
sendo o equivalente do capuz.
Quando se olha de perto, este algo merece reter nossa atenção. É algo
que mostra que o órgão feminino está aí como um espécie de vagina ao avesso
ou prolabada. Trata-se da vagina, não do capuz. E tudo segue como se esta
pseudomasturbação do sujeito não fosse outra coisa que uma espécie de veri­
ficação da ausência do falo.
Eis em que sentido disse que a estrutura imaginária, a articulação mani­
festa do [fantasma] devia ao menos nos obrigar a limitar o caráter do significante.
E coloco, em suma, a questão de saber se por um método mais prudente, po­
dendo ser considerado como mais restrito, não podemos chegar a uma precisão
maior na interpretação, com a condição de que os elementos estruturais com os
quais tomamos aqui o partido de nos familiarizar sejam suficientemente coloca­
dos em consideração para permitir justamente diferenciar o que é o sentido
desse caso.
E veremos que ao fazê-lo, veremos que como de hábito, os casos mais
particulares são os casos cujo valor é o mais universal e que o que nos mostra
essa observação é algo que não é de negligenciar; pois trata-se nada menos do
que precisar nesta ocasião esse caráter de significante sem o qual não se pode
dar sua verdadeira posição à função do falo (que permanece ao mesmo tempo
sempre tão importante, tão imediato, tão entrecruzada na interpretação analíti­
ca) sem que a todo instante não nos encontremos a propósito de seu manejo em

76 «Z thought that f would masturbate her».

230
impasses cujo ponto mais surpreendente é traduzido-lraído pula teoria da
Sra. Melanie Klein, pois sabe-se que ela faz do objeto falo o mais importante
dos objetos.
O objeto falo se introduz na teoria kleiniana, e na sua interpretação da
experiência, como algo, diz ela, que é o substituto, o primeiro substituto que
vem à experiência da criança, quer se trate da menina ou do menino, como
sendo um signo mais cômodo, mais manejâvel, mais satisfatório. E algo a pro­
vocar questões sobre o papel, o mecanismo... Como é preciso que concebamos
esta saída de um fantasma completamente primordial, como sendo em tomo do
qual já vai se ordenar este conflito tão profundamente agressivo que põe o
sujeito em uma certa relação com o continente do corpo da mãe? Na medida
em que do continente ele cobiça, deseja (todos os termos são empregados,
infelizmente sempre com dificuldade: isto é, justapostos), ele quer arrancar es­
tes bons e estes maus objetos que estão aí numa espécie de mistura primitiva
no interior do corpo da mãe.
E.por que no interior do corpo, o privilégio acordado a este objeto falo?
Seguramente, se tudo isto nos é trazido com a grande autoridade, o estilo de
descrição tão decidido, numa sorte de fascinação pelo caráter determinado de
estilos, eu diria quase que não aberto a nenhuma discussão dos enunciados
kleinianos, não se pode deixar também de se criticar após ter escutado afirma­
ções sobre eles e a cada instante se perguntar: o que ela visa?
É a criança quem efetivamente traz o testemunho desta prevalência do
objeto falo, ou antes ao contrário é ela própria quem nô-lo dá, o sinal do caráter
[...] como tendo o sentido do falo? E devo dizer que, em numerosos casos, não
estamos, esclarecidos sobre a escolha que é preciso fazer quanto à interpreta­
ção. De fato eu sei que alguns dentre vocês se perguntam onde é preciso colo­
car este signo do falo nos diferentes elementos do grafo em tomo do qual ten­
tamos orientar a experiência do desejo e de sua interpretação. E tive alguns
ecos da forma que pôde tomar para alguns a questão: qual é a relação deste falo
com o Outro, o grande Outro do qual falamos como do lugar da fala?
Há uma relação entre o falo e o grande Outro, mas não é certamente uma
relação mais além, no sentido em que o falo seria o ser do grande Outro, se é
que alguém colocou a questão nestes termos. Se o falo tem uma relação com
algo, é antes com o ser do sujeito. Pois creio que está aí o ponto novo, importan­
te que tento fazer que vocês peguem na introdução do sujeito nesta dialética
que é esta que se persegue no desenvolvimento inconsciente de diversas eta­
pas de identificação, por meio da relação primitiva com a mãe depois com a
entrada do jogo do édipo e do jogo ria lei.

231
VI *B> WJ 'V. '«* *J ’"

O que coloquei aí em valor é algo que é ao mesmo tempo muito sensível


nas observações -muito especialmente a propósito da gênese das perversões-
e que é frequentemente velado no [que está] em relação com o significante
falo. É que há duas coisas muito diferentes conforme se trate para o sujeito de
ser por relação ao Outro este falo, ou por quaisquer vias, meios ou mecanismos
que são aqueles que iremos justamente retomar na sequência da evolução do
sujeito, mas que já estão aí, estas relações, instaladas no Outro, na mãe; preci­
samente, a mãe tem uma certa relação com o falo, e é nesta relação com o falo
que o sujeito tem que se fazer valer, ao entrar em concorrência com o falo. É
daí que partimos há dois anos quando comecei a revisar esta relação.
O que se trata, da função do significante falo em relação ao sujeito, a
oposição destas duas possibilidades do sujeito em relação ao significante falo,
de sê-lo ou de tê-lo, está aí algo que é uma distinção essencial. Essencial na
medida em que as incidências não são as mesmas, que não é ao mesmo tempo
da relação de identificação que o ser e o ter sobrevêm, que há entre as duas
uma verdadeira linha de demarcação, uma linha de discernimento, que não se
pode sê-lo e tê-lo, e que para que o sujeito venha em certas condições a tê-lo,
é preciso de igual modo que haja renúncia a sê-lo.
As coisas de fato são muito menos simples de formular se procurarmos
delimitar tão perto quanto for possível a dialética em foco. Se o falo tem uma
relação ao ser do sujeito, isto não é com o ser do sujeito pura e simplesmente,
isto não é por relação a esse sujeito pretendido sujeito-do-conhecimento, supor­
te noético de todos os objetos, é com um sujeito falante, com um sujeito en­
quanto assume sua identidade e como tal, diria (é por isto que o falo joga sua
função essencialmente significante) que o sujeito ao mesmo tempo o é e não o é.
Desculpo-me do caráter algébrico que as coisas tomam, mas é preciso
que aprendamos a fixar as idéias já que, com certeza, questões se colocam. Se
na notação algo se apresenta, e retomaremos a isso a todo momento, como
sendo o sujeito barrado diante do objeto, $ y a, isto é, o sujeito do desejo, o
sujeito enquanto que na sua relação ao objeto, é ele mesmo profundamente
colocado em questão e que é isto que constitui a especificidade da relação do
desejo no próprio sujeito; é na medida que o sujeito é na nossa notação o sujeito
barrado, que se pode dizer que é possível, em certas condições, lhe dar como
significante o falo. Isto enquanto ele é o sujeito falante.
Ele é e não é o falo. Ele o é porque é o significante sob o qual a lingua­
gem o designa, e ele não p é, na medida em que a linguagem, e justamente a lei
da linguagem, sobre um outro plano o subtrai. De fato as coisas aí não se
passam no mesmo plano. Se a lei o subtrai, é precisamente para arranjar as

232
coisas, é que uma certa escolha é feita neste momento. A lei no J tin das cnntic.
aporta na situação uma definição, uma repartição, uma mudança de plano. A
lei lhe lembra que ele o tem ou que ele não o tem. Mas de fato o que se passa é
algo que joga inteiramente no intervalo entre esta identificação significante e
esta repartição de papéis; o sujeito é o falo, mas o sujeito, bem entendido, não é
o falo.
Vou colocar o acento sobre algo que a forma mesma do jogo da negação
na língua nos permite apreender numa fórmula onde se passa o deslizamento
concernente ao uso do verbo ser. Pode-se dizer que o momento decisivo, aque­
le em tomo do qual gira a assunção da castração é isso: sim, pode-se dizer que
é e que não é o falo, mas ele não é sem tê-lo.
É nesta inflexão de “não ser sem”,-é em tomo desta assunção subjetiva
que se flexiona entre o ser e o ter, que joga a realidade da castração. Quer dizer
que é na medida em que o falo, que o pênis do sujeito em uma certa experiên­
cia, é algo que foi colocado em balanço, que tomou uma certa função de equi­
valente ou de padrão na relação ao objeto, que toma seu valor central e que, até
um certo ponto, se pode dizer que é em proporção a uma certa renúncia à sua
relação ao falo que o sujeito entra em possessão desta espécie de infinidade, de
pluralidade, de ominitude do mundo de objetos que caracteriza o mundo do
homem.
Observem bem que esta fórmula, da qual peço a vocês que guardem a
modulação, o acento, se encontra sob outras formas em todas as línguas. “Ele não
é sem tê-lo” tem seu correspondente que é claro, retomaremos a isso a seguir.
A relação da mulher ao falo e a função essencial da fase fálica no de­
senvolvimento da sexualidade feminina se articulam, literalmente, sob a forma
diferente, oposta, que é suficiente para bem distinguir esta diferença de partida
do sujeito masculino e do.sujeito feminino em relação à sexualidade.
A única fórmula exata, aquela que permite sair dos impasses, das contra­
dições, das ambiguidades em tomo das quais nós giramos no que concerne à
sexualidade feminina, é que “ela é sem tê-lo”. A relação do sujeito feminino ao
falo, é de “ser.sem tê-lo”. E é isto que lhe dá a transcendência de sua posição -
pois é a isto que chegaremos. Chegaremos a articular, concernente à sexualidade
feminina, esta relação tão particular, tão permanente, da qual Freud insistiu sobre
seu caráter irredutível e que se traduz psicologicamente sob a forma do Penisneid.
Em suma, diriamos, para levar as coisas ao extremo e fazê-los compre­
ender bem, que para o homem seu pênis lhe é restituído por um certo ato do
qual no limite se poderia dizer que ele o priva. Não é exato, mas é para abrir as
orelhas de vocês, quer dizer que aqueles que já compreenderam a precedente

233
fórmula não a degradem no acento segundo, qúe lhe dou.'Mas este acento
segundo tem sua importância porque é ai que se faz a junção com o elemento
de imediato desenvolvimentista do qual se parte habitualmente, e que é aquele
que vou tentar revisar logo com vocês nos perguntando como podemos formu­
lar, com os elementos algébricos dos quais nos servimos, isso de que se trata
nas famosas primeiras relações da criança com o objeto, com o objeto materno
nomeadamente; e como a partir daí podemos conceber que venha se fazer a
junção com este significante privilegiado do qual se trata e do qual tento aqui
situar a função.
A criança, no que é articulado pelos psiquiatras, nomeadamente a Sra.
Melanie Klein, tem toda uma série de relações primeiras que se estabelecem
com o corpo da mãe, concebido aqui, representado numa experiência primitiva
que compreendemos mal conforme os relatos kleinianos: a relação do símbolo
e da imagem. E cada um sabe bem que é disto que se trata nos textos kleinianos,
da relação da forma com o símbolo -ainda que seja sempre um conteúdo ima­
ginário que seja aqui promovido.
Seja o que for, podemos dizer que até um certo ponto, alguma coisa que
é símbolo ou imagem, mas que seguramente é uma espécie de Um (encontra­
mos quase aí uma oposição que recobre as oposições filosóficas, pois que [é] o
que faz sempre o jogo do famoso Parmênides entre o Um e o ser), podemos
dizer que a experiência de relação com a mãe é uma experiência inteiramente
centrada em tomo de uma apreensão da unidade ou da totalidade. Todo o pro­
gresso primitivo, que Melanie Klein nos articula como sendo essencial ao de­
senvolvimento da criança, é aquele de uma relação de espedaçamento a algo
que representa fora dela, ao mesmo tempo, o conjunto de todos estes objetos
espedaçados, fragmentados que parecem estar aí numa sorte não de caos, mas
de desordem primitiva, e de outra parte que, progressivamente, lhe ensinará a
apreender, destas relações, destes objetos diversos, desta pluralidade, na unida­
de do objeto privilegiado que é o objeto materno, de apreender a aspiração, o
progresso, a via em direção à sua própria unidade. A criança, eu o repito,
apreende os objetos primordiais como estando contidos no corpo da mãe, este
continente universal que se apresenta a ela e que seria o lugar ideal, se assim
podemos dizer, das suas primeiras relações imaginárias.
Como podemos tentar articular isto? Há evidentemente aí não dois ter­
mos, mas quatro termos. A relação da criança com o corpo da mãe, tão primor­
dial, é o quadro onde vêm se inscrever estas relações da criança com seu
próprio corpo, que são aquelas que desde há muito tempo tentei articular para
vocês em tomo da noção de afeto especular -na medida em que está aí o

234
termo que dá a estrutura do que se chama o afeto narcísico. É enquanto que a
partir de um certo momento o sujeito se reconhece, numa experiência original
como separado de sua própria imagem, como tendo uma certa relação eletiva
com a imagem de seu próprio corpo, relação especular que lhe é dada seja na
experiência especular como tal, seja em uma certa relação de castração tran­
sitiva nos jogos com o outro de uma idade próxima, muito próxima, e que oscila
num certo limite que não é de ultrapassar a maturação motora -não é não
importa qual tipo de pequeno outro (aqui a palavra pequeno visando o fato de
que se trata dos pequenos camaradas) que o sujeito pode fazer esta experiên­
cia, estes jogos de prestância com o outro companheiro. A idade desempenha
aqui um papel sobre o qual na ocasião insisti,
A relação disto com um Eros, a libido, desempenha um papel especial. É
aqui articulada toda a medida em que o par da criança com o outro que lhe
representa sua própria imagem vem se justapor, interferir, se colocar na depen­
dência de uma relação mais ampla e mais obscura entre a criança, em suas
tentativas primitivas -as tendências originadas de sua necessidade- e o corpo
da mãe enquanto é efetivamente, com efeito, o objeto da imagem, a identifica­
ção primitiva. E o que se passa, o que se estabelece, jaz inteiramente no fato de
que o que se passa no par primitivo, isto é a forma inconstituída na qual se
apresenta o primeiro vagido da criança, o grito, o apelo de sua necessidade, o
modo com que se estabelecem as relações deste estado primitivo ainda
inconstituído do sujeito por relação a algo que se apresenta então como um Um
ao nível do Outro, a saber o corpo materno, o continente universal, é o que vai
regrar de uma maneira completamente primitiva a relação do sujeito enquanto
se constitui de uma maneira especular, a saber como eu -e o eu é a imagem do
outro- com um certo outro que deve ser diferente da mãe (na relação especu­
lar, é o pequeno outro).
Mas, vocês vão vê-lo, é de outra coisa que se trata, sendo dado que é
nesta primeira relação quadripartida que vão se fazer as primeiras adequações
do sujeito à sua própria identidade. Não esqueçam que é neste momento, nesta
relação a mais radical, que todos os autores se colocam em um comum acordo,
situam o lugar de anomalias psicóticas ou parapsicóticas do que se pode cha­
mar a integração de tal ou qual termo das relações autoeróticas do sujeito con­
sigo mesmo nas fronteiras da imagem do corpo.
O pequeno esquema do qual eu me servi outrora e que lembrei recente­
mente, que é aquele do famoso espelho côncavo, na medida em que permite
conceber que possa se produzir -com a condição que a gente se coloque num
ponto favorável determinado, quero dizer no interior de algo que prolonga os

235
limites do espelho côncavo a partir do momento em que nos faz passar pelo
centro do espelho esférico- algo que é figurado pela experiência que dei a
conhecer oportunamente, aquela que provoca a aparição, que não é um fantas­
ma mas uma imagem real que pode se produzir, em certas condições que não
são muito difíceis de produzir; aquela que se produz quando se faz surgir uma
imagem real de uma flor no interior de um vaso perfeitamente existente graças
à presença deste espelho esférico, com a condição de olhar o conjunto do
aparelho de um certo ponto77.
E um aparelho que nos permite imaginar isto do qual se trata, a saber que
é na medida em que a criança se identifica a uma certa posição de seu ser nos
poderes da mãe que ela se realiza. É exatamente nisto que cai o acento de tudo
o que aqui dissemos relativo à importância das primeiras relações concernentes
à mãe. E na medida em que é de um modo satisfatório que ela se integra neste
mundo de insígnias que representam todos os comportamentos da mãe. É a
partir daí, na medida em que ela irá aqui se situar de um modo favorável, que
poderá se colocar, seja no interior de si mesma, seja fora de si mesma, seja lhe
faltando se podemos dizer, este algo que está dela mesma escondido: ou seja
suas próprias tendências, seus próprios desejos, que ela poderá desde a primei­
ra relação estar numa relação mais ou menos falseada, desviada, com suas
próprias pulsões.
Não é muito complicado imaginar isto. Lembrem em tomo do que eu fiz
girar a explicação narcísica: uma experiência manifesta, crucial, desde muito
tempo descrita, o famoso exemplo colocado precursoramente nas confissões
de Santo Agostinho, aquele da criança que vê seu irmão de leite na posse do
seio matemo: «uidi ego et expertus sum zelantemparvulum: nondum loquebatur
et intuebatur pallidus amaro aspectu conlactaneum suum»n, o que traduzi por:
«Eu vi com meus olhos e observei uma criança cheia de inveja. Ela ainda não
falava e já contemplava com um olhar amargo (amaro tem um outro acento
que em francês “amer” (amargo) e poderia ser traduzido por “empoisonné”
(envenenado), mas isto também não me satisfez) seu irmão de leite».
Esta experiência uma vez formalizada, vocês irão vê-la aparecer em
todo seu alcance absolutamente geral. Esta experiência é a relação de sua
própria imagem que, na medida em que o sujeito vê seu semelhante numa certa

” LACAN l.,Les Ecrits techniques de Freud, op.cit.


ID., Le Stade du miroir commeformateur de lafonction du Je, in. Écrits, 1966, Seuil.
” SAINT AUGUSTIN, Oeuvres, Dieu et son oeuvre, Les Confessions, Livres I à VII, 13, 2e.
série. Paris 1992, Études augustiniennes. I, VII, II, 9,5. p. 292.

236
relação com a mãe como primitiva identificação ideal, como primeira forma do
Um, desta totalidade que, na sequência das explorações concernentes a esta
experiência primitiva, os analistas consideram que se fala apenas de totalidade,
de noção de tomada de consciência da totalidade, como se tomados por esta
vertente nos pomos a esquecer do modo mais tenaz que, justamente, o que a
experiência nos mostra é perseguido até q mais extremo de tudo o que vemos
nos fenômenos: é que justamente não há no ser humano nenhuma possibilida­
de de aceder a esta experiência de totalidade, que o ser humano está dividido,
rasgado, e que nenhuma análise lhe restitui esta totalidade. Porque precisamen­
te outra coisa é introduzida na sua dialética que é, justamente, aquela que ten­
tamos articular dado que ela nos é literalmente imposta pela experiência, e em
primeiro lugar, pelo fato que o ser humano, em todos os casos, não pode se
considerar nada mais, em última instância, que como um ser em que falta algo,
um ser, seja macho ou fêmea, castrado. E por isto que é na dialética do ser, no
interior desta experiência do Um, que se relaciona essencialmente o falo.
Mas aqui temos então esta imagem do pequeno outro, esta imagem do
semelhante, em uma relação com esta totalidade que o sujeito acabou de assu­
mir, não sem lentidão. Mas é bem sobre isso, em tomo disso que Melanie Klein
faz girar a evolução na criança. É o momento dito da “fase depressiva” que é o
momento crucial, quando a mãe como totalidade foi em um momento realiza­
da. É desta primeira identificação ideal que se trata.
E o que nós temos em face desta? Temos a tomada de consciência do
objeto desejado enquanto tal, a saber, que o outro está em vias de possuir o seio
materno. E ele toma este valor eletivo que faz desta experiência uma experiên­
cia crucial, em tomo da qual lhes peço que vocês se detenham como sendo
essencial para nossa formalização, na medida em que nesta relação com o ob­
jeto que, nesta ocasião, se chama seio materno, o sujeito toma consciência de si
mesmo como privado -contrariamente ao que é articulado por Jones: toda pri­
vação, diz ele, em algum lugar (e é sempre em tomo da discussão da fase fálica
que isto é formulado) engendra o sentimento de frustração; é exatamente o
contrário.! É na medida em que o sujeito é imaginariamente frustrado, em que
tem a primeira experiência de algo que está diante dele em seu lugar, que usur­
pa seu lugar, que está nesta relação com a mãe que deveria ser o seu e onde ele
sente este intervalo imaginário como frustração (digo imaginária porque de­
pois de tudo ninguém prova que ele seja mesmo privado, um outro pode ser
privado, ou pode se ocupar dele por sua vez) que nasce a primeira apreensão
do objeto enquanto o sujeito disto é privado.
E aí que se isca, que se abre o algo que vai permitir a este objeto entrar

237
riu uniu ccilit irluçiiii coin tun .'iiijcilo quo itqui, into salicuios, clctivtimenle, ' ''
se é um S ao qual é preciso que coloquemos o índice pequeno i, uma espécie de
autodestruição passional absolutamente aderente a esta palidez, a esta decom­
posição que nos mostra aqui o pincel literário daquele que nô-la recita, ou seja
Santo Agostinho- ou se é algo que já podemos conceber como propriamente
falando uma apreensão da ordem simbólica; ou seja o que isto quer dizer; ou
seja que já nesta experiência o objeto seja simbolizado, de um certo modo, toma —
valor signifícante, que já o objeto do qual se trata, ou seja o seio da mãe, não
apenas possa ser concebido como estando aí ou não estando aí, mas possa ser
colocado na relação com algo de outro que possa lhe ser substituído. É a partir
disto que isto se toma um elemento signifícante.
Em todo caso Melanie Klein, sem saber o alcance do que ela diz neste
momento, toma bem esta direção dizendo que aí pode haver algo de melhor, a ■
saber o falo. Mas ela não nos explica porquê, é aí o ponto que permanece
misterioso. Ora, tudo repousa sobre este momento onde nasce a atividade de
uma metáfora que pontuei para vocês como sendo tão essencial a revelar no
desenvolvimento da criança. Lembrem-se do que disse para vocês no outro dia " ■
acerca destas formas particulares de atividade da criança diante da qual os
adultos ficam ao mesmo tempo tão desconcertados e desajeitados; atividade da
criança que, não contente de se pôr a chamar “au-au”, isto é por um signifícante
que tem invocado como tal, o que vocês estão obstinados a lhe chamar de cão,
se põe a decretar que o cão faz “miau” e que o gato faz “au-au”. É nesta
atividade de substituição que jaz todo o papel, a mola do progresso simbólico. E
é muito mais primitivamente,, certamente, que a criança o articula.
Isto do que se trata, é em todo caso algo que ultrapassa esta experiência
passional da criança que se sente frustrada, quer dizer aquela precisamente que
podemos formalizar nisto que esta imagem do outro vai poder ser substituída ao
sujeito na sua paixão exterminadora, em sua paixão invejosa na ocasião, e se achar
em uma certa relação ao objeto, na medida em que ele está numa certa relação
também com a totalidade que pode ou não concemi-lo. Mas é na medida que o
objeto é substituível por esta totalidade, na medida que a imagem do outro é
substituível ao sujeito, que entramos propriamente falando na atividade simbó­
lica, naquela que faz do ser humano um ser falante, o que vai definir toda sua
relação ulterior ao nosso objeto.

238 4
I )((<i islo, no ou.'io qilc cl r.do qn:il no:, iii'iipimii r., eiiuiii i h'.luii,Orh Mu
fundamentais, ficando no sen caiátcr Lio pnnnlivo, podem ria.’, umi srivu pma
nos orientar? Quero dizer para criar as discriminações que. nos pei mu,mi jm.Li
mente tirar o máximo de proveito destes fatos que nos são dados ua expciicn
cia do sonho e do sujeito particular cujo caso analisamos.
Vejamos se esta relação ao desejo, esta relação chamada desejo, csln
relação ao objeto enquanto é relação de desejo humano, nós devemos a cada
instante nos propor apreendê-lo de perto, e se é sempre exigível que aí encon­
tremos esta relação a um objeto enquanto que o sujeito aí se mostra como, no
limite, aniquilado. Se é $ em relação a a que é a fórmula do desejo, e se tudo
isto se inscreve nesta relação quádrupla que faz com que o sujeito, na imagem
do outro, í(a) -ou seja nas sucessivas identificações que irão se chamar eu--
encontra para se substituir uma forma a este algo de profundamente “pálido",
profundamente angustiado que é a relação do sujeito no desejo, o que é que
encontramos nos diferentes elementos sintomáticos que nos são trazidos aqui
nesta observação?
Podemos tomá-lo por muitas pontas, este material que nos é trazido pelo
doente. Tomê-mo-lo. tanto quanto possível nas pontas que são mais relevantes,
nas pontas sintomáticas. Há um momento em que ele nos diz que cortou as
tiras, as correias das sandálias de sua irmã. Isto vem no decorrer da análise do
sonho, quer dizer depois de um certo número de intervenções, sem dúvida
mínimas mas, contudo, não nulas, de Ella Sharpe, a analista. De simples relan­
ces fez-se chegar pouco a pouco, de fio em agulha, depois do capuz (o fato que
o capuz tenha a forma do órgão genital feminino nesta relação que é a do so­
nho), depois da capota do carro, as tiras que servem para fixar, para arrumar
esta capota; depois estas tiras que ele cortava, num certo momento, das sandá­
lias de sua irmã, sem. poder ainda agora prestar contas do objetivo que sem
nenhuma dúvida ele perseguia, que lhe parecia muito útil sem que pudesse, no
que quer que seja, mostrar a necessidade.
São exatamente os mesmos termos com os quais ele se serve a propósi­
to de seu próprio carro o qual, numa sessão ulterior, após a sessão de interpre­
tação do sonho, ele diz à analista que este carro que o garagista não colocou no
mesmo lugar -e que ele não sonha em discutir com este excelente bom ho­
mem- e do qual não tem nenhuma necessidade, ele bem que o querería, ainda
que ele não lhe seja necessário. Ele diz que «ama isto».
Eis duas formas, parece, do objeto com o qual o sujeito tem certamente
uma relação da qual ele mesmo articula o caráter singular; ou seja que isto não
responde nos dois casos a nenhuma necessidade. Não somos nós que o dize-

239
mos, não dizemos “o homem moderno não tem nenhuma necessidade de seu
carro” ainda que qualquer um olhando de perto se aperceba que é muito evi­
dente. Aqui é o sujeito que o diz: «Eu não tenho necessidade de meu car­
ro, unicamente eu o amo, eu o desejo». E como vocês sabem, é ali que Ella
Sharpe apreende o movimento do caçador diante da caça, o objeto da investi­
gação, nos diz que ela intervém com os últimos esforços, sem nos dizer, coisa
curiosa, em que termos ela o fez.
Comecemos a descrever um pouco as coisas de que se trata..E posto que
quis partir do que é o mais simples, o mais destacável numa equação antiga:

as tiras, ou as correias, é o a. Há um momento em que ele faz coleção destas


tiras. Obriguemo-nos a seguir um pouco nossas próprias fórmulas, posto que se
nós as colocamos é que elas devem nos servir para alguma coisa. A imagem de
a, i(a), é bem claro que aqui é sua irmã da qual não se falou muito, pois não se
duvida como é complexo remover a mínima coisa quando se trata de explicar o
que temos a fazer. Sua irmã é a primogênita, tem oito anos mais do que ele. Isto
nós sabemos, está no relato. Ela não faz grande uso disso, que ela tenha oito
anos a mais do que ele, mas o que é certo é que se ela tem oito anos a mais do
que ele, ela tinha onze anos quando ele, o sujeito, tinha três anos, por ocasião da
perda de seu pai.
Um certo gosto pelo significante tem a vantagem de nos fazer usar, de
tempos em tempos, a aritmética. Isto não é algo abusivo, pois não é absoluta­
mente duvidoso que na idade a mais tenra, as crianças não param de lidar com
sua idade e sua relação de idade. Nós outros, graças a Deus! esquecemos que
passamos dos cinquenta, temos razões para isto, mas as crianças insistem mui­
to em saber a sua idade. E quando se faz este pequeno cálculo, se apercebe de
uma coisa muito surpreendente, que o sujeito nos diz que não começa a ter
lembranças senão a partir dos oito ou onze anos. Isto está no relato. Não se tira
um grande proveito, mas não é simplesmente uma espécie de achado ao acaso
que dou para vocês, porque se vocês lerem agora o relato, vocês verão que isto
vai muito mais longe. Quer dizer que é no momento mesmo em que isto é
trazido ao nosso conhecimento pelo sujeito (quero dizer, que ele tinha uma má
memória para tudo o que está abaixo de onze anos) que ele fala, em seguida, de

240
sua girl friend que está rudemente instruída, uma moça rudemente bela no que
concerne às impersonations, isto é, para imitar qualquer um, e particularmente
os homens, de um modo surpreendente dado que se utiliza da B.B.C.
É surpreendente que ele fale disto justamente no momento em que fala
de algo que parece de um outro registro, a saber que abaixo de onze anos está
o buraco negro. É preciso crer que isto não é sem relação com uma certa
relação de alienação imaginária dele mesmo nesta personagem fraterna. i(a) é
claro sua irmã, e isto nos pode explicar muitas coisas, inclusive que ele fará, em
seguida, a elisão no que concerne à existência na sua família de pram, “carri­
nho de criança”. Neste plano aí, está o passado, é o assunto da irmã. Enfim,
existe um momento onde esta irmã, ele a agarrou se se pode dizer, quer dizer
que ele veio a reencontrá-la no mesmo ponto em que ele a havia deixado, em
tomo de um acontecimento que é crucial. Ela tem razão, Ella Sharpe, em dizer
que a morte do pai é crucial. A morte do pai deixou-o confrontado com toda
sorte de elementos -salvo um que lhe teria sido provavelmente muito precioso
para sobrepujar as diversas captações das quais tratar-se-á.
■ Aqui de todo modo, é o ponto que certamente nos será um pouco miste­
rioso pois o sujeito mesmo o sublinha, por que estas tiras? Ele não sabe nada
disto. Graças a Deus! Somos analistas e adivinhamos bem que é o que está aí
ao nível do $. Quero dizer, que se exige que façamos uma pequena idéia do que
está aí, pois conhecemos outros relatos; é algo que tem evidentemente relação
com, não a castração -se fosse a castração bem assimilada, bem inscrita, as­
sumida pelo sujeito, ele não teria tido este pequeno sintoma transitório- mas
neste momento aí é mesmo bem ao redor da castração que isto girava, mas que
não temos o direito até nova ordem, de extrapolar, e que é aqui I, ou seja o que
tem relação com algo que até nova ordem podemos perfeitamente nos permitir
suspender um pouco nossas conclusões. Se estamos em análise, é justamente
para tentar um pouco compreender, e compreender o que é: ou seja o que é que
o I do sujeito, seu ideal, esta identificação extremamente particular na qual já
indiquei na última vez que conviría se deter. Iremos ver como podemos precisá-
lo numa relação que ele tem por relação à primeira, alguma coisa de mais
evolutiva. Isto deve ser algo se relacionando à situação atual na análise, e
concernindo às relações com a analista.
Bem, recomecemos a nos colocar as questões concernentes ao que ocor­
re atualmente. Havería diversos modos de se colocar este problema pois, nesta
ocasião, pode-se dizer que todos os caminhos levam a Roma! Pode-se partir do
sonho e desta massa de coisas que o sujeito traz como material em reação às
interpretações que faz a analista. Estamos de acordo com o sujeito que o es­

241
sencial é o carro, o carro e as tiras -isto não é, evidentemente, a mesma coisa,
houve algo que evoluiu no intervalo. O sujeito tomou posições, ele mesmo fez
reflexões acerca deste carro, e reflexões que não são sem levar os traços de
alguma ironia: «é idiota que se fale nele como de algo vivo». Acima, eu
não insisti nisso, sente-se, eu já o frisei na última vez, que o caráter evidente­
mente simbólico do carro tem sua importância. É certo que no curso de sua
existência o sujeito encontrou neste carro um objeto mais satisfatório, parece,
do que as tiras. Pela simples razão que, as tiras, ele atualmente não compreen­
de absolutamente nada, enquanto que é igualmente capaz de dizer que, eviden­
temente, o carro não serve a tal ponto para satisfazer uma necessidade, mas
que ele o estima muito! E depois ele brinca, nisto ele é mestre, ele está bem no
interior de seu carro.
O que iremos encontrar aqui ao nível da imagem? Ao nível da imagem
de a, 1(a), encontramos coisas que são, evidentemente, diferentes conforme
tomemos as coisas ao nível do fantasma e do sonho, ou ao nível do que se pode
chamar os fantasmas do sonho e do sonho acordado.
No sonho acordado, que tem seu preço também, sabemos o que é a ima­
gem do outro; é algo frente à frente ao qual ele tomou atitudes bem particula­
res. A imagem do outro, é o casal de amantes que, sob pretexto de não atrapa­
lhar, o observem, ele não falha jamais em atrapalhar de modo o mais efetivo,
quer dizer intimar a se separar. A imagem do outro, é este outro do qual todo
mundo dirá -lembrem-se deste fantasma muito picante que ele diz ter tido
ainda não há muito tempo- oh, não vale a pena verificar o que existe nesta
peça, «não é senão um cão»7’. Sucintamente, a imagem do outro, é algo que
deixa em todo caso pouco lugar à conjunção sexual, que exige ou bem a sepa­
ração ou bem, ao contrário, algo que está verdadeiramente de fato fora do jogo,
um falo animal, um falo, ele, que está completamente colocado fora dos limites
do jogo. Se há um falo, é um falo de cão.
Esta situação, como vocês o vêem, parece ter feito progressos no sentido
da desintegração. É dizer que se durante muito tempo, o sujeito foi alguém que
tomou seu suporte numa identificação feminina, constatamos que sua relação
com as possibilidades de conjunção, do abraço, da satisfação genital, se apre­
senta de um modo que em todo caso deixa escancarado, aberto, o problema do

” «[...] A phantasy I had ofbeing in a room where I ought not to be, and thinking someone might
think I was there, and then ! thought to prevent anyone from coming in and finding me there I
would bark like a dog. That would disguise my presence. The "someone" would then say, “Oh,
it's only a dog in there ".»

242
que faz o falo aí dentro. É muito certo, etn todo caso, que o sujeito mio está A
vontade. A questão do duplo ou do simples está ai, se ó duplo é separado, se é.
simples não é humano. De qualquer maneira isto não se arranja bem. E quanto
ao sujeito nesta ocasião, há uma coisa muito clara. Não temos que nos pergun­
tar como no outro caso o que ele é ou onde ele está. E muito claro, aí não há
mais ninguém, é verdadeiramente o ovxil; (owtó) o qual já consideramos em
outras circunstâncias.
Que seja o sonho, em que a mulher faz tudo para «to get my penis», em
que literalmente não há nada de fato -far-se-á tudo o que se quiser com a mão,
mesmo mostrar que não há nada nas mangas, mas quanto a ele, ninguém! E
quanto ao que é seu fantasma, é a saber: o que há neste lugar onde ele não deve
estar, aí não há com efeito ninguém. Nãó há ninguém, porque, se há um falo, é
o falo de um cão que se masturbava num local onde seria bem aborrecido al­
guém entrar -em todo caso não ele.
E aqui, o que há ao nível do I? Pode-se dizer, é certo que há a Sra. Ella
Sharpe, e que Ella Sharpe não está sem relação com tudo isso. A Sra. Ella
Sharpe, ela é advertida de antemão por «uma pequena tosse» para reverter a
fórmula, para ela não colocar seu dedo onde não deve. Isto é, que se ela está
em vias de operar sobre ela mesma de um modo mais ou menos suspeito, ela
deve esconder isto antes que o sujeito chegue. É preciso, para dizer tudo, que
Ella Sharpe esteja completamente protegida dos golpes do sujeito. E o que
denominei na última vez, referindo-me às próprias comparações de Ella Sharpe
que considera a análise como um jogo de xadrez, que o sujeito não quer perder
sua rainha. Ele não quer perder sua rainha porque, sem dúvida nenhuma, sua
rainha é a chave de tudo isto, que tudo isto não pode ficar em pé, senão, porque
é do lado da rainha que nada deve ser mudado, porque é do lado da rainha que
está todo o poder. A coisa estranha, é que esta idéia de toda potência, Ella
Sharpe a fareja e a reconhece em toda parte. Ao ponto de dizer ao sujeito que
ele se acredita todo potente, sob o pretexto de que ele teve «um sonho enor­
me», por exemplo, quando ele não é capaz de dizer mais do que este pequeno
lance de aventura que se passa numa estrada da Tchecoslováquià. Mas não é
o sujeito que é todo potente. Quem é todo potente, é o Outro, e é exatamente
por isso que a situação é mais especialmente temível!
Não esqueçamos que é um sujeito que não chega a contestar, ele não
pode, e isto também é algo que é muito evidente. A chave da questão é esta, é
verdade ou não que o sujeito não pode chegar a contestar porque o Outro, em
posição e lugar no qual nós nos colocamos sempre que temos que contestar,
para ele não é preciso tocar neste lugar? Em outros termos o Outro, ele -e na

243
ocasião é a mulher- o Outro não deve ser em nenhum caso castrado. Quero
dizer que o Outro traz nele mesmo este significante que tem todos os valores. E
é precisamente aqui que é preciso considerar o falo -eu não sou o único. Leiam
na página 272 de Melanie Klein80: no que concerne à evolução da menina, ela
diz muito bem que o significante falo, primitivamente, concentra sobre si todas
as tendências que o sujeito pôde ter em todas as ordens, oral, anal, uretral, e
que antes mesmo que se possa falar de genital, já o significante falo concentra
em si todos os valores, e especialmente os valores pulsionais, as tendências
agressivas que o sujeito pode elaborar.
É na medida em que o significante falo, o sujeito não pode colocá-lo em
jogo, em que o significante falo permanece inerente ao Outro como tal, que o
sujeito se encontra a si mesmo numa postura que é a postura em pane que
vemos. Mas o que há de completamente surpreendente, é que, aí como em
todos os casos em que nos encontramos em presença de uma resistência do
sujeito, esta resistência é aquela do analista. Pois efetivamente, se há algo do
qual Ella Sharpe se interdita severamente na ocasião -ela não se dá conta
porque, mas é certo que ela o confessa como tal, que ela se interdita- é de
contestar. Nesta ocasião em que justamente uma barreira é oferecida a fran­
quear, que ela poderia franquear, ela se interdita a franqueá-la. Ela se recusa a
isto pois ela não se dá conta que isto contra o qual o sujeito se precavê, não é
como ela o pensa, algo que diria respeito a uma pretendida agressão paterna -
o pai, ele, está morto há muito tempo, e bem morto, e houve todos os esforços
do mundo para lhe dar uma pequena reanimação no interior da análise, não se
trata de incitar o sujeito a se servir do falo como de uma arma, do que se trata
não é de seu conflito homossexual, não é que ele se considere mais ou menos
corajoso, agressivo em presença das pessoas que zombam dele no tênis porque
ele não sabe dar o último shot.
Não é de nada disto que se trata, ele está aquém deste momento no qual
ele deve consentir em se aperceber que a mulher é castrada, eu não digo que a
mulher não tenha o falo, o que ele demonstra no seu fantasma de sonho de
modo totalmente irônico -mas que o outro como tal, pelo fato mesmo que ele
está no Outro da linguagem, ele está submetido a isto: para o que é da mulher,
ela é sem tê-lo. Ora, isto é justamente o que não pode ser admitido por ele, em
nenhum caso. Para ele ela não deve ser sem tê^lo, e é por isso que ele não quer
por nenhum preço que ela o arrisque. Sua mulher está fora do jogo no sonho,

80 KLEIN M., «Le retentissement des premieres situations anxiogènes sur le développement
sexuel de la filie», in La Psychanalyse des enfants, Paris, 1959, PUF, pp. 209-250.

244
não esqueçam. Ela é aí quem não desempenha em aparência nenhum papel.
Ele nem mesmo sublinhou que ela olha. É aí, se posso dizer, que o falo é colo­
cado em abrigo. O sujeito nem tem ele mesmo que arriscar, o falo, porque ele
está todo inteiro em jogo num canto onde ninguém irá pensar em procurá-lo. O
sujeito não vái até dizer que ele está na mulher, e contudo é justamente na
mulher que ele está. Quero dizer que é para isso que Ella Sharpe está ali. Não
é especialmente inoportuno que ela seja uma mulher. Isto poderia ser inteira­
mente oportuno se ela se apercebesse do que há a dizer ao sujeito, ou.seja que
ela está aí como mulher, e que isto põe questões, que o sujeito ouse diante dela
defender sua causa. E precisamente isto que ele não faz. É precisamente o que
ela se apercebe que ele não faz, e é em tomo disto que gira este momento
crítico da análise.
Neste momento ela o incita a se servir do falo como de uma arma; ela
diz: este falo é algo que sempre foi excessivamente perigoso, não tenha medo,
é bem disto que se trata, ele é «boring and biting». Não há nada neste material
que nos dê uma indicação do caráter agressivo do falo, e é contudo neste senti­
do que ela intervém pela palavra. Não penso que isto seja a melhor coisa. Por
quê? Porque a posição que tem o sujeito, e que segundo toda aparência ele
guardou, que guardará em todo caso ainda mais após a intervenção de Ella
Sharpe, é justamente aquela que ele tinha em um momento de sua infância que
é exatamente aquele que tentamos precisar no fantasma das correias cortadas e
de tudo o que aí se liga às identificações à sua irmã e da ausência dos carros de
criança, é algo que aparece (vocês o verão se vocês relerem muito atentamente
suas associações), é uma coisa da qual ele está seguro que ele a experimentou:
é ele amarrado, é ele «pined up» em sua cama. E ele, enquanto foi certamente
contido, mantido em posições que não são sem relação, ao que podemos presu­
mir, com alguma repressão da masturbação, em todo caso com alguma experi­
ência que foi por ele ligada aos seus primeiros acessos de emoção erógena, e
que tudo deixa pensar que foram traumáticos.
É neste sentido que Ella Sharpe o interpreta. Tudo o que o sujeito produz,
é algo que.deve ter jogado um papel, diz ela, com alguma cena primitiva, com a
cópula dos pais. Esta cópula, sem nenhuma dúvida ele a interrompeu, seja por
seus gritos, seja por alguma perturbação intestinal. É aí que ela encontra mes­
mo a prova de que esta «pequena cólica» que substitui a tosse no momento de
bater na porta é uma confirmação de sua interpretação. Isto não é seguro! O
sujeito, que ele seja pequeno ou na medida em que alguma coisa se produz em
eco como sintoma transitório no curso da análise, afrouxa o que tem no interior
do corpo. E isto «uma pequena cólica», não é contudo resolver a questão da

245
função desta incontinência. Esta incontinência, vocês o sabem, se reproduzirá
ao nível uretral, sem dúvida nenhuma com uma função diferente. E já disse o
quanto era importante notar o caráter em eco da presença dos pais em vias de
consumar o ato sexual, a toda espécie da manifestação de enurese.
Aqui sejamos prudentes, convém não dar sempre uma finalidade unívoca
àquilo que pode com efeito ter certos efeitos, ser em seguida usado secundari­
amente, pelo sujeito, como constituindo com efeito uma intervenção completa
nas relações interparentais. Mas aí o sujeito, bem recentemente,, isto é, numa
época muito próxima deste sonho da análise, teve um fantasma muito especial, e
do qual nesta ocasião Ella Sharpe fez muito caso para confirmar a noção desta
relação com a conjunção parental: é que ele tem medo de um dia ter uma pequena
pane em seu famoso carro, decididamente mais e mais identificado a sua própria
pessoa, e de tê-la no meio da estrada onde deveria passar o casal real, nem mais
nem menos! Como se ele estivesse ali para nos fazer eco ao jogo de xadrez. Mas,
cada vez que vocês encontrarem o rei, pensem menos no pai do que no sujeito.
O que quer que seja este fantasma, esta pequena angústia que o sujeito
manifesta: contanto que, se ele deve também comparecer a esta pequena reu­
nião de inauguração onde o casal real... estamos em 1934, a coroa inglesa não
é de uma rainha e de um pequeno consorte, há um rei e uma rainha que vão se
encontrar aí bloqueados pelo carro do sujeito. O que devemos nos contentar
pura e simplesmente, nesta ocasião, em dizer, é: eis algo que renova imaginari-
amente, fantasmaticamente, pura e simplesmente, uma atitude agressiva do
sujeito, uma atitude de rivalidade, comparável, à rigor, àquela que se pode dar
ao fato de molhar sua cama. Isto não é seguro. Se isto deve despertar em nós
algum eco, é que o casal real não está em não importa qual condição: ele vai se
encontrar em seu carro detido, exposto aos olhares.
Parece que o que se trata nesta ocasião, é apesar de tudo algo que está
muito mais perto desta procura desvairada do falo, fujão que não está em parte
alguma e que se trata de encontrar, e do qual se está bem certo de que não se o
encontrará jamais; é a saber que se o sujeito está aí neste capuz, nesta proteção
construída desde sempre em volta do seu eu pela capota do carro, é também a
possibilidade de se furtar com uma «pin of speed», um “pico de velocidade”. O
sujeito vai se encontrar na mesma posição que aquela em que outrora ouvimos
ressoar o riso dos Olímpicos: é o Vulcão que nos apanha na redes comuns,
Marte e Vênus. E qualquer um sabe que o riso dos deuses reunidos nesta
ocasião ainda ressoa nos nossos ouvidos e nos versos de Homero81.

!1'HOMÈRE, Illiade-Odyssée. Paris, 1955, La Pléiade, Gallimard, VIII, 266-305, p. 657.

246
Onde está o falo? Isto é prccisamcntc sempre o domínio maioi do eônn
co-e após tudo não esqueçamos que este fantasma é antes de tudo um fantas­
ma em tomo de uma noção de incongruência muito mais do que outra coisa.
Ele se religa da forma mais estreita a esta mesma situação fundamental que é
aquela que vai dar a unidade deste sonho e de tudo o que está em tomo, ou seja
aquela de uma afônise não no sentido do “desaparecimento do desejo”, mas no
sentido próprio que a palavra merece se tomamos o substantivo aphanisos,
que não é propriamente “desaparecer”, mas “fazer desaparecer”.
Recentemente um homem de talento, Raymond Queneau, colocou em
epígrafe de um lindo livro, Zazie dans le métro: o rtÂaoaíj rp|)ayioev,
“aquele que fez isto dissimulou cuidadosamente suas pegadas”.
É exatamente disto que se trata no fim das contas. A afânise que se trata
aqui, é a escamoteação do objeto em questão, ou seja, o falo. É na medida em
que o falo não é colocado no jogo, que o falo é reservado, que ele é preservado,
que o sujeito não pode aceder ao mundo do Outro. E vocês verão, não há nada
mais neurotizante, não apenas o medo de perder o falo ou o medo da castração
-está aí a mola de fato fundamental- mas não querer que o Outro seja castra­
do.

247
Lição 13
04 de março de 1959

Creio que temos levado bastante longe a análise estrutural do sonho


modelo que se encontra no livro de Ella Sharpe para que vejam, ao menos, a
que ponto esse trabalho nos importava, na rota disso que tratamos de fazer, ou
seja, o que devemos considerar como o desejo e sua interpretação.
Ainda que alguns tenham dito não ter encontrado a referência a Lewis
Caroil que eu havia dado na última vez, estou surpreso que vocês não tenham
retido a dupla regra de três, porque é sobre isso que terminei, a propósito das
duas etapas da relação do sujeito ao objeto mais ou menos fetiche, a coisa que
se expressa finalmente como o:

i (a) JL

$I

A identifição ideal que deixei aberta, não sem intenção, para a primeira
das duas equações, para a das tiras das sandálias da irmã, essa onde no lugar
do I temos um X.
Eu não penso que ninguém dentre vocês não se tenha apercebido que
esse X, como bem entendido, é algo que era o falo. Mas o importante é o lugar
onde estava esse falo. Precisamente no lugar de I, de identificação primitiva,
da identifição à mãe, precisamente nesse lugar onde o falo, o sujeito não quer
denegá-lo à mãe. O sujeito, como ensina a doutrina desde sempre, quer manter
o falo da mãe, o sujeito recusa a castração do Outro.
O sujeito, como lhes dizia, não quer perder sua rainha, pois é do jogo de

249
xadrez. que se lrala; cie não quer, na ocasião, colocar Ella Sharpe era urna oulra
posição que a posição de falo idealizado que é aquela da qual ele a advertiu
através de uma «pequena tosse» antes de entrar na sala, de ter que fazer desapa­
recer os [amantes] de forma que ele não tenha, de nenhuma maneira, que lhes
colocar em jogo.
Nós teremos talvez a oportunidade este ano de voltar a Lewis Caroll;
vocês verão que não se trata, literalmente, de outra coisa nas duas grandes
Alices: Alice in Wonderland e Through the looking glass11. E quase um poema
dos avatares fálicos, dessas duas Alices. Vocês podem desde já por-se a folheá-
los um pouco, de maneira a lhes preparar para certas coisas que poderia chegar
a dizer.
Uma coisa pôde lhes surpreender no que lhes disse, que concerne à
posição desse sujeito em relação ao falo, que é o que lhes sublinhei: a oposição
entre o ser e o ter. Quando lhes disse que era porque para ele, era a questão de
ser a que se colocava, que foi necessário “sê-lo sem tê-lo” (isso pelo qual defini
a posição feminina), não é possível que à propósito deste ser e não ser, o falo,
que não seja elevado em vocês o eco, que verdadeiramente se impõe, mesmo a
propósito de toda esta observação, do «To be or not to be», sempre tão enig­
mático, tomado quase uma farsa, que nos dá o estilo da posição de Hamlet, e
que, se nos engajamos nessa abertura, só nos levariq a um dos temas mais
primitivos do pensamento de Freud, desse algo onde se organiza a posição do
desejo, onde se verifica o fato que foi desde a primeira edição da Traumdeutung
que o tema de Hamlet foi promovido, por Freud a uma posição equivalente
àquela do tema edipiano que aparecia então pela primeira vez na Traumdeutung.
Seguramente sabemos que Freud já o pensava desde há um bom tempo mas é
pelas cartas que não estavam destinadas a ser publicadas. A primeira aparição
do “Complexo de édipo”, está na Traumdeutung em 1900.
A [observação sobre] Hamlet nesse momento foi publicada também em
1900 na forma em que Freud as deixou em seguida, mas em notas, e é em
1910-1914 que ela passa ao corpo do texto. Creio que o tema de Hamlet pode
nos servir para reforçar esse tipo de elaboração do Complexo de castração.
Como o complexo se articula no concreto, no encaminhamento da análise? O
tema de Hamlet, após Freud, foi retomado muitas vezes, não passarei em re­
vista todos os autores que o retomaram. Vocês sabem que o primeiro é Jones.

,z CAROLL L., Alice in wonderland, op cit. Id., Through the Looking-glass (1872), trad. H.
Parisot, Paris, 1971, bil. Aubier-Flammarion.

250
Ella Sharpe igualincntc adiantou sobre Hamlet mu certo número de coisas que
não são sem interesse, o pensamento de Shakespeare e a prática de Shakespeare
estando totalmente no centro da formação desta analista. Chegaremos talvez
ao momento de aí retomar. Trata-se hoje de começar a decifrar esse terreno, a
nos perguntar o que o próprio Freud quis dizer introduzindo Hamlet, o que se
demonstra do que se pôde dizer ulteriormente nas obras de outros autores.
Eis aqui o texto de Freud que vale a pena ser lido no início desta investi­
gação, eu lhes dou na tradução francesa83. Depois de ter falado do Complexo
de édipo pela primeira vez, e não é vão observar aqui que este Complexo de
édipo, ele o introduz na Science des rêves a propósito dos «sonhos de morte de
pessoas queridas», quer dizer a propósito precisamente disso que nos serviu
esse ano de partida e de primeiro guia na valorização de algo que é apresentado
de início muito naturalmente neste sonho que escolhi por ser um dos mais sim­
ples referindo-se a um morto -esse sonho que nos serviu para mostrar como se
instituía sobre duas linhas de intersubjetividade superpostas, desdobradas uma
em relação à outra, o famoso «ele não sabe» que colocamos sobre uma linha, a
linha da posição do sujeito (o sujeito paternal, neste caso, sendo o que é evoca­
do pelo sujeito sonhador), quer dizer em algum lugar pnde se situa, sob uma
forma de qualquer maneira encarnada pelo próprio pai e no lugar do pai, sob a
forma do «ele não o sabe», precisamente o fato que o pai é inconsciente e
encarna aqui a imagem, o próprio inconsciente do sujeito, e de quê? de seu
próprio voto, do voto de morte contra seu pai.
Bem entendido, ele conhece um outro, um tipo de voto benevolente, de
chamado a uma morte consoladora. Mas justamente essa inconsciência, que é
a do sujeito concernente a seu voto edipiano„está de certo modo encarnado, na
imagem do sonho, sob esta forma de que o pai não deve saber que o filho fez
contra ele esse voto benevolente de morte. «Ele não sabe», diz o sonho absur­
damente, «que estava morto». E aí que se interrompe o texto do sonho. E o que
é recalcado pelo sujeito, que não é ignorado pelo pai fantasmático, é o «segun­
do seu voto» do qual Freud nos diz que é o significante que devemos considerar
como recalcado.
«Uma outra de nossas grandes obras trágicas, nos diz Freud, o Hamlet
de Shakespeare, tem as mesmas raízes que Edipo-rei. A realização tão dife­
rente mostra, de uma maneira idêntica, quais diferenças há na vida intelectual
[Seelenleben] destas duas épocas, e qual progresso o recalcamento fez na

,J FREUD S., L 'interpretation des rêves (1900), op.cit., p.230. G.W. t. II-III, p.271.

251
vida sentimental (a palavra sentimental, Gemütsleben, é aproximativa) [...].
No Édipo, os desejos da criança aparecem e são realizados como no sonho...»
Freud com efeito insistiu muito sobre o fato de que os sonhos edipianos
estão aí de alguma forma como o retomo, a fonte fundamental desses desejos
inconscientes que reaparecem sempre, e o Édipo (falo do Édipo de Sófocles ou
da tragédia grega) como a fabulação, a elaboração do que surge sempre destes
desejos inconscientes. E assim que textúalmente essas coisas são articuladas
na Science des rêves.
«[...] em Hamlet, estes mesmos desejos da criança estão recalcados, e
não apreendemos sua existência, tal como nas neuroses, senão por sua ação de
inibição, Hemmungswirkungen**. Fato singular, pois embora este drama sem­
pre tenha exercido uma ação considerável, nunca houve um acordo sobre o
caráter de seu herói. A peça está baseada nas hesitações de Hamlet em cumprir
a vingança da qual está encarregado; o texto não diz quais são as razões e os
motivos destas hesitações; as numerosas tentativas de explicação não puderam
descobri-las. Segundo Goethe, e é agora ainda a concepção dominante, Hamlet
representaria o homem cuja atividade está dominada por um desenvolvimento
excessivo do pensamento, Gedankentãtigkeit, cuja força de ação está paralisa­
da, "Von des Gedankens Blãsse angekrãnkelt". “Ele se ressente da palidez do
pensamento”. Segundo outros, o poeta teria querido representar um caráter
enfermo, irresolute e neurastênico. Mas vemos na peça que Hamlet não é inca­
paz de agir. Ele age por duas vezes:
- primeiro num movimento de paixão violenta, quando mata o homem
que escuta atrás da tapeçaria»8485 . Vocês sabem que se trata de Polônio, e que é
no momento em que Hamlet tem com sua mãe uma conversa que está longe de
ser crucial, pois nada nesta peça o é jamais, salvo seu término mortal em que
em alguns instantes se acumula, sob forma de cadáveres, tudo o que, dos nós da
ação, estava até então retardado.
- «em seguida de uma maneira reflexiva e astuta, quando, com a indife­
rença total de um príncipe da Renascença, ele envia os dois cortesãos (trata-se
de Rosencrantz e de Guildenstem, que representam tipos de falsos-irmãos) à
morte que lhe tinha sido destinada. O que é que o impede então de cumprir a
tarefa que lhe deu o fantasma de seu pai? (Vocês sabem que a peça se abre
sobre o terraço de Elsinor pela aparição desse fantasma a dois guardas que

84 Hemmungswirkung(en) = efeito(s) de inibição.


“Ibid., p.231 (G.W. p.272)

252
advertirão, em breve, Hamlet). É preciso convir que é a natureza desta tarefa.
Hamlet pode agir, mas ele não saberia se vingar de um homem que descartou
seu pai e tomou o lugar daquele junto de sua mãe [...]. Em realidade, é o horror
que deveria impulsioná-lo para a vingança, que está substituído por remorsos,
escrúpulos de consciência [...]. Acabo de traduzir em termos conscientes o
que permanece inconsciente na alma do herói...»86.
Essa primeira colocação de Freud se apresenta com um caráter de uma
justeza de equilíbrio que, se posso dizer, nos conserva a via reta para situar,
para manter Hamlet no lugar onde ele o colocou. Aqui isso está verdadeira­
mente claro. Mas é também em relação a esse primeiro jato da percepção de
Freud que deverá se situar em seguida tudo o que se imporá como excursões
em tomo disso, e como bordados e, vocês verão, algumas vezes bastante dis­
tantes.
Os autores, à medida justamente do avanço da exploração analítica,
centram o interesse, em pontos que, aliás, em Hamlet, se encontram às vezes,
validamente, mas em detrimento desse tipo de rigor com o qual Freud desde o
inicio, o situa. E eu diria que ao mesmo tempo (e isso é o caráter em suma o
menos explorado, o menos interrogado) tudo está aí, algo que se encontra situ­
ado no plano dos «escrúpulos de consciência», algo que de toda maneira não
pode ser considerado senão como uma elaboração.
Se se nos apresenta como sendo o que se passa, a maneira na qual pode
expressar-se no plano consciente o que resta inconsciente na alma do herói,
parece justo que possamos, mesmo assim, perguntar como articulá-lo no in­
consciente. Porque uma coisa é certa, é que uma elaboração sintomática como
um escrúpulo de consciência não está eertamente no inconsciente -se está
então no consciente, se está construído de alguma forma pelos meios da defesa,
seria preciso de qualquer forma interrogar o que responde no inconsciente à
estrutura consciente. É o que nós estamos em vias de tentar fazer.
Termino o pouco que resta do parágrafo de Freud. Não lhe falta muito
mais para lançar, de todas as maneiras, o que terá sido a ponte sobre o abismo
de Hamlet. Na verdade, é de fato surpreendente com efeito que Hamlet tenha
permanecido como um total enigma literário até Freud. Isto não quer dizer que
ele não é ainda, mas houve essa ponte. Isso é verdade para outras obras, Le
Misanthrope é o mesmo gênero de enigma.
«A aversão pelos atos sexuais [...] concorda com este sintoma. A repul-

“ Ibid., p.231 (G.W. p.272)

253
sa deve crescer cada vez mais no poeta até que ele a exprima completamente
em Timon d’Athènes».
Eu li esta passagem até o fim pois é importante e abre a via em duas
linhas para aqueles que na sequência tentaram ordenar em tomo do problema
do recalcamento pessoal o conjunto da obra de Shakespeare. E efetivamente o
que tentou fazer Ella Sharpe; o que foi indicado no que foi publicado após sua
morte sob a forma dos Unfinished Papers, do qual seu HamleP1, que foi
publicado primeiro no International Journal of Psycho-analysis, e que pare­
ce uma tentativa de tomar no conjunto a evolução da obra de Shakespeare
como significativa de algo -da qual creio que querendo dar um certo esquema,
Ella Sharpe fez certamente alguma coisa imprudente, em todo caso criticável
do ponto de vista metódico, o que não exclui que ela tenha encontrado efetiva­
mente alguma coisa de válido.
«O poeta não pode ter exprimido em Hamlet senão seus próprios senti­
mentos. Georg Brandes indica em seu Shakespeare (é em 1896) que este
drama foi escrito logo depois da morte do pai de Shakespeare (1601), [...] e
podemos admitir que neste momento, as impressões de infância que se referi­
am a seu pai estavam particularmente vivas. Sabe-se ademais que o filho de
Shakespeare, morto precocemente, chamava-se Hamnet»87 88.
Creio que podemos terminar aqui com a passagem que nos mostra a que
ponto Freud já, através de simples indicações, deixa adiantadas as coisas nas
quais os autores se engajaram desde então.
Gostaria de aqui engajar o problema como podemos fazê-lo a partir dos
dados que são aqueles que, desde o começo deste ano, produzi diante de vocês.
Pois creio que estes dados nos permitem reunir de uma maneira mais sintética,
mais surpreendente, os diferentes aspectos do que se passa em Hamlet, de
simplificar de algum modo essa multiplicidade de instâncias com as quais nos
encontramos, na situação presente, frequentemente confrontados; quero dizer
que dá não sei qual caráter de reduplicação aos comentários analíticos sobre
alguma observação que seja, quando nós [as] vemos retomadas simultanea­
mente, por exemplo no registro da oposição do inconsciente e da defesa, em
seguida do eu e do isso e, penso, tudo o que pode se produzir quando se acres­
centa ainda a instância do supereu -sem que jamais sejam unificados estes
diferentes pontos de vista que dão algumas vezes a esses trabalhos não sei qual

87 SHARPE Ella, «L’impatienced'Hamlet»(1929), trad.fr. In Hamlet et d’Ernest Jones,


Paris, 1967. Gallimard.
88 FREUD S., ibid, p.231 (G.W.p.272)

254
indefinição, qual sobrecarga que não parece feita para ser algo que deva ser
utilizável para nós na nossa experiência.
O que tentamos aqui discernir, são guias que nos permitindo situar estes
diferentes órgãos, estas diferentes etapas dos aparelhos mentais que nos deu
Freud, nos permitem ressituá-los de uma maneira que levem em conta o fato de
que eles não se superpõem semanticamente senão de um modo parcial. Não é
adicionando umas e outras, fazendo uma espécie de reunião e de conjunto, que
se pode fazer-lhes funcionar normalmente. E, se vocês querem, reportando-
lhes sobre um plano que tentamos produzir de mais fundamental, de maneira
que saibamos o que fazemos com cada uma dessas ordens de referências
quando as fazemos entrar em jogo.
Comecemos a soletrar este grande drama de Hamlet. Por evocador que
tenha sido o texto de Freud, é preciso que eu lembre do que se trata. Trata-se de
uma peça que ocorre pouco depois da morte de um rei que foi, nos diz seu filho
Hamlet, um rei muito admirável, o ideal tanto de rei como de pai, e que é morto
misteriosamente. A versão que foi dada de sua morte é que ele foi picado por
uma serpente em um pomar -este orchard que é aqui interpretado pelos ana­
listas. Em seguida, muito rapidamente, alguns meses após sua morte, a mãe de
Hamlet desposou aquele que é seu cunhado, Cláudio; este Cláudio objeto de
todas as execrações do herói central, de Hamlet, é aquele sobre quem, em
suma, farei colocar não somente os motivos de rivalidade que pode ter Hamlet
a seu respeito, Hamlet em suma afastado do trono por este tio, mas ainda por
tudo o que ele entrevê, tudo o que ele suspeita do caráter escandaloso desta
substituição. E ainda mais, o pai que aparece então como ghost, ’’fantasma”,
para lhe dizer em quais condições de traição dramática se operou o que, o
fantasma lhe diz, foi bem um atentado. Ou seja -aí está o texto e ele não deixou
de despertar a curiosidade dos analistas- que se verteu em seu ouvido durante
seu repouso, um veneno chamado misteriosamente hebenon. Hebenon que é
uma espécie de palavra formada, foijada, não sei se se encontra em outro
texto. Tentou-se dar-lhe equivalentes, uma palavra que é próxima e que desig­
na, da maneira pela qual ela é traduzida geralmente, o meimendro (la
jusquiame). E certo que este atentado pelo ouvido não podería satisfazer a um
toxicólogo, o que dá aliás matéria para muitas interpretações ao analista.
Vemos logo algo que, para nós, se apresenta como surpreendente, quero
dizer a partir dos critérios, das articulações que realçamos. Sirvamo-nos dessas
chaves, tão particulares, tal como elas possam lhes aparecer no seu surgimento.
Isso foi a esse propósito muito particular, muito determinado, mas isso não
exclui, e está aí uma das fases mais claras da experiência analítica, que esse

255
particular tem o valor mais universal.
Está muito claro que o que colocamos em evidência escrevendo «ele
não sabia que ele estava morto» é alguma coisa seguramente fundamental. Na
relação ao Outro, A enquanto tal, a ignorância onde é tido esse Outro em uma
situação qualquer é algo de absolutamente original. Vocês o sabem porque
vocês o aprendem, que é uma das revoluções da alma infantil, o momento em
que a criança -depois de ter acreditado que todos seus pensamentos (“todos os
seus pensamentos”, é algo que deve sempre nos incitar a uma grande reserva,
quero dizer que os pensamentos, é nós que os chamamos assim; no que se
refere ao que é vivido pelo sujeito, os pensamentos é “tudo o que é”), “tudo o
que é” é conhecido por seus pais, seus mínimos movimentos interiores são
conhecidos- se apercebe que o Outro pode não saber. E indispensável ter em
conta essa correlação do “não saber” no Outro, com justamente a constituição
do inconsciente: um é de alguma forma o avesso do outro e, talvez, é seu
fundamento. Pois com efeito essa formulação não é suficiente para constitui-
los.
Mas enfim, há alguma coisa, que é muito clara e que nos serve de guia
no drama de Hamlet, nós tentaremos dar corpo a essa noção histórica, sempre
um pouco superficial na atmosfera, no estilo do tempo, que se trata de não sei
qual fabulação moderna (em relação à estatura dos antigos, estes seriam po­
bres degenerados). Estamos no estilo do século XIX, e não é por nada que
Georg Brandes é citado aí, e não saberemos nunca se Freud nesta época, ainda
que seja provável, conhecia Nietzsche. Mas isso, esta referência aos moder­
nos, pode não nos ser suficiente. Porque os modernos seriam mais neuróticos
que os antigos? É em todo caso uma petição de princípio. O que tentamos ver,
é algo que vá mais longe que essa petição de princípio ou essa explicação por
explicação: “vai mal, porque vai mal!”
O que temos diante de nós, é uma obra da qual vamos tentar começar a
separar as fibras, as primeiras fibras. Primeira fibra, o pai aqui sabe muito bem
que está morto, morto segundo o voto daquele que queria tomar seu lugar, ou
seja Cláudio, que é seu irmão. O crime é escondido seguramente para o centro
da cena, para o mundo da cena. Está aí um ponto seguramente essencial, sem
o qual bem entendido o drama de Hamlet não teria lugar para se situar e existir.
E é isso que este artigo de Jones, acessível, The death of Hamlet’s father™, é
posto em relevo, ou seja a diferença essencial que Shakespeare introduziu com

89 JONES E„ “The death of Hamlet’s father”, I.J.P., vol.XXIX, trad.fr.in, Hamlet et Oedipe,
op.cit.

256
relação à saga primitiva em que o massacre daquele que, na saga, tem um
nome diferente mas que é o rei, tem lugar diante de todos em nome de um
pretexto que visa com efeito suas relações com sua esposa. Esse rei é massa­
crado também por seu irmão, mas todo o mundo o sabe. Ai, em Hamlet, a coisa
é escondida mas, é’o ponto importante, o pai, ele, a conhece, e é ele quem vem
dizer: «There needs no ghost, my lord to tell us this». Freud o cita várias
vezes porque isso faz provérbio, «Não há necessidade de fantasma meu bom
senhor, não há necessidade de fantasma para nos dizer isto»’0 e com efeito
trata-se do tema edipiano, nós o sabemos, já muito. Mas é claro que na constru­
ção do tema de Hamlet, ainda não nos é dado saber. E há algo de significativo
no fato de que na construção da fábula, seja o pai quem venha dizê-lo, que o
pai, ele, o saiba.
Creio que está ai alguma coisa certamente essencial. E é uma primeira
diferença, na fibra, com a situação, a construção, a fabulação fundamental,
primeira, do drama de Édipo, pois Édipo, ele, não sabe. Quando ele sabe tudo, o
drama se desencadeia até sua auto-punição, quer dizer a liquidação por ele
mesmo de uma situação. Mas o crime edipiano é cometido por Édipo na in­
consciência. Aqui o crime edipiano é sabido, e ele é sabido por quem? Pelo
outro, por aquele que é a vítima e que vem surgir para trazê-lo ao conhecimento
do sujeito.
Em suma, vocês vêem em que caminho avançamos, em um método se
posso dizer de comparação, de correlação entre essas diferentes fibras da estru­
tura, que é um método clássico, aquele que consiste em um todo articulado -e
em nenhuma parte há mais articulação que neste que é do domínio do significante.
A noção mesma de articulação, eu o sublinhõ sem cessar, lhe é em suma
consubstanciai. Finalmente, não se fala de articulação no mundo senão porque
o significante dá a este termo um sentido. De outro modo, há apenas continuo
ou descontínuo, mas não há articulação.
Tentamos ver, discernir por um tipo de comparação das fibras homólogas
em uma e outra fases, do Édipo e de Hamlet na medida em que Freud as apro­
ximou, o que vai nos permitir conceber a coerência das coisas. Ou seja como,
em que medida, por que, é concebível que, na medida mesmo em que um dos
acordes se encontra sob um signo oposto aquele onde está no outro dos dois
dramas, se produz uma modificação estritamente correlativa. E esta correla-

90 Horatio: Il n 'estpas besoin, seigneur, qu 'un mart revienne du tombeau pour nous apprendre
cette vérité.» (I.,5,124) (A tradução citada nas notas é a de Letoumeur.)

257
ção é aí o que deve nos dar a junta
do tipo de causalidade do qual se tra­
ta nestes dramas. E partir da idéia
mesma de que são essas modifica­
ções correlativas que são para nós
as mais instrutivas, que nos permi­
tem reunir as emergências do
significante de uma maneira que seja
para nós mais ou menos utilizável.
Deve haver uma relação apreensivel
e finalmente notável de uma manei­
ra quase algébrica entre essas pri­
meiras modificações do signo e o
que se passa.
Se vocês querem, sobre essa
linha do alto, do «ele não o sabia»,
aí é “ele sabia que estava morto”.
Ele estava morto segundo o voto
mortífero que o pôs na tumba, o de
seu irmão. Vamos ver quais são as
relações com o herói do drama.
Mas antes de nos lançarmos de modo sempre um pouco precipitado na
linha de superposição das identificações que está na tradição: há conceitos, e
os mais cômodos são os menos elaborados, e sabe Deus o que não fazemos
com identificações! E Cláudio no fim das contas, o que ele fez, é uma forma de
Hamlet, é o desejo de Hamlet! É muito apressado dizer isto pois para situar a
posição de Hamlet frente a este desejo, nos encontramos nessa posição de
dever fazer intervir aqui de repente o escrúpulo de consciência. Ou seja algo
que introduz nas relações de Hamlet a este Cláudio uma posição dupla, profun­
damente ambivalente, que é aquela da relação a um rival, mas da qual se sente
bem que esta rivalidade é singular, em segundo grau: este que, em realidade, é
o que fez o que ele não teria ousado fazer. E nestas condições, ele se encontra
envolvido por não sei que misteriosa proteção que trata-se de definir.
Em nome de escrúpulos de consciência, dizemos? Em relação ao que se
impõe a Hamlet, e ao que se impõe tanto mais que a partir do encontro primitivo
com o ghost, isto é, literalmente o mandato de vingá-lo, o fantasma, Hamlet
para agir contra o matador de seu pai está armado de todos os sentimentos: ele
foi despossuído, sentimento de usurpação, sentimento de rivalidade, sentimento

258
<Jc vingança, e mais ainda a urdem expressa de sen pai, adinirudo acima de
tudo. Seguramente, em Hamlet tudo está de acordo para que aja, e cie não age!
É evidentemente aqui que começa o problema e que a via de progressão
deve se armar com a maior simplicidade. Quero dizer que sempre o que nos
perde, o que nos engana, é substituir, ao franqueamento da questão, soluções
pré-estabelecidas. Freud nos diz, trata-se aí da representação consciente de al­
guma coisa que deve se articular no inconsciente. O que tentamos articular,
situar em algum lugar e como tal na inconsciência, é o que quer-dizer um dese­
jo. Em todo caso, digamos com Freud que há alguma coisa que não vai a partir
do momento em que as coisas são engajadas de uma tal maneira. Há alguma
coisa que não vai no desejo de Hamlet.
É aqui que vamos escolher o caminho. Não é fácil visto que não estamos
neste momento muito mais longe do ponto em que sempre estivemos. Aqui é
preciso tomar Hamlet, sua conduta na tragédia em seu conjunto. E já que fala­
mos do desejo de Hamlet, é preciso se aperceber disso que não escapou aos
analistas, naturalmente, mas que não é talvez do mesmo registro, da mesma
ordem. Trata-se de situar o que é em Hamlet como de um,[...] que para nós é o
eixo, a alma, o centro, a pedra de toque do desejo. Não é exatamente isso, ou
seja as relações de Hamlet ao que pode ser o objeto consciente de seu desejo,
A este respeito nada nos é, pelo autor, recusado.
Temos na peça, como o barômetro da posição de Hamlet em relação ao
desejo, nós o temos da maneira a mais evidente e a mais clara sob a forma da
personagem de Ofélia. Ofélia é muito evidentemente uma das criações mais
fascinantes que já foram propostas à imaginação humana. Algo que podemos
chamar o drama do objeto feminino, o dramardo desejo do mundo que aparece
na orla de uma civilização sob a forma de Helena, é notável vê-lo em um ponto,
que é talvez também um ponto ápice, encarnado no drama e no sofrimento de
Ofélia. Vocês sabem que ele foi retomado sob muitas formas pela criação
estética, artística, seja pelos poetas, seja pelos pintores, ao menos na época
pré-rafaelina, até.nos dar quadros minunciosos em que os próprios termos da
descrição que dá Shakespeare dessa Ofélia flutuando em seu vestido no fio de
água onde ela se deixou, em sua loucura, escorregar-pois o suicídio de Ofélia
é ambíguo.
O que se passa na peça é que, logo, correlativamente, em suma, ao
drama (é Freud quem nos indica) vemos este horror da feminilidade como tal.
Os termos são articulados no sentido o mais próprio do termo; isto é, o que
descobre, o que destaca, o que ele põe em jogo diante dos próprios olhos de
Ofélia como sendo todas as possibilidades de degradação, de variação, de

259
corrupção, que estão ligadas à evolução da própria vida da mulher, na medida
em que ela se deixa arrebatar por todos os atos que pouco a pouco fazem dela
uma mãe. É em nome disto que Hamlet rejeita Ofélia da maneira que parece
na peça a mais sarcástica e a mais cruel.
Temos aqui uma primeira correlação de algo que marca bem a evolução
e..., uma evolução e uma correlação como essenciais de algo que coloca o
caso de Hamlet sobre sua posição a respeito do desejo. Observem que nós
estamos aí logo confrontados, de passagem, com o psicanalista selvagem,
Polônio, o pai de Ofélia que, logo põe o dedo: a melancolia de Hamlet? E por­
que ele escreveu cartas de amor para sua filha, e que ele, Polônio, não faltando
em cumprir seu dever de pai, fez sua filha responder, rudemente. Dito de outra
forma, nosso Hamlet está doente de amor! O personagem caricatural está aí
para nos representar o acompanhamento irônico do que se oferece sempre da
inclinação fácil à interpretação extema dos acontecimentos.
As coisas se estruturam um pouco diferentemente, como ninguém duvi­
da. Trata-se bem entendido de algo que se refere às relações de Hamlet com
que? Com seu ato, essencialmente. Seguramente, a mudança profunda de sua
posição sexual é certamente capital, mas deve ser articulada, se organizar bas­
tante de outra maneira. Trata-se de um ato a realizar, e ele depende dele em
sua posição de conjunto. E é precisamente de algo que se manifesta ao longo
de toda a peça, que foi a peça desta posição fundamental em relação ao ato,
que em inglês tem uma palavra de uso muito mais corrente que em francês (é
o que se chama, em francês, adiamento, retardamento) e que se expressa em
inglês por procrastinate, "adiar para amanhã”.
É com efeito disto que se trata. Nosso Hamlet, ao longo de toda a peça,
procrastina. Trata-se de saber o que querem dizer os diversos adiamentos que
ele vai fazer do ato cada vez que se lhe apresenta a ocasião, e o que vai. ser
determinante no fim, no fato de que esse ato a cometer, ele vai franqueá-lo.
Creio que aqui em todo caso, há algo a colocar em relevo, é justamente a ques­
tão que se coloca a propósito do que significa o ato que se propõe a ele.
O ato que se propõe a ele não tem nada a ver no fim das contas -e está
aí o que é suficientemente indicado no que eu lhes fiz observar- com o ato
edipiano em revolta contra o pai. O conflito com o pai, no sentido em que ele é,
no psiquismo, criador, não é o ato de Édipo, na medida em que o ato de Édipo
sustenta a vida de Édipo e que ele o toma este herói que ele é antes de sua
queda, na medida em que ele nada sabe, que faz o Édipo concluir no dramático.
Hamlet, ele, sabe que é culpado de ser, para ele é insuportável ser. Antes de
todo o início do drama de Hamlet, Hamlet conhece o crime de existir e é a

260
partir desse começo que ele precisa escolher e para ele o problema de existir a
partir desse começo se coloca nos termos que são os seus: ou seja o To be, or
not to be, que é algo que o engaja irremediavelmente no ser como ele o articula
tão bem. t
É justamente porque para ele o drama edipiano está aberto no começo e
não no fim, que a escolha se coloca entre “ser” e “não ser”. E é justamente
porque há este “ou bem, ou bem” que se evidencia que ele está preso de muitas
maneiras na cadeia do significante, em algo que faz com que, desta escolha, ele
é de todas as maneiras a vítima.
Eu darei a tradução do Letourneur que me parece a melhor: «Ser ou não
ser! Eis a questão. Se é mais nobre à alma sofrer os traços golpeantes da
injusta fortuna ou se rebelando contra essa multidão de males..„Or to take
arms against a sea of troubles, And by opposing end them. To die, to sleep
- No more9'; Morrer, -dormir- nada mais, e nesse sono dizer: colocamos um
termo às angústias do coração e a essa loucura de chagas e de dores, and by
a sleep to say we end The heart-ache, and the thousand natural shocks
That flesh is heir to [...]92, e essas milhares de coisas naturais das quais a
came é a herdeira. (Penso que essas palavras não estão feitas para nos ser
indiferentes). Morrer - dormir - Dormir? Sonhar talvez; sim, eis o grande obs­
táculo. Pois de saber quais sonhos podem acontecer nesse sono da morte,
depois que somos despojados desse envelope mortal...(This mortal coil, não é
exatamente “o envelope”, é esta espécie de torção de alguma coisa enrolada
que há em tomo de nós) é o que vai nos forçar a fazer uma pausa. Eis a idéia
que dá uma tão longa vida à calamidade; pois quem suportaria as injustiças do
tempo, as injustiças de opressores, os ultrajes da soberba menosprezada [...] a
insolência das pessoas em função [...] Que o merecimento paciente deve so­
frer do homem sem alma, quando com uma punção, ele poderia ele próprio
procurar o repouso? [...]»
Diante do que encontra-se Hamlet, nesse «ser, ou não ser?», é encontrar
o lugar tomado pelo que lhe disse seu pai. E o que seu pai lhe disse enquanto
fantasma, é. que ele foi surpreendido pela morte «na flor de seus pecados».
Trata-se de encontrar o lugar tomado pelo pecado do outro, o pecado não pago.

51 Hamlet: «[...] Ou, se révoltant contre cette multitude de maux, de s'opposer au torrent et de les
finir?» (111,1,60)
n Hamlet:«[...] Et par ce sommeil dire: nous mettons une terme aux angoisses du coeur; et à cette
Joule de plaies et de douleurs, l 'héritage nature! de cette masse de chair... ce pont ou tout est
consommé devrait être désiré avecferveur.» (Ill, 1,62)

261
Aquele que sabe é ao contrário, contrariamente a Édipo, alguém que não pagou
o crime de existir. As consequências, aliás, para a geração seguinte não são
leves. Os dois filhos de Édipo apenas pensam em massacrar-se entre eles com
todo o vigore convicção desejáveis, enquanto para Hamlet é diferente. Hamlet
não pode nem pagar por seu lugar, nem deixar a dívida aberta. No fim das
contas, ele deve fazê-la pagar, mas nas condições em que se encontra, o golpe
passa através dele mesmo. E é -da arma mesma (seguida de uma obscura tra­
ma sobre a qual haveremos de nos estendermos largamente) com a qual Hamlet
se encontra ferido- unicamente depois que ele, Hamlet, seja tocado pela morte,
que pode atingir o criminoso que está ali ao seu alcance, ou seja, Cláudio.
É essa comunhão da descoberta -o fato de que o pai e o filho, um e outro
sabem- que é aqui a mola que faz toda a dificuldade do problema da assunção
por Hamlet de seu ato. E as vias pelas quais ele poderá reencontrá-lo, que
tomarão possível este ato em si mesmo impossível, na medida mesmo em que
o outro sabe, são as vias da esquiva que lhe tomam possível cumprir o que deve
ser cumprido, são estas vias que devem fazer o objeto de nosso interesse pois
são elas que vão nos instruir.
Visto que é esse o verdadeiro problema que eu tratava hoje de introdu­
zir, é preciso que lhes coloque algo ao término da coisa, quero dizer isso pelo
que finalmente e por quais vias, Hamlet chega a cumprir seu ato. Não esqueça­
mos que se ele chega, se Cláudio no fim, cai atingido, é certamente ao máximo
custo. Isso é nada menos que depois de haver atravessado o corpo de alguém
que, certamente, vocês o vêem, ter submergido no abismo. Ou seja o amigo, o
companheiro Laertes, depois que sua mãe, em consequência de um engano, se
envenenou com o copo mesmo que devia servir-lhe no atentado, de segurança,
para o caso em que a ponta de um florete envenenado não houvesse tocado
Hamlet, é após um certo número de outras vítimas, e isso não é antes de haver
sido, ele mesmo, tocado pela morte que pode desferir o golpe. Há aí portanto
algo que, para nós, deve constituir problema.
Se efetivamente algo se cumpre, se há in extremis algum tipo de retifica­
ção do desejo que tomou o ato possível, como foi cumprido? É justamente aí
que reside a chave, o que faz com que esta peça genial não tenha jamais sido
substituída por outra mais bem feita. Pois em suma o que são estes grandes
temas míticos sobre os quais se exercitam nq curso das eras as criações dos
poetas, se isso não é uma espécie de longa aproximação que faz com que o
mito, ao cernir mais de perto suas possibilidades, acaba por entrar propriamen­
te falando na subjetividade e na psicologia. Sustento, e sustentarei sem
ambigidade -e assim fazendo penso estar na linha de Freud- que as criações

262
poéticas engendram mais do que refletem as criações psicológicas.
O plano difuso, de qualquer maneira, que vagamente paira nessa relação
primordial de rivalidade do filho e do pai, é algo que aqui lhe dá todo seu relevo
e que faz o verdadeiro coração da peça de Hamlet. E na medida em que algo
vem equivaler ao que faltou -a isso que faltou em razão da própria situação
original, inicial, distinta em relação ao Édipo- isto é a castração, em razão
mesmo do fato de que no interior da peça as coisas se apresentam como uma
espécie de lento encaminhamento em zig-zag, este lento parto e pelas vias
desviadas da castração necessária, nessa medida mesmo e nessa medida em
que isso é realizado no último termo, que Hamlet faz jorrar a ação final onde ele
sucumbe e onde as coisas são levadas a não poder [evitar que] outros, os
Fortinbrás, sempre prontos a recolher a herança, venham a lhe suceder.

263
Lição 14
11 de março de 1959

Ei-nos então aqui desde a última vez em Hamlet. Hamlet não vem aqui
por acaso, ainda que eu lhes tenha dito que ele foi introduzido a este lugar pela
fórmula do “Ser ou não ser” que se havia imposto a mim a propósito do sonho
de Ella Sharpe.
Fui levado a reler uma parte do que foi escrito de Hamlet no plano ana­
lítico, e também do que foi escrito antes. Os autores, ao menos os melhores,
não são, bem entendido, sem fazer emprego do que foi escrito bem antes, e
devo dizer que fomos levados para bem longe, mesmo que de vez em quando
ao ponto de perder-me um pouco, não sem prazer. O problema é de reunir isto
do qual se trata para o que é de nosso objetivo preciso, nosso objetivo preciso
sendo o de dar, ou de devolver seu sentido à função do desejo na análise e
interpretação analítica. E claro que para isso não devemos ter uma grande
pena, porque espero lhes fazer sentir e lhes dar aqui em seguida meu propósito,
creio que o que distingue La tragédie d'Hamlet, prince de Danemark, é
essencialmente ser a tragédia do desejo.
Hamlet que, sem que se esteja absolutamente seguro, mas enfim, segun­
do comprovações verdadeiramente as mais rigorosas, deveria ter sido repre­
sentada em Londres pela primeira vez durante a temporada de inverno de 1601.
Hamlet na primeira edição in-quarto (essa famosa edição que foi quase o que
se chama uma edição pirata na época, ou seja, que não foi feita sob o controle
do autor mas emprestada ao que se chamava os prompt-books, os livretos de
uso do ponto do teatro, essa edição, é até engraçado saber desses pequenos
traços da história literária) ficou desconhecida até 1823, até quando se colocou

265
a mão sobre um desses exemplares sórdidos, desses que foram muito manipu­
lados, levados provavelmente às representações. E a edição in-folio, a grande
edição de Shakespeare, só começou a aparecer após sua morte em 1623, pre­
cedendo à grande edição em que se encontra a divisão em atos. O que explica
que a divisão em atos seja muito menos decisiva e clara em Shakespeare que
alhures. De fato, não se acredita que Shakespeare tenha pensado em dividir
suas peças em cinco atos. Isso tem sua importância porque vamos ver como se
repartiu essa peça.
O inverno de 1601, é dois anos antes da morte da rainha Elisabeth. E
com efeito pode-se considerar aproximativamente que Hamlet, que tem uma
importância capital na vida de Shakespeare, redobra se pode-se dizer, o drama
dessa junção entre duas épocas, duas vertentes da vida do poeta, pois o tom
muda completamente quando aparece no trono Jacques I; e já algo se anuncia,
como diz um autor, que quebra o charme cristalino do reino de Elisabeth, da
rainha virgem, a que conseguira os longos anos milagrosos de paz ao sair do
que constituía na história da Inglaterra, como em muitos países, um período de
caos no qual ela deveria rapidamente entrar, com todo o drama da revolução
puritana.
Logo,1601 anuncia já a morte da rainha que não se podia seguramente
prever, pela execução de seu amante, o conde de Essex, que se situa no mesmo
ano que a peça de Hamlet. Esses reparos não são, absolutamente vãos de evo­
car, tanto mais porque não somos os únicos a ter tentado resituar Hamlet em
seu contexto. Isso que lhes digo aqui, não vi em nenhum outro autor analítico,
sublinhado; são contudo fatos primeiros que têm certamente sua importância.
Em verdade, o que foi escrito pelos autores analíticos não pode ser dito
ter sido esclarecedor, e não é de hoje que farei a crítica do rumo que tomou
uma espécie de interpretação analítica, na linha, de Hamlet. Quero dizer (“ten­
to encontrar tal ou tal elemento”, sem verdadeiramente dizer que se possa dizer
outra coisa) que se distancia cada vez mais, à medida que os autores insistem,
da compreensão do conjunto, da coerência do texto.
Devo dizer ainda de nossa Ella Sharpe, a quem tenho tomado em alta
conta, que nisso, em seu artigo, é verdade, unfinished^ que se encontrou após
sua morte, ela me decepcionou imensamente. Tomarei em conta mesmo assim
porque é significativo. É tanto na linha que somos levados a explicar, com res­
peito à tendência em que se vê tomada pela teoria analítica, que isso vale a
pena ser ressaltado. Mas não vamos começar por aí.

« SHARPE FREEMAN E., op.cit. (87)

266
Vamos começar pelo artigo de Jones94 -aparecido em 1910 no American
Journal of Psychology- que é uma data e um monumento, e que é essencial
ter lido. Não é fáci 1 atualmente consegui-lo. E na pequena reedição que ele fez,
Jones, eu creio, acrescentou outra coisa, alguns complementos a sua teoria de
Hamlet. Nesse artigo: The Oedipus Complex as an explanation of Hamlet's
mystery, “O complexo de Édipo enquanto explicação do mistério de Hamlet”,
ele acrescenta como subtítulo: A study in Motive, Um estudo da motivação.
Em 1910 Jones aborda o problema magistralmente indicado por Freud,
como lhes mostrei na última vez, nessa meia página sobre a qual se pode dizer
que no fim das contas tudo já está, posto que os próprios pontos de horizonte
estão marcados, isto é, as relações de Shakespeare com o sentido do problema
que se coloca para ele: a significação do objeto feminino. Creio que estáaí algo
de certamente central. E se Freud nos aponta no horizonte Timon d'Athènes, é
uma via na qual seguramente Ella Sharpe tentou se engajar; ela fez de toda a
obra de Shakespeare uma espécie de vasta oscilação ciclotímica, aí mostrando
as peças ascendentes, quer dizer, que se poderia acreditar otimistas, as peças
onde a agressão vai rumar para fora, e aquelas em que a agressão retoma rumo
ao herói ou ao poeta, aquelas da fase descendente. Eis como poderiamos clas­
sificar as peças de Shakespeare, até mesmo num momento datá-las.
Não creio que esteja aí algo de inteiramente válido, e vamos nos deter
por um momento no ponto onde estamos, quer dizer, a princípio em Hamlet,
para tentar-eu darei talvez algumas indicações sobre o que segue ou precede,
sobre La douzième nuit e Troylus and Cressida, pois creio que é quase im­
possível não levar em conta, isto esclarece grandemente os problemas que
vamos de início introduzir sobre o único textode Hamlet.
Com esse grande estilo de documentação que caracteriza seus escritos -
há em Jones uma solidez, uma certa amplitude de estilo na documentação que
distingue altamente suas contribuições- Jones faz uma espécie de resumo do
que chama, ajusto título, o mistério de Hamlet.
De duas coisas uma, ou vocês se dão conta da amplitude que tomou a
questão, ou voçês não se dão conta. Para esses que não se dão conta, eu não
vou repetir aqui o que há no artigo de Jones, de uma maneira ou de outra,
informem-se. É preciso que eu diga que a massa de escritos sobre Hamlet é
algo sem equivalente, a abundância da literatura é algo de inacreditável. Mas o
que é mais inacreditável ainda, é a extraordinária diversidade de interpretações

M JONES E., «The Oedipus Complex as an Explanation of Hamlet's Mystery: A Study in


Motive. American Journal of Psychology», vol.XXI, part 3, pp. 72-113.

267
que foram dadas. Quero dizer que as interpretações mais contraditórias se
sucederam, desfilaram através da história, instaurando o problema do proble­
ma, isto é porque todo mundo se encarniça em compreender algo disso?
E elas dão os resultados os mais extravagantes, os mais incoerentes, os
mais diversos. Não se pode dizer que isso não vá excessivamente longe, nós
teremos que voltar ao interior mesmo do que vou rapidamente chamar verten­
tes dessa explicação que resume Jones em seu artigo. Quase tudo foi dito. E
para ir ao extremo, há um Popular Science Monthly, que deve ser uma espé­
cie de publicação de divulgação mais ou menos médica, que fez algo em 1880
que se chama The impediment of adipose, "Os aborrecimentos da adipose
Ao fim de Hamlet se nos disse que Hamlet está gordo e arquejante, e nessa
revista há todo um desenvolvimento sobre a adipose de Hamlet! Há um certo
Vining95 que, em 1881, descobriu que Hamlet era uma mulher disfarçada de
homem, cujo objetivo através de toda a peça era a sedução de Horácio, e que
era para alcançar o coração de Horácio que Hamlet tramava toda sua história.
E mesmo uma história muito bonita! Ao mesmo tempo, não se pode dizer que
isso seja absolutamente sem eco para nós, é certo que as relações de Hamlet
com as pessoas de seu próprio sexo estão estritamente tecidas no problema da
peça.
Voltemos a coisas sérias e, com Jones, recordemos que esses esforços da
crítica são agrupados em tomo de duas vertentes. Quando há duas vertentes na
lógica, há sempre uma terceira vertente, contrariamente ao que se crê, o tercei­
ro não está tão excluído assim. E é evidentemente o terceiro que, no caso, é
interessante.
As duas vertentes não tiveram poucos defensores. Na primeira vertente,
há aqueles que têm, em suma, interrogado a psicologia de Hamlet. É evidente­
mente, a eles que pertence a primazia, que deve ser dada o mais alto de nossa
estima. Nós encontramos aí Goethe, e Coleridge que nas suas Lectures on
Shakespeare tomou uma posição muito característica, da qual acho que Jones
teria podido, talvez, fazer um uso mais amplo. Porque Jones, coisa curiosa,
lançou-se sobretudo em um extraordinariamente abundante comentário do que
foi feito em alemão, que foi proliferante, até mesmo prolixo. As posições de
Goethe e de Coleridge não são idênticas. Elas têm entretanto um grande paren­
tesco, que consiste em pôr o acento na forma, espiritual do personagem de
Hamlet.

” VINING, The mystery of Hamlet, 1881.

268
A grosso modo, digamos que para Goethe, a ação é paralisada pelo pen­
samento. Como se sabe, isso tem longa linhagem. Recorde-se, e não em vão
seguramente, que Hamlet tinha vivido um longo tempo em Wittenberg. E esse
termo remetendo o intelectual e seus problemas a uma prática um pouco abusiva
de Wittenbergrepresentado, não sem razão, como um dos centros de um certo
estilo de formação da juventude estudantil alemã, é uma coisa que teve grande
posteridade. Hamlet é em suma o homem que vê todos os elementos, todas as
complexidades, os motivos do jogo da vida, e que é em suma suspendido, para­
lisado na sua ação por esse conhecimento. E o problema propriamente falando
goethiano, e que não deixou de ressoar profundamente, sobretudo se vocês
acrescentarem aí o charme e a sedução do estilo de Goethe e de sua pessoa.
Quanto a Coleridge, em uma longa passagem que não tenho tempo de
lhes ler, ele abunda no mesmo sentido, com um caráter muito menos sociológi­
co, muito mais psicológico. Há algo no meu entender que domina aí, em toda a
passagem de Coleridge sobre a questão, e que me agrada reter: «É preciso que
eu lhes confesse que sinto em mim algum gosto pela mesma coisa», é o que
designa nele o caráter psicastênico, a impossibilidade de se engajar em uma
via, e uma vez aí ter entrado, engajado, de aí permanecer até o fim.
A intervenção da hesitação, dos motivos múltiplos, é um fragmento bri­
lhante de psicologia que dá para nós o essencial, a mola, o suco de sua essên­
cia, nessa nota dita de passagem por Coleridge: depois de tudo tenho algum
gosto por isso, quer dizer, eu me encontro aí, ele confessa de passagem, e ele
não é o único; se encontra uma nota análoga em alguém que é quase contempo­
râneo de Coleridge e que escreveu coisas notáveis sobre Shakespeare em seus
Essays on Shakespeare, é Hazlitt, do qual ■••Jones, injustamente, não faz caso,
pois é alguém que escreveu as coisas mais notáveis sobre o sujeito na época.
Ele (Coleridge) vai mais longe ainda, e diz que no fim das contas, falar
dessa tragédia..., ela nos foi tão repetida, essa tragédia, que podemos apenas
saber como dela fazer a crítica, não mais do que saberiamos descrever nosso
próprio rosto. Há uma outra nota que vai no mesmo sentido, e aí são linhas as
quais tomarei em conta.
Passo bastante rápido à outra vertente, aquela de uma dificuldade exteri­
or que foi instaurada por um grupo de críticos alemães dos qual os dois princi­
pais são Klein e Werder que escreviam no final do século XIX em Berlim. E
mais ou menos assim que Jones os agrupa, e ele tem razão. Trata-se de colocar
em relevo as causas exteriores da dificuldade da tarefa que Hamlet se deu, e as
formas que a tarefa de Hamlet teria. Ela seria de fazer reconhecer a seu povo
a culpabilidade de Cláudio, daquele que, após ter matado seu pai e desposado

269
sua mãe, reina na Dinamarca. Há aqui algo que não suporta a crítica, pois as
dificuldades que tinha Hamlet para cumprir sua tarefa -quer dizer, de fazer
reconhecer a culpabilidade de um rei, ou bem de duas coisas uma, para intervir
já da maneira da qual se trata quando intervém, pelo assassinato, e em seguida
de estar na possibilidade de justificar esse assassinato- são evidentemente muito
facilmente levantadas pela simples leitura do texto: jamais Hamlet se coloca
um problema semelhante!
O princípio de sua ação, ou seja que o que ele deve vingar-sobre aquele
que é o assassino de seu pai e que, ao mesmo tempo, tomou seu trono e seu
lugar junto à mulher que ele amava acima de tudo- deve ser purgado pela ação
a mais violenta e pelo assassinato, não é não somente jamais colocado em
causa em Hamlet, mas creio que lhes lerei mais adiante passagens que lhes
mostram que se trata de frouxo, de covarde, ele transpira na cena do desespe­
ro, por não poder se decidir a essa ação. Mas o princípio da coisa não deixa
nenhuma espécie de dúvida, ele não se coloca o menor problema concernindo
à validade desse ato, dessa tarefa.
E mais adiante há um chamado Loening, o qual Jones tem em muita
conta, que fez uma observação no mesmo período, discutindo as teorias de
Klein e Werder de maneira decisiva. Assinalo de passagem que é a mais calo­
rosa recomendação que Jones traz sobre essas observações. Com efeito, ele
cita algumas que parecem fortemente penetrantes.
Mas tudo isso não tem uma importância extraordinária visto que a ques­
tão é verdadeiramente superada a partir do momento em que nós tomamos a
terceira posição, aquela pela qual Jones introduz a posição analítica. Essas de­
moras de exposição são necessárias, porque elas devem ser seguidas para que
tenhamos o fundo sobre o qual se coloca o problema de Hamlet.
A terceira posição é essa: se bem que o sujeito não duvide por um instan­
te de ter de cumpri-la, por alguma razão desconhecida dele próprio essa tarefa
lhe repugna. Dito de outra maneira, é na própria tarefa e não no sujeito, nem no
que se passa no exterior. Inútil dizer que para o que se passa no exterior, pode
haver versões muito mais sutis que aquela que comecei a desenterrar a vocês.
Há aí então uma posição essencialmente conflituosa em relação à pró­
pria tarefa. E é dessa maneira, em suma muito sólida e que deve seguramente
nos dar uma lição de método, que Jones introduz a teoria analítica. Ele mostra
que a noção do conflito não é de todo nova, isto é a contradição interna à tarefa
já foi trazida por um certo número de autores que viram muito bem (como
Loening, se acreditamos nas citações que Jones dá disso) que se pode apreen­
der o caráter problemático, conflituoso, da tarefa a certos signos os quais não

270
esperaram a .análise para percebcr-sc seu caráter nssinnhidoi, ou seja n ili vei
sidade, a multiplicidade, a contradição, a falsa consistência das razões que pode
dar o sujeito ao definir essa tarefa, por não cumpri-la no momento cm que ela
se apresenta a ele. A noção em suma do caráter superestrutural, racionalizado,
racionalizante dos motivos que dá o sujeito, já havia sido percebida pelos psicó­
logos bem antes da análise, e Jones sabe muito bem valorizá-lo, colocá-lo em
relevo.
Somente, trata-se de saber onde jaz o conflito, do qual os autores que
estão certamente nessa via não deixam de perceber que há algo que se apresen­
ta em primeiro plano, e um tipo de dificuldade subjacente que, sem ser propri­
amente articulada como inconsciente, é considerada como mais profunda e em
parte não dominada, não completamente elucidada nem percebida pelo sujeito.
E a discussão de Jones apresenta este caráter seguramente caracterís­
tico do que, nele, dará um dos traços do qual ele sabe fazer o melhor uso em
seus artigos que desempenharam um grande papel para valorizar frente a um
vasto público intelectual a própria noção de inconsciente. Ele articula forte­
mente que o que os autores, verdadeiros sutis, valorizaram, é a saber que o
motivo subjacente, contrariando para a ação de Hamlet, é por exemplo um
motivo de direito, a saber, ele tem o direito de fazer isso?
E Deus sabe quanto os autores alemães deixaram (sobretudo quando
isso se passava em pleno período do hegelianismo) de tomar em conta toda
sorte de registros sobre os quais Jones triunfa com ironia, mostrando que se
algo deve entrar nas atividades inconscientes, não são motivos de ordem eleva­
da, mas de um alto caráter de abstração, fazendo entrar em jogo a moral, o
Estado, o .saber absoluto, mas que deve haver aí algo de muito mais radical, de
mais concreto, e que isso do que se trata precisamente é o que Jones vai então
produzir -já que é no início daquele ano que começam a se introduzir na Amé­
rica os pontos de vista freudianos, é nesse mesmo ano que é publicado um
informe da teoria de Freud sobre os sonhos, que Freud dá seu artigo sobre as
Origenes et le développement de la psychanalyse*1, diretamente escrito em
inglês, se minha lembrança é boa, pois trata-se das famosas conferências da
Clark University.
Creio que não se pode tocar o dedo, numa análise que vai verdadeira­
mente tão longe como se pode ir nessa época, que valoriza no texto da peça, no

96 FREUD S., «Über Psychoanalyse. Fünf Vorlesungen, gehalten zur 20 jãhrigen» (1910).
Gründüngsfeier der Clark University in Worcester, Mass. G.W. X p. 44-113. Trad, fr., Paris,
1973, Payot.

ft. .4 271 ,
desenrolar do drama, para mostrar aí a significação edipiana, que valoriza o que
podemos chamar a estrutura mítica do édipo. Devo dizer que nós não estamos
tão lavados mentalmente para podermos todos confortavelmente sorrir ao ver
introduzir à propósito de Hamlet: Télefo, Anfion, Moisés, Faraó, Zoroastro,
Jesus, Herodes -todo mundo vem no pacote- e no fim das contas, o que é
essencial, dois autores que escreveram em tomo de 1900, fizeram um Hamlet
in Ira, em uma revista muito conhecida, uma referência do mito de Hamlet aos
mitos iranianos que são em tomo da lenda de Pirro, da qual um outro autor
tomou em grande conta, em uma revista desconhecida e que não se pode en­
contrar.
O importante é que na introdução por Jones (em 1910) de uma nova
crítica de Hamlet, e de uma crítica que vai consistir inteiramente em levar-nos
a essa conclusão: «Chegamos a esse paradoxo aparente em que o poeta e a
audiência estão os dois profundamente comovidos por sentimentos devidos a
um conflito da origem do qual eles não estão conscientes -eles não estão intei­
rados, eles não sabem do que se trata»97.
Penso que é essencial observar o passo franqueado a esse nível. Não
digo que seja o único passo possível, mas que o primeiro passo analítico con­
siste em transformar uma referência psicológica não em uma referência a uma
psicologia mais profunda, mas em uma referência a um arranjo mítico suposto
ter o mesmo sentido para todos os seres humanos. É preciso certamente alguma
coisa mais, porque Hamlet não é o mesmo que Pirro Saga, as histórias de Ciro
com Cambyse, nem de Perseu com seu avô Acrísio, é mesmo outra coisa.
Se falamos disso, não é somente porque houve miríades de críticas, mas
também porque é interessante ver o que isso faz de Hamlet.
Vocês não têm, no fim das contas, nenhuma espécie de idéia porque, por
uma espécie de coisa com certeza curiosa, creio poder dizer após minha pró­
pria experiência, que é irrepresentável em francês. Eu jamais vi um bom Hamlet
em francês, nem ninguém que represente bem Hamlet, nem nenhum texto que
se possa escutar.
Para aqueles que lêem o texto, é algo de dar voltas, morder o tapete,
rolar por terra, é algo de inimaginável! Não há um verso de Hamlet, nenhuma
réplica que não seja, em inglês, de uma potência de percussão, de violência de
termos que é de fato algo em que, a todo instante, se está absolutamente estupe­
fato. Acredita-se que foi escrito ontem, que não se podia escrever assim há três
séculos.

’’JONES ^..op-cit.

272
Na Inglaterra, quer dizer lá onde a peça é representada em sua língua,
uma representação de Hamlet é sempre um acontecimento. Irei mesmo mais
longe -porque depois de tudo não se pode medir a tensão psicológica do públi­
co, se não se está numa platéia- e direi o que é para os atores, o que nos ensina
duplamente; a princípio porque é seguramente muito claro que representar
Hamlet para um ator inglês é o coroamento de sua carreira, e que quando isso
não é o coroamento de sua carreira, é certamente que ele quer se retirar com
felicidade, fazendo assim sua representação de adeus, mesmo se seu papel
consiste em representar o primeiro coveiro. Há aí algo que é importante e va­
mos nos dar conta do que isso quer dizer, porque não o disse por acaso.
Há uma coisa curiosa, é que no fim das contas quando o ator inglês
chega a representar Hamlet, ele o representa bem, eles o representam muito
bem. Uma coisa ainda mais estranha é que se fala de Hamlet de tal ou tal, de
tantos Hamlet quanto há grandes atores. Evocamos então o Hamlet de Garrick,
o Hamlet de Kenns, etc., está aí também algo de extraordinariamente indicativo.
Se há portanto tantos Hamlet quanto há grandes atores, creio que é por
uma razão análoga -não é a mesma porque é outra coisa representar Hamlet e
estar interessado como espectador e como crítico. Mas o ponto de convergên­
cia de tudo isso, o que impressiona particularmente e que lhes peço para reter,
é que se pode acreditar no fim das contas que é em razão da estrutura do
problema que Hamlet, como tal, coloca a propósito do desejo; isto é, que é a
tese que avanço aqui, que Hamlet faz jogar os diferentes planos, o quadro
mesmo ao qual tento lhes introduzir aqui, no qual vem se situar o desejo.
E porque este lugar está excepcionalmente bem articulado; tão bem, eu
diría, de maneira tal que cada um vem aí encontrar seu lugar, vem aí se reco­
nhecer, que o aparato, a rede da peça de Hamlet é essa espécie de rede, de
armadilha de pássaro, em que o desejo do homem-nas coordenadas que justa­
mente Freud nos descobre, ou seja sua relação ao édipo e à castração- está aí
articulado essencialmente.
Mas isso supõe que não é simplesmente uma outra edição, uma outra
tiragem do eterno protótipo drama-conflito, da luta do herói contra o pai, con­
tra o tirano, contra o bom ou o mau pai. Aqui, introduzo coisas que vamos ver
desenvolver-se na sequência. E que as coisas são lançadas por Shakespeare a
um ponto tal que o que é importante aqui, é mostrar as características atípicas
do conflito, a maneira modificada na qual se apresenta a estrutura fundamental
da eterna saga que se encontra desde a origem das eras; por conseqüência na
função na qual, de uma certa maneira, as coordenadas desse conflito são mo­
dificadas por Shakespeare de maneira a poder fazer aparecer como, nessas

273
condições atípicas, vem jogar, de todo o seu caráter o mais essencialmente
problemático, o problema do desejo, na medida em que o homem não é simples­
mente possuído, investido, mas que, o desejo, ele tem de situá-lo, de encontrá-
lo. Tem que encontrá-lo a seu mais pesado custo e à custa de sua mais pesada
pena, a ponto de não poder encontrá-lo senão no limite, ou seja, em uma ação
que não pode para ele se acabar, se realizar, senão à condição de ser mortal.
Isso nos incita a olhar mais de perto o desenrolar da peça. Eu não gosta­
ria de lhes fazer tardar muito, mas é preciso ao menos que eu coloque os traços
salientes principais.
O ato I concerne a algo que se pode chamar a introdução do problema,
e aí, certamente, no ponto de intersecção, de acumulação, de confusão em que
gira a peça, é preciso ainda que voltemos a algo simples que é o texto. Vamos
ver que essa composição merece ser retida, que não é algo que flutua nem que
vá para a direita ou para a esquerda.
Como vocês sabem, as coisas se abrem em uma guarda, uma troca da
guarda no terraço de Elsinor, e devo dizer que é uma das mais magistrais entra­
das de todas as peças de Shakespeare, pois nem todas são magistrais assim na
entrada. É à meia-noite que se-faz a troca, uma troca em que há coisas muito
bonitas, muito surpreendentes. Assim é que aqueles que vêm para a troca per­
guntam: «Quem está aí?»98, quando deveria ser o contrário. É que com efeito,
tudo se passa anormalmente, eles estão muito angustiados por algo que espe­
ram, e essa coisa não se faz esperar em mais de quarenta versos. Então, é à
meia-noite quando a troca tem lugar, uma hora soa em um relógio quando o
espectro aparece; e a partir do momento em que o espectro aparece, entramos
em um movimento muito rápido, com muito curiosas estagnações.
Imediatamente após, a cena em que aparecem o rei e a rainha, o rei diz
que está seguramente em tempo de findar nosso luto, «Nós podemos chorar
com um olho, mas rirmos com outro»99, e em que Hamlet, que está aí, faz
aparecer seus sentimentos de revolta diante da rapidez do novo casamento de
sua mãe e pelo fato que ela está casada com alguém que, perto do que era seu
pai, é um personagem absolutamente inferior.
A todo instante nas conversas de Hamlet veremos colocar-se em relevo
a exaltação de seu pai como de um ser do qual ele dirá mais tarde que «Todos
os deuses parecem ter sobre ele impresso seus selos, para mostrar até onde a

98 Bernardo: «Qui va là?» (1,1,1)


99 Le Roi: «[...] Le sourire du bonheur sur les lèvres et les larmes dans les yeux: mêlant les fêtes de
I'hymen au deuil des funérailles, et 1’hymen de 1’amourà 1‘hymen de lamort, pesant dans une
balance égale le plaisir et la douleur.» (1,2,11.)

274
i'
t perfeição de um homem poderia ser levada»100. E sensivelmente mais tarde no
texto que essa frase será dita por Hamlet, mas desde a primeira cena, há pala­
vras análogas. E essencialmente nesse tipo de traição, e também de queda -
sentimentos que lhe inspira a conduta de sua mãe, este casamento apressado,
dois meses, disse-nos, após a morte de seu pai- que Hamlet se apresenta. E aí
o famoso diálogo com Horácio: «Economia, economia! O assado dos funerais
não terá tempo de esfriar para servir ao banquete de bodas»101. Não há neces-
l sidade de repetir esses temas célebres.
Em seguida, imediatamente, temos a introdução de dois personagens,
Ofélia e Polônio. E isso a propósito de uma espécie de pequena reprimenda que
Laertes -que é um personagem seguramente importante em nossa história de
Hamlet, do qual se quis fazer (voltaremos aí) alguém que joga um certo papel
em relação a Hamlet, no desenrolar mítico da história, e de forma acertada,
, bem entendido- endereça a Ofélia que é a jovem moça da qual Hamlet esteve,
como ele mesmo disse, enamorado, e que atualmente, no estado em que está,
ele rechaça com muitos sarcasmos. Polônio e Laertes se sucedem junto dessa
r infeliz Ofélia, para lhe fazer todos os sermões da prudência, para convidá-la a
desconfiar desse Hamlet.
Vem em seguida a quarta cena. O encontro no terraço de Elsinor, de
i Hamlet a quem se reuniu Horácio, com o espectro de seu pai. Nesse encontro
ele se mostra apaixonado, corajoso, visto que não hesita em seguir o espectro
I até o canto para onde o espectro o arrasta, para ter com ele um diálogo muito
í horripilante. E sublinho que o caráter de horror está articulado pelo espectro
f mesmo; ele não pode revelar a Hamlet o horror e a abominação do lugar onde
i vive e o que sofre, pois seus órgãos mortais não poderíam suportar. E ele lhe dá
, uma ordem, um mandato. E interessante notar imediatamente que o mandato
1 consiste em que, de qualquer maneira, ele tem de fazer cessar o escândalo da
luxúria da rainha, e que em seguida, de resto, ele contenha seus pensamentos e
seus movimentos, que não se deixe arrastar a não sei quais excessos concernindo
j aos pensamentos a respeito de sua mãe.
| Seguramente os autores tomaram muito em consideração esta espécie
de pano de fundo turvo nas ordens dadas pelo espectro a Hamlet, de ter em
| suma de guardar-se de si mesmo em suas relações com sua mãe. Mas há uma
coisa na qual não parece que se tenha articulado isto do que se tratava, que em

m Hamlet (111,4,61)
101 Hamlet: «Économie, économie, Horatio: le mets du repas funèbre étaient refroidis à peine, et
ont encore été servis au festin des noces.» (1,2,180)

1, r >>■- < 275

fe
suma, de agora em diante e em seguida, está ao redor de uma pergunta a
resolver: que fazer em relação a algo que parece aqui ser o essencial, apesar
do horror do que é articulado, as acusações .formalmente pronunciadas pelo
espectro contra o personagem de Cláudio, isto é, o assassino. É aí que ele
revela a seu filho que foi morto por ele.
A ordem que dá o ghost não é uma ordem em si mesma; é algo que daqui
em diante coloca em primeiro plano, e como tal, o desejo da mãe. É absoluta­
mente essencial, de outra parte, voltarmos aí.
O segundo ato está constituído pelo que se pode chamar a organização
da vigilância ao redor de Hamlet. Temos em suma, uma espécie de preâmbulo
sob a forma -é bastante engraçado e mostra o caráter de doublet do grupo
Polônio, Laertes, Ofélia, em relação ao grupo Hamlet, Cláudio e a rainha- de
instruções que Polônio, primeiro ministro, dá a alguém para a vigilância de seu
filho que partiu para Paris. Ele lhe diz como é preciso proceder para informar-
se sobre seu filho. Há aí uma espécie de pequeno fragmento de bravura do
gênero verdades eternas da polícia, sobre o qual não tenho de insistir. Depois
intervém, e já está preparado no primeiro ato, Guildenstem e Rosencrantz, que
não são simplesmente os personagens apagados que se pensa. São persona­
gens que são antigos amigos de Hamlet. E Hamlet que desconfia deles, que
zomba deles, os toma em derrisão, os confunde e joga com eles um jogo extre­
mamente sutil, sob a aparência da loucura, (veremos também o que quer dizer
o problema da loucura ou pseudo-loucura de Hamlet) faz verdadeiramente apelo,
por um momento, à sua velha e antiga amizade, com um tom e um acento que,
ele também, merecería ser colocado em relevo se tivéssemos tempo, e que
merece ser retido, que prova que ele o faz sem nenhuma confiança. E ele não
perde em um só instante sua posição de astúcia e de jogo com eles; entretanto,
há um momento em que ele pode falar-lhes neste certo tom.
Rosencrantz e Guildenstem são, vindo sondá-lo, os veículos do rei, e é
bem o que sente Hamlet, que os incita verdadeiramente a lhe confessar: «Vocês
foram enviados para perto de mim? Que têm vocês a fazer perto de mim?» E
os outros estão suficientemente estremecidos para que um deles pergunte ao
outro: «O que lhe dizemos?»102. Porém isso passa, pois tudo sempre se passa
de uma certa maneira, quer dizer para que jamais seja ultrapassado um certo
muro que deteria uma situação que aparece essencialmente, e de uma ponta à

102 Hamlet: «N’avez-votls point été mandes? Est-ce votre propre inclination qui vous amène?
Est-ce une visite libre? Agissez franchement, avec moi. Allons dites-moi; parlez [...]. Dites si
vous avez été mandés ou non. - Rosencrantz se townant vers Guildenstem: «Que dites-vous à
cela?» - Guildenstem: «Eh, bien, seigneur, il est vrai, nous avons été mandés.» (11,2,269)

276
outra, amarrada.
Neste momento Rosencrantz e Guildenstem introduzem os comediantes
que encontraram na estrada e que Hamlet conhece. Hamlet sempre esteve
interessado por teatro e, estes comediantes, ele vai acolhê-los de uma maneira
que é notável. Aí também seria preciso ler as primeiras mostras que eles lhe
dão de seu talento. Um interpretando uma tragédia que concerne ao fim de
Tróia, o assassinato de Príamo -e concernindo a este assassinato, temos uma
cena muito bonita em inglês, em que vemos Pirro suspender um punhal acima
do personagem de Príamo e ficar assim:

«So as a painted tyrant, Pyrrhus stood


And like a neutral to his will and matter,
Did nothing.»

«É assim que, como um tirano em pintura, Pirro parou


E, como que neutralizado entre sua vontade e o que ele teria a fazer,
Não fez nada»103.

Como é um dos temas fundamentais da questão, isso merece ser realça­


do nesta primeira imagem, a dos comediantes a respeito da qual vai vir a nosso
Hamlet a idéia de utilizá-los no que vai constituir o corpo do terceiro ato -isto é
absolutamente essencial- o que os ingleses chamam com um termo este­
reotipado, the play scene, "o teatro no teatro ”. Hamlet aí conclui:

«Theplay's the thing


Wherein catch the conscience of the king»'’*.

Esta espécie dê rumor de címbalo que termina aí uma longa tirada de


Hamlet qué está escrita inteiramente em versos simples, assinalo, e onde en­
contramos esse par de rimas, é algo que tem todo seu valor introdutivo. Quero
dizer que é ai que termina o segundo ato e que o terceiro, em que vai justamen­
te realizar-se the play scene, é introduzido.
Esse monólogo é essencial. Porque aí nós vemos, e a violência de senti­
mentos de Hamlet, e a violência das acusações que ele dirige contra si mesmo
de uma parte:

101 Lepremier comédien: «Semblable à un tyran en peinture, Pyrrhus sans projet et sans volonté,
reste immobile et dans 1’inaction.» (11,2,464)
104 Hamlet: «Une drame est le piège oú je surprendrai la conscience du roi.» (11,2,586)

277
«Am I a coward?
Who calls me villains, breaks my pate across,
Plucks off my beard and blows it in my face.
Tweaks me by the nose, gives me the lie i' th 'throat.
As deep as to the lungs? Who does me this?
Ha?»

«Sou um frouxo?
Quem me chama agora de vilão? O que é que me demole a cabeça?
O que é que me arranca a barba, e me joga pequenos pedaços na cara?
O que é que me torce o nariz? O que é que me enfia na garganta
minhas mentiras até os pulmões? O que é que me faz tudo isto?»105 106 107.

Isto nos dá o estilo geral dessa peça que é de se rolar por terra. E imedi­
atamente depois, ele fala de seu padrasto atual:

«Swounds, 1 should take it: for it cannot be


But I am pigeon-livered and lack gall
To make oppression bitter, or ere this
I should ha fatted all the region kites
With this slave's offal»'06.

Havíamos falado destes kites, a respeito do Souvenir de Leonard de


Vinci. Penso que é uma espécie de milhafre. Trata-se de seu padrasto e desta
vítima, e deste escravo feito para ser, justamente, ofertado como vítima aos
abutres. E aí começa uma série de injúrias:

«Bloody, bawdy villain!


Remorseless, treacherous, lecherous, kindless villain!»

«Sangrento, maldito vilão!


Sem remorso, muito baixo e ignóbil vilão!»Ioí.

105 Hamlet: «Suis-je done un lâche? Qui ose me donner un dementi? Qui ose m’insulter et me faire
en face un outrage? et cependantje le souffrirais. Car il n’est pas impossible queje n’ai pas un
couer pusillanime; que mon sang ne soit pas glacé dans mes veines, pour engourdir en moi le
sentiment de la vengeance.» (11,2,552)
106 Tradução livre do Letoumeur: «Sans quoi j’aurais déjà livre aux vautours le corps de ce
scélérat.» (11,2,559)
107 «Ô perfide assassin! Lâche incestueux, àme sans remords, traitre infame.» (11,2,561)

278
Mas estes gritos, estas injúrias, se endereçam lauto a ele quanto aquele
ao qual se atribui o contexto. Este ponto é muito importante, é o cume cio
segundo ato. E o que constitui o essencial de seu [desespero] é isto que ele viu
os atores chorar descrevendo a triste sorte de Hécuba diante da qual se recorta
em pequenos pedaços seu marido Príamo. Pois depois de haver por longo tem­
po guardado a posição fixa, seu punhal suspendido, Pirro adquire um prazer
malicioso -é o texto que nos diz:

«When she saw Pyrrhus make malicious sport


In mincing with his sword her husband's limbs»'m.

“para recortar” -mincing é, penso, a mesma palavra que "émincer" em fran­


cês- diante dessa mulher que nos é descrita muito bem enrolada em não sei
que tipo de edredon em tomo de suas costas enxutas, o corpo de Príamo. O
tema trata-se aqui, totalmente, de Hécuba, mas quem é Hécuba para essas
pessoas? Eis pessoas que chegam a esses extremos de emoção por algo que
não lhes concerne em nada. É aí que se desencadeia para Hamlet este deses­
pero de nada sentir de equivalente. Isto é importante para introduzir o de que se
trata, quer dizer a play scene da qual ele dá a razão. Como que captado na
atmosfera, ele parece se aperceber de um golpe do que se pode fazer disso.
Qual é a razão que o impulsiona? Seguramente há aí uma motivação
racional: «capturar a consciência do rei». Quer dizer, fazendo representar essa
peça com algumas modificações introduzidas por ele mesmo, se aperceber do
que vai emocionar o rei, fazê-lo trair-se. E com efeito, é assim que as coisas se
passam, em um momento, com um grande ruído, o rei não pode se sustentar
mais aí. Se lhe representa de uma maneira tão exata o crime que cometeu, com
comentários de Hamlet, que ele diz bruscamente: «Luz, luz!»109 e ele se vai
com um grande ruído, e Hamlet diz a Horácio: «Não há mais dúvida»110.
Isto é essencial. E eu não sou o primeiro a ter colocado, no registro analítico
que é o nosso, a questão da função desta play scene. Rank o fez antes de mim em
um livro [artigo] que se chama Das “Schauspiel" in Hamlet, publicado em

101 «Quand elle vit Pyrruhs insultant inhumainement au corps sangiant de son époux, et déchirant
son cadavre avec son épéé...» (11,2,497)
105 Le Roi: «Qu’on apporte des flambeaux; sortons tous! - (Les coutisans se lèvent.) Polonius'.
Des flambeaux, des flambeaux, des flambeaux.» (111,2,255)
110 «Oh! Un talent complet.» (111,2,261)

279
Psychoanalytische Bewegung Myth, em 1919, em-Viena-Leipzig, p.72-85"1.
A função deste "Schauspiel" foi articulada por Rank de uma certa
maneira a qual nós teremos de voltar. E claro de toda maneira que ela coloca
um problema que vai além de seu papel.funcional na articulação da peça. Mui­
tos detalhes mostram que se trata mesmo de saber até onde e como podemos
interpretar esses detalhes. Quer dizer, se nos é suficiente fazer isso com o qual
Rank se contenta, quer dizer, realçar todos os traços que mostram que na es­
trutura mesma do fato de olhar uma peça, há algo que evoca as primeiras
observações pela criança da copulação parental. É a posição que toma Rank,
eu não digo que ela seja sem valor, que ela seja mesmo falsa, creio que ela é
incompleta e que, em todo caso, ela merece ser articulada no conjunto do mo­
vimento; isto é, nisso pelo que Hamlet tenta ordenar, dar uma estrutura, dar
justamente essa dimensão que chamei em alguma parte da verdade dissimula­
da, sua estrutura de ficção em relação ao que somente ele encontra para se
reorientar, além do caráter mais ou menos eficaz da ação, para fazer se desve­
lar, se trair Cláudio. Há algo aqui, e Rank tocou um ponto justo no que concerne
a sua própria orientação em relação a ele mesmo. Não faço senão indicá-lo
para mostrar o interesse dos problemas que são aqui levantados.
As coisas não vão tão simplesmente, e o terceiro ato não acaba sem que
as consequências desta articulação apareçam sob a forma seguinte: é que ele é
convocado, Hamlet, com toda urgência para junto de sua mãe que, bem enten­
dido, não pode mais -é literalmente as palavras que são empregadas: «speak
no more»1'2- e que, no curso desta cena, ele vê Cláudio, quando caminha em
direção ao aposento de sua mãe, chegando, senão a penitenciar-se ao menos a
arrepender-se, e que assistimos a toda a cena dita da súplica arrependida deste
homem que se encontra aqui, de alguma maneira preso nas próprias redes do
que ele guarda, os frutos de seu crime, e que eleva a Deus não sei qual súplica,
para ter a força de se livrar.
E, tomando-o literalmente de joelhos e em sua mercê, sem ser visto pelo
rei, Hamlet tem a vingança a seu alcance. É aqui que ele se detém com esta
reflexão: será que matando-o agora ele não vai enviá-lo ao céu, enquanto seu
pai insistiu muito sobre o fato que ele sofria todos os tormentos de não se sabe
muito bem que inferno ou purgatório? Será que ele não vai enviá-lo diretamente
à felicidade eterna? E justamente o que não é necessário que eu faça...

111 Rank O. Das “Schauspiel" in Hamlet. Ein Beitrag zur Analyse und zum dynamischen
Verstãndnis der Dichtung. Imago, 1915, 4, pp. 41 -51. Psychoanalytische Bewegung Myth, 1919,
pp. 72-85.
"2LaReinet «Ne dis plus rien...» (111,4,88)

280
Era bem a ocasião de resolver o negócio, e direi mesmo que tudo está ai,
no «To be or not to be» que, lhes introduzí na última vez, não é por nada, é
essencial a meus olhos; o essencial está aí com efeito por inteiro, quero dizer
que em razão do fato que sucedeu ao pai, é justamente isso que vem nos dizer
que ele está fixado para sempre neste momento: essa barra passada sob as
contas de sua vida faz com que reste uma soma idêntica à soma de seus cri­
mes. Está aí também isto diante do qual Hamlet se detém com seu «To be or
not to be». O suicídio, isso não é tão simples. Nós não estamos somente so­
nhando com ele nisso que se passa no além, mas simplesmente isso, é que
colocar o ponto final em algo não impede que o ser permaneça idêntico a tudo
o que ele articulava pelo discurso de sua vida, e que aí não há «To be or not to
be», que o «To be», qualquer que seja, permanece eterno.
E é justamente para ele também, Hamlet, ser confrontado com isso, quer
dizer não ser pura e simplesmente o veiculo do drama, aquele através do qual
passam as paixões, aquele que, como Etéocles e Polinice, continua no crime o
que o pai acabou na castração; é porque justamente, ele se preocupa com o
«To be» eterno do dito Cláudio que, de uma maneira totalmente coerente com
efeito, naquele momento, ele não tira sua espada da bainha.
Este é com efeito um ponto chave, um ponto essencial. O que ele quer, é
esperar, é surpreender o outro no excesso de seus prazeres, dito de outra forma,
em sua situação sempre em relação a essa mãe que está aí o ponto chave, ou
seja o desejo da mãe, é que ele vai ter com a mãe, com efeito, esta cena
patética, uma das coisas mais extraordinárias que possa ser dada, essa cena
em que é mostrada a ela mesma o espelho do que ela é, e em que, entre este
filho que incontestavelmente ama sua rflãe como sua mãe o ama -isso nos é
dito- além de toda expressão, se produz este diálogo no qual ele a incita, propri­
amente falando, a romper os laços com o que ele chama o monstro condenado
do hábito: «Esse monstro, o costume, que devora toda a consciência de nossos
atos, este demônio do hábito é ainda anjo, nisso que ele joga também pelas boas
ações. Começa a te desprender. Não deite mais (tudo isso nos é dito com uma
crueza maravilhosa) com Cláudio, tu verás que isso será cada vez mais fá­
cil»113, é este aqui o ponto no qual quero lhes introduzir. 115

115 Hamlef. « [...] L’habitude, ce monstre qui ronge et détruit tous les sentiments, tous les
penchants, est un ange en ceci: c’est qu’il donne insensiblement aux actes bons et vertueux une
aisance, un air naturel, qui les fait croire innés dans I’homme. Abstenez-vous cette nuit, et ce
premier effort vous rendraplus facile 1’abstinence delanuitsuivance; et ainsideplus en plus par
degrés. L’habitude peut effacer I’empreinte de la nature, vaincre 1’enfer même, et le chasser d’un
couer par son insensible et marveilleuse puissance». (111,4,161)

281
I lá duas réplicas que me parecem inteiramente essenciais. Eu não falei
ainda muito da pobre Ofélia, é completamente em tomo disso que isso vai girar.
Num momento Ofélia lhe diz: «Mas você é um coro muito bom, chorus», quer
dizer “você comenta muito bem essa peça”. Ele responde:

«/ could interpret between you and your love,


if I could see puppets dallying.»

«Eu poderia entrar na interpretação entre você e seu amor,


Em toda medida em que estou vendo os bonecos
jogar seu pequeno jogo»1'4.

Ou seja, do que se trata na cena. Trata-se em todo caso de algo que se


passa entre you e your love.
Igualmente, na cena com a mãe, quando o espectro aparece, (pois o
espectro aparece em um momento em que, justamente, as reprovações de Hamlet
vão começar a ceder), ele diz:

«O, step between her and her fighting soul:


Conceit in weakest boies strongest works:
Speak to her, Hamlet.»

Quer dizer que o espectro, que aparece aí unicamente para ele - pois
habitualmente, quando o espectro aparece todo o mundo o vê -vem lhe dizer:
«desliza-te entre ela e sua alma que está lutando»"5.
Conceit é unívoco. Conceit é empregado todo o tempo nessa peça, e
justamente a propósito disto que é a alma. O conceit é justamente o concetti"6,
a ponta de estilo, e é a palavra que é empregada para falar do estilo precioso.
«O conceit opera o mais potentemente nos corpos fatigados. Fala-lhe, Hamlet».
Esse lugar onde é sempre demandado a Hamlet entrar, representar, intervir,
está aí algo que nos dá a verdadeira situação do drama. E apesar da interven-

114 Ophélie: «Vous valez un choeur tout entier, seigneur. - Hamlet: Oh, je pourrais servir d’interprete
entre vous et votre amant, si je pouvais voir jouer ensemble les deux marionettes». (111,2,232)
115 L ’ombre: «Oh! Mets-toi entre elle et le trouble de son âme agitée; ce sont les corps les plus
faibles que I’imagination agite avec plus de violence. Parle-lui, Hamlet». (111,4,113)
116 Concetti: (rem. 1) por sua preciosidade, o concetti pertence ao barroquismo, com menos de
preciosidade, seria o chiste, a boa palavra. (Rem.2) O concetti tem uma variedade sempre atual, a
ponta. Ele nem ajuda a zombaria. (Gradus, Les Procedes Littéraires. Dictionnaire B. Dupriez.
Paris, 1984, U.G.E.)

282
ção, do apelo significativo -é significativo para nós porque é bem disso que se
trata, de intervir por nós, «between her and her», é nosso trabalho isto, «Conceit
in weakest bodies strongest works», é ao analista que é endereçado, este
apelo!
Aqui, uma vez mais, Hamlet fraqueja e abandona sua mãe dizendo: de­
pois de tudo, deixa-te acariciar, ele virá, vai te dar um beijo gorduroso na boche­
cha e te acariciar a nuca! Ele abandona sua mãe, ele a deixa literalmente,
deslizar, retomar, se pode-se dizer, ao abandono de seu desejo. E eis como
termina este ato, após o que, no intervalo, o infeliz Polônio teve a infelicidade de
fazer um movimento atrás da tapeçaria e que Hamlet lhe perpassou sua espada
através do corpo.
Chega-se ao quarto ato. Trata-se nesse momento de algo que começa
bastante bem, a saber a caça ao corpo. Pois Hamlet escondeu o cadáver em
algum lugar, e verdadeiramente trata-se no começo de uma caça ao corpo que
Hamlet parece achar muito engraçada; ele grita: «Estamos brincando de es­
conde-esconde e todo o mundo corre atrás». Finalmente, ele lhes diz: «Não se
cansem, em quinze dias vocês começarão a senti-lo, ele está aí sob a escada,
não falemos mais nisso»"’. Há aí uma réplica que é importante e sobre a qual
retomaremos:

«.The body is with the king, but the king is not with the body.
The king is a thing.»

«O corpo está com o rei, mas o rei não está com o corpo.
0 rei é uma coisa»"8. ’■

Isso faz verdadeiramente parte das conversas esquizofrênicas de Hamlet.


Tampouco isso ocorre sem poder nos livrar alguma coisa na interpretação, nós
o veremos no que segue.
0 ato IV é um ato no qual se passam muitas coisas rapidamente: o envio
de Hamlet à Inglaterra, seu retomo antes que se tenha tempo de se virar -
sabe-se porque, ele descobriu o pote com rosas, que o enviava à morte. Seu
retomo se acompanha de algum drama, a saber que Ofélia no intervalo tomou-

117 Hamlet: «Mais, ma foi, si vous ne le trouvez pas dans 1’espace d’un mois, vous le distinguerez
à 1’odeur, lorsque vous monterez les degrés de la galerie». (IV,3,33)
Hamlet: «Le corps est avec le roi; mais le roi n’est pas avec le corps. Le roi n’est rien...»
(IV,2,25)

283
se louca -digamos pela morte de seu pai e provavelmente por outra coisa ain­
da- que Laertes se revoltou, que ele combinou um pequeno golpe; que o rei
impediu sua revolta dizendo que é Hamlet que é culpado, que não se pode dizê-
lo a ninguém porque Hamlet é popular demais, mas que se pode solucionar a
coisa com discrição fazendo um pequeno duelo trucado, no qual perecerá Hamlet.
É verdadeiramente o que vai se passar. A primeira cena do último ato é
constituída pela cena do cemitério. Eu fazia apelo antes ao primeiro coveiro,
vocês têm quase todos nos ouvidos essas conversas estupefatas que se trocam
entre estes personagens que estão cavando a tumba de Ofélia e que fazem
saltar a cada palavra um crânio, dos quais um é recolhido por Hamlet que faz
um discurso sobre isso.
Como eu falava dos atores, da memória do encarregado do vestuário de
teatro, jamais se viu um Hamlet e um primeiro coveiro que não estivessem em
pé de guerra. Jamais o primeiro coveiro pôde suportar o tom no qual lhe fala
Hamlet, e que é um pequeno traço que vale a pena ser notado na passagem, e
que nos mostra até onde pode ir a potência das relações postas em jogo nesse
drama.
Voltemos a isso sobre o qual atrairei a atenção de vocês na próxima vez,
é que é após esta longa e potente preparação que se encontra efetivamente, no
quinto ato, algo do que se trata, o desejo sempre cambaleante, este algo esgo­
tado, inacabado, inacabável que há na posição de Hamlet. Por que vamos vê-
lo, de repente, possível?
Quer dizer, por que vamos ver de repente Hamlet aceitar, nas condições
as mais inverossímeis, o desafio de Laertes? Nas condições ainda mais curio­
sas que ele se encontra aí ser o campeão de Cláudio. Nós o vemos derrotar
Laertes em todos os rounds (ele o toca quatro ou cinco vezes ainda que se
tenha feito a aposta de que ele o tocaria ao menos «cinco contra doze») e vir se
espetar, como está previsto, na ponta envenenada -não sem que haja uma
espécie de confusão, em que esta ponta lhe volta à mão, e em que ele fere
Laertes também. E é na medida em que eles estão todos os dois feridos de
morte, que chega o último golpe que é levado aquele que, desde o início, trata-
se de estocar, Cláudio.
Não é por nada que evoquei na última vez uma espécie de quadro que é
aquele de Millais com Ofélia flutuando sobre as águas"9. Gostaria de lhes
propor um outro para terminar nossa palestra de hoje. Eu gostaria que alguém
fizesse um quadro em que se veria o cemitério no horizonte, e aqui o buraco da

"’MILLAIS JohnEverrett (1829-1896), Ophelia, 1851-2(TateGallery).

284
tumba, pessoas se indo como as pessoas ao fim da tragédia edipiana, se disper­
sando e se cobrindo os olhos para não ver o que se passa, ou seja alguma coisa
que, em relação ao édipo, está um pouco mais perto da liquefação do Sr.
Valdemar120.
Aqui é outra coisa. Se passou algo sobre o qual não temos atribuído
muita importância. Hamlet, que acaba de desembarcar novamente de urgência
graças aos piratas que lhe permitiram escapar ao atentado, cai sobre o enterro
de Ofélia. Para ele, primeira novidade! ele não sabia o que tinha acontecido
durante sua curta ausência. Vê-se Laertes se dilacerar o peito e pular na tum­
ba, para abraçar uma última vez o cadáver de sua irmã clamando na voz mais
alta seu desespero. Hamlet, literalmente, não somente não pode tolerar essa
manifestação em relação a uma jovem que, como vocês sabem, ele maltratou
muito até então, mas ele se precipita em seguida a Laertes, após ter lançado
um verdadeiro urro, grito de guerra no qual ele diz a coisa a mais inesperada,
ele conclui dizendo: «Quem lança estes gritos desesperados por causa da mor­
te dessa jovem?» e ele diz: «Aquele que grita aqui sou eu, Hamlet o dinamar-
quês»121.
Nunca se o ouviu dizer que ele é dinamarquês, ele os vomita, os Dina­
marqueses. Tudo de um golpe lhe é absolutamente revolucionado por alguma
coisa da qual posso dizer que é completamente significativo em relação a nos­
so esquema. É na medida em que alguma coisa, $, está aí numa certa relação
com a, que se faz de repente esta identificação que lhe faz reencontrar pela
primeira vez seu desejo em sua totalidade.
Isso dura um certo tempo em que estão na tumba lutando, se os vê
desaparecer na cova e ao fim se os puxa para separá-los. Seria o que se vería
no quadro: esta tumba onde se veria coisas escaparem. Veremos como se pode
conceber o que isso pode querer dizer.

POE E., La Vérité sur le cas de Aí. Valdemar, in Histoires Extraordinaires, La Pléiade.
121 Hamlet: «Quel est celui dont la douleur s’exprime avec tant d’emphase, et dont les cris
lamentables suspendent la course des astres étonnés de 1’entendre? C’est moi: c’est Hamlet
prince de Danemark». (V, 1,242)

285
Lição 15
18 de março de 1958

Os princípios analíticos são mesmo assim tais que, para chegar ao fim, é
preciso não nos apressarmos. Talvez alguns dentre vocês.acreditam (penso que
não há muitos desta espécie) que estamos longe da clínica. Isto não é absoluta­
mente verdadeiro! Estamos aí plenamente porque aquilo de que se trata sendo
de situar o sentido do desejo, do desejo humano, este modo de referenciação ao
qual procedemos sobre o que é, além disso, desde o início, um dos grandes
temas do pensamento analítico, é alguma coisa que não sabería de nenhuma
forma nos desviar daquilo que é, de nós, requerido como o mais urgente.
Foram ditas muitas coisas sobre Hamlet e fiz alusão a isto na última vez.
Tentei mostrar a espessura da acumulação dos comentários sobre Hamlet. Che­
gou-me, no intervalo, um documento após o que eu gemia em meu desejo de
perfeccionismo, isto é o Hamlet and Oedipus de Ernest Jones122. Eu o li para
aperceber-me que em suma, Jones tinha mantido seu alfarrábio a par do que se
passou desde 1909. E não é mais a Loening123 que ele faz alusão como referên­
cia recomendável, mas a Dover Wilson124 que escreveu muito sobre Hamlet e
escreveu muito bem. No intervalo, como eu próprio tinha lido uma parte da
obra de Dover Wilson, creio que lhes dei aproximadamente a substância.
E antes um certo recuo que se trataria de dar agora com relação a tudo
isso, à especulação de Jones que, devo dizê-lo, é muito penetrante e, pode-se

'“JONES E., op.cit.


'“LOENING, DieHamlet-Trâgõdie Shakespeare (1893).
""WILSON Dover, Hamlet (193 6).

287
dizer, no conjunto, de um outro estilo de tudo aquilo que, na família analítica,
pode ser escrito, reunido sobre o sujeito. E preciso observações muito justas
que eu simplesmente retomo no momento. E preciso em particular esta obser­
vação de simples bom senso que Hamlet não é um personagem real e que,
absolutamente, nos colocar as questões as mais profundas concernentes ao ca­
ráter de Hamlet, é talvez alguma coisa que merece que aí nos detenhamos um
pouco mais seriamente do se faz de hábito.
Como sempre, quando estamos em um domínio que concerne de uma
parte nossa exploração e também de outra parte a um objeto, há uma dupla via
a seguir. Nossa via nos engaja numa determinada especulação fundada sobre a
idéia que nós nos fazemos do objeto. É bem evidente que existem coisas, eu
diria a desobstruir no primeiro plano. Em particular, por exemplo, que aquilo
que temos assunto para falar nas obras de arte, e especialmente nas obras dra­
máticas, são os personagens, no sentido que se entende em francês. Persona­
gens, isto é alguma coisa da qual supomos que o autor, ele, possui deles toda a
consistência; que ele fez um simplório, um personagem e ele seria suposto nos
emocionar pela transmissão dos caracteres deste personagem e por esta única
sinalização, seríamos já introduzidos a uma espécie de realidade suposta que
estaria além do que nos é dado na obra de arte.
Direi que Hamlet já tem esta propriedade muito importante de nos fazer
sentir a que ponto, esta vista entretanto comum que aplicamos a cada instante
espontaneamente quando se trata de uma obra de arte, é assim mesmo pelo
menos senão para refutar, pelo menos para suspender. Pois de fato, em toda
arte, há dois pontos sobre os quais podemos nos apegar solidamente com a
mão, como a sinalizações absolutamente certas, é que não basta dizer como eu
disse, que Hamlet é uma espécie de espelho onde cada um se vê à sua maneira,
leitor ou espectador. Mas deixemos os espectadores que são insondáveis...
Em todo caso a diversidade das interpretações críticas que foram dadas
sobre isto sugere que existe algum mistério, pois a soma daquilo que foi avan­
çado, afirmado a propósito de Hamlet, é propriamente falando inconciliável,
contraditório, penso já lhes ter mostrado suficientemente na primeira vez. Ar­
ticulei que a diversidade das interpretações era estritamente da ordem do con­
trário ao contrário. Também indiquei um pouco o que podia ser Hamlet para os
atores, é um domínio sobre o qual teremos talvez que voltar ainda agora, que é
muito significativo. Disse que era o papel por excelência e que ao mesmo tem­
po, se dizia “o Hamlet de um tal, de um tal, de um tal”. Isto é, quantos atores
houver, com uma determinada potência pessoal, tantos Hamlet haverá.
Mas isto vai mais longe. Alguns até sustentaram-em particular Robertson

288
quando do terceiro centenário, sustentados um pouco sem dúvida por uma es­
pécie de rush, que houve neste momento sobre os temas shakesperianos, a
exaltação passional com a qual todo o mundo literário inglês fez reviver este
tema- alguns fizeram ouvir uma voz que se opunha para dizer que, estritamen­
te, Hamlet era o vazio, não se sustentava de pé, que não há chave de Hamlet,
que Shakespeare tinha feito como podia para remendar um tema cuja explora­
ção fílológica, que foi bastante longe, mostra (sabia-se que havia já um Hamlet
que se atribui a Kyd, que teria sido encenado uma dúzia de anos antes deste
outono de 1601 quando temos mais ou menos a certeza que foi esta a primeira
vez que apareceu este Hamlet), pôde-se até dizer, e direi que sobre isto que se
conclui o primeiro capitulo do livro de Jones, ele foi propriamente articulado
até por Grillparzer, que é um dramaturgo austríaco ao qual Freud faz na oca­
sião uma referência muito importante e que diz que aquilo que era a própria
razão de Hamlet era sua impenetrabilidade, o que é mesmo assim bastante
curioso como opinião! Que isto tenha podido ser avançado, não se pode dizer
que não seja uma opinião estritamente anti-aristotélica. Na medida que o cará­
ter opotos (omoios)125 do herói com relação a nós é que nos põe em primeiro
plano para explicar, sobre a própria base da explicação aristotélica, o efeito da
comédia e da tragédia.
Que tudo isto tenha podido ser avançado a propósito de Hamlet é algu­
ma coisa que tem o seu preço. E preciso dizer que existe sobre isto toda uma
gama de opiniões que não se eqüivalem, que apresentam toda uma série de
nuanças referentes ao que se pode dizer a respeito; e que não é a mesma coisa
que dizer que Hamlet é uma peça fracassada. Alguém nada menos do que T.S.
Eliot, que para um determinado meio é mais ou menos o maior poeta inglês
modemo, pensa ele também, e o disse, que Shakespeare não esteve à altura de
seu herói; quero dizer que se Hamlet é alguém que é desproporcional à sua
tarefa, Shakespeare foi também desproporcional à articulação do papel de
Hamlet. Aí estão opiniões que se pode dizer mesmo assim problemáticas, eu as
enumero para levar vocês em direção do que se trata. E a opinião a mais
nuançada que é, creio, a mais justa -é na relação de Hamlet aquele que o
apreende, seja como leitor, seja como espectador, alguma coisa que é da ordem
de uma ilusão.
Outra coisa é dizer que Hamlet é simplesmente o vazio. Uma ilusão, não
é o vazio. Para poder produzir sobre a cena um efeito fantasmático da ordem do

125 Semelhante.

289
que representaria, se quiserem, meu pequeno espelho côncavo com a imagem
real que surge e que só se pode ver de um determinado ângulo e de um deter­
minado ponto, é preciso toda uma maquinaria. Que Hamlet seja uma ilusão, a
organização da ilusão, eis alguma coisa que não é a mesma ordem de ilusão que
se todo o mundo sonhar a propósito do vazio. É absolutamente importante fazer
esta distinção.
O que existe de seguro em todo o caso, é que tudo confirma que existe
alguma coisa desta ordem. Isto dá, é o primeiro ponto, o cabo ao qual podemos
solidamente nos segurar. Por exemplo alguém que é Trench126, que é citado por
Jones, ver-se-á em alguns termos, escreveu alguma coisa como segue: «Encon­
tramos a maior dificuldade, com o auxílio do próprio Shakespeare, para com­
preender Hamlet-, mesmo Shakespeare acharia talvez difícil compreendê-lo. O
próprio Hamlet ...(vê-se que esta passagem é divertida, o correr da pluma ou do
pensamento vai em direção a isto) o próprio Hamlet se encontrava, é possível,
na impossibilidade de compreender a si mesmo». E «Mais dotado que os ou­
tros homens para ler o coração e os motivos dos outros...», este fim de frase não
diz respeito nem a nós mesmos, nem a Shakespeare, mas a Hamlet, vocês sa­
bem que Hamlet todo o tempo, se dedica a este jogo de desmontagem com seus
interlocutores, com aqueles que vêm interrogá-lo, lhe estender armadilhas. E
«ele é inteiramente incapaz de ler seus próprios motivos». Eis o que é dito.
Assinalo-lhes que logo após, Jones que justamente começou por fazer
todas as reservas dizendo que não é preciso nos deixar levar a falar de Hamlet
como de um personagem real, é alhures que é preciso buscar a articulação, e
que além devemos encontrar... -é a posição tradicional em matéria de interpre­
tação psicanalítica mas que, creio, contém algum erro, alguma falácia, para a
qual quero de início atrair sua atenção. Jones faz esta observação e na sequência
desta citação, ele próprio não deixa de esbarrar em alguma coisa que se expri­
me mais ou menos assim: «Não conheço julgamento mais autêntico que aquele
em toda literatura sobre o problema»127. Num outro trecho, o próprio Jones nos
dirá que em suma «o poeta, o herói, e a audiência estão profundamente emoci­
onados por sentimentos que os tocam sem o conhecimento deles»'28.
I26TRENCH W.F., Shakespeare’s Hamlet: A new commentary (1913), p.l 19. citado por Jones
em Hamlet and Oedipus, p.50. «É difícil para nós, apesar da ajuda de Shakespeare, compreender
Hamlet; é provável que o poeta, ele mesmo, não conseguisse compreendê-lo: é que Hamlet se
encontrava na impossibilidade de compreender-se a si mesmo. Mais dotado do que os outros
homens para ler no coração e os motivos dos outros, ele é completamente incapaz de ler seus
próprios motivos».
,27JONES E.,íWrf.,p. 51.
128 JONES E.,ibid.,p. 51.

290
Aí está então alguma coisa que nos faz tocar com o dedo a estrita equi­
valência de certos termos desta questão, ou seja o poeta e o herói, com alguma
coisa (é suficiente parar um instante para perceber isso) é que eles só estão
verdadeiramente aí por seus discursos. Se tratar-se de alguma coisa que é a
comunicação daquilo que está no inconsciente daqueles que avançaram como
sendo os primeiros termos, ou seja o poeta e o herói, não se pode dizer que esta
comunicação do inconsciente em todo caso possa conceber-se, não está
presentificada por outra coisa a não ser a articulação do discurso dramático.
Não falemos do herói que, para dizer a verdade, se vocês me seguirem
no caminho no qual eu tento induzi-los, só é estritamente idêntico às palavras.
Sobretudo se começarmos a tomar o sentimento que aquilo que faz o mais alto
valor dramático, na ocasião, deste herói, é um modo. Está aí o segundo cabo ao
qual peço que se agarrem, é da mesma ordem que este lado que se desveste de
tudo aquilo que podemos dizer de sua consistência. Em outros termos, Hamlet
aqui se toma a obra exemplar.
Que o modo com o qual uma obra nos toca, nos toca precisamente da
maneira a mais profunda, isto é sobre o plano do inconsciente, é alguma coisa
que há neste arranjo, na composição da obra, que sem nenhuma dúvida, faz
com que estejamos interessados muito precisamente no nível do inconsciente,
mas que isto não é em razão da presença de alguma coisa que realmente.supor­
ta em face de nós um inconsciente. Quero dizer que nós não vamos tratar,
contrariamente ao que se crê, do inconsciente do poeta, mesmo se ele testemu­
nha com sua presença alguns traços não concertados em sua obra, por elemen­
tos de lapsos, por elementos simbólicos dele mesmo despercebidos, não é isto
que nos interessa de maneira maior; pode-se encontrar em Hamlet alguns tra­
ços, isto que foi empregado por Ella Sharpe, como lhes disse na última vez. É
a saber que ela vai buscar desembaraçar aqui e ali o que, no personagem de
Hamlet, pode fazer perceber não sei qual engate, qual fixação da metáfora em
redor de temas femininos, ou de temas orais. Asseguro-lhes que em relação ao
problema que coloca Hamlet, está verdadeiramente aí alguma coisa que parece
secundária, quase pueril, sem perder naturalmente todo interesse.
Em muitas obras, indo assim procurar sob este ângulo alguns vestígios,
alguma coisa que possa informá-los sobre um autor, vocês fazem obra de in­
vestigação biográfica sobre o autor, vocês não analisam o alcance da obra
como tal. E o alcance de primeiro plano que toma para nós Hamlet é aquele que
lhe dá o valor de estrutura equivalente àquela do Édipo. Alguma coisa que
pode nos permitir interessar-nos no mais profundo da trama; aquilo que para
nós, permite estruturar determinados problemas, é evidentemente outra coisa

291
do que tal ou tal confissão fugaz. É bem evidentemente o conjunto, a articula­
ção da tragédia nela própria que é o que nos interessa, é isto que estou acentu­
ando. Isto vale por sua organização, pelo que instaura de planos superpostos no
interior do que pode encontrar lugar a própria dimensão da subjetividade hu­
mana. E aquilo que faz com que, se você quiser, nesta maquinaria, ou ainda
nestes suportes -para metaforizar o que quero lhes dizer- na necessidade de
um determinado número de planos superpostos, a profundidade de uma peça,
de uma sala, de uma cena, a profundidade é dada, no interior do que se pode
colocar da maneira a mais ampla o problema para nós da articulação do desejo.
Portanto, eu me faço compreender bem, digo que se Hamlet, está aí o
ponto essencial, tem um alcance para nós privilegiado, quero dizer se Hamlet é
mesmo o maior drama, ou um dos maiores dramas da tragédia moderna, pondo
Fausto do outro lado, não é simplesmente porque há Shakespeare, tão genial
quanto o supúnhamos, e tal volta de sua vida. Pois bem evidentemente tam­
bém, podemos dizer que Hamlet é um ponto em que se passou alguma coisa na
vida de Shakespeare. Isto se resume talvez aquilo, tudo que nós podemos dizer,
pois esta coisa que se passou, nós o sabemos, é a morte de seu pai, e nos con­
tentarmos com isto faz com que nos contentemos com poucas coisas. E supo­
mos também que ao redor deste acontecimento deve ter havido outras coisas
em sua vida, pois a viragem, a orientação, o giro de sua produção é verdadeira­
mente manifesta.
Antes não há nada senão esta série de comédias ou estes dramas históri­
cos que são verdadeiraménte dois gêneros que ele impeliu, um e outro, ao seu
último grau de beleza, de perfeição, de desembaraço. Até aí é quase um autor
com duas grandes especialidades sobre as quais ele desempenha com uma
maestria, um brio, uma felicidade que o coloca na ordem dos autores de suces­
so.
A partir de Hamlet, o céu muda, e nós tocamos nestas coisas além de
todo limite, que não têm mais nada a fazer com nenhuma espécie de regra, que
não são mais da mesma ordem. Após Hamlet, é o King Lear e tantas outras
coisas, para chegar à Tempest. Sentimos aí uma outra coisa, um drama humano
que se desenvolve, de um registro totalmente outro. E no fim das contas o
Shakespeare jóia da história humana e do drama humano, que abre uma nova
dimensão sobre o homem. Portanto, passou-se alguma coisa neste momento.
Mas é suficiente que estejamos certos em pensar que seja isto? Certamente, de
uma certa maneira. Mas observemos assim mesmo que se Hamlet é a peça que
se apresenta mais como um enigma, não é senão demasiado evidente que toda
peça que faz problema não é necessariamente uma boa peça. Uma peça muito

292
ruim pode ser também. E numa peça ruim, há provavelmente na ocasião, um
inconsciente também presente, e ainda mais presente do que pode haver em
uma boa. Se ficamos emocionados por uma peça de teatro, não é porque ela
representa esforços difíceis, disso que sem saber um autor aí deixa transparecer,
é em razão, eu o repito, das dimensões do desenvolvimento que ela oferece no
lugar a tomar, para nós, isso que propriamente falando encobre em nós nossa
própria relação com nosso próprio desejo.
E isto nos é oferecido de uma maneira tão eminente numa peça que, por
um lado, realiza ao máximo estas necessidades de dimensão, esta ordem e esta
superposição de planos que dão seu lugar aquilo que deve aí, em nós, vir resso­
ar. Isto não é porque Shakespeare está neste momento tomado por um drama
pessoal. Se empurrarmos as coisas a seus últimos limites, acredita-se agarrar
este drama pessoal e ele se esquiva; pode-se até dizer que era o drama que
estava nos Sonnets, as relações com seu protetor e sua amante (vocês sabem
que ele foi duplamente enganado, do lado de seu amigo e do lado de sua aman­
te), podemos até dizer... -ainda que o drama deste momento aí seja muito
provavelmente passado a um outro período mais temperado da vida de
Shakespeare, não se tem nenhuma certeza sobre esta história, se tem apenas o
testemunho dos Sonnets que ele mesmo é singularmente elaborado.
Creio que se trata de uma outra causa que não esta. Não é a presença, o
ponto atrás de Hamlet de tudo o que nós podemos, na ocasião, sonhar que está
em causa, é a composição. Sem dúvida, esta composição, o autor conseguiu
empurrá-la a este alto grau de perfeição, que faz de Hamlet alguma coisa que se
distingue de todos os pré-Hamlet que pudemos com nossa filologia descobrir
por uma articulação tão singular, tão excepcional que aí está justamente o que
deve fazer objeto de nossa reflexão. Se Shakespeare foi capaz de fazê-lo até
este grau, é provavelmente em razão de um aprofundamento que é tanto o
aprofundamento do métier do autor, quanto o aprofundamento da experiência
vivida por um homem que seguramente viveu e cuja vida foi feliz, do qual tudo
nos indica que sua vida foi atravessada por todas as solicitações e todas as
paixões. Que haja o drama de Shakespeare atrás de Hamlet, é secundário em
vista do que compõe a estrutura, é esta estrutura que responde pelo efeito de
Hamlet. E isto tanto mais que o próprio Hamlet, como se exprimem metafori­
camente os autores, depois de tudo, é um personagem sobre ó qual não é sim­
plesmente em razão de nossa ignorância que nós não conhecemos as profundi­
dades. Efetivamente é um personagem que é composto de alguma coisa que é o-
lugar vazio, para situar -pois está aí o importante- nossa ignorância.
Uma ignorância situada é outra coisa do que alguma coisa puramente

293
negativa. Esta ignorância situada, não é nada mais do que presentificação do
inconsciente. Ela dá a Hamlet seu alcance e sua força.
Penso ter conseguido comunicar-lhes com mais nuanças, sem nada afas­
tar, sem negar a dimensão propriamente psicológica que está interessada numa
peça como esta, que é uma questão disso que se chama a psicanálise aplicada.
É bem ao contrário, no nivel em que estamos, é da psicanálise teórica que se
trata, e sobre a questão teórica que coloca a adequação de nossa análise a uma
obra de arte, toda espécie de questão clínica é uma questão de psicanálise apli­
cada. Há pessoas que me escutam e que terão sem dúvida necessidade que eu
diga um pouco mais, num certo sentido que elas me façam perguntas...
Se Hamlet é verdadeiramente o que lhes digo, a saber uma composição,
uma estrutura tal que aí, o desejo possa encontrar seu lugar suficientemente
corretamente, rigorosamente colocado para que todos os desejos ou, mais exa­
tamente, todos os problemas de relação do sujeito ao desejo possam ai se pro­
jetar, seria suficiente de algum modo lê-lo. Faço então alusão às pessoas que
poderíam me colocar a questão da função do autor. Onde está a função do
teatro, da representação?
É claro que não é absolutamente a mesma coisa ler Hamlet e vê-lo repre­
sentado. Eu não penso que isso possa ser muito problema para vocês e que, na
perspectiva que é aquela que tento desenvolver diante de vocês com relação
em suma à função do inconsciente -a função do inconsciente que defini como
discurso do Outro- não se pode ilustrar melhor do que na perspectiva que nos
dá uma experiência como a da relação da audiência a Hamlet. E claro que aí, o
inconsciente se presentifica sob a forma do discurso do Outro que é um discur­
so perfeitamente composto. O herói não está aí presente senão por este discur­
so, da mesma forma que o poeta. Morto há muito tempo, no final das contas, é
seu discurso que ele nos lega.
Mas, certamente, esta dimensão que a representação acrescenta, a saber,
os atores que vão representar esse Hamlet, é estritamente análoga dessa na qual
nós mesmos estamos interessados em nosso próprio inconsciente, é isso pelo
que nosso imaginário, quero dizer nossa relação com nosso próprio corpo (ig­
noro parece a existência de corpos, tenho uma teoria de análise incorpórea, é o
que se descobre, ao menos, ao ouvir a irradiação do que articulo aqui, a uma
certa distância!) o significante, para dizer a palavra é nós que lhe fornecemos o
material (é isso mesmo que ensino e que passo meu tempo a lhes dizer), é com
nossos próprios membros -o imaginário é isto- que nós fazemos o alfabeto
deste discurso que é inconsciente e, bem entendido, cada um de nós em rela­
ções diversas, pois nós não nos servimos dos mesmos elementos para sermos

294
tomados no inconsciente.
E é análogo, o ator empresta seus membros, sua presença, não simples­
mente como uma marionete, mas com seu inconsciente real, ou seja a relação
de seus membros com uma determinada história que é a sua. Cada um sabe
que, se há bons e maus atores, é na medida, eu creio, em que o inconsciente de
um ator é mais ou menos compatível com este empréstimo de sua marionete.
Ou ele se presta ou não se presta, é o que faz com que um ator tenha mais ou
menos talento, de gênio, até mesmo que ele é mais ou menos compatível com
determinados papéis, por que não! Mesmo aqueles que têm a gama mais ex­
tensa podem representar determinados papéis melhor que outros. Em outros
termos, certamente, o ator está ai. É na medida da conveniência de alguma
coisa que com efeito pode ter a relação a mais estreita com seu inconsciente,
com o que ele tem a nos representar, que ele dá a isto uma ponta que acrescen­
ta incontestavelmente alguma coisa, mas que está longe de constituir o essen­
cial daquilo que é comunicado, a representação do drama.
Isto nos abriria, eu creio, a porta bastante longe em direção à psicologia
do ator. Bem entendido, há leis de compatibilidade geral, a relação do ator com
a possibilidade da exibição é alguma coisa que coloca um problema de psicolo­
gia particular ao ator, o problema que pôde ser abordado da relação entre certas
texturas psicológicas e o teatro. Alguém escreveu há alguns anos um artigo que
dava esperança aquilo que ele chamava L 'histérie et le théatre. Eu o revi recen­
temente. Teremos talvez a oportunidade de falar disso com interesse, senão
sem dúvida com uma certa aquiescência.
Fechado este parèntesis, retomemos o fio de nossa conversa. Qual é
então esta estrutura em redor da qual sé compõe a colocação que é essencial
no que busco lhes-fazer compreender do efeito de Hamlett Esta colocação do
interior, no interior de que o desejo pode e deve tomar seu lugar.
No primeiro aspecto, vamos ver que aquilo que é dado comumente no
registro analítico como articulação, compreensão do que é Hamlet, é alguma
coisa que parece ir neste sentido.
E para reunir temáticas inteiramente clássicas, até mesmo banais, que eu
lhes fiz todas estas observações introdutórias? Vocês vão ver que não é nada
disso. Contudo, comecemos a abordar as coisas por aquilo que nos é habitual­
mente apresentado. E não creiam que seja tão simples, nem tão unívoco, uma
certa retidão é tudo que existe de mais difícil em manter para os próprios auto­
res no desenvolvimento de seu pensamento, pois todo o tempo há uma espécie
de fuga, de oscilação, da qual vocês vão ver alguns exemplos em tomo disso
que vou lhes enunciar.

295
Numa primeira aproximação que é aquela com a qual todo o mundo
concorda, Hamlet é aquele que não sabe o que quer, aquele que amargamente
se detém no momento em que ele vê partir as tropas do jovem Fortinbrás, que
passam num momento no horizonte da cena, e que é de repente atingido pelo
fato de aí estarem pessoas que vão fazer uma grande ação por três vezes nada,
por um pequeno pedaço da Polônia, e que vão sacrificar tudo, sua vida, en­
quanto que ele que ali está não faz nada, enquanto ele tem tudo para fazê-lo, «a
causa da vontade, a força e os meios». Como ele próprio diz: «Digo sempre, há
uma coisa que falta fazer»129.
Eis o problema que se coloca a cada um: Por que Hamlet não age? Por
que este will, este desejo, esta vontade, é alguma coisa que, nelé, parece suspensa,
que se quiserem, religa ao que Sir James Paget escreveu do histérico! «uns
dizem que ele não quer; ele diz que não pode, isso do qual se trata é que não
pode querer»129'"'. O que nos diz sobre isto a tradição analítica? A tradição
analítica diz que tudo repousa nesta ocasião sobre o desejo pela mãe, que este
desejo é recalcado, que é isto que é a causa, que o herói não saberia avançar
para a ação que lhe é comandada, a saber a vingança contra um homem que é
o atual possuidor, ilegítimo, ó quanto, pois é criminoso! do objeto maternal; e
que, se não pode golpear aquele que é designado à sua vingança, é na medida
em que ele mesmo, em suma, teria já cometido o crime que se trata de vingar.
É na medida, nos dizem, que por trás de tudo, existe a lembrança do
desejo infantil pela mãe, do desejo edípico do assassinato do pai, é nesta medi­
da que Hamlet se acha de alguma maneira cúmplice do atual possuidor, que
este possuidor é a seus olhos um beatus possidetis, do qual é cúmplice, que ele
não pode pois atacar este possuidor sem atacar a si mesmo. Mas será que é isto
que se quer dizer, ou então que ele não pode atacar este possuidor sem desper­
tar nele o desejo antigo, isto é, um desejo sentido como culpável, mecanismo
que mesmo assim é mais sensível.
Mas afinal de contas, será que tudo isto não permite, (fascinados diante
de uma espécie de insondável ligado a um esquema que para nós é envolvido
por uma espécie de personagem intocável, não dialético) que podemos dizer
que tudo isto em suma se inverte? Quero dizer que se poderia também, se
Hamlet se precipitasse imediatamente sobre seu padrasto, dizer que ele aí en­
contra, afinal de contas, a ocasião de estancar sua própria culpabilidade encon­
trando fora dele o verdadeiro culpado. Que mesmo assim, para chamar as coi-
129Hamlet: «[...) Je ne sais pas pourquoi, je vis encore, pour toujour dire, j'ai cette chose 1 faire.
puisque j'ai un motif, la volonté. (a force et les moyens de la faire». (IV, 4, 43)
JONES E., op.cir.. p. 53.

296
sas por seu nome, tudo o leva a agir, ao contrário, e vai no mesmo sentido, pois
o pai retoma do além sob a forma de um fantasma para lhe comandar este ato
de vingança, isto não tem nenhuma dúvida. 0 mandamento do supereu é aí de
alguma forma materializado e munido de todo o caráter sagrado daquele mes­
mo que retorna do além-túmulo, com o que lhe acrescentou de autoridade sua
grandeza, sua sedução, o fato de ser a vítima, o fato de ter sido verdadeiramen­
te atrozmente despossuído, não somente do objeto de seu amor, mas de sua
potência, de seu trono, da própria vida, de sua salvação, de sua felicidade eter­
na.
Existe isto, e além disso viria desempenhar no mesmo sentido alguma
coisa que se poderia chamar na ocasião “o desejo natural de Hamlet". Se, com
efeito, é alguma coisa que ele não pôde sentir ainda que ele está separado desta
mãe, que incontestavelmente, o mínimo que se possa dizer, conta para ele que
ele seja fixado à sua mãe -é a coisa mais certa e mais aparente do papel de
Hamlet. Portanto este desejo, que chamo nesta ocasião “natural”, e não sem
intenção, pois na hora em que Jones escreve seu artigo sobre Hamlet, ele deve
ainda pleitear diante do público esta dimensão do recalcamento e da censura, e
todas as páginas que ele escreve nesta ocasião tendem a dar a esta censura uma
origem social,
“É assim mesmo, curioso -curiously enough- diz ele, que as coisas
que evidentemente são as mais censuradas pela organização social, sejam os
desejos mais naturais.” Na verdade isto apresenta, com efeito, uma questão.
Por que afinal de contas, a sociedade não está organizada para a satisfação
destes desejos mais naturais, se é verdadeiramente da sociedade que surgiu a
dimensão do recalcamento e da censura.'Isto poderia talvez nos conduzir um
pouco mais longe, ou seja que é alguma coisa inteiramente sensível que as
coisas que nunca parecemos perceber, as necessidades da vida, da vida do
grupo, as necessidades sociológicas não são absolutamente exaustivas para
explicar esta espécie de interdição de onde surgiu, nos seres humanos, a di­
mensão do inconsciente.
Isto é tão pouco suficiente que foi preciso que Freud inventasse um mito
original, pré-social, não o esqueçamos, pois é ele que funda a sociedade, a
saber, Totem et Tabou, para explicar os princípios do recalcamento. E o co­
mentário de Jones na data na qual ele o fez e em que curiosamente, infeíizmen-
te, ele a conserva, esta gênese sociológica das proibições no nível do inconsci­
ente, muito exatamente da censura, muito exatamente da fonte do édipo, é um
erro da parte de Jones. É um erro talvez bastante deliberado, apologético, o
erro de alguém que quer convencer, que quer conquistar um certo público de

297
psico-sociólogos, não é absolutamente alguma coisa que não seja sem colocar
um problema.
Mas voltemos a nosso Hamlet. Nós o vemos no fim das contas com duas
tendências: a tendência imperativa que é para ele duplamente comandada pela
autoridade do pai e o amor que ele lhe dedica e a segunda de querer defender
sua mãe e de guardá-la, que devem fazê-lo ir no mesmo sentido para matar
Cláudio. Portanto duas coisas positivas, coisa curiosa, dariam um resultado
zero. Sei bem onde isto chega. Encontrei um exemplo muito bonito no momento
em que acabava de quebrar a pema: um encurtamento mais um outro encurta­
mento, o da outra pema, e não há mais encurtamento! E um exercício muito
bom para nós, pois tratamos de coisas desta ordem. E disto que se trata? Não,
não o creio.
Creio antes que nós nos empenhamos numa dialética ilusória, que nós
nos satisfazemos com alguma coisa que, afinal, não se justifica sem dúvida, isto
é que Hamlet está ai, que é preciso explicá-lo. Que nós tocamos mesmo assim
alguma coisa de essencial, ou seja, que existe uma relação que toma este ato
difícil, que toma a tarefa repugnante para Hamlet, que o põe efetivamente num
caráter problemático frente à frente com sua própria ação, e o que seja seu
desejo, que de alguma forma seja o caráter impuro de seu desejo que desempe­
nha o papel essencial, mas sem o conhecimento de Hamlet. Que de alguma
forma, é na medida em que sua ação não é desinteressada que ela é
kantianamente motivada, que Hamlet não pode cumprir seu ato, creio que a
grosso modo está aí alguma coisa que, com efeito, podemos dizer, mas que é,.
na verdade, quase acessível antes da investigação psicanalitica, e da qual te­
mos os traços -é o interesse da bibliografia de Jones mostrá-lo. Alguns, bem
antes que Freud tenha começado a articular [o édipo], em escritos de 1880 ou
1890, alguns autores o entreviram.
Contudo, creio que podemos analiticamente formular alguma coisa mais
justa e ir mais longe daquilo a que, creio, se reduz o que foi formulado analiti­
camente sobre este plano. E creio que para fazê-lo, nós só temos que seguir
verdadeiramente o texto da peça e nos aperceber daquilo que vai seguir. O que
vai seguir consiste em lhe fazer observar que aquilo que Hamlet trata, e todo o
tempo, aquilo com o que Hamlet se bate, é um desejo que deve ser olhado;
considerado aí onde ele está na peça, isto é muito diferente, bem longe do seu,
que é o desejo não por sua mãe, mas o desejo de sua mãe. Trata-se somente
disto. O ponto pivô, aquele sobre o qual seria preciso que eu leia com vocês
toda a cena, é aquele do encontro com sua mãe após a play scene, a cena da
peça que ele fez representar e com a qual ele surpreendeu a consciência do rei,

298
W W W Wk

e em que todo o mundo, cada vez mais angustiado a propósito de suas inten­
ções com ele, Hamlet, decide-se chamá-lo, para ter uma conversa com sua mãe.
Ele próprio, Hamlet, é tudo o que ele deseja. Nesta ocasião, ele vai, diz
ele, revolver o ferro na chaga, ele fala de «punhais»130, no coração de sua mãe.
E se passa esta longa cena, que é uma espécie de auge do teatro, esta coisa a
propósito de que, na última vez, eu lhes dizia que esta leitura está no limite do
suportável, em que ele vai conjurar pateticamente sua mãe a tomar consciência
do ponto em que ela está -sinto não poder ler toda esta cena, mas façam-no e
como se faz na escola, com a caneta na mão. Ele lhe explica: a que isto se
assemelha, esta vida! E, depois, tu não estás na primeira juventude isto deve
acalmar-se um pouco em ti! São coisas desta ordem que ele lhe diz nesta língua
admirável. São coisas que não se crê poder ouvir, de uma maneira que seja
mais penetrante e que responda melhor ao que Hamlet disparou como um dar­
do para dizê-lo à sua mãe, isto é, coisas que são destinadas a abrir-lhe o cora­
ção, e que ela sente como tais. Isto é, que ela mesma lhe diz: Tu me abres o
coração!13' E ela geme literalmente sob a pressão.
Tem-se mais ou menos certeza de que Hamlet tem trinta anos. Isto se
pode discutir, mas se pode dizer que há na cena do cemitério uma indicação,
alguma coisa da qual se pode deduzir que Hamlet tem um pouco menos, a mãe
tem pelo menos quarenta e cinco; se Hamlet tem um pouco menos, é bem claro
que como ele se lembra do pobre Yorick, que morreu há trinta anos e que ele
beijou nos lábios, pode-se dizer que ele tem trinta anos; é importante saber que
Hamlet não é um jovenzinho.
Depois, ele compara seu pai a Hiperíon, aquele sobre quem «os deuses
marcaram todos os seus selos». E ao lado, eis esta espécie de escória, rei de
andrajos e de trapos perdidos, um lixo, um faisão, uma cavala, este outro, e é
com isto que você rola no lixo! Trata-se apenas disto, e há lugar de articulá-lo,
vocês verão mais adiante o de que se trata, mas seja o que for, trata-se do desejo
da mãe, de uma conjuração de Hamlet que é uma demanda do estilo: retome
esta via, domine-se, tome, lhes dizia na última vez, a via dos bons costumes,
comece por não dormir mais com meu tio132. As coisas são ditas assim. E

'’“Hamlet: “I will speak daggers to her, but use none." (II, 3,376)
"‘La Reine: “0 Hamlet, thou hast cleft my heart in twain”, «Oh! Hamlet, tu as fendu mon coeur.»
(111,4,156)
'’’Hamlet: «[...] Rejetez-en loin de vous la portion la plus corrompue; vivez plus innocente avec
1’autre. Adieu n'entrezplus dans le lit de mononcle; si vous n’avez pas la vertu prenez du moins
son apparence...». (Ill, 4,157)

299
depois cada um sabe, diz ele, que o apetite vem com o comer, que este demô­
nio, o hábito, que nos liga às coisas piores, se exerce também no sentido contrá­
rio, isto é, aprendendo a vos manter melhor, isto lhe será cada vez mais fácil133.
Nós vemos o quê? A articulação de uma demanda que é feita por Hamlet
manifestamente em nome de alguma coisa que é da ordem, não simplesmente
da lei, mas da dignidade, e que é levada com uma força, um vigor, uma crueza
mesmo, da qual o mínimo que se pode dizer é que isto desencadeia de preferên­
cia o constrangimento. Chegado aí, enquanto o outro está literalmente ofegan­
te, a ponto que se pôde perguntar se aparição que se produz então do espectro
-pois você sabe que o espectro reaparece na cena do quarto de dormir- não é
alguma coisa que consiste em dizer a Hamiet: pega, pega! Vai, continua! Mas
também, até um certo ponto para lembrá-lo da ordem de proteger sua mãe
contra não-sei-o quê que seria uma espécie de transbordamento agressivo que
é aquilo diante do que a própria mãe num momento tremeu: «Será que queres
me matar? Até onde vais?»134 Enquanto seu pai vem lembrar-lhe isto, «Esguei­
ra-te entre ela e sua alma que está prestes a curvar-se»'35.
E chegado neste pico de que tratamos, há em Hamlet uma brusca recaída
que lhe faz dizer: e depois, no final das contas, agora que eu te disse tudo isto,
faz o que te dá na cabeça, e vai contar tudo isto a Cláudio! Ou seja, que tu vais
te deixar dar um beijinho na face, uma pequena carícia na nuca, uma coçadinha
no ventre, e tudo vai terminar como de hábito em desordem! E exatamente o
que é dito por Hamlet136.
Quer dizer que vemos ai a oscilação entre isto que, no momento da reca-,
ida do discurso de Hamlet, é alguma coisa que está nas próprias palavras, ou
seja o desaparecimento, o desvanecimento de seu chamado em alguma coisa
que é o consentimento ao desejo da mãe, as armas rendidas diante dé alguma
coisa que aparece inelutável; ou seja, que o desejo da mãe retoma aqui para ele
o valor de alguma coisa que de toda maneira, e de nenhuma maneira, não sabe­
ría ser sublevado.
Fui ainda mais lentamente do que podia supor. Serei forçado a parar as

m Hamlet:«[...] Abstenez-vous cette nuit, et ce premier effort vous rendra plus facile ['abstinence
de la nuit suivante. [...]». (Ill, 4,161)
''“La Reine’. «Que veux-tu done faire? Tu ne veux pas me tuer? Au secours!» (Ill, 4,113)
mL ’ombre: «[...] Oh! Mets-toi entre elle et le trouble de son âtne agitée...» (Ill, 4,113)
'“‘Hamlet: «Rien de ce que je vous dis de faire; gardez-vous en bien. Laissez-vous entrainer au lit
de ce roi luxurieux. Révélez tout ceei, et dites-lui que ma folie n’est pas réelle et que je ne fis
1’insenséque par artifice». (Ill, 4,181)

300
* w w MM a Ü dl dl di d dl
coisas num ponto que, vocês o verão, vai nos deixar diante do programa de
deciframento de Hamlet talvez ainda por dois de nossos encontros.
Para concluir hoje vou tentar mostrar-lhes a relação daquilo que estou
prestes a articular com o gráfico. É aí que quero levá-los, é isso, que além do
discurso elementar da demanda -na medida em que ele submete a necessidade
do sujeito ao consentimento, ao capricho, ao arbitrário do Outro como tal e que
assim ele estrutura a tensão e a intenção humana na fragmentação significante
- se isto que se passa além do Outro, se o discurso do sujeito é aquele que se
persegue na medida em que, além desta primeira etapa, desta primeira relação
com o Outro, o que se trata para ele de encontrar neste discurso que o modela,
que o estrutura, neste discurso já estruturado, é de reencontrar no interior disto
o que ele quer verdadeiramente... pois é a primeira etapa e a etapa fundamental
de toda referência do sujeito com relação ao que se chama sua will, sua própria
vontade.
Sua própria vontade, é primeiramente esta coisa, nós os analistas o sabe­
mos, a mais problemática, isto é, o que ele verdadeiramente deseja. Pois está
inteiramente claro que, além das necessidades da demanda, na medida em que
ela fragmenta e fratura este sujeito, o achado do desejo em seu caracter ingê­
nuo é alguma coisa que é o problema que tratamos constantemente. A análise
nos diz que, além desta relação com o Outro, esta interrogação do sujeito sobre
o que quer, não é simplesmente aquela do gancho interrogativo que é aqui
traçado no segundo plano do grafo, mas que há ai alguma coisa que se pode
reencontrar em alguma parte, está aí inscrito um código que é a relação do
sujeito à sua própria demanda. Há já um registro que é instaurado, graças ao
que o sujeito pode perceber o quê? "■
Não como se diz que sua demanda é
oral, ou anal, ou isto ou aquilo, pois
não é disto que se trata; que está numa
determinada relação privilegiada na
qualidade de sujeito. E é por isso que
inscreví assim, com uma certa forma
de pergunta, esta linha além do Ou­
tro onde se coloca a interrogação do
sujeito. É uma linha consciente. An­
tes que tenha havido uma análise e
analistas, os seres humanos se fize­
ram a pergunta e a faziam sem ces­
sar, acreditem, como em nossa épo-

301
ca, como após Freud, para saber onde estava sua verdadeira vontade.
É por isso que traçamos esta linha com um traço cheio. Ela pertence ao
sistema da personalidade, chame-na consciente ou pré-consciente, por ora não
vou entrar em mais detalhes.
Mas o que nos indica aqui o grafo? E que é evidentemente sobre esta
linha que em algum lugar vai se situar o x, que é o desejo; que este desejo tem
uma relação com alguma coisa que deve situar-se sobre a linha de retomo,
diante desta linha intencional. É nisto que ele é homólogo da relação do eu
[moi] com a imagem. O grafo nos ensina que este desejo que, flutuando aí, em
alguma parte, mas sempre neste além do Outro, este desejo é submetido a uma
certa regulação, a uma certa altura, se pode-se dizer, de fixação -que é deter­
minado. Determinado pelo quê? Por alguma coisa que se desenha assim, isto é,
de uma via de retomo do código do inconsciente em direção à mensagem do
inconsciente no plano imaginário. Que o circuito pontilhado, dito de outra for­
ma o inconsciente, que começa aqui (1) e que passando, ao nível da mensagem
S(^í) (2), vai ao nível do código inconsciente S y D (3), diante da demanda,
retoma em direção ao desejo, d (4), daí em direção ao fantasma, S y a (5); que
é, em outros termos, essencialmente com relação aquilo que regula sobre esta
linha, a altura, a situação do desejo, e numa via que é a via de retomo em
relação ao inconsciente (pois se vocês observarem como é feito o grafo, verão
que o traço não tem retomo) é neste sentido que se produz o circuito da forma­
ção do desejo ao nível do inconsciente.
O que é que podemos articular a este propósito, e nos segurarmos nesta
cena de Hamlet diante de sua mãe? E essencialmente isto que há momento em
que, de uma maneira mais completa e de maneira justamente a anular mais o
sujeito, a fórmula disto que o desejo do homem é o desejo do Outro, não seja aí
sensível, manifesto, realizado.
Em outros termos, isso do que se trata é que na medida em que é ao
Outro que o sujeito se endereça, não com sua própria vontade, mas com aquela
da qual ele é neste momento o suporte e o representante, isto é aquela do pai, e
também a da ordem, e também a do pudor, da decência -retomarei sobre estes
termos, eles não são dados aí para enfeite; já fiz intervir o demônio do pudor e
vocês verão que lugar ele terá na continuação- e que é na medida que ele
mantém diante da mãe este discurso além dela mesma que ele recai ao nível
estrito deste Outro diante da qual ele só pode curvar-se. Que traçado, se pode­
mos dizer, o movimento desta cena é mais ou menos este, que além do Outro a
conjuração do Sujeito tenta reunir ao nível do código, da lei, e que ele recai, não
em direção a um ponto em que alguma coisa o detém, onde ele próprio se

302
F
encontra com seu próprio desejo -ele não tem mais desejo, Ofélia foi rejeitada,
e veremos na próxima vez qua! é a função de Ofélia aí- mas tudo se passa, se
quiserem, para esquematizar, como se esta via de retomo viesse pura e sim­
plesmente da articulação do Outro, como se não pudesse receber outra mensa­
gem do que aqui é o significado do Outro, isto é, a resposta da mãe. “Eu sou o
que sou, comigo não há nada a fazer, sou uma verdadeira genital (no sentido do
primeiro volume de La Psychanalyse d'aujourd'hui), eu não conheço o luto".
A refeição dos funerais serve no dia seguinte às núpcias, «Economia,
economia!», a reflexão é de Hamlet. Para ela, ela é simplesmente uma buceta
aberta. Quando um parte, o outro chega, é disso que se trata. O drama de
Hamlet, a articulação de Hamlet, se é o drama do desejo, é, vimos ao longo
desta cena, o drama (porque não dizê-lo, é muito curioso que se sirva todo o
tempo de palavras como “objeto”, mas que a primeira vez que se o encontra,
não se o reconheça, do início até o fim não se fala senão disso!) que há um
objeto digno e um objeto indigno. “Senhora, um pouco de limpeza, eu lhe peço,
há mesmo assim uma diferença entre este deus e este lixo!” E disto que se
trata, e ninguém falou jamais de relação de objeto a propósito de Hamlet. Fica-
se confundido, trata-se entretanto somente disso! O discurso ao qual fiz alusão
recém, referente à verdadeira ou o verdadeiro genital, é um discurso coerente,
pois vocês podem ler aí que a característica do genital, é que ele tenha o luto
rápido. Está escrito no primeiro volume de La Psychanalyse aujourd'hui. E
um maravilhoso comentário da dialética de Hamlet.
Ora, só se pode ser surpreendido por isso. Vou um pouco rápido porque
é preciso que lhes dê uma percepção dos horizontes em direção aos quais eu
tendo - que se é bem de um problema de luto que se trata, eis que vemos entrar
pelo intermediário, e ligado ao problema do luto, o problema do objeto, o que
talvez nos permitirá dar uma articulação a mais ao que nos é trazido em Trauer
und Melancholiem. Isto é, que se o luto teve lugar -e nos dizem que é razão
de uma introjeção do objeto perdido- para que ele seja introjetado, talvez, há
uma condição prévia, ou seja, que ele seja constituído enquanto objeto e que,
desde então, a questão da constituição enquanto objeto não é pura e simples­
mente ligada à concepção, às etapas co-instintivas como elas nos são dadas.
Mas há alguma coisa desde logo que nos dá o índice de que nós estamos
aí no âmago do problema. E este algo sobre o qual terminei na última sessão e

,37FREUD S., Trauer und Melancholie (1916), G.W., t X, pp. 428-446, trad. fr. in
Métapsychologie, Paris, 1940, Gallimard.

303
sobre o qual vai desenrolar-se toda a continuação de nossos encontros, é isto: é
que o ponto chave, o ponto decisivo, a partir do qual Hamlet, se pode-se dizer,
segura o freio nos dentes -pois, com efeito, foi muito bem observado, após ter
por longo período perdido tempo, de repente Hamlet comeu o tigre, ele se
lança numa disputa que se apresenta em condições inverossímeis. Ele tem de
matar seu padrasto, propõem-lhe sustentar para este padrasto uma espécie de
aposta que vai consistir em se bater com florete, sem dúvida com um senhor,
do qual ele sabe que o mínimo para ele é que na hora em que isto se passa este
senhor não lhe quer muito bem, não é nem mais nem menos que o irmão de
Ofélia que vem pôr fim a seus dias, claramente numa perturbação onde não é
por nada que ele está; ele sabe em todo caso que este senhor quer seu mal. Ele,
Hamlet, ama muito este senhor, ele lhe diz, e nós aí voltaremos, e entretanto é
com ele que ele vai combater, por conta da pessoa que tem. em princípio que
massacrar. E neste momento, ele se revela um verdadeiro matador, absoluta­
mente sem precedente, ele não deixa o outro tocá-lo com o florete (é uma
verdadeira fuga que aí está, inteiramente manifesta), o ponto em que Hamlet
toma o freio nos dentes, é aquele sobre o qual terminei com meu pequeno plano
do cemitério e dessas pessoas que se engalfinham no fundo de uma tumba, o
que é mesmo assim uma cena estranha, inteiramente da lavra de Shakespeare
pois nos pK-Hamlet não há traços disso.
O que se passa e por que Hamlet foi se meter aí? Por que ele não pôde
suportar ver outro que não ele próprio ostentar justamente um luto transbor-
dante? As palavras que lhes digo, seria possível suportá-las cada uma com uma
leitura de Hamlet, mas é muito longo para que possa fazê-lo. Não há uma única
dessas palavras que não seja sustentada por alguma coisa que está em substân­
cia no texto. Ele o diz: Eu não suportei que ele faça tanta bazófia em tomo de
seu luto138. Ele o explica depois para desculpar-se de ter sido tão violento. Isto
é, diante do que Laertes fez, de saltar na tumba para abraçá-la sua irmã, de
saltar ele próprio em seguida para abraçar [Ofélia]. É preciso dizer que temos
uma curiosa idéia disso que deve se passar no interior; eu lhes sugeri na última
vez com meu pequeno quadro imaginário.
É pela via do luto dito de outra forma, e do luto assumido na mesma
relação narcísica que há entre o eu [mol] e a imagem do outro; é em função
daquilo que lhe representa de repente em um outro esta relação passional de

158Hamlet: «[...] Maisje me suis cru bravé par 1’ostentation desa douleur, et c’est làcequi a fait
monter ma colete à cet excés».

304
um sujeito com um objeto que está no fundo do quadro -a presença de $, que
põe diante dele repentinamente um suporte onde este objeto que, para ele, é
rejeitado por causa da confusão dos objetos, da mistura dos objetos- é na me­
dida em que alguma coisa ali, de repente, o prende, que este nível pode de
repente ser restabelecido que dele, por um curto instante, vai fazer um homem.
Ou seja, alguma coisa que vai fazer dele alguém capaz -por um curto instante
sem nenhuma dúvida, mas um instante que é suficiente para que a peça termine
- capaz de se bater e capaz de matar.
O que quero lhes dizer, é que não é que Shakespeare, bem entendido,
tenha dito todas estas belas coisas! É que, se ele colocou em algum lugar na
articulação de sua peça algo tão singular como o personagem de Laertes para
lhe fazer representar, no momento do ápice crucial da peça, este papel de exem­
plo e de suporte em direção ao qual Hamlet se precipita num abraço apaixona­
do, e de onde ele sai literalmente outro -este grito acompanhado de comentári­
os que vão no sentido que lhes digo que é preciso lê-los- que é aí em Hamlet
que se produz o momento em ele pode recobrar seu desejo.
O que lhes prova que estamos ai no coração da economia disso do qual
se trata. Certamente, isto tem somente um interesse limitado no final das con­
tas, e para mostrar-nos a que ponto são traçadas todas as avenidas da articula­
ção da peça. E é nessas avenidas que, a todo instante para nós, nosso interesse
é suspenso, é o que faz nossa participação no drama de Hamlet. Naturalmente,
isto não tem interesse em chegar aí a não ser porque houve antes quatro atos
que precederam esta cena do cemitério. Nestes quatro atos houve outras coisas
que nós vamos rever agora remontando ao que passou.
No primeiro plano, há o papel da ptày scene. O que é esta representação,
o que ela quer dizer? Por que Shakespeare a concebeu como indispensável?
Ela tem mais do que um motivo, mais do que um pretexto, mas o que tentare­
mos ver, é seu pretexto mais profundo.
Em resumo, penso ter-lhes indicado suficientemente hoje em qual senti­
do da experiência, da articulação da estrutura se coloca para nós o problema do
estudo de Hamlet, ou seja, o que nós, quando o terminarmos, poderemos guar­
dar dele de utilizável, de manuseável, de esquemático para nossa própria refe­
rência concernente ao desejo -qual? eu lhes direi, o desejo do neurótico a cada
instante de sua incidência. Eu lhe mostrarei este desejo de Hamlet. Foi dito, é o
desejo de um histérico. É talvez verdade. É o desejo de um obsessivo, pode-se
dizer, é um fato que ele está repleto de sintomas psicastênicos, severos até, mas
a questão não está aí.
Na verdade ele é os dois. Ele é pura e simplesmente o lugar deste dese-

305
jo. Hamlet não é um caso clínico. Hamlet, é claro, é demasiado evidente lem­
brar-lhes, não é um ser real, é um drama que permite situar, se quiserem, como
uma placa giratória onde se situa um desejo, onde nos poderemos reencontrar
todos os traços do desejo, isto é, oriéntá-lo, interpretá-lo no sentido do que se
passa sem o conhecimento de um sonho para o desejo do histérico, ou seja, este
desejo que o histérico é forçado a se construir. É por isso que eu direi que o
problema de Hamlet está mais perto do desejo do histérico, porque de alguma
forma o problema de Hamlet é reencontrar o lugar de seu desejo. Isto asseme­
lha-se muito ao que um histérico é capaz de fazer, quer dizer, de criar-se um
desejo insatisfeito.
Mas é também verdade que é o desejo do obsessivo, na medida que o
problema do obsessivo é suportar-se sobre um desejo impossível. Não é abso­
lutamente igual. Os dois são verdadeiros. Verão que faremos virar tanto de um
lado quanto de outro a interpretação dos propósitos e dos atos de Hamlet. O
que é preciso que vocês cheguem a captar, é alguma coisa mais radical do que
desejo de tal ou tal, que o desejo com o qual vocês aprisionam um histérico, ou
um obsessivo.
[...] quando ele se dirige ao personagem do histérico, ele diz que cada
um sabe que um histérico é incapaz de amar. Quando leio coisas assim, tenho
sempre vontade de dizer ao autor, e você, é capaz de amar? Ele diz que um
histérico vive no irreal, e ele? O médico fala sempre como se estivesse, ele,
bem mergulhado em suas botas, as botas do amor, do desejo, da vontade e de
tudo isso que se segue. É mesmo assim uma posição muito curiosa, e devemos
saber desde há um certo tempo que é uma posição perigosa. É graças a ela que
se toma posições de contratransferência, graça às quais não se compreende
nada do doente que tratamos. E exatamente desta ordem que são as coisas, e é
por isso que é essencial articular, situar onde se coloca o desejo.

306
Lição 16
8 de abril de 1959

Que me dêem meu desejo! Tal é o sentido que lhes disse que tinha Hamlet
para todos aqueles, críticos, atores ou espectadores, que dele se apoderam. Eu
lhes disse que era assim em razão do excepcional, do genial rigor estrutural, em
que o tema de Hamlet chega após uma elaboração tenebrosa, que começa nos
séculos XII e XIII em Saxo Grammaticus139 depois, em seguida, na versão
romanceada de Belleforest e, sem dúvida, num esboço de Kyd e um primeiro
esboço também, parece, de Shakespeare, para desembocar na forma que te­
mos dele.
Esta forma se caracteriza a nossos.olhos, com o método que emprega­
mos aqui, por algo que chamo a estrutura, que é precisamente aquilo em que
tento dar-lhes uma chave que lhes permita se situarem com certeza nesta for­
ma topológica que chamei o grafo, que se poderia talvez chamar o grama.
Retomemos nosso Hamlet. Penso que depois de lhes ter falado dele por
três vezes, vocês o leram ao menos uma vez. Tentemos apanhar, neste movi­
mento ao mesmo tempo simples e profúndamente marcado por todos os desvi­
os que permitiram a tantos pensamentos humanos aí se alojar, este movimento
de Hamlet. Se este pode ser ao mesmo tempo simples e se jamais terminado,
não é muito difícil saber por quê. O drama de Hamlet é o encontro com a

SAXO GRAMMATICUS, Historia Danica, Livre III. Imp. em latim em 1514. Trad. all.
Hans Sachs 1558, trad. fr. Belleforest, in Histoires tragiques, 1564, t. V.

307
morte.
Outros insistiram -fiz alusão a isto aliás nas nossas abordagens prece­
dentes- sobre o caráter prodigiosamente fixante, pertinente, da primeira cena
no terraço de Elsinor, desta cena sobre o que vai vir, que os sentinelas já viram
uma vez. É o encontro com o espectro, com esta forma de baixo da qual não se
sabe ainda o que ela é, o que ela traz, o que ela quer dizer.
Coleridge diz em suas notas sobre Hamlet que são tão bonitas e que se
encontra facilmente nas Lectures on Shakespeare (volto a elas porque já lhes
dei talvez a impressão de maldizê-las, quero dizer que delas lhes dizendo que
afinal de contas Coleridge não faz senão encontrar-se aí, eu parecia minimizar
o que ele dizia disso). Foi o primeiro que sondou, como em outros domínios, a
profundidade do que existe em Hamlet. A propósito desta primeira cena, o
próprio Hume, que era tão contra os fantasmas, [dizia que ele] acreditava na­
quele, que a arte de Shakespeare conseguia fazê-lo crer malgrado sua resistên­
cia. «A força que ele desdobrava contra os fantasmas, diz ele, é semelhante à
de um Sansão. E aí o Sansão é posto por terra».
Está claro que é bem porque Shakespeare aproximou-se muito de perto
de alguma coisa que não era o ghost, mas que era efetivamente este encontro
não com o morto, mas com a morte, que em suma é o ponto crucial desta peça.
O andar de Hamlet diante da morte, é daí que devemos partir para conceber o
que nos é prometido desde esta primeira cena em que o espectro aparece no
próprio momento em que se diz que ele apareceu, «The bell then beating one,
o sino soando uma hora»1'*0.
Esse «one» nós o encontraremos no fim da peça, quando, depois de
contornado o caminho, Hamlet se encontra bem próximo de praticar o ato que
deve ao mesmo tempo terminar seu destino e onde, de algum modo, ele avança
fechando os olhos em direção àquele que ele deve atingir, dizendo a Horácio, e
não é em qualquer momento que ele termina por dizer-lhe: «O que é matar um
homem, O tempo de dizer one»141.
- Evidentemente, para encaminhar-se ele toma caminhos transversos, ele
faz como se diz Técole buissonnière*. O que me permite pedir emprestado
uma palavra que está no texto. Trata-se de Horácio a quem, todo modesto e

’ N.d.T.: Faire l 'école buissonnière: fazer gazeta.


140 Hamlet (1,1,39).
141 Hamlet: «[...] Et la vied’unhomme netientqu’a un mot». (V,2,74)

308
todo gentil, quando ele vem lhe trazer seu auxílio, ele diz: «Eu faço aqui gazeta,
eu vagabundeio». Ninguém o crê, mas é isto com efeito o que sempre surpre­
endeu os críticos: este Hamlet, ele vagabundeia142. Que ele não vá em linha
reta? Em suma, o que tentamos fazer aqui, aprofundar, é saber porque ele aí é
assim.
Sobre isto o que fazemos não é algo que seja uma via ao lado, é uma via
que é diferente da que é seguida por aqueles que falaram antes de nós, mas ela
é diferente na medida em que ela reporta talvez a questão um pouco mais
longe. O que eles disseram não perde no entanto seu alcance, o que eles senti­
ram é o que Freud colocou imediatamente em primeiro plano. É que nesta ação
em causa, a ação de levar a morte, da qual não se sabe porque uma ação tão
urgente e no fim das contas tão breve a executar demanda tanto tempo a
Hamlet, o que nos dizem primeiramente, é que esta ação de levar a morte
encontra em Hamlet o obstáculo do desejo.
Isto é a descoberta, a razão e o paradoxo, uma vez que o que lhes mos­
trei e que permanece o enigma irresolvido de Hamlet, o enigma que tentamos
resolver, é justamente esta coisa em que parece que o espírito deva deter-se, é
que o desejo em causa, pois é o desejo descoberto por Freud, o desejo pela
mãe, o desejo enquanto suscita a rivalidade com aquele que a possui, este
desejo, meu deus, deveria ir no mesmo sentido que a ação.
Para começar a decifrar o que isto pode querer dizer, portanto afinal das
contas a função mítica de Hamlet que faz dele um tema igual ao de Édipo, o
que nos aparece de início, é que nós lemos no mito, o laço íntimo que existe em
suma entre este assassinato a perpetrar, este assassinato justo, este assassina­
to que ele quer cometer-não há conflito nele de direito ou de ordem, referente,
como o sugeriram certos autores, eu lhes lembrei, os fundamentos da execução
da justiça; não há ambigüidade nele entre a ordem pública, a mão da lei, e as
tarefas privadas; ele não tem dúvida que este assassinato é aí toda a lei, este
assassinato não faz questão- e sua própria morte. Este assassinato não se
executará a não ser quando Hamlet é golpeado de morte, neste curto intervalo

142 Horatio: «A truant disposition, good my lord». (1,2,169.) Atenção, Lacan passa aqui de
Horácio a Hamlet. A palavra é de Horácio mas Lacan atribui nela a verdade que recepta à posição
de Hamlet. (N. d. E.)

309
que lhe resta entre esta morte recebida e o momento em que ele se perde nela.
É pois daí que é preciso partir. Deste encontro ao qual podemos dar todo
seu sentido. O ato de Hamlet se projeta, se situa em seu termo no encontro
último de todos os encontros, neste ponto em relação ao sujeito tal como tenta­
mos aqui articulá-lo, defini-lo, ao sujeito porquanto ele não veio ainda à luz-
sua vinda é retardada na articulação propriamente filosófica- ao sujeito tal
como Freud nos ensinou que ele é construído. Um sujeito que se distingue do
sujeito do qual a filosofia ocidental fala desde que a teoria do conhecimento
existe; sujeito que não é o suporte universal dos objetos, e de alguma maneira
seu negativo, seu onipresente suporte; um sujeito enquanto fala e enquanto é
estruturado numa relação complexa com o significante que é muito exatamente
o que nós tentamos articular aqui.
E para representá-lo uma vez mais, se tanto é que o ponto entrecruzado
da intenção da demanda e da cadeia significante se faz pela primeira vez no
ponto A que definimos como o grande Outro enquanto lugar da verdade, quero
dizer enquanto lugar onde a palavra se situa tomando lugar, instaura esta ordem
evocada, invocada cada vez que o sujeito articula alguma coisa, cada vez que
ele fala e que ele faz este algo que se distingue de todas as outras formas
imanentes de cativação em que de um em relação ao outro nada equivale ao
que na palavra instaura sempre este elemento terceiro, ou seja, este lugar do
Outro em que a palavra, mesmo mentirosa, inscreve-se como verdade.
Este discurso para o Outro, esta referência ao Outro, prolonga-se além,
nisto que ela é retomada a partir do Outro para constituir a pergunta: O que eu
quero? ou mais exatamente a pergunta que se coloca ao sujeito sob uma forma
já *negativa*: O que queres? A questão daquilo que, além desta demanda alie­
nada no sistema do discurso enquanto ele está aí, repousando no lugar do Ou­
tro, o sujeito prolongando seu entusiasmo se pergunta o que ele é como sujeito
e onde ele tem em suma a reencontrar o quê além do lugar da verdade? O que
o próprio gênio -não da língua mas da metáfora extrema que estende diante de
certos espetáculos significativos a se formular- chama de um nome que nós
reconheceremos aqui na passagem, a hora da verdade.
Pois não esqueçamos, num tempo em que toda filosofia empenhou-se
em articular o que liga o tempo ao ser, que é inteiramente simples perceber-se
que o tempo, em sua própria constituição, passado-presente-futuro (os da gra­
mática) se situa, e nada mais do que ao ato da fala. O presente é o momento
em que falo e nada mais. Nos é estritamente impossível conceber uma

310
temporalidade em uma dimensão animal, isto é, numa dimensão do apetite. 0 b,
a, ba da temporalidade exige mesmo a estrutura na linguagem. Neste além do
Outro, neste discurso que não é mais discurso para o Outro, mas discurso do
Outro propriamente falando, no qual vai se constituir esta linha rompida de
signifícantes do inconsciente; neste Outro no qual o sujeito avança com sua
questão como tal, o que ele visa no último termo, é a hora deste encontro com
ele mesmo, desde encontro com seu querer, deste encontro com alguma coisa
que nós vamos no último termo tentar formular, e do qual nós não podemos
mesmo dar imediatamente os elementos, se tanto é mesmo assim que certos
signos aqui os representam e são de alguma forma para vocês a referência, a
pré-figura do escalonamento daquilo que nos espera no que se pode chamar os
passos, as etapas necessárias da questão.
Observemos mesmo assim que se Hamlet (que, eu lhes disse, não é isto
ou aquilo, não é um obsessivo pela boa razão primeiramente que ele é uma
criação poética. Hamlet não tem neurose, Hamlet nos demonstra a neurose, e
isto é diferente que o sê-lo) se Hamlet, por certas frases, quando nós nos olha­
mos em Hamlet, sob uma certa iluminação do espelho, nos aparece mais próxi­
mo do que tudo da estrutura do obsessivo, é já nisto que a função do desejo -
pois está aí a pergunta que nos fazemos a propósito de Hamlet- nos aparece
justamente nisto que é revelador do elemento essencial da estrutura, que é
aquilo justamente valorizado ao máximo pela neurose obsessiva, é que uma das
funções do desejo, a função maior no obsessivo, é, nesta hora do encontro
desejado, mantê-la à distância, esperá-la. E aqui emprego o termo que Freud
oferece em Inhibition, Symptôme, Angoisse, Erwartung, que ele distingue
expressamente de abwarten, “estender o dorso”; Erwartung, “o esperar” no
sentido ativo é também “fazê-la esperar”. Este jogo com a hora do encontro
domina essencialmente a relação do obsessivo. Sem dúvida, Hamlet nos de­
monstra toda esta dialética, todo este desdobramento que joga com o objeto sob
muitas outras faces ainda, mas esta é a mais evidente, a que aparece na super­
fície e que surpreende, que dá o estilo desta peça, e que dela faz sempre o
enigma.
Tentemos ver agora em outros elementos as coordenadas que a peça
nos dá. O que distingue a posição de Hamlet com relação em suma a uma
trama fundamental? O que faz esta variante do Édipo tão surpreendente em
seu caráter de variação? Pois enfim, Édipo, ele, não fazia tantas maneiras,
como observou Freud na pequena nota de explicação a qual se recorre quando

311
desistimos de adivinhar, a saber: “Meu Deus, tudo se degrada, nós estamos no
período de decadência, nós, os modernos, nós nos torcemos seiscentas vezes antes
de fazer o que os outros, os bons, os bravos, os antigos, faziam direito!” Não é uma
explicação, esta referência à idéia de decadência deve nos ser suspeita, nós pode­
mos tomá-la por outros lados. Creio que convém reportar a questão mais longe.
Se é verdade que os modernos estejam aí, isto deve ser por uma razão -
pelo menos se somos psicanalistas- outra que pela razão que eles não têm os
nervos tão sólidos quanto tinham seus pais. Não! Já atraí a atenção de vocês
sobre o que é essencial, Édipo, ele, não tinha que vacilar trinta e seis vezes
diante do ato, ele o tinha feito antes mesmo de pensar nisso e sem sabê-lo. A
estrutura do mito de Édipo é essencialmente constituída por isto.
Pois bem, está inteiramente claro e evidente que há aqui alguma coisa,
alguma coisa que é justamente isto pelo qual eu lhes introduzí este ano -e não
é por acaso- nesta iniciação ao grama como chave do problema do desejo.
Lembrem-se do sonho muito simples do Principe du plaisir et de la réalité, o
sonho em que o pai morto aparece -e eu lhes marquei sobre a linha superior, a
linha de enunciação no sonho: «ele não sabia». Esta bem-aventurada ignorân­
cia daqueles que mergulharam no drama necessário que resulta do fato que o
sujeito que fala é submisso ao significante, esta ignorância está aqui. Faço-os
observar en passant que ninguém explica a vocês porquê.
Pois enfim, se o pai adormecido no jardim foi ferido pelo fato que lhe
derramaram no ouvido -como se diz em Jarry- este delicado suco, «hébénon»,
parece que a coisa deveu escapar-lhe, pois nada nos diz que tenha saído de seu
sono para constatar o dano, que os dartros que cobriram seu corpo não foram
jamais vistos a não ser por aqueles que descobriram seu cadáver, e portanto
isto supõe que no domínio do além tem-se informações muito precisas sobre a
maneira pela qual se chegou a isto, o que pode com efeito ser uma hipótese de
princípio, o que não é alguma coisa que devíamos de chofre ter como certo.
Tudo isto para sublinhar o arbitrário da revelação inicial, daquela sobre a
qual fala todo o grande movimento de Hamlet. A revelação pelo pai da verdade
sobre sua morte distingue essencialmente uma coordenada do mito do que se
passa no mito de Édipo. Alguma coisa foi erguida, um véu, aquele que pesa
justamente sobre a articulação da linha inconsciente, o véu que nós mesmos
tentamos levantar, não sem que ele nos dê, vocês sabem, o que fazer. Pois é
claro que deve haver alguma função essencial, eu diria, para a segurança do
sujeito enquanto ele fala. Para que nossas intervenções para restabelecer a

312
coerência da cadeia significante ao nível do inconsciente apresentem todas estas
dificuldades, recebam da parte do sujeito toda esta oposição, esta recusa, é alguma
coisa que nós chamamos resistência e que é o pivô de toda a história da análise.
Aqui, a questão está resolvida. O pai sabia, e pelo fato que ele sabia,
Hamlet também sabe. Isto quer dizer que ele tem a resposta. Ele tem a respos­
ta e ele não pode ter senão uma resposta. Ela não é obrigatoriamente dizível em
termos psicológicos; quero dizer que isto não é uma resposta forçosamente
compreensível, embora bem menos que lhes transtornar, mas isso não é menos
uma resposta do tipo fatal.
Esta resposta tentemos ver o que é. Esta resposta que é em suma a
mensagem no ponto em que se constitui na linha superior, na linha do inconsci­
ente; esta resposta que já simbolizei para vocês antes e não, bem entendido,
sem ser forçado por este fato a lhes pedir para me dar crédito. Mas é mais
fácil, mais honesto pedir a alguém para lhe dar crédito sobre alguma que não
tem, de início, nenhum tipo de sentido. Isto não os compromete com nada, se
não for talvez para buscá-lo, o que deixa assim mesmo uma liberdade de criá-
lo por vocês mesmos. Esta resposta, comecei a articulá-la sob a forma seguin­
te: significante, S; o que distingue a resposta no nivel da linha superior daquela
ao nível da linha inferior. Ao nível da linha inferior a resposta é sempre o signi­
ficado do Outro, s(A) é sempre em relação a esta palavra qué se desenrola ao
nível do Outro e que modela o sentido do que quisemos dizer. Mas quem terá
querido dizer isto ao nível do Outro? Está significado ao nível do discurso sim­
ples, mas ao nível do além deste discursp, ao nível da questão que o sujeito se
coloca a ele mesmo, que quer dizer, afinal de contas: o que eu me tomei em
tudo isto? A resposta eu lhes disse, é o significante do Outro com a barra- S(X)-
Há mil maneiras de começar a desenvolver para vocês o que este sím­
bolo inclui. Mas nós escolhemos hoje, uma vez que estamos em Hamlet, a via
clara, evidente, patética, dramática. E é isto que faz o valor de Hamlet, que nos
é dado aceder ao sentido de S(X).
O sentido daquilo que Hamlet conhece por este pai, está aí diante de nós,
muito claro, é o irremediável, absoluta, insondável traição do amor. Do amor o
mais puro, o amor deste rei que talvez, bem entendido, como todos os homens
pode ter sido um grande vadio, mas que, com este ser que era sua mulher era

141 Hamler. «Qu’il nepermettait pas même aux vents du ciei d’importuner son visage d’un souffle
trop violent». (1,2,139)

313
aquele que ia até «afastar as rajadas de vento sobre seu rosto»143, ao menos
segundo o que diz Hamlet. É a absoluta falsidade daquilo que apareceu a Hamlet
como o próprio testemunho da beleza, da verdade, do essencial. Aí está a res­
posta. A verdade de Hamlet é uma verdade sem esperança. Não há rastro em
todo o Hamlet de uma elevação em direção a algo que estaria além, resgate,
redenção.
Ele já nos disse que o primeiro encontro vinha de baixo. Esta relação
oral, infernal, a este Achéron'1^ que Freud escolheu pôr em emoção na falta de
poder dobrar as potências superiores, é aí que se situa Hamlet da maneira a
mais clara. Mas isto é claro é apenas uma observação bem simples, bem evi­
dente, a qual é bastante curioso ver que os autores -não se sabe por que pudor,
não se deve alertar as almas sensíveis!- não valorizam a propósito de Hamlet.
Eu não lhes dou afinal de contas a não ser como uma marcha na ordem do
patético, na ordem do sensível, por penoso que isso possa ser. Deve haver
alguma coisa em que a razão possa formular-se mais radicalmente, o motivo de
toda esta escolha, porque afinal de contas, toda conclusão, todo veredicto, por
radical que seja, a tomar uma forma acentuada na ordem do que se chama
pessimismo, é ainda alguma coisa que é feita para nos ocultar aquilo de que se
trata.
S(X), isto não quer dizer: tudo aquilo que se passa ao nível de A não vale
nada, isto é, toda verdade é falaciosa. Está aí alguma coisa que pode fazer rir
nos períodos de divertimento que seguem os pós-guerras em que se faz, por
exemplo, uma filosofia do absurdo que serve sobretudo nas caves. Tentemos
articular alguma coisa de mais séria, ou de mais leve. Assim como com a barra,
o que isto quer dizer essencialmente? Creio que é o momento de dizê-lo, ainda
que, bem entendido, isto vá aparecer sob um ângulo bem particular, mas eu não
o creio contingente.
S(X) quer dizer isto: é que se A, o grande Outro, não é um ser mas o
lugar da palavra, S(^) quer dizer que neste lugar da palavra, em que repousa
sob uma forma desenvolvida, ou sob uma forma [disfarçada], o conjunto do
sistema dos significantes, isto é de uma linguagem, falta alguma coisa. Alguma
coisa que pode não ser senão que um significante faz falta aí. O significante
que faz falta ao nível do Outro, e que dá seu valor o mais radical a este S(X), é 144

144L'Interpretation desrêves, op.cit.

314
isto que é, se posso dizer, o grande segredo da psicanálise, isto pelo que a
psicanálise traz alguma coisa, por onde o sujeito que fala, enquanto que a expe­
riência da análise nos revela como estruturado necessariamente de uma deter­
minada maneira, se distingue do sujeito de sempre, do sujeito ao qual uma evo­
lução filosófica que, afinal de contas, pode bem nos aparecer numa certa pers­
pectiva de delírio, fecundo, mas de delírio na retrospecção, é este o grande
segredo: não há Outro do Outro.
Em outros termos, para o sujeito da filosofia tradicional, este sujeito se
subjetiva ele próprio indefinidamente. Se eu sou enquanto penso, sou enquanto
penso que sou, e assim por diante, isto não tem nenhuma razão de se deter. A
verdade é que análise nos ensina alguma coisa inteiramente diferente. E que já
percebemos que não é tão certo que eu sou enquanto eu penso, e que só podí­
amos estar certos de uma coisa, é que eu sou enquanto eu penso que sou. Isto
certamente. Somente o que a análise nos ensina, é que eu não sou aquele que
justamente está prestes a pensar que eu sou, pela simples razão que, pelo fato
que eu penso que eu sou, eu penso no lugar do Outro; sou um outro que não
aquele que penso que eu sou.
Ora, a questão é que não tenho nenhuma garantia de nenhuma maneira
que este Outro, pelo que há em seu sistema, possa me devolver (se posso
exprimir-me assim), o que lhe dei: seu ser e sua essência de verdade. Não há,
eu lhes disse, Outro do Outro. Não há no Outro nenhum significante que possa
na ocasião responder por aquilo que sou. E para dizer as coisas de uma manei­
ra transformada, esta verdade sem esperança da qual há pouco lhes falava,
esta verdade que é aquela que encontramos ao nível do inconsciente, é uma
verdade sem figura, é uma verdade fechada, uma verdade dobrável em todos
os sentidos. Nós sabemos demais, é uma verdade sem verdade.
E é bem isto que faz o maior obstáculo àqueles que se aproximam de
fora de nosso trabalho e que, diante de nossas interpretações, porque eles não
estão na via, conosco, em que elas são destinadas a levar seu efeito que não é
concebível senão de maneira metafórica, e na medida em que elas jogam e
repercutem sempre entre as duas linhas, não podem compreender o de que se
trata na interpretação analítica.
Este significante, o qual o Outro não dispõe, se podemos falar, é certo
que ele está, é claro, em algum lugar. Eu lhes fiz este pequeno grama para que
vocês não percam o norte. Eu o fiz com todo o cuidado que pude, mas certa­
mente não para aumentar seu embaraço. Vocês podem reconhecer em toda

315
parte onde está a barra, o significante escondido, aquele que o Outro não dis­
põe, e que é justamente o que lhes diz respeito; é o mesmo que vocês fazem
entrar no jogo enquanto que vocês, pobres bestas, desde que nasceram, são
tomados neste sagrado assunto do logos. E, a saber, a parte de vocês que foi
sacrificada, e sacrificada não pura e simplesmente, fisicamente como se diz,
realmente, mas simbolicamente, e que não é nada, esta parte de vocês que
tomou função significante. E é por isso que há uma única e não trinta e seis, é
muito exatamente esta função enigmática que chamamos o falo, que está aqui
alguma coisa do organismo da vida, deste acesso, em que o acesso vital -sobre
o qual vocês sabem que eu não acho que seja preciso usar a torto e a direito,
mas que uma vez bem cercado, simbolizado, posto aí onde está, e sobretudo aí
onde ele serve, aí onde efetivamente no inconsciente ele é tomado- toma seu
sentido.
O falo, a turgescência vital, este algo de enigmático, de universal, mais
macho do que fêmea, e entretanto do qual a própria fêmea pode tomar-se o
símbolo, eis do que se trata, e aquilo que, porque no Outro ele está indisponível,
aquele que -embora seja esta vida mesma que o sujeito faz significante- não
vem absolutamente garantir a significação do discurso do Outro.
Dito de outra forma, por sacrificada que ela seja, esta vida não lhe é,
pelo Outro, devolvida. É porque é daí que Hamlet parte, isto é da resposta do
dado, que todo o percurso pode ser varrido, que esta revelação radical vai levá-
lo ao último encontro. Para atingi-lo, nós vamos agora retomar o que se passa
na peça de Hamlet.
A peça de Hamlet é, como vocês o sabem, a obra de Shakespeare e deve­
mos então prestar atenção ao que ele acrescentou a ela. Havia já um percurso
bastante belo, mas é preciso acreditar que ele oferecia -e aí seria suficiente que ele
se oferecesse para que fosse tomado- um caminho bastante longo a percorrer
para nos mostrar o que se chama país, para que Shakespeare o tenha percorrido.
Já lhes indiquei na última vez as questões que coloca a play scene, a
cena dos atores, retomarei a ela. Gostaria hoje de introduzir um elemento es­
sencial, essencial porque ele se refere aquilo do qual nos reaproximamos de­
pois de ter estabelecido a função das duas linhas, é a saber o que jaz no inter­
valo, aquilo que, se posso dizer, faz para o sujeito a distância que ele pode
manter entre as duas linhas para aí respirar durante o tempo que lhe resta viver,
e isto é o que chamamos o desejo.
Eu lhes disse qual pressão, qual abolição, qual destruição este desejo

316
sofreu entretanto, daquilo que ele se encontra com este algo do. Outro real, da
mãe tal como ela é, esta mãe como tantas outras, ou seja este algo de estruturado,
este algo que é menos desejo do que glutonaria, até mesmo engolimento, este
algo que evidentemente, não se sabe porque, mas afinal de contas o que impor­
ta! neste nível da vida de Shakespeare, foi para ele a revelação.
O problema da mulher certamente, nunca ficou sem estar presente em
toda a obra de Shakespeare, e havia as alegres antes de Hamlet, mas ainda as
abissais, ferozes e tristes, só aparecem a partir de Hamlet.
Troilo e Criseida que é uma maravilha pura e que não se valorizou
certamente, nos permite talvez ir mais longe no que Hamlet pensou naquele
momento. A criação de Troilo e Criseida é, creio, uma das mais sublimes que
se possa encontrar na obra dramática. Ao nível de Hamlet e, ao nível do diálo­
go que se pode chamar o paroxismo da peça, entre Hamlet e sua mãe, eu já
lhes disse a última vez o sentido deste movimento de conjuração frente à frente
com a mãe que é mais ou menos: “não destrói a beleza, a ordem do mundo, não
confunde Hiperíon (é seu pai que ele designa assim) com o ser o mais abjeto145,
e a recaída desta conjuração diante do que ele sabe ser a necessidade fatal
desta espécie de desejo que não sustenta nada, que não retém nada.
As citações que eu poderia neste lugar lhes fazer do que é o pensamento
de Shakespeare com relação a isto são excessivamente numerosas. Só lhes
darei esta, do que levantei durante as férias, em um outro contexto. Trata-se de
alguém que é bastante amoroso, mas também é preciso dizê-lo, bastante mali­
cioso, aliás um bravo homem. Está na Twelfth Night, o herói, dialogando com
uma moça que, para conquistá-lo -ainda que nada no herói, o Duque como o
chamam, ponha em dúvida que suas inclinações sejam as mulheres- porque é
de sua paixão que se trata, aproxima-se dele, disfarçada de rapaz, o que certa­
mente é um traço singular para se fazer valer como moça, pois ela o ama.
Não é por nada que eu lhes dou estes detalhes, é porque é um aporte em
direção a algo que vou introduzir a vocês agora, ou seja, a criação de Ofélia.
Esta mulher, Viola, é justamente anterior a Ofélia. A Twelfth Night é de dois
anos aproximadamente anterior à fomentação de Hamlet, e eis muito exata­
mente o exemplo da transformação do que se passa em Shakespeare ao nível
de suas criações femininas que, como vocês o sabem, estão entre as mais

"'Hamlet (111,4.54-88).

317
fascinantes, as mais atraentes, as mais cativantes, as mais turvas ao mesmo
tempo, que fazem o caráter verdadeira e imortalmente poético de toda uma
face de seu gênio. Esta moça-rapaz, ou rapaz-moça, eis o próprio tipo de cria­
ção em que aflora, em que se revela algo que vai nos introduzir a isso que vai
agora ser nosso propósito, nosso passo seguinte, ou seja o papel do objeto no
desejo.
Depois de ter tomado esta ocasião para lhes mostrar a perspectiva na
qual se inscreve nossa questão sobre Ofélia, eis o que o Duque, sem saber que
a pessoa que está diante dele é uma moça, e uma moça que o ama, responde às
perguntas embriagadoras da moça que, quando ele se desespera, lhe diz; «Como
você pode se queixar? Se alguém estivesse perto de você que suspirasse por
seu amor, e que você não tivesse nenhuma vontade de amar (o que é o caso,
por isso ele sofre), como poderia acolhê-lo? Não é preciso então querer mal
aos outros por aquilo que seguramente você mesmo faria»146.
Ele, que ali está cego e no enigma, ele lhe diz neste momento uma gran­
de frase referente à diferença do desejo feminino e do desejo masculino: «Não
há mulher que possa suportar o batimento de uma paixão tão violenta como
aquela que possui meu coração. Nenhum coração de mulher pode assim suportá-
lo tanto. Elas carecem dessa suspensão [,..]»147. E todo seu desenvolvimento é
aquele com efeito de alguma coisa que, do desejo, faz essencialmente esta
distância que existe, esta relação particular com o objeto sustentado como tal,
que é alguma coisa justamente que é o que é exprimido no símbolo a que lhes
coloco aqui sobre esta linha de retorno do X do querer. É a saber a relação
$ v a, a, o objeto enquanto ele é, se podemos dizer, o cursor, o nível em que se
situa, se coloca aquilo que é no sujeito, propriamente falando, o desejo.
Gostaria de introduzir o personagem de Ofélia aí beneficiando daquilo
que a crítica filológica e textual nos trouxe a respeito, se posso dizer, de seus
antecedentes. Vi sob a pena de não sei que cretino um vivo movimento de bom
humor que lhe sobreveio no dia em que, não especialmente precipitado pois ele
deveria sabê-lo há tempos, ele percebeu que em Belleforest há alguém que
desempenha o papel de Ofélia.
Em Belleforest ficamos enfadados também com o que acontece a Hamlet,
ou seja, que ele parece estar louco, mas assim mesmo não estamos mais tran-

Shakespeare, La nuit des rois (11,4.85-89).


147 Id. (11,4,90-100).

318
qüilizados do que isto, pois está claro que este louco sabe bastante bem o que
ele quer, e o que ele quer, é o que não se sabe, são muitas coisas; o que ele quer,
é a questão para todos os outros. Enviam-lhe uma moça de vida fácil destinada,
atraindo-o a um canto da floresta, a captar suas confidências enquanto alguém
que está escutando poderá saber um pouco mais. O estratagema fracassa,
como convém, graças, eu creio, ao amor da moça. O que é certo, é que o
crítico em questão estava muito contente em encontrar este tipo de arque-
Ofélia para aí reencontrar a razão das ambiguidades do caráter de Ofélia.
Naturalmente, não vou reler o papel de Ofélia, mas esta personagem tão
eminentemente patética, desconcertante, da qual se pode dizer que é uma das
grandes figuras da humanidade, se apresenta como vocês o sabem sob traços
extremamente ambíguos. Ninguém pôde jamais declarar ainda se ela é a pró­
pria inocência que fala ou que faz alusão a seus impulsos mais carnais com a
simplicidade de uma pureza que não conhece pudor, ou se é, ao contrário, uma
rameira pronta para todos os trabalhos. Os textos a respeito são um verdadeiro
jogo de espelhos de cotovias. Pode-se aí encontrar tudo e, na verdade, encon-
tra-se sobretudo um grande charme em que a cena da loucura não é o menor
momento. A coisa com efeito está inteiramente clara. Se, de um lado, Hamlet
se comporta com ela com uma crueza completamente excepcional que pertur­
ba, que como se diz, faz mal, e que a faz sentir como uma vítima, por outro lado
se sente bem que ela não é, e bem longe disto, a criatura desencarnada ou
descarnalizada que a pintura pré-rafaelita, que evoquei, fez dela. E inteiramen­
te outra coisa.
Na verdade somos surpreendidos que os preconceitos referentes ao tipo,
à natureza, à significação, aos costumes da mulher, estejam ainda tão ancora­
dos que se possa, a propósito de Ofélia, colocar-se uma questão semelhante.
Parece que Ofélia seja simplesmente o que é toda moça, que ela tenha ou não
transposto -afinal de contas nós não sabemos- o passo, tabu da ruptura de sua
virgindade. A questão me parece não ser, de nenhuma maneira, à propósito de
Ofélia, colocada. Na ocasião trata-se de saber porque Shakespeare trouxe
este personagem que parece representar uma espécie de ponto extremo sobre
uma linha curva que vai, de suas primeiras heroínas moças-rapazes, até alguma
coisa que vai reencontrar a fórmula na continuação, mas transformada sob
uma outra natureza.
Ofélia, que parece ser o auge de sua criação do tipo da mulher, no ponto
exato em que ela é ela própria este botão prestes a eclodir e ameaçado pelo

319
inseto roedor no coração do broto. Esta visão de vida prestes a eclodir, e de
vida portadora de todas as vidas, é assim aliás que Hamlet a qualifica, a situa
para repeli-la: «você será a mãe de pecadores»148, esta imagem justamente da
fecundidade vital, esta imagem para dizer tudo, de todas as maneiras nos ilustra
mais, creio, do que nenhuma outra criação, a equação que constatei em meus
cursos, a equação [moça] = falo. Está aí evidentemente alguma coisa que po­
demos reconhecer muito facilmente.
Não terei em conta coisas que, na verdade, me parecem simplesmente
um curioso encontro. Tive a curiosidade de ver de onde vinha Ofélia e, num artigo
de Boissacq do Dictionnaire étymologique grec'm, vi uma referência grega.
Shakespeare não dispunha dos dicionários que nós usamos, mas encontra-se
nos autores desta época coisas tão estupefacientes ao lado de ignorâncias sun­
tuosas, coisas tão penetrantes, e que reencontram as construções da crítica a
mais moderna, que posso bem nesta ocasião ter na conta daquilo que está nas
notas que eu esqueci.
Creio que, em Homero, se minha lembrança é boa, há otpeÀtO (ophelio'),
no sentido de “fazer engordar”, “inchar”; que otpeXto é empregado para a
“muda”, “fermentação vital” que se chama mais ou menos “deixar alguma
coisa mudar” ou “engrossar”. O mais estranho ainda, não podemos deixar de
ter em conta, é que no mesmo artigo, Boissacq, que é um autor que peneira
bastante severamente a ordenação de suas cadeias significantes, crê necessá­
rio fazer expressamente referência a este respeito, na forma verbal de otpaXXos
(ophallos), ao falo.
A confusão de Ofélia e de cpaXXos (phallos) não tem necessidade de
Boissacq para nos aparecer. Ela nos aparece na estrutura. E o que se trata
agora de introduzir, não é em que Ofélia pode ser o falo, mas se ela é, como nós
dizemos, verdadeiramente o falo, como Shakespeare lhe faz preencher esta
função?
Ora, é aqui que está o importante. Shakespeare leva sobre um plano
novo o que lhe é dado na lenda de Belleforest, ou seja que na lenda tal como ela
é trazida por Belleforest, a cortesã é a isca destinada a lhe arrancar seu segre-

14“ Hamlet: «Cet thee loa nunnery. Why wouldst thou be a breeds of sinners?» (111,1,122)
145 BOISSACQ E.. Dictionnaire étymologique de la langue grecque, Heidelberg, 1950, C. Winter.
Universitat Verlag.

320
do. Pois bem, transpondo isto ao nível superior que é aquele em se situa a
verdadeira questão, lhes mostrarei na próxima vez, que Ofélia está aí para
interrogar o segredo, não no sentido dos sombrios desígnios que se trata de
fazer Hamlet confessar, por aqueles que o cercam e que não sabem muito bem
de que ele é capaz, mas o segredo do desejo.
Nas relações com o objeto de Ofélia, na medida em que elas são
escandidas no decorrer da peça por uma série de tempo sobre o qual nos dete-
remos, algo se articula que nos permite captar, de uma maneira particularmente
viva, as relações do sujeito enquanto fala, isto é, do sujeito enquanto ele é
submetido ao encontro de seu destino, com algo que deve tomar, na análise e
pela análise, um outro sentido, este sentido ao redor do qual a análise gira e do
qual, não é por nada, a virada em que ela aproxima a propósito deste termo de
objeto tão prevalente, tão certamente muito mais insistente e presente como
jamais esteve em Freud, e ao ponto que alguns puderam dizer que a análise o
mudou de sentido, porquanto a libido, procuradora de prazer, tornou-se
procuradora de objeto.
Eu lhes disse, a análise está engajada numa via falsa, na medida em que
este objeto, ela o articula e o define de uma maneira que falta seu objetivo, que
não sustenta o de que se trata verdadeiramente na relação que se inscreve na
fórmula $ Qa, castrado, $ submetido a algo que lhes chamarei na próxima vez,
e lhes ensinarei a decifrar sob o nome de fading do sujeito, que se opõe à
noção de splitting do objeto, desta relação deste sujeito com o objeto como tal.
O que é o objeto do desejo? Um dia que não era outro, creio, senão a
segunda sessão deste ano, eu lhes fiz uma citação de alguém que, espero,
alguém terá identificado desde então, que dizia que o que o avarento lamenta
na perda de seu cofre nos ensinaria, se soubéssemos, muito sobre o desejo
humano. Era Simone Weil que dizia isto.
É isto que vamos tentar estreitar ao redor deste fio que corre ao longo da
tragédia entre Ofélia e Hamlet.

321
Lição 17
15 de abril de 1959

Em suma anunciei que hoje, a título de isca, falaria desta isca que é
Ofélia. E penso que vou manter minha palavra.
Este objeto, este tema, este personagem, vem aqui como elemento em
nosso propósito, o que seguimos já há quatro de nossos encontros, que é mos­
trar em Hamlet, a tragédia do desejo. Mostrar que se ela pode, propriamente
falando, ser qualificada assim, é em toda a medida em que o desejo como tal,
em que o desejo humano, o desejo com o qual tratamos na análise, o desejo que
nós estamos em posição, segundo o modo de nossa visada, de flexionar, ou
mesmo de confundir com outros temjos, este desejo não se concebe, não se
situa senão com relação às coordenadas fixas na subjetividade tais como Freud
demonstrou que elas fixam a uma certa distância um do outro, o sujeito e o
significante, o que põe o sujeito numa certa dependência do significante como
tal.
Isto quer dizer que não podemos nos dar conta da experiência analítica
partindo da idéia de que o significante seria por exemplo um puro e simples
reflexo, um puro e simples produto do que se chama no momento as relações
inter-humanas. E isto não é somente um instrumento, é um dos componentes
iniciais essencial de uma topologia, por conta da qual se vê o conjunto dos
fenômenos reduzir-se, aplainar-se de uma maneira que não nos permite, a nós
analistas, dar conta do que se pode chamar os pressupostos de nossa experiência.
Comecei neste caminho, tomando Hamlet como um exemplo de alguma
coisa que nos denuncia um sentido dramático muito vivo das coordenadas des-

323
ta topologia, e que faz com que seja a isto que atribuamos o excepcional poder
de cativação que tem Hamlet, que nos faz dizer que se a tragédia de Hamlet
tem este papel prevalecente nas preferências do público crítico, que se ela
é sempre sedutora para aqueles que dela se aproximam, isto se prende a
alguma coisa que mostra que o poeta pôs aí algum viés, algumas percepções de
sua própria experiência. E tudo o indica na espécie de volta que representa
Hamlet na obra shakesperiana, até mesmo também que sua experiência de
poeta no sentido técnico do termo lhe tenha pouco a pouco mostrado os
caminhos.
É por causa de certos desvios que pensamos aqui poder interpretar em
função de certos sinais, daqueles que são articulados em nosso grama, que
podemos apreender o alcance deste estudo certamente muito essencial. Uma
peripécia está enganchada de uma maneira que distingue a peça de Shakespeare
das peças precedentes ou dos relatos de Saxo Grammaticus, de Belleforest,
como das peças sobre as quais nós temos resumos fragmentários. Este desvio
é o da personagem de Ofélia que certamente está presente na história desde o
início -Ofélia, eu lhes disse, é a armadilha; desde a origem da lenda de Hamlet
é a armadilha em que Hamlet não cai, primeiramente porque o advertiram,
depois porque a própria isca, isto é a Ofélia de Saxo Grammaticus não se
presta a ela, apaixonada que ela está desde muito tempo, nos diz o texto de
Belleforest, pelo príncipe Hamlet.
Desta Ofélia, Shakespeare fez totalmente outra coisa. Na intriga talvez
ele não fez senão aprofundar esta função, este papel que tem Ofélia na lenda,
destinada que está a tomar, a cativar, a surpreender o segredo de Hamlet. Ela
é talvez alguma coisa que se toma um elemento dos mais íntimos do drama de
Hamlet que nos fez Shakespeare, do Hamlet que perdeu a rota, a via de seu
desejo. Ela é um elemento de articulação essencial neste caminho que percorre
Hamlet com aquilo que chamei na última vez, a hora de seu encontro mortal, do
cumprimento de um ato que ele cumpriu de alguma forma contra sua vontade.
Veremos ainda mais hoje até que ponto Hamlet é a imagem deste nível
do sujeito em que se pode dizer que é em termos de significantes puros que o
destino se articula, e que o sujeito é apenas de alguma forma o reverso de uma
mensagem que não é nem mesmo a sua.
O primeiro passo que fizemos nesta via foi então articular como a peça,
que é o drama do desejo na relação ao desejo do Outro, como ela é dominada
por este Outro que é aqui o desejo da maneira menos ambígua, a mãe, isto é o

324
sujeito primordial da demanda. Este sujeito que lhes mostrei que é o verdadeiro
sujeito onipotente sobre o qual sempre falamos na análise. Isto não é a [onipo­
tência] da mulher que tem nela esta dimensão da qual ela é a onipotência, dita
onipotência do pensamento. É da onipotência do sujeito como sujeito da primei­
ra demanda que se trata, e é a ela que esta onipotência deve sempre ser refe­
rida, eu já lhes disse em nossas primeiras tratativas.
Trata-se de alguma coisa, ao nível deste desejo do Outro, que se apre­
senta ao príncipe Hamlet, ou seja ao sujeito principal da peça, tal como tragé­
dia, o drama de uma subjetividade. Hamlet aí está sempre, e pode-se dizer
eminentemente mais do que em qualquer outro drama.
O drama se apresenta de uma maneira sempre dupla, sendo seus ele­
mentos ao mesmo tempo inter e intra-subjetivos. Portanto, na perspectiva mes­
ma do sujeito, do príncipe Hamlet, este desejo do Outro, este desejo da mãe se
apresenta essencialmente como um desejo que, entre um objeto eminente (en­
tre este objeto idealizado, exaltado que é seu pai) e este objeto depreciado,
desprezível (que é Cláudio, o irmão criminoso e adúltero) não escolhe.
Ela não escolhe em razão de alguma coisa que está presente como da
ordem de uma voracidade instintual que faz com que, nela, este sacrossanto
objeto genital de nossa recente terminologia se apresente como nada mais do
que como o objeto de um gozo que é verdadeiramente satisfação direta de uma
necessidade. Esta dimensão é essencial, ela é aquela que forma um dos pólos
entre os quais vacila a conjuração de Hamlet a sua mãe. Eu lhes mostrei na
cena em que, confrontado com ela, ele lhe lança este apelo para a abstinência
no momento em que, nos termos os mais crus, os mais cruéis, ele transmite a
mensagem essencial que o fantasma, seu pai, o encarregou de transmitir. Subi­
tamente este apelo fracassa e se volta; ele a remete ao leito de Cláudio, às
carícias do homem que não deixarão de fazê-la, uma vez mais, ceder.
Nesta espécie de queda, de abandono do fim da conjuração de Hamlet,
nós encontramos o termo mesmo, o modelo que nos permite conceber em que
ele, seu desejo, seu entusiasmo em direção a uma ação que ele arde em cum­
prir -o mundo inteiro toma-se para ele viva censura de não estar jamais à
altura de sua própria vontade- esta ação recai da mesma maneira que a con­
juração que ele dirige à sua mãe. É essencialmente nesta dependência do dese­
jo do sujeito com relação ao sujeito Outro que se apresenta o acento maior, o-
próprio acento do drama de Hamlet, aquilo que se pode chamar sua dimensão
permanente.

325
Trata-se de ver em que, de uma maneira mais articulada, entrando num
detalhe psicológico que ficaria, devo dizer, profundamente enigmático se ele
não estivesse, esse detalhe, submetido a esta visada de conjunto que faz o
sentido da tragédia de Hamlet, como isto repercute sobre o nervo mesmo do
querer de Hamlet, sobre este algo que em meu grafo é o gancho, o ponto de
interrogação do Che vuoi? da subjetividade constituída no Outro, e articulan­
do-se no Outro.
É o sentido do que eu tenho a dizer hoje. Aquilo que se pode chamar a
afinação imaginária do que constitui o suporte do desejo, daquilo que, em face
de um ponto indeterminado, um ponto variável, aqui sobre a origem da curva, e
que representa esta assunção pelo sujeito de seu querer essencial, o que vem
regrar-se sobre alguma coisa que está em algum lugar à frente e, de alguma
forma, pode-se dizer, imediatamente ao nível dõ sujeito inconsciente, desembo­
cando-o, o alvo, o termo do que constitui a questão do sujeito, é alguma coisa
que simbolizamos por este S em presença de a, e que nós chamamos o fantas­
ma; que na economia psíquica, representa alguma coisa que vocês conhecem,
este algo de ambíguo enquanto ele está efetivamente no consciente, quando
nós o abordamos por uma determinada fase, um último termo, este termo que
faz [o fundo] de toda paixão humana, enquanto ela é marcada por alguns des­
tes traços que chamamos traços de perversão.
O mistério do fantasma, enquanto ele é de alguma forma o último termo
de um desejo, é que sempre, mais ou menos, ele se apresenta sob uma forma
bastante paradoxal para ter, propriamente falando, motivado a rejeição antiga
de sua dimensão como sendo da ordem do absurdo. E este passo essencial -
que foi feito na época moderna em que a psicanálise constitui a guinada primei­
ra que subtende este fantasma enquanto perverso- de interpretá-lo, de concebê-
lo, é que ele só pôde ser concebido enquanto ordenado para uma economia
inconsciente: que se ele aparece a escora em seu último termo, em seu enigma,
se ele pode ser compreendido em função de um circuito inconsciente, ou que,
ele, se articula através de outra cadeia significante profundamente diferente da
cadeia que o sujeito comanda, porquanto é esta, esta que está abaixo da primei­
ra, e no nível, primeiramente, da demanda. E este fantasma intervém, e tam­
bém não intervém. É na medida em que algo que normalmente não chega por
esta via, não volta ao nível da mensagem, do significado do Outro que é o
módulo, a soma de todas as significações tais como elas são adquiridas pelo
sujeito no intercâmbio inter-humano e o discurso completo. É enquanto este

326
fantasma passa ou não passa para chegar à mensagem, que nós nos encontra­
mos numa situação normal ou numa situação atípica.
É normal que por esta via ele não passe, que ele permaneça inconscien­
te, que ele seja separado. E também essencial que em certas fases, e em fases
que se inscrevam mais ou menos na ordem do patológico, ele atravesse tam­
bém esta passagem. Daremos seu nome a estes momentos de travessia, estes
momentos de comunicação que não podem se fazer, como indica a vocês o
esquema, senão num único sentido. Eu indico esta articulação essencial pois é
para avançar em suma no manejo deste aparelho que nós chamamos aqui o
grama, que estamos aqui.
Vamos ver por ora simplesmente o que quer dizer, e como funciona na
tragédia shakesperiana, o que chamei o momento de desvario do desejo de
Hamlet, porquanto é nessa afinação imaginária que convém trazê-io.
Ofélia, nesta localização, se situa ao nível da letra a, a letra enquanto ela
está inscrita nesta simbolização de um fantasma, o fantasma sendo o suporte, o
substrato imaginário de alguma coisa que se chama propriamente falando o
desejo, enquanto ele se distingue da demanda, ele se distingue também da ne­
cessidade. Este a corresponde a este algo em direção ao que se dirige toda a
articulação moderna da análise, quando ela busca articular o objeto e a relação
de objeto.
Existe alguma coisa de justo nesta busca, no sentido em que o papel
deste objeto é sem dúvida decisivo como ela o articula (quero dizer a noção
comum da relação de objeto) quando ela o articula como o que estrutura funda­
mentalmente o modo de apreensão do mundo. Simplesmente, na relação de
objeto tal como ela nos é explicada o mais comumente na atualidade, na maio­
ria dos tratados que lhe fazem uma mais ou menos grande parte (seja um
volume que apareceu bem perto de nós ao qual faço alusão, como por exemplo
o mais caricatural, como outros mais elaborados como aqueles de Fedem, ou
tal ou tal outro), o erro e a confusão consistem nesta teorização do objeto
enquanto objeto, que se chama ele próprio objeto pré-genital.
Um objeto genital está também nomeadamente no interior das diversas
formas de objeto pré-genital e das diversas formas do objeto anal, etc. E preci­
samente o que lhes está materializado sobre este esquema, nisto que é tomar a
dialética do objeto pela dialética da demanda. E esta confusão é explicáveb
porque nos dois casos o próprio sujeito se encontra num momento, numa postu­
ra em sua relação com o significante, que é a mesma. O sujeito está em posi-

327
ção de eclipse. Porquanto nesses dois pontos de nosso grama, que se trate do
código ao nível do inconsciente, isto é da série de relações que ele tem com um
certo aparelho da demanda, ou que se trate da relação imaginária que o cons­
titui de uma maneira privilegiada numa certa postura também definida por sua
relação ao significante diante de um objeto a, nestes dois casos, o sujeito está
em posição de eclipse.
Ele está nesta posição que comecei a articular a última vez sob o termo
de fading. Escolhi este termo por todas as espécies de razões filológicas, e
também porque tomou-se inteiramente familiar a propósito da utilização dos
aparelhos de comunicação que são os nossos. Q fading é exatamente o que se
produz em um aparelho de comunicação, de reprodução da voz, quando a voz
desaparece, cai, se esvai, para reaparecer ao grado de alguma variação no
próprio suporte, na transmissão.
E enquanto, então, o sujeito está em um mesmo momento de oscilação
que é o que caracteriza -viremos naturalmente dar seu suporte e suas coorde­
nadas reais ao que é apenas uma metáfora- o fading diante da demanda e no
objeto, que a confusão pode produzir-se e que de fato, o que se chama relação
de objeto é sempre relação do sujeito neste momento privilegiado e dito de
fading do sujeito aos -não “objetos” como se diz- significantes da demanda. E
porquanto a demanda permaneça fixa, é ao modo, ao aparelho significante que
corresponde aos diferentes tipos, oral, anal e outros, que se pode articular algu­
ma coisa que tem com efeito uma espécie de correspondência clínica.
Mas existe um grande inconveniente em confundir o que é relação com
o significante, com o que é relação com o objeto, pois este objeto é outro, pois
este objeto, enquanto objeto do desejo tem um outro sentido, porque todas as
espécies de coisas tomam necessário que nós nãõ desconheçamos -até mes­
mo daríamos todo seu valor primitivo determinante, como se faz, aos significantes
da demanda na medida em que são significantes orais, anais, com todas as
subdivisões, todas as diferenças de orientação ou de polarização que pode to­
mar este objeto enquanto tal com relação ao sujeito (o que a relação de objeto,
tal qual ela é no momento articulada, desconhecia)- justamente esta correla­
ção com o sujeito que é expressa também, porquanto o sujeito é marcado pela
barra.
E isto que faz com que o sujeito, mesmo quando nós o consideramos nos
estágios os mais primitivos do período oral tal como o articulou, por exemplo, de
uma maneira próxima, de outro modo rigorosa, exata, uma Melanie Klein - nós

328
nos encontramos, observem-no no próprio texto de Melanie Klein, na presença
de certos paradoxos, e estes paradoxos não estão inscritos na pura e simples
articulação que se pode fazer do sujeito como sendo postos face a face com o
objeto correspondendo a uma necessidade, nomeadamente, o mamilo, o seio no
caso.
Pois o paradoxo aparece naquilo que, desde a origem, um outro significante
enigmático se apresenta ao horizonte desta relação. Isto é perfeitamente posto
em evidência em Melanie Klein, que tem apenas um único mérito nesta oca­
sião, é de não hesitar em aprofundar, isto é em confirmar o que ela encontra na
experiência clinica e, na falta de explicação, de se contentar com explicações
bastante pobres. Mas seguramente ela testemunha que o falo já está aí como
tal e, propriamente falando, destruindo com relação ao sujeito.
Ela faz dele desde o início este objeto primordial que é ao mesmo tempo
o melhor e o pior, este em tomo do que vão girar todos os avatares do período
paranóide bem como do período depressivo. Aqui só faço, bem entendido, indi­
car, lembrar.
O que posso articular mais adiante a propósito deste S, e na medida em
que ele nos interessa não enquanto ele é confrontado, posto em relação com a
demanda, mas com este elemento que nós vamos este ano tentar cercar mais
de perto, que é representado pelo a; o a, objeto essencial, objeto em tomo do
qual gira como tal, a dialética do desejo, objeto em tomo do qual o sujeito se
experimenta numa alteridade imaginária, diante de um elemento que é alteridade
no nível imaginário tal como nós temos já.articulado e definido muitas vezes.
Ele é imagem, e ele é pathos.
E é por este outro que é o objeto do desejo, que é preenchida uma função
que define o desejo nesta dupla coordenada que faz com que ele não vise, não
absolutamente, um objeto como tal de uma satisfação de necessidade, mas um
objeto enquanto ele já está ele próprio relativizado, quero dizer posto em rela­
ção com o sujeito -o sujeito que está presente no fantasma. Isto é uma evidên­
cia fenomenológica, e voltarei a ela mais adiante.
O sujeito está presente no fantasma. E a função do objeto -que é objeto
do desejo unicamente naquilo que ele é termo do fantasma—o objeto toma o
lugar, eu diria, daquilo do qual o sujeito é privado simbolicamente. Isto pode
parecer-lhes um pouco abstrato, quero dizer, para aqueles que não percor­
reram conosco todo o caminho que precede. Digamos para esses que é na
medida em que na articulação do fantasma, o objeto toma o lugar daquilo do

329
qual o sujeito é privado. É o quê? É do falo que o objeto toma esta função
que ele tem no fantasma, e que o desejo, com o fantasma por suporte, se
constitui.
Penso que é difícil ir mais longe rio extremo do que quero dizer, referindo
ao que nós devemos chamar propriamente falando o desejo e sua relação com
o fantasma. E neste sentido, e porquanto esta fórmula “o objeto do fantasma é
esta alteridade, imagem e pathos, por onde um outro toma o lugar daquilo do
qual o sujeito é privado simbolicamente”; vocês o vêem bem, é nesta direção
que este objeto imaginário se encontra de alguma maneira em posição de
condensar sobre ele o que se pode chamar as virtudes ou a dimensão do ser,
que ele pode tomar-se este verdadeiro logro do ser que é o objeto do desejo
humano; este algo diante do qual Simone Weil se detém quando ela aponta a
relação a mais espessa, a mais opaca que nos possa ser apresentada do ho­
mem com o objeto de seu desejo, a relação do avarento com sua bolsa, em que
parece culminar para nós da maneira a mais evidente este caráter de fetiche
que é o do objeto do desejo humano, e que é também o caráter ou uma das-
faces de todos estes objetos.
E bastante cômico ver, como me foi dado recentemente, um simplório
que tinha vindo nos explicar a relação da teoria da significação com o marxis­
mo, dizer que não se saberia abordar a teoria da significação sem fazê-la partir
das relações inter-humanas. Isto iria bastante longe! Ao cabo de três minutos,
nós aprendíamos que o significante era o instrumento graças ao qual o homem
transmitia a seu semelhante seus pensamentos privados -isto nos foi dito textu­
almente numa boca que se autorizava de Marx. Por não referir as coisas a esse
fundamento da relação inter-humana caíamos, parece, no perigo de fetichizar
aquilo do qual se trata no domínio da linguagem!
Seguramente quero que, com efeito, devíamos reencontrar alguma coisa
que se assemelhe bastante ao fetiche, mas eu me pergunto se este algo que se
chama fetiche, isso não é justamente uma das dimensões próprias do mundo
humano, e precisamente aquela da qual se trata de dar conta. Se pusermos o
todo na raiz da relação inter-humana nós só desembocaremos numa coisa, é o
reenviar o fato da fetichização dos objetos humanos a não sei qual mal-enten­
dido inter-humano que, ele próprio então, supõe um reenvio a significações. Da
mesma forma que os pensamentos privados dos quais se tratava -penso num
pensamento genético- estão aí para lhe fazer sorrir, pois se já os pensamentos
privados estão aí, de que adianta ir procurar mais longe!

330
Em resumo, é bastante surpreendente que esta relação, não à praxis
humana, mas a uma subjetividade humana dada como essencialmente primiti­
va, seja sustentada numa doutrina que se qualifica marxista, pois me parece
que basta abrir o primeiro tomo do Capital para perceber que o primeiro passo
da análise de Marx é bem propriamente falando, a propósito do caráter fetiche
da mercadoria, abordar o problema exatamente no nível próprio e, como tal,
ainda que o termo não seja dito, como tal ao nível do significante.
As relações significantes, as relações de valores são dadas primeira­
mente, e toda a subjetividade, a da fetichização eventualmente, vem inscrever-
se no interior desta dialética significante. Isto não tem sombra de dúvida. Isto é
um simples parêntese, reflexo que eu derramo nos ouvidos de vocês, de minhas
eventuais indignações, e do aborrecimento que posso ter sentido em perder
meu tempo.
Agora tentemos nos servir desta relação $ em presença do a que é para
nós o suporte fantasmático do desejo. É preciso que nós o articulemos clara­
mente, pois que a, este outro imaginário, o que isso quer dizer?
Isto quer dizer que alguma coisa mais ampla que uma pessoa pode in­
cluir-se aí, toda uma cadeia, todo um cenário. Não tenho necessidade de voltar
a esta ocasião, a isso que, no ano passado, coloquei aqui, a propósito da análise
do Balcon de Jean Genet. É suficiente, para dar seu sentido ao que quero dizer
no momento, remeter ao que nós podemos chamar o bordel difuso, porquanto
ele toma-se a causa do que se chama o sacrossanto genital.
O que é importante neste elemento propriamente falando estrutural do
fantasma imaginário porquanto ele se situa ao nível de a, é de um lado este
caráter opaco, aquele que o especifica sob suas formas as mais acentuadas,
como o pólo do desejo perverso; em outros termos, que faz o elemento estrutu­
ral das perversões e nos mostra então que a perversão se caracteriza nisso,
que todo o acento do fantasma é posto do lado do correlative propriamente
imaginário do outro, a, ou do parêntesis no qual alguma coisa que é (a + b + c...,
etc.) -é toda a combinação dos [objetos]: os mais elaborados podem se encon­
trar aí reunidos segundo a aventura, as seqüelas, os resíduos nos quais veio
cristalizar-se a função de um fantasma num desejo perverso.
Contudo, o que é essencial, e o que é este elemento de fenomenologia ao
qual eu fazia alusão há pouco, é lembrar-lhes que por estranho, por bizarro que
possa ser em seu aspecto o fantasma do desejo perverso, o desejo aí está
sempre de algum modo interessado. Interessado numa relação que é sempre

331
k u.;UuKuia.•
ligada ao patético, à dor de existir como tal, de existir simplesmente, ou de
existir como termo sexual. É evidentemente na medida em que aquele que
sofre a injúria no fantasma sádico é alguma coisa que interessa ao sujeito en­
quanto ele próprio pode ser oferecido a esta injúria, que o fantasma sádico
subsiste. E desta dimensão só se pode dizer uma coisa, é que só se pode estar
surpresos que, mesmo um único instante, pôde-se pensarem evitá-lo, fazendo
da tendência sádica alguma coisa que de alguma maneira possa se relacionar a
uma pura e simples agressão primitiva.
Estendo-me demasiadamente. Se o faço é somente para bem acentuar
algo que é isto em direção ao qual nos é preciso articular agora a verdadeira
oposição entre perversão e neurose. Se a perversão é, então, alguma coisa
articulada, certamente, e exatamente do mesmo nivel, vocês verão, que a neu­
rose, algo de interpretável, de analísável, na medida em que nos elementos
imaginários alguma coisa se acha de uma relação essencial do sujeito a seu ser,
sob uma forma essencialmente localizada, fixada como sempre se disse, a neu­
rose se situa por um acento posto sobre o outro termo do fantasma, isto é ao
nivel do S.
Eu lhes disse que este fantasma como tal se situa no extremo, na ponta,
ao nível de escoramento do reflexo da interrogação subjetiva, porquanto o su­
jeito tenta recobrar-se neste além da demanda, na própria dimensão do discur­
so do Outro, onde ele tem a reencontrar o que foi perdido por esta entrada no
discurso do Outro. Eu lhes disse que no último termo não é do nível da verdade,
mas da hora da verdade que se trata.
É com efeito essencialmente o que nos mostra, o que nos permite desig­
nar o que distingue mais profundamente o fantasma da neurose do fantasma da
perversão. O fantasma da perversão eu lhes disse, é apelável, ele está no espa­
ço, ele suspende não sei qual relação essencial; ele não é propriamente falando
atemporal, ele está fora do tempo. A relação do sujeito ao tempo, na neurose, é
justamente este algo do qual se fala muito pouco e que é, entretanto, a própria
base das relações do sujeito com seu objeto ao nível do fantasma.
Na neurose, o objeto se carrega desta significação, que está para ser
buscada no que chamo a hora da verdade. O objeto aí está sempre na hora do
antes, ou na hora do após. Se a histeria se caracteriza pela fundação de um
desejo enquanto insatisfeito, a obsessão se caracteriza pela função de um de­
sejo impossível. Mas o que há além desses dois termos é algo que tem uma
relação dupla e inversa num caso e no outro com este fenômeno que aflora,

332
que aponta, que se manifesta de uma maneira permanente nesta procrastinação
do obsessivo por exemplo, fundada sobre o fato, aliás, de que ele antecipa
sempre tarde demais. Da mesma forma que para o histérico, há que ele repete
sempre o que existe de inicial em seu trauma, a saber um certo cedo demais,
uma imaturação fundamental.
É aqui, neste fato que o fundamento de um comportamento neurótico,
em sua forma a mais geral, é que em seu objeto, o sujeito busca sempre ler sua
hora e, mesmo se pode-se dizer que ele aprende a ler a hora, é neste ponto que
reencontramos nosso Hamlet. Vocês verão porque Hamlet pode ser gratifica­
do, que se pode lhe emprestar à vontade de cada um todas as formas do com­
portamento neurótico tão distante quanto possam, ou seja até a neurose de
caráter. Mas também, legitimamente, existe nisto uma razão que, ela, se expõe
através de toda intriga e que faz verdadeiramente um dos fatores comuns da
estrutura de Hamlet; assim como o primeiro termo, o primeiro fator era a de­
pendência em relação ao desejo do Outro, ao desejo da mãe, eis a segunda
caraterística comum que lhes peço agora reencontrar na leitura ou na releitura
de Hamlet, Hamlet é sempre suspenso na hora do outro, e isto até ó fim.
Vocês se lembram de um dos primeiros desvios em que os detive.ao
começar a decifrar este texto de Hamlet, após a play scene, a cena dos come­
diantes em que o rei se perturba, denunciou visivelmente aos olhos de todos (a
propósito do que se produzia na cena) seu próprio crime, que ele não podia
suportar o espetáculo. Hamlet triunfa, exulta, troça daquele que assim se de­
nunciou, e no caminho que o leva ao encontro já tomado, antes da play scene,
com sua mãe (e no qual pressiona sua mãe para apressar o fim), sobre o cami­
nho deste encontro em que vai desenrolar-se a grande cena a qual já tantas
vezes acentuei, ele reencontra seu padrasto, Cláudio, em prece, Cláudio abala­
do até as bases pelo que acaba de emocioná-lo mostrando-lhe o próprio rosto,
o cenário de sua ação. Hamlet está ai diante de seu tio o qual tudo parece
indicar, mesmo na cena, que não somente ele está pouco disposto a defender-
se, mas até mesmo que ele não vê a ameaça que pesa sobre sua cabeça. E ele
pára porque não é a hora.
Esta não é a hora do outro. Não é a hora em que o outro deve ter que
ajustar suas contas diante do Eterno. Isto estaria bem demais por um lado, ou
demasiado mal por outro; isto não vingaria bastante seu pai, porque, talvez
neste gesto de arrependimento que é a prece, se abriría para ele o caminho da
salvação. O que quer que seja, há uma coisa certa, é que Hamlet que acaba de

333
lazer esta captura da consciência do rei, «Wherein I'll eaten the conscience
of the king»'sa que ele se propunha, Hamlet se detém. Ele não pensa um único
instante que sua hora é agora. O que for que possa na continuação advir, não é
a hora do outro, e ele suspende seu gesto. Igualmente não será nunca, e sem­
pre em tudo o que faz Hamlet, senão na hora do outro que ele o fará.
Ele aceita tudo. Não esqueçamos assim mesmo que na partida e na
repugnância em que já estava, antes mesmo do encontro com o ghost e do
desvelamento do fundo do crime, destes simples re-esponsais de sua mãe, ele
só sonhava com uma coisa, partir para Wittenberg. É o que alguém ilustrava
recentemente para comentar um certo estilo prático que tende a estabelecer-
se nos costumes contemporâneos, ele fazia observar que Hamlet era o mais
belo exemplo de que se evita muito de dramas dando passaportes a tempo. Se
lhe tivessem dado seus passaportes para Wittenberg, não teria havido drama.
E na hora de seus pais que ele fica, ali. É na hora dos outros que ele
suspende seu crime; é na hora de seu padrasto que ele embarca para a Ingla­
terra; é na hora de Rosencrantz e de Guildenstern que ele é levado, evidente­
mente com uma facilidade que fazia o assombro de Freud, a enviá-los diante da
morte graças a uma escamoteação lindamente cumprida. E é assim mesmo na
hora de Ofélia também, na hora de seu suicídio, que esta tragédia vai encontrar
seu termo, num momento em que Hamlet que, parece, acaba de perceber que
não é difícil matar alguém, «o tempo de dizer one», ele não terá tempo de fazer
uf. E entretanto acabam de lhe anunciar alguma coisa que não se assemelha
em nada a uma ocasião de matar Cláudio. Acabam de lhe propor um torneio
muito bonito do qual todos os detalhes foram minuciosamente determinados,
preparados, e cujos embates são constituídos por aquilo que chamaremos no
sentido colecionista do termo, uma série de objetos que têm todos a caracterís­
tica de objetos preciosos, de objetos de coleção. Seria preciso retomar o texto,
existem aí até refinamentos, entrámos no domínio da coleção; trata-se de espa­
das, de afíadores de espadas, de coisas que só têm valor como objetos de luxo.
E isto vai fornecer o embate de uma espécie de torneio no qual Hamlet de fato
é provocado sobre o tema de uma certa inferioridade que lhe dá o benefício do
challenge. É uma cerimônia complicada, um torneio que, bem entendido, para

150 Hamlet-, «Un drame est lepiége oújesurprendrai la conscience du roí». (11,2,586)

334
«« h h h h i h & h h
nós, é a armadilha em que ele deve cair, que foi fomentada por seu padrasto e
seu amigo Laertes, mas que, para ele, não esqueçamos, nada mais é do que
aceitar ainda fazer gazeta, ou seja vai se divertir muito.
Assim mesmo ele sente ao nível do coração um pequeno aviso. Há ai
alguma coisa que o emociona. A dialética do pressentimento neste momento,
do herói, vem aqui dar por um instante seu acento ao drama. Mas mesmo
assim, essencialmente, é ainda a hora do outro e, de uma maneira ainda bem
mais enorme, para sustentar a aposta do outro -pois não são seus bens que
estão empenhados, é em benefício de seu padrasto, e ele próprio como
mantenedor de seu padrasto- que ele vai encontrar-se entrando nesta luta,
cortês à princípio, com aquele que é presumido como sendo mais forte do que
ele na esgrima e, como tal, vai suscitar nele os sentimentos de rivalidade e de
honra em cuja armadilha calculou-se que seguramente se o prendería.
Ele se precipita então na armadilha. Eu diria que o que há de novo neste
momento, é somente a energia, o coração com o qual ele nisso se precipita. Até
o último termo, até a hora última, até a hora que é tão determinante que ela vai
ser sua própria hora, ou seja que ele será atingido mortalmente antes que ele
possa atingir seu inimigo; é na hora do outro que a tragédia persegue todo.o
tempo sua cadeia, e se cumpre. Isto é, para conceber aquilo do qual se trata,
um quadro absolutamente essencial.
É nisto que a ressonância do personagem e do drama de Hamlet é a
própria ressonância, metafísica, da questão do herói moderno, na medida em
que com efeito alguma coisa para ele mudou em sua relação com seu destino.
Eu já lhes disse, o que distingue Hamlet de Édipo, é que ele, Hamlet,
sabe. E isto aliás explica antes de tudo, levados a este ponto coração, o que nós
acabamos de designar serem traços de superfície. Por exemplo, a loucura de
Hamlet. Existem heróis trágicos, na tragédia antiga, que são loucos mas, de
meu conhecimento, não existem -eu digo na tragédia, não falo dos textos len­
dários- que façam o louco como tal.
Será que se pode dizer que tudo na loucura de Hamlet se resume a fazer
o louco? É uma pergunta que iremos agora nos fazer. Mas ele faz o louco
porque ele sabe que ele é o mais fraco. E isto não tem interesse em ser apon­
tado, vocês vèem que, por superficial que isso seja, eu o aponto agora não
porque isto vai mais adiante em nossa direção, mas somente porque é secundário.
Contudo não é secundário nisto, é preciso refletir nisto, se quisermos
compreender o que Shakespeare quis em Hamlet, é o que é o traço essencial

335
da lenda original, o que há em Saxo Grammaticus e em Belleforest. Shakespeare
escolheu o sujeito de um herói coagido, para perseguir os caminhos que o le­
vam ao termo de seu gesto, a fazer o louco. Isto é uma dimensão propriamente
moderna. Aquele que sabe está numa posição tão perigosa, como tal, tão desig­
nado para o fracasso e o sacrifício, que seu caminho deve ser -como diz em
algum lugar Pascal «ser louco com os outros».
Este modo de fazer o louco que é um dos ensinamentos, uma das dimen­
sões do que eu poderia chamar a política do herói moderno, é alguma coisa que
merece não ser negligenciada se pensamos que é disto que Shakespeare se
apoderou no momento em que ele quer fazer a tragédia de Hamlet. O que os
autores lhe oferecem, é essencialmente isto. E se trata apenas disso, de saber
o que este louco tem dentro da cabeça. Que seja no interior disto que Shakespeare
tenha escolhido seu sujeito é um ponto inteiramente essencial.
Eis-nos aqui agora chegados ao ponto em qúe Ofélia deve cumprir seu
papel. Se a peça tem verdadeiramente tudo que acabo de desenvolver-lhes em
sua estrutura, no final das contas para que esta personagem de Ofélia?
Eu lembro que alguns me censuram por ter avançado com uma certa
timidez, não creio que demonstrei uma excepcional timidez. Não gostaria de
encorajá-los para esta espécie de evasiva nos quais os textos psicanalíticos
literalmente formigam, estou apenas surpreso que não se tenha dado conta que
Ofélia é op<j>aXoç (omphalos)li' porque se encontra grandes e também enor­
mes, que se manifesta em toda a sua força, para somente abrir os Unfinished
papers on Hamlet que Ella Sharpe talvez deixou lamentavelmente inacabados
antes de sua morte, e que talvez se tenha errado em publicá-los. Mas Ofélia é
evidentemente essencial. Ela corresponde a isso, e está ligada para sempre
através dos séculos à figura de Hamlet.
Quero somente, pois é bastante tarde para que não possa terminar hoje
com Ofélia, escandir-lhes o que se passa ao longo da peça. Ofélia, nós dela
ouvimos primeiramente falar como a causa do triste estado de Hamlet. Isto é a
sabedoria psicanalítica de Polônio: ele está triste, é porque ele não está feliz; ele
não está feliz, é por causa de minha filha. Vocês não a conhecem? é a fina flor
- e como bem entendido, eu, o pai, não tolerarei isto!'52

151 ou<|>aXoç: “umbigo”, e mais seguidamente, “centro", “meio”.


,J- 11,2.

336
» W Ml MU

Se a vê aparecer a propósito de alguma coisa que faz dela já uma pessoa


muito notável, ou seja a propósito de uma observação clínica, que é ela que teve
a felicidade de ser a primeira pessoa que Hamlet encontrou após o encontro
com o ghost. Quer dizer recém-saído deste encontro que tinha assim mesmo
alguma coisa de bem saculejante, ele encontrou Ofélia. E a maneira com que
ele se comporta com Ofélia é algo que, creio, vale a pena ser relatado.
«My lord, as I was sewing in my closet, Meu senhor, quando eu estava
a costurar em meu quarto, O senhor Hamlet, com seu gibão todo desfeito, Sem
chapéu na cabeça, as meias enlameadas e que sem ligas caiam sobre seus
saltos, Pale as his shirt, his knees knocking each other, Pálido como sua
camisa, seus joelhos se entrechocando, E a aparência tão infeliz como se ele
tivesse sido livrado do inferno para falar de seus horrores, Ei-lo que vem a mim
[...] He took me by the wrist and held me the hard, Ele me toma pelo punho
e o aperta fortemente, Then goes he to the length of all his arms, Ele recua
com todo o comprimento de seu braço, And with his other hand thus o 'er his
brow, Com sua outra mão sobre suas sobrancelhas, He falls to such perusal
of my face, Ele cai num tal exame de meu rosto, como se quisesse desenhá-lo.
Ele se mantém longamente assim, E no fim, me sacudindo ligeiramente o bra-.
ço, e por três vezes balançando a cabeça de alto a baixo, And thrice his head
thus waving up and down, Ele exalou utn suspiro tão triste e tão profundo que
este suspiro pareceu abalar todo o seu ser e terminar sua vida, Depois do que
ele me deixa: e sempre olhando por cima de seu ombro, He seem 'd to find his
way without his eyes, Ele parecia encontrar seu caminho sem a ajuda de seus
olhos, Fora da porta e até o fim ele os mantém fixos sobre mim”153.
Logo Polônio exclama: “é o amor!”154. Esta observação e, creio, esta
interrogação, esta distância tomada do objeto como para proceder a não sei
qual identificação desde já difícil, esta vacilação na presença daquilo que até
agora foi o objeto de exaltação suprema, é algo que nos dá o primeiro tempo,
estrangement'35, se pode-se dizer.

IS! Ofélia: «Seigneur, comme j’etais occupée à broder dans mon appartement, le prince Hamlet,
ses vêtements toutouverts en désordre, (a tête échevelée, lesjambes demi nues, pâle comme son
tinge, ses genoux trembíants et se choquant 1 ’un e 1’autre, avec un cell sombre et aussi hagard que
s'il eutété une ombre échappée des enfers, pour venirannoncer des sinistes horreurs, voilà 1’état
oil il s’est presente devant mot!» (11,1,77)
Polônio: «Madfor thy love? Une extravagance de I'amour; ne le pensez-vous pas?» (11,1,85)
IJS Estrangement: alienação de alguém, afastamento de duas pessoas, desunião (between, entre).

337
Não podemos dizer mais sobre isto. Contudo creio, até um certo ponto,
que não forçamos nada designando como propriamente patológico o que se
passa neste momento, que testemunha uma grande desordem de Hamlet em
sua postura, tornando-o parente destes períodos de irrupção de desorganização
subjetiva qualquer que ela seja. Ele se passa na medida em que alguma coisa
vacila no fantasma, aí faz aparecer seus componentes, os faz aparecer e rece­
ber em alguma coisa que se manifesta nestes sintomas como o que se chama
uma experiência de despersonalização, e que é este pelo que os limitesimagi-
nários entre o sujeito e o objeto se encontram a mudar, no sentido próprio do
termo, na ordem daquilo que se chama o fantástico.
É bem propriamente quando alguma coisa na estrutura imaginária do
fantasma encontra a reunir-se, a comunicar com o que se alcança muito mais
facilmente ao nível da mensagem, ou seja o que vem embaixo, neste ponto que
é a imagem do outro, porquanto esta imagem do outro é meu próprio eu [moi].
É aquilo no qual os autores como Federn marcam com muita fineza as correla­
ções necessárias entre o sentimento do próprio corpo e a estranheza do que
advém numa certa crise, numa certa ruptura, num certo atingimento do objeto
como tal, e de um nível especificado que nós aí encontramos.
Talvez aqui eu forcei um pouco as coisas na intenção de interessar vocês,
quero dizer na intenção de lhes mostrar em que isto se relaciona com experiên­
cias eletivas de nossa clínica. Voltaremos a isso sem dúvida. Vocês dizem que
é impossível em todo caso, sem esta referência a este esquema patológico, a
este drama, bem situar o que foi observado pela primeira vez por Freud no nível
analítico sob o nome de Unheimliche. Não está ligado, como alguns acredita­
vam, a todos os tipos de irrupção do inconsciente. Está ligado a esta espécie de
desequilíbrio que se produz no fantasma, e porquanto o fantasma, atravessando
os limites que lhe são primeiramente consignados, se decompõe e vem reen­
contrar isto pelo que ele rejunta a imagem do outro. De fato, isto é apenas um
toque.
No caso de Hamlet encontramos depois alguma coisa na qual Ofélia é
completamente dissolvida enquanto objeto de amor. «I did love you once, eu
vos amava outrora»156, diz Hamlet. E as coisas passam nas relações com Ofélia
neste estilo de agressão cruel, de sarcasmos levados muito longe, que não faz

156 Hamlet: «Je vous ai vraiment aimée». (HI,1,116)

338
as cenas as menos estranhas de toda a literatura clássica, Pois se pôde-se ver
representar neste tom em peças extremas, em alguma coisa que se situa com
este personagem verdadeiramente central, meio, da cena trágica da peça de
Hamlet, uma cena como a que houve entre Hamlet e Ofélia não é uma cena
banal.
Isto, é o que caracteriza esta atitude pela qual encontramos rastro do
que eu indicava há pouco como desequilíbrio da relação fantasmática enquanto
ele derrama em direção ao objeto lado perverso. E um dos traços desta rela­
ção. Um outro traço, é que este objeto de que se trata não é mais absolutamen­
te tratado como ele poderia ser, como uma mulher. Ela se torna para ele a
portadora de filhos, de todos os pecados, aquela que é designada para engen­
drar os pecadores e a que é designada em seguida como diante de sucumbir
sob todas as calúnias. Ela se torna o puro e simples suporte de uma vida que,
em sua essência, torna-se condenada por Hamlet. Em resumo, o que se produz
neste momento, é esta destruição ou perda do objeto que é reintegrada em seu
quadro narcísico. Para o sujeito ele aparece, se posso dizer, fora. Este do qual
ele é o equivalente, segundo a fórmula que eu empregava há pouco, este do
qual ele toma o lugar, e isto que não pode ser dado ao sujeito a não ser no
momento em que literalmente ele se sacrifica, em que ele não é mais ele pró­
prio, em que ele o rejeita de todo o seu ser, ele é bem e unicamente o falo.
Em que Ofélia é neste momento o falo, é nisto, e na medida em que aqui
o sujeito exterioriza o falo enquanto símbolo significante da vida e que como tal
ele o rejeita. Isto é o segundo tempo da ralação ao objeto. O tempo um pouco
avançado me faz ter escrúpulos de dar-lhes todas as coordenadas, e voltarei a isto.
Que é bem disto que se trata, isto é, de uma transformação da fórmula
$ V tp ((p, o falo) e sob a forma da rejeição, isto é demonstrado uma vez que
vocês se aperceberam, por inteiramente outra coisa que não a etimologia de
Ofélia. Primeiramente, porque não se trata disto, ou seja da fecundidade. «A
concepção é uma benção, diz Hamlet a Polônio, mas tome cuidado com sua
filha»157. E todo o diálogo com Ofélia é bem a mulher concebida aqui unica­
mente como o portador desta turgescência vital que se trata de maldizer e de

157 Hamlet: «Concevoir est une bénédiction du ciei, mais non pas dans le sens que votre filie
pourrait concevoir». (11,2,184)

339
esgotar. Uma [nunnery] pode também na época designar um bordel. 0 uso
semântico o mostra.
Por outro lado, a atitude de Hamlet com Ofélia na play scene é também
alguma coisa em que se designa esta relação entre o falo e o objeto. Aí, porque
ele está diante de sua mãe e expressamente enquanto ele está diante de sua
mãe, e expressamente enquanto ele está diante de sua mãe, dizendo-lhe «há
aqui um metal que me atrai mais do que vós»158, ele vai descansar sua cabeça
entre as pernas («Lady, shall I live in your lap?»'50) de Ofélia, pedindo-lhe
expressamente.
A relação fálica de objeto do desejo é também claramente indicada nes­
te nível, e não é supérfluo indicar, visto que a iconografia faz dele um tal estado,
que entre as flores com as quais Ofélia vai afogar-se, é expressamente menciona­
do que os «dead men’s fingers»'60 de que se trata, são designadas de uma
maneira mais grosseira pelas pessoas comuns. Esta planta da qual se trata é a
orchis mascula. Trata-se de alguma coisa que tem uma relação com a
mandrágora que faz com que isto tenha alguma relação com o elemento fálico.
Procurei isto no New English Dictionnary, mas fiquei muito decepcionado
pois ainda que isto seja citado com referência ao termo finger, não há nenhuma
alusão ao que Shakespeare alude por esta apelação.
Terceiro tempo que é este em que já lhes levei diversas vezes e em que
vou uma vez mais deixá-los, o tempo da cena do cemitério. Ou seja, é o elo a
ressaltar entre alguma coisa que se coloca como uma reintegração de a e a
possibilidade, enfim, para Hamlet, de afivelar a fivela, isto é enfim, de se preci­
pitar em direção a seu destino.
Este terceiro tempo, porquanto inteiramente gratuito, absolutamente ca­
pital, pois toda a cena do cemitério está feita para que ela se produza, esta coisa
que Shakespeare não encontrou aliás em parte alguma, esta espécie de batalha
furiosa no fundo de uma cova sobre a qual já insisti; esta designação como de
uma ponta da função do objeto como sendo aqui reconquistado somente ao
preço do luto e da morte, é o que penso sobre isto e que enfim poderei terminar
na próxima vez.

Hamler. «Non, ma bonne mère, ily a là un aimant dont 1’attraction estplus forte». (111,2,103)
159 Hamler. «Madame, puis-je me reposer sur vos genoux?» (111,2,105)
'“Doigts-de-mort. (IV,7,172)

340
Lição 18
22 abril de 1959

Hamlet, nós o dissemos, não pode suportar o encontro. O encontro é


sempre demasiadamente cedo para ele, e ele o retarda. Esse elemento da
procrastinação não pode, de nenhuma maneira (ainda que determinados auto­
res, numa literatura que eu cada vez mais, no decorrer deste estudo,
aprofundei...) ser descartada, a procrastinação permanece uma das dimensões
essenciais da tragédia de Hamlet.
Quando ele age, em contraposição, é sempre com precipitação. Ele age
quando repentinamente, parece que uma ocasião se oferece, quando não sei
qual apelo do acontecimento além dele mesmo, de sua resolução, de sua deci­
são, parece oferecer-lhe não sei qual abertura ambígua que é propriamente
para nós, analistas, aquilo que introduziu na dimensão da realização esta pers­
pectiva que chamamos a fuga.
Nada é mais claro do que este momento em que ele se precipita sobre
esta coisa que se mexe atrás da tapeçaria, em que ele mata Polônio. Em outros
momentos também, a maneira quase misteriosa -diria quase sonâmbulo, quan­
do à noite ele desperta neste barco na tempestade- quando ele vai verificar as
mensagens, romper os selos da mensagem cujos portadores são Guildenstem e
Rosencrantz, e a maneira também quase automática com que ele substitui uma
mensagem por uma outra, refaz graças ao seu anel, o selo real, e vai reencon­
trar também esta prodigiosa ocasião da tomada pelos piratas para enganar seus
guardas que irão sem duvidar em direção à sua própria execução.
Temos aí algo de uma verdadeira fenomenologia, pois é preciso chamar

341

iii*»
te
as coisas pelo seu nome, do qual sabemos todo o acento facilmente reconhecí­
vel, quase familiar, de nossa experiência, como também de nossas concepções,
na relação com a vida do neurótico.
E aquilo que na última vez tentei fazê-los sentir além dessas caracterís­
ticas tão sensíveis, dentro desta referência estrutural que percorre toda a peça:
Hamlet está sempre na hora do Outro. Naturalmente aí está uma miragem,
pois a hora do Outro -e é também o que lhes expliquei quando chamei a res­
posta última neste significante do Outro barrado: não há eu lhes disse Outro do
Outro. Não há no próprio significante garantia da dimensão de verdade instau­
rada pelo significante. Não há senão a sua, da hora, e não há também senão
uma única hora, é a hora de sua perda. E toda a tragédia de Hamlet é mostrar-
nos o encaminhamento implacável de Hamlet em direção a esta hora.
O que especifica seu destino, o que faz dele o valor altamente problemá­
tico, o que é então? Pois este encontro com a hora de sua perda, não é somente
a sorte comum que é significativa para todo destino humano. A fatalidade de
Hamlet tem um sinal particular pois ela não teria para nós de outra forma, este,
valor eminente. E, então, aí que nós estamos. E aí que .estávamos no fim de
nosso discurso na última vez.
O que falta a Hamlet? E até que ponto a intenção da tragédia de Hamlet
tal como Shakespeare a compôs, nos permite uma articulação, um ajustamento
desta falta que vai além das aproximações com as quais sempre nós nos con­
tentamos e que também, para aquilo que nos contentemos que elas sejam apro-
ximativas, fazem também a delicadeza, não somente de nossa linguagem, de
nossa conduta, de nossas sugestões -é preciso dizer- no lugar do paciente.
Comecemos mesmo assim por esta aproximação da qual se trata. Pode-
se dizer, o que falta está a todo instante, em Hamlet, aquilo que poderiamos
chamar de uma linguagem comunicativa, na linguagem de todos os dias, esta
espécie de fixação de um objetivo, de um objeto em sua ação que comporta
sempre em algum lugar aquilo que se chama arbitrário.
Hamlet, nós o vimos, nós até começamos a explorar por que, é alguém
como dizem as boas mulheres, que não sabe o que quer. E de alguma maneira
esta primeira dimensão está presentificada por ele, no discurso que Shakespeare
o faz manter. Ela está presentificada numa determinada volta que aliás é bem
significativa. É a virada de seu eclipse em sua tragédia. Quero dizer durante o
curto momento em que ele não vai estar aí, em que vai fazer este circuito
marinho do qual ele vai voltar excessivamente depressa, mal saído do porto, em

342
que ele vai fazer esta viagem para a Inglaterra sob as ordens do rei, sempre
obediente. Ele atravessa as tropas de Fortinbrás que está ali no plano de reta­
guarda da tragédia, evocada desde o início, e que no fim vem limpara casa em
cena, juntar os mortos, pôr em ordem os estragos. E eis como nosso Hamlet
fala deste Fortinbrás. Ele se surpreende ao ver essas tropas valentes que vão
conquistar algumas terras da Polônia em nome de um pretexto guerreiro mais
ou menos fútil que é aquele de uma ocasião de retomo sobre ele mesmo.
«[...] A mínima ocasião me acusa, Ela esporeia minha vingança que se
entorpece! O que é um homem se sua felicidade suprema, se o emprego de seu
tempo é somente comer e dormir? Nada menos que um animal. Aquele que
põe em nós este olho da razão...» Em inglês, é «Sure, he that made us with
such large discourse, Looking before and after, gave us not That capability
and god-like reason To fust in us unused». Aquilo que o tradutor transcreve
por «a razão», (é o grande discurso, o discurso fundamental, aquilo que chama­
rei aqui o discurso concreto) que nos faz ver adiante e atrás, e nos dá esta
capacidade, (aqui a palavra razão vem em seu lugar) não nos fez certamente
este dom divino para que na falta de emprego ele emboloreça. Ora, diz Hamlet,
seja o esquecimento bestial, bestial oblivion (é uma das palavras chave da
dimensão de seu ser na tragédia), seja escrúpulo covarde, craven scruple, que
demasiadamente minucioso encara o desenlace, -pensamento que, posto em
quatro tem um quarto de sabedoria contra três quartos de covardia- eu vivo
dizendo, não sei porquê, “esta coisa está para ser feita”, “This thing’s to do”,
quando é melhor que a faça e o posso, Sith I have cause, and will, and
strength, and means, To do 't. Quando eu tenho a razão, a causa, a vontade, a
força e os meios de fazê-la. Convêm a mim grandes exemplos como o mundo,
como esses compactos e onerosos exércitos conduzidos por um temo e delica­
do príncipe, cujo espírito, ao sopro de uma ambição divina, desdenha o desenla­
ce invisível, expondo sua fraqueza débil e mortal às audácias da fortuna, do
perigo e da morte, even for an egg-shell, por uma casca vazia. Ser grande,
sem contestação, não é emocionar-se sem grande sujeito, é encontrar este
grande sujeito numa palhinha quando a honra está em jogo. Rightly to be great
Is not to stir without great argument, But greatly to find quarrel in a straw
When honour's at the stake. 0 que sou eu se meu pai morto e minha mãe
suja, dois motivos, minha razão e meu sangue deixam tudo dormitar, quando
vejo com vergonha a morte iminente de mais de vinte mil homens que por um
fantasma de glória vão ao túmulo assim como ao leito, combatendo por um

343
pedaço sobre o qual não pode lutar seu número, cuja capacidade como túmulo
não pode conter os mortos, Which is not tomb enough and continent to hide
the slain? E que doravante meus pensamentos sejam de sangue ou que não
sejam dignos de nada. «<9, from this time forth, My thoughts be bloody, or
be nothing worth!»101.
Tal é a meditação de Hamlet sobre aquilo que eu chamaria o objeto da
ação humana, este objeto que aqui, deixa a porta aberta para aquilo que chama­
rei todas as particularizações às quais nós nos detemos. Chamaremos isto a
oblatividade: derramar seu sangue por uma causa nobre, a honra. A honra é
também designada: estar empenhado por sua palavra. Chamaremos isto o dom.
Enquanto analistas, efetivamente, nós não podemos encontrar estas determina­
ções concretas, não ser apanhados por seu peso, quer seja ele de carne ou de
engajamento.
O que eu tento mostrar-lhes aqui, é alguma coisa que de tudo isto não é
somente a forma comum, o menor denominador comum. Não se trata somente
de uma posição, de uma articulação que poderia caracterizar-se como um.
formalismo. Quando lhes escrevo a fórmula $ v a, posta ao termo desta per­
gunta que o sujeito coloca no Outro que, dirigindo-se a ele, se chama o “Que 161

161 Hamler. «Comme toutes les circonstances s’élèvent contre moi. et réveillent ma vengeance
assoupie! Qu'est-ce que I’homme, si son bien suprême et tout le marche de son temps se
réduisent à manger et dormir? Une brute, rien de plus. Surement celui qui nous a formés aveç cette
vaste raison peut voir dans le passé et dans Vavenir, ne nous a pas donné cette intelligence et cette
divine faculte pour qu’elle reste en nous oisive et sans emploi. Maintenant, soit par un oubli
stupide semblable à celui de la brute, soit par une délicatesse scrupuleuse qui craint de trop
approfondir 1'événement (et dans ce scrupule, pour un quart de sagesse, il y a trois quarts de
lâcheté) je ne sais pas pourquoi je vis encore, pour toujours dire, j'ai cette chose à faire, des
exemples plein I'univers. Le globe est couvert d'exemples qui m'exhortenr. témoin la masse
énorme de cette armée nombreuseconduite par un prince jeune et délicatdont 1'âme, stimulée par
une divine ambition, affronte 1'événement invisible; exposant une vie mortelleet incertaineàtous
les hasards, à la mort et aux dangers les plus terribles, pour une poignée de terre. Ce n'est pas être
vraiment grand que de ne jamais agir sans un grand motif; c’est de trouver avec noblesse une sujet
dequerelledans un atomequand il s’agitde I’honneur. Comment resté-je immobile, ici, moi quiai
un père assassiné, une mere souillée:... autantd’aiguillonsqui pressent mon courage et ma raison;
et comment les laissé-je tous s' engourdir dans un lâche sommeil? Tandis qu’ à ma honte je vois la
mort prochaine de vingt milliers d’hommes, qui, pour une chimère, pour une vaine renommée.
vont à leurs tombeaux comme à leurs lits: combattent pour un projet dont la multitude ne peut
juger la cause; pour un terrain qui n'est pas même une tombe assez vaste pour cacher les morts!
Oh, que désormais done mes pensées soient sanguinaires ou nu lies!» (IV, 4, 32-66)

344
queres tu'?”, esta pergunta que é o Che vuoi?, em que o sujeito está à procura
de sua última palavra, e que não tem nenhuma chance, fora da exploração da
cadeia inconsciente, enquanto percorre o circuito da cadeia significante superi­
or, mas que não é (exceto.condições especiais que nós chamamos analíticas)
nada que seja efétivamente aberto à investigação; exceto este auxílio da cadeia
inconsciente porquanto ela foi, pelo analista, pela experiência freudiana, desco­
berta. O que devemos tratar é deste algo a que se pode conciliar, num curto
circuito imaginário, na relação a meio caminho deste circuito do desejo com
aquilo que está diante de nós, ou seja, o fantasma e a estrutura do fantasma -
sua estrutura geral, é o que eu exprimo- ou seja, uma certa relação do sujeto ao
significante, é o que é expresso pelo $, é o sujeito conquanto ele é afetado
irredutivelmente pelo significante, com todas as consequências que isto com­
porta, em uma certa relação específica com uma conjuntura imaginária em sua
essência, a, não o objeto do desejo, mas o objeto no desejo.
E desta função do objeto no desejo que se trata de nos aproximarmos, é
porquanto a tragédia dé Hamlet nos permite aproximá-lo, articulá-lo de uma
maneira exemplar, que nós nos debruçamos com este interesse insistente sobre .
a estrutura da obra de Shakespeare.
Aproximemo-nos mais de perto. $ v a como tal significa isto: é na
medida em que o sujeito está privado de alguma coisa dele mesmo que tomou
valor do próprio significante de sua alienação (esta coisa é o falo); é, portanto,
na medida em que o sujeito é privado de alguma coisa que se prende à sua
própria vida, porque isto tomou valor daquilo que o prende ao significante; é na
medida em que está nesta posição que um objeto particular torna-se objeto de
desejo.
Ser objeto de desejo é algo essencialmente diferente de ser o objeto de
alguma necessidade. É desta subsistência do objeto como tal, do objeto no
desejo, no tempo, que ele vem tomar seu lugar daquilo que, no sujeito, permane­
ce por sua natureza mascarado. Este sacrifício dele mesmo, esta libra de carne
empenhada em sua relação ao significante, é porque alguma coisa vem tomar o
lugar disto, que esta alguma coisa torna-se objeto no desejo.
E isto que é tão profundamente enigmático de ser em seu fundo uma
relação escondida, ocultada, é porque é assim, é porque -se me permitirem
uma fórmula que é daquelas que vêm sob minha caneta em minhas notas e que
me trazem aí, mas não façam disso uma fórmula doutrinai, tomem-na quando
muito por uma imagem- é na medida em que a vida humana poderia definir-se

345
como um cálculo cujo zero seria irracional. Esta fórmula não é senão uma
metáfora matemática e é preciso dar aqui ao irracional seu sentido matemáti­
co. Não faço aqui alusão a não sei qual afetivo insondável, mas a alguma coisa
que se manifesta no próprio interior das matemáticas sob a forma equivalente
daquilo que se chama um número imaginário, que é 'J-í. Pois existe alguma
coisa que não sabería corresponder ao que quer que seja de intuitivel, e que
entretanto quer ser guardado com sua plena função. É esta relação, digo, do
objeto com este elemento escondido do suporte vivo, do sujeito, porquanto to­
mando função de significante ele não pode ser subjetividade como tal.
É porque ele é assim que esta estrutura, da mesma forma, na mesma
relação em que estamos com a -que é alguma coisa que em si não sabería
corresponder a nada de real no sentido também matemático do termo- é justa­
mente também por causa disso que nós não podemos apreender a verdadeira
função do objeto a não ser fazendo a volta de uma série de suas relações
possíveis com o S, isto é com o S que, no ponto preciso em que o a toma o
máximo de seu valor, não pode ser senão ocultado. E é justamente esta volta
das funções do objeto, seria dizer muito que a tragédia de Hamlet nos faz
encerrar, mais seguramente, em todo o caso, ela nos permite ir muito mais
longe do que jamais se foi por nenhuma via.
Partamos do fim, do ponto de encontro, da hora do encontro, deste ato
em que, no final das contas, você deve bem se dar conta que o ato terminal,
aquele em que enfim ele lança, pelo preço de sua ação cumprida, todo o peso
de sua vida, este ato merece ser chamado ato que ele ativa e que ele sofre.
Existe ao redor deste ato um lado de hallali. No momento em que seu gesto se
cumpre, ele é também o cervo forçado de Diana. Ele é aquele ao redor do qual
se fecha o complô urdido (não sei se vocês se deram conta disso), com um
cinismo e uma maldade incríveis, entre Cláudio e Laertes, aquelas que possam
ser as razões de um e de outro, provavelmente estando aí implicada também
esta espécie de tarântula, o cortesão ridículo que veio lhe propor o torneio em
que se esconde o complô.
Tal é a estrutura. Ela é das mais claras. O torneio que lhe é proposto o
põe em posição de campeão de um outro. Eu já insisti nesse assunto. Ele é o
mantenedor da aposta, da aposta de seu tio e padrasto, Cláudio. Passa-se algu­
ma coisa sobre a qual eujá insisti a última vez, é a saber, para jogos, objetos a
que se caracterizam aí com todo seu brilho, ou seja que como todos os objetos
e todos os jogos, eles são essencialmente primeiro no mundo do desejo humano

346
caracterizados por aquilo que a tradição religiosa, em representações exempla­
res, nos ensina a nomear uma vanitas, uma espécie de tapeçaria de ponto
miúdo. É a acumulação de todos os objetos de preço que aí estão e postos
numa balança frente à morte.
Ele apostou com Laertes seis cavalos de Barbarie162 163 contra os quais ele
pôs na balança seis espadas e punhais franceses, ou seja todo um aparato de
duelista, com tudo o que depende disso, como aquilo que serve para pendurá-
los, suas bainhas, eu penso. E, particularmente, existem três que têm aquilo que
o texto chama de carruagens. Esta palavra carruagem'^ é uma forma parti­
cularmente preciosa de exprimir uma espécie de fivela na qual deve pender a
espada. E uma palavra de colecionador que faz ambiguidade com a carreta do
canhão, de maneira que se estabelece todo um diálogo entre Hamlet e aquele
que vem relatar as condições do torneio. Durante um diálogo bastante longo
tudo é feito para fazer cintilar diante de seus olhos a qualidade, o número, a
panóplia desses objetos, dando todo seu acento a esta espécie de prova da qual
lhes disse o caráter paradoxal, absurdo mesmo, deste torneio que vem se pro­
por a Hamlet.
E entretanto Hamlet parece uma vez mais estender o pescoço, como se
nada em suma poderia nele opor-se a uma espécie de disponibilidade funda­
mental. Sua resposta é aí completamente significativa. «Senhor, vou manter-
me nesta sala: que não desagrade à sua Majestade, é minha hora de descanso;
que tragam os floretes, a bom grado do cavalheiro, e se o rei persiste em sua
decisão, eu o farei ganhar se puder; senão, eu não ganharei nada a não ser
minha curta vergonha e as botas recebidas»164.
Eis então algo que, no ato terminal, nos mostra a própria estrutura do
fantasma. No momento em que ele está prestes a chegar a sua resolução,
enfim, como sempre, à véspera de sua resolução, ei-lo que se louva literalmen-

162 Osrik: «Seigneur, le roi a gagé contre lui six chevaux barbes, et contre eux, Lãertc a depose six
poignards de France avec leurs garnitures, ceinturons, pendants et le reste; trois de ces équipages
font en vérité plaisir à voir». (V,2,141)
163 Carriage: 1’affiit.
164 Hamlet: «Seigneur, je vais continuer de me promener dans cette salle. Si sa Majesté le permet.
J’y respirais 1’air comme c’est ma costume à cette heure du jour. Qu’on apporte ici les fleurets!
Et si le gentilhomme tient son déft et que le roi persiste en son dessein, je gagnerai pour lui la
gageuresi jepuis; sinonjenegagnerai quede la honte etdecruelles bottes». (V,2,164)

347
te a um outro e ainda por nada, da maneira a mais gratuita, este outro sendo
justamente seu inimigo e aquele que ele deve abater. E isto, ele o põe na balan­
ça com as coisas do mundo, primeiramente que o interessam menos, ou seja
que não é neste momento todos estes objetos de coleção que são sua maior
preocupação, mas que ele vai esforçar-se para ganhar para um outro.
Sem dúvida no andar de baixo há alguma coisa que os outros pensam
que é com isto que se vai cativá-lo, e a que, bem entendido, ele não é comple­
tamente estrangeiro, não como os outros o pensam, mas mesmo assim sobre o
mesmo plano em que os outros o situam, ou seja que ele é interessado de honra,
isto é, a um nível daquilo que Hegel chama «a luta de puro prestígio», interessa­
do de honra naquilo que vai opô-lo a um rival de outra parte admirado.
E nós não podemos deixar de ater-nos um instante à certeza desta cone­
xão posta aí, levada adiante por Shakespeare. Você reconhece aí algo que é
antigo em nosso discurso, em nosso diálogo, ou seja o estádio do espelho. Que
Laertes neste nível seja seu semelhante, é o que está expressamente articulado
no texto. Está articulado de uma maneira indireta, quero dizer no interior de
uma paródia. E quando ele responde a este cortesão demasiadamente limitado,
que se chama Osrico, e que vem propor-lhe o duelo, falar-lhe de seu adversário
começando a fazer jogar diante de seus olhos a qualidade eminente daquele ao
qual ele irá mostrar seu mérito. Ele lhe corta a palavra fazendo ainda melhor
que ele. «.Sir, his definement suffers no perdition in you, Senhor, sua repre­
sentação não suporta em vós o desfalecimento; se, como eu o sei, dividir seus
méritos para fazer deles o inventário deve ultrapassar a aritmética da memória,
e contudo não saberia desampará-lo, tão maravilhosamente grande é a rapidez
de suas velas»165. E um discurso extremamente precioso que ele persegue,
muito requintado, que parodia de alguma forma o estilo de seu interlocutor, e
pelo qual ele conclui: «Z take him to be a soul of great article, sustento que
sua alma é uma alma de preço bastante alto, e que está infusa nela uma tai
raridade e um tal preço que, para fazer dela pronúncia verdadeira, seu seme­
lhante não pode ser senão seu espelho, e que outro poderia traçar seu retrato
senão a ser sua própria sombra e nada mais»166.
Em resumo, a referência à imagem do outro como sendo aquilo que não
pode senão absorver completamente aquele que o contempla, está aí a propó-

'«Hamlet (V,2,110)
‘“HamZef(V,2,133)

348
sito dos méritos de Laertes certamente apresentada, inchada de uma maneira
muito gongórica, o concetti é algo que tem todo seu preço neste momento.
Tanto mais que, como vocês vão ver, é nesta atitude que Hamlet vai abordar
Laertes antes do duelo. É nesta altura que ele o aborda e que ele não se toma
senão mais significativo do que para este paroxismo da absorção imaginária
formalmente articulada como uma relação especular, uma reação em espelho,
pois aí está situado pelo dramaturgo igualmente o ponto manifesto da
agressividade.
Aquele que se admira mais é aquele que se combate. Aquele que é o
Ideal do eu, é também aquele que, segundo a fórmula hegeliana da impossibili­
dade das coexistências, deve-se matar. Isto Hamlet não o faz senão sobre um
plano que nós podemos chamar desinteressado, sobre o plano do torneio. Ele aí
se empenha de uma maneira que se pode qualificar de formal, até mesmo
fictícia. E com seu desconhecimento que ele entra em realidade mesmo assim
no jogo o mais sério.
O que isto quer dizer? Isto quer dizer que ele não entrou, digamos, com
o seu falo. Isto quer dizer que aquilo que se apresenta para ele nesta relação
agressiva é um logro, é uma miragem, que é apesar dele que ele vai ai [perder]
a vida, que é com seu desconhecimento que ele vai, precisamente neste mo­
mento, ao mesmo tempo ao encontro da realização de seu ato e de sua própria
morte que vai, pouco depois, coincidir com ele.
Ele não entrou aí com seu falo, é uma maneira de exprimir aquilo que nós
estamos prestes a procurar, ou seja onde está a falta, onde está a particularida­
de desta posição do sujeito Hamlet no drama. Ele aí entrou, mesmo assim, pois
se os floretes estão cobertos, é apenas em seu logro. Na realidade, há pelo
menos um que não está coberto que, no momento da distribuição das espadas,
já está de antemão cuidadosamente marcado para ser dado a Laertes. Este é
uma ponta verdadeira e além disso, é uma ponta envenomed'61, envenenada.
O que é surpreendente é que aqui o sem-cerimônia do cenarista reúne
aquilo que se pode chamar a formidável intuição do dramaturgo. Quero dizer
que não se dá ao trabalho de nos explicar que esta arma envenenada vai passar
no tumulto (Deus sabe como! Esta deve ser uma das dificuldades do jogo de
cena) da mão de um dos adversários para a mão do outro. Vocês sabem que é

m Hamlet (V ,2,310)

349
■ ■>**

numa espécie de corpo a corpo em que eles se misturam, depois que Laertes
dera o golpe de ponta do qual Hamlet não pode curar-se e do qual ele deve
perecer. Em alguns instantes acontece que esta mesma ponta esteja na mão de
Hamlet. Ninguém se dá ao trabalho de explicar um incidente tão surpre-endente.
Ninguém aliás se dá o menor trabalho, pois isso do qual se trata é bem disso,
quer dizer mostrar que aqui o instrumento da morte, na ocasião o instrumento o
mais velado do drama, aquilo que Hamlet não pode receber senão do outro, o
instrumento.que. faz morrer é alguma coisa que está alhures que não naquele
que aí está materialmente representável.
Aqui não se pode deixar de ser surpreendido por alguma coisa que lite­
ralmente se encontra no texto. Está claro que aquilo que estou prestes a lhes
dizer, é que além deste alarde do tomeio, da rivalidade com aquele que é seu
semelhante, o mais belo, o eu-mesmo que ele pode amar, além disso se desem­
penha o drama da realização do desejo de Hamlet, além disso o falo está aí.
E no final das contas, é neste encontro com o outro que Hamlet vai,
enfim, identificar-se com o significante fatal. Pois bem, coisa muito curiosa,
está no texto. Fala-se de floretes, foils, no momento de distribui-los: «Give
them the foils, young Osric, dê-lhes os floretes. Cousin Hamlet, you know
the wager, você conhece a aposta?»168. E mais alto Hamlet diz: «Give us the
foils.»™. Entre estes dois termos em que os floretes são a questão, Hamlet faz
um jogo de palavras, «I'll be your foil, Laertes. In mine ignorance Your skill
shall, like a star i'th'darkest night, Stick fiery off indeed»™. O que se
traduziu em francês como se pôde: «Laertes, meu florete não será senão uma
florzinha perto do seu». Foil quer dizer “florete" no contexto. Aqui foil não
pode ter este sentido, e ele tem um sentido perfeitamente marcado, é um sen­
tido perfeitamente atestado na época, ele é mesmo empregado bastante fre­
quentemente. E o sentido em que foil, que é a mesma palavra que a palavra
francesa “feuille" em francês antigo, é utilizado sob uma forma preciosa para
designar a folha na qual alguma coisa de precioso é levado, isto é “um porta-
jóias”. Aqui, ela é utilizada para dizer: «Estou aqui somente para valorizar seu
brilho de estrela na escuridão do céu combatendo com vós».

168Hamlet (V, 2,245) (É o rei que fala)


l6’/7aw/eí(V,2,238)

Hamlet (V, 2,240): «Lãerte, je ne servirai qu’à vous faire briller: votre adress, en contraste avec
mon ignorance, éclatera comme une étoile étincelante sur le voile sombre de Ia nuit». (V,2,240)

350
Aliás, essas são as próprias condições nas quais o duelo foi empenhado,
ou seja que Hamlet não tem nenhuma chance de ganhar, que ele terá ganho
suficientemente se o outro lhe ganhar três pontas sobre doze. A aposta é em­
penhada de nove contra doze, isto é, é dado um handicap a Hamlet.
Direi que neste jogo de palavras sobre foil encontramos legitimamente
aquilo que está incluído por baixo do trocadilho, quero dizer que é uma das
funções de Hamlet fazer todo o tempo jogos de palavras, trocadilhos, duplos
sentidos, de jogar com o equívoco. Este jogo de palavras não está aí por acaso.
Quando ele lhe diz, eu serei vosso porta-jóias, ele emprega a mesma palavra
que faz jogo de palavras com o que está em jogo neste momento, isto é a
distribuição das espadas. E muito precisamente no trocadilho de Hamlet, há no
final das contas esta identificação do sujeito ao falo mortal porquanto ele está aí
presente. Ele lhe diz, eu serei vosso porta-jóias para fazer cintilar vosso mérito,
mas aquilo que vai vir num instante, é inteiramente a espada de Laertes, por­
quanto esta espada é aquela que lhe feriu, Hamlet, mortalmente, mas é igualmente
a mesma que ele vai encontrar-se tendo à mão para terminar seu percurso e
matar, ao mesmo tempo, tanto seu adversário quanto aquele que é o objeto
último de sua missão, ou seja o rei que ele deve fazer perecer imediatamente após.
Esta referência verbal, este jogo de significante certamente não está aí
por acaso. E legítimo fazê-lo entrar em jogo, isto não é com efeito um acidente
no texto. Uma das dimensões nas quais se apresenta Hamlet e sua textura, é
com efeito esta através de todo o texto de Shakespeare, e isto por si só mere­
cería um desenvolvimento.
Vocês vêem como aí, representando um papel essencial, estes persona­
gens diversos que se chama os palhaços, que se chama os loucos da Corte, que
são, falando propriamente aqueles que, tendo sua fala franca, podem permitir-
se desvendar os motivos os mais ocultos, os traços de caráter das pessoas que
a polidez proíbe abordar francamente. E algo que não é simplesmente cinismo
e jogo mais ou menos injurioso do discurso, é essencialmente pela via do equí­
voco, da metáfora, do jogo de palavras, de um certo uso do concetti, de um
falar precioso, destas substituições de significantes sobre os quais aqui insisto
quanto à sua função essencial; eles dão a todo o teatro de Shakespeare um
estilo, uma cor, que é absolutamente característica de seu estilo e que cria
essencialmente a dimensão psicológica nele.
O fato de que Hamlet seja um personagem mais angustiante do que um
outro não deve dissimular-nos que a tragédia de Hamlet é a tragédia que, por

351
um certo lado, ao pé da letra, leva este louco, este palhaço, este feitor de pala­
vras à categoria do zero. Se por alguma razão se devesse tirar esta dimensão
de Hamlet da peça de Shakespeare, mais de quatro quintos da peça desapare­
cería, como observou alguém.
Uma das dimensões em que se cumpre a tensão de Hamlet, é este per­
pétuo equívoco, aquele que nos é de alguma maneira dissimulado pelo lado, se
posso dizer, mascarado da questão. Quero dizer, aquilo que se interpreta entre
Cláudio, o tirano, o usurpador e o assassino Hamlet, é o desmascaramento das
intenções de Hamlet, ou seja por que ele faz o louco. Mas o que é preciso não
esquecer é a maneira como ele faz o louco, esta maneira que dá a seu discurso
este aspecto quase maníaco, esta maneira de apanhar no vôo as idéias, as
ocasiões de equívoco, as ocasiões de fazer brilhar um instante diante de seus
adversários, esta espécie de clareira de sentidos. Há, na peça, textos em que
eles se põem eles mesmos a construir, até mesmo a fabular. Isso os atinge, não
como alguma coisa de discordante, mas como alguma coisa estranha, por sua
vez, de especial pertinência. É neste jogo que não é somente um jogo de dissi­
mulação, mas um jogo de espírito, um jogo que se estabelece ao nível dos
significantes, na dimensão dos sentidos, que se tem o que se pode chamar o
próprio espírito da peça.
E no interior desta disposição ambígua que faz de todos os propósitos de
Hamlet e ao mesmo tempo da reação daqueles que o cercam, um problema em
que o próprio espectador, o ouvinte, se perde e se interroga sem cessar, é aí que
é preciso situar a base, o plano sobre o qual a peça de Hamlet toma seu alcan­
ce; e eu não o lembro aqui senão para indicar-lhes que não há nada de arbitrá­
rio, nem de excessivo em dar todo seu peso a este derradeiro pequeno jogo de
palavras sobre o foil.
Eis então a característica da constelação na qual se estabelece o ato
último, o duelo entre Hamlet e aquele que é aqui uma espécie de semelhante ou
de double mais belo do que ele próprio. Insistimos neste elemento que está de
alguma forma no nível inferior de nosso esquema i(a), que é aquilo que se
encontra para Hamlet num instante remodelado, que ele -para quem mais ne­
nhum homem nem mulher não são outra coisa que uma sombra inconsistente e
pútrida- encontra aqui um rival à sua altura. Digamos isso, este semelhante
remodelado, aquele que vai permitir-lhe, ao menos por um instante, sustentar
em sua presença a aposta humana de ser ele também um homem, isto não está
aí, este remodelamento não é senão uma consequência, não uma partida. Que­

352
ro dizer que é a consequência daquilo que se manifesta na situação, ou seja, a
posição do sujeito na presença do outro como objeto do desejo, a presença
imanente do falo que não pode aparecer aqui em sua função formal a não ser
com o desaparecimento do próprio sujeito. O que é que toma possível o fato de
que o próprio sujeito sucumbe antes mesmo de tomá-lo na mão para ele próprio
tomar-se o assassino?
Voltamos uma vez mais à nossa encruzilhada. Esta encruzilhada tão sin­
gular de que lhes falei, da qual marquei em Hamlet o caráter essencial, ou seja
o que se passa no cemitério, ou seja alguma coisa que deveria interessar a um
de nossos colegas, que ocorre em sua obra ter tratado eminentemente ao mes­
mo tempo do ciúme e do luto171. E alguma coisa que é um dos pontos mais
salientes desta tragédia: o ciúme do luto.
Pois eu lhes peço que se reportem à cena que finaliza o ato do cemitério,
aquele ao qual lhes trouxe por três vezes no decurso da minha exposição. É a
saber isto, absolutamente característico: é que Hamlet não pode suportar o
alarde ou a ostentação, e que esta ostentação do luto em seu parceiro, é por
isso mesmo que ele se encontra arrancado dele mesmo, transtornado, sacudi­
do em seus fundamentos a ponto de não poder, como tal, tolerá-lo.
E a primeira rivalidade, esta bastante mais autêntica -pois se é com todo
o aparato da cortesia e com um florete coberto que Hamlet aborda o duelo, é
no pescoço de Laertes que ele salta no buraco em que acabam de descer o
corpo de Ofélia, para dizer-lhe: «Mostra-me o que tu saberás fazer. Chorarás,
te baterás, jejuarás? [...] Eu o farei. Vieste para gemer, zpmbar de mim, saltan­
do em seu túmulo? Faze enterrar-te vivo com ela, eu também o farei. E se tu
ergues montanhas, que lancem sobre nós milhões de declives, tanto que perto
deste cômoro que avermelhará seu cume na zona de fogo, Ossa pareça uma
verruga! E se tu gritares, eu vociferarei»172.

1,1 Lagache D.,«Deuil pathologique» (1956) in La Psychanalyse n.2, retomado em Oeuvres, vol.
IV, Paris, PUF.
172 Hamlet: «Veux-tu pleurer? Veux-tu combattre? Veux-tu laisser périr de faim? Veux-tu te
déchirer de tes mains? Veux-tu boire du fiel ou avaler un serpent? Je veux le faire aussi, moi. -
N’es-tu venu ici que pour te répandre en gémissements? Pour me braver en te precipitant dans sa
fosse? - veux-tu être enseveli vivant avec elle? Je le veux aussi - Tu parles de montagnes de
poussière? Eh bien! qu’on en entasse sur nous des millions d’arpents jusqu’a ce que notre tombe
s’élève, comme une masse enorme jusqu’à nues. Si tu éclates en transports forcenés, ma rage
égalera la tienne». (V, 1,263)

353
E aí todo o mundo se escandaliza, espalha-se para separar estes irmãos
inimigos prestes a se sufocar. E Hamlet mantém ainda esses propósitos, falan­
do a seu parceiro: «E Senhor, quem o faz usar da sorte, comigo? Eu sempre te
amei. Não importa. Hércules fez o que pôde, o gato miará, e o cão terá sempre
seu dia»173. O que é, aliás, um elemento proverbial que, aqui, parece-me tomar
todo seu valor de certas aproximações que alguns dentre vocês podem fazer,
mas eu não posso me deter. O essencial é que quando ele se encontrar com
Horácio ele lhe explicará: «Eu não pude suportar ver este tipo de devassa de
seu luto»174. Eis-nos levados ao coração de alguma coisa que vai abrir-nos toda
uma problemática.
Que relação há entre aquilo que trouxemos sob a forma $ { a, relativo à
constituição do objeto no desejo, e o luto? Observemos isto, abordemos por
suas características as mais manifestas que podem parecer também as mais
afastadas do centro que buscamos aqui, aquilo que se nos apresenta.
Hamlet conduziu-se com Ofélia de uma maneira mais do que desprezí­
vel e cruel. Insisti sobre o caráter de agressão desvalorizante, de humilhação
incessantemente imposta a esta pessoa que tornou-se subitamente o próprio
símbolo da rejeição, como tal, de seu desejo. Não podemos deixar de ser sur­
preendidos por alguma coisa que completa para nós uma vez mais, sob uma
outra forma, num outro traço, a estrutura para Hamlet. E que subitamente, este
objeto vai retomar para ele sua presença, seu valor. Ele declara: «Eu amava
Ofélia, e trinta e seis mil irmãos com tudo o que eles têm de amor não chegariam
à soma do meu. Que tu farás por ela?»175
É nesses termos que começa o desafio dirigido a Laertes. E de alguma
maneira na medida em que o objeto de seu desejo tornou-se um objeto impos­
sível que ele retorna para ele o objeto de seu desejo. Uma vez mais acredita­
mos encontrarmo-nos aí num desvio familiar, ou seja uma das características
do desejo do obsessivo. Não vamos deter-nos demasiadamente rápido nessas
aparências muito evidentes. O obsessivo, não é tanto que o objeto de seu dese­
jo seja impossível o que o caracteriza, se tanto é que pela própria estrutura dos

1,5 Hamlet: «Entendez-vous? Quelle est votre raison pour me trailer ainsi?Je vous ai toujours aímé:
mais n’importe.-Que Hercule déploielui-mêmetoutes ses forces: chacun aura son tour». (V, 1,276)
1.4 Hamlet: «Mais je me suis cru brave par I’ostentation de sa douleur; et c'est là ce qui a fait
monter ma colère à cet excès». (V.2,78)
1.5 Hamlet: «J'aimais Ophelia, la tendresse de mille frères ensemble, n'égale pas mon amour. Que
veux-tu faire pourelle?» (V.1,257)

354
fundamentos do desejo, há sempre esta nota de impossibilidade no objeto do
desejo. Aquilo que o caracteriza, não é então que o objeto de seu desejo seja
impossível, pois ele não estaria aí, e por este traço ele não é senão uma das
formas especialmente manifestas de um aspecto do desejo humano, é que o
obsessivo põe o acento no encontro com esta impossibilidade.
Dito de outra forma, ele se arranja para que o objeto de seu desejo tome
valor essencial de significante desta impossibilidade. Aí está uma das notas
pela qual nós podemos abordar já esta forma. Mas há algo de mais profundo
que nos solicita.
O luto é algo que nossa teoria, que nossa tradição, que as fórmulas
freudianas já nos ensinaram a formular em termos de relação de objeto. Por
um determinado lado nós não podemos ser surpreendidos pelo fato de que o
objeto do luto, foi Freud quem valorizou, pela primeira vez, desde que há psicó­
logos e que pensam!
O objeto do luto, é em u.na determinada relação de identificação -e que
ele tentou definir mais de perto, chamar uma relação de incorporação com o
sujeito- que se coloca à mão, que se agrupam, se organizam, as manifestações
do luto. Então, nós não podemos tentar rearticular mais de perto, no vocabulá­
rio que aprendemos aqui a manejar, o que pode ser esta identificação do luto?
Qual é a função do luto?
Se nós avançarmos nesta via vamos ver, e unicamente em função dos
aparelhos simbólicos que empregamos nesta exploração, aparecer da função
do luto consequências que acredito novas e, para vocês, eminentemente suges­
tivas. Eu quero dizer destinadas a abrir-lhes resumos eficazes e fecundos aos
quais vocês não poderíam aceder por uma outra via.
A questão daquilo que é a identificação deve esclarecer-se das catego­
rias que são aquelas que aqui, depois de anos, eu coloco, ou seja aquelas do
simbólico, do imaginário e do real.
O que é esta incorporação do objeto perdido? Em que consiste o traba­
lho do luto? Fica-se num vácuo que explica a suspensão de toda especulação
ao redor desta viá, aberta, entretanto, por Freud, ao redor do luto e da melanco­
lia, pelo fato de que a questão não está articulada convenientemente. Atenhamo-
nos aos primeiros aspectos, os mais evidentes, da experiência do luto. O sujeito
submerge-se na vertigem da dor e encontra-se numa determinada relação, aqui
de alguma maneira ilustrada do modo o mais manifesto por aquilo que vimos se
passar na cena do cemitério -o salto de Laertes no túmulo e o fato que ele

355
abraça, fora de si, o objeto cujo desaparecimento é a causa desta dor- que de
fato no tempo, no ponto deste abraço, da maneira a mais manifesta, uma espé­
cie de existência tanto mais absoluta, que não corresponde a mais nada.
Em outros termos, o rombo no real provocado por uma perda, uma perda
verdadeira, esta espécie de perda intolerável ao ser humano que provoca nele
o luto, este rombo no real encontra-se por esta própria função nesta relação
que é o inverso daquela que exponho diante de vocês sob o nome de
Verwerfung. Da mesma forma que aquilo que é rejeitado no simbólico reapa­
rece no real, que estas fórmulas devem ser tomadas no sentido literal, da mes­
ma forma a Verwerfung, o rombo da perda no real de alguma coisa que é a
dimensão para falar propriamente da intolerável oferta à experiência humana,
que é não a experiência da própria morte, que ninguém tem, mas a da morte de
um outro, que é para nós um ser essencial, isto é um rombo no real. Este rombo
no real, e por este fato, encontra-se, e em razão da mesma correspondência
que é aquela que eu articulo na ’Verwerfung, oferecer o lugar em que se projeta
precisamente este significante faltante, este significante essencial como tal, à
estrutura do Outro, este significante cuja ausência torna o Outro impotente
para lhes dar a sua resposta -este significante que você não pode pagar a não
ser com sua carne e com seu sangue, este significante que é essencialmente o
falo sob o véu.
E porque este significante encontra aí seu lugar e ao mesmo tempo não
pode encontrá-lo, porque este significante não pode articular-se ao nível do
Outro, que vêm, como na psicose -e é nisso que o luto se aparenta à psicose-
pulular em seu lugar todas as imagens de onde surgem os fenômenos do luto e
os fenômenos de primeiro plano, aqueles pelo que se manifesta não tal ou tal
loucura particular, mas uma das loucuras coletivas as mais essenciais da comu­
nidade humana como tal, ou seja é aquilo que aí está no primeiro plano, no
primeiro guia da tragédia de Hamlet, ou seja o ghost, o fantasma, esta imagem
que pode surpreender a alma de todos e de cada um.
Se do lado do morto, daquele que acaba de desaparecer, este algo que
não foi cumprido, que se chama os ritos -os ritos destinados a quê, afinal ? O
que são os ritos funerários? Os ritos pelos quais nós satisfazemos aquilo que se
chama a memória do morto, o que é, se não é a intervenção total, maciça, do
inferno até o céu, de todo o jogo simbólico? Eu gostaria de ter tempo de fazer-
lhes alguns seminários sobre este assunto do rito funerário através de uma
investigação etnológica. Lembro-me, há muitos anos, de ter passado bastante

356
'•« *u Ml ,t) 1, U1 1-;

tempo sobre um livro que é uma ilustração verdadeiramente admirável e que


toma todo seu valor, para nós exemplar, de ser de uma civilização bastante
distante da nossa para que os relevos desta função apareçam verdadeiramente
de uma maneira brilhante. É o Liji, um dos livros chineses consagrados.
O caráter macrocósmico dos ritos funerários, ou seja o fato de que com
efeito ele não tem nada que possa cumular de significantes este furo no real se
não for a totalidade do significante, o trabalho realizado ao nível do Lógos -
digo isto para não dizer ao nível do grupo nem da comunidade (certamente são
o grupo e a comunidade enquanto culturalmente organizados que são os
sustentadores disso)- o trabalho do luto apresenta-se primeiramente como uma
satisfação dada aquilo que se produz de desordem em razão da insuficiência de
todos os elementos significantes a fazer face ao rombo criado na existência, pela
colocação em jogo total de todo o sistema significante ao redor do menor luto.
E é o que nos explica que toda a crença folclórica põe essencialmente a
relação a mais estreita entre o fato de que alguma coisa seja faltante, seja eli­
dida ou recusada desta satisfação ao morto, e o fato de que se produzam estes
fenômenos que correspondem à influência, à entrada em jogo, à colocação em
marcha dos fantasmas e das larvas, no lugar deixado livre pelo rito significante.
E aqui nos aparece uma nova dimensão da tragédia de Hamlet. Eu lhes
disse no início, é uma tragédia do mundo subterrâneo. O ghost surge de uma
inexpiável ofensa; Ofélia aparece, nesta perspectiva, neutra, nada mais do que
uma vítima oferecida a esta ofensa primordial; o assassinato de Polônio e o
ridículo arrastamento de seu cadáver pelo pé, por um Hamlet que se torna
subitamente literalmente desencadeado e diverte-se em zombar de todo mundo
que lhe pergunta onde está o cadáver, e que se diverte em propor toda uma
série de enigmas de muito mau gosto cujo ápice culmina na fórmula: «Hide
fox, and all after»'™, o que é evidentemente uma referência a uma espécie de
jogo de esconde-tampão. Isto quer dizer, a raposa está escondida, corramos
atrás! O assassinato de Polônio e esta extraordinária cena do cadáver escondi­
do, desafiando a sensibilidade e a inquietude de todo o entorno não é ainda
senão uma derisão daquilo do qual se trata, ou seja de um luto não satisfeito.
Temos aqui, em alguma coisa sobre a qual, vocês vêem, não pude dar-
lhes ainda hoje a última palavra, esta perspectiva, esta relação entre a fórmula
$ v a, o fantasma, e alguma coisa que aparece paradoxalmente afastado dele,"

176 Hamlet: «Cache, cache et en consequence...» (IV,2,29)

357
é, a saber, a relação de objeto na medida em que o luto nos permite esclarecê-
lo.
Vamos, na próxima vez, persegui-lo em detalhe, mostrando, retomando
os desvios da peça de Hamlet porquanto ela nos permite melhor captar a eco­
nomia aqui estreitamente ligada do real, do imaginário e do simbólico.
Talvez no decorrer disto muitas idéias preconcebidas em vocês ficarão
em pane, até mesmo espero bem fracassadas, mas isto, penso que estarão aí
preparados pelo fato de que, uma vez que comentamos uma tragédia em que
não se poupam os cadáveres, estas espécies de estragos puramente imaginári­
os não lhes parecerão, ao lado dos estragos deixados atrás dele por Hamlet,
senão pouca coisa e que, para dizer tudo, vocês se consolarão com o caminho
talvez difícil que lhes faço percorrer com esta fórmula hamletiana: não se faz.
Hamlet sem quebrar os ovos! ’

* N.d.T.: Note-se que Hamlet em francês soa como omelete, a qual não é possível preparar sem
quebrar os ovos.

358
Lição 19
29 de abril de 1959

Se a tragédia de Hamlet é a tragédia do desejo, é tempo de observar-é


ao que eu os conduzi ao final de meu último pronunciamento, no momento em
que chegávamos ao término de nosso curso- isso que se observa sempre por
último, ou seja o que é o mais evidente. Eu não saiba com efeito de nenhum
autor que se tenha detido somente nessa observação, difícil, no entanto, de
ignorar, uma vez que se a tenha formulado, que de um ponto a outro de Hamlet,
não se fala senão de luto.
A primeira observação de Hamlet concerne a esse escândalo, esse ca­
samento precoce de sua mãe. Esse casamento que a mãe, ela mesma, em sua
ansiedade, sua ansiedade em saber o que atormentava seu filho amado, cha­
mou ela mesma «Nosso casamento demasiado precoce, I doubt it is no other
but the main; his father's death and our o'erhasty marriage»1''7. Não há
necessidade de lhes lembrar estas palavras de Hamlet sobre essas sobras da
refeição dos funerais que serviram à refeição de núpcias: «Economia! Econo­
mia! Thrift, thrift, Horatio'.»173, indicando com esse termo algo que nos lem­
bra que em nossa exploração do mundo do objeto, nessa articulação que é a da
sociedade moderna, entre o que nós chamamos os valores de uso e os valores

La reine: «Pour moi, je n’en soupçonne point d’autre que la mort de son pèré et notre manage
précipité». (11,2,56)
1,1 Hamlet. (1,2,180)

359
de troca com todas as noções que se engendram em tomo disso, há talvez
alguma coisa que a análise desconhece -eu quero dizer a análise marxista,
econômica, na medida em que ela domina o pensamento de nossa época- e da
qual tocamos a todo instante a força e a’amplitude, são os valores rituais. Ainda
que nós os pontuemos sem cessar em nossa experiência, pode ser útil que nós
os destaquemos, que nós os articulemos como essenciais.
Já fiz alusão da penúltima vez, a essa função do rito no luto. E por essa
mediação que o rito introduz ao que o luto abre como hiância, mais exatamente
à maneira como ele vem coincidir, colocar ao centro de uma hiância absoluta­
mente essencial, a hiância simbólica, maior, a falta simbólica, o ponto x em
suma do qual se pode dizer que, quando Freud faz alusão ao umbigo do sonho,
talvez seja justamente o correspondente psicológico que ele evoca dessa falta.
Também sobre a questão do luto não podemos não ser tocados pelo fato
de que em todos os lutos que são maiores, que são postos em questão em
Hamlet, sempre retoma isso de que os ritos foram abreviados, clandestinos.
Polônio é enterrado sem cerimônia, secretamente, às pressas, por razões polí­
ticas. E vocês recordam de tudo o que se desenrola em tomo do enterro de
Ofélia, da discussão quanto a saber como acontece que, muito provavelmente
estando morta por tê-lo querido, afogando-se de maneira deliberada -ao menos
é essa a opinião popular- no entanto ela é enterrada em terra santa, em terra
cristã, no entanto alguma coisa do rito cristão lhe é concedido, os coveiros não
o duvidam. Se ela não fosse uma pessoa de um nível tão elevado, teriam-na
tratado de outra forma, da maneira como o padre articula que deveria ser, pois.
ele não concorda com que se lhe renda essas honras funerárias. Teriam-na
lançado em terra não consagrada, teriam acumulado sobre ela os cacos e os
detritos da maldição e das trevas. O padre apenas consentiu em ritos abrevia­
dos eles também.
Tudo isso é fortemente acentuado ao final da cena do cemitério. Não
podemos não ter em conta todos esses elementos, sobretudo se lhes acrescen­
tamos outras coisas. A sombra do pai é uma sombra que possui uma queixa
inexpiável, que foi surpreendida, nos diz ele, ofendida de modo eterno, que foi
surpreendida -não é esse um dos menores mistérios do sentido desta tragédia-
«na flor de seus pecados»1”. Ele não teve tempo de reunir antes da sua morte

i” Hamlet. (1,5,76)

360
esta alguma coisa que o tivesse colocado em condições de comparecer diante
do julgamento final.
Temos ai uma espécie de pistas, de clues como se diz em inglês, de
elementos que se ordenam em demasia, convergem em demasia de um modo
eminentemente significativo para que não nos detenhamos (para que não per­
guntemos como começamos a fazê-lo na última vez) sobre a relação do drama
do desejo com tudo do que se trata em tomo do luto e das exigências do luto.
E o ponto sobre o qual gostaria hoje de me deter para esforçar-me em
aprofundar em que sentido isso, para nós, introduz uma questão; na medida em
que essa questão é a do objeto, e do objeto na medida em que o abordamos na
análise sob diversas formas. Nós o abordamos no sentido do objeto do desejo.
E há também do objeto ao desejo uma relação simples como num encontro
marcado que poderia ser articulado como se se tratasse de um simples
appointement, quando talvez seja outra coisa.
Nós abordamos também a questão do objeto de um ângulo totalmente
distinto quando falamos do objeto na medida em que o sujeito se identifica a ele
no luto. Ele pode, diz-se, reintegrá-lo a seu ego. O que significa isso? Não há aí
duas fases que na análise não são articuladas, não estão em concordância?
Alguma coisa não exige de nós que tentemos penetrar mais longe nesse proble­
ma?
Certamente, o que acabo de dizer sobre o luto em Hamlet não nos per­
mite ocultar que o fundo desse luto é, em Hamlet como em Édipo, um crime;
que até um certo ponto todos esses Iqtos se sucedem em cascata como os
seguimentos, as seqüelas, as conseqüências do crime de onde parte o drama. E
é também por isso que Hamlet, digamos, é um drama edipiano, o que nos
permite igualá-lo, colocá-lo no mesmo nível funcional na genealogia trágica que
o Édipo.
É isso o que colocou Freud, e em seguida seus discípulos, na pista da
importância para nós de Hamlet. Mas isso deve ser ao mesmo tempo para nós
uma ocasião de trabalhar esse assunto, pois Hamlet para a tradição analítica
situa-se no centro de uma meditação sobre as origens -já que temos o hábito
de reconhecer no crime de Édipo a trama mais essencial da relação do sujeito
ao que denominamos aqui o Outro, ou seja o lugar onde se inscreve a lei- é
bom lembrar alguns termos essenciais da maneira como, para nós, são até o
presente articuladas essas relações do sujeito com o que se pode chamar o
crime original.

361
É bastante claro que devemos distinguir (em lugar de fazer como sem­
pre, de deixar as coisas numa espécie de desordem e de imprecisão que não
facilita as especulações das coisas que temos a dizer sobre esse assunto) que
nos encontramos em presença de dois níveis.
Há o mito freudiano, que merece ser denominado assim, a construção do
tótem, estabelecida na medida em que ela ordena o que se pode chamar propri­
amente falando um mito. Já tive a ocasião de abordar esse problema, no que
talvez se possa mesmo dizer que a construção freudiana é talvez aqui o exem­
plo único de um mito formado que tenha surgido em nossa idade histórica. Há
esse mito que nos indica de algum modo a ligação primitiva, essencial, de total
necessidade, que faz com que possamos conceber a ordem da lei, senão sobre
a base de alguma coisa de mais primordial que se apresenta, como o quê? É
esse o sentido do mito de Édipo de Freud, é demasiado evidente que esse
crime, que é o assassinato primitivo do pai-que é para ele exigido como deven­
do reaparecer sempre como formando o horizonte, a barra terminal do proble­
ma das origens em toda matéria analítica, observêmo-lo, pois ele o reencontra
sempre e nada lhe parece esgotado se ele não alcança esse último termo- o
assassinato primitivo do pai, que ele o coloque na origem da horda ou na origem
da tradição judaica, tem bem evidentemente um caráter de exigência mítica.
Um outro plano é aquele onde essa alguma coisa se desenvolve e se
encarna num drama formador. Outra coisa é a relação da lei primitiva com o
crime primitivo, e o que se passa quando o herói trágico que é Édipo, que
também é cada um de nós em algum ponto de seu ser virtualmente quando ele
reproduz o drama edipiano, quando ao matar o pai, une-se à mãe, quando de
algum modo ele renova no plano trágico, em um tipo de banho lustrai, o
renascimento da lei.
Aqui podemos ver as dissimetrias entre a tragédia de Édipo e a tragédia
de Hamlet. Édipo responde estritamente a essa definição que acabei de dar de
reprodução ritual do mito. Édipo em suma, completamente inocente, inconsci­
ente, faz em uma espécie de sonho que é sua vida -la vie est un songem-,
realiza sem o saber a renovação dos passos que vão do-crime à restauração da
ordem e à punição que ele próprio assume, que nô-lo faz aparecer, ao final,
castrado.

180 CALDERON, Lavieestsueno, La vie est un songe (1636), Col. Bilingue Aubier-Flammarion,
Paris, 1976.

362
Pois está bem aí o elemento do qual devemos tirar um proveito essencial
e que permanece, se nos atemos ao nível genético do assassinato primitivo, o
elemento que a nós permanece velado. É o sentido no final das contas disso
que aponta, disso que importa, ou seja dessa punição, dessa sanção, dessa
castração na qual permanece fechado à chave algo que é o resultado, que é
propriamente falando a humanização da sexualidade no homem, que é também
a chave na qual temos costume, por nossa experiência, de fazer girar todos os
acidentes da evolução do desejo.
E aqui que não se faz indiferente apercebermo-nos das dissimetrias en­
tre o drama de Hamlet e o drama de Édipo. Persegui-las até o detalhe seria
quase uma operação demasiado brilhante. Indiquemos mesmo assim que o cri­
me se produz no Édipo no nível da geração do herói. Em Hamlet, eleja se
produziu no nível da geração precedente. Em Édipo, ele se produz o herói não
sabendo o que faz e sendo de algum modo guiado pelofatum. Aqui, no Hamlet,
o crime é realizado de uma maneira deliberada já que ele o é mesmo por trai­
ção. Ele surpreende este que é a sua vítima, o pai, numa espécie de sono, e
mesmo num sono completamente real. Ele é nesse sono alguma coisa que não
está absolutamente integrada. Pode-se dizer que Édipo representou o drama
como cada um de nós o repete em seus sonhos, mas aqui o herói foi verdadei­
ramente -aqui nossas referências podem servir- surpreendido de uma maneira
completamente estranha ao p hilum'*' do que ele então persegue de seus pen­
samentos. Ele o indica, «Eu fui surpreendido na flor de meus pecados». Um
golpe vem derrubá-lo, partindo de um ponto de onde ele não o espera, verdadei­
ra intrusão do real, verdadeira ruptura do fio do destino. Ele morre sobre um
leito de flores, nos diz o texto shakespeareano, e a cena dos atores vai mesmo
até o ponto de reproduzir para nós, numa espécie de pantomima preliminar,
esse leito de flores sobre o palco.
Há aí sem dúvida nenhuma algum mistério, do qual tão bem, desde o
início, lhes assinalei o contraste com o fato tão singular de que isso, que é a
irrupção a mais estranha ao sujeito no crime, é alguma coisa que parece de
alguma forma compensado, contrastado da maneira a mais paradoxal pelo fato
de que aqui o sujeito sabe. Quero dizer que Hamlet está informado por seu pai
que sabe o que aconteceu, e isso não é também um dos menores enigmas.

181 Phylum’, cepa primitiva de onde se origina uma série genealógica. Série de formas revestidas
pelos ascendentes de uma espécie.

363
0 drama de Hamlet, contrariamente ao de Édipo, não parte dessa ques­
tão: o que se passa? Onde está o crime? Onde está o culpado? Ele parte da
denúncia do crime, do crime trazido à luz do dia no ouvido do sujeito, e ele se
desenrola a partir da revelação do crime. Também veremos aí ao mesmo tem­
po toda a ambiguidade e o contraste de alguma coisa que se pode inscrever, sob
a forma que é essa em que inscrevemos a mensagem do inconsciente, ou seja,
o significante de tf barrado, S(X)- Na forma se pode-se dizer normal do édipo,
o S(/) porta uma encarnação, a do Outro, do pai -tanto que dele é esperada e
solicitada a sanção do lugar do Outro-, a verdade da verdade, na medida em
que ele deve ser o autor da lei, e no entanto, na medida em que ele não é jamais
aquele que a sofre, aquele que, não mais que qualquer outro, não pode garanti-
la, aquele que, ele também, tem que sofrer a bana, aquele que, enquanto ele é
o pai real faz dele um pai castrado.
Completamente diferente, ainda que ela possa simbolizar-se da mesma
laneira, é a posição ao final do Hamlet, ou mais exatamente a sua partida, já
te é a mensagem que abre o drama de Hamlet. Aqui também vemos o Outro
'elar-se sob a forma mais significante como um A barrado. Não é apenas da
. 'erfície dos viventes que ele é riscado, é de sua justa remuneração. Ele
■ou com o crime no domínio do inferno, quer dizer uma dívida que ele não
; pagar, uma dívida inexpiável, diz ele. E é bem isso o sentido mais terrível
lustiante de sua revelação para seu filho.
Édipo pagou, apresenta-se como aquele que porta no destino do herói a
da dívida cumprida, retribuída. Aquilo de que se queixa pela eternidade o
Hamlet, é de ter sido nesse curso, interrompido, surpreendido, quebrado,
o mais poder responder a isto jamais.
'ocês o vêem, isso em tomo do que nos conduz nossa investigação à
un que ela progride, é o de que se trata na retribuição, na punição, na
■, na relação ao significante falo, já que é nesse sentido que começa­
mos a articulá-lo. E uma ambiguidade se estabelece entre o que Freud ele
mesmo nos indicou de uma maneira talvez um pouco fim de século -ou seja
esse algo que faria com que estivéssemos destinados a não mais viver o édipo
senão sob uma forma de algum modo falseada- e algo do qual seguramente há
um eco em Hamlet.
Um dos primeiros gritos ao final do primeiro ato de Hamlet é esse: «The
time is out of joint: O cursèd spite, That ever I was born to set it right! O
tempo saiu fora de si, Ô maldito (eu não posso traduzir de outro modo spite)

364
despeito»182. Spite está por toda parte nos Sonnets de Shakespeare, “despei­
to” tomou para nós um sentido subjetivo. Nosso primeiro passo numa introdu­
ção à compreensão dos elisabethianos seria, a propósito de um certo número
de palavras, de ver dar-lhes novamente também o poder de.ficar furioso, quer
dizer situar o despeito em alguma parte entre o despeito objetivo e o despeito
ibjetivo, em algo do qual nós parecemos ter perdido a referência, que é justa-
-nte isso que se passa ao nível da ordem, ou seja termos que podem estar entre
dois, entre o objetivo e o subjetivo. «O cursed spite» é isso pelo qual ele tem
despeito, é isso em que o tempo lhe faz também injustiça (não sabemos mais arti­
cular essas palavras que estão em jogo no centro disso que é o vivido do sujeito)
ou bem tudo isso que ele pode designar como a injustiça no mundo. Talvez
vocês reconheçam na passagem a perdição da bela alma da qual não saímos, longe
disso, apesar de todos os nossos esforços, mas que o vocabulário shakesperiano
transcende. E não é à toa que faço alusão aqui aos Sonnets tão alegremente. Por­
tanto, «0 maldição, que eu não tivesse nascido jamais para de novo endireitá-lo».
Eis então justificado mas, ao mesmo tempo, aprofundado, o que, no
Hamlet, pode parecer-nos ilustrar uma forma decadente do Édipo. Uma espé­
cie de Untergang completa que faz ambiguidade com isso para o qual eu quero
agora por um instante dirigir a atenção de vocês, ou seja o que Freud chama
assim em cada vida individual, ou seja o que ele descreveu sob esse título em
1924, chamando a atenção ele mesmo sobre o que é no fim das contas o enig­
ma do Édipo, que não é simplesmente que o sujeito tenha querido, desejado a
morte de seu pai, a violação de sua mãe. mas que isso esteja no inconsciente.
Trata-se de saber como isso vem a estar no inconsciente e como vem a estar aí
a tal ponto que o sujeito, durante um período importante de sua vida, o período
de latência -fonte dos pontos de construção no ser humano de todo seu mundo
objetivo- vem a não se ocupar mais disso absolutamente. De tal forma vem a
não mais se ocupar disso absolutamente que vocês sabem muito bem que Freud
admite, ao menos na origem de sua articulação doutrinai, que num caso ideal
não mais se ocupar disso toma-se alguma coisa de felizmente definitiva. Eu os
remeto a esse texto183 que não é longo, e que vocês encontrarão no tomo XIII
das Gesammelte Werke. 0 que é que Freud nos diz?

182 Hamlet: «La nature est déplacée. Ô désordre maudit, faut-il que je sois né pour te reformer!»
(1,5,188-89)
183 FREUD, S. Der Untergang des Edipuskomplexe (1924), G.W. XIII. Trad. Fr. In La vie

sexuelle. Paris, 1969, P.U.F.

365
Partamos do que ele nos diz, então veremos depois em que isso pode
trazer água para o nosso moinho. Freud nos diz: O Complexo de édipo entra em
seu Untergang, em sua queda, em seu declínio, nesse declínio que será uma
peripécia decisiva para todo desenvolvimento ulterior do sujeito, em seguida a
isso: na medida em que, diz ele, o Complexo de édipo não tenha sido vivido,
experimentado sob as duas faces de sua posição triangular, na medida em que
o sujeito, rival do pai, tenha se visto sobre esse ponto concreto de uma ameaça,
que não é nenhuma outra se não a castração, isto é, que na medida em que ele
queira tomar o lugar do pai, ele será castrado; na medida em que ele tome o
lugar da mãe (é literalmente o que diz Freud), ele perderá também o falo, pois
o ponto de acabamento, de maturidade do édipo, a descoberta plena do fato de
que a mulher é castrada, é feita igualmente.
É muito precisamente enquanto o sujeito está preso nessa alternativa
fechada que não lhe deixa nenhuma saída, sobre o plano de algo que possamos
articular como a relação, que vamos mais longe tentar aprofundar melhor essa
coisa que se chama o falo e que é a chave da situação, que nesse momento é
aquela que se forma como a do drama essencial do édipo. O édipo, diria eu,
enquanto ele é precisamente no sujeito, marca a articulação e a giratória que o
faz passar do plano da demanda àquele do desejo.
E enquanto esta “coisa” -pois eu deixo a interrogação sobre a qualifica­
ção, e iremos ver o que isso deve ser para nós- eu não disse “objeto”. Dizendo
“coisa”, digo real, não ainda simbolizado mas de alguma forma em potência de
sê-lo: isso para dizer tudo que nós podemos chamar um significante, com um
[sentido] difuso.
O falo é isso que nos é apresentado por Freud como a chave da
Untergang, da queda, do declínio do édipo. E nós vemos reunida na articulação
freudiana alguma coisa que coloca a filha numa posição -não digo dissimétrica-
tão dissimétrica. E é na medida em que o sujeito entra quanto a essa “coisa”
numa relação que podemos chamar de lassidão (está no texto de Freud) quanto
à gratificação, é na medida em que o jovem renuncia a estar à altura -isso foi
ainda mais articulado para a filha, que nenhuma gratificação é de se esperar
nesse plano- é enquanto, para dizer tudo, alguma coisa da qual se sabe que não
se produz nesse momento, a emergência articulada de que o sujeito tem de
fazer seu luto do falo, que o édipo entra em seu declínio.
A coisa se destaca de modo tão evidente que é em tomo de um luto, que
não é possível que não tentemos fazer a aproximação para percebermos que é

366
* «» '«M '’M U. V

por aí que se •. a função ulterior desse momento de declínio,


seu papel decis' esqueçamos, não é somente, não pode ser so­
mente, para nós, o. : >s fragmentos, os detritos mais ou menos incomple­
tamente recalcados n ..uipo vão ressurgir ao nível da puberdade sob a forma
de sintomas neuróticos. Mas isso, que sempre admitimos também, que é da
experiência comum dos analistas, disso depende alguma coisa na economia,
não mais somente do inconsciente, mas na economia imaginária do sujeito, que
não se chama nada mais que sua normalização sobre o plano genital. Ou seja
que não há sucesso feliz da maturação genital, senão pelo acabamento justa­
mente tão pleno quanto possível desse édipo, e enquanto o édipo porta como
conseqüência o estigma, no homem como na mulher, do complexo de castra­
ção.
E aqui então, talvez, fazendo a aproximação, a síntese com o que nos foi
dado na obra freudiana concernente ao mecanismo do luto, que podemos
apercebermo-nos de que é isso, para nós, que vai ser esclarecedor quanto ao
fato de que se produz no sujeito esse luto, sem dúvida particular, já que esse
falo não é, sem dúvida, um objeto como os outros.
Mas aqui também podemos nos deter, pois depois de tudo, se eu o per­
gunto a vocês, o que é que define o alcance, os limites dos objetos dos quais nós
podemos ter que portar o luto? Isso até o momento também não foi articulado.
Não temos dúvida de que o falo, entre os objetos dos quais podemos ter que
portar o luto, não o é como os outros. Aí como em toda parte, ele deve ter seu
lugar bem à parte, mas justamente é iss.p que se trata de precisar e como em
muitos casos quando se trata de precisar, é o lugar de alguma coisa sobre um
fundo; é precisando-o sobre esse fundo que a precisão do lugar do fundo apa­
rece também em retroação.
Estamos aqui em terreno completamente novo. Tentemos então, avan­
çar, pois é a isso que vai nos servir, em última instância, nossa análise de Hamlet,
é para nos lembrar essa questão que eu trabalho diante de vocês por uma série
de toques concêntricos, que eu acentuo, que eu lhes faço escutar de uma ma­
neira diversamente ressonante e que eu espero fazer cada vez mais precisa, ou
seja o que eu chamo o lugar do objeto no desejo.
O que nos diz Freud quanto a esse luto do falo? Ele nos diz que o que
está ligado a ele, o que é uma das molas fundamentais, o que lhe dá seu valor -
pois é isso que procuramos- é uma exigência narcísica do sujeito. Eis estabelecida
aqui a relação desse momento crítico em que o sujeito se vê de todas as formas

367
castrado ou privado da coisa, do falo. Aqui Freud faz intervir, e como sempre
sem a menor precaução -eu quero dizei que ele nos apressa como de hábito e,
graças a Deus, ele o fez em toda sua existência, pois ele não teria chegado
jamais ao fim do que lhe restava traçar em seu campo- ele nos diz que é uma
exigência narcisica. No momento do desenlace final de suas exigências edipianas,
o sujeito prefere, se pode-se dizê-lo, abandonar-se toda a parte de si mesmo,
sujeito, que lhe será, para sempre desde então interdita, ou seja na cadeia
significante pontuada, isso que faz o alto de nosso grafo.
Todo o assunto não é outro que o assunto fundamental da relação de
amor tal como ela é para ele apresentada na dialética parental, e a maneira
como ele podia nela se introduzir. Ele vai deixar afundar tudo isso em razão,
Freud nos diz, de alguma coisa que diz respeito a esse falo (como tal já tão
enigmaticamente introduzido aí desde a origem e, no entanto, de uma maneira
tão clara através de toda a experiência) numa relação narcisica com esse termo.
O que isso pode querer dizer para nós, em nosso vocabulário, na medida
em que nosso vocabulário pode ser alguma coisa de esclarecedora, de mais
esclarecedora, alguma coisa pela qual nós tentamos responder a essa exigên­
cia que Freud, dizia eu há pouco, deve deixar de lado porque lhe é necessário ir
ao vivo, ao decisivo do sujeito e porque ele não tem muito tempo para se deter
sobre as premissas. Aliás, é em geral dessa forma que se funda toda ação, e
mais ainda toda ação verdadeira, quer dizer, a ação que é aí nosso propósito ou,
pelo menos, que deveria sê-lo.
Pois bem, traduzido em nosso discurso, em nossas referências, “narcísico”
implica uma certa relação com o imaginário. “Narcísico” explica-nos aqui isso,
é que muito exatamente no luto enquanto que nesse luto nada é satisfeito -e
aqui nada pode satisfazer, já que a perda do falo experimentada como tal é a
saída mesma do giro feito de toda relação do sujeito a isso que se passa no
lugar do Outro, isto é ao campo organizado da relação simbólica na qual come­
çou a se exprimir sua exigência de amor. Ele está no limite e sua perda nesse
processo é radical.
O que se produz então é muito precisamente esse algo do qual eu já
indiquei o parentesco com um mecanismo psicótico, na medida em que é com
sua textura imaginária, e somente com ela, que o sujeito pode responder a isso.
O que, sob uma forma velada, Freud nos apresenta como sendo a ligação narcisica
do sujeito à situação representando isso, isso que nos permite nesse momento
identificá-lo a alguma coisa que representa nele, sobre o plano imaginário, essa

368
falta como tal que coloca, se pode-se dizer, em nulidade ou em reserva nele,
tudo o que mais tarde vai ser a forma de onde virá se remodelar sua assunção
de sua posição na função genital.
Mas aí, é ainda transpor depressa demais isso de que se trata realmen­
te? É fazer crer,’como se crê, que a relação ao objeto genital é uma relação de
positivo a negativo? Vocês verão, não é nada disso, e é por isso que nossas
notações são melhores, porque elas permitem articular como vai apresentar-se
realmente o problema.
Isso de que se trata de fato é alguma coisa que, para nós, deve conotar-
sè sob a forma seguinte, na medida em que ela nos fez abordar esse algo do
qual já nos aproximamos quando distinguimos as funções da castração, da frus­
tração e da privação. Se vocês se recordam, eu, então, lhes escreví: castração,
ação simbólica; frustração, termo imaginário; e privação, termo real. Eu lhes
dei as conotações de suas relações aos objetos. Eu lhes disse que a castração
se relacionava ao objeto fálico imaginário, e lhes escrevi que a frustração, ima­
ginária na sua natureza, relacionava-se sempre a um bem e a um termo real, e
que a privação, real, relacionava-se a um termo simbólico. Não há, acrescenta­
va eu naquele momento, no real, nenhuma espécie de fase ou de fissura. Toda
falta é falta a seu lugar, mas falta a seu lugar e falta simbólica.
Há aqui uma coluna que é essa do agente, dessas ações com seu termo
objetai que é alguma coisa que eu toquei naquele momento em um único ponto,
ao nível do agente da frustração, a mãe, e para lhes mostrar que é na medida
em que a mãe como tal é lugar da demanda de amor, era de início simbolizada
no duplo registro da presença e da ausência, que ela achava-se estar em posi­
ção de dar a partida genética da dialética, na medida em que, mãe real, ela faz
tomar isso do qual o sujeito é privado realmente, o seio por exemplo, em símbo­
lo de seu amor. E eu fiquei por aí.
Vocês podem ver que permaneceram livres aqui as casas que
correspondem ao termo “agente” nas duas outras relações; é agora com efeito,
e somente agora que podemos aqui inscrever isso de que se trata.
O termo “agente” é alguma coisa que, quanto a seu .lugar, relaciona-se
ao sujeito. Este sujeito, nós não podíamos naquele momento articular nitida­
mente os diferentes estágios. É agora que podemos fazê-lo, e agora que pode­
mos inscrever ao nível onde nós colocamos o lugar efetivo da mãe, o termo
onde tudo o que se passa por seus feitos toma seu valor, isto é, o A do Outro
como sendo aí que se articula a demanda.

369
Ao nível da castração, nós temos um sujeito enquanto real, mas sob a
forma em que aprendemos a articulá-lo e a descobri-lo desde então, isto é
enquanto o sujeito falante, enquanto o sujeito concreto, isto é marcado pelo
signo da palavra. E claro! Vocês o verão de imediato justamente. É isso o que
me parece que há algum tempo os filósofos tentam articular concernente à
natureza singular da ação humana. Não é possível aproximar-se do tema da
ação humana sem aperceber-se que, quanto à ilusão de não sei que começo
absoluto que seria o último termo em que se pode apontar a noção de agente,
há alguma coisa que claudica. Essa alguma coisa que claudica, através dos
tempos, tentou-se introduzi-la em nós sob a forma de diversas especulações
sobre a liberdade que é ao mesmo tempo necessidade: eis ai o último termo em
que os filósofos chegaram a articular algo, isto é que não há outra ação verda­
deira do que colocá-los de algum modo na linha reta das vontades divinas.
Parece-nos que pelo menos nós podemos pretender aqui aportar alguma
coisa de um registro completamente diferente pela qualidade particular de sua
articulação, quando dizemos que o sujeito, enquanto real, é alguma coisa que
tem essa propriedade de estar numa relação particular com a palavra,
condicionando nele essa eclipse, essa falta fundamental que o estrutura como
tal ao nível simbólico, na relação à castração. Não se trata aí de um lingote de
ouro, de um abre-te sésamo, de alguma coisa que nos abre tudo, mas que isso
começa a articular algo, e algo que não foi jamais dito, seguramente talvez isso
valha a pena sublinhar.
Então, o que é que vai aparecer aqui ao nível da privação? Ou seja do
que se toma o sujeito na medida em que foi simbolicamente castrado? Mas ele
foi simbolicamente castrado ao nível de sua posição como sujeito falante, não
de seu ser, desse ser que tem que fazer o luto dessa alguma coisa que ele deve
oferecer em sacrifício, em holocausto, a sua função de significante faltante.
Isso toma-se muito mais claro e muito mais fácil de conotar a partir do momen­
to em que é em termos de luto que nos colocamos o problema. Em termos de
luto, é na medida em que podemos escrever sobre o plano em que o sujeito é
idêntico às imagens biológicas que o guiam, e que para ele fazem o sulco prepa­
rado de seu behaviour, disso que vai atraí-lo, e por todas as vias da voracidade
e do ato de cópula, e aí alguma coisa é presa, é fixada, é subtraída nesse plano
imaginário que faz do sujeito como tal algo de realmente privado.
Essa privação que nossa contemplação, nosso conhecimento, não nos
permite reparar, não nos permite situar em nenhuma parte no real, porque o

370
*» n» « u -a.

real como tal define-se como sempre pleno. Nós reencontramos aqui, mas sob
uma outra forma e de outro modo acentuado essa observação do pensamento
que se chama, certo ou errado, existencialista, que é o sujeito humano, vivente,
que introduz aí uma nadificação -que eles denominam como tal, mas que, nós,
nós denominamos de outra forma. Pois não nos é suficiente essa nadificação
da qual os filósofos fazem seu domingo, e mesmo seus domingos da vida (ver
Raymond Queneau184). Isso não nos satisfaz pelos usos mais artificiais que
disso faz a prestidigitação dialética moderna.
Nós, nós chamamos isso -<p, quer dizer o que Freud assinalou como
sendo o essencial da marca sobre o homem de sua relação ao Lógos, quer
dizer, a castração, aqui efetivamente assumida sobre o plano imaginário. Vocês
verão a seguir ao que nos servirá essa notação -<p. Ela nos servirá para definir
isso de que se trata, isto é o objeto a do desejo, tal como ele aparece em nossa
formulação do fantasma, que vai ser para nós situada em relação às categorias,
aos começos de capítulos, aos registros que são nossos registros habituais na
análise.
O objeto a do desejo -nós iremos defini-lo, nós iremos formulá-lo como
já o fizemos e iremos repeti-lo uma vez mais aqui- é esse objeto que sustenta a
relação do sujeito a isso que ele não é. Até aqui chegamos praticamente tão
longe, ainda que um pouquinho mais, [do que] a filosofia tradicional e
existencialista formulou sob a forma da negatividade ou da nadificação do su­
jeito existente -mas nós acrescentamos: a isso que ele não é, na medida em
que ele não é o falo. E o objeto que sustenta o sujeito nessa posição privilegiada
que ele é levado a ocupar em certas situações, que há de ser propriamente essa
de que ele não é o falo, o objeto a tal como nós tentamos defini-lo, pois tomou-
se para nós agora exigível que nós tenhamos uma justa definição do objeto, pelo
menos que nós façamos essa experiência a partir de uma definição que cremos
justa desse objeto, de tentar ver como se ordena, e ao mesmo tempo se diferen­
cia, isso que até o presente em nossa experiência nós começamos, com ou sem
razão, a articular como sendo o objeto.
Pois bem entendido isso que nós vamos ver, é que nós vamos nos colo­
car a questão: esse objeto, na medida em que ele é a, será que nós definimos aí

1,4 QUENEAU R., Le dimanche de la vie.

371
o objeto genital? O que quererá dizer que todos os objetos pré-genitais não
seriam objetos? Não respondo, a essa questão, digo que ela vai colocar-se a
partir do momento em que é assim que nós vamos começar a colocar o problema.
É claro que a resposta não saberá ser inteiramente simples, e que desde
logo uma das vantagens que aparece é de nos permitir, em todo caso ver a
distinção, o viés, o plano de divagem que se estabelece entre o que se chamou
até agora a fase fálica -e eu estou aqui na estrita via de nossa experiência
tradicionalmente aceita- e a fase genital.
E da relação, que há alguns anos era completamente impossível de en­
contrar, dessa fase fálica na formação e na maturação do objeto que se trata. É
em relação a essa posição sempre velada, que não aparece senão nas phanies,
nas aparições relâmpago, que se chama o ter, é claro, ou a não ter, quer dizer é
em seu reflexo ao nível do objeto, que nós reencontramos, que nós percebemos
a posição radical disso de que se trata. Mas a posição radical, a do sujeito ao
nível da privação, do sujeito enquanto sujeito do desejo como tal, é de não ser o
falo, é de ser ele mesmo, se posso dizê-lo, um objeto negativo.
Vocês vejam até onde eu vou. As três formas então nas quais aparece o
sujeito ao nível dos três termos, castração, frustração e privação, são três for­
mas que nós podemos bem chamar de alienadas, mas talvez forneçamos a esse
termo de alienação uma articulação sensivelmente diferente enquanto
diversificada. Quero dizer que, se ao nível da castração o sujeito aparece em
uma síncope do significante, é outra coisa do que quando ele aparece ao nível
do Outro enquanto submetido à lei de todos, é outra coisa ainda que quando ele
próprio tem que se situar no desejo, em que a forma de sua desaparição nos
parece então ter em relação às duas outras uma originalidade singular bem
própria para nos suscitar articulá-la mais adiante.
E é bem isso que se produz com efeito em nossa experiência, e isso em
direção ao que nos atrai o desenrolar da tragédia do Hamlet. O «algo de po­
dre»185 com que o pobre Hamlet tem que endireitar-se é alguma coisa que tem
a mais estreita relação com essa posição frente à frente ao falo. Ao longo de
toda a peça nós o sentimos, esse termo, presente em toda a parte na desordem
manifesta que é aquela de Hamlet cada vez que ele se aproxima, se podemos

l8i Marcellus'. «II y a quelque vice cachê dans 1’état de Danemark». (1,4,90)

372
dizê-lo, dos pontos candentes de sua ação. Não poderei hoje senão indicar-lhes
os pontos que nos permitem segui-lo à risca.
Há algo de muito estranho na maneira como Hamlet fala de seu pai. Há
uma exaltação idealisante de seu pai morto que se resume mais ou menos a
isso de que a voz lhe falta para dizer o que ele pode ter a dizer e que, verdadei­
ramente, ele se sufoca e se estrangula para concluir nisso, que parece uma
dessas formas particulares do significante que se chama, em inglês, pregnant™,
quer dizer, alguma coisa que tem um sentido para além de seu sentido. Ele não
encontrava nada mais a dizer de seu pai senão, diz ele, que ele era a man como
todos os outros186 187. O que ele quer dizer é bem evidentemente o contrário, pri­
meira indicação e pista disso de que eu quero lhes falar.
Há muitos outros termos ainda. A rejeição, a depreciação, o desprezo
lançado sobre Cláudio é algo que tem todas as aparências de uma denegação.
A saber, que no desencadeamento de injúrias com que ele o cobre, e diante de
sua mãe, nomeadamente, ele culmine nessa expressão: “Um rei de peças e de
pedaços”188, um rei feito de dejetos encaixados, que não pode não nos indicar
que há aí alguma coisa também de problemática, e da qual seguramente nós
não podemos não fazer a ligação com um fato, é que, se há alguma coisa de
surpreendente na tragédia de Hamlet em relação à tragédia edipiana, é que,
após a morte do pai, o falo, ele, está sempre lá. Ele está bem belo lá e é justa­
mente Cláudio que é encarregado de encamá-lo. É, a saber, do falo real de
Cláudio que se trata todo o tempo, e Hamlet não tem, em suma, outra coisa a
reprovar à sua mãe senão, precisamente, de ter-se preenchido com ele, mal
seu pai é morto -e de devolvê-la de um braço e de um discurso desalentador a
esse fatal e fatídico objeto, ele aí belo e bem real, que parece ser, com efeito, o
único ponto em redor do qual gira o drama.
É, a saber, que, para essa mulher, que não nos parece uma mulher, em
sua natureza, tão diferente das outras, há na peça, estando dados, aliás, todos
os sentimento humanos que ela mostra, alguma coisa de bem forte que deve,
apesar de tudo, prendê-la a seu parceiro. Ora, parece bem que seja aí o ponto
em tomo do qual gravita e hesita a ação de Hamlet, o ponto onde, se podemos
dizê-lo, seu gênio espantado treme diante de algo completamente inesperado. E

186 Pregnant: carregado de sentido, sugestivo, rico em sugestões.


187 Hamlet: «He was a man. Take him for all in all, /[shall not look upon his like again». (1,2,187)
188 Hamlet: «Un roi de theatre». (111,4,103)

373
que o falo está em posição completamente ectópica em relação à nossa análise
da posição edipiana. O falo, aqui belo e bem real, é como tal que se trata de
golpeá-lo. Hamlet se detém sempre. Ele diz: «Eu bem poderia matá-lo»189 no
momento em que ele encontra nosso Cláudio em orações. E esse tipo de flu­
tuação diante do objeto a atingir, esse lado incerto do que hâ a atingir, é ai que
está o motor mesmo do que faz desviar a todo instante o braço de Hamlet,
justamente esse laço narcísico de que nos fala Freud em seu texto do declínio
do Édipo. Não se pode atingir o falo, porque o falo, mesmo se ele está aí belo e
bem [bel et bien] real, é uma sombra.
Eu lhes peço para refletir sobre isso, a propósito de toda sorte de coisas
bem estranhas, paradoxais, nomeadamente: a que ponto essa coisa da qual nós
nos pertubávamos à época, a saber, por que, após tudo, era perfeitamente claro
que não se assassinava Hitler. Hitler que representa tão bem o objeto do qual
Freud nos mostra a função nessa espécie de homogeneização das massas pela
identificação a um objeto no horizonte, a um objeto x, a um objeto que não é
como os outros. Não está ai algo que nos permite ir ter com isso de que nós,
neste instante, começávamos a falar?
A manifestação completamente enigmática do significante da potência
como tal, eis do que se trata. O Édipo, quando se apresenta sob a forma parti­
cularmente surpreendente no real como ocorre no Hamlet, a do criminoso e do
usurpador instalado como tal, desvia o braço de Hamlet, não porque ele tem
medo desse personagem que ele despreza, mas porque ele sabe que o que ele
tem a atingir é outra coisa do que o que está lá. E isso é tão verdadeiro que dois
minutos mais tarde, quando ele tiver chegado ao quarto de sua mãe, que ele
terá começado a lhe sacudir as tripas, ele escuta um ruído atrás da tapeçaria e
precipita-se sem olhar.
Não sei mais qual autor astucioso fez observar que é impossível que ele
creia que seja Cláudio, pois acaba de deixá-lo na peça ao lado, e, no entanto,
quando ele tiver arrebentado, estripado o infeliz Polônio, ele fará essa reflexão:
«Pobre velho louco, eu pensava estar lidando com algo melhor»190. Cada um
pensa que ele quis matar o rei, mas, diante do rei -eu falo de Cláudio, o rei real,
o usurpador também- ele se detém, no fim das contas, porque ele queria ter um

189Hamler. «Je vais l’exécuter». (111,3,73)


190 Hamlet: «Je t’ai pris pour quelq’un de plus gand que toi». (111,4,32)

374
melhor, quer dizer, tê-lo ele também na flor de seu pecado. Tal como se apre­
sentava aí, não era isso, não era o certo...
O de que se trata, então, é justamente do falo, e é por isso que ele não
poderá jamais atingi-lo até o momento em que, justamente, ele terá feito o
sacrifício completo, e ainda assim apesar dele, de todo seu apego narcísico; a
saber, quando ele estiver ferido de morte e o sabe. É somente nesse momento
que ele poderá fazer o ato que espera Cláudio. A coisa é singular e evidente,
ela é surpreendente e, eu diria, ela está inscrita em toda sorte de pequenos
enigmas do estilo de Hamlet.
Quando esse tipo de personagem que para ele não é senão um calf, um
bezerro capital que ele de algum modo imolou aos manes de seu pai -pois ele
foi muito pouco afetado pela morte de Polônio-, quando ele escondeu esse
Polônio num canto sob a escada e que lhe perguntam por toda parte do que se
trata, ele larga um desses pequenos gracejos que são nele sempre tão
desconcertantes para seus adversários. Todo mundo pergunta-se, é bem aí o
âmago do negócio, se isso que ele diz é bem o que ele quer dizer, pois o que ele
diz faz cócegas em todo mundo no lugar certo. Mas, para que ele o diga é
preciso que ele saiba tanto, que não se pode crê-lo, e assim por diante...
É uma posição que deve nos ser suficientemente familiar do ponto de
vista do fenômeno da confissão do sujeito. Ele diz essa frase que permaneceu
até agora bastante inacessíveis aos autores: «.The body is with the king (ele
não emprega a palavra corpse, ele diz body aqui, eu lhes peço observar), but
the king is not with the body». Eu lhes peço simplesmente que substituam a
palavra “rei” pela palavra “falo” para perceberem que é precisamente disso
que se trata, a saber, que o corpo está engajado nesse negócio do falo, e como!
Mas que o falo, ao contrário, ele não está engajado em nada e que ele lhes
escapa sempre entre os dedos.
Logo em seguida ele diz «The king is a thing, o rei é uma coisa»19'.
«Uma coisa?», dizem-lhe as pessoas completamente sideradas, estupidificadas,
como cada vez que ele se entrega a seus aforismas costumeiros: «A thing, my
lord?» Hamlet: «Of nothing, uma coisa de nada». A partir do quê, todo mundo
acha de se confortar com não sei que citação do salmista que diz que, com 191

191 Hamlet: «Le corps est avec le roí, mais le roi n’est pas avec le corps. Le roi h’est rien...» -
Guildenstern: «Rien, Seigneur?» - Hamlet: «Quelque chose ou rien. Conduisez moi vers lui...»
(IV,2,25)

375
efeito, o homem é uma «Thing of not, uma coisa de nada»; mas creio que vale
mais para isso reportar-se aos textos shakespearianos mesmos.
Shakespeare me parece, após leitura atenta dos Sonnets, ser alguém
que ilustrou singularmente, em sua pessoa, um ponto absolutamente extremo e
singular do desejo. Em alguma parte em um de seus sonetos192, do qual não se
imagina a audácia -eu espantei-me que se pudesse falar a esse respeito de
ambiguidade- ele fala ao objeto de seu amor, que, como cada um o sabe, era de
seu próprio sexo, e ele tem a aparência de um jovem homem muito encantador
que parece bem ter sido o Conde de Essex; ele lhe diz que ele tem todas as
aparências que lhe satisfazem ao amor, nisso que ele assemelha-se em tudo a
uma mulher, que não há que uma muito pequena coisa cuja natureza quis pro-
vè-lo -Deus sabe por quê!- e que, dessa pequena coisa, ele não tem, infeliz­
mente, ele, nada a fazer, e que ele está bem desolado de que isso deva fazer as
delicias das mulheres. Ele lhe diz que «Paciência, contanto que teu amor per­
maneça comigo, que isso seja o prazer delas».
Os termos «thing» e «nothing» são aqui estritamente empregados e
não deixam nenhuma espécie de dúvida de que isso faça parte do vocabulário
familiar de Shakespeare. Esse vocabulário familiar, após tudo, aqui, é uma coi­
sa secundária. O importante, é se, indo mais longe, nós podemos justamente
penetrar nisso que é a posição, ela mesma criadora, de Shakespeare, sua posi­
ção que eu creio sem nenhuma dúvida poder ser dita sobre o plano sexual
invertida, mas talvez não tão pervertida sobre o plano do amor. Se nós
introduzimo-nos nesse caminho dos Sonnets que nos vai permitir de precisar
um pouco mais de perto ainda o que pode aparecer nessa dialética do sujeito
com o objeto de seu desejo, nós poderemos ir mais longe em algo que eu cha­
maria os instantes em que, por alguma via (e a via maior sendo essa do luto) o
objeto desaparecendo, evanescendo-se a passo pequeno, faz, por um tempo -
um tempo que não saberá subsistir que no clarão de um instante- manifestar-
se a verdadeira natureza disso que lhe corresponde no sujeito, a saber, o que eu
chamarei as aparições do falo, as falofanias. E em tomo disso que eu os deixa­
rei hoje.

1,2 SHAKESPEARE W., Sonnets (1609), n° 20, texto e tradução de Henri Thomas, Le club
françaisdu livre, 1961. Lacan faz alusão aos seis últimos versos: "Andfor awomanwert thoufirst
created; /Till Nature, as she wrought thee, fell a-doting, /And by addition me of thee defeated/By
adding one thing to my purpose nothing, / But since she prick 'd thee outfor women's pleasure /
Mine be thy, and thy love's use their treasure... "

376
Lição 20
13 de maio de 1959

Falamos do desejo. Durante essa interrupção de uns quinze dias, tentei


eu mesmo recentrar esse caminho que é o nosso esse ano e que nos obriga,
como todo caminho, às vezes a longos desvios. No meu esforço de retomar a
origem ao mesmo tempo que a visada de nosso tema, creio haver tentado refa­
zer também para vocês este esclarecimento que não é senão, igualmente, uma
maneira a mais de concentrar-se no progresso de nossa atenção.
Trata-se em suma, no ponto em que estamos, de tentar articular onde
está nosso encontro marcado. Não é somente o encontro marcado desse semi­
nário, nem tampouco o encontro marcatjo de nosso trabalho cotidiano de ana­
listas, ele é, igualmente, o encontro marcado de nossa função de analista e do
sentido da análise.
Só podemos estar surpresos pela persistência de um movimento tal como
a análise, se fosse somente, dentre outros na história, um empreendimento
terapêutico mais ou menos fundado, mais ou menos bem sucedido. Não há
exemplo de nenhuma teorização, de uma ortopedia psiquica qualquer que tives­
se uma carreira mais extensa do que meio século. E seguramente, não pode­
mos deixar de reconhecer que o que faz a duração da análise, o que faz seu
lugar além de sua função, de sua utilização médica -que ninguém afinal de
contas pensa em contestar- é que há na análise algo que concerne ao homem
de maneira totalmente nova, séria, autêntica. Nova na sua contribuição, séria
no seu alcance, autentificada pelo quê? Seguramente por outra coisa do que
resultados frequentemente discutíveis, por vezes precários.

377
Acredito que o que é o mais característico no fenômeno, é o sentimento
que temos desta coisa, que chamei uma vez a coisa freudiana, que é uma
coisa da qual falamos pela primeira vez. Irei mais longe, até dizer que o que é
ao mesmo tempo o testemunho e a manifestação a mais verdadeira desta au­
tenticidade de que se trata, da coisa, o testemunho sendo dado a cada dia pelo
formidável palavrório que há em tomo.
Se você toma em seu conjunto a produção analítica, o que espanta é
este esforço dos autores que no final das contas desliza sempre para apreen­
der, de sua própria atividade, um princípio. Mas este princípio, articulando-o de
uma maneira que, durante todo o curso da análise, não se apresenta nunca
como encerrado, fechado, concluído, satisfatório, este perpétuo movimento,
deslizamento dialético, que é o movimento e a vida da investigação analítica, é
alguma coisa que testemunha da especificidade do problema em tomo do qual
esta investigação está enganchada.
Junto a isto, tudo o que nossa investigação comporta de inabilidade, de
confusão, de inseguro mesmo nos seus princípios, tudo o que, na sua prática,
isto traz de equivoco -eu penso em encontrar sempre não somente diante de si,
mas na sua prática mesma o que é justamente seu princípio, o que queríamos
evitar, ou seja a sugestão, a persuasão, a construção, até mesmo a mistagogia-
todas estas contradições no movimento analítico não fazem senão marcar a
especificidade de A coisa freudiana.
Esta coisa, nós a abordaremos esse ano por hipótese -sustentados por
toda a marcha concêntrica de nossa investigação anterior- sob esta forma, ou
seja, que esta coisa é o desejo. E ao mesmo tempo, no momento em que articu­
lamos esta fórmula, nós nos apercebemos de um tipo de contradição pelo fato
de que todo nosso esforço parece exercer-se no sentido de fazer perder a este
desejo seu valor, seu acento original, [não] sem que nós possamos, contudo,
apontar, e até mesmo fazer o que a experiência nos mostra que é bem com seu
acento original que nós temos a ver com ele.
O desejo não é algo que possamos considerar como reduzido, normalizado,
funcionando através das exigências de um tipo de preformação orgânica que nos
conduziría, antecipadamente, na via e no caminho traçado no qual haveremos de
fazê-lo entrar, reconduzi-lo. O desejo, desde a origem da articulação analítica por
Freud, apresenta-se com este caráter que em inglês, lust quer bem dizer “cobiça”,
assim como “luxúria”, esta mesma palavra que está no lust principle. E vocês
sabem que em alemão ele mantém toda a ambiguidade do “prazer” e do “desejo”.

378
Essa alguma coisa que se apresenta de início para a experiência como
perturbação, como alguma coisa que perturba a percepção do objeto, alguma
coisa tal como as maldições dos poetas e dos moralistas, nos mostram como,
igualmente, ele ò degrada, este objeto, o desorganiza, o avilta, em todo caso o
desestabiliza, por vezes chega até a dissolver aquele mesmo que o percebe,
quer dizer, o sujeito.
Este acento é certamente articulado ao princípio da posição freudiana na
medida em que a colocação no primeiro plano do Lust, tal como ele é articulado
em Freud, nos é apresentada de uma maneira radicalmente diferente de tudo o que
foi articulado anteriormente concernindo ao princípio do desejo. E ele nos é apre­
sentado em Freud como estando, em sua origem e em sua fonte, oposto ao princí­
pio da realidade. O acento é conservado, em Freud, da experiência original do
desejo como sendo oposta, contrária à construção da realidade. O desejo é defini­
do como marcado, acentuado pelo caráter cego da busca que lhe é a sua, como
algo que se apresenta como o tormento do homem, e que é efetivamente feito de
uma contradição na busca do que, até aqui, para todos aqueles que tentaram
articular o sentido das vias do homem na sua busca, de tudo o que, até aqui,
sempre foi articulado ao princípio como sendo a busca de seu bem pelo homem.
O principio do prazer, através de todo pensamento filosófico e moralista,
através dos séculos, nunca partiu em toda definição originária pela qual toda
teoria moral do homem se propõe, sempre afirmou-se, qualquer que ela seja,
como hedonista. Ou seja que o homem procurava fundamentalmente seu bem,
que ele soubesse ou que ele não soubessç, e que igualmente não era senão por
uma espécie de acidente que se encontrava promovida a experiência deste
erro de seu desejo, de suas aberrações. É em seu princípio, e como fundamen­
talmente contraditório, que pela primeira vez numa teoria do homem, o prazer
se encontra articulado com uni acento diferente; e em toda medida em que o
termo do prazer no seu significante mesmo, em Freud, está contaminado pelo
acento especial com o qual apresenta-se o lust, a Lust, a cobiça, o desejo.
O desejo, portanto, não se organiza, não se compõe numa espécie de
acordo pré-formado com o canto do mundo, como finalmente uma idéia harmô­
nica, otimista do desenvolvimento humano poderia supô-lo. A experiência ana­
lítica nos ensina que as coisas vão num sentido diferente. Como vocês sabem,
como nós havíamos enunciado aqui, ela nos mostra algo que é justamente o que
vai nos engajar numa via de experiência que é também, pelo seu desenvolvi­
mento mesmo, algo onde nós iremos perder o acento, a afirmação deste instan-

379
te primordial. É a saber que a história do desejo se organiza em um discurso
que se desenvolve no insensato —isto é o inconsciente- em um discurso cujos
deslocamentos, cujas condensações são sem nenhuma dúvida o que são deslo­
camentos e condensações no discurso, quer dizer, metonímias e metáforas.
Mas metáforas que não engendram nenhum sentido, à diferença da metáfora,
deslocamentos que não trazem nenhum ser e onde o sujeito não reconhece algo
que se desloca. É em tomo da exploração deste discurso do inconsciente que a
experiência da análise se desenvolveu, é portanto em tomo de algo cuja dimen­
são radical, nós podemos chamá-la, a diacronia do discurso.
O que faz a essência de nossa investigação, isto em que se situa o que
nós tentamos retomar quanto ao que se trata deste desejo, é nosso esforço para
situà-lo na sincronia. Nós somos introduzidos a isto por algo que se faz ouvir a
cada vez que abordamos nossa experiência. Nós não podemos não ver, não
apreender -que leiamos o relatório, o text-book da experiência a mais originá­
ria da análise, ou seja L’Interpretation des rêves de Freud, ou que nós nos
reportemos a uma sessão qualquer, a uma seqüência de interpretações- o ca­
ráter de retomo indefinido que tem todo exercício dé uma interpretação, que
não nos apresenta nunca o desejo senão sob uma forma articulada, mas que
supõe no princípio algo que necessita este mecanismo de reenvio de voto em
voto em que o movimento do sujeito se inscreve, e igualmente esta distância em
que ele se encontra de seus próprios votos.
E por esta razão que nos parece que ele [não] pode legitimamente for­
mular como uma esperança que a referência à estrutura, referência lingüística
como tal -enquanto eia nos lembra que não poderia ter formação simbólica se
ao lado e principalmente, primordialmente a todo exercício da fala que se cha­
ma discurso, não houvesse necessariamente um sincronismo, uma estrutura da
linguagem como sistema sincrônico. E aí que nós procuramos situar qual é a
função do desejo.
Onde o desejo se situa na relação que faz com que este algo, [esse] x, que
de agora em diante nós chamamos o homem na medida em que ele é o sujeito do
Logos, onde ele se constitui no significante como sujeito? Onde se situa nesta rela­
ção como sincrônica, o desejo? O que, eu penso, lhes fará sentir a necessidade pri­
mordial desta retomada, é esta alguma coisa na qual nós vemos a investigação
analítica, na medida em que ela desconhece esta organização estrutural, se engajar.
Com efeito, anteriormente, no momento mesmo em que eu articulava a
função contrária instaurada na origem, principalmente, pela experiência freudiana

380
entre o principio do prazer e princípio de realidade, vocês não poderíam, ao
mesmo tempo, aperceberem-se que nós estamos justamente no ponto em que a
teoria tenta articular-se justamente nos mesmos termos nos quais eu dizia que
nós poderíamoá dizer que o desejo, aí, não se compõe. Ele se compõe, entretan­
to, no apetite que têm os autores para pensá-lo, para senti-lo de uma certa
maneira, neste certo acordo com o canto do mundo.
Tudo é feito para tentar deduzir de uma convergência da experiência
com uma maturação, o que é ao menos para almejar como um desenvolvimen­
to concluído. E, ao mesmo tempo, é bem claro que tudo isto queria dizer que os
autores abandonaram eles próprios todo contato com sua experiência, caso
pudessem efetivamente articular a teoria analítica nestes termos, quer dizer,
achar o que quer que seja de satisfatório, de clássico, à adaptação ontológica
do sujeito a sua experiência.
O paradoxo é o seguinte, quanto mais se vái no sentido desta exigência,
a qual se vai por todos os tipos de erros -é preciso dizer de erros reveladores,
reveladores justamente porque precisaria tentar articular as coisas diferente­
mente- mais se vai no sentido desta experiência, mais se chega a paradoxos
como o seguinte. Eu tomo um exemplo e eu o tomo de um dos melhores autores
que existe, num dos mais preocupados precisamente com uma articulação jus­
ta, não somente de nossa experiência mas também da soma destes dados, num
esforço também para recensear nossos termos, as noções das quais nos servi­
mos, os conceitos, eu nomeei Edward Glower cuja obra é seguramente uma
das mais úteis para qualquer um que queira tentar -em princípio na análise, isto
é absolútamente indispensável, mais que alhures- saber o que ele fez, e como
também a soma de experiências que ele inclui em seus escritos... Eu tomo um
exemplo de um dos numerosos artigos que é preciso que vocês leiam, aquele
que saiu no International Journal of Psycho-analysis, de outubro de 1933,
parte 4, «De la relation de la formation perverse au développement du
sens de la réalité»'93.
Muitas coisas são importantes para discutir neste artigo, inclusive os
termos de partida que ele nos dá no intento de manejar corretamente o que se
trata para ele de nos mostrar, nomeadamente:

GLOVER E., «The relation of perversion-formation to the development ôf reality-sense»,


I.J.P. 1933, vol.XIV, pp. 486-503. Trad. fr. In Ornicart? 43, pp. 17-37.

381
1 - a definição do «sentido da realidade como sendo esta faculdade da
qual nós inferimos a existência no exame da prova da realidade». Há grande
interesse que as coisas sejam formuladas várias vezes.
2-o que ele chama «provas eficientes da realidade, para todo sujeito
que tenha passado a idade da puberdade, é a capacidade de conservar o conta­
to psíquico com os objetos que permitem a gratificação do instinto, incluindo
igualmente as pulsões infantis residuais modificadas».
3 - «a objetividade é a capacidade de assentar corretamente a relação
da pulsão instintual ao objeto instintual, quaisquer que sejam os fins desta
impulsão, isto é que eles possam ser ou não gratificados».
Eis aí os dados de princípio que são muito importantes e que, seguramen­
te, não podem deixar de impressioná-los como atribuindo ao termo de objetivi­
dade, em todo caso, um caráter que não é mais aquele que lhe é habitualmente
devido. Sua natureza vai nos dar a idéia que de fato alguma coisa não está
perdida da dimensão original da investigação freudiana, já que algo pode ser
desordenado daquilo que, justamente até aí, nos pareciam ser as categorias e
as ordens necessárias pela nossa visão do mundo. Não podemos, além do mais,
senão estar impressionados por isso que comporta nossa [investigação] com
uma tal partida. Ela comporta no caso uma investigação do que significa a
relação perversa, isto sendo entendido no sentido mais amplo, em comparação
com o sentido da realidade. Eu o digo a vocês, o espírito do artigo comporta que
a formação perversa é Concebida pelo autor como sendo no final das contas
um meio para o sujeito de parar seus dilaceramentos, as coisas que “desfocam”,
as coisas que não se apresentam para ele numa realidade coerente.
A perversão é muito precisamente articulada pelo autor como «o meio
de salvação para o sujeito assegurar a esta realidade uma continuidade». Segu­
ramente eis ainda uma via original, eu lhes passo isso, porque resulta desta
forma de articulação, um tipo de onipresença da função perversa. Porque igual­
mente, fazendo a prova de retraçar se se pode dizer as inserções cronológicas,
eu quero dizer, por exemplo, onde convém colocá-la num sistema de anteriori-
dade e de posterioridade no qual nós veriamos se escalonar como mais primiti­
vas as perturbações psicóticas, em seguida as perturbações neuróticas e, no
intermediário, o papel que tem no sistema de Glower a toxicomania, na medida
em que ele faz alguma coisa que responde a uma etapa intermediária, cronologi­
camente falando, entre os pontos de ligação, os pontos fecundos historicamente, os
pontos no desenvolvimento em que remonta a origem destas diversas afecções.

382
Nós não podemos aqui entrar no detalhe da crítica desta visão que não
deixa de ser criticável, como cada vez que se tenta uma pura e simples locali­
zação genética das afecções analisáveis. Mas de tudo isto quero destacar um
parágrafo que lhes mostra a que ponto de paradoxo somos levados por toda
tentativa que, de alguma maneira, parte de um princípio de reduzir a função, à
qual nós tratamos ao nível do desejo, ao nivel do principio do desejo, a algo
como uma etapa preliminar, preparatória, ainda não informada, da adaptação à
realidade, a uma primeira forma de relação à realidade como tal. Pois é partin­
do deste princípio de classificar a formação perversa em relação ao sentido da
realidade que Glower, aqui como alhures, desenvolve seu pensamento.
O que isto comporta, eu lhes indicarei simplesmente por isto, que vocês
reconhecerão aliás em mil outros escritos, que aqui toma seu interesse por
apresentar-se sob uma forma de alguma maneira figurada, literária, paradoxal
e verdadeiramente expressiva. Vocês reconhecerão aí algo que nada mais é
que, verdadeiramente, o período que se pode chamar kleiniano do pensamento
de Glower. Da mesma forma, este período não é tanto um período da luta que
ele acreditou ter que levar sobre o plano teórico com Melanie Klein, sobre
vários pontos pode-se dizer que um tal pensamento tem muitos pontos comuns
com aquele do sistema kleiniano. Trata-se do periodo que, diz ele, apresenta-se
no momento em que a fase dita paranóide do sujeito chega a este «sistema de
realidade» que ele chama «oral-anal», e que seria aquele no qual a criança
encontrar-se-ia vivendo nesta época. Ele o caracteriza como um «mundo exte­
rior que representaria a combinação de, um pequeno açougue, de um public
lavatory (dito de outro modo, um mictório ou algo até mesmo mais elaborado),
sob um bombardeio, e de um postmortem room, de um necrotério»194.
Ele explica que a saída particular que dá o que é o pivô e o ponto central
de sua intenção neste momento, transforma este mundo, como vocês podem
notá-lo de fato, um tanto transtornado, catastrófico,«em uma tranquilizadora e
fascinante farmácia na qual, entretanto, há esta ressalva, de que no armário
onde se encontram os venenos a chave está na porta»195.
Isto que é muito bonito e muito pitoresco, e de natureza a sugerir que há
mesmo assim alguma dificuldade em conceber que efetivamente a abordagem
da realidade é algo que devemos ver numa vivência tão profunda, tão imersa,

1,4 Op. cit., p. 492 (trad. fr. p. 23).


195 Id.

383
tão implícita que nós o supomos como devendo ser para o homenzinho, aquele
de um açougue, de um banheiro público sob. um bombardeio e de uma câmara
fria.
Há aí seguramente algo, cuja razão não é por que isto se apresente sob
um aspecto, inicialmente, conflituoso para que nós rechacemos o princípio, mas
que pode, ao mesmo tempo, fazer-nos legitimamente emitir alguma dúvida so­
bre a exatidão desta formulação, que de uma maneira certa, manifesta, não
poderia recortar uma forma regular do desenvolvimento do homenzinho, que se
o considera como caracterizado pelos modos de adaptação do sujeito à realidade.
Necessariamente, uma tal formulação [implica] pelo menos a articula­
ção de uma dupla realidade: daquela na qual poderia inscrever-se a experiência
behaviorista e de uma outra na qual seremos obrigados, reduzidos, a vigiar as
erupções no comportamento do sujeito, ou seja efetivamente, a restaurar desde
a origem algo que implica a autonomia, a originalidade de uma outra dimensão
que não é a realidade primitiva, mas que é desde o início um além do vivido do
sujeito.
Eu terei, talvez, de desculpar-me por insistir tanto tempo sobre uma con­
tradição que afinal, uma vez que ela está articulada, torna-se tão evidente -
mas não podemos tampouco não nos apercebermos do que comporta o fato
que em determinadas formulações, ela esteja mascarada. Com efeito, nós che­
gamos a algo que comporta no lugar do termo realidade um grave equívoco. Se
a realidade é considerada como tendo para nós o que quer que seja que permita
atribuir a um desenvolvimento paralelo aquele dos instintos -está de fato aí, na
verdade, a mais comumente recebida- nós chegamos a estranhos paradoxos
que, eles, não deixarão de ter repercussões na prática.
Se o desejo está aí, é justamente necessário falar sob sua forma original,
e não sob sua forma mascarada, ou seja o instinto, do qual se trata na evolução,
daquilo que nós tratamos em nossa experiência analítica. Se este desejo inscre­
ve-se numa ordem homogênea, sendo ele inteiramente articulável e seguro em
termos da realidade, se ele é da mesma ordem da realidade, então, com efeito,
concebe-se este paradoxo implicado nas formulações que têm a ver com a
experiência analítica a mais cotidiana. E que o desejo assim situado comporta
que seja sua maturação que permita ao mundo finalizar-se em sua objetividade.
Isto faz mais ou menos parte do credo de uma certa análise.
Eu quero simplesmente aqui colocar a questão do que isto quer dizer
concretamente. O que é um mundo para nós, viventes? O que é a realidade no

384
sentido em que, por exemplo, a psicanálise hartmaniana, aquela que dá toda
importância que merece aos elementos estruturantes que comportam a organi­
zação do eu [moi], na medida em que o eu [znoi] é adaptado a deslocar-se de
uma maneira eficaz na realidade constituída, num mundo que é aproximada­
mente idêntico por enquanto a um campo ao menos importante de nosso uni­
verso. Isto quer dizer que a forma a mais tipica deste mundo, a mais acabada -
gostaria eu também de permitir-me dar imagens que façam vocês sentir o que
falamos- a realidade adulta, nós a identificamos, para fixar as idéias, a um
mundo de advogados americanos!
O mundo de advogados americanos parece-me atualmente o mundo o
mais elaborado, o mais avançado que se possa definir concernindo a relação
com o que, num determinado sentido, é preciso chamar a realidade, ou seja que
nada falta num leque que parte de uma determinada relação fundamentai de
violência essencial, marcada, sempre presente para que a realidade seja aí algo
que nós possamos dizer que não es tá em nenhuma parte elidida e que estende-
se até estes requintes de procedimento que permitem, neste mundo, inserir todo
tipo de paradoxos, de novidades que são essencialmente definidas por uma
relação à lei sendo essencialmente constituída por desvios necessários para
obter sua violação a mais perfeita.
Eis o mundo da realidade. Qual relação há entre este mundo e o que se
pode chamar um desejo maduro; um desejo maduro no sentido em que nós o
entendemos, ou seja a maturação genital, o que é? A questão seguramente
pode ser resolvida de diversas maneiras das quais uma é a da experiência, isto
é o comportamento sexual do advogado americano.
Nada parece, até este dia, confirmar que haja uma relação, uma correla­
ção exata entre a conclusão perfeita de um mundo tão bem controlado na
ordem de todas as atividades, e uma perfeita harmonia nas relações com o
outro -na medida em que isto comporte um êxito sobre o plano do que se
chama o acordo de amor. Nada o prova, e até mesmo quase ninguém pensará
em sustentá-lo, isto igualmente não é senão uma maneira global, ilustrativa de
mostrar onde se coloca a questão.
A questão coloca-se nisto, que uma confusão é mantida neste nível a
propósito do termo “objeto”, entre a realidade (no sentido que acabamos de
articular) na qual ele se situaria, e a relação do sujeito ao objeto, na medida em
que ele implique conhecimento, de uma maneira latente. Na idéia que a
maturação do desejo é algo que comporta de uma só vez uma maturação do

385
objeto, trata-se de um objeto bem outro que aquele que nós podemos efetiva­
mente situar aí [em que] uma localização objetiva nos permita caracterizar as
relações de realidade.
Este objeto do qual se trata, nós o conhecemos desde há muito tempo.
Ainda que ele esteja aí totalmente mascarado, velado, ele é este objeto que se
chama o objeto do conhecimento; objeto que é a meta, a visada, o termo de
uma longa investigação no curso dos tempos, desta que está aí, por detrás dos
frutos que ela obteve ao termo do que nós chamamos a ciência, mas que duran­
te muito tempo teve que atravessar as vias de um enraizamento, de uma certa
relação do sujeito com o mundo. Enraizamento (eu o entendo no plano filosófi­
co) de algo do qual não podemos negar que seja sobre seu terreno que a ciência
tenha conseguido num dado momento dar sua partida, originariamente. E é
justamente o quê agora a distingue -como uma criança que toma sua indepen­
dência, mas que durante muito tempo foi nutrida- desta relação de meditação
da qual nos ficam traços sob o nome de “teoria do conhecimento”; e que, nesta
ordem aproximou-se tão longe quanto possível deste termo, deste pensamento
de uma relação do objeto ao sujeito pelo que “conhecer” comporta uma profun­
da identificação, a relação a uma co-naturalidade pelo que toda tomada do
objeto manifesta algo de uma harmonia principal.
Mas isto, não o esqueçamos, não é senão o fato de uma experiência
especializada, historicamente definível em vários ramos. Mas nós nos conten­
taremos em reportarmo-nos ao espírito, articulando-o, sobre este ramo que é o
nosso, que é aquele da filosofia grega. Este esforço de asserção, de cercar este
algo que se chama objeto, comporta uma atitude principal da qual estaríamos
completamente errados em considerar que podemos agora, uma vez obtidos os
resultados, elidi-la, como se sua posição de princípio estivesse sobre seu efeito
sem importância.
Seguramente nós analistas somos capazes de introduzir a questão do
que, neste esforço do conhecimento, estava implicado de uma posição de dese­
jo. Não faremos, igualmente aqui como alhures, a não ser reencontrar algo que
não passou desapercebido à experiência religiosa que, mesmo que ela possa
indicar-se a si mesma outros fins, individualizou este desejo como desejo de
saber cupido sciendi. Que lhe encontremos bases mais radicais sob a forma
de alguma pulsão ambivalente do tipo da escoptofilia, até mesmo da incorpora­
ção oral, é a questão na qual só fazemos acrescentar nosso toque, mas há uma
coisa certa, é que em todo caso todo este desenvolvimento do conhecimento,

386
com o que ele comporta como trazendo estas noções implícitas da função do
objeto, é o fato de uma escolha.
Toda instauração, toda introdução à posição filosófica nunca foi, no cur­
so dos tempos, sem se fazer reconhecer como sendo uma posição de sacrifício
de algo. É na medida em que o sujeito entra na ordem daquilo que se chama a
investigação desinteressada -no final seu fruto, a objetividade, não se definiu
nunca de outra forma senão como o dano de uma certa realidade numa pers­
pectiva desinteressada- na exclusão ao menos de princípio de uma certa forma
do desejo, é nesta perspectiva que se constitui a noção do objeto que nós
reintroduzimos pois não sabemos o que fazemos, pois ela é implícita ao que
fazemos quando a reintroduzimos, quando supomos que em toda nossa investi­
gação do desejo podemos -como virtual, como latente, como a reencontrar,
como a obter- pôr uma correspondência do objeto, como objeto naturalmente
do que temos explorado na perspectiva do desejo.
É por uma confusão, portaflto, entre a noção do objeto tal como ela foi o
fruto da elaboração de séculos na investigação filosófica, o objeto satisfazendo
o desejo do conhecimento, com o que podemos esperar do objeto de todo dese­
jo, que nós somos levados a colocar tão facilmente a correspondência de uma
certa constituição do objeto com uma certa maturação da pulsão.
É opondo-se a isto que tento articular-lhes de outro modo, e de uma
forma que eu pretendo mais conforme à nossa experiência, ou seja permitir-
lhes apreender a cada instante qual é a verdadeira articulação entre o desejo e
o que se chama no caso seu objeto. E isto quq.eu chamo a articulação sincrônica
que tento introduzir junto a vocês, da relação do desejo com seu objeto. É a
forma verdadeira da pretensa relação de objeto tal qual ela é até aqui articulada
para vocês.
A fórmula simbólica $ y a, na medida em que ela é aquela que lhe per­
mite dar sua forma ao que chamo o fantasma -eu o chamo aqui fundamental,
isto não quer dizer nada mais, a não ser na perspectiva sincrônica que assegura
a estrutura mínima ao que deve ser o suporte do desejo. Nesta estrutura míni­
ma, dois termos cuja relação de um ao outro constitui o fantasma, ele mesmo,
complexo na medida em que é na relação terceira com este fantasma que o
sujeito constitui-se como desejo.
Tomamos hoje a perspectiva terceira deste fantasma fazendo passar a
assunção do sujeito por a, o que é tão legítimo quanto fazê-lo passar por $.
sendo dado que é na relação de confrontação à $ y a que se mantém o desejo.

387
Vocês já me ouviram articular as coisas suficientemente longe para não esta­
rem, eu penso, espantados, confundidos, nem surpreendidos, se adianto que o
objeto a define-se de início como o suporte que o sujeito se dá na medida em
que ele se apaga.
Aqui, paremos por um instante. Comecemos por dizer algo de aproxima-
tivo para que isso lhes fale, aos sentidos, se eu posso dizer, que ele se apaga na
sua certeza de sujeito. E em seguida eu me corrigirei para dizê-lo sob um outro
termo -falando muito pouco à intuição para que eu não tenha temor de levá-lo
a vocês de início- que é, entretanto, o termo exato: na medida em que ele se
desfalece na sua designação de sujeito.
Pois isso de que se trata repousa inteiramente sobre o que se passa na
medida em que, lhes disse, que o sujeito tem, como tal, este desejo no Outro. É
na medida em que no Outro, no discurso do Outro que é o inconsciente, algo
falta ao sujeito (voltaremos a isso logo mais, voltaremos tantas vezes quanto for
preciso, voltaremos até o fim), é na medida em que algo, devido à estrutura
mesma que instaura a relação do sujeito ao Outro enquanto lugar da palavra,
algo no nível do Outro falta que permite ao sujeito identificar-se a isso como,
precisamente, o sujeito deste discurso que ele faz, este algo que faz com que o
sujeito desapareça aí como tal, na medida em que este discurso é o discurso do
inconsciente, que o sujeito emprega a esta designação algo que é tomado a
suas custas -a suas custas não de sujeito constituído na palavra, mas de sujeito
real, belo e bem vivo, quer dizer de algo que por si só não é de maneira nenhu­
ma um sujeito- que o sujeito pagando o preço necessário a esta determinação
do lugar dele mesmo na condição de apagado é introduzido a esta dimensão sem­
pre presente cada vez que se trata do desejo, ou seja de ter de pagar a castração.
Quer dizer que algo de real, sobre o qual ele tem domínio numa relação
imaginária, é trazido à pura e simples função de significante. É o sentido último,
é o sentido o mais profundo da castração como tal. O fato de que a castração
esteja interessada desde que se manifeste de uma maneira clara o desejo como
tal, está ai a descoberta essencial do freudismo, é a coisa que estava até aí
desconhecida, é a coisa que nos permitiu dar todo tipo de visões e compreen-
sões históricas às quais se deram traduções diversamente míticas, às quais,
elas mesmas, tentaram reduzir-se em seguida, em termos desenvolvimentistas.
A fecundidade nesta dimensão não foi duvidosa. Ela não deve nos dispensar de
investigar numa outra dimensão que está aí, diacrônica, quer dizer na dimensão
sincrônica, qual é aqui a relação essencial que interessa.

388
A relação que interessa é esta aqui, ou seja que o sujeito pagante -tento
ser o mais imajante possível, não são sempre os termos os mais rigorosos que
eu trago- pagante de sua pessoa, deva suprir esta relação que é a relação do
sujeito ao significante, em que ele não pode designar-se, em que ele não pode
nomear-se como sujeito. Ele intervém por isso do que podemos encontrar o
análogo na função de determinados símbolos da linguagem, na medida em que
os linguistas os distinguem sob o termo de schifter symbols, nomeadamente;
fiz alusão, ao pronome pessoal, na medida em que a noção simbólica, no siste­
ma lexical, faz com que ele seja alguma coisa que designa aquele que fala
quando é o Eu [Je],
Igualmente, sobre o plano do inconsciente que, ele, não é um símbolo,
que é um elemento real do sujeito, a é o que intervém para suportar este mo­
mento, no sentido sincrônico, em que o sujeito apaga-se para se designar no
nível de uma instância que, justamente, é aquela do desejo. Eu sei o que pode
haver de cansativo para vocês na ginástica mental de uma articulação, levada a
este nível. Em consequência, não ilustrarei, para dar-lhes algum descanso, se­
não alguns termos que são aqueles da nossa experiência concreta.
O a, eu disse que era o efeito da castração. Eu não disse que era o objeto
da castração. Este objeto da castração chamamos o falo. O falo, o que é? E
preciso reconhecer que na nossa experiência, quando nós o vemos aparecer
nas falofanias, como eu o dizia na última vez, artificiais da análise -é aí também
que a análise toma-se como tendo sido uma experiência absolutamente única,
original, em nenhuma espécie de alquimia terapêutica ou não do passado nós o
tínhamos visto aparecer. Em Jerônimo Bosch nós vemos um monte de coisas,
todo tipo de membros deslocados, nós vemos o flato do qual o Sr. Jones acredi­
tou dever reencontrar mais tarde o protótipo daquilo [...], e vocês sabem que é
nada menos do que um flato ódorífero. Nós encontramos tudo isso exposto
sobre imagens do que há de mais manifestas -o falo, vocês podem observar
que não o vemos frequentemente!
Nós o vemos. Nós o vemos e nós apercebemos também que ele não é
muito fácil de designar como estando aqui ou lá. Eu quero fazer sobre isso
somente uma referência, àquela, por exemplo, da nossa experiência da homos­
sexualidade! Nossa experiência da homossexualidade foi definida a partir do
momento em que se começou a analisar os homossexuais. Numa primeira abor­
dagem não se os analisava. O professor Freud nos diz, nos Trois essais sur la
sexualité, que a homossexualidade masculina (ele não pode neste momento

389
avançar mais longe) se manifesta por esta exigência narcísica de que o objeto
não poderia ser desprovido deste atributo considerado pelo sujeito como essencial.
Nós começamos a analisar os homossexuais. Eu lhes peço que se repor­
tem neste momento aos trabalhos de Boehm tais como começaram, por volta
dos anos 29 até 33 e além, a se ordenar. Ele foi um dos primeiros. Eu lhes
assinalo isto porque é muito exemplar. Aliás eu indiquei a bibliografia da ho­
mossexualidade quando lhes falei da importância dos artigos de [...]. O desen­
volvimento da análise nos mostra que a homossexualidade está bem longe de
ser uma exigência instintual primordial. Eu quero dizer identificável com uma
pura e simples fixação ou desvio do instinto.
Nós iremos encontrar num segundo estágio que o falo, de qualquer ma­
neira que ele intervenha no mecanismo da homossexualidade, está bem longe
de ser aquele do objeto, que o falo de que se trata é um falo que se identifica
talvez apressadamente ao falo patemo na medida em que este falo encontra-se
na vagina da mulher. E é porque é aí que ele está, aí que ele é temido, que o
sujeito se encontra levado até os extremos, e à homossexualidade. Eis, portan­
to, um falo de dimensão totalmente diferente, de uma função totalmente outra,
e de um lugar totalmente outro do que aquele que tínhamos visto de início.
Isso não é tudo. Depois de nos havermos regozijado, se posso dizer, de
segurar esta lebre pelas orelhas, eis que nós perseguimos as análises dos ho­
mossexuais, e que nós nos apercebemos que no fundo -é aí que eu me reporto
mais especialmente aos trabalhos de Boehm particularmente ilustrativos e con­
firmados por uma experiência muito abundante- a imagem que nós encontra­
mos em uma data ulterior, em estruturações analíticas da homossexualidade, é
uma imagem que para apresentar-se como o apêndice (nós a atribuímos num
primeiro esboço à mulher, na medida em que ela não seria ainda castrada), se
mostra, para ser comprimido mais nos detalhes, como algo que é o que se pode
chamar a evaginação, a extraposição do interior deste orgão.
Que este fantasma, que justamente nós'tínhamos encontrado no sonho e
que eu tão extensamente analisei para vocês, do qual tão longamente retomei a
análise perante vocês, este sonho do capuz virado, do apêndice feito de algo
que é de alguma forma a exteriorização do interior, está aí alguma coisa que,
numa certa perspectiva de investigação, torna-se como o termo imaginário úl­
timo ao qual o homossexual de que se trata na ocasião -e há vários analisados
por Boehm- encontra-se confrontado no momento em que se trata de mostrar-
lhe a dialética cotidiana de seu desejo.

390
O que dizer senão que é aqui que o falo se apresenta bem sob uma
forma radical em que ele é algo, na medida em que este algo é para mostrar ao
exterior, o que está no interior imaginário do sujeito, que no último termo não há
quase nada a súrpreender-se senão uma certa convergência que se estabeleça
entre a função imaginária do que está aqui, no imaginário, em postura de
extraposição, de extirpação, quase destacada, mas não ainda destacada do
interior do corpo, o que se encontra o mais naturalmente podendo ser levado à
função de símbolo, sem para tanto ser destacado de suá inserção radical, do
que o faz experimentar como uma ameaça à integridade da imagem de si.
Este apanhado sendo dado, eu não quero deixar-lhes aí, pois não é isto
que irá lhes dar o sentido e a função de a enquanto objeto em toda sua genera­
lidade. Eu lhes disse: o objeto no fantasma, quer dizer na sua forma a mais
acabada, na medida em que o sujeito é desejo, que o sujeito está portanto na
iminência desta relação castradora, o objeto é o que dá a esta posição seu
suporte. Aqui gostaria de mostrar-lhes em qual sincronia isto pode se articular.
Eu sublinho sincronia, pois, igualmente, a necessidade do discurso vai forçosa-
mente dar-lhes uma fórmula que será diacrônica. Quer dizer que vocês pode­
rão confundir o que eu vou lhes dar aqui com uma gênese. Não se trata, entre­
tanto, de nada disso.
O que quero lhes indicar pelas relações de letras que vou agora inscre­
ver no quadro, é algo que nos permite situar em seu lugar esta aquisição e este
objeto em sua relação ao sujeito como em presença da castração iminente, em
uma relação que provisoriamente eu chamarei relação de resgate desta posi­
ção, já que igualmente me é preciso acentuar o que quero dizer falando de
relação de suporte.

391
Como esta relação sincrônica se engendra?. É o seguinte. Se partirmos
da posição subjetiva a mais originária, aquela da demanda tal como a encontra­
mos no nível do esquema ilustrado, como a ilustração, o exemplo manisfestável
no comportamento que nos permite apreender na sua essência como o sujeito
se constitui na medida em que ele entra no significante, a relação é a seguinte:
ele vai se estabelecer no algoritmo bem simples que é aquele da divisão. Ele é
essencialmente constituído por esta barra vertical, a barra horizontal estando
no caso adjunto mas não tendo nada de essencial já que se pode repeti-la em
cada nível.
Digamos que é na medida em que é introduzida pela relação a mais
primordial do sujeito, a relação do Outro, enquanto lugar da palavra, à deman­
da, que a dialética se institui, cujo resíduo vai nos trazer a posição de a, o objeto.
Eu lhes disse, pelo fato de que é em termos da alternativa significante
que se articula primordialmente -na partida do processo que é este daqui, o que
nos interessa- que se articula primordialmente a necessidade do sujeito, que se
instaura tudo o que na continuidade vai estruturar esta relação do sujeito a ele
mesmo que se chama o desejo; o Outro, na medida em que ele é aqui alguém
de real mas qüe é interpelado na demanda, encontra-se em posição de fazer
passar esta demanda qualquer que ela seja a um outro valor que é aquele da
demanda de amor como tal, enquanto ela se refere pura e simplesmente à
alternativa presença-ausência.
E eu não pude deixar de ficar surpreso, tocado, até mesmo emocionado,
por reencontrar nos Sonnets de Shakespeare, literalmente este termo presen­
ça-ausência, no momento em que se trata para ele de expressar a relação de
amor, com um hífen'’6.
Eis, portanto, o sujeito constituído enquanto que o Outro é um persona­
gem real, como sendo aquele pelo qual a demanda ela mesma é mudada de
significação, como sendo aquele através do qual a demanda do sujeito toma-se
outra coisa do que isso que ela demanda, nomeadamente, ou seja a satisfação
de uma necessidade. Não há -é um princípio que nós temos de manter como
princípio permanente- sujeito a não ser para um sujeito. É na medida em que o
Outro foi colocado primordialmente como aquele que, em presença da deman­
da, pode ou não pode jogar um certo jogo, é na medida em que, já como termo

1,6 SHAKESPEARE W., Sonnets, trad. fr. P.-J.Jouve, Paris, 1969, Mercure de France.

392
de uma tragédia, o Outro é instaurado como sujeito. Desde então, é a partir
deste momento que a introdução do sujeito, do indivíduo no significante toma a
função de subjetivá-lo.
E na medida em que o Outro é um sujeito como tal que o sujeito, neste
momento, instaura-se e pode instituir-se ele próprio como sujeito, que se esta­
belece neste momento esta nova relação ao Outro pelo que ele tem, neste
Outro, a se fazer reconhecer como sujeito. Não mais como demanda, não mais
como amor, mas como sujeito.
Não creiam que eu esteja atribuindo aqui a não sei qual espectro todas
as dimensões da meditação filosófica. Não se trata disso. Mas não se trata
disso como escondido tampouco. Trata-se disso sob uma forma bem concreta
e bem real, ou seja este algo pelo que toda espécie de função e de funciona­
mento do Outro no real, como respondendo à sua demanda, no que isso deve
encontrar sua garantia, a verdade deste comportamento qualquer que seja, quer
dizer precisamente este algo que está no fundo concreto da noção de verdade,
como da inter-subjetividade, ou seja o que dá seu sentido pleno ao termo truth,
em inglês, que é empregado simplesmente para expressar a Verdade com um
grande V, mas igualmente o que nós chamamos numa decomposição da lingua-,
gem que se encontra ser o fato de um sistema linguageiro, a fé na palavra. Em
outros termos, isto no que se pode contar no Outro.
É disso de que se trata quando lhes digo que não há Outro do Outro. O
que isso quer dizer, se não é justamente isso, que não existe nenhum significante
que garanta a continuidade concreta de nenhuma manifestação de significantes.
E aí que Se introduz este termo que se manifesta nisto que no nível do Outro,
algo manifesta-se como garantia diante da pressão da demanda do sujeito dian­
te do que esta alguma cóisa realiza-se inicial e primordialmente desta falta em
relação a qual o sujeito terá de se situar. Esta falta, observem-na, se produz ao
nível do Outro enquanto lugar da palavra, não ao nível do Outro enquanto real.
Mas nada de real do lado do Outro pode aí suprir, senão por uma série de
adições que não serão jamais esgotadas mas que eu coloco à margem, ou seja
o X enquanto Outro, na medida em que se manifestará ao sujeito em todo curso
de sua existência através de dons ou por recusas, mas que ele não se situará
jamais senão na margem desta falta fundamental que se encontra como tal ao
nível do significante.
O sujeito estará interessado historicamente por todas estas experiências
com o Outro, Outro materno, no caso. Mas nada disso poderá esgotar a falta

393
<1 iic existe ao nivel ilo significante como tal, ao nível em que é a este nível que
o sujeito tem que se situar para constituir-se como sujeito, ao nível do Outro.
É aí que na medida em que ele mesmo encontra-se marcado por este
apagamento, por esta não garantia ao nível da verdade do Outro, que ele terá a
instituir este algo que nós temos já tentado aproximar agora há pouco sob a
forma de sua gênese, este algo que é a; este algo que se encontra submetido a
esta condição de expressar sua tensão última, esta que é o resto, esta que é o
resíduo, esta que está na margem de todas as suas demandas e que nenhuma
de suas demandas pode esgotar; este algo que está destinado como tal a repre­
sentar uma falta e a representá-la com uma tensão real do sujeito.
Isto é, se eu posso dizer, o osso da função do objeto no desejo. E o que
vem em resgate do fato que o sujeito não pode se situar no desejo sem se
castrar, dito de outro modo, sem perder o mais essencial de sua vida. E é
igualmente em tomo do quê se situa esta forma, uma das mais exemplares do
desejo, aquela que as palavras de Simone Weil lhes propunha como isto: «Se
soubéssemos o que o avarento encerra no seu cofre saberiamos, diz ela, muito
sobre o desejo»197.
Evidentemente, é justamente a fim de conservar sua vida que o avarento
-e é uma dimensão essencial, observem-no- fecha novamente em alguma coi­
sa, em um cerco, o objeto de seu desejo; e portanto vocês verão que por este
fato mesmo este objeto encontra-se como um objeto mortificado; é na medida
em que o que está no cofre está fora do circuito da vida, é subtraído e conser­
vado como sendo a sombra de nada, que ele é o objeto do avarento. E igual­
mente aqui se sanciona a fórmula que «quem quer guardar sua vida, a perde».
Mas não é dizer tão rápido que aquele que consente em perdê-la a reencontra
como esta, diretamente.
Onde ele a reencontra é o que nós tentaremos ver na continuação. Se­
guramente não é um dos menores prêmios do caminho que nós percorremos
hoje, nos fazer ver que o caminho no qual se engaja para reencontrá-la vai lhe
apresentar, em todo caso, o que ele consente em perder, ou seja o falo. Se ele
fez, nós indicamos como uma etapa necessária, seu luto num determinado mo­
mento, ele não pode percebê-lo, mirá-lo, a não ser como um objeto escondido.

WEIL S„ op. cit.

394
Que o termo do a enquanto termo opaco, enquanto termo obscuro, en­
quanto termo participante de um nada ao qual ele se reduz, é além deste nada
que ele vai procurar a sombra de sua vida inicialmente perdida -este relevo do
funcionamento do desejo que nos mostra que isto não é somente o objeto primi­
tivo da impressão primordial, numa perspectiva genética, que é o objeto perdido
a reencontrar. Que é da natureza mesma do desejo constituir o objeto nesta
dialética, é isto que nós retomaremos a próxima vez.

395
V «U Mr <11

Lição 21

20 de maio de 1959

Nós iremos hoje retomar nosso assunto no ponto em que o deixamos na


última vez, isto é no ponto em que é de uma espécie de operação, que eu havia
formalizado para vocês sob o modo de uma divisão subjetiva na demanda, que
se trata. Nós vamos retomá-lo na medida em que isto nos conduz ao exame da
fórmula do fantasma, na medida em que ela é o suporte de uma relação essen­
cial, de uma relação pivô, aquela que eu tento promover para vocês este ano no
funcionamento da análise.
Se vocês se lembram, eu lhes havia na última vez inscrito as seguintes
letras: imposição, proposição da demqnda no lugar do Outro, como sendo a
etapa ideal primária. E uma reconstrução entenda-se, e todavia nada é mais
concreto, nada é mais real, visto que é na medida em que a demanda da criança
começa a se articular que o processo se engendra ou que nós pretendemos ao
menos mostrar que o processo se engendra, de onde vai se formar esta Spaltung
do discurso que é expressa nos efeitos do inconsciente.
Se vocês se lembram, na última vez nós havíamos, na sequência dessa
primeira posição do sujeito no ato da primeira articulação da demanda, feito
alusão a isto que se lhe desembaraça como entretanto necessário da posição do
Outro real, como aquele que é todo poderoso para responder a esta demanda.
Como eu lhes havia dito, é um estágio que nós tínhamos evocado, que é
essencial para a compreensão da fundação da primeira relação ao Outro, à mãe,
como dando no Outro a primeira forma da onipotência. Mas como eu lhes
disse, é considerando isto que se passa ao nível da demanda que nós iremos

397
perseguir o processo da geração lógica que se produz a partir desta demanda.
De sorte que o que eu havia exprimido no outro dia sob a forma que fazia
intervir o Outro como sujeito real -eu não sei mais se é sob esta forma ou sob
uma outra que eu havia escrito no quadro isto, que a demanda aqui toma um
outro alcance, que ela se toma demanda de amor, que enquanto ela é demanda
de satisfação de uma necessidade, ela está revestida neste nível de um signo, de
uma barra que lhe muda essencialmente o alcance. Pouco importa que eu tenha
empregado estas letras ou não (são bem aquelas ali que eu utilizei) visto que
isto é muito precisamente o que pode engendrar toda uma espécie de [palheta]
que é aquela das experiências reais do sujeito, porquanto elas vão se inscrever
em um certo número de respostas que são gratificantes ou frustrantes e que são
evidentemente muito essenciais para que se inscreva nelas uma certa modula­
ção de sua história.
Mas não é isso que é perseguido na análise sincrônica, a análise formal
que é aquela que nós perseguimos agora. É na medida em que -no estágio
ulterior àquele da posição do outro como outro real que responde à demanda-
o sujeito o interroga como sujeito, isto é em que ele próprio se manifesta como
sujeito porquanto ele é sujeito para o outro, é nesta relação de primeira etapa
em que o sujeito se constitui em relação ao sujeito que fala, se encontra na
estratégia fundamental que se instaura desde que aparece a dimensão da lin­
guagem e que começa apenas com esta dimensão da linguagem; é na medida
em que o outro, sendo estruturado na linguagem, deste fato toma-se sujeito
possível de uma tragédia em relação a qual o próprio sujeito pode se constituir
como sujeito reconhecido no outro, como sujeito para um sujeito. Ali não pode
haver outro sujeito senão um sujeito para um sujeito, e de outra parte, o sujeito
primeiro não pode se instituir como tal senão que como sujeito que fala, como
sujeito da fala. É então na medida em que o próprio Outro é marcado pelas
necessidades da linguagem, que o Outro se instaura não como outro real, mas
como Outro, como lugar da articulação da fala, que se faz a primeira posição
possível de um sujeito como tal, de um sujeito que pode apreender-se como
sujeito, que se apreende como sujeito no outro, enquanto o outro pensa nele
como sujeito.
Vocês vêem, eu lhes havia feito notar na última vez, nada de mais con­
creto que isso. Não é absolutamente uma etapa da meditação filosófica, é este
algo de primitivo que se estabelece na relação de confiança. Em qual medida, e
até que ponto eu posso contar com o outro? O que é que existe de fidedigno nos

398
comportamentos do outro? Que consequência eu posso esperar disto que já por
ele foi prometido? Está bem aí isto sobre o que um dos conflitos os mais primi­
tivos -o mais primitivo sem dúvida do ponto de vista que nos interessa- da
relação da criãnça com o outro, é algo em tomo do que nós vemos girar a
instauração e mesmo a base dos princípios de sua história, e tanto que isso se
repete no nível o mais profundo de seu destino, disto que comanda a modula­
ção inconsciente de seus comportamentos. Está algures que em uma pura e
simples frustração ou gratificação.
E na medida em que ele pode se fundar sobre algum outro que, vocês o
sabem, institui-se o que nós encontramos na análise, e até mesmo na experiên­
cia a mais cotidiana da análise, o que nós encontramos de mais radical na mo­
dulação inconsciente do paciente, neurótico ou não. E então, porquanto diante
do outro como sujeito da fala, enquanto ela se articula primordialmente, é em
relação a este outro que o próprio sujeito se constitui como sujeito que fala, de
modo algum como sujeito primitivo do conhecimento, não o sujeito dos filóso­
fos, mas o sujeito enquanto ele se coloca como visto pelo outro, como podendo
lhe responder em nome de uma tragédia comum, como sujeito que pode inter­
pretar tudo o que o outro articula, indício de sua intenção a mais profunda, de
sua boa ou de sua má-fé.
Essencialmente neste nível, se vocês me permitem um jogo de palavras,
o S se coloca verdadeiramente não somente como o S que se inscreve como
uma letra, mas também neste nível como o Es da fórmula tópica que Freud dá
do sujeito, Isso. Isso, sob uma forma interrogativa, sob a forma também na
qual, se vocês metem aqui um ponto de interrogação, o S se articula “é?”. Está
ai tudo o que neste nível o sujeito formula ainda dele próprio. Ele está, no
estado nascente, em presença da articulação do Outro porquanto ele lhe res­
ponde, mas ele lhe responde mais além disto que ele formulou em sua demanda.
S, é neste nível que o sujeito se sus­
pende e que na etapa seguinte, ou seja na
medida em que ele vai dar este passo em que
ele quer se apreender no além da fala, é ele
próprio como marcado por alguma coisa que
o divide primordialmente dele próprio como
sujeito da fala, é neste nível, como sujeito
barrado, $, que ele pode, que ele deve, que
ele entende encontrar a resposta; e que igual-

.59
mente ele não a encontra porquanto ele encontra no Outro, neste nível, este
oco, este vazio que eu lhes articulei dizendo que não há Outro do Outro, que
nenhum significante possível garante a autenticidade da sequência dos
significantes, que ele depende essencialmente para isso da boa vontade do Outro,
que não há nada que, no nível do significante, garanta, autentifique em que
quer que seja a cadeia e a fala significante.
E é aqui que se produz da parte do sujeito este algo que ele tira de algu-
res, que ele faz vir de algures, que ele faz vir do registro imaginário, que ele faz
vir de uma parte dele próprio enquanto ele está engajado na relação imaginária
ao outro. E é este a que vem aqui, que surge no lugar onde se sustenta, onde se
põe a interrogação do [S], sobre isto que ele é verdadeiramente, sobre isto que
ele quer verdadeiramente. E aí que se produz o surgimento deste algo que nós
chamamos a, a enquanto ele é o objeto, o objeto do desejo sem dúvida e não na
medida em que este objeto do desejo se cooptaria diretamente em relação ao
desejo, mas enquanto este objeto entra em jogo em um complexo que nós cha­
mamos o fantasma, o fantasma como tal; isto é enquanto este objeto é o suporte
ao redor do que, no momento em que o sujeito se esvaece diante da carência do
significante que responde de seu lugar ao nível do Outro, [ele] encontra seu
suporte neste objeto.
Quer dizer que, neste nível, a operação é divisão. O sujeito tenta
reconstituir-se, autentificar-se, reunir-se na demanda dirigida para o Outro. A
operação se detém. É na medida em que aqui o quociente que o sujeito busca
atingir -porquanto ele deve se apreender, se reconstituir e se autentifícar como
sujeito da fala- fica aqui suspenso, em presença, no nível do Outro, da aparição
deste resto por onde ele próprio, o sujeito, suprido, traz o resgaste, vem substi­
tuir a carência no nível do Outro do significante que lhe responde.
E porquanto este quociente e este resto ficam aqui em presença um do
outro e, se pode-se dizê-lo, sustentando-se um pelo outro, que o fantasma não
é nada mais que o afrontamento perpétuo deste S; deste $ porquanto ele marca
o momento de fading do sujeito em que o sujeito não acha nada no Outro que
lhe garanta, ele, de um modo seguro e certo, que o autentifique, que lhe permita
situar-se e nomear-se no nível do discurso do Outro, isto é como sujeito do
inconsciente. É respondendo a este momento que surge como suplente do
significante faltante, este elemento imaginário [a], que nós chamamos em sua
forma mais geral, porquanto termo correlativo da estrutura do fantasma, o su­
porte de S como tal, no momento em que ele tenta indicar-se como sujeito do

400
discurso inconsciente.
Parece-me que aqui eu não tenho mais a dizer disso. Eu vou contudo
dizer mais para lhes lembrar o que isto quer dizer no discurso freudiano; por
exemplo o « Wo Es war, soli Ich werden», “Lá onde Isso era, lá eu devo advir”.
É muito preciso, é este Ich que não é das Ich que não é o eu [moi], que é um Ich,
o ich utilizado como sujeito da frase. “Lá onde Isso era, lá onde Isso fala”, ou
seja, onde no instante anterior alguma coisa estava que é o desejo inconsciente,
lá eu devo me designar, lá “Eu devo ser”, este Eu que é o alvo, o fim, o termo
da análise antes que ele se nomeie, antes que ele se forme, antes que ele se
articule, a supor que ele nunca o faça, pois também na fórmula freudiana este
«soil Ich werden», este deve ser este “devo-Eu advir” é o sujeito de um advir,
de um dever que lhes é proposto.
Nós devemos reconquistar o campo perdido do ser do sujeito, como dis-
. se Freud na mesma frase, por uma feliz comparação, como a reconquista da
Holanda sobre o Zuyderzee, de terras oferecidas a uma conquista pacífica198. O
campo do inconsciente sobre o qual nós devemos avançar na realização da
Grande Obra analítica, é bem disso que se trata. Mas antes que isto seja feito
“Lá onde Isso era”, o que é que nos designa o lugar deste Eu que deve vir ao
dia? Isto que o designa para nós, é o índice de quê? Muito exatamente disto do
qual se trata, do desejo, do desejo enquanto ele é função e termo disto do que se
trata no inconsciente.
E o desejo é aqui sustentado pela oposição, a coexistência dos dois ter­
mos que são aqui o S, o sujeito na medida.em que justamente neste limite ele se
perde, que aí o inconsciente começa -o que quer dizer que não há pura e sim­
plesmente privação de alguma coisa que se chamaria consciência, é que uma
outra dimensão começa em que não lhe é mais possível saber, em que ele não é
mais [consciência]. Aqui se detém toda possibilidade de se nomear. Mas neste
ponto de parada está também o índice, o índice que é trazido, que é a função
maior, quaisquer que sejam as aparências disto que, naquele momento ali, é
sustentado diante dele como o objeto que o fascina, mas que é também aquele
que o retém frente à anulação pura e simples, a síncope de sua existência. E é
isso que constitui a estrutura do que nós chamamos o fantasma.

195 FREUD S., «Les différentes instances de la personnalité psychique». (1932), in Nouvelles
Conferences sur la psychanalyse, G.W., XV, pp.62-85. Gallimard pp.78-107. «C’est là une
tâche qui incombe à la civilisation tout comme 1’assèchement du Zuyderzee».

401
Hoje é nisso que nós iremos nos deter. Nós iremos ver isto que comporta
como generalidade de aplicação esta fórmula do fantasma. Igualmente nós ire­
mos apanhá-lo, visto que nós dissemos na última vez que era em sua função
sincrônica, isto é pelo lugar que ele ocupa nesta referência do sujeito a si pró­
prio, do sujeito ao que ele é ao nível do inconsciente quando -eu não direi ele
se interroga sobre o que ele é- quando ele é em suma levado pela questão sobre
o que ele é, isto que é a definição da neurose.
Detenhamo-nos de início nas propriedades formais, tais como a experi­
ência analítica nos permite reconhecê-las, deste objeto a na medida em que ele
intervém na estrutura do fantasma.
O sujeito, dizemos nós, está à borda desta nominação desfalecente que é
o papel estrutural disto que é visado no momento do desejo. E ele está no ponto
em que ele sofre, se eu posso dizer, ao máximo, a um ponto de acme, isto que
se pode chamar a virulência do logos, porquanto ele se encontra com o ponto
supremo do efeito alienante de sua implicação no logos. Esta tomada do ho­
mem na combinatória fundamental, que dá a característica fundamental do logos,
é uma questão que outros além de mim têm para resolver, de saber o que ela
pode querer dizer; eu quero dizer, isto que quer dizer que o homem seja neces­
sário a esta ação do logos no mundo. Mas aqui o que nós temos para ver, é isto que
dali resulta para o homem, e como o homem lhe faz face, como ele o sustenta.
A primeira fórmula que pode nos vir, é que é preciso que ele o sustente
realmente, que ele o sustente de seu real, dele como real, isto é também disto
que lhe resta sempre o mais misterioso. Um desvio aqui não seria mal vindo. É
tentar para nós apreender -é isto sobre o que aliás alguns dentre vocês desde há
muito tempo se interrogam- isto que bem pode, em último termo, querer dizer
este emprego que nós fazemos aqui do termo real, porquanto nós o opomos ao
simbólico e ao imaginário.
E preciso dizer que se a psicanálise, se a experiência freudiana vem em
seu tempo, à nossa época, não é certamente indiferente constatar que é por­
quanto pode vir para nós com a maior resistência, isto que eu poderia chamar
sob a forma de uma crise da teoria do conhecimento, ou do próprio conheci­
mento. Enfim, este ponto sobre o qual na última vez eu tentei já atrair a atenção
de vocês, é a saber o que significa a aventura da ciência -como ela se criou,
enxertou, ramificou sobre esta longa cultura- que foi uma tomada de posição,
muito parcial para que nós possamos chamá-la parcelada, que foi esta retração
do homem sobre certas posições em presènça do mundo que foram de saída

402
posições contemplativas, aquelas que implicavam não a posição do desejo -
certamente eu lhes fiz notar- mas a escolha, a eleição de uma certa foirna deste
desejo; desejo, disse eu, de saber, desejo de conhecer. Seguramente nós pode­
mos especificá-lo como uma disciplina, uma ascese, uma escolha, e nós sabe­
mos que isto que' dali saiu, ou seja a ciência, nossa ciência moderna, nossa
ciência porquanto se pode dizer que ela se distingue para nós por esta apreen­
são excepcional sobre o mundo que, de um certo lado, nos dá segurança quan­
do nós falamos de realidade.
Nós sabemos que não somos sem captura no real, mas qual afinal? É
uma tomada de conhecimento? E eu não posso aqui senão indicar-lhes ao me­
nos a questão. Isto que não parece à primeira aproximação, à primeira apreen­
são que nós temos do que resulta deste processo, é que seguramente no ponto
onde nós disso estamos, no ponto de elaboração especialmente da ciência físi­
ca, que é a forma onde o êxito é impelido o mais longe da tomada de nossas
cadeias simbólicas sobre algo que nós chamamos a experiência, a experiência
construída; é isto que não parece que menos que nunca nós temos o sentimento
de atingir esta alguma coisa que, no ideal da filosofia incipiente, da filosofia
em seus primórdios, propunha-se como o fim, a recompensa do esforço do
filósofo, do sábio, isto é esta participação, este conhecimento, esta identifica­
ção ao ser que era visado e que era representado na perspectiva grega, na pers­
pectiva aristotélica como sendo isto que era o fim do conhecer, ou seja a iden­
tificação pelo pensamento do sujeito (que não se chamava naquele momento
ali sujeito), daquele que pensava, daquele que perseguia o conhecimento, o
objeto de sua contemplação?
A que nós nos identificamos ao termo da ciência moderna? Eu não creio
mesmo que haja um só ramo da ciência, que este seja aquele onde nós chega­
mos aos resultados os mais perfeitos, os mais despontados, que sejam mesmo
aqueles onde a ciência tenta se esboçar, dar o primeiro passo, como nos termos
de uma psicologia que se chama behaviorismo; se bem que nós estamos certos
de ser desiludidos em último termo quanto ao que ali há para conhecer, que
mesmo quando nós nos encontramos em uma das formas desta ciência que é
ainda balbuciante -que pretende imitar, como o pequeno personagem da
Melancholia de Dürer, o pequeno anjo, que ao lado da grande Melancolia co­
meça a fazer seus primeiros círculos- quando nós começamos uma psicologia
que se pretende científica, nós colocamos no princípio que nós iremos fazer o
simples behaviorismo, isto é que nós iremos nos contentar em observar, sobre-

’03
tudo que nós nos recusamos de saída mesmo toda visada que comporte esta
assunção, esta identificação com o que está ali diante de nós. Mais além do
método, isso vai consistir de início em nos recusar crer que pudéssemos, ao
cabo, chegar a isto que está no antigo, ideal do conhecimento.
Há sem dúvida nisso algo de verdadeiramente exemplar e que é de natu­
reza a nos fazer meditar sobre o que se passa quando de outra parte uma psico­
logia (que ela, entenda-se, se nós não a colocamos e não a articulamos como
uma ciência, é em todo caso uma coisa que se coloca como paradoxal em rela­
ção ao método até aqui definido na abordagem científica), a psicologia freudiana,
ela, nos diz que o real do sujeito não é para conceber como o correlativo de um
conhecimento.
O primeiro passo onde se situa o real como real, como termo de alguma
coisa em que o sujeito está interessado, não é em relação ao sujeito do conheci­
mento que ele se situa, pois algo no sujeito se articula que está mais além de
seu conhecimento possível, e que todavia é já o sujeito, e mais, é o sujeito que
se reconhece nisto, que ele é sujeito de uma cadeia articulada. Que alguma
coisa que é da ordem de um discurso desde o início, que sustenta logo algum
suporte, algum suporte do qual não é abusivo qualificá-lo do termo de ser, se
afinal nós damos a este termo de ser sua definição mínima que, se o termo de
ser quer dizer alguma coisa, é o real porquanto ele se inscreve no simbólico, o
real interessado nesta cadeia que Freud nos diz ser coerente e comandar, para
além de todas as motivações acessíveis ao jogo do conhecimento, o comporta­
mento do sujeito. É bem alguma coisa que, no sentido completo, merece ser
nomeada como da ordem do ser, pois que é já alguma coisa que-se coloca como
um real articulado no simbólico, como um real que tomou seu lugar no simbó­
lico, e que tomou este lugar para além do sujeito do conhecimento.
E no momento, digo eu, e é aí que se fecha o parêntesis que eu havia
aberto há pouco, é no momento em que na nossa experiência do conhecimento
alguma coisa para nós se oculta nisto que se desenvolve sobre a árvore do
conhecimento, em que alguma coisa neste ramo que se chama a ciência se
averigua, manifesta-se para nós como sendo alguma coisa que tapeou a espe­
rança do conhecimento.
Se de outra parte, pode-se dizer que isso talvez foi muito mais longe que
toda espécie de efeito esperado do conhecimento, é ao mesmo tempo, e neste
momento que a experiência da subjetividade, naquela que se estabelece na con­
fidência, na confiança analítica, Freud nos designa esta cadeia onde as coisas

404
se articulam de um modo que é estruturado de um modo homogêneo com toda
outra cadeia simbólica, com isto que nós conhecemos como discurso, que to­
davia não é acessível, como na contemplação, não é acessível ao sujeito en­
quanto ele poderia ali repousar como o objeto em que ele se reconhece. Bem ao
contrário, fundamentalmente ele se desconhece. E em toda a medida em que
ele tenta abordar esta cadeia, onde ele tenta aí se nomear, referir-se, é ali preci­
samente que ele não se encontra. Ele não está aí senão nos intervalos, nos
cortes. Cada vez que ele quer se apreender ele não está nunca senão em um
intervalo, e é bem por isso que o objeto imaginário do fantasma, sobre o qual
ele vai esforçar-se por se suportar, é estruturado como ele o é -é o que eu quero
mostrar para vocês agora.
Bem que há outras coisas para demonstrar sobre esta formalização $ 0 a,
mas eu quero mostrar-lhes como é feito a. Eu disse-lhes, é como corte e como
intervalo que o sujeito se encontra no ponto termo de sua interrogação. É tam­
bém essencialmente como forma de corte que o a, em toda sua generalidade,
mostra-nos sua forma. Aqui eu vou simplesmente reagrupar um certo número
de traços comuns que vocês já conhecem, concernente às diferentes formas
deste objeto. Para aqueles que aqui são analistas, eu posso ir mais rápido, dei­
xar em seguida para entrar no detalhe, de recomentar. Se se trata de que o
objeto no fantasma seja alguma coisa que tenha a forma do corte, em que ire­
mos nós poder reconhecê-lo? Francamente, eu direi que no nível do resultado,
eu penso que já vocês me anteciparão, ao menos eu ouso esperá-lo.
Nesta relação que faz que o S, no ponto em que ele se interroga como $,
não encontra para se suportar senão uma série de termos que são estes que nós
chamamos aqui a, como objetos no fantasma, nós podemos em uma primeira
aproximação disso dar três exemplos. Isso não implica que isto seja completa­
mente exaustivo, isto quase o é. Eú digo que isso não o é completamente porquan­
to pega as coisas no nível disto que eu chamarei o resultado, isto é do a consti­
tuído, não é um encaminhamento de tal modo legítimo. Eu quero dizer que
começar por ali é simplesmente fazer-lhes partir de um terreno já conhecido
no qual vocês se recuperam para fazer o caminho mais fácil. Isso não é a via
mais rigorosa, como, vocês o verão quando nós houvermos de tomar a encon­
trar este termo pela via mais rigorosa da estrutura. Isto é, a via que parte do
sujeito enquanto ele é barrado, enquanto é ele que levanta, que suscita o termo
do objeto. Mas é do objeto que nós partiremos porque é dali que vocês melhor
se reconhecerão.

405
Há disso três espécies referidas na experiência analítica, identificadas
efetivamente até o presente como tais (a, <p, d),
- A primeira espécie é aquela que nós chamamos habitualmente, a torto
e a direito, o objeto pré-genital.
- A segunda espécie é este tipo de objeto que está implicado nisto que se
chama o Complexo de castração, e vocês sabem que sob sua forma a mais
geral, é o falo.
- A terceira espécie, é talvez o único termo que lhes surpreenderá como
uma novidade mas, na verdade, eu penso que aqueles dentre vocês que pude­
ram estudar mais de perto isto que eu pude escrever sobre as psicoses não se
encontrarão aí todavia essencialmente derrotados, a terceira espécie de objeto
desempenhando exatamente a mesma função em relação ao sujeito de seu pon­
to de desfalecimento, de fading, isso não é outra coisa e nem mais nem menos
que o que se chama comumente o delírio e muito precisamente, o porque Freud,
desde quase o início de suas primeiras apreensões, pôde escrever: «Eles amam
seu delírio como a si mesmos», Sie lieben also den Wahn wie sich selbtsm.
Nós iremos retomar estas três formas do objeto porquanto elas nos per­
mitem apreender algo em sua forma que lhe permite desempenhar esta função,
de advir os significantes que o sujeito tira de sua própria substância para sus­
tentar diante dele, precisamente, este buraco, esta ausência do significante ao
nivel da cadeia inconsciente.
1 - Como objeto pré-genital, o que quer dizer o a?
Na experiência animal, porquanto ela se estrutura em imagens não deve­
mos nós aqui evocar o termo mesmo pelo qual mais de uma reflexão materia­
lista chega para resumir isto que é afinal o funcionamento de um organismo,
por mais humano que seja, ao nível das trocas materiais? Precisamente -não
sou eu que invento a fórmula- este animal, por mais humano que seja, não é
afinal mais que uma tripa com dois orifícios, aquele por onde isso entra e o
outro por onde isso sai. E também, está ali isto pelo que sé constitui o objeto
dito “pré-genital”, porquanto ele vem preencher sua função significante no
fantasma. É na medida em que isso do qual o sujeito se nutre se corta em algum
momento dele, até mesmo na ocasião -é o reviramento da posição, o estágio

195 FREUD S., Briefe an Wilhelm Fliess (1895), Frankfurt, 1986, Fischer Verlag. [Manuscrit H],
p. 110. Trad. fr. In Naissance de lapsychanalyse, Paris, 1956, P.U.F., p. 101.

406
sádico-oral- ele próprio o corta, ou ainda que faça esforço para o cortar e mor­
der. É então o objeto como objeto de ablactação, o que quer dizer, para falar
propriamente, objeto de corte, de uma parte, e de outra parte, na outra extremi­
dade da tripa, porquanto isto que ele rejeita se corta dele -e também que todo o
ensinamento, lhe é feito de ritos e de formas da limpeza- que ele aprenda que
isto que ele rejeita, ele o corta dele mesmo.
Então é essencialmente isto o que nós fazemos, na experiência analítica
comum, a forma fundamental do objeto das fases ditas oral e anal, ou seja o
mamilo (esta parte do seio que o sujeito pode ter em seu orifício bucal, é tam­
bém isto de que ele é separado), é também este excremento que advém do
mesmo modo para o sujeito em um outro momento a forma a mais significativa
de sua relação aos objetos; [esses objetos] são tomados, escolhidos muito pre­
cisamente enquanto eles são especialmente exemplares, manifestando na for­
ma a estrutura do corte, que eles estão implicados em desempenhar este papel
de suporte ao nível em que o sujeito se acha ele próprio situado como tal no
significante, enquanto ele é estruturado pelo corte.
E é isto que nos explica que aqueles objetos ali, entre outros e de prefe­
rência a outros, sejam escolhidos. Pois não se pôde não observar que se se
tratasse de que o sujeito erotize tal ou tal de suas funções como simplesmente
vital, por que não haveria também uma fase mais primitiva que as outras, e ao
que parece mais fundamental, que é que ele seria reatado a uma função do
ponto de vista da nutrição tão vital quanto aquela que se passa pela boca para se
findar pela excreção do orifício intestinal, é a respiração. Sim, mas a respiração
não conhece em parte alguma este elemento de corte. A respiração não se cor­
ta, ou se ela é cortada, é de um modo que não deixa de engendrar algum drama.
Nada se inscreve em um corte da respiração se não é de um modo excepcional.
A respiração, o ritmo, a respiração é pulsação, a respiração é alternância vital,
ela não é nada que permite sobre o plano imaginário simbolizar precisamente
isto de que se trata, ou seja, o intervalo, o corte.
Não é dizer, contudo, que nada disto que se passa pelo orifício respirató­
rio não possa, como tal, ser escandido, pois que precisamente é por este mesmo
orifício que se produz a emissão da voz e que a emissão da voz é, ela, alguma
coisa que se corta, que se escande; e é também porque aquela, nós a encontra­
mos a toda hora e precisamente ao nível deste terceiro tipo do a, que nós cha­
mamos o delírio do sujeito. Porquanto esta emissão justamente não é escandida,
porquanto ela é simplesmente rtvepa (pneumd), flatus, é evidentemente muito

407
notável -e aqui eu lhes rogo que se reportem aos estudos de Jones- ver que, do
ponto de vista do inconsciente, ela não é individualizada, ao ponto o mais radi­
cal, como sendo alguma coisa que seja da ordem respiratória, mas precisamen­
te, em razão justamente desta imposição da forma do corte, relacionada ao
nível o mais profundo da experiência que disso nós temos no inconsciente (e é
o mérito de Jones tê-lo visto) ao flatus anal que se acha, paradoxalmente e por
esta espécie de desprazeirosa surpresa que as descobertas analíticas nos têm
trazido, se acha simbolizado no mais profundo disto de que se trata cada vez
que ao nível do inconsciente, é o falo que se descobre simbolizar o sujeito.
2 - No segundo nível, e não se trata ali, entenda-se, senão que de um
artificio de exposição, pois não há nem primeiro, nem segundo nível. No ponto
onde nós nos deslocamos aqui, todos os a têm a mesma função. Eles têm a
mesma função, trata-se de saber por quê eles tomam uma forma ou a outra, mas
na forma que nós descrevemos na sincronia, o que nós tentamos resgatar, são
os traços, são os caracteres comuns. Aqui, ao nível do Complexo de castração,
nós lhe encontramos uma outra forma que é aquela da mutilação. Com efeito,
se trata-se de corte é necessário e é suficiente que o sujeito se separe de alguma
parte dele próprio, que ele seja capaz de se mutilar. E afinal a coisa -os autores
analistas o têm percebido- não implica mesmo uma modalidade de tal modo
nova ao primeiro aspecto, pois que eles têm relembrado a propósito da mutila­
ção, porquanto ela desempenha um papel tão importante em todas as formas,
em todas as manifestações do acesso do homem à sua própria realidade, na
consagração de sua plenitude de homem -nós sabemos pela história, nós sabe­
mos pela etnografia, nós sabemos pela constatação de todos os procedimentos
iniciáticos pelos quais o homem busca, em um certo número de formas de
estigmatização, definir seu acesso a um nível superior de realização dele pró­
prio- nós sabemos esta função da mutilação como tal, e não é aqui que eu
haveria de lhes relembrar o catálogo e o leque.
E preciso simplesmente, e é suficiente, que eu lhes relembre aqui, sim­
plesmente para lhes fazer, nesta ocasião, tocar com o dedo, que sob uma outra
forma é ainda aqui de alguma coisa que nós podemos chaniar corte de que se
trata, e bem e devagar na medida em que ela instaura a passagem a uma função
significante, pois o que ali resta desta mutilação, é uma marca. É isto que faz
com que o sujeito que sofreu a mutilação como um indivíduo particular no
rebanho, leve doravante sobre si a marca de um significante que o extrai de um
estado primeiro para levá-lo, identificá-lo a uma potência de ser diferente, su­

408
perior. É o sentido de toda espécie de experiência de travessia iniciática, por­
quanto nós encontramos sua significação ao nível do Complexo de castração
como tal.
Não é também, eu lhes havia feito notá-lo de passagem, esgotar a ques­
tão, pois desde o tempo em que eu tento, com vocês, aproximar-me disto que se
trata ao nível do Complexo de castração, vocês bem puderam se aperceber das
ambiguidades que reinam em tomo da função deste falo. Em outros termos,
que se ele é simplesmente o resultado de ver que, por algum lado, é ele que é
marcado, é ele que é levado à função de significante, contudo resta que a forma
da castração não está inteiramente implicada nisto que nós podemos ter do
exterior, nos resultados das cerimônias que confinam a tal ou tal deformação,
circuncisão.
A marca produzida sobre o falo não é esta espécie de extirpação, de
função particular de negativação aplicada ao falo no Complexo de castração.
Isto nós não podemos sacar neste nível da exposição. Nós aí retomaremos eu
penso na próxima vez, quando teremos de explicar isto que eu hoje simples­
mente lhes indico, é o problema que se coloca agora que nós reabordamos estas
coisas, que nós refazemos o inventário. É a saber em que, e por que Freud
pôde, de início, fazer esta coisa enorme como ligar o complexo de castração a
este algo que a um exame atento mostra que ele não é de tal modo solidário, ou
seja de uma função dominante, cruel, tirânica, de uma espécie de pai absoluto.
Está ali um mito, seguramente. E como tudo isto que Freud trouxe, é um fato
muito miraculoso, é um mito que prendo, e nós tentaremos explicar por quê.
Não resta menos que em sua função fundamental, os ritos de iniciação
que se marcam, que se inscrevem em um certo número de formas de
estigmatizações, de mutilações, aqui ao ponto em que nós os abordamos hoje,
a saber enquanto eles desempenham este papel do a, enquanto eles são para os
próprios sujeitos que os experimentam destinados a mudar de natureza. Isto
que no sujeito até ali, na liberdade dos estágios pré-iniciáticos que caracteri­
zam as sociedades primitivas, foi deixado a uma espécie de jogo indiferente
dos desejos naturais, os ritos de iniciação tomam a forma de mudar o sentido
destes desejos, de dar-lhes, a partir dali precisamente, uma função em que se
identifica, em que se designa como tal o ser do sujeito, em que ele se toma se
assim se pode dizer, homem, mas também mulher, de pleno exercício, em que
a mutilação serve aqui para orientar o desejo, para lhe fazer tomar precisamen­
te esta função de índice, de alguma coisa que é realizada e que não pode se

409
articular, exprimir-se senão em um mais além simbólico e um mais além que é
aquele que nós chamamos hoje o ser, uma realização do ser no sujeito.
Poder-se-ía nesta ocasião fazer algumas observações laterais e nos aper­
ceber que se alguma coisa se oferece ao golpe, à marca significante do rito de
iniciação, não é, entenda-se, por acaso que seja tudo isto que pode ali se ofere­
cer como apêndice. Vocês sabem, igualmente, que o apêndice fálico não é o
único que na ocasião é empregado, que sem nenhuma dúvida também a relação
que o sujeito pode estabelecer em toda referência a si próprio, e que é aquela
em que nós podemos conceber que a apreensão vivida possa ser a mais notável,
ou seja a relação de tumescência, designa bem entendido no primeiro plano o
falo como alguma coisa que se oferece de um modo privilegiado, a esta função
de poder se oferecer ao corte e, igualmente, de um modo que será seguramente,
mais que em todo outro objeto, temido e escabroso.
É aqui que porquanto a função do narcisismo é relação imaginária do
sujeito a si mesmo, ela deve ser tomada pelo ponto de suporte em que se inscre­
ve, no centro, esta formação do objeto significativo. E ali também nós pode­
mos talvez perceber como isto que é aqui importante na experiência que nós
temos de tudo isto que se passa ao nível do estágio do espelho, ou seja, a inscri­
ção, a situação em que o sujeito pode colocar sua própria tensão, sua própria
ereção, em relação à imagem mais além dele próprio que ele tem no outro,
permite-nos perceber isto que pode haver de legítimo em certas aproximações
que a tradição dos psicólogos filósofos já havia feito desta apreensão da função
do eu.
Eu faço alusão aqui ao que Maine de Biran trouxe-nos em sua análise
tão fina do papel do sentimento do esforço, o sentimento do esforço, porquanto
ele é impulsionado, apreendido pelo sujeito dos dois lados ao mesmo tempo,
porquanto ele é o autor da impulsão, mas ele é igualmente o autor disto que a
contém, porquanto ele desposa esta impulsão dele como tal no interior dele
próprio. Eis que, reaproximado desta experiência da tumescência, nos faz bem
perceber o quanto pode se situar ali, e entrar em função, neste mesmo nível da
experiência (como isto pelo que o sujeito se prova sem jamais contudo poder
se apreender, pois que igualmente aqui não existe para falar propriamente mar­
ca possível, corte possível) alguma coisa da qual eu creio que o laço aqui deve
ser notado porquanto ele toma valor simbólico, sintomático, ao mesmo nível
da experiência que é aquele que nós tentamos analisar aqui na experiência, que
é aquela tão paradoxal da fadiga.

410
Se o esforço não pode servir de modo nenhum ao sujeito, pela razão de
que nada permite a impressão do corte significante, inversamente, parece que
este algo do qual vocês sabem o caráter de miragem, o caráter inobjetivável ao
nível da experiência erótica, que se chama a fadiga do neurótico, esta fadiga
paradoxal que não tem nada que ver com nenhuma das fadigas musculares que
nós podemos registrar sobre o plano dos fatos -esta fadiga, enquanto ela res­
ponde, ela é de algum modo o inverso, a sequela, o traço de um esforço que eu
chamarei de “significantidade”.
E ali que nós poderemos encontrar -e eu creio que ao passar importava
notá-lo- esta alguma coisa que é em sua forma a mais geral, isto que ao nível
da tumescência, da impulsão como tal do sujeito, nos dá os limites em que vem
se esvaecer a consagração possível na marca significante.
3 - Nós chegamos à terceira forma deste pequeno a, porquanto ele pode
aqui servir de objeto. Aqui eu gostaria muito que não se tome uma coisa por
outra, e seguramente eu não tenho diante de mim muito tempo para poder pôr
o acento sobre isto que eu vou tentar aqui isolar em todos os seus detalhes. Isto
que eu creio o mais favorável para lhes mostrar o de que se trata,e como eu o
entendo -fora de uma releitura atenta que eu lhes rogo fazer disto que eu escre­
ví sobre o tema D 'une question préalable à tout traitement possible de la
psychose, ou seja, isto que eu articulei disto que nos permite, de um modo tão
potente, tão elaborado, articular o delírio de Schreber- é isto que vai nos per­
mitir apreender a função da voz no delírio como tal.
Eu creio que é porquanto nós devemos procurar ver em quê a voz, no
delírio, responde muito especialmente às exigências formais deste a, porquan­
to ele pode ser elevado à função significante do corte, do intervalo como tal,
que nós compreendemos as características fenomenológicas desta voz. O su­
jeito produz a voz, e eu direi mais, nós temos de fazer intervir esta função da
voz porquanto fazendo intervir o peso do sujeito, o peso real do sujeito no
discurso, na formação da instância do supereu, a voz grossa é para fazer entrar
em jogo como alguma coisa que representa a instância de um Outro se mani­
festando como real.
E da mesma voz que se trata na voz do delirante? A voz do delirante, é
ela este algo do que o senhor Cocteau tentou isolar a função dramática sob o
título de La voix humaine? Basta reportar-se a esta experiência que nós pode­
mos disso ter, com efeito, sob uma forma isolada, ali onde Cocteau, com muita
pertinência e faro soube ele próprio mostrar-nos disso a incidência pura, ou

411
seja, ao telefone. O que é que a voz nos ensina como tal, mais além do discurso
que ela sustenta no telefone? Não há seguramente ali para variar, e para fazer-
lhes um pequeno caleidoscópio das experiências que disso se pode ter, que lhes
baste evocar que tentando pedir um serviço em não importa qual casa de co­
mércio, ou não importa qual outra, vocês se encontram ter na ponta do fio uma
destas vozes que lhes instrui muito sobre o caráter de indiferença, de má-von-
tade, de vontade bem estabelecida de iludir isto que pode haver aí de presente,
de pessoal na sua demanda, e que é muito essencialmente esta espécie de voz
que lhes instrui já muito sobre o fato de que vocês não têm nada para esperar
daquele que vocês interpelam; uma destas vozes que nós chamaremos uma voz
de contramestre, este termo tão verdadeira e magnificamente feito pelo gênio
da língua, não que ele seja contra o mestre, mas ele é o contrário do mestre
verdadeiramente. Esta voz, esta espécie de presentificação da vaidade, da
inexistência, do vazio burocrático que pode lhes dar algumas vezes certas vo­
zes, é isso que nós designamos quando nós falamos da voz na função em que
temos de fazê-la intervir ao nível do a?
Não, absolutamente não! Se aqui a voz se apresenta verdadeiramente e
como tal, como articulação pura e é bem isto que faz o paradoxo disto que nos
comunica o delirante quando nós o interrogamos e que alguma coisa que ele
tem para comunicar sobre a natureza das vozes parece se furtar sempre de
modo tão singular, nada de mais fechado para ele que a consistência e a exis­
tência da voz como tal. E certamente é justamente porque ela está reduzida sob
a forma a mais incisiva, ao ponto puro onde o sujeito não pode tomá-la senão
como impondo-se a ele.
E igualmente eu havia posto o acento, quando nós analisamos o delírio
do Presidente Schreber, sobre este caráter de corte que está de tal modo posto
em evidência que as vozes escutadas por Schreber são exatamente princípios
de frases: «Sie sollen werden», etc, e justamente palavras, as palavras signifi­
cativas que se interrompem, que se lançam, deixando surgir depois de seu corte
o apelo à significação. O sujeito nisso está com efeito interessado aqui, mas
para falar propriamente enquanto ele próprio desaparece, sucumbe, se devora
inteiro nesta significação que não o visa senão de um modo global. E é bem
nesta palavra: ele o interessa, que eu resumirei hoje, no momento de deixá-los,
esta alguma coisa que eu tentei apreender e extrair para vocês hoje.
Convenho que esta sessão foi talvez uma das mais difíceis de todas aquelas
que eu já tive de lhes sustentar. Vocês dela serão, eu espero, recompensados na

412
próxima vez. Nós teremos de proceder por vias menos áridas. Mas eu lhes pedi
hoje de lhes sustentar ao redor desta noção de interesse, é o sujeito como sendo
no intervalo, como sendo isto que está no intervalo do discurso do inconscien­
te, como sendo, para falar propriamente a metonímia deste ser que se exprime
na cadeia inconsciente.
Se o sujeito se sente eminentemente interessado por estas vozes, por
estas frases sem pé nem cabeça do delírio, é pela mesma razão que em todas as
outras formas deste objeto que eu hoje lhes enumerei, é ao nivel do corte, é ao
nível do intervalo que ele se fascina, que ele se fixa para se sustentar neste
instante em que, para falar propriamente, ele se visa e ele se interroga como
ser, como ser de seu inconsciente.
Está bem ali isto em tomo de que nós colocamos a questão aqui, e eu não
quero igualmente findar, ao menos para estes que vêm aqui pela primeira vez,
sem lhes fazer sentir qual é o alcance de uma tal análise, deste pequeno elo que
é meu discurso de hoje em relação àqueles que se sucedem desde dias. É que
igualmente isto de que se trata, é justamente de ver o que nós devemos fazer
em relação a este fantasma, pois este fantasma eu lhes mostrei dele aqui as
formas as mais radicais, as mais simples, aquelas nas quais nós sabemos que
ele constitui os objetos privilegiados do desejo inconsciente do sujeito. Mas
este fantasma, ele é móvel; se se lhe contraria ou faz traquinagem, não é preci­
so crer que ele possa, do mesmo modo, deixar cair um de seus membros. Não
há exemplo de que um fantasma convenientemente atacado não reagisse reite­
rando sua forma de fantasma.
Igualmente nós sabemos a quais formas de complicações este fantasma
pode chegar na medida em que, justamente, sob sua forma dita perversa ele
insiste, ele mantém, ele complica sua estrutura, ele tenta cada vez mais perto
preencher sua função. Será que interpretar o fantasma, como se diz, deve ser
pura e simplesmente reconduzir o sujeito para um atual à nossa medida, o atual
da realidade que nós nos podemos definir copio homens de ciência, ou como
homens que nós imaginamos que, afinal, tudo é redutível em termos de conhe­
cimento?
Bem parece que isto seja alguma coisa para a qual pende toda uma dire­
ção da técnica analítica, de reduzir o sujeito às funções da realidade, esta reali­
dade que eu lhes recordava da última vez, esta realidade que, para alguns ana­
listas, parece não dever poder se articular de outro modo que como isto que eu
chamei um mundo de advogados americanos! Será que, sem dúvida, o empre-

413
endimento não está fora do alcance dos meios de uma certa persuasão? Será
que o lugar ocupado pelo fantasma não nos requisita ver que há uma outra
dimensão em que nós havemos de ter em conta isto que se pode chamar as
exigências verdadeiras do sujeito? Precisamente esta dimensão nunca da reali­
dade, de uma redução ao mundo comum, mas de uma dimensão de ser, de uma
dimensão em que o sujeito carrega nele alguma coisa, meu deus, que é talvez
tão incômoda de levar quanto a mensagem de Hamlet, mas que também, por
dever talvez prometê-lo a um destino fatal, não é alguma coisa não mais da
qual nós, analistas -se é verdade que nós, analistas, podemos na experiência do
desejo encontrar mais que um simples acidente, que alguma coisa afinal bem
incômoda, mas da qual não há, em suma, mais do que esperar que isso se passe
e que a velhice venha para que o sujeito reencontre muito naturalmente as vias
da paz e da sabedoria- este desejo nos designa, para nós, analistas, outra coisa,
esta outra coisa que ele nos designa, como devemos nós com isso, operar? Qual
é nossa missão, qual é no fim das contas nosso dever? Está aí a questão que eu
ponho falando da interpretação do desejo.

414
< e u u u i. t i t M IL IL U U. U

Lição 22
27 de maio de 1959

Vamos hoje prosseguir o estudo do lugar da função do fantasma en­


quanto simbolizado nas relações do sujeito, provido da parte do sujeito en­
quanto marcado pelo efeito da fala com relação a um objeto a que tentamos, na
última vez, definir como tal. Essa função do fantasma, vocês o sabem, se situa
em alguma parte ao nivel dessa relação que tentamos inscrever no que chama­
mos o grafo. É algo muito simples em suma, já que os termos se resumem aos
quatro pontos, se posso dizer, situados nos cruzamentos das duas cadeias
significantes por um bucle que é o da intenção subjetiva; esses cruzamentos,
então, determinam esses quatro pontos,que chamamos pontos de código, que
são os da direita, aqui, (A e $ 0 D) e dois outros pontos de mensagem (S(A) e
s(A)), isto em função do caráter retroativo do efeito da cadeia significante quanto
à significação.
Eis portanto os quatro pontos que aprendemos a mobiliar com as signifi­
cações seguintes, são os lugares em que vem se situar o encontro da intenção
do sujeito com o fato concreto, o fato de que aqui há linguagem. Aqui, os dois
outros signos sobre os quais teremos que voltar hoje são $ em presença de
D, [$ 0 D], e S, significante de A, [S(A)]•
Essas duas cadeias significantes, vocês o sabem, isto está elucidado há
bastante tempo, representam.respectivamente: a cadeia inferior, a do discurso
concreto do sujeito, enquanto ela é, como tal, digamos, acessível à consciência.
O que a análise nos ensinou é que na medida em que ela é acessível à consciên­
cia, é talvez, é seguramente porque ela parte de ilusões que nós a afirmamos

415
inteiramente transparente à consciência. E se, durante vários anos eu insisti
perante vocês, por todos os viéses pelos quais poderíam ser sugeridos a vocês
as partes ilusórias que há nesse efeito de transparência, se tentei mostrar, por
todos tipos de fábulas das quais vocês talvez ainda tenham lembrança, como,
no limite podíamos tentar -sob a forma de uma imagem num espelho tomada
eficaz além de toda substância do sujeito, por qual mecanismo persistente, no
nada subjetivo realizado pela destruição de toda vida- se tentei lhes, dar, aí, a
imagem de uma possibilidade de subsistência de alguma coisa de absoluta­
mente especular independentemente de todo suporte subjetivo, não é pelo sim­
ples prazer de um tal jogo, mas isso repousa sobre o fato de que uma montagem
estruturada como a de uma cadeia significante, pode-se supor que ela dure
além de toda subjetividade dos suportes.
A consciência, na medida em que ela nos dá esse sentimento de ser eu
(moi) no discurso, é alguma coisa que, na perspectiva analítica -aquela que nos
faz, sem parar, tocar o desconhecimento sistemático do sujeito- é algo que
justamente nossa experiência nos ensina a referir a uma relação, nos mostrando
que essa consciência -na medida em que ela é primeiro experimentada, em que
ela é primeiro provada numa imagem que é imagem do semelhante- é algo
que, muito antes, recobre com uma aparência de consciência o que há de inclu­
ído nas relações do sujeito com a cadeia significante primária, ingênua, à de­
manda inocente, ao discurso concreto, porquanto ela se perpetua de bucle em
bucle, organiza o que há de discurso na própria história; o que salta de articula­
ção em articulação no que se passa efetivamente a mais ou menos distância
desse discurso concreto comum, universal, que engloba toda atividade real,
social, do grupo humano.
A outra cadeia significante é aquela que nos é positivamente dada na
experiência psicanalítica como inacessível à consciência. Vocês sentem bem
na medida em que já, para nós, essa referência à consciência da primeira cadeia
é suspeita, a fortiori essa única característica da inacessibilidade à consciência
é algo que, para nós, põe questões sobre o que é do sentido dessa inacessibilidade.
Também devemos considerar, e voltarei a isso, devemos precisar o que
entendemos por isto. Devemos considerar que essa cadeia, como tal inacessí­
vel à consciência, é feita como uma cadeia significante? Mas é sobre isto que
voltarei em seguida, coloquemos aí, por ora, como ela se apresenta a nós.
Aqui, (S (A) — $ 0 D) o pontilhado sobre o qual ela se apresenta significa que
o sujeito não a articula enquanto discurso; o que ele articula atualmente é outra

416
coisa; o que ele articula ao nível da cadeia significante se situa ao nível do
bucle intencional. E na medida em que o sujeito se situa enquanto’agindo na
alienação da significância com o jogo da palavra, que o sujeito se articula como
quê? Como enigma, como questão, muito exatamente. O que-nos é dado na
experiência a partir do que é tangível na evolução do sujeito humano, num
momento da articulação infantil, ou seja, que além da primeira demanda, já
com tudo o que ela comporta como consequência, há um momento em que ele
vai procurar, sancionar o que tem diante de si, sancionar as coisas na ordem
inaugurada pela significância. Como tal, ele vai dizer o “quê?” e vai dizer “por
quê?”. E no interior disto que é referência expressa ao discurso, é isto que se
apresenta como continuando a primeira intenção da demanda, levando-a à se­
gunda intenção do discurso como discurso, do discurso que se interroga, que
interroga as coisas com relação a ele mesmo, com relação à situação delas no
discurso, que não é mais exclamação, interpelação, grito da necessidade, mas
já nomeação. É isto que representa a intenção segunda do sujeito, e se, essa
intenção segunda do sujeito, eu a faço a partir do lugar A, é na medida em que
se o sujeito está inteiro na alienação da significância, na alienação da articula­
ção falada como tal, e que é ai e a esse nível que se põe a questão que chamei,
na última vez: sujeito como tal, do S? Com um ponto de interrogação. Tam­
bém, não é que eu me compraza nos jogos do equívoco, mas é também coeren­
te com o nível no qual procedemos, no ponto que articulamos -é no interior
dessa interrogação, dessa interrogação interna, no lugar instituído da fala, no
discurso, é no interior disto que o sujeito deve tentar se situar como sujeito da
fala, demandando aí ainda: é? Quê? Por quê? Quem fala? Ou, onde é que isto
fala? E precisamente no fato de que o que se articula ao nível da cadeia
significante não é articulável ao nível desse [ é ], dessa questão, que constitui o
sujeito uma vez instituído na fala, é nisto que consiste o fato do inconsciente.
Aqui, quero simplesmente lembrar, para o uso daqueles que puderem
aqui se inquietar, como por uma construção arbitrária, dessa identificação da
cadeia inconsciente que apresento aqui, com relação à interrogação do sujeito,
estar nas mesmas relações que aquelas do discurso primeiro da demanda à
intenção que surge da necessidade, quero lembrar-lhes isto, é que se o
significante, se o inconsciente tem um sentido, esse sentido tem todas as carac­
terísticas da função da cadeia significante como tal. E aqui sei bem que fazen­
do essa breve lembrança devo fazer, para a maior parte de meus ouvintes, alu­
são ao que sei que eles já ouviram de mim quando falei dessa cadeia significante,

417
na medida em que ela está ilustrada na história que publiquei alhures, a fábula
dos discos brancos e dos discos pretos, porquanto ela ilustra algo de estrutural
nas relações de sujeito a sujeito, na medida em que se encontram aí três termos.
Nessa história um signo distintivo permite identificar, discriminar com
relação a um par branco ou preto, a relação com os outros sujeitos; para aqueles
que não se lembram, me contentarei em lhes dizer que eles se referem ao que
escrevi sobre isso200, com relação a essa sucessão de oscilações em que o sujei­
to se localiza, com relação ao quê? Com relação à procura do outro que se faz
em função do que os outros vêem dele próprio e do que os determina de manei­
ra conclusiva, ou seja, o que eu chamava aqui o [raciocínio], isso pelo que o
sujeito decide que ele é efetivamente branco ou preto, se verifica preto ao de­
clarar isto pelo que a fábula é construída.
Vocês não encontram aí muito exatamente o que, na estrutura da pulsão,
nos é de uso familiar, ou seja, esse fato de identificação relativa, essa possibi­
lidade da denegação, da recusa da articulação, da defesa, que são tão coerentes
com a pulsão quanto o avesso com o direito de uma mesma coisa e que se
concluem por alguma coisa que se toma para o sujeito a marca, a escolha em
tais condições, em tais situações, o que ele escolhe sempre primeiro, esse poder
de repetição, sempre o mesmo, que tentamos chamar, segundo os sujeitos, uma
tendência masoquista, uma inclinação aos fracassos, retomo do recalcado, evo­
cação fundamental da cadeia primitiva? Tudo isso é uma só e mesma coisa, a
repetição no sujeito de um tipo de sanção cujas formas ultrapassam em muito
as características do conteúdo.
Essencialmente, o inconsciente se apresenta para nós sempre como uma
articulação indefinidamente repetida e é por isso que é legítimo que situemos
no esquema sob a forma dessa linha pontilhada. Por que a pontilhamos aqui?
Dissemos, na medida em que o sujeito não acede aí e dizemos, mais precisa­
mente, na medida em que o sujeito pode aí se nomear ele próprio, pode se
situar enquanto suporte dessa sanção, na medida em que ele pode aí se desig­
nar, na medida em que ele é aquele sobre o qual recairá enfim a marca, os
estigmas do que fica para ele não somente ambíguo, mas, propriamente falan­
do, inacessível até um certo termo que é aquele, justamente, que dá a experiên­
cia analítica. Nenhum Eu [Je] dele pode ser articulado a esse nível, mas a expe-

200 LACAN J., Le Temps logique et T assertion de certitude anticipée. (1945), in Ecrits, p. 197.
Paris, Seuil, 1966.

418
4i a a u u M < IL t <1 M M | f

riência se apresenta como “isso chega de fora”, e já é muito que isso aconteça,
ele pode lê-lo, como um “Isso fala”. Há aí uma distância da qual não é mesmo
dito, apesar de que o mandamento de Freud nos dê a visada disso, que de uma
maneira qualquer o sujeito possa atingir o alvo.
O alcance, então, a esse nível, do ponto dito de código, na medida em
que o simbolizamos aqui pela confrontação do S com a demanda, D, significa
o quê? Muito precisamente isto: é que isto e nada outro que esse ponto que
chamamos ponto de código e que não é tirado senão na medida'em que a aná­
lise começa a decifragem da coerência da cadeia superior, é na medida em que
o sujeito $, enquanto sujeito do inconsciente, isto é, enquanto o sujeito que é
constituído no além do discurso concreto -enquanto o sujeito vê, lê, ouve, digo
retroativamente, podemos supô-lo aqui como suporte da articulação do incons­
ciente- encontra o quê? Encontra aquilo que nessa cadeia da fala do sujeito,
enquanto ele questiona sobre si mesmo, encontra a demanda.
Qual papel desempenha a demanda a esse nível? A esse nível, e é o que
quer dizer o signo 0 entre $ e D, a esse nível, a demanda é afetada por sua
forma propriamente simbólica, a demanda é utilizada na medida em que além
do que ela exige quanto à satisfação da necessidade, ela se coloca como essa
demanda de amor ou essa demanda de presença, por onde dissemos que a de­
manda institui o outro a quem ela se endereça como aquele que pode estar
presente ou ausente. É enquanto a demanda joga essa função metafórica, en­
quanto a demanda, quer ela seja oral ou anal, se toma símbolo da relação com
o Outro, enquanto ela desempenha aí s,ua função de código, que ela permite
constituir o sujeito como estando situado no que chamamos, em nossa lingua­
gem, a fase oral ou anal por exemplo.
Mas isto pode ser chamado também a correspondência da mensagem,
isto é, que com o código o sujeito pode responder ou receber como mensagem
ao que é a questão que, no além, expõe-se primeiramente na cadeia significante.
Ela se apresenta aí também em pontilhado e como vindo do Outro, a questão
do Che Vuoi? Que queres? O sujeito, além do Outro, põe-se sob a forma do E?
A resposta é a que é simbolizada aqui no esquema pela significância do Outro
enquanto S(X)- Essa significância do Outro, enquanto É? [Est-ce?], nós lhe
demos, a esse nível, um sentido que é esse sentido mais geral, esse sentido no
qual vai correr a aventura do sujeito concreto, sua história subjetiva; a forma
mais geral é esta: é que não há nada no Outro, não há nada na significância que
possa ser suficiente a esse nível da articulação significante. Não há nada na

419
significância que seja a garantia da verdade. Não há outra garantia da verdade
do que a boa fé do Outro, isto é, alguma coisa que se passa sempre para o
sujeito sob uma forma problemática. Quer dizer que o sujeito fica no extremo
de sua questão, dessa inteira fé concernindo ao que para ele faz surgir o reino
da fala?
E justamente aqui que chegamos ao nosso fantasma. Já na última vez
lhes mostrei que o fantasma, na medida em que ele é o ponto do esteio concreto
por onde abordamos as margens da consciência, como o fantasma desempe­
nha, para o sujeito, esse papel do suporte imaginário, precisamente desse ponto
em que o sujeito não acha nada que possa articulá-lo enquanto sujeito de seu
discurso inconsciente.
E aí então que voltamos hoje, que nos é preciso interrogar mais de perto
esse fenômeno. Lembro-lhes o que na última vez lhes disse a propósito do
objeto -como se o objeto jogasse aí o mesmo papel de miragem que na parte
inferior a imagem do outro especular, i(a), desempenha com relação ao eu
[moi]. Assim, então, em face do ponto em que o sujeito vai se situar para ace­
der ao nivel da cadeia inconsciente, aqui, coloco o fantasma como tal. Essa
relação com o objeto tal como ela está no fantasma nos induz a quê? A uma
fenomenologia do corte, ao objeto na medida em que ele pode suportar no
plano imaginário essa relação de corte que é aquela em que, a esse nível, o
sujeito tem que se suportar.
Esse objeto enquanto suporte imaginário dessa relação de corte, o vimos
nos três níveis do objeto: pré-genital, da mutilação castradora, e também da
voz alucinatória como tal, isto é menos, na medida em que ela é voz encarnada,
discurso enquanto interrompido, cortada pelo monólogo interior, cortada no
texto do monólogo interior.
Vejamos hoje se não fica muito mais a dizer disso se voltamos ao senti­
do do que, aí, se exprime, pois também do que se trata, com relação a alguma
coisa que já introduzí na última vez, ou seja, do ponto de vista do real, do ponto
de vista do conhecimento? Em que nivel estamos aqui, já que estamos introdu­
zidos ao nivel de um S? Que é esse É? E outra coisa que um equívoco, que é
suscetível de ser preenchido por não importa qual sentido? Ou vamos parar,
em sua pertença verbal de conjugação, no verbo ser201? Já algo sobre isso foi

201 Equívoco que permite escrever: Est-ce? É?, em francês, mas também Esse, infinitivo latim
do verbo ser e S, letra pela qual é designado o significante.

420
trazido na última vez. Trata-se com efeito de saber a que nível aqui estamos
quanto ao sujeito, na medida em que o sujeito não sé localiza simplesmente
quanto ao discurso, mas também quanto a algumas realidades.
Eu digo isto: se alguma coisa se apresenta, se articula, que possamos, de
maneira coerente, intitular a realidade, quero dizer a realidade a qual levamos
em conta em nosso discurso analítico, situarei o campo dela nesse esquema
aqui, no campo que está abaixo do discurso concreto, na medida em que esse
discurso o engloba e o forma, que ele é reserva de um saber, de um saber que
podemos estender tão longe quanto tudo que pode falar para o homem. Enten­
do que ele não é entretanto obrigado, a todo instante, a reconhecer o que já em
sua realidade, em sua história, incluiu desde então em seu discurso, que tudo
que se apresenta por exemplo na dialética marxista como alienação pode aqui
se apreender e se articular de uma forma coerente.
Direi mais, o corte, não o esqueçamos. E isso já nos é indicado no tipo
do primeiro objeto do fantasma, do objeto pré-genital. A que é que faço alusão
como objetos que aqui possam suportar os fantasmas, senão aos objetos reais
numa relação estreita com a pulsão vital do sujeito, na medida em que sejam,
dele, separados? O que não é tão evidente é que o real não é um contínuo
opaco, que o real bem entendido é feito de cortes, e bem além dos cortes da
linguagem e não é de ontem que o filósofo, Aristóteles, nos falou do bom
filósofo, o que quer dizer, ao meu ver, também: “Aquele que sabe em toda sua
generalidade, é comparável ao bom cozinheiro, é aquele que sabe fazer passar
a faca no ponto que é justo, de corte d|S articulações, que sabe penetrar sem
lesá-las”.
A relação do corte do real e do corte da linguagem é algo portanto que,
até certo ponto, parece satisfazer'isso em que a tradição filosófica está em
suma sempre instalada, ou seja, que não se trata senão do recobrimento de um
sistema de corte por um outro sistema de corte. No que digo que a questão
freudiana vem a seu tempo, é na medida em que o que o percurso agora cum­
prido pela ciência nos permite formular, é que há na aventura da ciência algu­
ma coisa que vai bem além dessa identificação, desse recobrimento dos cortes
naturais pelos cortes de um discurso qualquer, o que por um esforço que essen­
cialmente consistiu em esvaziar toda articulação científica de suas implanta­
ções mitológicas é, veremos, em breve, alguma coisa que daí nos conduziu ao’
ponto em que estamos e que me parece suficientemente caracterizado, sem
fazer mais drama, pelo termo de desintegração da matéria. É algo que pode nos

421
sugerir ver nessa aventura puros e simples conhecimentos. Isto, se nos coloca­
mos no plano do real ou, se quiserem, provisoriamente, de algo que chamarei,
nesta ocasião (com todo o acento necessário de ironia, pois não é certamente
minha tendência chamá-lo assim) o grande Todo, desse ponto de vista a ciên­
cia e sua aventura se apresentam não como o real reenviando-se a si mesmo
seus próprios cortes, mas como elementos criadores de alguma coisa de novo,
e que parece proliferar de uma maneira que aqui, seguramente, não podemos
nos denegar a nós mesmos, enquanto homens, que nossa função mediadora,
nossa função de agentes não deixa de colocar a questão de saber se as
consequências do que se manifesta não nos ultrapassam um pouco.
Enfim, o homem, nesse jogo, entra às suas custas. Talvez, não há lugar
aqui para irmos muito longe. Pois esse discurso que expresso sóbrio e reduzi­
do, do qual mesmo assim suponho que o acento dramático e atual não lhes
escapa; o que quero dizer aqui, é que essa questão quanto à aventura da ciência
é outra coisa do que tudo que pôde se articular, mesmo com essa consequência
extrema da ciência, com todas as consequências que foram as do dramatismo
humano enquanto inscrito em toda a história. Aqui, nesse caso, o sujeito parti­
cular está em relações com este tipo de corte constituído pelo fato de que ele
não está relacionado a um certo discurso consciente, de que ele não sabe o que
ele é. E disso que se trata, se trata da relação do real do sujeito como entrando
no corte, e esse acontecimento do sujeito ao nível do corte tem algo que é
preciso mesmo chamar um real, mas que não é simbolizado por nada. Parece-
lhes talvez excessivo ver designar, ao nível do que chamamos, há pouco, uma
manifestação pura desse ser, o ponto eletivo da relação do sujeito com isto que
pudemos aqui chamar seu ser puro de sujeito, isto pelo que, desde então, o
fantasma do desejo toma a função, esse ponto, de designá-lo.
É porque, num outro momento, pude definir essa função preenchida pêlo
fantasma como uma metonímia do ser e identificar como tal, nesse nível, o
desejo. Entendamos que a esse nível, a questão fica inteiramente aberta, de
saber se podemos chamar homem o que se indica dessa maneira, pois, o que
podemos chamar homem senão isso que é já simbolizado como tal e que, tam­
bém, cada vez que se fala, se encontra então carregado de todos os reconheci­
mentos, digamos, históricos? A palavra “humanismo” não designa comumente
nada a esse nível. Mas há algo seguramente nele, de real, algo de real que é
necessário e que basta para assegurar na própria experiência essa dimensão que
chamamos, creio, muito impropriamente, de hábito, essa profundeza, digamos

422
mais, que faz com que o ser não seja identificável a nenhum dos papéis (para
empregar o termo em uso atualmente) que ele assume.
Aqui então, a dignidade, se posso dizer, desse ser é definida numa rela­
ção que não é, nó que quer que seja, cortada, se posso me exprimir assim, com
todos os planos de fundo, as referências castradoras especialmente; se vocês
podem, com outras experiências, colocar não um culpado [coupable], para me
permitir um jogo de palavras, mas o corte [coupure] como tal, ou seja, afinal de
contas o que se apresenta para nós como sendo a última característica estrutu­
ral do simbólico como tal; ao que, não quero simplesmente senão indicar de
passagem que o que encontramos aí, é a direção em que já lhes ensinei aprocu-
rar o que Freud chamou de instinto de morte, isso pelo que esse instinto de
morte pode estar convergindo com o ser.
Nesse ponto pode haver algumas dificuldades, eu gostaria de tentar movê-
las. No último número de The Psychoanalytic Quaterly, há um artigo muito
interessante, aliás, sem excesso, do Sr. Kurt Eissler que se chama La fonction
des dètails dans e ' interpolation des oeunres d 'art202. É a uma obra de arte, e à
obra de arte, em geral, com efeito que vou tentar me referir para ilustrar isso de
que se trata aqui. Kurt Eissler começa seu discurso, e o termina aliás, por uma
observação da qual devo dizer que podemos qualificá-la diversamente, segun­
do a consideremos como confusa ou como simplesmente inexplorada. Eis, çom
efeito, aproximadamente o que ele articula. O termo detalhe lhe parece particu­
larmente significativo a propósito e na ocasião da obra de um autor perfeita-
mente desconhecido além do círculo austríaco. É um ator-autor, e se me refiro
a isso é porque vou voltar, em breve, a Hamlet; o ator-autor em questão é um
pequeno Shakespeare desconhecido.
A propósito desse Shakespeare que vivia no início do século precedente
em Viena, Eissler fez uma dessas belas historinhas totalmente típicas do que se
chama a psicanálise aplicada, isto é, mais uma vez ele encontrou, através da
vida do personagem, um certo número de elementos sinaléticos paradoxais,
que permitem introduzir questões que ficarão para sempre irresolutas, ou seja,
se o Sr. Ferdinand Raimund foi especialmente afetado, cinco anos antes que
ele tivesse escrito uma de suas obras mestras, pela morte de alguém que era

202 EISSLER K., The fonction of details in the interpretation of works of literature, (1959), The
Psychoanalytic Quaterly. 1959, vol 28, pp. 1-20. La function des details dans Tinterprétation
des oeuvres d 'art.
para ele um tipo de modelo, mas um modelo de tal maneira assumido que todas
as questões se colocam a propósito da identificação paterna, materna, sexual,
tudo o que vocês queiram! A questão em si mesma nos deixa muito frios, é o
exemplo de um desses trabalhos gratuitos que, nesse gênero, se renovam sem­
pre com um valor de repetição que guarda também séu valor de convicção, mas
não é disso que se trata.
Trata-se é disto, é a espécie de distinção que Eissler quer estabelecer
entre a função do que ele chama aproximadamente de detalhe relevant202, em
inglês, chamá-lo de o detalhe que não cola, o detalhe pertinente. Efetivamente,
é a propósito de alguma coisa numa peça muito bem feita do denominado Sr.
Ferdinand Raimund, é a propósito de alguma coisa que vem ali, digamos um
pouco como cabelos na sopa, que nada implica absolutamente, que a escuta de
Kurt Eissler se aguce, ele chega a encontrar um certo número de fatos biográ­
ficos cujo interesse é absolutamente patente.
Então, é do valor de guia do detalhe relevant que se trata. E aí, Eissler
faz um tipo de oposição entre o que se passa na clínica e o que se passa na
análise dita psicanálise aplicada que se faz comumente na análise de uma obra
de arte. Ele repete por duas vezes algo -se eu tivesse tempo seria preciso que
lhes lesse isso no texto, para lhes fazer sentir o caráter opaco- ele diz, em
suma: é aproximadamente’ o mesmo papel que desempenham o sintoma e esse
detalhe que não convém salvo que, na análise, partimos de um sintoma que é
dado como um elemento relevant essencialmente para o sujeito, é em sua inter­
pretação que progredimos até sua solução. Noutro caso é o detalhe que nos
introduz no problema, isto é, na medida que em um texto -ele não chega a
formular essa noção de texto- num texto, apreendemos alguma coisa que não
estando aí especialmente implicada, como estando discordante, somos intro­
duzidos a alguma coisa que pode nos levar à personalidade do autor204.
Há alguma coisa aí que, se olharmos mais de perto, não pode completa­
mente passar por uma relação de contraste, parece que basta vocês refletirem

M) Relevant: pertinente. Mas também, em Eissler: o detalhe “revelador" no sentido do lapso


revelador.
204 Eissler, p. 19: In clinical analysis we start out with a clinical question and each relevant
detail brings us closer to the solution. In the literary inquiry the relevant detail paves the way
toward finding and delineating the problem that subsequently has to be solved. [...] In clinical
work, the detail solves the problem; in literary analysis, the detail poses the problem.

424
para notarem isso (se há contraste, há também, evidentemente, paralelismo)
que no conjunto, isso em direção ao que, parece, deveria conduzir essa obser­
vação, é seguramente que a discordância no simbólico -no simbólico como tal
numa obra escr-ita, e aqui em todo caso- desempenha um. papel funcional, to­
talmente identificável ao sintoma real, em todo caso do ponto de vista do pro­
gresso, se esse progresso deve ser considerado como um progresso de conheci­
mento concernindo ao sujeito.
Assim, de todas as maneiras, a aproximação tem verdadeiramente um
interesse. Simplesmente, a questão nesse momento para nós se coloca de saber
se na obra de arte, eu diria, somente a falta de impressão vai se tomar para nós
significativa. E por que, afinal de contas? Pois se é claro que na obra de arte, o
que se pode chamar a falta de impressão -vocês entendem que eu quero dizer
algo que se apresenta a nós como uma descontinuidade- pode nos levar a al­
gum conhecimento útil para nos servir de índice em que encontramos nos es­
clarecimentos maiores, em seu alcance inconsciente, tal ou tal incidente da
vida passada do autor (o que se passa efetivamente nesse artigo), é que em todo
caso a coisa não nos introduz a isto, é que, desde logo, a dimensão da obra de
arte deve ser para nós esclarecida? Efetivamente, podemos desde logo, e a
partir apenas desse fato, (nós o veremos bem além desse fato) colocar que a
obra de arte, desde então, não sabería mais para nós, de maneira nenhuma, ser
afirmada como representando essa transposição, essa sublimação, chamem isso
como quiserem, da realidade; não se trata de algo que joga tão largamente
quanto possível na imitação, trata-se de.algo que joga tão largamente quanto
possível na ordem da mimese.
Isto pode portanto aplicar-se também ao que é aliás o caso geral, ou seja,
que a obra de arte tem sempre um remanejamento profundo, isso não coloca
em causa, mesmo isto que, creio é, é já para nós ultrapassado. Mas não é a esse
ponto que pretendo atrair a atenção de vocês. É que a obra de arte é para nós
limitada a um tipo de obra de arte. De momento, me limitarei à obra de arte
escrita. A obra de arte, longe de ser algo que transfigura de qualquer maneira
que seja, tão amplamente quanto vocês possam dizê-lo, a realidade, introduz
em sua estrutura mesma esse fato do advento do corte na medida em que aí se
manifesta o real do sujeito enquanto, além do que ele diz, é o sujeito inconsci­
ente. Pois se essa relação do sujeito com o advento do corte lhe. é interditada
enquanto está justamente aí seu inconsciente, não lhe é interditada enquanto o
sujeito tem a experiência do fantasma, ou seja, é animado por essa relação dita

425
do desejo que -somente pela referência dessa experiência e na medida em que
ela é intimamente tecida na obra- algo se toma possível pelo que a obra vai
exprimir essa dimensão, esse real do sujeito tal como o chamamos, há pouco,
de advento do ser além de toda realização subjetiva possível; e que é a virtude
e a forma da obra de arte, aquela que logra e aquela também que fracassa, que
interessa essa dimensão aí, essa dimensão, se posso dizer, se posso me servir
da topologia de meu esquema para fazê-lo sentir, essa dimensão transversal
que não é paralela ao campo criado no real pela simbolização humana que se
chama realidade, mas que lhe é transversal na medida em que a relação mais
íntima do homem com o corte, enquanto ultrapassa todos os cortes naturais,
que há esse corte essencial de sua existência, isto é, que ele está aí e deve se
situar nesse fato mesmo do advento do corte, que é disto que se trata na obra de
arte -e especialmente na que abordamos mais recentemente porque ela é, desse
ponto de vista, a obra a mais problemática, ou seja, Hamlet.
Há também todo tipo de coisas relevant em Hamlet. Eu diria mesmo que
é por aí que progredimos, mas de uma maneira completamente enigmática.
Não podemos, a todo momento, senão interrogar-nos sobre isto, que quer dizer
essa relevance. Pois uma coisa está clara, é que não está jamais excluído que
Shakespeare a tenha querido. Se com ou sem razão pouco importa! Kurt Eissler,
na obra de Ferdinand Raimund, pode achar bizarro que se faça intervir, num
momento, um período de cinco anos de que jamais alguém falara antes -é o
detalhe relevant que vai colocá-lo na via de uma certa procura- está claro que
não procedemos absolutamente da mesma maneira concernindo ao que se pas­
sa em Hamlet, pois, em todo caso, estamos seguros de que esse tecido de
relevances não pode, em nenhum caso, estar pura e simplesmente resolvido
por nós, pelo fato que Shakespeare se deixava conduzir aqui por seu bom gê­
nio. Temos o sentimento de que ele estava aí para alguma coisa, e afinal de
contas, não estaria aí para nada mais do que para a manifestação de seu incons­
ciente mais profundo, está em todo caso aqui a arquitetura dessas relevances
que nos mostra isso a que ele chega, é essencialmente a se desdobrar na afirma­
ção maior que distinguíamos há pouco, ou seja, nesse tipo de relação do sujei­
to, a seu nível mais profundo, como sujeito falante, isto é, na medida em que
ele traz à luz sua relação ao corte como tal.
É bem isso que nos mostra a arquitetura de Hamlet na medida em que
vemos o que, em Hamlet, depende fundamentalmente de uma relação que é a
do sujeito com a verdade. À diferença do sonho do pai morto, do qual partimos

426
esse ano, em nossa exploração, o sonho do pai morto que aparece ante o filho
trespassado de dor, aqui o pai sabe que está morto e faz seu filho saber disso; e
o que distingue o cenário, a articulação de Hamlet de Shakespeare da história
de Hamlet tal como ele aparece na história literária, é justamente que eles são
os únicos a saberem. Na história, é publicamente que o assassinato teve lugar e
Hamlet se faz de louco para dissimular suas intenções, todo mundo sabe que
houve crime.
Aqui há apenas dois que sabem, entre os quais um ghost. Ora, um ghost,
o que é? Senão a representação desse paradoxo tal que pode fomentá-lo so­
mente a obra de arte, e é aí que Shakespeare vai tomá-lo para nós inteiramente
credível. Outros além de mim mostraram a função que cumpre essa vinda do
ghost ao primeiro plano. A função do ghost se impõe desde o início de Hamlet.
E esse ghost, o que diz? Ele diz coisas muito estranhas e me surpreendo que
ninguém tenha mesmo abordado, não digo a psicanálise do ghost, mas não
tenha colocado o acento em alguma interrogação sobre o que diz o ghost. O
qüe ele diz, em todo caso, não se duvida, ele diz: a traição é absoluta, não havia
nada maior, mais perfeito, que minha relação de fidelidade a essa mulher. Não
há nada mais total que a traição da qual fui objeto. Tudo que se coloca, tudo
que se afirma como boa fé, fidelidade e voto, é então para Hamlet, colocado
não somente como revogável, mas como literalmente revogado. A anulação
absoluta do que se desenrola ao nível da cadeia significante, e é alguma coisa
totalmente diferente dessa carência de algo que garantisse; o termo que é ga­
rantido é a não-verdade; essa espécie de re.yelação, se pode-se dizer, da mentira
(é algo que merecería ser seguido) representa o espírito de Hamlet, esse tipo de
estupor em que ele entra após as revelações paternas. É algo que está no texto
de Shakespeare, traduzido de uma maneira absolutamente notável, ou seja, que
quando lhe perguntamos o que ele aprendeu, ele não quer dizer, e por uma
razão tão evidente, mas ele o exprime de maneira absolutamente particular, se
poderia dizer em francês “que não há uma criatura suja no reino da Dinamarca
que não seja um imundo indivíduo”205, isto é, ele se exprime no regime da
tautologia.
Mas deixemos isso de lado, esses não são senão detalhes e anedotas, a
questão está alhures. A questão é esta: onde nos enganamos? É geralmente

20i Hamlet: Il n'yeut jamais de scélérat vivant dans tout le Danemark... qui ne soit un scélérat.
(U,125).

427
dado que um morto não saberia ser um mentiroso. E por quê? Pela mesma
razão, talvez, que toda nossa ciência conserva ainda esse postulado interno, e
Shakespeare o sublinhou em termos próprios (ele dizia, de tempos em tempos,
coisas que não eram tão superficiais como esta, na ordem filosófica), ele dizia:
o bom velho Deus é maligno, seguramente é honesto, podemos dizer isto de
um pai que nos exprime de maneira categórica que está sujeito a todos os tor­
mentos das chamas do inferno, e isso por crimes absolutamente infames? Há
aí, quando muito, algo que não pode deixar de nos alertar, há aí alguma
discordância e se seguirmos os efeitos, em Hamlet, do que se apresenta como a
danação eterna, da verdade para sempre condenada a se furtar a ele, se conce­
bermos que Hamlet fica então trancado nessa afirmação do pai, não podemos
nós mesmos nos interrogar, até um certo ponto, sobre o que significa, pelo
menos funcionalmente, essa fala com relação à gênese e ao desenrolar de todo
o drama? Várias coisas poderíam ser ditas, inclusive esta, que o pai de Hamlet
diz: «Mas se não se emociona absolutamente a virtude quando o vício viesse
tentá-la em forma de céu. Assim, a luxúria, o vício, no leito de um anjo radiante
toma antes desgostosamente essa cama celeste e se vai à imundice»204 * 206. É, aliás,
uma má tradução, pois devemos dizer: «Assim o vício, mesmo que ligado a um
anjo radiante».
De que anjo radiante se trata? Se é um anjo radiante que introduz o vicio
nessa relação de amor decaído no qual toda a carga está colocada no outro, se
ele pode aqui mais que não importa onde que aquele que vem para sempre
trazer o testemunho da injúria sofrida não esteja aí para nada? Isto seguramente
é a chave que jamais poderá ser virada, o segredo que jamais poderá ser levan­
tado.
Mas não viria alguma coisa aqui nos colocar no rastro do morto sob o
qual devemos compreender? Bem, está, aqui como alhures, o fantasma. Pois o
enigma para sempre irresoluto, tão primitivo quanto supúnhamos, e justamen­
te, o cérebro dos contemporâneos de Shakespeare, como tão curiosa escolha do
vidrinho de veneno derramado na orelha do ghost que é o pai, que é Hamlet -
pai, não esqueçam, porque os dois se chamam Hamlet.

204 The ghost: But virtue, as it never will be moved,/ Though lewdness court it in a shape of
heaven,/So lust, though to a radiant angel link'd/ Will sate itself in a celestial bed/ And prey on
garbage. Mais comme la vertu ne succombera jamais quand la débauche viendrait la tenter
sous uneforme celeste, de méme la débauche, füt-elle associée à un ange éblouissant de beauté,
profanerait as couche celeste else rassasierait d 'opprobre (1,5,53).

428
W Mk Wk M» Uí X* u,

Sobre isso os analistas quase não se aventuraram. Houve destes sim para
indicar que talvez algum elemento simbólico devia ser reconhecido. Mas é
alguma coisa que, em todo caso, pode ser situada segundo nosso método sob a
forma do bloco que forma, do buraco que forma, do enigma impenetrado que
constitui. Inútil, eu já o fiz, sublinhar o paradoxo dessa revelação, mesmo in­
cluindo suas consequências.
O importante é isto, temos aí uma estrutura não somente fantasmática,
que cola tão bem ao que se passa, ou seja, que em todo caso há alguém que é
envenenado pela orelha, é Hamlet; e aqui o que faz função de veneno é a fala
de seu pai. Desde então, a intenção de Shakespeare se esclarece um pouco, é
que o que ele nos mostrou primeiro é a relação do desejo com essa revelação;
durante dois meses Hamlet permanece sob o golpe dessa revelação. E como ele
vai reconquistar pouco a pouco o uso de seus membros? Bem, justamente, por
uma obra de arte. Os comediantes lhe vêm a tempo para que ele faça disso o
banco de prova da consciência do rei, nos diz o texto.
O que é certo, é que é pela via dessa prova que ele vai poder entrar de
novo na ação, numa ação que vai se desenrolar necessariamente a partir da
primeira das consequências, isto é, primeiro, que esse personagem que, a partir
da revelação patema desejava unicamente sua própria dissolução -«Oh carne
tão sólida, que te evaporas, que possas te dissolver!»207. Ao final da peça, nós o
vemos tomado por uma embriaguez que tem um nome bem preciso, que é a do
artifex, ele está louco de alegria por ter conseguido seu pior efeito, não pode­
mos mais mantê-lo e é muito justo se Horácio deve agarrar-se a ele para conter
uma exuberância muito grande. Quando ele diz: Não podería eu agora «me
engajar em alguma companhia como autor, com uma parte inteira?» Horácio
responde: «com uma meia parte»208, ele sabe a que se ater disso... Efetivamen­
te, tudo está longe de ser reconquistado com esse assunto, não é porque ele está
artifex que já encontrou seu papel; mas basta que saibamos que ele está artifex
para compreender que o primeiro papel que achar, ele o pegará. Ele exercerá o
que lhe é, afinal de contas, mandado, lerei para vocês numa outra vez essa
passagem em seu texto.

207 Hamlet: Oh! Pourquoi cette masse de chair trap endurcie nepeut-elle s 'amollirpar la douleur,
se fondre et se résoudre en flats de larmes! (1,2,129).
708 Hamlet: ...m 'agréger à une troupe de comédiens? - Horatio: Oui, un demi-talent. (111,2,263).

429
Tal veneno uma vez ingerido pelo rato -e vocês sabem que o rato nâo
está jamais muito longe de todos esses assuntos, especialmente em Hamlet-
Ihe dá essa sede, que é a própria sede da qual ele morrerá, pois ela dissolverá
completamente nele esse veneno mortal, tal como foi primeiramente inspirado
à Hamlet.
Alguma coisa se junta ao que acabo de lhes dizer que permite colocar aí
todo seu acento. Um autor denominado [...] espantou-se com isso de que todos
os espectadores deveríam notar há muito tempo, é que Cláudio se mostra tão
insensível ao que precede a cena do jogo, aquela em que Hamlet representa
diante de Cláudio a própria cena de seu crime; há um tipo de prólogo que
consiste numa pantomima em que se vê, antes, toda essa longa cena de protes­
tos de fidelidade e de amor da rainha de comédia junto ao rei de comédia; antes
do gesto de derramar o veneno na orelha, no contexto do pomar, do jardim, que
é feito praticamente diante de Cláudio que literalmente não pia.
Vidas inteiras se engajaram nesse ponto. O Sr. [...] disse alguma coisa,
ou seja que o ghost mentia, o que, Deus me livre, eu não digo! E o Sr. [...]
escreveu longas obras para explicar como pode se dar que Cláudio, tão mani­
festamente culpável, não seja reconhecido na cena representada. E ele amon­
toou todos os tipos de coisas minuciosas e lógicas para dizer que se ele não é
reconhecido é que ele olhava alhures. Isso não está indicado no jogo de cena e,
talvez, afinal de contas, isso não vaha o trabalho de uma vida inteira. Poderia­
mos sugerir que seguramente Cláudio está aí para alguma coisa, ele próprio o
confessa, ele o clama aos céus, numa sombria história em que sobram não
somente o equilíbrio conjugal de Hamlet-pai, mas ainda outra coisa, e sua pró­
pria vida, e que é bem verdade que «Seu crime cheira mal a ponto de feder até
no céu»209. Tudo indica que num momento ele se sente verdadeiramente picado
ao vivo, no mais fundo de si mesmo, ele salta no momento em que Hamlet Lhe
diz o quê? «Quem vai entrar na cena é Lúcio, ele vai envenenar o rei, é seu
sobrinho». Começamos a compreender que Cláudio, que depois de algum tem­
po, sente que há alguma coisa, um cheiro de enxofre no ar, ele aliás perguntou:
«Não há ofensa nisso? A menor ofensa», respondeu Hamlet; Cláudio, nesse
momento, sente que se passa um pouco da medida210.

2OT (111,3,37).
210 (111,2,231) e (2,220).

430
Na verdade permanecemos numa ambiguidade total, ou seja, se o escân­
dalo é geral, se toda a corte a partir desse momento considera que Hamlet é
particularmente impossível, pois todo mundo está do lado do rei, é seguramen­
te a favor da corte porque eles [não] reconheceram aí o crime de Cláudio -pois
ninguém sabe nada e ninguém jamais soube nada até o fim, fora Hamlet e seu
confidente, da maneira como Cláudio exterminou Hamlet-pai.
A função do fantasma parece então aqui ser alguma coisa diferente da
do “mediador” como se diz nos romances policiais, e que essa coisa se toma
muito mais clara se pensamos, como acredito mostrar a vocês, que Shakespeare
foi mais longe que ninguém, a ponto que sua obra é a própria obra, é aquela em
que podemos ver descrito uma espécie de cartografia de todas as relações hu­
manas possíveis, com esse estigma que se chama desejo enquanto ponto de
toque, o que designa irredutivelmente seu ser, pelo que milagrosamente pode­
mos achar essa espécie de correspondência.
Não lhes parece absolutamente maravilhoso que alguém cuja obra por
toda parte recortada apresente essa unidade de correspondência, que alguém
que foi certamente um dos seres que avançaram mais longe nessa direção de
oscilação, tenha ele próprio, sem dúvida nenhuma, vivido uma aventura, a que
está descrita no Sonnet que nos permite recortar exatamente as posições funda­
mentais do desejo. Voltarei a isso mais tarde. Esse homem surpreendente atra­
vessou a vida da Inglaterra elisabetana, incontestavelmente, não desapercebi­
do, com suas quase quarenta peças e com alguma coisa da qual temos também
alguns rastros, quero dizer, alguns testemunhos. Mas leiam uma obra muito
bem feita e que resume agora aproximadamente tudo o que foi feito de pesqui­
sa sobre Shakespeare. Há uma coisa absolutamente surpreendente, é que, fora
o fato de que ele seguramente existiu, não podemos sobre ele, sobre suas liga­
ções, sobre tudo o que lhe cercou, sobre seus amores, suas amizades, não pode­
mos verdadeiramente dizer nada. Tudo passou, tudo desapareceu sem deixar
rastros. Nosso autor se apresenta, a nós analistas, como o enigma mais radical­
mente para sempre desvanecido, dissolute, desaparecido, que poderiamos assi­
nar em nossa história.

431
Lição 23
3 de junho de 1959

Eu continuo minha tentativa de articular para vocês aquilo que deve


regrar nossa ação na análise uma vez que temos a ver, no sujeito, com o incons­
ciente. Eu sei que isto não é coisa fácil e, também, eu não me permito tudo na
sorte de formulação à qual eu gostaria de lhes levar. Acontece que meus desvi­
os estão ligados ao sentimento que eu tenho da necessidade de sensibilizá-los
em relação ao procedimento do qual se trata; não é por força entretanto que eu
consiga sempre que vocês não percam o sentido da rota. No entanto, eu lhes
peço que me sigam, que confiem em mim. E para voltar ao ponto onde estáva­
mos da última vez, eu articulo simplesmente isso que tenho, evidentemente
não sem precauções, não sem esforços para evitar as ambiguidades, formulado
colocando em primeiro plano o termo ser.
E para proceder a golpes, eu pergunto, por casual que possa lhes parecer
semelhante fórmula, a restituição, a reintegração em nossos conceitos cotidia­
nos de termos tão grandiosos que, depois de séculos, não se ousa mais tocar
senão com uma espécie de temor respeitoso. Eu quero falar do ser e do Um.
Digamos (bem entendido, está em seu emprego fazer a prova de sua coerência)
que o que eu chamo ser, e que até um certo ponto eu cheguei a qualificar na
última vez como “ser puro” a um certo nível de sua emergência, é alguma coisa
que corresponde aos termos segundo os quais nós nos situamos, especialmente
do real e do simbólico. E que aqui o ser é simplesmente isto que, não somos
idealistas, que para nós, como se diz nos livros de filosofia, nós somos daque­
les que pensam que o ser é anterior ao pensamento, mas que para nos situar

433
precisamos nada menos que isto, aqui em nosso trabalho de analistas. Eu lamento
ter que remover para vocês o céu da filosofia, mas eu devo dizer que faço isto
constrangido e forçado, e apesar de tudo porque não acho nada melhor para operar.
O ser, nós diremos então que é propriamente o real enquanto ele se ma­
nifesta ao nível do simbólico, mas entendamos bem que é ao nível do simbóli­
co. Em todo o caso para nós, não temos que considerar alhures, esta coisa que
parece tão simples, que há alguma coisa a acrescentar quando dizemos “ele é
isso”, e que visa o real, e na medida em que o real está afirmado ou rejeitado ou
denegado no simbólico.
Este ser não está em nenhuma parte alhures (que isto seja bem entendi­
do!) senão nos intervalos, nos cortes e ali onde, propriamente falando, ele é o
menos significante dos signifícantes, ou seja o corte. Que ele é a mesma coisa
que o corte o toma presente no simbólico. E nós falamos de “ser puro”. Eu vou
dizê-lo mais brutalmente já que na última vez parece, e eu quero admitir volun­
tariamente, que certas fórmulas que eu avancei pareceram de cincunlocução,
ou mesmo confusas para alguns. O ser puro do qual se trata, é o mesmo ser do
qual eu acabo de dar a definição geral, e isto enquanto sob o nome de inconsci­
ente, o simbólico, uma cadeia significante subsiste segundo uma fórmula que
vocês me permitirão avançar, todo sujeito é [não] um.
Aqui é preciso que eu lhes peça indulgência, ou seja que me sigam. O
que quer dizer simplesmente, que vocês não imaginem que o que eu avanço
aqui é algo que avanço com menos precaução do que avancei o ser. Peço-lhes
que me dêem crédito porque antes de falar-lhes, já havia me apercebido que o
que agora vou avançar, ou seja o Um, não é uma noção unívoca, e que os
dicionários de filosofia lhes dirão que existe mais de um emprego deste termo.
Ou seja que o Um, esse que é o todo, não se confunde em todos os seus empre­
gos, em todos os seus usos, com o um em número, isto é, o um que supõe a
sucessão e a ordem dos números e que se desempenha como tal. Pois parece,
com efeito, segundo toda aparência, que este Um seja secundário à instituição
do número como tal, e que para uma dedução correta -em todo caso as aborda­
gens empíricas,.elas, não deixam sobre isto nenhuma dúvida (a psicologia in­
glesa tenta instaurar a entrada empírica do número em nossa experiência; e não
é por nada que me refiro aqui à tentativa de argumentação mais chã). Já lhes fiz
observar que é impossível estruturar a experiência humana, quero dizer esta
experiência afetiva mais comum, sem partir do fato que o ser humano conta, e
que ele se conta.

434
Eu direi, de uma maneira abreviada pois é preciso, para ir mais longe,
que eu suponha adquirido por um certo tempo de reflexão o que eu já disse, que
o desejo está estreitamente ligado àquilo que acontece porquanto o ser humano
tem que se articular no significante. E que enquanto ser, é nos intervalos que
ele aparece a um nível que nós talvez tentaremos, mais adiante, articular de
uma maneira que, deliberadamente, eu vou tomar mais ambígua que a do Um,
tal como acabo de introduzi-la, já que ela, não considero que se tenha ainda
tentado articulá-la como tal em sua ambiguidade mesma. E a noção do não-um.
E enquanto esse $ aparece aqui como este não-um que nós iremos retomar e
rever, que nos haveremos com ele hoje.
Mas retomemos as coisas ao nível da experiência. Eu quero dizer aqui
ao nível do desejo. Se o desejo desempenha esse papel de servir de índice ao
sujeito no ponto em que ele não pode se designar sem esvanecer-se, nós dire­
mos -que ao nível do desejo o sujeito “se conta”. “Ele se conta”, para jogar
com as ambiguidades, sobre a língua, é aí que primeiro quero reter a atenção de
vocês -quero dizer sobre a propensão que nós sempre temos a esquecer isso
com que temos que nos haver na experiência, a de nossos pacientes (esses dos
quais temos a audácia de nos encarregar), e é por isso que eu lhes reenvio a
vocês mesmos. No desejo, nós nos contamos contando.
É aí que o sujeito aparece contador", não no computo, mas aí onde se diz
que ele tem que fazer face ao que há, ao último termo que o constitui como ele
mesmo. É tempo de lembrar aos analistas que não há nada que constitua mais o
último termo da presença do sujeito, porquanto é com isso que temos que nos
haver, qüe o desejo. A partir daí, quando esse remanejo do contador começa a
se entregar a toda sorte de transações que o evaporam em equivalentes diversa­
mente fiduciários, é evidentemente todo um problema, mas há apesar de tudo
um momento em que é preciso pagar à vista. Se as pessoas vêm nos procurar, é
em geral por isto, é porque isso não anda bem no momento de pagar à vista, do
que forque se trate, do desejo sexual, ou da ação no sentido pleno e no sentido
mais simples. É aí dentro que se coloca a questão do objeto. É claro que se o
objeto fosse simples, não somente não seria difícil para o sujeito fazer face,
contando, a seus sentimentos, mas se vocês me permitem esse jogo de pala­
vras, ele estaria mais frequentemente, com o objeto, contente enquanto é preci­
so que ele se contente com isso, o que é bem diferente!
’N.d.T.: Comptant (contante, contador) e content (contente, satisfeito) são homofônicos e
permitem um jogo de palavras nesta passagem.

435
Isto está evidentemente ligado ao fato (que convém também lembrar
porque é o princípio de nossa experiência) que a esse nível do desejo, o objeto
para satisfazê-lo não é, pelo menos, de acesso simples, e que mesmo, nós dire­
mos, não é fácil encontrá-lo, por razões estruturais que são justamente aquelas
nas quais vamos tratar de entrar mais adiante. Não parecemos ir rápido, mas é
porque é duro, ainda que, eu repito, seja nossa experiência cotidiana.
Se o objeto do desejo [fosse] o mais maduro, o mais “adulto”, como nos
exprimimos de tempos em tempos nessa espécie de embriaguez babada que se
chama a exaltação do “desejo genital”, nós não teríamos que fazer constante­
mente essa observação da divisão que se introduz aí regularmente; e que nós
somos forçados a articular no momento mesmo em que falamos desse sujeito
conciliador, mais ou menos problemático entre os dois planos que constituem,
esse objeto como objeto de amor ou, como se diz, de ternura, ou do outro ao
qual fazemos dom de nossa unicidade -e o mesmo outro considerado como
instrumento do desejo. E bem claro que é o amor do outro que resolve tudo,
mas se vê bem por essa observação somente de que talvez aqui nós saímos
justamente dos limites do diagrama já que, no fim das contas, não é às nossas
disposições, mas à ternura do outro que está reservado isto de que, ao preço
sem nenhuma dúvida de um certo descentramento dele mesmo, ele satisfaça ao
mais exato do que, no plano do desejo, é para nós promovido como objeto.
Finalmente parece aqui que, mais ou menos camufladas, nós reintroduziríamos
simplesmente velhas distinções introduzidas pela experiência religiosa. Ou seja
a distinção da ternura amorosa no sentido concreto ou "passional", “carnal”
(como se diz) do termo, e do amor de caridade. Se é verdadeiramente isto, por
que não mandamos nossos pacientes aos pastores que lhes pregarão bem me­
lhor que nós? Além do mais aliás nós estamos advertidos de que seria uma
linguagem mal tolerada e que, de vez em quando, nada melhor que nossos
pacientes para antecipar os deslizamentos ai de nossa linguagem e nos dizer
que, depois de tudo, se são estes belos princípios de moral que temos que lhes
predicar, eles poderíam muito bem ir buscá-los em outra parte, mas que curio­
samente já ocorreu que isto os irrite tanto a ponto de não terem vontade de
escutar isto de novo. Eu faço aí uma ironia bem fácil. Não é uma ironia pura e
simples.
Eu irei mais longe, direi que, no fim das contas, não há esboço de teoria
do desejo, quero dizer de uma teoria do desejo em que nós pudéssemos, nós,
reconhecer (se eu ponho os pingos nos “is”) as cifras mesmas através das quais

436
eu tenciono agora articular para vocês, senão os dogmas religiosos. E que não
é por acaso se na articulação religiosa o desejo, ele sim (sem nenhuma dúvida
nos recantos protegidos cujo acesso está reservado, não está aberto ao comum
dos mortais, dos fiéis, senão em recantos que se chama a mística) está bem
inscrito. Como tal a satisfação do desejo está ligada a toda uma organização
divina que é aquela que, para o dito comum, se apresenta sob a forma de misté­
rios -provavelmente para os outros também, eu não tenho necessidade de nomeá-
los. E preciso ver o que pode representar, para o crente de [espinha] sensível,
termos suficientemente vibrantes como o da encarnação ou da redenção. Po­
rém irei mais longe, direi que o mais profundo de todos, que se chama a Trin­
dade, seria um grande erro crer que não é algo que, ao menos, tem relação com
o algarismo três com o qual sempre temos que nos haver, se nos apercebermos
que não há justo acesso, equilíbrio possível a alcançar para um desejo que
chamamos normal, sem uma experiência que faz intervir uma certa tríade sub­
jetiva. Por que não dizer estas coisas, já que elas estão aí numa extrema simpli­
cidade? E para mim, eu não repugno, mais. Me satisfaço tanto com tais refe­
rências como com as de mais ou menos confusas apreensões de cerimônias
primitivas (totêmicas ou outras) nas quais o que encontramos de melhor não é
muito diferente destes elementos de estrutura. Bem entendido, é justamente
porquanto tratamos de abordá-lo de um modo que, para não ser exaustivo, não
é tomado sob o ângulo do mistério, que acredito haja interesse de que nos
engagemos por esta via.
Mas então, eu o repito, certas questões, eu diria de horizonte moral, até
mesmo social, não são supérfluas de relembrar nesta ocasião. Ou seja articular
isto que aparece bem claro na experiência contemporânea, que não poderia
haver aí satisfação de cada um sem a satisfação de todos, e que isto está no
princípio de um movimento que, mesmo se não estamos poderosamente com­
prometidos com outros, nos pressiona por toda a parte e seguramente o bastan­
te por estar sempre disposto a transtornar muitas de nossas comodidades. Tra­
ta-se ainda de recordar que a satisfação da qual se trata merece talvez que a
interroguemos. Pois é ela pura e simplesmente a satisfação das necessidades?
Esses mesmos dos quais eu falo -coloquemos sob a rubrica do movimento que
se inscreve dentro da perspectiva marxista, e que não há nada outro em seu
princípio senão aquilo que acabo de expressar: “não há satisfação de cada um
senão na satisfação de todos”- não ousariam pretendê-la, porque justamente o
que é o fim desse movimento e das revoluções que ele comporta, é em última

437
.iii.iH'ic l.izri nnedci esses "Iodos" n uma liberdade sem ncnhumii dúvida lon-
g it up hi , o colocada como devendo ser pós-revolucionária. Porém essa liberda­
de, que oniro conteúdo poderiamos lhe dar senão de ser justamente a livre
disposição para cada um de seu desejo? Entretanto, resta dizer que a satisfação
do desejo, nessa perspectiva, é uma questão pós-revolucionária, e disto nos
apercebemos todos os dias. Isto não arranja nada, nós não podemos reenviar o
desejo com o qual temos que nos haver a uma etapa pós-revolucionária. E cada
um sabe aliás que não estou falando de tal ou tal modo de vida, que esteja ele
mais aquém ou mais além de um certo limite. A questão do desejo fica no
primeiro plano das preocupações dos poderes, quero dizer que é preciso mes­
mo que haja alguma maneira social e coletiva de manejar [to manage] com ele.
Isto não é mais cômodo do lado de cá de uma certa cortina que do outro. Trata-
se sempre de moderar um certo mal-estar, o Malaise dans la culture como o
chamou Freud. Não há outro mal-estar na cultura que o mal-estar do desejo.
Para um último assinalamento sobre o que quero dizer, lhes colocarei a
questão de saber cada um, não enquanto analistas demasiadamente predispos­
tos -menos aqui que em outra parte- a se acreditarem destinados a ser os re­
gentes dos desejos dos outros, de lhes interrogar sobre o que quer dizer para
cada um de vocês, no coração de sua existência, o termo: o que é realizar seu
desejo?
Isto existe apesar de tudo! Há, apesar de tudo, coisas que se cumprem,
elas são um pouco desviadas à direita, um pouco desviadas à esquerda, torci­
das, atrapalhadoras e mais ou menos merdosas, mas são, apesar de tudo, coisas
que numa certa hora podemos reunir sob esse feixe em tal ou tal momento:
“isto ia no sentido de realizar meu desejo”. Mas se lhes peço para articular o
que isto quer dizer, realizar seu desejo, aposto que não o articularão facilmen­
te. E, no entanto, se me é permitido -eu cruzarei isto com a referência religiosa
que adiantei hoje- valer-me dessa formidável criação de humor negro que a
religião à qual eu me referi agora há pouco, aquela que temos aí tão viva, a
religião cristã, promoveu sob o nome de Juízo final, simplesmente lhes coloco
a questão de saber se isto não é uma das questões que devemos projetar como
em seu lugar mais conveniente [no] lugar do Juízo final: a questão de saber se
esse dia do Juízo final, o que poderemos dizer sobre esse sujeito, o que em
nossa existência única teremos feito nesse sentido de realizar nosso desejo, não
pesará tanto como aquela que não a refuta em nenhum grau, que não a contraba­
lança de nenhum modo, de saber se teremos ou não feito o que se chama o bem.

438
Porém voltemos sobre nossa fórmula, nossa estrutura do desejo, para
ver o que faz dela não somente a função do objeto, como tratei de articular há
dois anos, nem tampouco a do sujeito na medida em que tratei de lhes mostrar,
que se distingue nesse ponto chave do desejo por este desvanecimento do su­
jeito na medida em què ele tem que se nomear como tal, mas na correlação que
liga um ao outro, que faz com que o objeto tenha essa função precisamente de
significar esse ponto em que o sujeito não pode se nomear, em que o pudor, eu
diria, é a forma régia do que se cunha nos sintomas em vergonha e em nojo.
Eu lhes peço ainda um tempo antes de entrar nessa articulação, para
fazê-los observar algo que sou forçado a deixar aí como uma marca, ou seja,
como um ponto que não pude, em seu tempo, por razões de programa, desen­
volver como desejava, que é o da comédia. A comédia, contrariamente ao que
um povo futil pode crer, é o que há de mais profundo neste acesso ao mecanis­
mo da cena porquanto permite ao ser humano a decomposição espectral do que
é a sua situação no mundo. A comédia está mais além desse pudor. A tragédia
termina com o nome do herói, e com a total identificação do herói. Hamlet é
Hamlet, ele é tal nome. E mesmo porque seu pai já era Hamlet que no final das
contas tudo se resolve aí, ou seja que Hamlet está definitivamente abolido em
seu desejo. Acredito ter dito disso bastante com Hamlet.
Mas a comédia é um curioso pega-desejo, e é por isso que cada vez que
uma armadilha do desejo funciona estamos na comédia. E o desejo enquanto
ele aparece aí onde não o esperavamos. O pai ridículo, o devoto hipócrita, o
virtuoso prisioneiro de uma manobra adújtera, eis aí aquilo com o que se faz a
comédia. Mas é preciso bem entendido esse elemento que faz com que o desejo
não se confesse. Ele é mascarado e desmascarado, ele é achincalhado, é punido
na ocasião, mas é pela forma, pois, nas verdadeiras comédias, o castigo não
roça sequer as asas do corvo dó desejo, ele que segue absolutamente intacto.
Tartufo é exatamente o mesmo depois que o isento lhe pôs a mão no ombro.
Amolfo diz “ufa!”2", ou seja, ele é sempre Arnolfo, e não há nenhuma razão
para que ele não recomece com uma nova Agnes. E Harpagão não é curado
pela conclusão mais ou menos artificial da comédia molieresca. O desejo, na
comédia, é desmascarado mas não refutado. Eu lhes dou aí apenas uma indica­
ção.

211 Molière, L 'École des femmes (V,9,v. 1765). O erudito poderá referir-se à nota de G. Couton
na Bibliothèque de la Pléiade sobre a discussão entre ouf! e ohl...

439
Agora queria introduzir-lhes no que vai. me servir para situar nosso com­
portamento com relação ao desejo enquanto, na análise, a experiência nos ensi­
nou a vê-lo para, como dizia um de nossos grandes poetas (ainda que ele seja
ainda um grande pintor), esse desejo ai, nós podemos pegá-lo pelo rabo1'1, isto
é, no fantasma. O sujeito então, enquanto deseja, não sabe onde ele está em
relação à articulação inconsciente, ou seja a esse signo, a essa escansão que ele
repete enquanto inconsciente. Onde está esse sujeito como tal? Está no ponto
em que ele deseja? Aí está o ponto de minha articulação de hoje, ele não está no
ponto em que ele deseja, ele está em alguma parte no fantasma. E está ai o que
quero articular hoje, pois daí depende toda nossa conduta na interpretação.
Tempos atrás eu me vali de uma observação aparecida numa espécie de
pequeno boletim na Bélgica212 213, concernente à aparição de uma perversão tran­
sitória no momento da cura, de algo que foi impropriamente etiquetado como
uma forma de fobia, quando se tratava claramente e como o autor sem dúvida
ele mesmo em suas interrogações... Devo dizer que esse texto é precioso, ele é
muito consciencioso e muito utilizável pelas interrogações que o próprio autor
pontua, ou seja a mulher que dirigiu esse tratamento e que, sem dúvida nenhu­
ma, melhor dirigida ela mesma, tinha todas as qualidades que eram necessárias
para ver muito melhor e ir muito mais longe. É claro que essa observação, na
qual se pode dizer que em nome de certos princípios (“princípio de realidade”
na ocasião), a analista se permite jogar com o desejo do sujeito como se se
tratasse aí do ponto que nele devia ser recolocado no lugar. O sujeito, sem
nenhuma dúvida, não por acaso, põem-se a fantasiar que sua cura coincidirá
com o fato de que se deitará com a analista. Sem nenhuma dúvida, não é por
acaso que algo tão cortante, tão cru, chegue ao primeiro plano de uma experi­
ência analítica, é uma consequência da orientação geral dada ao tratamento, e
de algo que é nitidamente percebido pelo próprio autor como tendo sido o
ponto crucial. Ou seja o momento em que se trata de interpretar um fantasma e
de identificar ou não um elemento desse fantasma, o qual felizmente e muito
magnificamente, é neste momento, não digo um homem com armadura, mas
uma armadura que avança detrás do sujeito, armadura armada de algo bastante
facilmente reconhecível porque é urna seringa de Fly-tox, ou seja o que se pode

212 Picasso P., Le désir attrapé par la queue (1945), Gallimard, 1967.
211 Lebovici Ruth, “perversion transitoire au cours d’un traitement psychanalytique”, in Bulletin
d’activité de 1’Association des psychanalystes de Belgique, n.25, pp.1-17.

440
fazer como representação, a mais cômica e a mais caracterizada também, do
aparelho fálico como destruidor. E isto no maior embaraço retrospectivo do
autor. É certamente daí que se desprenderam muitas coisas, e ele pressente que
a isto foi enganchado, na sucessão, todo desencadeamento da perversão artifi­
cial. Tudo depende do fato de que isto era interpretado em termos de realidade,
de experiência real da mãe fálica, incontestavelmente. E não no sujeito disto,
que ressalta claramente de uma certa vista da observação a partir do momento
em que se quer tomá-la, que o sujeito faz surgir aí a imagem necessária e faltante
do pai como tal, na medida em que ele é exigido para a estabilização de seu
desejo. E nada poderia assim mesmo satisfazer-nos melhor que o fato de que
esse personagem faltante aparece desde então sob a forma de uma montagem,
de algo que dá a imagem vivente do sujeito enquanto reconstituído com a ajuda
de um certo número de cortes, de articulações da armadura, na medida em que
elas são junturas, e junturas puras como tais.
É nesse sentido, e de um modo completamente concreto, que se poderia
refazer o tipo de intervenção que tivesse sido necessária; que talvez o que se
chama nessa ocasião cura pudesse ser encontrado com menores esforços que
pelo rodeio de uma perversão transitória, sem dúvida jogada no real -e que
incontestavelmente nos permite abordar, numa certa prática, em que a referên­
cia à realidade representa uma regressão no tratamento.
Vou agora precisar bem o que quero fazer-lhes sentir no que concerne a
essas relações de $ e de a. Primeiro vou dar-lhes um modelo que não é mais
que um modelo, o Fort-da, ou seja algo que não tenho necessidade de comen­
tar de outro modo, ou seja esse momento que podemos considerar teoricamen­
te primeiro da introdução do sujeito no simbólico, porquanto é na alternância
de um par significante que reside essa introdução, em relação com um pequeno
objeto qualquer que seja (digamos uma bola ou ainda um pequeno pedaço de
cordão, algo esfiapado no final da cama, contanto que isto se mantenha, e que
possa ser atirado e trazido de volta). Eis aí então o elemento de que se trata, e
no qual o que se expressa é algo que está justo antes da aparição do $, ou seja o
momento em que o 5 se interroga em relação ao outro enquanto presente ou
ausente. É então o lugar pelo qual o sujeito entra, a esse nível, no simbólico, e
faz surgir no começo este algo que o Sr. Winnicott, pela necessidade de um
pensamento completamente centrado nas experiências primárias da frustração,
introduziu o termo, para ele necessário na gênese possível de todo desenvolvi­
mento humano como tal, de “objeto transicional”. O objeto transicional, é a

441
pequena bola do l''ort-ila.
A partir de quando podemos considerar esse jogo como promovido à
sua função no desejo? A partir do momento em que se toma fantasma, ou seja,
em que o sujeito não entra mais no jogo, mas se antecipa nesse jogo, em que ele
curto-circuita esse jogo, em que ele está inteiramente incluído no fantasma.
Quero dizer, em que ele se capta ele mesmo em sua desaparição. Certamente
não se captará sem esforço, porém o que é exigível para o que chamo de fantas­
ma, enquanto suporte do desejo, é que o sujeito esteja representado no fantas­
ma nesse momento de desaparição. E lhes faço observar que não estou dizendo
nada de extraordinário. Simplesmente articulo esse viés, esse clarão, esse mo­
mento em que Jones se deteve quando buscou dar seu sentido concreto ao
termo “Complexo de castração” e em que, por razões de exigência de sua com­
preensão pessoal, não vai longe, porque é assim que para ele as coisas são
fenomeno logicamente sensíveis. As pessoas estão apesar de tudo detidas por
limites de compreensão quando querem a qualquer preço compreender! O que
tento fazer-lhes ultrapassar um pouquinho dizendo que se pode ir um pouco
mais longe parando de tentar compreender. E é no que não sou fenomenologista.
E Jones identifica o Complexo de castração com o temor do desaparecimento
do desejo. É exatamente o que estou lhes dizendo de uma forma diferente. Já
que o sujeito teme que seu desejo desapareça, isto deve mesmo significar algo,
é que, em alguma parte, ele se deseja desejante, que está aí o que é a estrutura
do desejo, prestem atenção, do neurótico. E por isto que não abordarei o neuró­
tico de antemão, porque isto lhes parece muito facilmente uma simples dupli­
cação: eu me desejo desejante, e me desejo desejante desejado, etc.
Não é nada disso que se trata, e é por isto que o fantasma perverso é útil
para relembrar. E se hoje não posso ir mais longe, tratarei de fazê-lo tomando
um desses fantasmas mais acessíveis, e além disso muito aparentado com isto a
que tive que fazer alusão há pouco na observação que evoquei, ou seja o fan­
tasma do exibicionista, do voyeur igualmente, pois vocês irão vê-lo, talvez
convenha não se contentar com a maneira como é comumente referida a estru­
tura da qual se trata.
Tem-se o costume de nos dizer, “é muito simples, é muito lindo este
fantasma perverso, a pulsão escopofílica”. Seguramente se ama olhar, se ama
ser olhado, essas “encantadoras pulsões vitais” como diz em alguma parte Paul
Éluard. Há em suma algo aí, a pulsão, que se compraz ao que o poema de
Éluard exprimiu tão belamente sob a fórmula Donner à voir, manifestação da

442
forma oferecendo-se por ela mesma ao outro.
Em suma, lhes faço observar, dizer isto já não é qualquer coisa. Isto não
nos parece mais tão simples. Isto implica, já que estávamos neste nível ontem
à noite, ou seja o que pode haver de subjetividade implícita numa vida animal,
isto implica mesmo assim uma certa subjetividade. Não é possível conceber
esse donner à voir inclusive, sem dar à palavra dar a plenitude das virtudes do
dom, apesar de tudo uma referência, inocente sem dúvida, não advertida, dessa
forma, à sua própria riqueza. E temos também indicações disso completamente
concretas no luxo posto pelos animais nas manifestações da ostentação cati­
vante, principalmente da ostentação sexual. Não vou voltar a fazer sacudir di­
ante de vocês o peixe, penso ter falado longamente disto para que o que estou
dizendo tenha um sentido. E simplesmente para dizer que na curva de certo
comportamento, tão instintual quanto o suponhamos, algo pode estar implicado
como esse pequeno movimento mesmo de retomo, e ao mesmo tempo de ante­
cipação que está aí na curva da palavra. Quero dizer uma projeção temporal
desse algo que está na exuberância da pulsão a mostrar-se, tal como podemos
encontrá-la ao nível natural. Aqui, eu não posso senão lateralmente, e para
aqueles que estavam ontem na sessão científica, incitar aquele que interveio
sobre esse sujeito a dar-se conta que convém, justamente nessa antecipação
temporal, modular o que é espera talvez, sem nenhuma dúvida no animal em
certas circunstâncias, com esse algo que nos permite articular a decepção dessa
espera como um engano. E o meio-termo, diria eu até ser convencido do con­
trário, me parece estar constituído por uma promessa. Que o animal se faça
uma promessa do sucesso de tal ou tal de seus comportamento, está ai toda a
questão para que nós possamos falar de engano em lugar de decepção da espe­
ra.
Agora voltemos ao nosso exibicionista. Será que ele se inscreve de algu­
ma maneira nessa dialética do mostrado, mesmo enquanto esse mostrado está
enlaçado às vias do outro? Aqui posso simplesmente apesar de tudo fazer-lhes
observar a relação exibicionista com o outro -eu vou empregar termos precári­
os para fazer-me compreender, não são certamente os melhores, os mais literá­
rios- que o outro *fosse* surpreendido em seu desejo cúmplice (e Deus sabe
que o outro verdadeiramente o é nesta ocasião) com o que se passa aí, e com o
que se passa como o quê? Enquanto ruptura.
Observem que essa ruptura não é qualquer. Essa ruptura, é essencial que
ela seja assim a armadilha para desejo. E uma ruptura que passa desapercebida

443
à (o que chamaremos, na ocasião) maior parte, e ela é percebida no seu lugar
enquanto desapercebida em outra parte. Além disso todo mundo sabe que não
existe verdadeiro exibicionista (salvo refinamento, por certo, suplementar) no
privado. Justamente para que isso seja, para que haja prazer, é preciso que isso
se passe em um lugar público.
Chegamos nesta estrutura com nossos grandes tamancos e lhe dizemos:
“meu amiguinho, se você se mostra tão longe é porque você tem medo de aproxi-
mar-se do seu objeto. Aproxime-se, aproxime-se 1”. Eu me pergunto o que signifi­
ca esse gracejo! Vocês acreditam que os exibicionistas não trepam? A clínica vai
completamente contra isto. Eles se fazem na ocasião bons esposos com suas mu­
lheres, porém somente o desejo do qual se trata está em outra parte. Certamente ele
exige outras condições; essas são condições nas quais convém aqui se deter.
Vê-se bem que esta manifestação, esta comunicação eletiva que se produz
aqui com o outro, [não] satisfaz um certo desejo senão porquanto são colocados
numa certa relação uma certa manifestação do ser e do real, enquanto ele se inte­
ressa no quadro simbólico como tal. Está aí aliás a necessidade do lugar público:
que se esteja bem seguro de que se está no quadro simbólico. Ou seja -eu lhes faço
notar para as pessoas que lhe reprovam por não ousar aproximar-se do objeto, por
ceder a não sei qual medo- coloquei como condição para a satisfação de seu desejo
justamente o máximo de perigo. Aí ainda se irá no outro sentido, sem preocupar-se
com a contradição, e se dirá, é este perigo que eles buscam. Não é impossível.
Antes de ir tão longe, tratemos apesar de tudo de observar uma estrutura.
Isto é, que do lado do que faz aqui figura de objeto, ou seja o, ou a, ou os
interessados, a ou as meninas (sobre as quais vertemos ao passar as lágrimas
das boas almas), acontece que as meninas, sobretudo se forem muitas, se diver­
tem muito durante este tempo. Isto faz mesmo parte do prazer do exibicionista,
é uma variante. O desejo do outro está aí portanto como elemento essencial na
medida em que ele é surpreendido, em que está interessado para além do pu­
dor, em que é na ocasião cúmplice. Todas as variantes são possíveis.
E do outro lado o que há? Há algo do qual já lhes fiz observar a estrutura,
e que voltei a indicar parece-me que suficientemente há pouco. Há sem dúvida
nenhuma o que ele mostra, me dirão vocês. Porém eu lhes direi que o que ele
mostra nesta ocasião é antes bastante variável, o que ele mostra é mais ou
menos glorioso -porém o que ele mostra é uma redundância que esconde antes
que desvela aquilo de que se trata. Não é preciso enganar-se sobre o que ele
mostra enquanto testemunha da ereção de seu desejo, sobre a diferença que há

444
entre isto e o aparelho de seu desejo. O aparelho está essencialmente constitu­
ído por isto que sublinhei, do percebido no desapercebido que eu chamei crua­
mente uma calça que se abre e se fecha, e para dizer tudo, no que podemos
chamar a fenda -no desejo. É isto que é essencial. E não há ereção, por mais
lograda que a suponhamos, que aqui supra ao que é o elemento essencial na
estrutura da situação, ou seja essa fenda como tal. É aí também onde o sujeito
como tal se designa, está aí o que convém reter para dar-se conta do que se trata
e, falando muito provavelmente, o que se trata de preencher.
Voltaremos mais tarde aí pois quero controlar isto da fenomenologia
correlativa do voyeur. Eu posso, acredito, ir mais rápido agora. E no entanto ir
mais rápido é como sempre permitir-nos escamotear aquilo do que se trata. E
por isso que me aproximo aqui com a mesma circunspecção, pois o que é es­
sencial e o que é omitido na pulsão escopofilica, é começar também pela fenda.
Pois para o voyeur, esta fenda ocorre ser um elemento da estrutura absoluta­
mente indispensável. E a relação do percebido com o desapercebido, por repar-
tir-se aqui diferentemente, não é menos distinta.
Bem mais, quero entrar no detalhe. Isto é, visto que se trata do apoio
tomado sobre o objeto, ou seja sobre o outro, na satisfação aqui especialmente
voyeurista, o importante é que o que é visto esteja interessado no assunto, isto
faz parte do fantasma. Pois sem nenhuma dúvida, o que é visto pode muito
frequentemente ser visto sem sabê-lo. O objeto (digamos feminino já que pare­
ce não ser por nada que seja nessa direção que se exerça essa busca), o objeto
feminino, sem dúvida, não sabe que é visto. Mas na satisfação do voyeur, que­
ro dizer no que suporta seu desejo, existe isto, é que se prestando aí se pode-se
dizer inocentemente, alguma coisa no objeto se presta aí a essa função de espe­
táculo, está aí aberto, participa em potência nessa dimensão da indiscrição; e é
na medida em que algo em seus gestos pode levar a suspeitar que por algum
viés ele é capaz de oferecer-se aí que o gozo do voyeur alcança seu exato e
verdadeiro nível. A criatura surpreendida será tanto mais erotizável, diria eu,
quanto algo em seus gestos pode nos revelá-la como oferecendo-se ao que eu
chamaria os hóspedes invisíveis do ar. Não é por nada que os evoco aqui. Estes
chamam-se anjos da cristandade a quem o Sr. Anatole France teve o desemba­
raço de implicar neste assunto. Leiam La révolte des angesw, vocês verão

214 France A., La Révolte des anges (1914).

445
nele, em todo o caso, o vínculo muito preciso que une a dialética do desejo com
essa espécie de virtualidade de um olho, inapreensível mas sempre imaginável.
E as referências feitas no livro do Conde de Cabanis no que concerne às núpci­
as místicas dos homens com os silfos e as ondinas não vieram aí por nada no
texto, bastante centrado nos seus objetivos, que constitui tal livro ou outro de
Anatole France.
Então é nesta atividade em que a criatura aparece nessa relação de segre­
do com ela mesma, nesses gestos em que se trai a permanência do testemunho
diante do qual a gente não se confessa, que o prazer do voyeur como tal está em
sua plenitude. Não vêem vocês que aqui, nos dois casos, o sujeito mesmo re­
duz-se ao artifício da fenda como tal. Este artifício mantém seu lugar e o mos­
tra efetivamente reduzido à função miserável que é a sua. Mas é bem dele que
se trata, na medida em que ele está no fantasma, ele é a fenda. A questão da
relação dessa fenda com o que há de mais insuportável simbolicamente segun­
do nossa experiência, ou seja a forma que responde aí no lugar do sexo femini­
no, é uma outra questão que deixamos aqui aberta para o futuro.
Mas agora retomemos o conjunto e partamos da célebre metáfora poéti­
ca do “eu me via ver-me” de [o autor de] La Jeune Parque. Está muito claro
que este sonho de perfeita clausura, de suficiência acabada, não é realizado em
nenhum desejo senão no desejo sobre-humano da virgem poética. É na medida
em que eles se põem no lugar do “eu me via” que o voyeur e o exibicionista se
introduzem na situação, que é o quê? Justamente uma situação em que o outro
não vê o “eu me via”, uma situação de gozo inconsciente do outro. O outro, de
certo modo, é aqui decapitado da parte terceira, ele não sabe que está em potên­
cia de ser visto, ele não sabe o que representa o fato de que ele seja sacudido
com o que ele vê, ou seja com o objeto inabitual que o exibicionista lhe apre­
senta e que não produz seu efeito sobre esse outro senão na medida em que ele
é efetivamente o objeto de seu desejo mas que não o reconhece nesse momen­
to.
Estabelece-se então a distribuição de uma dupla ignorância. Pois se o
outro não se dá conta nesse nível, enquanto outro, do que supostamente está
em conta no espírito daquele que se exibe ou daquele que se vê como manifes­
tação possível do desejo, inversamente em seu desejo, aquele que se exibe ou
que se vê não se dá conta da função do corte que o abole num automatismo
clandestino, que o esmaga num momento em que ele não reconhece absoluta­
mente a espontaneidade na medida em que ela designa o que se diz aí como tal,

446
e que está aí em seu apogeu, conhecido ainda que presente mas suspenso. Ele
só conhece, ele, essa manobra de animal envergonhado, essa manobra oblíqua,
essa manobra que o expõe aos murros. Entretanto essa fenda, sob qualquer
forma que ela se apresente, postigo, ou telescópio, ou não importa qual tela,
essa fenda é aí o que o faz entrar no desejo do outro. Essa fenda, é a fenda
simbólica de um mistério mais profundo que é o que se trata de elucidar, ou
seja seu lugar num certo nível do inconsciente, que nos permite situar o perver­
so, neste nível, como numa certa relação com, é bém a estrutura do desejo
como tal. Pois é o desejo do outro como tal, reproduzindo a estrutura do seu,
que ele visa.
A solução perversa a esse problema da situação do sujeito no fantasma é
justamente esta, é a de visar o desejo do outro e de acreditar ver aí um objeto.
A hora está bastante avançada para que eu me detenha ai. E também um
corte, ele tem simplesmente o defeito de ser arbitrário, quero dizer de não me
permitir mostrar-lhes a originalidade dessa solução em relação à solução neu­
rótica. Saibam simplesmente que está aí o interesse de aproximá-las e, a partir
desse fantasma fundamental do perverso, fazer-lhes ver a função que joga o
sujeito neurótico no seu fantasma próprio. Felizmente já o indiquei agora há
pouco. Ele se deseja desejante, eu lhes disse. E por que então que ele não pode
desejar, que ele falha, da maneira que deseja! Cada um sabe que há algo inte­
ressado aí dentro que é, propriamente falando, o falo. Pois depois de tudo até o
presente vocês puderam ver que deixei reservada, nessa economia, a interven­
ção do falo, esse bom e velho falo de antigamente.
Em duas ocasiões, na retomada do Complexo de édipo no último ano e
em meu artigo sobre as psicoses, eu o mostrei a vocês como ligado à metáfora
paterna, ou seja como vindo dar ao sujeito um significado. Porém era impossí­
vel reintroduzi-lo na dialética da qual se trata se eu não lhes colocasse de início
esse elemento de estrutura pelo qual o fantasma é constituído em algo do qual
vou lhes pedirb em um último esforço de admitir, despedindo-nos por hoje,
doravante o simbolismo. Quero dizer que doravante o $ no fantasma, enquanto
confrontado e oposto a esse a que vocês compreenderam bem, eu lhes mostrei
hoje, que era bem mais complicado que as três formas que lhes dei primeiro
como aproximação, já que aqui o a, é o desejo do Outro no caso que apresento,
(vocês vêem então que todas as formas de corte, compreendido nisto justamen­
te as que refletem o corte do sujeito, estão assinaladas), eu lhes peço para admi­
tir a noção seguinte -permito-me inclusive o ridículo de referir-me a uma nota­

447
ção de WF concernente aos Imaginários -deixei- vocês na borda do não um
nesse desvanecimento do sujeito. E nesse não um, e mesmo nesse “como não
um” na medida èm que é ele que nos dá a abertura sobre a unicidade do sujeito
que retomarei as coisas na próxima vez. Porém se lhes peço para notá-lo desse
modo, é justamente para que vocês não vejam aí a forma mais geral, e ao mes­
mo tempo a mais confusa, da negação. Se é tão difícil falar da negação, é que
ninguém sabe o que é. Já lhes indiquei entretanto no início desse ano a abertura
da diferença que há entre forclusão e discordância. Por hora lhes indico sob
uma forma cerrada, fechada, simbólica, mas justamente por causa disto decisi­
va, uma outra forma dessa negação. É algo que situa o sujeito em uma outra
ordem de grandeza.

448
Lição 24
10 de junho de 1959

Em nosso último encontro, desenvolví a estrutura do fantasma, na medi­


da em que ele é, no sujeito, aquilo que chamamos o suporte de seu desejo; o
fantasma, lá onde podemos apreendê-lo em uma estrutura suficientemente com­
pleta para servir em seguida, de algum modo, como uma espécie de placa gira­
tória àquilo que somos levados a lhe trazer das diversas estruturas -isto é, à
relação do desejo do sujeito com o que há muito tempo eu venho designando-lhes
como sendo, mais que sua referência, sua essência mesma dentro da perspectiva
analítica, ou seja o desejo do Outro. Hoje vou tentar, como eu lhes havia anuncia­
do, situar-lhes a posição do desejo nas diferêntes estruturas, digamos, nosológieas,
digamos, aquelas da experiência-em primeiro plano, a estrutura neurótica.
[Já estudamos] o fantasma perverso, uma vez que foi o que escolhi na
última vez para lhes permitir apontar aí o que corresponde à função do sujeito
e à do objeto no fantasma, na medida em que ele é o suporte, o índice de uma
certa posição do sujeito. Assim como é a imagem do outro que é o ponto de
partida e o suporte, ao menos nesse ponto em que o sujeito se qualifica como
desejo, há essa estrutura mais complexa que se chama o fantasma, e para onde
fui levado, paradoxalmente, na última vez, tomando uma forma particular es­
pecialmente exemplar (não sem motivos profundos), a do exibicionista e do
voyeur, para lhes mostrar que, contrariamente a o que muito frequentemente se
diz, não existem aí duas posições de algum modo recíprocas, como uma espé­
cie de precipitação do pensamento levaria a formular: aquele que mostra/aque-
le que vê, completando-se um ao outro.

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Como lhes disse, essas duas posições são ao contrário estritamente para­
lelas e, em ambos os casos, o sujeito, no fantasma, encontra-se indicado por
algo que denominamos a fenda, a hiância, alguma coisa que é, no real, ao mes­
mo tempo buraco e clarão conquanto que o voyeur espia por trás de sua corti­
na*, que o exibicionista entreabre sua tela, que ele está aí indicado em seu
lugar no ato; que ele não é nada além do que esse clarão do objeto de que se
fala, vivido, percebido pelo sujeito através da abertura dessa hiância, nisso
que, ele, o situa como aberto. Aberto a quê? A um outro desejo que não o seu -
o seu que está profundamente atingido, abalado, surpreendido pelo que é per­
cebido nesse clarão.
É a emoção do outro para além de seu pudor; é a abertura do outro, a
espera virtual uma vez que ela não se sente vista, e que contudo é percebida
como oferecendo-se à visão; é isto que caracteriza nos dois casos essa posição
do objeto que é aí, nessa estrutura, tão fundamental. Pois, afinal de contas, a
experiência analítica a situa no ponto de partida daquilo que ela inicialmente
encontrou na via das causas e dos estigmas geradores da posição neurótica,
nomeadamente a cena percebida, a cena dita primitiva. Ela participa dessa es­
trutura, quer dizer, por uma inversão sem dúvida dessa estrutura que faz o
sujeito ver alguma coisa se abrir, que é essa hiância de imediato percebida,
alguma coisa que, evidentemente, no seu valor traumático se relaciona ao de­
sejo do Outro entrevisto, percebido como tal, que fica ali como um núcleo
enigmático até que, ulteriormente, après-coup, ele possa reintegrar seu mo­
mento vivido numa cadeia que não será forçosamente a cadeia correta, que
será, em todo caso, a cadeia geratriz de toda uma modulação inconsciente,
geratriz nucleada por ocasião da neurose.
Peço-lhes que se detenham nessa estrutura do fantasma. Está claro que é
um tempo suspenso, como sublinhei, que lhe confere valor. O que lhe confere
seu valor é isso, é um tempo de parada. Um tempo de parada que tem esse valor
de índice corresponde a um momento da ação em que o sujeito não pode se
instituir de um certo modo x, que é justamente o que designamos como desejo
aqui, o que tentamos isolar em sua função de desejo, propriamente falando
senão à condição, desse sujeito, perder o sentido dessa posição, pois é isto: o
fantasma lhe é opaco. Podemos, nós, designar seu lugar no fantasma, talvez ele

* N.d.T.: cortina ou postigo (em francês: “volet”, palavra que guarda uma homofonia com
“voler” que significa roubar).

450
mesmo possa entrevê-ío, mas o sentido da posição, ou seja este por que de estar
ali o que vem à luz de seu ser, isto o sujeito não pode dizê-lo. Eis aí o ponto
essencial: afãnise. Sem dúvida o termo é feliz e nos serve, mas diferentemente
da função que lhe atribui Jones na interpretação do Complexo de castração, sua
forma é enigmática.
Vemos no fantasma que a afãnise, ao menos ali onde o termo desapare­
cimento (fading, eu já mencionei) nos é utilizável, não é enquanto afãnise do
desejo, é na medida em que na ponta do desejo ocorre a afãnise do sujeito. O
sujeito, na medida em que se situasse em seu lugar, que se articulasse como Eu
[Je] aí onde Isso fala na cadeia inconsciente, porquanto ele só pode ser indica­
do enquanto desaparecendo de sua posição de sujeito.
A partir daí vemos isso do que vai se tratar. Por termos definido esse
ponto extremo, esse ponto imaginário em que o ser do sujeito reside em sua
densidade máxima (são apenas imagens para que o espírito de vocês se prenda
a uma metáfora), a partir do momento em que vemos, em que definimos esse
ponto imaginário em que o ser do sujeito na medida em que ele é aquele a
articular, a nomear no inconsciente, não pode em nenhum caso, em última
instância, ser nomeado, mas somente indicado por uma coisa que se revela a Si
mesma como corte, como fenda, como estrutura de corte no fantasma; é em
tomo desse ponto imaginário -e isto é, em todo domínio, legítimo se podemos
articular sua estrutura pelo que parte dela- que vamos tentar situar o que se
passa efetivamente nas diferentes formas do sujeito, que não são em absoluto
obrigatoriamente homogêneas, formas compreensíveis de um lado por aquele
que está do outro lado.
Nós sabemos demais a esse respeito o que pode nos enganar na compre­
ensão de uma psicose. Por exemplo devemos nos guardar de compreender se
podemos tentar reconstruir, articular na estrutura. E é exatamente isso que ten­
tamos fazer aqui.
Então, a partir daí, a partir dessa estrutura em que o sujeito, em seu
momento de desaparecimento -e repito-lhes, está aí uma noção cujo rastro
vocês podem encontrar quando Freud fala do umbigo do sonho, o ponto para o
qual todas as associações convergem para desaparecer, para não ser possível
que se liguem a nada [de outro] senão ao que ele chama o unerkannt. E disto
que se trata. Em relação a isto, o sujeito vê, à sua frente, abrir-se o quê? Nada
além que uma hiância que, no limite, engendraria um reenvio ao infinito do
desejo em direção a um outro desejo.

451
Como vemos no fantasma do voyeur e do exibicionista, é do desejo do
Outro que ele se acha dependente. É à mercê do desejo do Outro que ele se
acha oferecido. Isto é concreto, nós o encontramos na experiência. Não é por­
que não o articulamos que não podemos comumente..., que isto não é muito
fácil de perceber.
Quando lhes falei longamente, há dois anos, da neurose do pequeno Hans,
hão se tratava de outra coisa. E por isto que, num momento de sua evolução o
pequeno Hans encontra-se confrontado com alguma coisa que vai bastante mais
longe do que o momento, todavia crítico, da rivalidade a propósito da recém
chegada, de sua pequena irmã, com algo bem mais grave do que esta novidade
que é para ele o esboço de maturação sexual que o toma capaz de ereções e, até,
a questão está em aberto para os especialistas, de orgasmos. Não é nem no
nível inter-psicológico, propriamente falando, nem no nível da integração de
uma nova tendência que a crise se inicia. Isto eu sublinhei e articulei bem para
vocês (e mesmo martelei) na ocasião.
E por isto que, por um fechamento neste momento da conjuntura, ele se
encontra efetiva e especialmente confrontado como tal ao desejo de sua mãe, e
que ele se acha em presença deste desejo sem nenhum recurso. A Hilflosigkeit
de Freud, em seu artigo sobre L 'Inconscient, artigo de 1917, é esta posição de
estar sem recurso, mais primitiva que todas, e em relação à qual a angústia é já
um esboço da organização, pois ela é já espera-se não se sabe de que, se não se
articula em seguida, de qualquer modo ela é antes de tudo Erwartung nos diz
Freud. Mas antes existe isto, Hilflosigkeit, o “sem recurso”. O “sem recurso”
diante de quê? O que não pode ser definível, centrável de nenhum outro modo
senão diante do desejo do Outro. E essa relação do desejo do sujeito, na medida
em que ele deve se situar diante do desejo do Outro que, entretanto, literalmen­
te o aspira e o deixa sem recursos, é nesse drama da relação do desejo do
sujeito com o desejo do Outro que se constitui uma estrutura essencial, não
somente da neurose, mas de qualquer outra estrutura analiticamente definida.
Começamos pela neurose, e estamos bem longe, tendo partido da per­
versão, para que vocês possam entrever que a pervérsão também está ligada a
ela. Contudo, assinalamos, nós não fizemos entrar, esta perversão, senão nesse
momento instantâneo do fantasma, do fantasma na medida em que a passagem
ao ato na perversão, e na perversão somente, o revela.
Na neurose, trata-se para nós de cercar de perto, de momento, isso que
tem relação a essa estrutura que articulo perante vocês, é esse momento fecun-

452
do da neurose que viso no caso do pequeno Hans, porque aí se trata de uma
fobia, isto é, a- forma mais simples da neurose, aquela em que podemos ter ao
alcance da mão o caráter da solução, aquele que eu já articulei para vocês
longamente a propósito do pequeno Hans, mostrando a entrada em jogo deste
objeto, o objeto fóbico, enquanto ele é um significante para todos os fins.
Ele está ali, para ocupar esse lugar entre o desejo do sujeito e o desejo do
Outro, uma certa função que é uma função de proteção ou de defesa. A este
respeito não há nenhuma ambiguidade sobre a formulação freudiana. O medo
do objeto fóbico é feito para proteger o sujeito de quê? Está em Freud: da
aproximação de seu desejo. E é olhando as coisas mais de perto que vemos do
que se trata, de seu desejo enquanto desarmado em relação ao que no Outro, no
caso a mãe, abre-se para Hans como o signo de sua dependência absoluta.
Ela o levará ao fim do mundo, ela o levará mais longe ainda; ela o levará
tão longe e tão frequentemente que ela mesma desaparece, eclipsa-se, que ela é
a pessoa que nesse momento pode lhe parecer não mais somente como aquela
que poderia responder a todas as suas demandas, ela lhe aparece com esse
mistério suplementar de estar ela mesma aberta a uma falta cujo sentido apare­
ce a Hans naquele momento, de estar numa certa relação com o falo que, entre­
tanto, esse falo, ele não tem.
E ao nível da falta de ser da mãe que se abre para Hans o drama que ele
não pode resolver senão fazendo surgir esse significante da fobia, cuja função
plurivalente lhes mostrei, uma espécie de chave universal, de chave para todos
os fins que lhe serve naquele momento, para se proteger contra o que, de um
modo unívoco, todos os analistas experimentados perceberam, contra o
surgimento de uma angústia mais temível ainda que o medo ligado, que o medo
fixado da fobia. Esse momento, enquanto é relação do desejo, enquanto é algo
que vai na estrutura do fantasma, na oposição S à a, dar a este S alguma coisa
que alivia sua parte, que sustenta a sua presença, que é alguma coisa em que o
sujeito se apega, esse ponto em que, em suma, vai produzir-se o sintoma, o
sintoma ao nível o mais profundo na neurose, quer dizer porquanto ele interes­
sa, de modo mais geral, a posição do sujeito. E isto que merece ser articulado
aqui.
Se quiserem vamos proceder nessa ordem, por ser articulado de início,
depois ao nos perguntarmos se esta estrutura do fantasma é tão fatal. Como-
alguma coisa que se mantém na borda desse ponto de perda, desse ponto de
desaparecimento indicado na estrutura do fantasma -como esta alguma coisa

453
quc sc mantém na borda, que se mantém na entrada do turbilhão do fantasma-
como isto é possível? Pois está bem claro que é possível.
O neurótico acede ao fantasma. Ele ali acede em certos momentos elei­
tos da satisfação de seu desejo. Mas todos nós sabemos que isto é apenas uma
utilização funcional do fantasma, que sua relação contrariamente com todo o
seu mundo e especialmente suas relações com os outros, os outros reais (é aí
que chegamos agora) está profundamente marcada pelo quê? Por aquilo que
sempre foi dito: por uma pulsão recalcada. Esta pulsão recalcada é sua relação
que tentamos articular um pouco melhor, de modo um pouco mais próximo, de
uma maneira também clinicamente mais evidente. Vamos ver muito simples­
mente como isto é possível. Tomemos o obsessivo, se quiserem, e o histérico.
Vamos tomá-los juntos, uma vez que num certo número de traços vamos vê-
los esclarecerem-se um pelo outro.
O objeto do fantasma, na medida em que ele desemboca no desejo do
Outro, trata-se de não se aproximar dele, e para isto existem evidentemente
várias soluções. Vimos essa que está ligada à promoção do objeto fóbico ao
objeto de interdição. De interdição de quê? No final das contas, de um gozo
que é perigoso porque abre diante do sujeito o abismo do desejo como tal.
Há outras soluções, isto eu já lhes indiquei sob essas duas formas
esquemáticas no relatório de Royaumont. O desejo do sujeito, o sujeito pode
sustentá-lo diante do desejo do Outro. Ele o sustenta de duas maneiras.
Como desejo insatisfeito, é o caso dos histéricos. Lembro o exemplo da
bela açougueira em que essa estrutura aparece de maneira bem clara, este so­
nho em cujas associações aparece a forma, de algum modo confessada, da ope­
ração da histérica. A bela açougueira deseja comer caviar, mas ela não quer
que seu marido lhe compre, pois é preciso que esse desejo continue insatisfeito.
Essa estrutura que está aí figurada numa pequena manobra que forma,
aliás, a trama e o texto da vida diária desses sujeitos vai, de fato, muito mais
longe. Ela quer dizer, essa historieta, da função que a histérica atribui a si
mesma. E ela que é o obstáculo, é ela que não quer. Quer dizer que na relação
do. sujeito com o objeto no fantasma, ela vem ocupar essa mesma posição ter­
ceira que era há pouco devolvida ao significante fóbico, mas de outro modo. É
ela que é o obstáculo, é ela que é a aposta na realidade. E seu gozo é impedir
justamente o desejo nas situações que ela mesma trama. Pois está aí uma das
funções fundamentais do sujeito histérico nas situações que ele trama, sua fun­
ção é impedir o desejo de vir a termo para ela mesma tomar-se a aposta dele.

454
h h h h u h ru u
Ela assume o lugar do que poderiamos chamar com um termo inglês [a
puppet], ou seja klgo como “um boneco”. [Puppet] tem um sentido mais am­
plo, mais geral, é “um falso semblante”. A histérica, por estar numa situação
tão frequentemente observada que está verdadeiramente nas observações reco­
nhecíveis à luz do dia -basta que tenhamos a chave disso, que é a de sua posi­
ção entre uma sombra que é seu duplo, uma mulher que é, de modo oculto, esse
ponto precisamente em que se situa, em que se insere seu desejo conquanto é
preciso que ela não o veja- a histérica se institui, [se] apresenta ela mesma na
ocasião, como a mola da máquina, aquela que as suspende e as situa uma em
relação à outra como espécies de marionetes em que ela tem que se sustentar a
si própria nessa relação desdobrada que é a do $ 0 a; a histérica está, entretanto,
no jogo ela mesma sob a forma daquela que, no fim das contas, é a aposta.
O obsessivo tem uma posição diferente. A diferença do obsessivo em
relação ao histérico é de ficar, ele, fora do jogo. Seu verdadeiro desejo vocês
observarão (fiem-se nessas fórmulas quando estiverem trabalhando com sujei­
tos assim qualificáveis clinicamente), o obsessivo é alguém que não está nunca
verdadeiramente aí, no lugar em que alguma coisa está em jogo que poderia ser
qualificado, “seu desejo” aí onde ele arrisca o lance, aparentemente, não é aí
que ele está. E desse desaparecimento mesmo do sujeito, o $ no ponto de apro­
ximação do desejo, que ele faz, se podemos dizê-lo, sua arma e seu esconderi­
jo: ele aprendeu a servir-se disso para estar alhures. E, observem bem, isto é
certo, ele não pode -porque não há outro lugar senão aquele que estava reser­
vado até aqui à estrutura instantânea, relacionai da histérica- ele não o pode
senão desdobrando no tempo, temporalizando essa relação, remetendo sempre
para o dia de amanhã seu engajamento nessa verdadeira relação do desejo. E
sempre para amanhã que o obsessivo reserva o compromisso com seu verda­
deiro desejo. Não é dizer que, esperando esse termo, ele não se engaje com
nada. Bem longe disso! Ele faz suas provas. E bem mais! Ele pode inclusive
considerar essas provas, o que ele faz, como um meio de obter méritos. Méritos
em relação a quê? A referência do. Outro com respeito a seus desejos. Essas
coisas vocês as constatarão muito bem, confessando-se a cada momento, mes­
mo se o obsessivo não reconhece esse mecanismo como tal.
Mas é importante que vocês sejam capazes de reconhecê-lo para poder
designá-lo. Pois, afinal de contas, está aí algo, eu o digo, de importuno, aniqui­
lar esse mecanismo sob a forma disso que ele arrasta em sua esteira, isto é,
todas essas relações intersubjetivas que não se concebem senão ordenadas com

455
respeito a essa relação, ou a essas relações fundamentais como as que tento
aqui articular para vocês.
O que, afinal de contas, quer dizer isto? Quero dizer, antes mesmo de
nos perguntarmos como isto é possível, o que é que vemos despontar nessa
posição neurótica? Está claro que isso que vemos despontar é pelo menos o
seguinte: o pedido de socorro do sujeito para sustentar seu desejo, para sustentá-
lo -em presença e frente ao desejo do Outro, para se construir como desejante.
É isso que lhes indicava na última vez, é que a única coisa que ele não sabe, é
que, se constituindo como desejante, seu procedimento é pro fundamente mar­
cado por alguma coisa que está aí atrás, ou seja o perigo que constitui essa
inclinação do desejo. De sorte que, constituindo-se como desejante, ele não se
apercebe de que na constituição de seu desejo ele se defende contra algo, que
seu desejo mesmo é uma defesa e não pode ser outra coisa.
E ainda, para que isto possa se sustentar, é claro que em cada caso ele
apela a uma coisa que se apresenta numa posição terceira em relação a esse
desejo do Outro, alguma coisa em que ele possa se colocar para que a relação
aspirante, evanescente do $ frente ao a seja sustentável. É na relação com o
outro, o outro real, que vemos suficientemente indicado o papel disso que per­
mite ao sujeito simbolizar. Pois não se trata senão de simbolizar sua situação,
ou seja de conservar em ato alguma coisa em que ele possa se reconhecer como
sujeito, se satisfazer como sujeito, completamente espantado que está, final­
mente, ao ver que esse sujeito que se sustenta, encontra-se preso por todo o tipo
de atitudes contorcidas e paradoxais que designam a ele mesmo, desde que ele
pode ter a mínima visão refletida sobre sua própria situação, como um neuróti­
co preso por seus sintomas.
Aqui intervém esse elemento que a experiência analítica nos ensinou a
colocar num ponto chave das funções significantes e que se chama o falo. Se o
falo tem a posição chave que designo agora, é bem evidentemente enquanto
significante, como significante ligado a uma coisa que tem um nome em Freud,
e do qual Freud não dissimulou de maneira alguma o lugar na própria econo­
mia inconsciente, ou seja a lei.
A este respeito, toda a espécie de tentativa de reconduzir o falo a algo
que se equilibra, que se compõe com tal outro correspondente fúncional no
outro sexo, é algo que, bem entendido, do ponto de vista da inter-relação do
sujeito, tem seu valor genético se pode-se dizer, mas que só pode ser exercido,
ser feito sob a condição de desconhecer o que é inteiramente essencial na valo­

456
rização do falo como tal. Ele não é pura e simplesmente um órgão. Ali onde ele
é um órgão, ele é instrumento de um gozo, ele não está, a esse nível, integrado
no mecanismo do desejo, porque o mecanismo do desejo é algo que se situa
num outro nível, que para compreender o que é esse mecanismo do desejo é
preciso defini-lo sob um outro aspecto, isto é, uma vez instituídas as relações
da cultura e a partir ou não do mito do assassinato primordial.
O desejo, de todas as demandas, se distingue nisto, que ele é uma de­
manda submetida à lei. Isso parece arrombar uma porta aberta, mas é, contudo,
disso que se trata quando Freud nos faz a distinção das demandas que respon­
dem às necessidades ditas de conservação da espécie ou do indivíduo e daque­
las que estão em um outro plano. Daí por que podemos dizer que as que estão
nesse outro plano distinguem-se das primeiras no sentido de que elas podem
ser adiadas! Mas, afinal de contas, se o desejo sexual pode ser adiado em seus
efeitos, em sua passagem ao ato no homem, é de uma forma seguramente am­
bígua. Ele pode ser adiado? Por que pode sê-lo mais no homem do que nos
animais ou, afinal de contas, ele não sofre tantas postergações? É, sem dúvida
alguma, em razão de uma flexibilidade genética. É também e essencialmente -
pois nada é articulado na análise se não o articularmos nesse nível- na medida
em que é sobre esse próprio desejo sexual que é edificada a ordem primordial
de trocas que funda a lei pela qual entra no estado vivente o número como tal
na inter-psicologia humana. A lei dita da aliança e do parentesco pela qual
vemos isso aparecer: que o falo, fundamentalmente, é o sujeito enquanto obje­
to desse desejo, esse objeto estando submetido ao que chamaremos a lei da
fecundidade.
E também é assim que cada vez que se faz intervir de uma forma mais ou
menos desvelada e mais ou menos iniciática o falo, ele é, para aqueles que
participam dessa iniciação, desvelado. Se a função do pai, para o sujeito, en­
quanto “autor de seus dias” como se diz, é apenas significante do que chamo
aqui a lei da fecundidade porquanto ela regula, porquanto ela enoda o desejo a
uma lei, efetivamente essa significação fundamental do falo é isso de que, por
toda a dialética do desejo porquanto o desejo, enquanto aí se exprime o ser do
sujeito no ponto de sua perda, se interpõe sobre o trajeto dessa funcionalização
do sujeito enquanto falo, disso pelo que o sujeito se apresenta na lei de troca
definida pelas relações fundamentais que regulam as inter-reações do desejo
na cultura... é porquanto o sujeito é, na medida em que a partir de determinado
momento ele não é mais, ele falta a ser, ele não pode mais se apreender.

457
li do encontro disto com sua função fálica, com sua função fálica nos
laços reais das relações com os outros reais, da geração real da descendência, é
aqui, que se produz o ponto de equilíbrio que é esse em que nos detivemos ao
final do sonho do paciente de Ella Sharpe.
Se associei toda a grande digressão sobre Hamlet a esse nível, é por­
quanto esse sujeito nos apresentava em seu sonho, sob a forma mais pura, essa
alternância do «To be or not a qual eu tanto levei em conta. É, a saber,
esse sujeito que se qualificava a si mesmo como “personne”, esse sujeito no
momento em que se aproxima de seu desejo, em que ele coloca aí o dedo, em
que ele tem que escolher não ser ninguém ou ser tomado, absorvido inteira­
mente no desejo devorador da mulher, que logo após ele é intimado a ser ou a
não ser, a fazer entrar em jogo o «to be» da segunda parte, que não tem o
mesmo sentido que na primeira, o «não ser» da estrutura primordial do desejo,
se vê diante de uma alternativa: para ser, quer dizer ser o falo, ele deve ser o
falo para o Outro, o falo marcado; para ser o que ele pode ser como sujeito, ele
fica sob a ameaça do “não tê-lo”.
Se me permitem servir-me de um signo dito lógico que é o V do qual nos
servimos para designar o “ou, ou” da distinção, o sujeito vê abrir-se para ele a
escolha entre o “não sê-lo” -não ser o falo- ou, se ele o é, “não tê-lo”, quer
dizer ser o falo para o outro, o falo na dialética inter-subjetiva. É disso que se
trata. E é nesse jogo que o neurótico experimenta a aproximação, a integração
de seu desejo como uma ameaça de perda.
O não um [“pas un”] a que se designa o $ na estrutura fundamental do
desejo transforma-se em um “um em excesso” [“uzi en trop"] ou “algo em
excesso” {“quelque chose en trap”] ou “algo a menos” [‘quelque chose en
moins”], na ameaça de castração para o homem ou no falo sentido como ausên­
cia para a mulher. É por que se pode dizer que, no final da desmistificação
analítica da posição do neurótico, alguma coisa parece permanecer na estrutu­
ra, ao menos é o que nos testemunha Freud em sua própria experiência, que se
apresenta como um resto, como algo que, para o sujeito, o faz em todos os
casos ficar em uma posição inadequada, a do perigo quanto ao falo no homem,
a da ausência do falo na mulher.
Mas também é talvez pelo fato que, no viés adotado primeiramente para
a solução do problema neurótico, a dimensão transversal, isso em que o sujeito
no seu desejo tem a ver com a manifestação de seu ser como tal, a ele como
autor possível do corte, essa dimensão é negligenciada; que, em outras pala-

458
vras, a visada do analista vai no sentido da redução da posição neurótica do
desejo e não no do desprendimento da posição do desejo como tal, fora dessa
cilada dessa dialética particular que é a do neurótico.
Como ainda voltar a esses pontos para melhor fazê-los sentir a sua arti­
culação? Seguramente eu a trouxe aí em seu gume mais puro. E bem certo que
isto arrasta consigo não somente toda a anedota da história do sujeito, mas
também outros elementos estruturais no seu passado. Quero dizer o que mani­
festamos, valorizamos no momento desejado, aquilo que é o que se relaciona
como tal com o drama narcísico, com a relação do sujeito com sua própria
imagem.
É certo que, no fim das contas, é aí que se insere para o sujeito -Freud o
sublinhou muitas vezes em seu tempo e em seus próprios termos- o medo da
perda do falo, o sentimento também da falta do falo. O eu [moi], em outras
palavras, está aí implicado. Mas observemo-lo então nesse nível, que, se ele
intervém, se ele pode intervir nesse lugar em que o sujeito pode ter de se sus­
tentar nessa dialética complexa em que ele teme perder na relação com o outro
seu privilégio, bem, isso não é certamente se a relação narcísica com a imagem
do outro intervém em razão de algo que poderiamos chamar fraqueza do eu
[moi], pois, apesar de tudo, em todos os casos em que constatamos uma tal
fraqueza, aquilo a que assistimos é, ao contrário, uma dispersão da situação,
até mesmo um bloqueio da situação.
Afinal de contas, aí eu tenho apenas que fazer alusão a algo que lhes é
familiar, que foi, eu creio, traduzido na revista, no caso notório de Melanie
Klein, ou seja desta criança que era muito bem introduzida como tal a essa
relação do desejo com o significante, mas que se encontrava em relação à ou­
tra, à relação possível no plano imaginário, no plano gestual, comunicativo,
vivendo com o outro, completamente suspenso, tal como o descreveu Melanie
Klein. Não sabemos tudo desse caso, e afinal de contas não podemos dizer que
Melanie Klein tenha feito outra coisa do que nos apresentar aí um caso notável.
E o que este caso demonstra, é que seguramente esta criança que não falava já
era tão acessível e tão sensível às intervenções faladas de Melanie Klein que
para nós, em nosso registro, naquele que nós tentamos desenvolver aqui, seu
comportamento é verdadeiramente brilhante.
As únicas estruturas do mundo que são para ela acessíveis, sensíveis,
manifestas, manifestantes desde os primeiros momentos com Melanie Klein,
são estruturas que portam em si mesmas todos os caracteres da relação com a

459
cadeia significante. Melanie Klein os designa para nós, é a pequena cadeia do
trem, isto é, de algo que é constituído de um certo número de elementos
enganchados uns aos outros; é uma porta que se abre ou se fecha -por assim
dizer o que, quando eu tentava lhes mostrar nas utilizações possíveis de tal
esquema cibernético em nosso manejo do símbolo, o que é a forma mais sim­
ples da alternância “sim ou não” que condiciona o significante como tal, “uma
porta deve estar aberta ou fechada”.
E em tomo disto que todo o comportamento da criança se limita. Não é
porém nada senão tocar nisso em palavras que são assim mesmo frases e algu­
ma coisa de essencialmente verbal que, desde os primeiros momentos, o que é
que obtém da criança a intervenção de Melanie Klein? Sua primeira reação é a
meu ver quase extraordinária, no seu caráter exemplar: é ir situar-se (e está no
texto) entre duas portas, entre a porta interior dos gabinetes e a porta exterior,
num espaço escuro do qual a gente se surpreende que Melanie Klein -a qual
por certos ângulos tão bem viu os elementos da estrutura como os da introjeção
e da expulsão, ou seja esse limite do mundo externo daquilo que se pode cha­
mar as trevas interiores com relação a um sujeito- não viu o alcance desta zona
intermediária que não é nada menos do que aquela que distinguimos assim:
aquela onde se situa o desejo, isto é, essa zona que não é nem o exterior, nem a
interior, articulada e construída, tão reduzida neste sujeito, mas o que se pode
chamar, pois a encontramos em certas estruturas da aldeia primitiva essas es­
pécies de zonas desimpedidas entre os dois, a zona de terra de ninguém [no
man's land] entre a aldeia e a natureza virgem, que é bem aquilo onde ficou em
pane o desejo do pequeno sujeito.
É aí que vemos intervir possivelmente o eu [moi], e bem entendido, é em
toda medida em que este eu não é fraco, mas forte, que virão, como já repeti
sempre e cem vezes, se organizar as resistências do sujeito. As resistências do
sujeito, porquanto são as formas próprias de coerência da construção neuróti­
ca, isto é, daquilo em que ele se organiza para subsistir como desejo, para não
ser o lugar deste desejo, para estar abrigado do desejo do Outro como tal, para
ver interpor-se entre sua manifestação mais profunda como desejo e o desejo
do Outro, essa distância, esse álibi que é aquele em que ele se constitui respec­
tivamente como fóbico, histérico, obsessivo.
Eu retomarei, é preciso, a um exemplo que Freud nos dá, desenvolvido,
de um fantasma. Não é em vão retomar a esse ponto depois de ter feito esse
desvio. E o fantasma Bate-se numa criança [On bat un enfant]. Aqui pode-se

460
tomar os tempos que nos permitem reencontrar a relação estrutural que tenta­
mos articular hoje.
O que temos? O fantasma dos obsessivos. Meninas e meninos servem-se
deste fantasma para chegar a quê? Ao gozo masturbatório. A relação com o
desejo é clara. Esse gozo, qual é sua função? Sua função aqui é a de toda
satisfação de necessidade numa relação com o além que determina a articula­
ção de uma linguagem para o homem. Isto é, que o gozo masturbatório aqui
não é a solução do desejo, ele é o esmagamento do desejo, exatamente como o
lactente ao peito na satisfação da nutrição esmaga a demanda de amor com
respeito à mãe.
Isto também é praticamente assinalado por testemunhas históricas. Que­
ro dizer, já que fizemos alusão em seu tempo à perspectiva hedonista, à sua
insuficiência para qualificar o desejo humano como tal -não devemos esque­
cer, apesar de tudo, que o caráter exemplar de um de seus pontos paradoxais
como tais, evidentemente deixado na sombra da vida dos que se apresentaram
na história como os sábios, e os sábios de uma disciplina cujo fim, qualificado
como filosófico, era precisamente, por razões apesar de tudo válidas pois me­
tódicas, a escolha, a determinação de uma postura em relação ao desejo: postu­
ra que consiste também em sua origem em exclui-lo, em tomá-lo caduco. E
toda perspectiva hedônica, propriamente falando, participa desta posição de
exclusão, como o demonstra o exemplo paradoxal que vou lembrar aqui, ou
seja da posição dos cínicos para quem, de um modo bem categórico -a tradição
na boca de Chrysippe214 se minha memória é boa, nos transmite o testemunho
disso- quer dizer que Diógenes, o Cínico, exibia, a ponto de fazê-lo em público
como um ato demonstratório (e não exibicionista) que a solução do problema
do desejo sexual estava, se posso dizer, ao alcance da mão de cada um, e ele o
demonstrava brilhantemente se masturbando.
O fantasma do obsessivo é então algo que, bem entendido, tem uma
relação como o gozo, do qual é mesmo notável que isto possa tomar-se uma
das condições, mas do qual Freud nos demonstra que a estrutura tem valor
disso que eu designo como sendo seu valor de índice -pois isto para o que este
fantasma aponta não é nada mais do que um traço da história do sujeito, algu­
ma coisa que se inscreve em sua diacronia. Ou seja que o sujeito, num passado

2,4 Retomado por Diogène Laêrce, Vie et opinions des philosophes, O. Apelt, Leipzig, 1921,
1955 (2o vol.).

461
c.oiiscqiicnleinente esquecido, viu, nos diz o texto de Freud, um rival (seja ele
do mesmo sexo ou de outro, pouco importa) sofrer as sevícias do ser amado, no
caso, do pai, e encontrar nesta situação original a sua felicidade.
Em que o instante fantasmático perpetua, se assim pode-se dizer, esse
instante privilegiado de felicidade? E aqui que a fase intermediária que nos é
designada por Freud toma seu valor demonstrativo. É na medida que num tem­
po, nos diz Freud, que não pode ser senão reconstruído -isto assinala-se no fato
de que em Freud encontramos apenas o testemunho de certos momentos in­
conscientes que são propriamente falando, inacessíveis como tais. Que ele te­
nha ou não razão neste caso preciso, determinado, por ora está fora de questão.
Aliás ele não está errado, mas o importante é que ele designa essa etapa inter­
mediária como algo que não pode ser senão reconstruído; e essa etapa interme­
diária entre a lembrança histórica enquanto ela designa o sujeito num de seus
momentos de triunfo, lembrança histórica, ela, que não está senão recalcada,
na pior das hipóteses, e que pode ser trazida à tona, isso em que o instante
fantasmático aí desempenha o papel de índice, eterniza esse momento se assim
pode-se dizer, fazendo o ponto de ligação de algo bem diferente, ou seja do
desejo do sujeito. Ora, isto não ocorre senão em relação a um momento inter­
mediário que eu chamarei aqui, mesmo que seja um ponto em que ele somente
possa ser reconstruído, como propriamente falando metafórico.
Pois do que se trata nesse momento intermediário, esse segundo tempo
do qual Freud nos diz que ele é essencial à compreensão do funcionamento
desse fantasma? Disto: é que o outro, o irmão rival que é a presa da cólera e do
castigo infligido pelo objeto amado, o sujeito substitui o outro por ele mesmo.
Quer dizer que nesse segundo tempo é ele que é castigado.
Nos encontramos aí diante do enigma posto a nu disso que comporta
essa metáfora, essa transferência. O que é que o sujeito procura aí? Que estra­
nha via seguinte a dar a seu triunfo, esta maneira de sofrer ele próprio, por sua
vez, as *condições desonrosas disso que foi infligido ao outro! Será que não
nos encontramos aí diante do enigma derradeiro -Freud também não o dissi­
mula- diante daquilo que vem se inscrever na dialética analítica como maso­
quismo, e do qual se vê afinal de contas, aqui sob uma forma pura, apresentar-

* N.d.T.: condições desonrosas. No original “forcados caudinos" alusão histórica a “fourches


caudines", desfile cerrado em forma de forcado (que se vai estreitando) perto da cidade de
Caudium, onde os romanos foram vencidos (em 321 a.C.) e obrigados a passar sob o jugo.

462
se a conjunção? Quer dizer que algo no sujeito perpetua a felicidade da situa­
ção inicial numa situação oculta, latente, inconsciente, de infelicidade,
Que istç de que se trata, nesse segundo tempo hipotético, é em suma de
uma oscilação, de uma ambivalência, de uma ambiguidade mais precisamente
do que o ato da pessoa autoritária, no caso o pai, comporta de reconhecimento.
O gozo que toma aí o sujeito é esse em direção ao qual ele desliza de um
acidente de seu histórico a uma estrutura em que ele vai aparecer como ser,
como tal, E que é no fato de se alienar, isto é, de substituir aqui o outro como
vítima, que consiste o passo decisivo de seu gozo enquanto ele termina no
instante fantasmático em que não é mais ele próprio enquanto se [on],
- Porum lado instrumento da alienação porquanto ela é desvalorização,
ele é bate-se [on bat] de um lado, e é porque até um certo ponto eu pude dizer-
lhes que ele se toma pura e simplesmente o instrumento fálico enquanto ele é
aqui instrumento de sua anulação.
- Comparado a quê? A on bat un enfant, uma criança sem rosto, uma
criança que nada mais é do que a criança original, e que também não é mais do
que a criança que foi no segundo tempo ele próprio, na qual não há nenhuma,
ainda que especial, determinação de sexo. 0 exame da sucessão dos fantasmas
exemplificados de que nos fala Freud o mostra. Ele é confrontado àquilo que se
pode chamar uma espécie de extrato do objeto.
É nessa relação entretanto do fantasma que vemos apontar nesse mo­
mento aquilo que, para o sujeito, faz o instante privilegiado de seu gozo. Dire­
mos que o neurótico -e veremos da próxima vez como nós podemos lhe opor
algo de muito particular, não a perversão em geral, pois aqui a perversão no
que nós exploramos como estrutura desempenha um papel de ponto pivô, mas
no qual podemos opor-lhe algo de muito especial, e cujo fator comum não
parece ter sido encontrado até aqui, ou seja a homossexualidade.
Mas, para nos limitarmos hoje, aqui, ao neurótico, sua estrutura mais
comum, fundamental reside afinal de contas nisto, em que se ele se deseja
desejante, desejante de quê? De algo que afinal de contas não é senão o que lhe
permite sustentar em sua precariedade, seu desejo como tal. Sem saber que
toda a fantasmagoria é feita para isto, quer dizer, que seus próprios sintomas
são o lugar em que ele encontra seu gozo, esses sintomas, contudo, tão pouco
satisfatórios em si mesmos.
O sujeito pois, aqui apresenta-se como, não direi como um ser puro, isso
de que parti para lhes indicar o que queria dizer a relação dessa manifestação

463
particular do sujeito com o real, mas um ser para. A ambiguidade da posição
do neurótico mostra-se aqui inteira, nessa metonímia que faz com que seja
nesse ser para que resida todo seu para ser.

464
Lição 25
17 de junho de 1959

Existe alguma coisa de instrutivo, eu não direi até nos erros, mas mesmo
sobretudo nos erros, ou nas errâncias se preferirmos. Vocês me vêem muito
constantemente utilizar as hesitações mesmas, até os impasses, que se manifes­
tam na teoria analítica, como sendo por si mesmos reveladores de uma estrutu­
ra da realidade à qual nós estamos ligados.
A este respeito, é claro que há alguma coisa de interessante, de notável,
de significativo para nós, em trabalhos não muito antigos uma vez que, por
exemplo, aquele ao qual eu me referia é de 1956 (número de julho-outubro do
International Journal of Psycho-analysis., volume XXXVII). É um artigo, creio,
de alguns de nossos colegas parisienses, eu não designarei seus nomes, já que
não é a posição deles enquanto pessoal que é assim visada215.
É um esforço para elucidar o sentido da perversão. É claro que neste
artigo extremamente, curiosamente, reservado em suas conclusões, não se so­
bressai verdadeiramente senão esta conclusão formalmente articulada: «Não
há, por consequência, nenhum conteúdo inconsciente específico nas perver­
sões sexuais uma vez que os mesmos achados podem ser reconhecidos nos
casos das neuroses e das psicoses»216. Há algo bastante impressionante que

215 Tratam-se de S. Nacht, R. Diatkine e J. Foureau: «Le moi dans la relation perverse», XIXo.
Congresso Internacional de Psicanálise, Genebra, 24-28 julho 1955, in Revue française de
psychoanalyse, 1956, Paris, P.U.F., pp. 458-523.
216 Op. cit., pp. 471-472.

465
iiuhi ii uiiign Humiit r nilo tic p<ide diz.ci de um modo que seja absolutarnente
i iiiiviiicriilc | ii ns, st-in iiiciinio precisar tomar tun recuo muito grande, percebe-
si- (pie i> tu I igo inteiro parte de uma confusão verdadeiramente, constantemente
miuitidii entre fantasma perverso e perversão. Pelo fato de que há fantasmas
conscientes c inconscientes que se recobrem, que os fantasmas se manifestam,
corn a aparência de se recobrir nas neuroses e nas perversões, se conclui, com
esta impressionante facilidade, que não há diferença fundamental, do ponto de
vista do inconsciente, entre neurose e perversão! Há aí uma das coisas mais
surpreendentes em que algumas reflexões, que se apresentam elas mesmas sem
precauções, [arriscam uma abordagem] bastante livre da tradição analítica e se
apresentam como uma espécie de revisão dos valores e dos princípios.
A única conclusão, enfim, à qual nos detemos no fim das contas, é que é
uma relação em suma anormal que, na perversão, é erotizada. Não é então de
uma relação com o objeto que se trata, mas antes de uma valorização de uma
relação por razões econômicas e, como tal, erótica -o que, mesmo assim, após
um exame por pouco sensato que seja, na retomada da leitura, não pode apare­
cer verdadeiramente outra coisa senão como alguma “causa da virtude
dormitiva”. Isto corresponde ao objeto, que ela seja erotizada, não é duvidoso!
De fato, é justamente desta questão da relação do fantasma e da perver­
são que nós somos levados a nos ocupar hoje, na sequência do que nos aproxi­
mamos na última vez, ou seja nós começamos a indicar os termos mais gerais
da relação do fantasma com a neurose.
Uma pequena palavra de história. O que se passou na análise (e é impor­
tante ser lembrado aqui, eu diria, à luz de nosso progresso, pode ser cernido de
uma forma mais rigorosa) é essencialmente isto: é que em suma muito pouco
tempo depois de ter articulado as funções do inconsciente, isto inteiramente e
especialmente a propósito da histeria, das neuroses e do sonho, Freud foi leva­
do a colocar a presença no inconsciente daquilo que ele chamou “tendências
perversas polimorfas”, polymorph-perverse Anlagen. E daí e é aí durante um
certo tempo -muito ultrapassado hoje em dia, certamente- que nós ficamos. E
o que parece que se tenha deixado de articular é que isto de que se trata, esta
noção de “tendência perversa polimorfa”, nada mais é que isto, é que ele des­
cobriu a estrutura dos fantasmas inconscientes. A estrutura dos fantasmas in­
conscientes assemelhava-se ao modo relacionai que se evidencia, que.se
escancara, que se demonstra nas perversões; e, assim, a noção no inconsciente
da “tendência perversa polimorfa” foi primeiramente colocada.

466
No fim das contas, pode-se dizer, isso provinha do fato de que a forma
desses fantasmas inconscientes recobre o quê? O que é uma parte da perversão,
o que se apresenta a nós na perversão sob o aspecto seguinte, que podemos
tentar articular, ou seja algo que ocupa o campo imaginativo, o desejo, àquilo
que constitui o desejo do perverso. E esse algo que em suma o perverso põe em
cena, esse algo como o que isto se apresenta em seu aspecto patente na clínica,
é algo que para nós, com o que conhecemos, com a relação que fizemos desses
fantasmas com a história do sujeito, ali onde conseguimos amarrá-lo, se que­
rem, a esta história, é em suma que o fantasma do perverso se apresenta como
algo que se poderia chamar uma sequência, quero dizer, como poderiamos
chamá-lo em um movie, em um filme cinematográfico, eu entendo uma
sequência cortada do desenvolvimento do drama, algo como se vê aparecer sob
o nome (eu não estou certo do termo) de rush, esse elemento que nos filmes de
anúncios nos aparece sobre a tela como sendo estas imagens clareadas que são
feitas para excitar nosso apetite de voltar ao cinema na semana seguinte para,
precisamente, ver o filme que é assim anunciado. O que estas imagens têm de
sedutor se prende justamente, com efeito, a seu aspecto de desinserção da ca­
deia, de ruptura em relação ao tema. E é mesmo de algo desta ordem que se
trata no fantasma do perverso. Isto nós o sabemos na medida em que a análise
nos ensinou a vê-lo aí. E com efeito algo que até certo grau, recolocado em seu
contexto, em sua sequência dramática, a do passado do sujeito, pode em dife­
rentes graus até mesmo ao preço de algumas modificações, retoques, transfor­
mações para o averso, retomar seu lugar e seu sentido.
Do mesmo modo, esta relação que tem o fantasma do perverso com seu
desejo, não é por nada... Eu quero dizer, está justamente no relevo daquilo que,
em nossa formulação, nós já situamos do valor, da posição do desejo em rela­
ção ao sujeito, quero dizer além do nomeável, esse além do sujeito no qual se
situa esse desejo. Está aí, eu o digo retrospectivamente e de passagem, é algo
que nos explica a qualidade própria da qual o fantasma se reveste quando se
revela, seja ele ou não o do perverso. Ou seja esta espécie de incômodo que é
preciso nomear, em sua ponta, aquela que efetivamente durante muito tempo
os sujeitos retêm consigo, não a entregam, ou seja esta face ridícula, que não se
explica, não se compreende senão depois que tenhamos podido perceber as
relações que fizemos entre o desejo em sua posição própria e o-campo, o domí­
nio da comédia. Isto é apenas um lembrete.
E tendo lembrado esta posição, esta função do fantasma especialmente a

467
propósito do perverso, e os problemas que imediatamente são colocados de
saber qual era sua natureza real, se ela era de uma natureza de alguma maneira
radical, natural, se ela era um termo último, essa natureza do fantasma perver­
so, ou se seria necessário ver ali outras coisas tão complexas, tão elaboradas,
para dizer tudo, tão significativas quanto o sintoma neurótico.
Está justamente ai o porquê de toda uma elaboração que se fez, se inte­
grou ao problema da perversidade, e que tomou uma parte essencial na elabo­
ração do que se chama a relação de objeto ou a relação com o objeto, como
devendo ser definida de uma forma evolutiva, de uma forma genética: como
regulando os estágios, as fases do desenvolvimento do sujeito, não simples­
mente como “momentalidades” do Eros do sujeito, [...], logo, sexuais, fases
erógenas do sujeito, mas modos de uma relação com o mundo que cada uma
dessas fases define.
Foi a partir daí que se fizeram, tanto por Abraham quanto por Ferenczi e
outros, não preciso lembrar-lhes os iniciadores, que se fizeram esses quadros
ditos das “fases correlativas ” [gleicher Hôhe verzeichneten Stadien] ditas de
uma parte reservatórios de tendências [Organizationsstufen der Libido} e, de
outra parte, formas libidinais do ego. Nessa forma da libido, essa estrutura do
ego parecia responder e especificar a um tipo de relação especial com a realida­
de217.
Vocês sabem o que, de uma parte, esta espécie de elaboração trouxe de
clareza, e mesmo de enriquecimento, e o que de outra parte ela pôde colocar de
problemas. Basta referir-se ao menor dos trabalhos (pelo menos dos trabalhos
concretos tentando efetivamente articular a propósito de um caso preciso, de
uma forma precisa) reencontrar as correspondências, sempre estabelecidas de
forma um pouco teórica, para se aperceber que o problema é em alguns mo­
mentos por ele mesmo, em seu desenvolvimento, sugestivo de alguma coisa,
de uma estimação que lhe falta.
Eu lhes lembro então que é a isto, a esse termo “pesquisa do conjunto da
relação do objeto” [que já referimos], é isto o que dizemos, é isto o que eu
designo quando se trata por exemplo de oposição como tal entre “objeto parci­
al” e “objeto total” que aparece sob uma forma elaborada -em nossa opinião

217 Para mais clareza, o leitor interessado reporte-se ao texto original, ABRAHAM K., «Débuts
et développements de 1’amour objectal», in Esquisse d'une [lacuna] du développement de la
libido [...], Oeuvres completes, t.II, Paris, 1966, Payot, pp. 298-313.

468
inapropriada. Nas elaborações mais recentes, por exemplo a da famosa noção
de “distância para como objeto”, tão dominante em trabalhos, em regras técni­
cas às quais eu já fiz muitas vezes alusão aqui, esta noção de “distância para
com o objeto” tal qual um autor francês em particular quer fazer decisiva na
relação da neurose obsessiva218. Como se não fosse evidente (e bem mais evi­
dente ainda!) que, por exemplo, esta noção de distância desempenha um papel
decisivo quando se quer simplesmente tentar articular certas posições perver­
sas -a do fetichismo por exemplo, em que a distância de um objeto é bem mais
evidentemente manifestada pela própria fenomenologia do fetichismo.
Muitas outras formas são evidentemente articuláveis nesse sentido e a
primeira das verdades que nós teríamos que trazer sobre isto é que seguramen­
te esta noção de distância é mesmo tão essencial que no fim das contas, talvez
ela seja ineliminável como tal do próprio desejo, quero dizer necessária à ma­
nutenção, à sustentação, à salvaguarda mesma da dimensão do desejo. Com
efeito, basta considerar que se alguma coisa pode responder enfim ao mito de
uma relação com o objeto sem distância, se vê mal com efeito como poderia se
sustentar o que é propriamente falando o desejo.
Há aí algo que, eu o digo, tem uma forma propriamente mitológica, aquela
de uma espécie de acordo. Eu diria que há duas faces, duas miragens, duas
aparências de acordo -eu diria animal de um lado, poder-se-ia dizer igualmen­
te aliás, de um outro lado, mística, não é?- com o objeto que é justamente um
resto, no interior da elaboração analítica, de alguma coisa que não coincide de
modo algum com os dados da experiênçja. Do mesmo modo, aliás, o que é
indicado na técnica analítica como devendo corrigir, retificar esta pretensa “má
distância mantida para com o objeto” do obsessivo, cada um sabe da forma
mais clara que isto é indicado como devendo ser ultrapassado hie et nunc na
relação analítica, e isto por uma identificação ideal, e mesmo idealizante com o
analista considerado ele mesmo nessa ocasião não como o objeto, mas como o
protótipo de uma relação satisfatória com o objeto!
Nós teremos que retomar a isso a que pode corresponder exatamente um
tal ideal na medida em que ele é realizado na análise. Eu já o abordei, mas
talvez tenhamos que situá-lo, articulá-lo diferentemente mais tarde. Com efei-

BOUVET Maurice, «Les variations de Ia technique (distance et variations)», R.F.P., XXII,


1958,n.2,pp. 145-189. Retomado emLa Relation d'objet, Oeuvres analytiques, t.i, Paris 1967.
Payot, pp. 251-293.

469
in, cipipri |iiiili|riihim liiiiini itbiHilmIon ill' iiiiin Im mu muito mills discernida c
ii i m o i n in is (ini in -ii-i iijii c mi 11 leiimii via, cm outros contextos, em outros grupos
!• en i iiliiiiniri, cmno jit Hies indiquci aqui, em primeiro piano as articulações de
Iidwiud Glover. lin lembro a vocês o lugar do artigo que já citei, no volume
XIV do International Journal of Psycho-analysis (secção XXXIV, págs. 486-
504, outubro 1933), «La relation de la formation de la perversion au
développement du sens de la réalité»w.
É na preocupação que é por ele perseguida no sentido de uma elabora­
ção genética, das relações do sujeito com esse mundo, com a realidade que o
circunda (e de uma evolução que deve ser mais rigorosamente elucidada, tanto
pela reconstrução, pelas análises de adultos quanto pela apreensão direta do
comportamento da criança, tão elucidada quanto é possível em uma perspecti­
va renovada pela análise) que Glover tenta situar essas perversões em algum
lugar em relação a uma cadeia: ele já estabeleceu uma cadeia comportando
datas, se pode-se dizer, de inserção das diversas anomalias psíquicas com as
quais o analista se depara. E que o levou a fazer uma série, cuja ordem não
deixa de se prestar, como de hábito, à crítica, mas que, sem insistir mais nisso,
é constituída pelo caráter primitivo, primordial, das perturbações psicóticas,
nomeadamente das perturbações paranoides, na sequência das quais se suce­
dem as diferentes formas de neurose que se articulam, se situam em uma or­
dem progressiva, eu quero dizer da frente para trás, das origens em direção ao
mais tarde, começando pela neurose obsessiva que se encontra assim exata­
mente no limite com as formas paranóicas.
E na medida em que ele a situou aí, em algum lugar no intervalo, em um
artigo precedente que é aquele do volume XIII, de julho de 1932, parte 3, pági­
nas 298-328 do International Journal of Psycho-analysis sobre as drug-
additions210 dito de outro modo, o que nós chamamos as toxicomanias, que ele
pôde crer situar com suficiente precisão as relações entre [as formas] paranoides
e as neuroses, que ele procura situar aí qual pode ser a função das perversões,
em que etapa, em que data, em que modo de relação do sujeito com o real. Uma
vez que a forma paranóide está ligada a mecanismos completamente primiti­
vos de projeção e de introjeção, ele está naquele momento, digamo-lo muito
nitidamente, trabalhando completamente sobre o mesmo plano e aliás expres-

Op. cit. Lição 21 - Tradução francesa in ORNICAR, n.43, p. 17-37.


220 «On the aetiology of drug addictions».

470
samente de acordo, de um modo formulado, com Melanie Klein -vocês sabem
que ele se fez [dela] o [contraditor] com estrondo. É sobre esse plano que ele
adere à elaboração kleiniana e é na medida em que um modo de relação com o
objeto, muito específico dessa etapa tipo paranóide, considerado como primiti­
vo, existe, que ele situa, que ele elabora, articula, que ele compreende a função
da drug-addiction, da toxicomania.
E a isto que se refere a passagem que li para vocês há algumas seções, ou
seja a passagem em que, de uma forma metafórica muito brilhante, ou de modo
muito instrutivo, ele não hesita em comparar o mundo primitivo da criança a
alguma coisa que participa «de um massacre, de um lavatory público sob um
bombardeio e de uma sala de necrotério combinados» -ao que seguramente
traz uma organização mais benigna a transformação desse espetáculo inicial
inaugural da vida, a sucessão a essa etapa de uma «farmácia» com suas reser­
vas de objetos, alguns benéficos, os outros maléficos.
Isto está articulado da forma mais clara e é instrutivo na medida em que
nos significa em qual direção é feita a pesquisa da função do fantasma, na
direção de seu funcionamento como estrutural, como organizador da descober­
ta, da construção da realidade pelo sujeito. Neste ponto, não há diferença, efe­
tivamente, entre Glover e Sra. Melanie Klein.
E a Sra. Melanie Klein nos articula propriamente isto:é que em suma os
objetos são conquistados sucessivamente pela criança, uma vez que -isto é
articulado no artigo Simbols formation and ego22'- porquanto, à medida em
que os objetos são menos próximos das necessidades da criança, são apreendi­
dos, eles se encarregam da ansiedade ligada à sua utilização nas relações agres­
sivas, sádicas, fundamentais que são aquelas, de início, da criança a seu meio
como sequência à toda frustração. E na medida em que o sujeito desloca seu
interesse para objetos mais benignos, os quais por sua vez se encarregarão da
mesma ansiedade, que a extensão do mundo da criança é concebida como tal.
Observem o que isto representa. Isto representa a noção que nós devemos pro­
curar em úm mecanismo, em suma, que poderiamos chamar contra-fóbico: ou
seja que é na medida em que os objetos têm primeira e primitivamente uma
função de objetos contra-fóbica, e que o objeto fóbico, se pode-se dizer, é pro­
curado em outro lugar, é por uma extensão progressiva do mundo dos objetos 221

221 KLEIN M., «The Importance of symbol-formation in the developmet of the ego», 1930-XI, p.
24-39. Trad. ft. in Essais de psychanalyse. Paris, 1968, Payot, pp. 263-278.

471
em uma dialética contra-fóbica, isto é o mecanismo mesmo da conquista da
realidade.
Se isto corresponde ou não à clínica, é uma questão que não está direta­
mente aqui no campo de nossa visada. Creio que diretamente e na clínica,
muitas coisas podem ir contra, que há aí uma unilateralização, uma parcialização
de um mecanismo que seguramente não deixa de interferir na conquista da
realidade, mas que não a constitue propriamente falando. Mas não é aqui nosso
objetivo criticar a teoria de Melanie Klein; uma vez que é em relação a uma
visada completamente outra que a fazíamos entrar em jogo, é em relação a
alguma coisa, uma função que é o desejo.
Ora, estamos justamente diante do que imediatamente mostra suas
consequências, ou seja que Glover chega a um paradoxo que seguramente pa­
rece mais instrutivo para ele do que para nós, já que não parece haver aí algo
com o que se espantar. Ele chega a isto, é que se ele tenta concretamente situar
as diversas perversões em relação à sua dialética, a esse mecanismo tal como
ele tenta elaborá-lo, reconstitui-lo, reintegrá-lo na noção de um desenvolvi­
mento regular do ego uma vez que ele seria paralelo às modificações da [libi­
do], nesta medida pode-se inscrever, para dizer tudo, o destinação, a estruturação
do sujeito, em termos de uma pura experiência individual da conquista da rea­
lidade. Com efeito, está tudo aí.
A diferença que há entre a teoria que dou a vocês das fobias, por exem­
plo, e aquelas que vocês verão em tais autores franceses recentes, na medida
em que eles tentam indicar a gênese da fobia em formas estruturais da experi­
ência infantil (por exemplo da forma com a qual a criança tem que se arranjar
em suas relações com os que a rodeiam, da passagem da clareza à obscuridade;
trata-se de uma gênese puramente experimental, de uma experiência de temor
a partir da qual é engendrada e deduzida a possibilidade da fobia), a diferença
entre esta posição e aquela que ensino a vocês é tipicamente esta: é de dizer que
não há nenhuma espécie de justa dedução da fobia, senão a admitir a função, a
exigência como tal de uma função do significante -a qual supõe uma dimensão
própria que não é a da relação do sujeito com seu meio, que não é a da relação
com nenhuma realidade, senão com a realidade e com a dimensão da lingua­
gem como tal, pelo fato que ele deve se situar como sujeito no discurso, mani­
festar-se aí como ser, o que é diferente.
Há algo bastante impressionante concernente à apreciação dessas fobi­
as, mesmo em alguém tão perspicaz como Glover. Ele tenta explicar a gênese,

472
a estabilização de uma fobia. Quando ele declara que «é seguramente mais
vantajoso ter uma fobia de tigre, quando se vive como uma criança nas ruas de
Londres, do que encontrar a mesma fobia se ele vivesse no meio da selva indi­
ana»222, podemos nos perguntar se não poderiamos lhe retqrquir que, efetiva­
mente, não é neste registro que o problema se coloca. Enfim, poderiamos mes­
mo inverter sua proposição e dizer que a fobia de tigre na selva indiana é ao
contrário, parece, a mais vantajosa para adaptar a criança a uma adaptação real;
mas que, em contrapartida, é muito embaraçoso sofrer de uma fobia de tigre,
uma vez que sabemos quais são os correlatives dela, ou seja que a da criança, e
mesmo a do sujeito já mais avançado em seu desenvolvimento, no momento
em que ele é presa de uma fobia, é seguramente um comportamento dos mais
entravados e que, ele, não tem nenhuma relação com o real.
De fato, alguma coisa se apresenta que coloca para Glover seu problema
nesses termos: é de perceber que a maior diversidade de distorções da realida­
de é realizada nas perversões, e de dizer que ele não pode situar, em uma pers­
pectiva genética, a perversão, senão à condição de fragmentá-la, de interpola­
te em todas as etapas supostas ou pressupostas do desenvolvimento -ou seja de
admitir a existência tanto de perversões muito arcaicas, mais ou menos con­
temporâneas da época paranóide, mesmo da época depressiva, quanto outras
perversões que, elas, se situam em fases muito avançadas, inclusive não so­
mente fálicas, mas propriamente falando edipianas e mesmo genitais, do de­
senvolvimento.
Isto não lhe parece uma objeção peja razão seguinte, é que ele termina
por dar da perversão uma definição que é a seguinte: é que em suma, a perver­
são é uma das formas, para ele (ele não pode chegar a outra coisa na perspecti­
va da qual ele partiu), do reality testing, da “prova da realidade”. E na medida,
segundo Glover, em que em algum lugar algo na prova da realidade não funcio­
na, fracassa, que a perversão vem recobrir este hole, este “buraco”, por um
modo particular de apreensão do real como tal (do real, na ocasião, é um real
psíquico, é um real projetado e de outra parte introjetado), que é assim propria­
mente falando como função de manutenção, preservação de uma realidade que
estaria ameaçada em seu conjunto, é nessa medida que a perversão serve, se
vocês querem, pode-se dizer ao mesmo tempo de retomada, no sentido em que

222 Op. cit., p. 489; Ornicar, p. 21.

473
.■a- ill.- <|tir um tecido é ieioinmlo, ou ainda dc pedra angular, alguma descarga,
algum inoiiK-nto trôpego, c algum momento ameaçador comprometendo o equi­
líbrio do conjunto da realidade para o sujeito. Assim, é apenas de uma forma
não-ambígua, como forma de salvação em relação a uma ameaça suposta de
psicose, que a perversão é concebida por Edward Glover.
Existe aí uma perspectiva. Talvez algumas observações possam mostrar
efetivamente alguma coisa que parece ilustrá-la, mas muitos elementos nos
pedem que nos distanciemos delas; além disto, que parece completamente pa­
radoxal fazer da perversão alguma coisa que tem esse papel econômico, esse
papel econômico que muitos elementos contradizem -havería alguma coisa
que nos indica que não é certamente a precariedade do edifício do perverso que
é algo que, clinicamente e também não na experiência analítica, nos impressio­
na, pelo menos no primeiro aspecto!
Para indicar aqui alguma coisa, eu não abandonarei essa dialética kleiniana
sem fazer observar como ela inclui e encaminha, com efeito, o problema que
colocamos. Se procuramos isto de que se trata na dialética kleiniana, ou seja, as
duas etapas que ela distingue, entre a fase paranóide e imediatamente após a
fase depressiva que é caracterizada, como vocês o sabem, com relação à pri­
meira, pela relação do sujeito com seu objeto maior e prevalente, a mãe, como
com um todo. Anteriormente, é com elementos disjuntos que ele tem a ver. [E
depois esquize] em objetos bons e maus, com tudo o que ela vai instaurar nele
[nesta fase] que é a da projeção e da introjeção. E assim que a barreira paranóide
se caracteriza.
Enfim, o que podemos dizer em nossa perspectiva? Quero dizer, tente­
mos compreender, pela perspectiva em que nós mesmos o articulamos, isto de
que se trata neste processo, esse processo totalmente inaugural, colocado no
início da vida do sujeito, é que em suma a realidade das primeiras apreensões
do objeto, tal como Melanie Klein nos mostra, provém disto, é que em suma o
objeto é primeiramente -além do fato de que ele pode ser bom ou mau, provei­
toso ou frustrante-, é que ele é significativo. Pois a noção, a distinção que, se a
oposição como tal é estrita, e eu diria sem nuances, sem transições, sem perce­
ber de modo algum que é o mesmo objeto que pode ser bom ou mau segundo
os momentos, ou seja a mãe, que há aqui não “experiência” no jovem sujeito,
nem tudo o que ela pode comportar como hábitos transicionais, mas que há
oposições estabelecidas, passagem do objeto como tal a uma função de oposi-
ções signifícantes que é a base de toda a dialética kleiniana, e da qual se aper-

474
cebe, me parece, muito pouco que, por fundamentada que ela seja, ela está
completamente no oposto, na borda oposta, no pólo oposto, que ela é o contrá­
rio desse outro elemento posto em relevo por nossa experiência; ou seja da
importância da’comunicação viva, tão essencial de início para o desenvolvi­
mento, que se exprime, que se manifesta na dimensão dos cuidados matemos.
Há ai algo de um outro registro, que é contemporâneo mas que não pode ser
confundido, e o que Melanie Klein nos traz, é uma espécie de álgebra primiti­
va, da qual se pode dizer que ela se junta completamente, com efeito, ao que
nós tentamos colocar aqui em relevo sob o nome de “função do significante”.
São as formas primárias, primitivas dessa função do significante como tal, que
são de um jeito ou de outro, que ele esteja efetivamente presente nesta data ou
simplesmente Rück-Phantasie, “fantasma” mas “atrás”, é isto, apenas temos
que registrá-lo, o que nos descreve Melanie Klein.
Desde então, qual valor vai tomar esta fase limite entre período paranóide
com seu ordenamento de bons objetos que são como tais interiorizados,
internalised, diz ela, pelo sujeito, [e de maus] que são rejeitados?
O que acontece? Como podemos descrever o que se passa a partir do
momento em que intervém a noção do sujeito como um todo, que é essencial
para que o próprio sujeito se considere como tendo um dentro e um fora? Pois
no fim das contas, não é senão a partir daí que é concebível que se manifeste, se
defina o processo de internalização e de externalização, de introjeção e de
projeção, que vai ser para Melanie Klein decisivo para esta estruturação do
animal primitivo.
Com as referências que são as nossas, vemos que isto de que se trata é
algo que re-situa essa relação, essa esquize, como ela mesma se exprimiu, pri­
mitiva dos objetos em bons e em maus em relação a esse outro registro do
dentro e do fora do sujeito. Este algo que, creio, podemos, sem excesso de
solicitação em relação às perspectivas kleinianas, que podemos relacionar ao
momento dito do estádio do espelho, uma vez que é na medida em que a ima­
gem do outro dá ao sujeito esta forma da unidade do outro como tal, que pode
se estabelecer em algum lugar esta divisão do dentro e do fora, ou em relação
à qual vão se reclassificar os bons e os maus objetos, os bons na medida em
que eles devam vir para dentro, os maus na medida em que eles devam ficar
fora.
Pois bem, o que chega aqui a se definir de uma forma mais clara (porque
imposta pela experiência), é a mesma coisa que o que poderiamos dizer em

475
nosso próprio discurso. É a saber que o discurso que organiza realmente o
mundo dos objetos, eu diria segundo o ser do sujeito, de início, transborda
aquele em que o próprio sujeito se reconhece na prova narcísica, prova dita do
estádio do espelho, em que ele se reconhece como mestria e como “eu” [moí]
único, em que ele se reconhece assim em uma relação de identificação narcísica
de uma imagem à outra, em que ele se reconhece como mestria de um eu [moí],
É na medida em que alguma coisa que o define em uma primeira identi­
ficação, naquela que aqui é expressa223, ao nível da primeira identificação com
a mãe, como objeto da primeira identificação às insígnias da mãe, é na medida
em que isto conserva para o sujeito um valor assimilador que transborda o que
ele vai poder colocar para dentro dele mesmo, na medida em que este dentro é
definido por suas primeiras experiências de mestria, de prestância, na medida
em que ele é i(a), i tipicamente e idealmente desse jovem semelhante, com o
qual nós o vemos da forma mais clara fazer suas experiências de mestria; é na
medida em que o que se relaciona [...], é na medida em que as duas experiên­
cias não se recobrem que (não é eu que digo: toda experiência do desenvolvi­
mento se ordena), necessariamente, nós devemos admitir isto para compreen­
der aquilo de que se trata no que nos descreve Melanie Klein.
_____ Com efeito, o que define essa di-
/ ferença, esse campo x onde i(a) que, ao
/ X \ mesmo tempo, faz e não faz parte desse
I ) sujeito, o que é? É esse objeto cujo pa-
\ / radoxo não nos causa espanto a partir
\ y das premissas que coloca Melanie Klein,
é o que ela chama o mau objeto interno.
O mau objeto interno apresenta-se para nós já de início na dialética kleiniana,
da forma mais manifesta, como o objeto problemático. Nesse sentido, visto (se
se pode dizer) de fora, aí onde o sujeito não é sujeito mas onde nós devemos
tomá-lo como um ser real, nós podemos nos perguntar: esse mau objeto ao qual
pretensamente o sujeito se identifica, o sujeito, no fim das contas... ele o é ou
não o é?
Inversamente, visto de dentro, visto do ponto de vista da Kparta (crasia),
da mestria, do primeiro exercício do sujeito de se manter, de se afirmar, de se

223 Cf. o esquema da lição de 4 dejunho de 1958, in Les formations de I 'inconscient (inédito).

■476
conter, nós devemos nos perguntar se, esse mau objeto do qual sabemos o
papel absolutamente decisivo a partir daí, o sujeito o tem ou não o tem. A
questão que se coloca é: ele o tem ou não o tem?
Pois se nós definimos bons e maus objetos como determinando o pro­
cesso de estruturação pelo que o sujeito interioriza os bons objetos e faz com
que eles primitivamente façam parte dele mesmo, e rejeita os maus objetos
como sendo o que não é ele, todo o resto, o paradoxo do mau objeto interiorizado
aparece no primeiro plano. O que significa esta zona do primeiro objeto en­
quanto o sujeito o interioriza, que ele o faz ao mesmo tempo seu e que de certo
modo, como virtualmente mau, ele o denega?
É claro que aqui a função ulterior do interdito é justamente o que tem o
valor delineador, graças ao que o mau objeto cessa de se propor na espécie de
enigma permanente, de enigma ansiogênico em relação ao ser do sujeito. O
interdito é precisamente o que introduz, no interior desta função problemática
do mau objeto, esta delineação essencial. E isto que faz sua função de interdito,
é que se ele o é, este mau objeto, ele não o tem; enquanto que ele o é (identifi­
cado), está proibido que ele o tenha {qu 'll l 'ait) -a eufonia francesa entre o
subjuntivo do verbo ter e o indicativo do verbo ser esta aí para ser utilizada.
Dito de outro modo, enquanto ele o é {il 1'est), ele não o tem, enquanto ele o
tem, ele não o é.
Em outras palavras, é que ao nível do mau objeto, o sujeito experimenta,
se posso me exprimir assim, a servidão de sua mestria. E que o mestre verda­
deiro -cada um sabe que ele está para além de toda face, que ele está em algum
lugar ná linguagem, ainda que ele não possa aí estar em lugar algum- o mestre
verdadeiro lhe delega o uso limitado do mau objeto como tal, ou seja de um
objeto que não está situado em relação à demanda, de um objeto que não se
pode demandar. Pois é daí, com efeito, que parte todo o alcance de nossos
dados.
Antes disto, posso lhes indicar que o que se lê de uma maneira surpreen­
dente nos casos precisos que nos são apresentados por Melanie Klein: é na
medida em que ela está manifestamente neste impasse, no campo do não-
demandável como tal, que encontramos esta criança tão singularmente inibida
com a qual ela está às voltas, e que ela nos apresenta no artigo sobre La formation
du développement de I'ego dans son rapport avec la formation du symbole™.

224 Op. cit.

477
Nflu «••.tHiá i l.no ipie o que chi obtém desde que começa a talar com esta
(iiaiiçn, <■ algo que cm seguida sc cristaliza em unia demanda, uma demanda
eiii |riuico: «iiurse coining?», “será que a ama-de-leite virá?” e que imediata­
mente após, na medida em que a criança vai se permitir retomar contato com
seus objetos dos quais de início ela aparece, na experiência, singularmente
separada, é algo que ela nos assinala como um fato bastante surpreendente,
decisivo. Pois, vocês se lembram, é no exercício de uma espécie de pequeno
corte, de desbastamento com a ajuda das tesouras da criança-que está longe de
ser uma desajeitada, uma vez que ela se serve de toda sorte de elementos, tais
como puxadores de porta- as tesouras, ela jamais pôde segurá-las. Aí, ela as
segura, e para tentar destacar, e ela consegue, um pequeno pedaço de carvão de
alguma coisa que também não é mais sem significação, já que é um elemento
de cadeia do trem com o qual se consegue fazer com que ele brinque. Nomea­
damente, um tênder (sem mesmo querer me estender aqui sobre os curiosos
jogos e termos que poderíam se fazer em tomo deste tênder, -que também é
tender em inglês- não é a «carta do tenro» [tendre] mas a carta do têndre [ten­
der] que, aqui, se oferece a nós!). E é nesse pequeno pedaço que a criança, na
verdade, se isola, se define, se situa ela mesma neste algo que ela pode destacar
da cadeia significante; é nesse resto, nesse pequeno amontoado minúsculo,
nesse esboço de um objeto, que não aparece aqui senão sob a forma de pequeno
pedaço, de um pedacinho, o mesmo que provocará de repente sua simpatia (seu
pânico) quando ele o verá sob a forma de pedacinhos de pontas de lápis sobre
o peito de Melanie Klein e, pela primeira vez, se emocionará na presença deste
outro gritando: «pobre senhora Klein!»225.
O desejo então não é a demanda. Esta primeira intuição experimentada a
todo instante, que nos reconduz às condições originais, não deve frear a aten­
ção. Um sujeito vem nos procurar. Por que isto? O que ele demanda? Em prin­
cípio, satisfação e bem-estar. Menos isso, que toda satisfação não arraste con­
sigo o bem-estar para ele, longe disto! O que nós lhe respondemos? Organizan­
do a história do sujeito (como a história da análise, como a história da técnica)
no sentido de alguma coisa que deve responder a esta demanda de satisfação...
Por qual via? Por uma via que é a seguinte, ou seja tentando responder à deman­
da de satisfação do sujeito por uma redução de seus desejos a suas necessidades.

225 M. KLEIN, Essais de psychanalyse, op. cit. «Uma vez em que Dick viu sobre meus joelhos
os pequenos pedaços de um lápis que eu tinha apontado, disse: “pobre Sra. Klein"» (p. 272).

478
Ora, não há aí um paradoxo, quando, de outra parte, toda nossa experiência
pode-se dizer, se sustenta nessa dimensão aliás tão evidente para o sujeito quanto
para nós? Para nós, porque tudo o que temos articulado vai se resumir ao que
vou dizer; e para o sujeito, pois no fim das contas, o sujeito o sabe muito bem
no momento em que vem nos encontrar.
Estão me dizendo que alguém está fazendo uma tese importante sobre a
significação social da análise226, e isto me deixa entender que haverá aí elemen­
tos extremamente ricos de experiências e extremamente bem pesquisados. Ouso
esperar, pois creio que efetivamente a representação social da análise é muito
menos distorcida do que se imagina no conjunto da comunidade, que o que
disto sobressairá da forma mais clara é essa coisa que está francamente na base,
no princípio mesmo do que um sujeito implica diante de nós por sua própria
presença, o que é? É que nos dados de sua demanda está o fato de que ele não
se fia no seu desejo. O fator comum diante do qual os sujeitos nos abordam é
este: é que, em seu desejo, ele não se fia.
Que ele possa, em consequência de nossos artifícios, se engajar em nos­
sa continuação na sua referência à necessidade, nesse desejo, mesmo em sua
sublimação nas vias elevadas do amor, resta, de início, o que caracteriza o
desejo, é que há algo que como tal não pode ser demandado, e a propósito do
que a questão é colocada, e que é isto que é propriamente falando, o campo e a
dimensão do desejo.
Vocês sabem, para introduzir essa divisão, essa dialética do desejo, o
que eu fiz em uma data bastante precisa (ou seja há dois anos e meio), eu parti
do quê? Do que Freud diz a propósito do Complexo de édipo na mulher. Será
que isto, o que acabei de articular, não é legível no fato que, ao nível da expe­
riência analítica, ao nível da experiência inconsciente, será que não há por que
destacarmos isto: o que a mulher demanda de início, isto pelo que, nos diz
Freud, ela entra no édipo? Não é ter uma satisfação, é ter o que ela não tem
como tal. Trata-se, vocês o sabem, do falo.
Isto não é outra coisa senão a fonte abundante de todos os problemas que
surgiram para tentar reduzir a dialética da maturação do desejo nas mulheres a
alguma coisa de natural. O fato é que, cheguemos aí ou não, a essa redução, o
que temos que ultrapassar é um fato de experiência, um fato de experiência que

226 MOSCOVICI, S., La psychanalyse, son image et son public. Paris, 1961, P.U.F.

479
é o seguinte: é que a menina, em um momento de seu desenvolvimento -apesar
de tudo, pouco nos importa que seja um processo primário ou secundário, é um
processo relevante e irredutível- o que ela demanda ter, ou seja o falo, é tê-lo
(neste momento crítico do desenvolvimento que Freud valoriza), é tê-lo no
lugar em que ela deveria tê-lo se ela fosse um homem. Trata-se exatamente
disto, não há nenhuma ambiguidade nisto. E todo o processo do que se passa
implica que de fato, mesmo quando ela conseguirá tê-lo (pois ela está numa
posição muito privilegiada, a mulher, em relação ao homem), este falo, que é
um significante, eu digo exatamente isto, um siginificante, ela pode tê-lo real­
mente. E mesmo isto o que faz sua vantagem e a relativa simplicidade de seus
problemas afetivos em relação aos do homem.
Mas não é preciso que essa relativa simplicidade nos cegue, porque esse
falo que ela pode ter, real, não resta dele menos que em razão do início, ou seja
que ele se introduziu em sua dialética, em sua evolução, como um significante,
ela o terá sempre a menos a um nível de sua experiência. Eu reservo sempre a
possibilidade limite da união perfeita com um ser, quer dizer de algo que funda
completamente, no estreitamento, o ser amado com seu órgão. Mas o que cons­
titui o teste de nossa experiência e mesmo as dificuldades com as quais nos
deparamos na ordem sexual, se situa precisamente nisto: é que esse momento
ideal, e de certo modo poético (mesmo apocalíptico) da união sexual perfeita,
não se situa senão no limite, e que isto com o que de fato, no teste comum da
experiência, a mulher se depara, mesmo quando ela consegue a realização de
sua feminilidade, é com o objeto fálico sempre enquanto separado. É mesmo
porque ela está às voltas [com ele] como tal, e sob este registro, que sua ação,
sua incidência pode ser percebida pelo homem como castradora.
No mais, isto certamente fica para ela, até a análise, inconsciente. Assim
como também fica inconsciente isto, é que este falo que ela não tem, ela o é
simbolicamente, na medida em que ela é o objeto do desejo do outro. Tanto
uma coisa como a outra, isto ela não sabe. Esta posição específica da mulher
vale na medida em que ela lhe é inconsciente, o que quer dizer na medida em
que ela não vale senão para o outro, para o parceiro; resta todavia que a fórmu­
la, a fórmula muito singular na qual se resolve sua relação ao falo, é que para­
doxalmente no inconsciente ela o é e, ao mesmo tempo, ela o tem.
Está aí um dos efeitos os mais singulares da relação com o discurso; é
essa posição particular ao lado da mulher ideal, da mulher em seu mundo
fantasmático: no inconsciente, ela o é e ela o tem, no melhor dos casos -à parte

480
o fato de que ela não sabe disto, senão por seu desejo. E por seu desejo disto
resulta, vocês verão na sequência de meu desenvolvimento, que há uma singu­
lar similaridade de sua fórmula, se pode-se exprimir assim, de sua fórmula
trans-subjetiva, de sua fórmula inconsciente, com a do perverso.
Se tudo o que descobrimos da economia inconsciente da mulher diz res­
peito às equivalências simbólicas do falo com todos os objetos que podem se
separar dela e nisto compreendido em primeiro plano o objeto mais natural a sepa­
rar-se dela, ou seja seu produto infantil, se está aí o que ela encontra para situar em
uma série de equivalências fálicas -eu apenas reproduzo aqui o próprio texto da
doutrina analítica-, nós vamos nos encontrar em presença disto que para ela, da
forma mais natural do mundo, os objetos naturais terminam por realizar essa
função de objeto do desejo, na medida em que são objetos dos quais nos separa­
mos. E é isto o que nos explica, creio, a menor frequência da perversão na mulher,
é que, inscritas no contexto cultural (não é questão que ela esteja alhures...), suas
satisfações naturais chegam naturalmente, se posso me exprimir assim, a situar-se
na dialética da separação como tal, na dialética dos objetos significantes do desejo.
Isto é o que autores analistas, eles são mais de um, exprimiram muito
claramente, e de uma maneira que a vocês parecerá sem dúvida muito mais
concreta do que a que eu acabo de expor, dizendo que se há menos perversões
nas mulheres do que nos homens, é que elas satisfazem, em geral, suas relações
perversas em suas relações com seus filhos. Não é por que “sua filha é muda”,
mas é por que há algumas crianças com as quais nós temos, como analistas,
que nos ocupar... Recai-se, como vocês o vêem, em verdades primeiras, mas
não é inútil recair nelas por uma via que seja correta e clara.
Eu aproveitarei também para lhes indicar alguma coisa destinada, ao
menos para a parte masculina de minha assembléia, a trazer um temperamento
ao que ela poderia experimentar de abalo, mesmo de impaciência, diante de
uma das propriedades singulares de suas relações com seu parceiro do outro
sexo. Quero falar daquilo que comumente chamamos o ciúme. Como sempre,
o analista, que trouxe tanta clareza, trouxe igualmente tanta obscuridade, «Ne­
nhum progresso, dizia Nestroy, tão apreciado por Freud, tem a metade da di­
mensão que se imagina». O problema do ciúme, e especialmente do ciúme
feminino, foi amarrado na análise, sob forma bem diferente do ciúme masculi­
no; o ciúme feminino, que por dimensões marcadas, dimensões também distin­
tas, o estilo do amor em um e outro sexo, é verdadeiramente algo que, eu creio,
só pode mesmo se situar no ponto o mais radical.

481
E se vocês se lembram em meu pequeno gráfico da demanda, da relação
ao outro do sujeito, que interroga essa relação e que, se posso dizer, ali marca o
outro com a decadência significante, para aparecer ele mesmo como decaído
em presença de algo que é no fim das contas o resto dessa divisão, esse algo de
irredutível, de não-demandável, que é precisamente o objeto do desejo; é na
medida em que para o sujeito, enquanto ele se faz objeto de amor, na ocasião a
mulher, ele vê bem nesse resto este algo que nela é o mais essencial, que ela
concede tanta importância à manifestação do desejo. Pois, enfim, está comple­
tamente claro que, na experiência, o amor e o desejo são duas coisas diferentes,
e que é preciso mesmo assim falar claro e dizer que se pode amar muito um ser
e desejar um outro.
É precisamente na medida em que a mulher ocupa essa posição particu­
lar, e que ela sabe muito bem o valor do desejo, ou seja que para além de todas
as sublimações do amor, o desejo tem uma relação ao ser, mesmo sob sua
forma mais limitada, mais delimitada, mais fetichista e, para dizer tudo, mais
estúpida, sob sua forma limite mesmo em que, no fantasma, o sujeito se apre­
senta como cego e em que o sujeito não é literalmente nada mais do que um
suporte e um signo, o signo desse resto significante das relações com o outro, é
todavia a isto que no fim das contas a mulher amarrará o valor de prova última
de que é justamente a ela que se endereça. Amá-la, com toda a temura e a
devoção que se pode imaginar, disto não restará menos que, se um homem
deseja uma outra mulher, ela sabe que mesmo se o que o homem ama é sua
sandália ou a barra de seu vestido ou ainda a pintura que ela tem sobre o rosto,
é todavia desse lado que se produz a homenagem ao ser. De vez em quando é
necessário lembrar verdades primeiras, e é por isso que penso que vocês me
desculparão pelo tom talvez um pouco forte que eu dei a esta digressão.
E agora, vejamos onde vão as coisas, ou seja em relação a esta zona do
objeto onde se instaura esta ambiguidade. E qual é a função como tal do falo?
Já, ela não pode não aparecer a vocês como singularmente introduzida pelo
que eu acabei de lhes dizer concernente ao mau objeto interno. Pode-se dizer
que a metáfora paterna (como eu a chamei) instaura ali, sob a forma do falo,
uma dissociação que é exatamente aquela que recobre a forma geral, como
seria preciso ali esperar, que eu dei a vocês como sendo aquela do interdito, ou
seja que: ou bem o sujeito não o é, ou bem o sujeito não o tem. O que quer
dizer, que se o sujeito o é, o falo -e isto se ilustra em seguida sob essa forma,
isto é, como objeto do desejo de sua mãe- pois bem, ele não o tem! Quer dizer

482
que ele não tem o direito de se servir dele, c al csln <> vnloi IiiiuliunrnliiI da h-i
dita de proibição do incesto. E que, de outra parte, se cie <> tem quer dizei <|iir
ele realizou a identificação paterna- pois bem, há uma coisa cciln, é tpie, este
falo, ele não o é!
Eis o que significa ao nível, eu diria, simbólico o mais radical, u inlrodn ■
ção da dimensão do édipo. E tudo o que se elaborará a este respeito vai sempre
cair nesse: “ou bem... ou bem...” que introduz uma ordem ao uivei do objeto
que não se pode demandar.
O neurótico, ele, se caracteriza de que maneira? Pois bem, o neurótico,
certamente, se serve dessa alternância. É na medida em que ele se situa plena­
mente ao nível do édipo, ao nível da estruturação significante do édipo como
tal, que ele usa, e de uma maneira que eu chamaria metonímica, e que eu cha­
maria mesmo (uma vez que aqui “ele não o é” se apresenta como primeiro em
relação a “ela não o tem”) uma metonímia regressiva. Eu quero dizer que o
neurótico é aquele que utiliza a alternativa fundamental sob essa forma
metonímica no sentido em que, para ele, “não tê-lo” é a forma sob a qual ele se
afirma, e de forma mascarada, “sê-lo” (entenda-se o falo). Ele “não tem” o falo
para “sê-lo” de forma oculta, inconsciente, para “não tê-lo” a fim de “sê-lo”. É
o “para ser” um pouco enigmático sobre o qual eu havia terminado, creio,
nosso último encontro. “E um outro que o tem”, enquanto que ele “o é” de
forma inconsciente. Observem bem isto, é que o fundo da neurose é constituí­
do nisso, é que em sua funçãp de desejante, o sujeito toma um substituto.
Tomem o obsessivo, e observem efjetivamente o que se passa no fermo
de seus empreendimentos complicados: não é ele que goza. Do mesmo modo
que para a histérica, não é dela de quem se goza. A substituição imaginária da
qual se trata é precisamente a substituição do sujeito ao nível em que eu lhes
ensino aqui a situar, quer dizer do S, é a substituição de seu eu como tal por
esse sujeito $, que concerne ao desejo do qual se trata. E na medida em que ele
substitui seu eu pelo sujeito, que ele introduz a demanda na questão do desejo.
É porque alguém, que não é ele, mas sua imagem, o substitui na dialética do
desejo, que no fim das contas ele não pode demandar -como a experiência o
faz tocar sem cessar- senão substitutos. O que há de característico na experiên­
cia do neurótico, e o que aflora em seu próprio sentimento, é que tudo o que ele
demanda, ele o demanda por outra coisa. E a sequência desta cena, por onde o
imaginário em suma, vocês o vêem, vem aqui desempenhar esse papel no que
eu chamei de a metonimia regressiva do neurótico, tem uma outra consequência,

483-
pois nesse domínio ele não pode ser parado: o-sujeito é substituído por ele
mesmo ao nível de seu desejo, ele não pode demandar senão substitutos, acre­
ditando demandar o que ele deseja.
E mais longe ainda, é da experiência que em razão justamente da forma
da qual se trata, quer dizer, do eu enquanto ele é o reflexo de um reflexo, e da
forma do outro, ele substitui também aquele do qual ele demanda. Pois está
totalmente claro que em lugar algum mais do que no neurótico, esse eu separa­
do vem tão facilmente tomar o lugar desse objeto separado que eu indico a
vocês como sendo a forma original do objeto do desejo. O altruísmo do neuró­
tico, contrariamente ao que se diz, é permanente. E não há uma via mais co­
mum das satisfações que ele busca do que aquilo que se pode chamar “se devo­
tar a satisfazer” então tanto quanto ele pode, no outro, todas as demandas, das
quais ele sabe bem, entretanto, que elas constituem nele um perpétuo fracasso
do desejo. Ou, em outros termos, de se cegar em seu devotamento ao outro,
sobre sua própria insatisfação.
Essas não são, creio, coisas que sejam compreensíveis fora da perspecti­
va que tento articular para vocês aqui. E a saber, no fim das contas, que a
fórmula $ 0 a para o neurótico se transforma em alguma coisa (se vocês que­
rem, sob reserva e sumariamente) da identificação de seu ser inconsciente. E é
por isto que nós lhe daremos o mesmo signo que ao “S barrado”, $, ou seja
“falo barrado”. Quer dizer que, em presença de um objeto, é a forma mais geral
de um objeto do desejo, que não é outra coisa senão esse outro enquanto ele ali
se situa e se reencontra: O 0 i (a).
Precisamos agora passar à perversão.
Pois bem, é tarde! Eu remeterei então para a próxima vez a continuação
desse discurso. Se não posso fazê-lo avançar mais depressa, não vejam nisso
outro efeito senão o da dificuldade na qual temos que progredir.

484
Lição 26
24 de junho de 1959

A dificuldade com a qual lidamos não data de ontem. Ela é uma daque­
las sobre as quais toda a tradição moralista especulou, ou seja a do desejo
decaído. Não preciso fazer repercutir do fundo das eras a amargura dos sábios
ou dos pseudo-sábios sobre o caráter decepcionante do desejo humano...
A questão assume uma forma, explícita na análise à medida que já a
primeira experiência analítica nos mostra as pulsões em sua natureza parcial, a
relação com o objeto pressupondo uma complexidade, uma complicação, um
incrível risco no agenciamento dessas pulsões parciais, fazendo, depender a
conjunção com o objeto desse agenciamento. A combinação das pulsões parci­
ais nos mostra verdadeiramente o caráter fundamentalmente problemático de
todo acesso ao objeto que, para tudo dizer, não nos mostra uma teoria senão ao
preço de mostrá-la a mais contrária do que poderiamos conceber em uma pri­
meira abordagem da noção de instinto que, de toda maneira, mesmo que dei­
xássemos extremamente flexível sua hipótese finalista, nada mais resta do que...
-qualquer que ela seja, toda teoria do instinto é uma teoria, se pode-se dizer, da
centragem do objeto. Ou seja que o processo no organismo vivo faz com que
um objeto seja fixado progressivamente em um certo campo, e aí captado numa
certa conduta, processo que por si mesmo se apresenta sob uma forma de con­
centração progressiva do campo.
O processo é completamente outro, assim como-é completamente outra'
a dialética que a análise nos mostra: que, ao contrário, progride-se pela adição,
combinação dessas pulsões parciais, e chega-se a conceber o advento de um

485
W «w IW «w H

objclo satisfatório, aquele que corresponde aos dois pólos da masculinidade e


da feminilidade, ao preço da síntese de todos os tipos de pulsões intercambiáveis,
variáveis, e de combinações muito diversas, para chegar a esse sucesso.
É por isso que, de uma certa forma, vocês podem pensar que definindo-
o por $ v a, colocado aqui no esquema ou grafo de que nos servimos para
explicar, para expor a posição do desejo em um sujeito falante, não existe aí
afinal de contas, nada mais do que uma notação muito simples: no desejo algu­
ma coisa é exigível que é a relação do sujeito com o objeto; que a, é o objeto; o
grande $, é o sujeito, e nada mais. Nada de mais original nessa notação, do que
esta pequena barra que lembra que o sujeito, nesse ponto de acme da
presentificação do desejo, é ele próprio marcado pela palavra. E depois de
tudo, isso nada mais é do que algo que lembra que as pulsões são fragmenta­
das.
Convém notar que não se limita a isso o alcance dessa notação. Essa
notação designa não uma relação de sujeito com o objeto, mas o fantasma,
fantasma que sustenta esse sujeito como desejante, isto é nesse ponto além de
seu discurso, em que se trata da [relação ao ser], Essa notação significa que no
fantasma o sujeito está presente como sujeito do discurso inconsciente. O su­
jeito está aí presente enquanto ele é representado no fantasma pela função de
corte que é a sua, essencialmente, de corte em um discurso, e que não é qual­
quer discurso, é um discurso que lhe escapa, o discurso do inconsciente.
Isso é o essencial e se vocês acompanharem seu fio não poderão deixar
de ser surpreendidos com o que ele põe em destaque, de dimensões sempre
omitidas, quando se trata dos fantasmas perversos. Já falei noutro dia da pru­
dência com que convém abordar o que chamamos fantasma perverso. O fantas­
ma perverso não é a perversão. O maior erro é imaginar que compreendemos a
perversão porque também o somos (isto é enquanto somos mais ou menos
neuróticos nas bordas...), à medida que temos acesso a esses fantasmas perver­
sos. Porém, o acesso compreensivo que temos ao fantasma perverso não dá no
entanto a estrutura da perversão, ainda que de alguma forma ela disso chame a
reconstrução.
E se me permitirem tomar um pouco de liberdade em meu discurso de
hoje,-ou seja entregar-me a uma pequena pemeada por fora, evocarei o livro
marcado pelo selo de nossa época que se chama Lolita. Não lhes imponho a
leitura dessa obra mais do que a de uma série de outras que parecem indicar
uma certa constelação de interesses em tomo justamente da mola do desejo. Há

486
coisas mais bem feitas do que Lolita no plano, se pode-se dizer, teórico. Mas
Lolita é mesmo assim uma produção bastante exemplar.
Para aqueles que a folhearem, não haverá nada de obscuro quanto à fun­
ção atribuída a um [i(a)J. Evidentemente, de uma forma tanto menos ambígua
pode-se dizer que, curiosamente, o autor se coloca em uma oposição bastante
articulada com aquilo que ele chama a charlatanice freudiana e dá, por várias
vezes, sobre isso, de uma forma que lhe passa verdadeiramente desapercebida,
o testemunho mais claro dessa função simbólica da imagem, de i(a). Inclusive
o sonho que ele teve, pouco tempo antes de abordá-la de uma maneira decisiva,
e que a faz aparecer sob a forma de um monstro peludo e hermafrodita.
Mas, o importante não está aí. O importante na estrutura desta obra [é]
que tem todas as características da relação do sujeito com o desejo, com o
fantasma neurótico propriamente dito -pelo simples motivo que surge no con­
traste entre o primeiro e o segundo volume, entre o caráter fulgurante do desejo
enquanto ele é meditado, enquanto ele ocupa cerca de trinta anos da vida do
sujeito, e sua prodigiosa expiração em uma realidade soterrada (sem nenhum
meio de alcançar o parceiro) que constitui o segundo volume e a miserável
viagem desse casal pela linda América.
O que é importante e de certa forma exemplar, é que pela única virtude
de uma coerência construtiva, o perverso se entrega propriamente falando, apa­
rece em um outro, um outro que é mais que o duplo do sujeito, que é bem outra
coisa, que surge aí literalmente como seu perseguidor, que surge à margem da
aventura, como se -e, de fato, isso é tudo o que existe de mais confessado no li­
vro- o desejo do qual se trata no sujeito não pudesse viver senão em um outro,
e aí onde ele é literalmente impenetrável e totalmente desconhecido.
O personagem que se substitui, em determinado momento da trama, ao
herói, o personagem que é o perverso propriamente dito, aquele que realmente
acede ao objeto, é um personagem cuja chave nos é dada apenas nos últimos
gemidos que dá no momento em que cai sob os tiros do revólver do herói. Essa
espécie de negativo do personagem principal, aquele no qual repousa efetiva­
mente a relação com o objeto, tem aí alguma coisa de muito exemplar e que
pode nos servir de esquema para compreender que será sempre ao preço de
uma extrapolação que poderemos realizar a estrutura perversa.
A estrutura do desejo na neurose é uma coisa de natureza muito diferert-
te da natureza da estrutura do desejo na perversão e, por isso mesmo, essas
duas estruturas se opõem.

487
Para dizer a verdade, a mais radical dessas posições perversas do desejo
(aquela que é colocada pela teoria analítica como no ponto mais original à base
do desenvolvimento e também no ponto terminal das regressões mais extre­
mas), ou seja o masoquismo, esta, não podemos lembrar aqui, tocar com o
dedo, em uma evidência procurada pelo fantasma, a que ponto os planos são
negligenciados, na maneira como nos precipitamos na análise a formular, nas
fórmulas colapsadas, a natureza daquilo em cuja presença estamos? Tomo aqui
o masoquismo porque ele irá nos servir de pólo para essa abordagem da per­
versão.
E todos sabem que se tende a reduzir o masoquismo em suas diversas
formas a uma relação que, em última análise, apresentar-se-ia em uma relação
totalmente radical, de sujeito em sua relação com sua própria vida; a fazê-lo
confluir, em nome de indicações válidas e preciosas fornecidas por Freud so­
bre esse assunto, com um instinto de morte pelo qual se faria sentir, de uma
forma imediata e no próprio nível da pulsão, o ela considerado como orgânico,
algo contrário à organização dos instintos. Sem dúvida, existe aí alguma coisa
que, no limite, apresenta um ponto de mira, uma perspectiva sobre a qual sem
nenhuma dúvida não seria indiferente fixar-se para formular certas questões.
Em suma, não vemos -ao formular como aqui o situam neste esquema
as letras que indicam a relação- a posição do desejo essencial, em uma divisão
da relação do sujeito com o discurso, algo que aparece de forma retumbante e
que seria errado negligenciar no interior mesmo do fantasmático daquilo que
se chama masoquismo? Desse masoquismo sobre o qual, embora fazendo-o a
saída de um instinto dos mais radicais, sem dúvida os analistas estão de acordo
em se dar conta de que o essencial do gozo masoquista não poderia ultrapassar
um certo limite de sevícias. Estes ou aqueles traços, colocados em destaque,
são feitos, acredito, para nos esclarecer pelo menos sobre um meio termo, so­
bre algo que nos permita reconhecer aí a relação do sujeito, algo de essencial,
algo que é propriamente falando o discurso do Outro.
Seria necessário haver escutado as confidências de um masoquista? Se­
ria necessário ter lido o menor dos vários escritos que lhe são consagrados,
entre eles alguns mais ou menos bons que saíram recentemente, para não reco­
nhecer uma dimensão essencial do gozo masoquista ligado a essa espécie de
passividade particular que experimenta e do qual goza o sujeito: ao se repre­
sentar sua sorte como se jogando acima de sua cabeça, entre um certo número
de pessoas que estão ao seu redor e literalmente sem levar em conta sua presen-

488
ça, tudo aquilo que se prepara de seu destino sendo discutido diante dele sem
levá-lo minimamente em conta? Não há aí um dos traços, uma das dimensões
mais eminentemente salientes, perceptíveis, e sobre as quais, aliás, o sujeito
insiste como sendo um dos constituintes da relação masoquista?
Eis então em suma uma coisa em que se apreende, em que aparece o que
se pode tocar com o dedo, que está na constituição do sujeito enquanto sujeito,
e enquanto essa constituição é inerente ao discurso, e enquanto a possibilidade
é levada ao extremo, que esse discurso como tal, aqui revelado, desabrochado
no fantasma, o toma, o sujeito, por nada, que encontramos uma das primeiras
marchas. Marcha, meu Deus, bastante importante pois é sobre esta, a partir
desta, que se desenvolverão um certo número de manifestações sintomáticas.
Marcha que nos permitirá ver no horizonte a relação que pode existir entre o
instinto de morte considerado como uma das instâncias mais radicais, e esse
algo no discurso que dá esse suporte sem o qual de forma nenhuma poderiamos
aceder a ele, esse suporte desse não-ser que é uma das dimensões originais,
constitutivas, implícitas, às próprias raízes de toda simbolização.
Pois nós, durante todo um ano, o ano que consagramos ao Au-delà du
príncipe duplaisir,já articulamos essa função própria à simbolização, que está
essencialmente no fundamento do corte, portanto, isso pelo que a corrente da
tensão original, qualquer que seja ela, é tomada em uma série de alternativas
que introduzem o que se pode chamar de máquina fundamental, que é propri­
amente aquilo que encontraremos como desprendido, como resgatado
ao princípio da esquizofrenia do sujeito, em que o sujeito se identifica com a
discordância dessa máquina com relação à corrente vital, com essa discordância
como tal. Nesse sentido, eu lhes faço observar de passagem, vocês tocam-na aí
com o dedo de uma forma exemplar, ao mesmo tempo radical e completamen­
te acessível, uma das formas mais eminentes da função dessa Verwerfung. E
enquanto o corte é ao mesmo tempo constitutivo e irremediavelmente externo
ao discurso enquanto o constitui, que se pode dizer que o sujeito, enquanto ele
se identifica com o corte, é verworfen. E certamente nisso que ele se apreende
e se percebe como real.
Eu não faço aqui senão indicar para vocês uma outra forma, que não
acredito fundamentalmente distinta, mas segura e completamente articulada e
aprofundada, do «Eu penso, logo eu sou». Quero dizer que é à medida que o
sujeito participa desse discurso -e não tem mais do que isto da dimensão
cartesiana, que esse discurso é um discurso que lhe escapa e que é dois sem

489
sabê-lo- é enquanto ele é o corte desse discurso que ele está no supremo grau
de um «eu sou» que possui essa propriedade singular nessa realidade, que é
verdadeiramente a última em que um sujeito se apreende, ou seja a possibilida­
de de cortar em alguma parte o discurso, de pôr a pontuação. Essa propriedade
em que jaz seu ser essencial, seu ser em que ele se percebe enquanto a única
intrusão real que ele traz radicalmente no mundo como sujeito, o exclui no
entanto, a partir de todas as outras relações vivas, a ponto que é preciso todos os
desvios que nós outros analistas conhecemos para que Eu [Je] o reintegre nele.
Na última vez, falamos brevemente da forma como as coisas se passam
nos neuróticos. Dissemos que, para o neurótico o problema passa pela metáfo­
ra paterna, pela ficção, real ou não, daquele que goza em paz do objeto. Ao
preço de quê? De algo de perverso. Pois dissemos, essa metáfora é a máscara
de uma metonímia. Por trás dessa metáfora do pai como sujeito da lei, como
possuidor pacifico do gozo, esconde-se a metonímia da castração.
E se olharem mais de perto, vocês verão que a castração do filho nada
mais é aqui do que a sequência e o equivalente da castração do pai, como todos
os mitos atrás do mito freudiano primitivo do pai, e o mito primitivo do pai,
bem o indica: Cronos castra Júpiter, Júpiter castra Cronos antes de chegar à
realeza celeste. A metonímia da qual se trata refere-se em última análise a isso,
é que nunca há senão um único falo no jogo; e isso é justamente o que, na
estrutura neurótica, se trata de impedir que se veja. O neurótico não pode ser o
falo senão em nome do Outro. Há então alguém que o tem, que é aquele de
quem depende seu ser. Ele não tem, o que todos sabem que se chama o Com­
plexo de castração. Mas, se não há ninguém a tê-lo, ele o tem ainda muito
menos, naturalmente.
O desejo do neurótico, se me permitirem esta fórmula um tanto resumi­
da de alguma coisa que pretendo aqui fazê-los sentir, é na medida em que ele
está inteiramente suspenso, como todo o desenvolvimento da obra de Freud
nos indica, à essa garantia mítica da boa fé do significante, a que é preciso que
o sujeito se apegue para poder viver de outro modo do que na vertigem. Isso
nos permite chegar à fórmula que o desejo do neurótico..., -e todos sabem que
há uma relação estreita, histórica, entre a anatomia que o freudismo faz desse
desejo e alguma coisa de característico de uma determinada época que vive­
mos, e da qual não podemos saber em qual forma humana, vagamente vaticina-
da pelos profetas de vários tipos, ela terminará, ou tropeçará! Mas o que é certo
é que alguma coisa nos é sensível em nossa experiência, por pouco que hesite-

490
w w to fl) © ill o (I (

mos etn articulá-la, é que o desejo do neurótico, diria eu de uma forma


condensada, é aquilo que nasce quando não há Deus. Não me façam dizer o
que eu não disse, ou seja que a situação seja mais simples quando houver um!
A questão é esta: é que é no nível desta suspensão do Garante Supremo que é o
que esconde em si o neurótico, que se situa e se interrompe e se suspende, esse
desejo do neurótico.
Esse desejo do neurótico é o que não é um desejo senão no horizonte de
todos os seus comportamentos. Porque -e permitam-me fazer a vocês a comu­
nicação de uma dessas fórmulas que lhes permitem reconhecer o estilo de um
comportamento- diremos que com relação a esse desejo em que ele se situa, o
neurótico está sempre no horizonte dele mesmo, cujo advento ele prepara. O
neurótico, se me permitirem uma expressão que acredito calcada em todos os
tipos de coisas que vemos na experiência quotidiana, está sempre ocupado em
fazer suas bagagens, ou seu exame de consciência (é a mesma coisa) ou em
organizar seu labirinto (é a mesma coisa). Ele reúne suas bagagens, ele as es­
quece ou ele as deposita, mas trata-se sempre de bagagens para uma viagem
que ele nunca faz. Isto é absolutamente essencial a considerar se quisermos
perceber que há um completo contraste, diga o que disser sobre isso um pensa­
mento preguiçoso que se arrasta como uma lesma ao longo do fenômeno, que
sem querer juntar a isso em nenhum momento uma perspectiva, uma perspec­
tiva qualquer...
Trata-se de opor a isso a estrutura do desejo perverso. No perverso cer­
tamente trata-se também de uma hiância. Também pode se tratar, pois é isso
que é a relação fundamental, do sujeito [arrimahdo] seu ser no corte. Trata-se
de saber como no perverso este corte é vivido, é suportado. E aí, certamente, o
trabalho ao longo dos anos, dos analistas, à medida que suas experiências com
doentes perversos lhes permitem articular essas teorias algumas vezes contra­
ditórias, pouco ligadas umas às outras, mas sugestivas da ordem de dificuldade
com que estão lidando, é alguma coisa que podemos de alguma forma levar em
conta; quero dizer que podemos falar disso como de um material que, ele pró­
prio, trai certas necessidades estruturais que são aquelas propriamente ditas
que tentaremos formular aqui. Direi portanto que nessa tentativa que fazemos
aqui, de instituição da função real do desejo, podemos incluir até o discreto
delírio, até o delírio bem organizado ao qual foram levados aqueles que se
aproximaram desse assunto pela via desses comportamentos, quero dizer, os
psicanalistas.

491 '"
Vou tomar um exemplo disso. Acredito que atualmente, pode-se dizer,
que ninguém falou melhor, acredito eu, da perversão do que um homem muito
discreto embora pessoa muito bem-humorada, quero dizer, o Sr. Gillespie.
Aconselho aos que lêem em inglês, tirarão disso o maior proveito, o primeiro
estudo de Gillespie que abordou esse assunto a propósito do fetichismo, sob a
forma de um artigo, Contribution au fétichisme (outubro, 1940, I.J.P.)22’, e
depois as notas que ele dedicou à Analysis of sexual perversions221, no número
XXXIII (1952, 4a parte), e finalmente o último, que está no número dejulho-
outubro de 1956 (n. XXXVII, 4a e 5a partes): La Théorie générale des
perversions129. Alguma .coisa se desimpedirá para vocês, é que em suma al­
guém é tão livre, e pesa bastante bem os diversos caminhos pelos quais se
tentou abordar a questão, claramente mais complexa naturalmente do que se
podería imaginar em uma perspectiva sumária, aquela da perversão que seria
pura e simplesmente a pulsão com sua face descoberta... Isso não quer dizer
tampouco, como foi dito, que a perversão possa se resumir numa espécie de
abordagem que tende em suma a homogeneizá-la à neurose.
Vou direto ao que se quer exprimir, aquilo que nos servirá daqui em
diante de referência para questionar de diversas formas a perversão. A noção
de splitting é essencial para tanto, demonstrando já alguma coisa que poderia­
mos, nós, aplaudir (e não creiam que eu vá me precipitar nisso), como recobrindo
de alguma maneira a função, a identificação do sujeito com a fenda ou corte do
discurso -que é aquela em que ensino vocês a identificar o componente subje­
tivo do fantasma. Esta é justamente a espécie de precipitação que esse reconhe­
cimento implica se já não tiver sido oferecida e não tiver dado ocasião a um
tipo de descoberta um tanto envergonhada de si mesmo, em tantos escritores
que se ocuparam da perversão.
Tenho apenas para comprová-lo que referir-me ao terceiro caso ao qual
o Sr. Gillespie, no segundo dos artigos, se refere. É o caso de um fetichista.
Caso que esboçarei para vocês brevemente. Trata-se de um fetichista de trinta
anos cujo fantasma se revela após a análise como o de ser dividido em dois
pelos dentes da mãe cuja proa penetrante, se posso dizer, é aqui representada 227 228 229

227 GILLESPIE W. H.,X contribuition of the study offetischism, I.J.P., 1940, XXI, pp. 401-415.
228 Id., Notes on the analysis ofsexual perversions, I.J.P., 1952, XXXIII, pp. 397-402.
229 Id., The general theory ofsexual perversion, I.J ,P., 1956, XXXVII. pp. 396-403.

492
por seus seios mordidos, também pela fenda que, ele, acaba de penetrar e que
subitamente se transforma em uma criatura parecida com um gorila peludo230 231.
Em resumo, toda uma volta sobre uma decomposição-recomposição, que o Sr.
Gillespie chama de angústia de castração é referida a uma série de desenvolvi­
mentos em que intervém tanto a primitiva exigência da mãe ou o primitivo
desgosto da mãe, e por outro lado uma concepção, devo dizer não demonstra­
da, mas suposta afinal de contas, no fim da análise, pelo analista, concepção
kleiniana, com identificação à fenda.
Digamos que no final do artigo, o Sr. Gillespie escreve essa espécie de
resumo, ou de intuição assumida pela metade, interrogativa, questionante, mas
que é verdadeiramente em minha opinião bastante significativa do ponto extre­
mo ao qual é levado alguém que acompanha com atenção (quero dizer depois
do desenvolvimento no tempo, depois dessa explicação que somente a análise
nos fornece daquilo que se acha no fundo da estrutura perversa): «a configura­
ção do material, naquele momento, levou-nos a uma especulação sobre o fan­
tasma associado com esse split ego... ». O ego “refendido”, se aceitarmos esse
termo “refendido” utilizado com muita freqüência para falar do splitting sobre
o qual Freud de alguma forma terminou sua obra. Pois, como vocês o sabem eu
penso, o artigo inacabado de Freud sobre Le splitting de VegcP', a pena lhe
caiu das mãos se se pode dizê-lo, e ele o deixou inacabado -é esse artigo que
foi encontrado após sua morte. Essa refenda do ego conduziu o Sr. Gillespie a
uma especulação sobre o fantasma associado à refenda do ego e ao objeto
refendido. É a mesma palavra que podemos empregar se usarmos esse termo. É
o «split ego e o split object. Não é o órgão genital feminino (é Gillespie que se
interroga) o objeto fendido, o split object por excelência? E o fantasma de um
ego, de um split ego, não poderia provir de uma identificação com o órgão
genital que é uma fenda, o split female génitall Eu tenho em conta, diz ele, que
quando falamos de splitting do ego, da refenda do eu, e do objeto correspon­
dente, referimo-nos aos mecanismos mentais que presumimos no fenômeno».
Quero dizer com isso que fazemos ciência, que nos deslocamos em conceitos

230 "He penetrates her body with his penis: she then turns into a hairy gorilla-like creature with
great teeth with which she bites off his female nipples - that is, a talion revenge for his oral
attack on his mother's breast. [...J his mother's shoe kicking him and splitting up his anus and
rectum." (Notes on the analysis of sexual perversions, p.400/
231 FREUD S., «Die Ichspaltung im Abwehrvorgang» (1939), G. W. XVII,-pp.59-62; Splitting of
the ego in the defensive process (1940), Coll, papers, p.5.

493
•r »w <•

i icntllicofí, «|...| c <i IiiiiIiihiiiii pcitcncc ti um nível dilcrcntc do discurso, (a


oi i lein de intci tognçflo (|iic se coloca o Sr. Gillespie é interessante) -não obstante
os fantasmas, os nossos e não menos os de nossos pacientes, sempre devem
desempenhar um papel na maneira como conceitualizamos esses processos
subjacentes. Parece-nos, por consequência, que o fantasma de ser fendido em
dois pedaços exatamente como uma vulva é fendida, pode ser bastante apropri­
ado para o mecanismo mental do splitting do objeto e da introjeção do objeto
fendido que leva à refenda do ego. Está implícito, bem entendido, nesse fantas­
ma da vulva como um objeto fendido que foi uma vez intacto, e a refenda,
splitting, é o resultado de um ataque sádico, seja pelo pai ou porsi-mesmo»232.
Está bem claro que nos encontramos aí diante de alguma coisa que, para
um espírito tão prudente e comedido como o Sr. Gillespie, não pode deixar de
impressionar como alguma coisa na qual ele próprio joga o jogo de ir ao extre­
mo de um pensamento, reduzindo, de alguma maneira, a uma espécie de esque­
ma identificatório completamente primordial o que em seguida pode nos servir
de explicação para alguma coisa que é, no caso, nada menos que a própria
estrutura da personalidade do sujeito. Pois aquilo de que se trata ao longo de
todo o artigo, só é citado esse caso, é de alguma coisa tão sensível e que se
decompõe na transferência com os perversos, isto é splittings que são aquilo
que se chamaria no caso, correntemente, de verdadeiras divisões da personali­
dade. De alguma forma, reduzir a divisão da personalidade do perverso às duas
valvas de um órgão original da fantasmatização, é alguma coisa que é feito
neste caso para fazer sorrir, até mesmo confundir.
Porém para dizer a verdade aquilo que encontramos de fato, é isso que
deve ser apreendido em todos os níveis e sob formas extremamente diferentes
da formação da personalidade do perverso, é alguma coisa que já indicamos
por exemplo em um de nossos artigos233, aquele que fizemos a propósito do
caso de André Gide, estudado de forma notável pelo professor Delay234.
É alguma coisa que também se apresenta como uma oposição de dois
compartimentos identifícatórios. O ligado mais especialmente à imagem

232 GILLESPIE W. H., op.cit. p.400.


233 «Jeneusse de Gide ou La lettre et le désir», in Critique, n. 131, abril de 1958, retomado em
Écrits, p.739.
234 DELAY I., La jeneusse d'André Gide, Paris, 1956, Gallimard, 2° vol.

494
narcísica de si mesmo, i(a) por um lado, que é aquilo que vigora no ilustre
paciente do qual temos a confidência sob mil formas em uma obra (e sem
dúvida devemos levar em conta as dimensões dessa obra, pois ela acrescenta
alguma coisa ao equilíbrio do sujeito), mas não é a propósito disso que quero
desenvolver plenamente aquilo que indico a vocês. Porque apesar de tudo, du­
rante esse ano que está quase terminando, é preciso dar seguimento, lançar
adiante alguns pequenos fragmentos sobre aquilo que nos permitirá abordar
nossos resumos. E a relação que há no título que coloquei antes de qualquer
ourto, aqui especialmente saliente, justamente entre aquilo que esse esquema
articula, ou seja o desejo e a letra. O que isso quer dizer, a não ser que é nesse
sentido que se deve buscar, propriamente falando, na reconversão do desejo a
essa produção que se exprime no símbolo (o qual não é a super-realidade que
se acredita ser, mas, ao contrário, essencialmente feita de sua quebra, de sua
decomposição em partes significantes) é, digo eu, na reconversão do impasse
do desejo nessa materialidade significante que devemos situar, e isso se quiser­
mos dar um sentido conveniente ao termo, o processo da sublimação como tal.
Nosso André Gide, incontestavelmente, merece ser situado na categoria que
nos apresenta o problema da homossexualidade. E o que é que vemos? Vemos
essa dupla relação com um objeto dividido, enquanto reflexo desse rapaz sem '
graça, até mesmo “desgraçado”, como se expressava um escritor a esse respei­
to, que foi o pequeno André Gide na origem. E que nessa relação furtiva com
um objeto narcísico, a presença do atributo fálico é essencial.
Gide é homossexual. Mas é impossível, está aí o mérito dessa obra tê-lo
mostrado, é verdadeiramente impossível centrar, concentrar a visão de uma
anomalia sexual do sujeito se não nos colocarmos em face daquilo que ele
próprio testemunhou, essa fórmula: se, diria eu, vocês não sabem o que é o
amor de um uranista. E aí trata-se de seu amor por sua mulher, ou seja desse
amor hiperidealizado ao qual tento sem nenhuma pena nesse artigo reunir o
que, no livro de [Delay], é apontado com um grande cuidado, ou seja toda a
gênese pela qual esse amor por sua mulher se liga à sua relação com a mãe.
Não apenas com a mãe real tal como a conhecemos, mas com a mãe enquanto
ela encerra uma estrutura da qual ele sabe que vai ser o caso agora de desven­
dar a verdadeira natureza. Uma estrutura, diria eu, logo a seguir, em que a
presença do objeto mau, diria mais, a topografia desse objeto mau, é essencial.
Não posso me demorar em um longo desenvolvimento que retoma pou­
co a pouco, ponto por ponto, toda a história de André Gide, como sua obra, nas

495
diferentes etapas, teve o cuidado de resgatá-lo:

«Porém, para dizer a que ponto o instinto de uma criança pode errar,
quero indicar mais exatamente dois de meus temas de gozo: um der
les me foi fornecido bem inocentemente por Georges Sand, no atra­
ente conto de Gríbouille, que se atira n'água, em um dia em que está
chovendo muito, não para proteger-se da chuva, como seus malva­
dos irmãos tentaram nos fazer crer, mas para se proteger de seus
irmãos que debochavam. No rio, esforça-se e nada por algum tem­
po, depois abandona-se; e desde que ele se abandona, ele flutua, ele
se sente então transformar-se em um vegetal muito pequeno, leve e
estranho, brotam-lhe folhas por todo o corpo e logo depois a água do
rio depositou na margem o delicado ramo de carvalho no qual nosso
amigo Gríbouille se transformou. - Absurdo! (grita o escritor para
seu interlocutor) - Mas é bem isso o que eu estou contando; é a
verdade que digo. É verdade que digo, não o que me horrorize. E
sem dúvida, a avó de Nohant quase não pensava em escrever aí al­
guma coisa de repugnante; mas eu sou testemunha de que nenhuma
página de Afrodite poderá perturbar nenhum escolar tanto quanto
essa metamorfose de Gribouille em vegetal o pequeno ignorante que
eu era»236.

Acrescento voltando a isso, porque não se deve ignorar a dimensão, o


outro exemplo desse fantasma provocador de gozos primitivos que ele nos
oferece:

«Também havia, em uma estúpida pequena pecinha da Sra. de Ségur.


Les diners de Mademoiselle Justine, uma passagem na qual as do­
mésticas aproveitam a ausência dos patrões para fazer um banquete,
elas remexem em todos os armários; e regalam-se, enquanto Justine se
inclina e retira uma pilha de pratos do armário, às escondidas, o
cocheiro belisca-lhe a cintura; Justine, com cócegas, deixa cair a
pilha, desastre! toda a louça se quebra. O estrago me fazia pasmar »237.

N.d.T.: a nota 235 inexiste na edição francesa.


JJ6GIDE M.Sile grain nemeurt, Paris, 1954, Gallimard, in Journal, 1939-1949, Souvenirs, La
Pléiade,p.387.
217 Ibid.

496
Se for preciso mais para que apreendam a relação, o fantasma do segun­
do com essa qualquer coisa completamente primordial que se trata de articular
na relação do sujeito com o corte, citaria a vocês aquilo que é muito comum
diante de tais sujeitos, que um dos fantasmas fundamentais na iniciação
masturbatória também foi, por exemplo, o fantasma de uma revelação verbal
que concerne mais exatamente a alguma coisa que é a coisa imaginada no fan­
tasma: ou seja por exemplo, uma iniciação sexual como tal, tomada como tema
do fantasma enquanto existente.
A relação revelada no primeiro desses fantasmas do sujeito tem alguma
coisa de desatado e que progressivamente floresceu, tem algo de notável na
medida em que nos presentifica esse algo que é demonstrado por centenas de
observações analíticas, ou seja o tema agora já totalmente admitido e corrente,
a ordem de identificação do sujeito com o falo enquanto ele surge de uma
fantasmatização de um objeto interno à mãe. Essa é a estrutura geralmente
encontrada e que de momento não terá nenhuma dificuldade em ser aceita e
reconhecida como tal por qualquer analista.
O importante aqui, nós o veremos, é manifestado como tal no fantasma,
tomado no fantasma como suporte de alguma coisa que representa para o sujei­
to uma das experiências de sua vida erótica inicial, [de uma identificação], e o
que interessa, para nós, é saber mais exatamente de que tipo de identificação se
trata.
Como dissemos, a metonímia do neurótico é constituída essencialmente
por isso: é que ele não o é, no limite, isto é em um ponto que ele atingirá na
perspetiva fugidia de seus sintomas, senão por que ele não o tem, o falo, e é
isso que se trata de não revelar. Isto é, encontraremos nele, à medida que a
análise progride, uma crescente angústia de castração.
Há na perversão alguma coisa que podemos chamar de uma inversão do
processo da prova. O que precisa ser provado pelo neurótico, isto é a subsistên­
cia de seu desejo, toma-se aqui na perversão a base da prova. Vejam nisso algo
como esse tipo de retomo com honra que na análise chamamos de raciocínio
pelo absurdo. Para o perverso, a conjunção se faz, que une em um só termo,
nisso introduzindo essa ligeira abertura que permite uma identificação com o
outro bastante especial, que une em um único termo o “ele o é” e o “ele o tem”.
Basta para isso que esse “ele o tem” seja, no caso, “ela o tem” -ou seja o objeto
da identificação primitiva. Ele terá, o falo, o objeto de identificação primitiva,
seja este objeto em um caso transformado em fetiche ou, em outro caso, em

497
ídolo. Temos, então, o palmo todo de distância entre a forma fetichista desses
amores homossexuais e a forma idolátrica ilustrada por Gide. O laço é instituído,
se se pode dizer assim, no suporte natural.
Diriamos que a perversão se apresenta como uma espécie de simulação
natural do corte. É nisso que a intuição de Gillespie está aí como um índice. O
que o sujeito não tem, ele o tem no objeto. O que o sujeito não é, seu objeto
ideal o é. Em suma uma certa relação natural é tomada como matéria dessa
fenda subjetiva que é aquilo que se trata de simbolizar tanto na perversão como
na neurose. Ele é o falo, enquanto objeto interno da mãe, e ele o tem em seu
objeto de desejo. Eis aí aproximadamente o que vemos no homossexual mas­
culino.
Na homossexual feminina, lembrem-se do caso articulado por Freud, e
que analisávamos aqui em comparação com o caso de Dora. O que se passa na
virada em que a jovem paciente de Freud se precipita na idealização homosse­
xual? Ela é certamente o falo, mas como? Enquanto o objeto interno da mãe
também. Isso pode ser visto de uma forma muito nítida quando no ápice da
crise, lançando-se sobre a barreira da estrada de ferro, Freud reconhece que
nesse niederkommen, ele diz que há alguma coisa que é a identificação com
esse atributo materno. Ela se faz sê-lo nesse supremo esforço de dom a seu
ídolo que é seu suicídio. Ela cai como objeto, por quê? Para dar-lhe o que é o
objeto do amor, dar-lhe o que ela não tem, levá-la ao máximo da idealização,
dar-lhe esse falo objeto de sua adoração com o qual o amor homossexual se
identifica por essa pessoa singular que é o objeto de seus amores.
Se tentarmos levar isso a propósito de cada caso, se fizermos em cada
caso um esforço de interrogação, encontraremos aí aquilo que pretendo avan­
çar como uma estrutura. Vocês sempre podem [a] encontrar, não apenas na
perversão, mas especialmente nessa forma da qual se objeta, certamente com
pertinência, ser extremamente polimorfa, isto é a homossexualidade (princi­
palmente com o uso que damos a esse termo homossexualidade, quantas for­
mas diferentes a experiência com efeito nos apresenta dela!). Mas, enfim, con­
tudo, não havería nisso também interesse de que situássemos no nível da per­
versão alguma coisa que pudesse constituir o centro como tal da (admitindo-se
que todas as formas periféricas intermediárias entre a perversão e, por exem­
plo, digamos a psicose, a toxicomania, ou esta ou aquela forma de nosso cam­
po nosográfico) homossexualidade, comparada ao que na última vez por exem­
plo tentamos formular como sendo o ponto sobre o qual o desejo de desejo que

498
w (j, J.J çy çj

tem o neurótico apóia-se, ou seja essa relação com a imagem do outro graças
ao que pode se estabelecer todo esse jogo de substituição em que o neurótico
nunca tem que fazer a prova daquilo de que se trata, isto é que ele é o falo: seja
mesmo O y i(a).
Diremos que temos aqui algo que é uma certa relação da identificação
primitiva, I, com a identificação narcisista, especular, que é i(a). É conquanto
algo existe já, que uma esquize está já desenhada entre o acesso do sujeito
identificatório, simbólica, relação primordial com a mãe, e as primeiras
Verwerfungen, é conquanto isto se articula com a segunda identificação imagi­
nária do sujeito com sua forma especular, ou seja i(a), é isto que é utilizado
pelo sujeito para simbolizar aquilo que, com Gillespie, chamaremos a fenda.
Ou seja aquilo no que o sujeito intervém em sua relação fantasmática. E aqui o
falo é o elemento significante essencial na medida em que ele é o que surge da
mãe como símbolo de seu desejo, esse desejo do Outro que faz o pavor do
neurótico, esse desejo em que ele se sente correndo todos os riscos. É isso que
constitui o centro ao redor do qual irá se organizar toda a construção do perverso.
E no entanto, esse desejo do Outro é certamente o que a experiência
também nos mostra em seu caso, de mais recuado, de mais difícil acesso. É
mesmo isto que faz a profundidade e a dificuldade dessas análises que nos
foram permitidas, do acesso primitivo que foi dado pela via da experiência
infantil, das construções e das especulações ligadas especialmente às primiti­
vas identificações objetais.
Evidentemente se Gide foi oferecido, às suas custas, nada diz que a em­
presa poderia ser levada tão longe. Gide não foi oferecido à exploração analíti­
ca. No entanto, por mais superficial que, afinal de contas, seja uma análise que
é desenvolvida apenas na dimensão dita sublimada, temos sobre esse ponto
estranhas indicações. Acredito que ninguém que eu saiba deu seu valor a esse
pequeno traço que aparece como uma singularidade de comportamento que
indica quase por seu acento sintomático isso do que se trata, ou seja o além do
personagem materno, ou mais exatamente seu interior, seu próprio coração.
Pois esse coração da identificação primitiva se acha no fundo da estrutura do
próprio sujeito perverso. Se, no neurótico, o desejo está no horizonte de todas
as suas demandas longamente desdobradas e literalmente intermináveis, pode-
se dizer que o desejo do perverso está no coração de todas as suas demandas. E
se o lermos em seu desenvolvimento incontestavelmente vinculado a exigênci­
as estéticas, nada no entanto poderá impressionar mais do que, diría eu, a mo-

499
dulação dos temas ao redor dos quais ele se sucede. Vocês podem perceber que
o que surge desde as primeiras linhas são as relações do sujeito com uma visão
fragmentada, um caleidoscópio que ocupa as seis ou sete primeiras páginas do
volume. Como não poderíam sentir-se levados mais longe na experiência
fragmentadora? Porém há mais: a noção, a percepção que ele tem em tal mo­
mento e que ele mesmo articula no fato de haver sem dúvida, diz ele, a realida­
de e os sonhos, mas que há também «uma segunda realidade».
E mais longe ainda, é aí que quero chegar, é o mais ínfimo dos índices,
mas todos sabem que para nós são estes os mais importantes, ele nos conta a
história dita do nó na madeira de uma porta. Na madeira desta porta, em algum
lugar de Uzès, há um buraco, porque um nó foi extraído. E o que tem no fundo
«é uma bolinha (lhe disseram) que seu pai tinha colocado ali quando tinha a
sua idade». E ele nos conta, para a admiração dos amantes de “caracteres”, que
a partir dessas férias, ele passou um ano a deixar crescer a unha do dedo míni­
mo para que estivesse bastante comprida no próximo encontro, para retirar
essa pequena bola do buraco da madeira. É a isso que de fato ele chegará, para
não ter mais, em seguida, nas mãos, que um objeto pardacento que ele teria
vergonha de mostrar a alguém. Mediante o que (eu creio que ele o diz) ele o
recoloca em seu lugar, corta sua unha e não confidencia isso a ninguém -exceto
a nós, a posteridade que irá imortalizar essa história238.
Creio que é difícil encontrar uma melhor introdução à noção rejeitada
em uma magnífica [...] embora seja uma perseverança de alguma coisa que nos
apresenta a figura da forma sob a qual se apresenta a relação do sujeito perver­
so com o objeto interno. Um objeto que está no coração de alguma coisa. A
relação deste objeto como tal, enquanto dimensão imaginária do desejo, na
caso, do desejo da mãe, de ordem primordial, que vai desempenhar o papel
decisivo, o papel simbolizador, central, que permite considerar que aqui, no
nível do desejo, o perverso se identifica com a forma imaginária do falo.
E sobre isso que iremos, na próxima vez, fazer nossa última aula sobre o
Lição 27
01 de julho de 1959

Nós chegamos ao fim desse ano que eu consagrei, a meus riscos e peri­
gos tanto quanto aos de vocês, a esta questaà'do desejo e de sua interpretação.
Vocês puderam ver de fato que é sobre a questão do lugar do desejo na econo­
mia da experiência analítica que me mantive sem disso mover-me, porque pen­
so que é daí que deve partir toda interpretação particular de qualquer desejo.
Isto não foi, este lugar, fácil de cernir. É por isto que hoje eu gostaria simples­
mente, como conclusão, de indicar-lhes os grandes termos, os pontos cardeais
em relação aos quais se situa aquilo a que chegamos neste ano, assim espero,
fazendo-lhes sentir a importância da precisão a dar a esta função do desejo
como tal.
Vocês sabem, a menor experiência que possam ter dos trabalhos analíti­
cos modernos, e especialmente do que é constituído por exemplo por uma ob­
servação de análise, lhes mostrará como traço constante... (falo de uma obser­
vação qualquer que se apraz comunicar no momento analítico que vivemos e
que já começou há uns vinte anos), são casos que se chamam, em relação às
neuroses típicas da antiga literatura, “caracteres neuróticos”, casos limites quanto
à neurose. O que encontramos no modo de abordar o assunto? Li um certo
número deles nestes últimos tempos, para situar, em que ponto está a cogitação
analítica concernente ao que faz o essencial do progresso implicado pela expe­
riência?
Grosso modo, pode-se dizer que com uma surpreendente constância, o
estado atual das coisas, isto é, no momento de análise em que nós estamos, é

501
dulação dos temas ao redor dos quais ele se sucede. Vocês podem perceber que
o que surge desde as primeiras linhas são as relações do sujeito com uma visão
fragmentada, um caleidoscópio que ocupa as seis ou sete primeiras páginas do
volume. Como não poderíam sentir-se levados mais longe na experiência
fragmentadora? Porém há mais: a noção, a percepção que ele tem em tal mo­
mento e que ele mesmo articula no fato de haver sem dúvida, diz ele, a realida­
de e os sonhos, mas que há também «uma segunda realidade».
E mais longe ainda, é aí que quero chegar, é o mais ínfimo dos índices,
mas todos sabem que para nós são estes os mais importantes, ele nos conta a
história dita do nó na madeira de uma porta. Na madeira desta porta, em algum
lugar de Uzès, há um buraco, porque um nó foi extraído. E o que tem no fundo
«é uma bolinha (lhe disseram) que seu pai tinha colocado ali quando tinha a
sua idade». E ele nos conta, para a admiração dos amantes de “caracteres”, que
a partir dessas férias, ele passou um ano a deixar crescer a unha do dedo míni­
mo para que estivesse bastante comprida no próximo encontro, para retirar
essa pequena bola do buraco da madeira. É a isso que de fato ele chegará, para
não ter mais, em seguida, nas mãos, que um objeto pardacento que ele teria
vergonha de mostrar a alguém. Mediante o que (eu creio que ele o diz) ele o
recoloca em seu lugar, corta sua unha e não confidencia isso a ninguém -exceto
a nós, a posteridade que irá imortalizar essa história238.
Creio que é difícil encontrar uma melhor introdução à noção rejeitada
em uma magnífica [...] embora seja uma perseverança de alguma coisa que nos
apresenta a figura da forma sob a qual se apresenta a relação do sujeito perver­
so com o objeto interno. Um objeto que está no coração de alguma coisa. A
relação deste objeto como tal, enquanto dimensão imaginária do desejo, na
caso, do desejo da mãe, de ordem primordial, que vai desempenhar o papel
decisivo, o papel simbolizador, central, que permite considerar que aqui, no
nível do desejo, o perverso se identifica com a forma imaginária do falo.
E sobre isso que iremos, na próxima vez, fazer nossa última aula sobre o
desejo, este ano.

238 GIDE A., op.cit., p.386.

500
Lição 27
01 de julho de 1959

Nós chegamos ao fim desse ano que eu consagrei, a meus riscos e peri­
gos tanto quanto aos de vocês, a esta questãcTdo desejo e de sua interpretação.
Vocês puderam ver de fato que é sobre a questão do lugar do desejo na econo­
mia da experiência analítica que me mantive sem disso mover-me, porque pen­
so que é daí que deve partir toda interpretação particular de qualquer desejo.
Isto não foi, este lugar, fácil de cernir. E por isto que hoje eu gostaria simples­
mente, como conclusão, de indicar-lhes os grandes termos, os pontos cardeais
em relação aos quais se situa aquilo a que chegamos neste ano, assim espero,
fazendo-lhes sentir a importância da precisão a dar a esta função do desejo
como tal.
Vocês sabem, a menor experiência que possam ter dos trabalhos analíti­
cos modernos, e especialmente do que é constituído por exemplo por uma ob­
servação de análise, lhes mostrará como traço constante... (falo de uma obser­
vação qualquer que se apraz comunicar no momento analítico que vivemos e
que já começou há uns vinte anos), são casos que se chamam, em relação às
neuroses típicas da antiga literatura, “caracteres neuróticos”, casos limites quanto
à neurose. O que encontramos no modo de abordar o assunto? Li um certo
número deles nestes últimos tempos, para situar, em que ponto está a cogitação
analítica concernente ao que faz o essencial do progresso implicado pela expe­
riência?
Grosso modo, pode-se dizer que com uma surpreendente constância, o
estado atual das coisas, isto é, no momento de análise em que nós estamos, é

501
dominado, seja dc que lado for que ela tome suas palavras de ordem, pela
relação de objeto. Ela converge em direção à relação de objeto. O que, sob esta
rubrica, se ata à experiência kleiniana se apresenta, aliás, mais como um sinto­
ma do que como um centro de difusão (quero dizer uma zona onde foi particu­
larmente aprofundado tudo que a isso se relaciona). Mas fundamentalmente,
um qualquer dos outros centros de organização do pensamento analítico que
estruturam a pesquisa não está dele tão fundamentalmente afastado. Pois a re­
lação de objeto vem dominar toda a concepção que fazemos do progresso da
análise. Não está aí uma observação que seja das menos supreendentes do que
aquelas que se nos oferecem nesta ocasião. Entretanto, no concreto de uma
observação relatada com fins de ilustração de uma estrutura qualquer, no qual
se situa o campo de nosso objeto nosológico, a análise parece continuar duran­
te um certo tempo sobre uma linha do que se poderia chamar de “normativação
moral izan te”.
Não digo que é nesse sentido que se passam diretamente as intervenções
do analista (depende do caso), mas é nessa perspectiva que o próprio analista
toma suas referências. A maneira mesma com que ele articula as particularida­
des da posição do sujeito em relação ao que o cerca, a esse objeto, serão sempre
aquelas de uma apreciação dessa apreensão do objeto pelo sujeito que ele tem
em análise, e as deficiências dessa apreensão do objeto em função de uma
normalidade suposta dessa aproximação do outro como tal. Onde, em suma,
nos será mostrado que o espírito do analista se detém essencialmente sobre as
degradações dessa dimensão do outro que, em suma, é demarcado como estan­
do a todo momento desconhecido, esquecido, destituído no sujeito de sua pró­
pria condição de sujeito autônomo independente, do outro puro, do outro abso­
luto. E só! E uma demarcação que vale tanto quanto outra; para o que é tomado
essencialmente, que é concedido em toda vida, [não mais negar] esta aprecia­
ção do outro em sua autonomia, seu relevo.
O que é surpreendente não é tanto isto no entanto, com todos os pressu­
postos culturais que isto implica. E uma adesão implícita ao que se pode cha­
mar de um sistema de valores que, por ser implícito, não está aí menos presen­
te. O que é surpreendente é, se pode-se dizer, a precipitação de uma certa vira­
da que é que, após ter, com o sujeito, elaborado longamente as insuficiências
de sua apreensão afetiva quanto ao outro, geralmente vemos (seja que isto tra­
duza diretamente não sei que virada da análise concreta, seja simplesmente
por uma espécie de pressa em resumir o que parece ao analista os últimos

502
termos da experiência), nós vemos toda uma articulação essencialmente
moralizante da observação cair por assim dizer bruscamente em uma espécie
de andar inferior e encontrar esse último termo de referência em uma série de
identificações extremamente primitivas: aquelas que, não importa de que modo
se as intitule, se aproximam sempre mais ou menos desta noção de bons e maus
objetos, internos, introjetados, ou externos, externalized, projetados. Há sem­
pre alguma inclinação kleiniana nessa referência às experiências de identifica­
ção primordial. E o fato de que isso seja mascarado em outras ocasiões pela
valorização dos últimos estertores aos quais são atribuídas as fixações -mesmo
que se as chame nessa ocasião nos termos mais antigos, nos termos de referên­
cia instintual, nas relações por exemplo a um sadismo oral como tendo profun­
damente desviado a relação edipiana- e que o sujeito motive em última instân­
cia esse acidente do drama edipiano, a identificação edipiana, é sempre a algu­
ma coisa da mesma ordem que se trata de referir-se no último termo. Ou seja
essas identificações últimas nas quais referimos, em suma, todo o desenvolvi­
mento do drama subjetivo, seja na neurose, ou até mesmo nas perversões; ou
seja essas identificações que deixam em uma profunda ambiguidade a noção
mesma da subjetividade. O sujeito aparece aí essencialmente como identifica­
ção a isso que ele pode considerar como sendo eie mesmo, mais ou menos. E a
terapêutica se apresenta como um rearranjo dessas identificações no decorrer
de uma experiência [...] que toma seu princípio em uma referência à realidade,
no que o sujeito tem em suma que aceitar ou recusar dele mesmo, em algo que
desde então toma um aspecto que pode parecer ser extremamente casual já que
afinal de contas esta referência à realidade nada mais é que uma realidade. E a
realidade suposta pelo analista afinal de contas, que retoma sob uma forma
desta vez ainda mais implícita, ainda mais mascarada, pode ser completamente
escabrosa, [e] sobretudo implicar uma normatividade ideal, que é propriamen­
te falando aquela dos ideais do analista, como sendo a medida derradeira à qual é
solicitada aderir a conclusão do sujeito, que é uma conclusão identificatória: “Sou
finalmente o que reconheço ser em mim, o bom e o bem; aspiro a me conformar
a uma normatividade ideal que, por escondida, por implícita que seja, é assim
mesmo aquela que após tantos desvios eu reconheço para me ser designada”.
Por uma sutil, mais sutil que uma outra mas afinal de contas não diferente, ação
sugestiva, encontra-se aqui nessa relação, a ação, a interação, analisada.
O que me esforço para indicar aqui nesse discurso que segui diante de
vocês nesse ano, é em que essa experiência -por ter sido assim organizada por

503
uma espécie de deslizamento progressivo a partir da indicação freudiana pri­
mordial- é uma experiência que contém em si de maneira mais e mais masca­
rada a questão que, acredito, é a questão essencial sem a qual não há justa
apreciação de nossa ação analítica, e que é a do lugar do desejo. O desejo, tal
como o articulamos, tem esse efeito de trazer ao primeiro plano de nosso inte­
resse, de uma maneira, ela, não ambígua, mas verdadeiramente crucial, a no­
ção disso com o que temos que nos haver que é de uma subjetividade.
O desejo é ou não subjetividade? Esta questão não aguardou a análise
para ser colocada. Ela aí está desde sempre, desde a origem do que se pode
chamar a experiência moral. O desejo é ao mesmo tempo subjetividade, ele é o
que está no coração mesmo de nossa subjetividade, o que é o mais essencial­
mente sujeito. Ele é ao mesmo tempo algo que é também o contrário, que se lhe
opõe como uma resistência, como um paradoxo, como um núcleo rejeitado,
como um núcleo refutável. É a partir daí, insisti nisso várias vezes, que toda a
experiência ética se desenvolveu em uma perspectiva ao termo da qual nós
temos a fórmula enigmática de Spinoza que «O desejo, cupiditas, é a essência
mesma do homem...»239. Enigmática na medida em que sua fórmula deixa aberto
isto, se o que ela define é exatamente o que nós desejamos ou o que é desejável,
deixa aberta a questão de saber se isso se confunde ou não. Mesmo na análise,
a distância entre o que é desejado e o que é desejável está plenamente aberta. E
a partir daí que a experiência analítica se instaura e se articula. O desejo não é
simplesmente exilado, rechaçado ao nível da a^ão e do princípio de nossa ser­
vidão, o que ele é até aí. Ele é interrogado corno sendo a chave mesma, ou a
mola em nós, de toda uma série de ações e de comportamentos que são com­
preendidos como representando o mais profundo de nossa verdade. Está aí o
ponto máximo, o ponto de acme donde a cada instante a experiência tende a
recair.
Será, como se pôde crer durante muito tempo, que este desejo do qual se
trata é um puro e simples recurso a um jorro vital? Está bem claro que não é
nada disso pois, desde o primeiro soletrar de nossa experiência, o que vemos é
que à medida mesmo que nós aprofundamos esse desejo, nós o vemos menos
confundir-se com este élan puro e simples. Ele se decompõe, se desarticula em
algo que se apresenta como sempre mais distante de uma relação harmônica.

m SPINOSA, op. cit.

504
Nenhum desejo nos aparece na remontagem regressiva que a experiência ana­
lítica constitui; mais, ele nos aparece como um elemento problemático, disper­
so, polimorfo, contraditório e, para dizer tudo, bem longe de toda coaptação
orientada.
E portanto a essa experiência do desejo que se trata de nos referirmos
como a algo que não poderiamos deixar sem aprofundá-lo, a ponto que não
possamos dar algo que nos fixe sobre seu sentido, que nos evite de nos desviar
do que ai há de absolutamente original, de absolutamente irredutível. Tudo,
certamente, na maneira como, eu disse, se articula a experiência analítica, é
feito, este sentido do desejo, para nô-lo encobrir.
Esta desobstrução das vias em direção ao objeto na experiência da trans­
ferência nos mostra de alguma maneira que o negativo do qual se trata (a expe­
riência da transferência, se nós a definíssemos como uma experiência de repe­
tição obtida por uma regressão ela mesma dependente de uma frustração) dei­
xa de lado a relação fundamental dessa frustração com a demanda. Não existe
no entanto outra na análise. E somente esta maneira de articular os termos nos
permitirá ver que a demanda regressa porque a demanda elaborada, tal como
ela se apresenta, na análise, permanece sem resposta.
Mas desde já, uma análise, por um desvio, engaja-se na resposta para
guiar o analisado em direção ao objeto! De onde saem todos os tipos de idéias
incríveis das quais um dos exemplos que critiquei muitas vezes é constituído
por esta “regulagem da distância” da qual falei porque talvez ela desempenha
mais um papel aqui no contexto francês, essa regulagem da distância do objeto
que, se posso dizer, por si só mostra bastante em que tipo de impasse contradi­
tório se engaja, em uma certa via, a análise, quando ela se centra estreitamente
na relação de objeto. Conquanto seguramente toda relação, seja ela qual for,
seja como for que devamos supor-lhe a normal, parece bem pressupor a manu­
tenção, apesar do que se diz, de uma certa distância, que a bem dizer, podemos
aí reconhecer uma espécie de aplicação curta, e na verdade tomada à contra-
senso, de algumas considerações sobre a relação do estádio do espelho, sobre a
relação narcisica enquanto tal, que constituíram para autores que colocam em
primeiro plano a referência da “ação analítica”, que lhes serviram de bagagem
teórica numa época em que não puderam situar o lugar disto em referências
mais largas, de fato toda espécie de referência da experiência analítica tem
qualquer coisa que, no último termo, se apoiaria sobre a pretensa realidade, da
experiência analítica tomada com medida, como padrão do que se trata de re-

505
<luzir na relação transferenciai. Tudo o que também colocará, no lugar comple­
mentar dessa ação de redução analítica, uma mais ou menos colocada, mais ou
menos analisada, mais ou menos criticada, distorção do eu [moi] com a noção
dessa [distância] em referência a essa distorção do eu [moi], em referência ao
que subsiste nesse eu de possível aliado da redução da análise a uma realidade.
Tudo o que se organiza nesses termos só faz restaurar esta separação do médi­
co e do doente sobre a qual é fundada toda uma nosografia clássica -o que em
si não é de nenhuma maneira objeção. Mas também a inoperância de uma tera­
pêutica subjetiva que é a da psicoterapia pré-analítica entregando, se assim
pode-se dizer, à norma onipotente do julgamento do médico aquilo de que se
trata na experiência do paciente, fazendo da relação do médico com o paciente
isto, ou seja submetendo-a a uma estruturação subjetiva que é a de um seme­
lhante seguramente, mas de um semelhante engajado no erro, com tudo o que
isso comporta de distância (precisamente!) e de desconhecimento impossível
de reduzir.
O que a análise instaura é uma estruturação intersubjetiva que se distin­
gue estritamente da precedente nisto que por afastado que possa estar o sujeito,
paciente, de nossas normas -e isto até os limites da psicose, da loucura-, nós o
supomos não como este semelhante ao qual estamos ligados por laços de cari­
dade, de respeito de nossa imagem.
Sem dúvida eis aí uma relação que tem seu fundamento quanto a esse
algo que constitui um progresso seguramente, que constituiu um progresso e
um progresso histórico no modo de se comportar diante do doente mental. Mas
o passo que surge, decisivo, instaurado pela análise: nós o consideramos essen­
cialmente, [por] sua natureza, na sua relação com ele, como um sujeito falante,
isto é como tal, tomado então exatamente como nós, qualquer que seja sua
posição, nas consequências e riscos de uma relação à [afãnise]? Isto basta para
mudar inteiramente nossas relações com este sujeito passivo na análise pois a
partir disto, o desejo situa-se além do sentimento de um impulso obscuro e
radical como tal. Pois se nós consideramos esse impulso, a pulsão, o grito, esse
impulso para nós só vale, só existe, só é definido, só é articulado por Freud
enquanto tomado numa sequência temporal de uma natureza especial, esta
sequência que nós chamamos a cadeia significante e cujas propriedades, as
incidências sobre tudo com o que temos que nos haver como impulso, como
pulsão, são que este impulso ela o desconecta essencialmente de tudo que o
define, e o situa como vital; ela o toma essencíalmente separável de tudo que o

506
assegura na sua consistência vivente. Ela torna possível, como o articula desde
o início a teoria freudiana, que o impulso seja separado de sua fonte mesma, de
seu objeto, de sua tendência, se assim pode-se dizer. Ela está separada dela
mesma, ela é'essencialmente reconhecível nesta tendência mesma que ela é
sob uma forma inversa. Ela é primitivamente, primordialmente decomponível,
decomposta enfim em uma decomposição significante.
O desejo não é esta sequência. Ele é uma localização do sujeito em rela­
ção a essa sequência em que ele se reflete na dimensão do desejo do Outro.
Tomemos um exemplo, tomemo-lo sob a forma mais primitiva do que nos é
oferecido pela experiência analítica, a relação do sujeito com o recém chegado
na constelação familiar. O que chamamos “uma agressão” nesta ocasião não é
uma agressão, é um anseio de morte, isto é, por mais inconsciente que o supo­
nhamos, é algo que se articula como: “que ele morra!”. E é algo que só se
concebe no registro da articulação, isto é ai onde os significantes existem. É na
medida em que é em termos significantes, por mais primitivos que os suponha­
mos, da agressão vis-à-vis do semelhante rival, que a agressão do semelhante
rival se articula. [Nos animais], o pequeno semelhante dá-se a agressões,
mordisca-os, empurra-os, até rejeita-os para fora do recinto onde podem ace­
der ao seu alimento. A passagem da rivalidade primitiva no inconsciente está
ligada ao fato de que alguma coisa que, por mais rudimentar que a suponha­
mos, se articula, que não é essencialmente diferente, por sua natureza, da arti­
culação falada: “que ele morra!”. E por isso que este “que ele morra!” pretende
permanecer abaixo do “como ele é bonito!”, ou do “eu o amo!” que é o outro
discurso que se superpõe ao precedente. E no intervalo desses dois discursos
que se situa aquilo com o que temos que nos haver como desejo, é no intervalo
que se constitui, se quiserem, o que a dialética kleiniana articulou como sendo
o objeto mau, no qual nós vemos como podem vir convergir a pulsão rejeitada
por um lado, e o objeto introjetado numa ambiguidade semelhante. Entretanto
é pelo modo como se estrutura essa relação no intervalo, esta função imaginá­
ria enquanto apensa, que ela alcança as duas cadeias do discurso, a cadeia
recalcada e a cadeia patente manifesta, é aqui que somos chamados essencial­
mente a precisar o que convém levantar na articulação para saber a que nível se
situa o desejo.
O desejo, vocês puderam em algumas ocasiões pensar, sugerir, que dele
dou aqui uma concepção falocêntrica. Claro, é bem evidente que o falo aí de­
sempenha um papel absolutamente essencial, mas como compreender verda-

507
deiramente esta função do falo a não ser no interior das referências ontológicas
que são as que aqui tentamos introduzir! .
O falo, como conceber o uso que dele faz a Sra. Melanie Klein? Quero
dizer ao nível mais primordial, mais arcaico da experiência da criança, ou seja
no momento em que a criança tomada em tais ou tais dificuldades do desenvol­
vimento que podem ser no caso severas, na primeira virada, a Sra. Melanie
Klein interpretar-lhe-á este pequeno brinquedo que ele manipula e que vai fazê-
lo tocar tal outro elemento da parte do jogo com o qual a experiência se instau­
ra, dizendo-lhe “isto é o pênis do papai”. O fato é que ninguém pode permane­
cer, contanto que venha de fora, numa tal experiência, [sem ficar} algo descon­
certado com o destemor perfeitamente brutal da intervenção. Mas ainda mais,
pelo fato de que afinal de contas isto funciona! Quero dizer que o sujeito que
em certos casos seguramente pode resistir -mas se ele resiste è, seguramente,
como nem Melanie Klein duvida que algo está aí em jogo que não se deve nem
um pouco desesperar quanto à compreensão futura. E sabe Deus se ela se per­
mite ocasionalmente (relataram-me experiências, vistas todas de fora, mas re­
latadas de um modo muito fiel) insistir!
E claro que o símbolo fálico entra em jogo neste período ultra precoce
como se o sujeito só esperasse por isso. Que algumas vezes a Sra. Melanie
Klein, na ocasião, justifica esse falo como sendo o modelo de um simples [ma­
milo] mais manejável e mais cômodo, podemos ver aí algo como uma singular
petição de princípio. O que em nosso registro, no nosso vocabulário permane­
ce, e justifica tal intervenção, só pode se exprimir nesses termos: é que em todo
caso o sujeito só aceita, e isto é manifesto, este objeto do qual na maioria das
vezes ele só tem a experiência mais indireta, como significante; e que é como
significante que a incidência desse falo se justifica da maneira mais clara. Se o
sujeito o toma por tal na idade em que ele está, talvez a questão fique
indiscemível. Mas seguramente se Melanie Klein o toma, este objeto, que ela
saiba ou não, é porque não dispõe de melhor como significante do desejo en­
quanto é o desejo do desejo do Outro. Se há alguma coisa que o falo significa,
quero dizer, ele, na posição do significante, é justamente isso, é o desejo do
desejo do Outro. E é por isso que ele tomará seu lugar privilegiado ao nível do
objeto.
Mas acredito que longe de nos atermos a esta “posição falocêntricà”,
como estes se exprimem (aqueles que se atêm à aparência do que estou articu­
lando), isto permite-nos ver onde está o verdadeiro problema. O verdadeiro

508
problema é este, é que o objeto com o qual temos que nos haver desde a ori­
gem, concernindo ao desejo, longe de ser em nenhum grau este objeto pré-
formado, este objeto da satisfação instintual, este objeto destinado a satisfazer,
em sei lá qual pré-formação vital, o sujeito como seu complemento instintual,
o objeto do desejo não é absolutamente distinto disto: ele é o significante do
desejo do desejo.
O objeto como tal, objeto a, se vocês querem, do grafo, é como tal o
desejo do Outro na medida, diria eu, em que chega, se esta palavra tem sentido,
ao conhecimento de um sujeito inconsciente -ou seja, que ele está, é claro, em
relação a este sujeito, na posição contraditória (o conhecimento de um sujeito
inconsciente), o que não é impensável, mas é alguma coisa de aberto. Isto quer
dizer que, se ele chega a algo do sujeito inconsciente, chega enquanto ele é
voto de reconhecê-lo, que ele é significante de seu reconhecimento. E é isto
que isto quer dizer: que o desejo não tem outro objeto senão o significante de
seu reconhecimento.
O caráter do objeto enquanto ele é o objeto do desejo, devemos pois
buscá-lo aí onde a experiência humana nô-lo designa, nô-lo indica sob sua
forma a mais paradoxal, eu nomeei o que chamamos comumente o fetiche, este
algo que está sempre mais ou menos implícito em tudo que faz comumente os ■
objetos de trocas inter-humanos, mas aí sem dúvida mascarado pelo caráter
regular ou regularizado dessas trocas.
Falou-se do lado fetiche da mercadoria, e aliás nada há aí que seja sim­
plesmente um fato de homofonia. Quero dizer [por] “homofonia”, há uma co­
munidade de sentidos no uso da pafàvra fetiche mas, para nós, o que se deve
colocar em primeiro plano, o acento que devemos conservar concernente ao
objeto do desejo, é este algo que o define de inicio e antes de tudo como sendo
emprestado do material significante.
«Eu vi o Diabo a noite passada, disse em algum lugar Paul-Jean Toulet,
e por baixo de sua pele...»240, passavam seus dois... Isso termina por «os frutos
da Ciência não caem todos de uma só vez!» Bem, que para nós também não
caiam todos nesta ocasião, e que nós nos apercebamos que o que importa não é
tanto os frutos escondidos que a miragem apresenta ao desejo -mas precisa-

240 «...Não é fácil concluir se é preciso dizer ela ou ele», in Les Contrerimes, Paris, 1921,
Gallimard-Poésie, p.62.

509
mente a pele. 0 fetiche se caracteriza nisto, que ele é a pele, a borda, a franja, o
penduricalho, a coisa que esconde, a coisa que se sustenta precisamente nisto,
que nada é mais designado para a função de significante daquilo do que se
trata, ou seja do desejo do desejo do Outro. Isto é, aquilo com o que a criança
tem que haver-se primitivamente, na sua relação com o sujeito da demanda, é a
saber que ela está fora da demanda, este desejo da mãe que como tal ela não
pode decifrar, senão da maneira mais virtual, através deste significante que
nós, analistas, seja o que for que façamos no nosso discurso, nós relacionare­
mos a essa medida comum, a este ponto central da partida significante que é na
ocasião o falo. Pois ele não é nada mais que esse significante do desejo do
desejo. O desejo não tem outro objeto senão o significante de seu reconheci­
mento. E é nesse sentido que ele nos permite conceber o que acontece, isto de
que somos nós mesmos os tolos quando percebemos que nessa relação sujeito-
objeto, ao nível do desejo, o sujeito passou para o outro lado. Ele passou ao
nível de a, justamente na medida em que neste último termo, ele mesmo não é
mais que o significante deste reconhecimento, ele não é mais que o significante
do desejo do desejo.
Mas justamente o que importa manter é a oposição a partir da qual esta
troca se opera, ou seja o agrupamento $ diante de a, de um sujeito sem nenhu­
ma dúvida imaginário mas no sentido mais radical, no sentido que ele é o puro
sujeito da desconexão, do corte falado, na medida em que o corte é a escansão
essencial em que se edifica a fala. O agrupamento, digo eu, deste sujeito com
um significante que é o quê? Que nada mais é do que o significante do ser ao
qual é confrontado o sujeito, enquanto este ser é ele mesmo marcado pelo
significante. Isto é, que o a, o objeto do desejo, na sua natureza é um resíduo, é
um resto. Ele é o resíduo que deixa o ser ao qual o sujeito falante é confrontado
como tal, a toda demanda possível.
E é por aí que o objeto junta-se ao real. E por aí que participa dele. Digo
o real, e não a realidade, pois a realidade é constituída por todas as rédeas que
o simbolismo humano, de maneira mais ou menos perspicaz, passa pelo pesco­
ço do real na medida em que delas faz os objetos de sua experiência. Notemos,
o próprio dos objetos da experiência, é precisamente deixar de algum lado
(como diria o Sr. de La Palisse) tudo que no objeto escapa dela. E por isso que,
contrariamente ao que se crê, a experiência, a pretensa experiência, tem dois
gumes. Isto é, que quando vocês se fixam sobre a experiência para resolver
uma situação histórica por exemplo, as chances de erro e de falta grave são tão

510
grandes quanto do contrário, pela simples razilo que, por deiiniçáo, se vocês se
fixam sobre a experiência, é justamente por aí que vocês desconhecem o ele­
mento novo que existe na situação.
O objeto do qual se trata, na medida em que ele junta-se ao real, dele
participa nisto de que o real ali se apresenta justamente como o que resiste à
demanda, o que chamarei o inexorável. O objeto do desejo é o inexorável como
tal, e se ele junta-se ao real, esse real ao qual eu fiz alusão no momento em que
fazíamos a análise de Schreber, é sob essa forma do real que ele melhor encarna,
esse inexorável, essa forma do real que se apresenta por retomar sempre ao
mesmo lugar. E é por isso que nós vimos seu protótipo nos astros, curiosamen­
te. Como se explicaria de outra maneira a presença, na origem da experiência
cultural, desse interesse pelo objeto verdadeiramente o menos interessante que
existe para seja o que for de vital, ou seja, as estrelas! A cultura e a posição do
sujeito como tal no domínio do desejo, conquanto que este desejo se instaure,
instituem-se fundamentalmente na estrutura simbólica com tal. O que se expli­
ca pelo fato de que de toda a realidade, é o mais puramente real que seja. A
partir de uma só condição, é que o pastor na sua solidão, o que primeiro come­
ça a observar aquilo que não tem outro interesse senão de ser situado como
retomando sempre ao mesmo lugar, ele o situa em relação aquilo com o que ele
se institui radicalmente como objeto, em relação a uma forma, tão primitiva
quanto vocês podem supô-la, de fenda que permite situá-lo quando ele retoma
a este mesmo lugar.
Eis, portanto, onde chegamos, é para colocar que o objeto do desejo é
para ser definido fundamentalmente como significante. Como significante de
uma relação que é uma relação de certo modo indefinidamente repercutida. O
desejo, se ele é desejo do desejo do Outro, se abre sobre o enigma do que é o
desejo do Outro como tal. O desejo do Outro como tal é articulado e estruturado
fundamentalmente na relação do sujeito à fala, isto é na desconexão de tudo o
que está no sujeito vitalmente enraizado. Este desejo, é o ponto central, o ponto
pivô de toda a economia com a qual nós lidamos na análise.
Não mostrando disto a função, somos levados necessariamente a só en­
contrar referência no que é efetivamente simbolizado sob o termo de realidade,
realidade existente, de contexto social. E parece desde então que desconhecía­
mos uma outra dimensão conquanto, no entanto, ela é introduzida na nossa
experiência, ela é reintegrada na experiência humana, e especialmente pelo
freudismo como algo de absolutamente essencial. Aqui tomam seu valor os

511
fatos sobre os quais eu muitas vezes me apoiei, disto a que chega na análise
toda intervenção que tende à [esmagar] a experiência transferenciai em relação
ao que se chama essa realidade tão “simples”, essa realidade atual da sessão
analítica. Como se essa realidade não fosse o artifício mesmo! Ou seja a condi­
ção na qual o mais normalmente (e por isso, pois é o que dela esperamos...)
deve se produzir, por parte do sujeito, tudo o que nós temos sem nenhuma
dúvida que retomar, mas certamente não a reduzir a nenhuma realidade que
seja imediata. E é por isso que muitas vezes eu insisti, sob diferentes formas,
sobre o caráter comum do que se produz cada vez que as intervenções do ana­
lista, de uma maneira bastante insistente, até brutal demais, pretendem provar,
nessa reatualização de uma relação objetai considerada como típica na realida­
de da análise, o que se produz com uma constante da qual devo dizer que, se
disto muitas observações são o testemunho, não parece que os analistas tenham
sempre feito a identificação.
Seja como for, para nos atermos a algo que aqui foi objeto de nossa
crítica, a famosa observação que está no Bulletin des analystes beiges ao qual
me referi uma vez, refiro-me a ela novamente na medida em que nela encontro
uma coincidência notável num dos artigos de Glover precisamente, que é aque­
le em tomo do qual ele próprio tenta já colocar a função da perversão em rela­
ção com o sistema da realidade do sujeito241. Nós só podemos ficar tocados por
isto, de que se é na medida em que a analista mulher..., eu visei a primeira
observação já que é ela a autora disso, a propósito dos fantasmas do sujeito,
isto é fantasmas que o sujeito elabora de deitar com ela; ela lhe responde textu­
almente o seguinte: «você se amedronta por uma coisa da qual você sabe que
nunca acontecerá». Tal é o estilo no qual se apresenta a intervenção analítica
marcando nesta ocasião algo que não é necessário qualificar, concernente às
motivações pessoais da analista nessa ocasião. Sem nenhuma dúvida, elas são
justificadas para ele por algo para a analista. E a analista era uma analista que
tinha sido supervisionada por alguém que é precisamente alguém a quem eu já
fiz alusão no meu discurso de hoje, nomeadamente concernindo à temática da
distância.
É claro que, seja o que for que represente uma tal intervenção de pânico
em relação à analista, tentar-se-á justificá-la numa justa apreensão da “realida­

241 LEBOVICIR., op.cit.

512
de”, ou seja das relações dos objetos em presença. É certo que a relação é
decisiva e que é imediatamente depois desse estilo de intervenção que se de­
sencadeia o que faz o objeto da comunicação, ou seja este dejeto, esta espécie
de costura brutal no sujeito -num sujeito que talvez não está tão bem qualifica­
do do ponto de vista diagnóstico, que nos pareceu seguramente mais próximo
de esboços de ilusão paranóide do que de fato se fez [dele], ou seja de uma
fobia- esse sujeito vem de fato absolutamente assombrado por uma vergonha
de ser grande demais, e existe aí toda uma série de temas próximos da
despersonalização aos quais deve-se dar muita importância. É certo que se tra­
ta de uma neoformação, é aliás o objeto da observação, não somos nós que o
dizemos, de ver esse sujeito entregar-se ao que se chama a perversão transitó­
ria, isto é jogar-se em direção ao ponto geográfico em que ele encontrou as
circunstâncias particularmente favoráveis à observação, através de uma fenda,
das pessoas (especialmente femininas) num cinema, no momento em que elas
estão satisfazendo suas necessidades urinárias. Esse elemento que até aqui não
teve lugar na sintomatologia, só nos parece interessante pela razão que na pági­
na 494 do International Journal, vol. XIV, de outubro de 1933, parte 4, The
relation ofpervertion-formation to the development of reality-sense, isto é o
artigo de Glover sobre as funções da perversão, em presença de um sujeito
muito próximo do precedente -nesse sentido que Glover o diagnostica de pre­
ferência paranóide, mas que nós o ligaríamos inversamente de bom grado a
uma fobia...- Glover, em razão de intervenções sem nenhuma dúvida análo­
gas, realiza, produz uma encenação análoga de uma explosão perversa transi­
tória e ocasional. Não há uma diferença essencial entre esses dois casos.
E aquilo sobre o que por exemplo eu insisti no discurso sobre a Fonction
de la parole et le champ du langage2n, ou seja a intervenção de Ernest Kris
[junto a um paciente], concernente ao seu temor fóbico do plágio, que explica
que ele não é de maneira alguma um plagiador, por meio do que o outro corre
para fora e pede um prato de miolos frescos para grande alegria do analista que
vê aí uma reação verdadeiramente significativa à sua intervenção! Mas da qual

242 «Fonction et champ de la parole et du langage em psychanalyse», pronunciado em 1953,


publicado em La Psychanalyse, P.U.F. vol.I, 1956, retomado nos Écrits. De fato, o comentário
do artigo de Kris, Ego psychology and interpretation therapy se encontra em «Resposta ao
comentário de Jean Hyppolite», Écrits, pp. 393-398.

513
nós podemos dizer que, sob uma forma atenuada, isso representa se assim pode-
se dizer, a reação, a reforma da dimensão própria do sujeito a cada vez que a
intervenção tenta reduzi-la, colapsá-la, comprimi-la numa pura e simples redu­
ção aos dados chamados “objetivos”, oü seja aos dados coerentes com os pre­
conceitos do analista.
Se vocês me permitem terminar sobre algo que introduz o lugar no qual
nós, analistas, nesta relação ao desejo, devemos nos situar, é algo que segura­
mente não pode funcionar, se não fazemos uma certa concepção coerente do
que é justamente nossa função em relação às normas sociais -estas normas
sociais, se há uma experiência que deve nos ensinar quão problemáticas elas
são, quanto elas devem ser interrogadas, quanto sua determinação se situa alhures
do que em sua função de adaptação, parece que é a do analista. Se nessa expe­
riência do sujeito lógico, que é a nossa, nós descobrirmos essa dimensão, sem­
pre latente mas também sempre presente, que se sustenta sob toda relação
intersubjetiva e que se encontra numa relação, portanto, de interação, de troca
com tudo o que daí se cristaliza na estrutura social, nós devemos chegar apro­
ximadamente à concepção seguinte.
É que nós chamaremos alguma coisa cultura (não faço questão desta
palavra, faço mesmo muito pouca), o que designo por isso, são certas histórias
do sujeito na sua relação com o logos do qual seguramente a instância pôde por
muito tempo permanecer mascarada no curso da história, da qual é difícil não
ver na época em que vivemos -é por isso que o freudismo nela existe- qual
hiância, qual distância ele representa com relação a uma certa inércia social. A
relação disso que passa da cultura na sociedade, nós podemos provisoriamente
defmi-lo como algo que se exprimiría bastante bem numa relação de entropia:
na medida em que algo se produz, do que passa da cultura na sociedade, que
inclui sempre alguma função de desagregação. O que se apresenta na socieda­
de como cultura, -dito de outra forma, na medida em que tiver, por vários
motivos, entrado num certo número de condições estáveis, elas também laten­
tes, que são o que se pode chamar de condições de trocas no interior do reba­
nho- é algo que instaura um movimento, uma dialética, deixando aberta a mes­
ma hiância no interior da qual nós tentamos situar a função do desejo. É neste
sentido que nós podemos qualificar o que se produz como perversão, como
sendo o reflexo, o protesto ao nível do sujeito lógico daquilo que o sujeito sofre
ao nível da identificação, na medida em que a identificação é a relação que
ordena, què instaura as normas da estabilização social das diferentes funções.

514
Nesse sentido não podemos deixar de fazer a aproximação que existe
entre toda estrutura semelhante à da perversão e o que em alguma parte Freud,
nomeadamente no artigo Névrose et Psychose, articula da seguinte maneira:
«E possível ao menos evitar a ruptura por algum lado do que se lhe propõe,
então, nesse momento como conflito, como distenção, lhe é possível na medi­
da em que deixa toda reinvindicação quanto à sua propria unidade, e eventual­
mente que ele se cinde, e se separa. E assim...»243, diz Freud, numa de suas
percepções que são aquilo por onde sempre seus textos, frente aos que são
textos mais comuns da literatura com a qual temos que lidar na análise, são
especialmente iluminantes, «É assim que podemos nos aperceber do parentes­
co que há entre as perversões, estas perversões enquanto que elas nos evitam
uma repressão, de seu parentesco que existe com todos os Inkonsequenzen,
Verschrobenheiten und Narrheiten der Menschen». Ele visa da maneira a mais
clara, precisamente, tudo o que no contexto social se apresenta como “parado­
xo”, “inconsequência”, “forma confusional”, e “forma de loucura”. O Narr é o
louco no que constitui o texto da vida social a mais comum e a mais ordinária.
De modo que nós poderiamos dizer que algo se instaura como um cir­
cuito girando entre o que poderiamos chamar conformismo ou formas confor­
mes socialmente, atividade dita cultural (aí a expressão toma-se excelente para
definir tudo o que da cultura se monetiza e se aliena na sociedade), aqui ao
nível do sujeito lógico, a perversão na medida em que ela representa, por uma
série de gradações, tudo que na conformização se apresenta como protesto na
dimensão propriamente dita do desejo,enquanto relação do sujeito ao seu ser-
aqui está essa famosa sublimação da qual começaremos talvez a falar no próxi­
mo ano.
Pois na verdade está bem aí a noção mais extrema, a mais justifícadora
de tudo o que estou tentando avançar frente a vocês, e que é a que Freud trouxe,
ou seja essa sublimação. O que é de fato? O que pode ser a sublimação? O que
ela pode ser se podemos, com Freud, defini-la como «uma atividade sexual na
medida em que ela é déssexualizada»? Como podemos mesmo conceber-pois
aí, não se trata mais nem de fonte nem de direção da tendência, nem de objeto,

243 Névrose et psychose, in Névrose, psychose et perversion, Paris, P.U.F. 1973, p.286, «Será-
possível para o eu evitar a ruptura de um lado ou outro deformando-se ele próprio, aceitando
confessar sua unidade, eventualmente mesmo rebentando-se ou despedaçando-se».

515
trata-se da própria natureza do que é chamado, nesta ocasião, a energia interes­
sada. Bastar-lhes-á, penso, ler o artigo de Glover no International Journal of
Psycho-analysis onde ele tenta abordar, com as preocupações críticas que são
as suas, a noção de sublimação.
Que noção é esta se não podemos defini-la como a forma mesma na qual
se escoa o desejo! Já que o que se lhes indica é justamente que ela pode esvazi-
ar-se da pulsão sexual enquanto tal, ou mais exatamente que a noção mesma de
pulsão, longe de confundir-se com a substância da relação sexual, é esta forma
mesma que ela é: jogo do significante, fundamentalmente ela pode se reduzir a
este puro jogo do significante. E é assim mesmo que podemos definir a subli­
mação.
E este algo por onde, como já o escrevi em algum lugar, podem equiva­
ler-se o desejo e a letra, se no entanto aqui podemos ver em um ponto tão
paradoxal quanto à perversão (isto é, sob sua forma mais geral, o que no ser
humano resiste a toda normalização) produzir-se esse discurso, essa aparente
elaboração vazia que nós chamamos sublimação, que é algo que na sua nature­
za, nos seus produtos, é distinto da valorização social que lhe é dada ulterior-
mente. Essas dificuldades que há em juntar ao termo sublimação a noção de
valor social são particularmente bem valorizadas no artigo de Glover do qual
lhes falo. Sublimação como tal, isto é ao nível do sujeito lógico, e isto onde se
desenrola, onde se instaura, onde se institui todo esse trabalho que é, propria­
mente falando, o trabalho criador na ordem do logos. E é dai que vêm mais ou
menos inserir-se, mais ou menos ao nível social encontrar seu lugar, as chama­
das atividades culturais e todas as incidências e os riscos que elas comportam,
até e inclusive a modificação, até o rompimento dos conformismos anteriormente
instaurados.
E é no circuito fechado que constituiríam esses quatro termos que pode­
riamos, ao menos provisoriamente, indicar algo que deve, para nós, deixar no
seu plano próprio, no seu plano animador aquilo de que se trata concernente ao
desejo. Aqui desembocamos no problema que é o mesmo, sobre o qual eu os
deixei no último ano a propósito do Congresso de Royaumont244.
Este desejo do sujeito, enquanto desejo do desejo, abre sobre o corte,
sobre o ser puro, aqui manifestado sob sua forma de falta. Esse desejo do dese­
jo do Outro, afinal de contas, a qual desejo ele vai se confrontar se não for ao

244 «La directon de la cura et les príncipes de son pouvoir», Écrits, p.585.

516
desejo do analista? É precisamente por isto que é tão necessário que mantenha­
mos diante de nós esta dimensão sobre a função do desejo. A análise não é uma
simples reconstituição do passado, não é nem mesmo uma redução a normas
pré-formadqs, a análise não é um Ertoç (épos'), a análise não é um E6oç (éthos).
Se eu a comparasse a algo, seria a um relato que seria tal que o relato ele
mesmo fosse o lugar do encontro do qual se trata no relato. O problema da
análise é justamente que o desejo que o sujeito tem que encontrar, que é esse
desejo do Outro, nosso desejo, esse desejo que é até presente demais no que o
sujeito supõe que nós lhe demandamos, esse desejo se encontra nessa situação
paradoxal que esse desejo do Outro que é para nós o desejo do sujeito, deve­
mos guiá-lo não em direção ao nosso desejo, mas em direção a um outro. Ama­
durecemos o desejo do sujeito para um outro que [não] nós, nós nos encontra­
mos nesta situação paradoxal de sermos os mediadores, os parteiros, os que
presidem ao advento do desejo.
Como esta situação pode ser mantida? Ela não pode seguramente ser
mantida senão pela manutenção de um artificio que é aquele de toda a regra
analítica. Mas a última mola deste artifício, será que não há algo que nos per­
mita apreender onde pode se fazer na análise esta abertura sobre o corte'que é.
aquele sem o qual não podemos pensar a situação do desejo? Como sempre é
seguramente ao mesmo tempo a verdade mais trivial e a verdade mais oculta, o
essencial na análise, dessa situação em que nos encontramos ser aquele que se
oferece como suporte a todas as demandas, e que não responde a nenhuma.
Será que é somente nessa não-resposta, que está bem longe de ser uma não-
resposta absoluta, que se encontra a mola de nossa presença? Será que não
devemos fazer uma parte essencial ao que se reproduz no fim de cada sessão,
mas ao que é imanente a toda a situação ela mesma, na medida em que nosso
desejo deve limitar-se a esse vazio, a este lugar que nós deixamos ao desejo
para que ele aí se situe, ao corte? Ao corte que é sem dúvida o modo mais
eficaz da intervenção e da interpretação analítica, e é por isso que uma das
coisas sobre a qual nós deveriamos mais insistir, é este corte que nós fazemos
mecânico, que fazemos limitado a um tempo pré-fabricado, é bem alhures não
somente que o colocamos efetivamente. E um dos métodos mais eficazes de
nossa intervenção, é também um daqueles aos quais deveriamos nos aplicar
mais. Mas nesse corte há algo, esta coisa mesma que nós aprendemos a reco­
nhecer sob.a forma desse objeto fálico latente a toda relação de demanda como
significante do desejo.

517
Eu gostaria, para terminar nossa líção desse ano e fazer evocar algo que
inaugurará nossas lições do próximo ano sob a forma de uma preleção, con­
cluir com uma frase que lhes proporia em enigma, e onde se verá se vocês são
melhores no deciframento dos trocadilhos do que eu constatei no decorrer de
experiências feitas com uma legião de meus visitantes. Um poeta, Désiré Viardot,
numa revista em Bruxelas, por volta de 51-52, sob o título Phantômas, propôs
esse pequeno .enigma fechado (vamos ver se um grito da assistência vai nos
mostrar logo a chave): «A mulher tem na pele um grão de fantasia», este “grão
de fantasia” que é seguramente aquilo de que se trata no fim das contas, nisso
que modula e modela as relações do sujeito com aquele a quem ele demanda,
seja quem for. E sem dúvida não é por nada que no horizonte tenhamos encon­
trado o sujeito que contém tudo, a mãe universal, e que possamos por vezes nos
enganar quanto a essa relação do sujeito com o todo que seria o que lhes seria
desvendado pelos arquétipos analíticos.
Mas é bem de outra coisa que se trata. E da abertura, é da hiância sobre
este algo de radicalmente novo que introduz todo o corte da fala. Aqui não é
apenas da mulher que devemos almejar este grão de fantasia (ou... este grão de
poesia), é da própria análise.

518

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