Você está na página 1de 13

See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.

net/publication/250988243

A contradição entre universalidade da cultura humana e o


esvaziamento das relações sociais: por uma educação que supere a
falsa escolha entre etnocentrismo ou relativismo cultural

Article  in  Educação e Pesquisa · December 2006


DOI: 10.1590/S1517-97022006000300012

CITATIONS READS

21 114

1 author:

Newton Duarte
São Paulo State University
30 PUBLICATIONS   485 CITATIONS   

SEE PROFILE

Some of the authors of this publication are also working on these related projects:

Historical-critical pedagogy View project

All content following this page was uploaded by Newton Duarte on 23 June 2016.

The user has requested enhancement of the downloaded file.


A contradição entre universalidade da cultura
humana e o esvaziamento das relações sociais: por
uma educação que supere a falsa escolha entre
etnocentrismo ou relativismo cultural

Newton Duarte
Universidade Estadual Paulista

Resumo

A tese do fim das metanarrativas defendida pelo pós-modernismo


implica a negação da universalidade da cultura. Não se trata apenas
do fato de que a cultura humana ainda não tenha alcançado um
estágio de verdadeira universalidade nem mesmo se trata do fato de
que a classe dominante tenha até hoje submetido a cultura humana a
seus interesses particulares de classe e, para tanto, tenha sufocado e
destruído muito da riqueza contida nas culturas locais. Para o pós-
modernismo, o problema não reside na visão burguesa de cultura
humana, mas sim na própria idéia de que possa haver uma cultura
universal. Os pós-modernos afirmam que qualquer projeto educacional
pautado na idéia da existência ou da possibilidade de uma cultura
universal é um projeto conservador, autoritário e etnocêntrico. O texto
defende a tese de que a concepção marxiana acerca do processo
histórico de constituição da riqueza humana universal contém os
elementos teóricos necessários para a superação da falsa opção,
postulada pelas diversas correntes do pós-modernismo, entre o
etnocentrismo e o relativismo cultural. Em Marx, a universalização da
cultura humana ocorre, na sociedade capitalista, por meio da
universalização do valor de troca das mercadorias como mediação
fundamental das relações sociais. Trata-se, portanto, de um processo
dialético no qual ocorrem ao mesmo tempo a humanização e a
alienação do gênero humano e dos indivíduos. O texto conclui com a
apresentação dos desafios que, a partir dessa concepção marxiana
sobre a riqueza universal, devem ser enfrentados no processo de
construção de uma pedagogia marxista.

Palavras-chave

Relativismo cultural – Marxismo – Riqueza universal – Pedagogia


Correspondência: marxista – Pós-modernismo.
Newton Duarte
Depto de Psicologia da Educação
UNESP - Campus de Araraquara
Rodovia Araraquara-Jaú km 01
14800-901 – Araraquara – SP
e-mail: newton.duarte@uol.com.br

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 607-618, set./dez. 2006 607
The contradiction between the universality of human
culture and the void of social relations: for an
education to overcome the false choice between
ethnocentrism and cultural relativism

Newton Duarte
Universidade Estadual Paulista

Abstract

The thesis of the end of the meta-narratives defended by


postmodernism implies the negation of the universality of culture.
It is not just the fact that human culture has not yet achieved
true universality, and not even the fact that the ruling classes
have so far subjected human culture to their own private interests
and, to that end, have suffocated and destroyed much of the
wealth contained in local cultures. To postmodernism the problem
does not reside in the bourgeois vision of human culture, but in
the very idea that a universal culture can exist. Postmodernists
declare that any educational project based on the idea of the
existence or possibility of a universal culture is a conservative,
authoritarian, ethnocentric project. This text argues for the thesis
that the Marxian conception of the historic process of constitution
of the universal human wealth incorporates the theoretical
elements necessary to overcome the false option, postulated by
the various postmodernist trends, between ethnocentrism and
cultural relativism. In Marx, the universalization of human culture
in the capitalist society takes place through the universalization
of the exchange value of the goods as the fundamental mediation
of social relations. It is, therefore, a dialectical process in which
the humanization and the alienation of the human genre and of
the individuals occur at the same time. The text concludes with
the presentation of the challenges that, based on this Marxian
conception of universal wealth, must be faced in the process of
constructing a Marxist pedagogy.

Keywords

Cultural relativism – Marxism – Universal wealth – Marxist pedagogy


– Postmodernism.

Contact:
Newton Duarte
Depto de Psicologia da Educação
UNESP - Campus de Araraquara
Rodovia Araraquara-Jaú km 01
14800-901 – Araraquara – SP
e-mail: newton.duarte@uol.com.br

608 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 607-618, set./dez. 2006
A libertação de cada indivíduo singular será forma alienada de enriquecimento do capital
alcançada na medida que a história seja total- pela classe trabalhadora. Entendo por classe
mente transformada em história mundial. A ri- trabalhadora a totalidade dos indivíduos que na
queza real do indivíduo depende inteiramente da sociedade capitalista vivem da transformação
riqueza de suas conexões reais. Apenas isso li- de sua atividade de trabalho em mercadoria,
bertará os indivíduos das barreiras nacionais e trocando-a por uma determinada quantidade de
locais, os trará para a conexão prática com a dinheiro, ou seja, vendendo a sua força de tra-
produção (inclusive a produção intelectual) de balho em troca de um salário. O núcleo da
todo o mundo e tornará possível a eles a aqui- classe trabalhadora é constituído por todos
sição da capacidade de desfrutar dessa multila- aqueles que executam o trabalho produtivo tal
teral produção de todo o planeta (as criações como este foi definido por Marx (1984):
do homem). (Marx, 1998, p. 59)
A produção capitalista não é apenas produção
É bastante conhecida a tese do fim das de mais-valia. O trabalhador produz não para
metanarrativas defendida pelo pós-modernismo, si, mas para o capital. Não basta, portanto,
a qual tem como um de seus corolários a ne- que produza em geral. Ele tem de produzir
gação da universalidade da cultura. Para o pós- mais-valia. Apenas é produtivo o trabalhador
modernismo, não se trata apenas do fato de que produz mais-valia para o capitalista, ou
que a cultura humana ainda não tenha alcan- serve à autovalorização do capital. Se for per-
çado um estágio de verdadeira universalidade mitido escolher um exemplo fora da esfera da
nem mesmo se trata do fato de que a classe produção material, então um mestre-escola é
dominante tenha até hoje submetido a cultura um trabalhador produtivo se ele não apenas
humana a seus interesses particulares de clas- trabalha as cabeças das crianças, mas extenua
se e, para tanto, tenha sufocado e destruído a si mesmo para enriquecer o empresário. O
muito da riqueza contida nas culturas locais. fato de que este último tenha investido seu ca-
Para o pós-modernismo, o problema não resi- pital numa fábrica de ensinar em vez de numa
de na visão burguesa de cultura humana, mas fábrica de salsichas, não altera nada da rela-
sim na própria idéia de que possa haver uma ção. O conceito de trabalho produtivo, portan-
cultura universal. Rejeitando tal idéia, os pós- to, não encerra de modo algum apenas uma
modernos afirmam que qualquer projeto educa- relação entre a atividade e efeito útil, entre
cional pautado explícita ou implicitamente no trabalhador e produto do trabalho, mas tam-
suposto da existência ou mesmo da possibilidade bém uma relação de produção especificamente
de uma cultura universal é um projeto conser- social, formada historicamente, a qual marca o
vador, autoritário e etnocêntrico. Em oposição a trabalhador como meio direto de valorização do
tudo isso, postulam o relativismo cultural como capital. Ser trabalhador produtivo não é, por-
um dos pilares da educação em geral, incluída tanto, sorte, mas azar. (p. 105-106)
nesta a educação escolar.
Apoiando-me em Marx, defenderei nes- Assinalo, apenas de passagem, que alguns
te artigo a existência de um processo histórico intérpretes de Marx têm uma compreensão redu-
de construção da cultura humana entendida zida desse conceito de trabalho produtivo, pois o
como a riqueza material e intelectual de todo identificam com o trabalho propriamente indus-
o gênero humano. Essa riqueza humana ainda trial, o que é claramente negado pela citação
traz a marca de todas as profundas contradi- apresentada acima. Deixando, porém, para outro
ções da intensa luta de classes, travada na his- momento as implicações dessa discussão para
tória da sociedade capitalista. Nessa sociedade, a análise do trabalho do professor, meu obje-
o enriquecimento do gênero humano existe na tivo aqui é o de defender a tese de que uma

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 607-618, set./dez. 2006 609
revolução mundial realizada pela classe traba- acompanhará aquela como sua legítima antí-
lhadora, ao suprimir totalmente da sociedade tese até sua abençoada morte. (Marx, 1987a,
essa subordinação do trabalho ao processo de p. 90; 1993b, p. 162, tradução minha).
valorização do capital, isto é, ao despir a rique-
za humana dessa sua forma historicamente si- Marx analisou com precisão e profun-
tuada, a forma de capital, tornará possível a didade essa contradição entre, por um lado, a
efetivação, na vida de todos os indivíduos, do universalização da alienação, decorrente da
potencial de emancipação humana contido universalização do valor de troca como medi-
nessa riqueza. Tal processo possibilitará a cons- ação entre os seres humanos e, por outro lado,
tituição de uma cultura universal, que supere os a criação de uma riqueza universal, de relações
limites das culturas locais, incorporando toda a sociais universais e de capacidades humanas
riqueza nelas contida e elevando essa riqueza universais. A criação pelos seres humanos de for-
a um nível superior. ças universais, isto é, a amplitude cada vez maior
Em trabalho anterior (Duarte, 2004), con- do processo de objetivação do gênero humano,
trapus a concepção pós-moderna de indivíduo à produz como efeito colateral uma certa nostalgia
concepção do indivíduo livre e universal elabora- do passado pré-capitalista, pois pareceria que
da por Marx, a qual tem sido objeto de meus nesse passado os indivíduos conseguiriam realizar-
estudos desde o livro A individualidade para-si se mais plenamente em comparação com o esva-
(Duarte, 1993). A questão da universalidade ocupa ziamento a que está submetido o indivíduo na
lugar central na concepção marxiana do desen- sociedade capitalista. Essa aparência de maior ple-
volvimento histórico da individualidade humana: nitude do indivíduo da sociedade pré-capitalista
resulta do caráter limitado e localizado das relações
Os indivíduos universalmente desenvolvidos, que o indivíduo tem com o mundo. No entanto,
cujas relações sociais, como suas próprias rela- Marx considerava a nostalgia desse passado tão
ções comunais são, portanto, também subordi- ridícula quanto acreditar que a história teria che-
nadas ao seu próprio controle comunal, não são gado ao seu fim, teria estancado para sempre
produto da natureza, mas sim da história. O nesse esvaziamento total. Esse esvaziamento,
grau e a universalidade do desenvolvimento da resultante da universalização do valor de troca
riqueza na qual essa individualidade torna-se como mediação social, manifesta-se, entre outras
possível supõe a produção sobre a base do valor maneiras, de uma forma particularmente inten-
de troca como uma pré-condição, cuja univer- sa no poder universal assumido pelo dinheiro, o
salidade produz a alienação do indivíduo não representante abstrato e universal da atividade
somente em relação a si mesmo e aos demais de trabalho na sociedade do capital:
indivíduos, mas também a universalidade e a
amplitude de suas relações e capacidades. Em A dependência mútua e generalizada dos indivíduos
estágios anteriores de desenvolvimento o indiví- reciprocamente indiferentes constitui seu nexo soci-
duo singular aparenta ser mais plenamente de- al. Este nexo social se expressa no valor de troca, e
senvolvido, porque ele ainda não exercitou suas somente neste a atividade do indivíduo e o produto
relações em sua plenitude, ou não as erigiu dessa atividade se transformam em atividade ou em
como poderes sociais independentes e relações a produto para o próprio indivíduo. O indivíduo deve
ele contrapostas. É tão ridículo ansiar por um produzir um produto universal: o valor de troca
retorno a essa plenitude original como o é acre- ou, considerado este em si mesmo isolado e indi-
ditar que a história tenha paralisado-se nesse vidualizado, o dinheiro. O indivíduo leva consigo
esvaziamento completo. A visão burguesa ja- mesmo, em seu bolso, o poder social, bem como
mais avançou para além dessa oposição entre seu nexo com a sociedade. (Marx, 1987a, p. 98;
ela e a visão romântica e, por isso, esta última 1993b, p. 156-157, tradução minha)

610 Newton DUARTE. A contradição ente universalidade da cultura...


Alguns leitores não familiarizados com rando-se que minhas objeções ao pós-modernis-
a obra de Marx podem, a esta altura, sentir uma mo têm por referência a obra de Marx, optei por
certa estranheza com este texto, caso tenham explorar neste artigo a concepção marxiana de ri-
ouvido ou lido em algumas ocasiões o surrado queza humana e mostrar que esta contem decisi-
argumento de que não haveria lugar para o vas contribuições para a reflexão filosófica sobre o
indivíduo na obra marxiana. Ao contrário, po- significado da educação escolar diante da contra-
rém, do que muitos pensam, em Marx, a individu- dição entre universalidade da cultura humana e o
alidade não é preterida ou sequer secundarizada esvaziamento das relações sociais.
em prol da sociedade e, mais amplamente, do
gênero humano. Igualmente pode ser afirmado em A concepção marxiana do
relação a outros conceitos em relação aos quais a processo de constituição da
obra de Marx é acusada injustamente de margina- riqueza universal humana
lizar ou até mesmo silenciar totalmente como, por
exemplo, o de subjetividade. Juízos dessa nature- Na concepção marxiana da história
za parecem-me resultarem, entre outras coisas, de social, o gênero humano torna-se mais livre à
desconhecimento ou incompreensão da dialética medida que, progressivamente, os objetos de
entre os processos de objetivação e apropriação sua atividade deixam de se identificar com a
que atravessa toda a obra de Marx desde os Ma- satisfação imediata de uma necessidade bioló-
nuscritos de Paris até O capital. Para Marx, o pro- gica (Marx, 1978; 1992; 1993b; 1998; Markus,
cesso de individuação alcançaria seu mais alto 1978; Leontiev, 1978). Por exemplo, a produ-
grau por meio justamente da socialização do ção de um instrumento que será utilizado na
indivíduo em circunstâncias ausentes de aliena- atividade de agricultura, da qual resultará um
ção e que permitissem, portanto, a efetivação, na alimento que satisfará a necessidade de alimen-
existência individual, da universalidade e da liber- tação, é um processo que interpõe, entre a
dade alcançadas num dado momento histórico necessidade de alimento e sua satisfação, toda
pela riqueza do gênero humano. Outra não era a uma cadeia de ações voltadas para objetos que
concepção marxiana de sociedade comunista. não satisfazem nenhuma necessidade primária,
O pós-modernismo não tem condições de isto é, biológica. Isso significa que nesse pro-
lidar adequadamente com a contradição, inerente cesso surgem novas necessidades, de natureza
à sociedade capitalista, entre a universalização da propriamente social, e surgem as mediações
riqueza material e intelectual e o total esvaziamen- entre o ser humano e a natureza, as quais
to das relações sociais. Uma das saídas encontra- constituem o mundo da cultura, isto é, o mun-
das pelos pós-modernos tem sido a de construir do da riqueza material e intelectual.
discursos que misturam a eternização do esvazia- Pelo fato de haver, na atividade animal,
mento próprio da cotidianidade contemporânea a a identidade entre o objeto e a necessidade que
visões românticas de um passado ressignificado li- a move, não há produção de novas necessida-
vremente pela subjetividade fragmentada do indi- des nem há ampliação do campo de relações
víduo pós-moderno. Há também, no interior do entre o animal e o restante da natureza. Não
pós-modernismo, tendências que procuram reagir há, portanto, possibilidade de algum ser vivo
ao esvaziamento por meio da defesa do rela- que não o ser humano vir a estabelecer relações
tivismo cultural e do discurso que faz da diversi- universais com a natureza. A relação de uma
dade um princípio ético1 . Não pretendo, porém,
neste artigo, deter-me na crítica às formas equivo- 1. Incluo entre essas tendências o multiculturalismo, mesmo quando pensa-
cadas por meio das quais o pós-modernismo lida dores que o defendem formulam alguma crítica ao pós-modernismo. Tais crí-
ticas, algumas feitas em nome do marxismo (ou neomarxismo), acabam em
com a contradição entre universalidade e esvazi- geral focalizando alguns pontos, mas aderindo voluntária ou involuntariamente
amento no capitalismo contemporâneo. Conside- às teses essenciais do pós-modernismo e seu relativismo cultural.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 607-618, set./dez. 2006 611
espécie animal com o meio ambiente é sempre dade privada. A superação dessa atitude somen-
limitada aos processos que asseguram a repro- te seria possível por meio da superação da
dução biológica da espécie. Mesmo nos casos propriedade privada, isto é, da sociedade capi-
dos animais adestrados e incluídos em ativida- talista. É nesse sentido que, nos Manuscritos
des humanas, a relação deles com essas ativi- econômico-filosóficos de 1844, Marx (1978)
dades ocorre nos limites das necessidades pu- afirma que a socialização da riqueza também
ramente biológicas. implica uma mudança nas relações entre os
Pelo fato das relações entre o gênero indivíduos e as forças essenciais humanas ob-
humano e a natureza serem mediatizadas por jetivamente existentes na sociedade, as quais,
ações que não satisfazem necessidades biológi- no comunismo, tornar-se-iam forças essenciais
cas e por objetos (os instrumentos) que também também do indivíduo, assim como os objetos
não satisfazem diretamente as necessidades dos sociais (ou mais genericamente os fenômenos
indivíduos, forma-se na atividade social uma da cultura) tornar-se-iam o aspecto objetivo da
tendência à expansão tanto da amplitude dos individualidade:
fenômenos naturais incorporados à dinâmica
sociocultural como também das relações que os Como vimos, o homem só não se perde em seu
seres humanos estabelecem uns com os outros objeto quando este se configurar como objeto
e com suas próprias atividades e seus próprios humano ou homem objetivado. E isso somente
produtos. A mediação torna-se um fenômeno será possível quando se lhe configurar como objeto
essencial ao gênero humano. social e quanto ele mesmo se configurar como ser
Nesse processo de ampliação constan- social, assim como a sociedade se configurará
te da apropriação da natureza pela atividade nesse objeto como ser para ele. (p. 11-12)
social, o gênero humano torna-se cada vez
menos submetido à pura causalidade das for- Trata-se aqui da relação entre os seres
ças naturais e vai submetendo essas forças às humanos e a totalidade da cultura humana. Se
finalidades conscientes da atividade humana. a humanização é resultante da construção social
Essa socialização das forças naturais não divor- dessa cultura, entendida como o processo his-
cia o ser humano da natureza, mas sim incor- tórico de objetivação do gênero humano, e da
pora esta à processualidade social. Em Marx, o apropriação das obras e dos fenômenos culturais
processo de desenvolvimento do gênero humano pelos indivíduos, então a emancipação da hu-
é, ao mesmo tempo, um processo de humanização manidade deverá ocorrer como transformação da
da natureza e de naturalização do ser humano apropriação dessa cultura e, por conseqüência,
(Markus, 1978). transformação também da objetivação tanto do
O processo histórico de desenvolvimen- gênero humano quanto de cada indivíduo. Marx
to humano é também visto por Marx como uma já havia analisado no século XIX algo que neste
mudança na maneira como os seres humanos início de século XXI torna-se cada vez mais
se relacionam com as condições sociais de visível: apropriação da totalidade das forças
produção e reprodução da vida em sociedade. produtivas pela totalidade dos trabalhadores é
De início, as condições nas quais os seres hu- necessária tanto para o desenvolvimento da
manos trabalham, bem como as próprias rela- auto-atividade como também para a própria
ções sociais que presidem a divisão social do sobrevivência dos trabalhadores. A alienação
trabalho e a apropriação dos produtos do tra- atinge não apenas a atividade de trabalho em
balho são tomadas pelos indivíduos como algo si mesma, que se torna opressiva, desumana e
imutável, natural e integrante da própria vida. sem outro sentido para o trabalhador além
Tal atitude prevalece, segundo Marx, durante daquele dado pela venda de sua força de tra-
toda a história humana marcada pela proprie- balho em troca do salário. A alienação também

612 Newton DUARTE. A contradição ente universalidade da cultura...


assume a forma de uma desapropriação tão Em A ideologia alemã, Marx analisa também
grande dos trabalhadores (empregados ou não) algo que é muito claro nos cadernos que com-
dos recursos mínimos necessários à sua sobre- põem a obra conhecida como Grundrisse: que
vivência, que a única saída é a da apropriação esse processo de constituição de uma totalida-
total dos meios de produção, ou seja, das for- de social de forças produtivas e de universa-
ças produtivas pela totalidade dos trabalhado- lização das relações sociais ocorre por meio da
res. Ao mesmo tempo, essa reapropriação pelos universalização do mercado, o que implica a
trabalhadores, da totalidade das forças produ- universalização do valor de troca como já foi
tivas, permitirá, dado o desenvolvimento já al- comentado anteriormente neste artigo. A pos-
cançado por estas, que a atividade de trabalho sibilidade histórica, enxergada por Marx, de su-
assuma um novo sentido para todos os traba- peração da exploração e do esvaziamento a que
lhadores e passe a ser uma atividade de desen- estão submetidos os seres humanos em sua
volvimento de múltiplas capacidades humanas grande maioria não é a de rejeição da univer-
por parte de cada ser humano: salidade da riqueza atualmente materializada na
forma de capital. O caminho enxergado por Marx,
As coisas, portanto, foram tão longe que os in- e claramente explicitado na citada passagem de A
divíduos devem apropriar-se da totalidade exis- ideologia alemã, é a de que a superação da unila-
tente de forças produtivas, não só para alcançar teralidade, à qual estão submetidos os indivídu-
a auto-atividade, mas também para meramente os e igualmente a superação da apropriação
assegurarem sua existência. Esta apropriação é privada dos instrumentos (ou meios) de produ-
primeiramente determinada pelo objeto a ser ção, somente pode ocorrer na forma de apro-
apropriado, as forças produtivas, as quais foram priação da totalidade desses instrumentos pela
desenvolvidas numa totalidade. A apropriação totalidade da classe trabalhadora.
dessas forças é em si mesma nada mais que o Para compreender-se adequadamente
desenvolvimento das capacidades individuais essa concepção defendida por Marx, é necessá-
correspondentes aos instrumentos materiais de rio compreender-se o que ele considerava ser a
produção. A apropriação de uma totalidade de principal diferença entre o capitalismo e as so-
instrumentos de produção é, por essa precisa ciedades que o precederam. O que as caracteri-
razão, o desenvolvimento de uma totalidade de zava era o fato de elas inevitavelmente sucum-
capacidades nos próprios indivíduos. (Marx, birem perante o desenvolvimento das forças
1998, p. 96-97, tradução minha) produtivas, isto é, elas não comportavam o de-
senvolvimento da riqueza humana. “Por isso,
entre os antigos, que eram conscientes disso,
A obra A ideologia alemã, da qual foi denunciou-se diretamente a riqueza como
extraída essa passagem, na parte na qual é dissolvente da comunidade” (Marx, 1987b, p. 31;
formulada a crítica a Feuerbach, expõe uma 1993, p. 540). As forças produtivas (ou meios de
análise que também se encontra nos Manuscri- produção) não eram reduzidas por Marx apenas
tos econômico-filosóficos , especialmente no às máquinas e a outros elementos propriamen-
item intitulado “Propriedade privada e comunis- te materiais da produção. Ele incluía a ciência
mo”, a análise do processo de desenvolvimen- como uma parte importante dessas forças pro-
to objetivo do gênero humano, isto é, do en- dutivas e, na linha do raciocínio acima exposto,
riquecimento da essência social e objetiva do afirmou que o desenvolvimento da ciência seria,
gênero humano, processo esse que ocorre por por si mesmo, suficiente para a dissolução das
meio da exploração do trabalho, do distancia- comunidades pré-capitalistas ao destruir uma
mento dessa riqueza ao qual está submetida a forma de consciência que correspondia a um
vida diária da grande maioria dos indivíduos. estágio já superado do desenvolvimento huma-

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 607-618, set./dez. 2006 613
no. No entanto, mesmo reconhecendo toda essa estágio do esvaziamento completo. Ao mesmo
importância da ciência, Marx (1993) ressaltou tempo, é esse estágio que destrói as barreiras
que a força desta no embate das idéias está que as comunidades locais anteriormente ante-
relacionado ao momento no qual se encontre o punham ao desenvolvimento dos indivíduos.
desenvolvimento das forças produtivas no seu Entretanto, isso ‘liberta’ o indivíduo apenas para
todo e, em particular, o desenvolvimento da base que ele não tenha outro vínculo com a sociedade
material da sociedade. que não seja o contrato de venda de sua força de
trabalho para o capital. É esse processo que gera
Em verdade, havia não somente um desenvolvi- a ilusão de que retornar às comunidades locais re-
mento sobre a velha base, mas também um de- humanizaria o indivíduo, traria de volta a plenitu-
senvolvimento da própria base. O mais alto de- de primitiva. No entanto, na verdade, trata-se de
senvolvimento da própria base [...] é o ponto no uma ilusão pensar dessa maneira. A solução não
qual ela foi desenvolvida numa forma que é reside no retrocesso em relação à universalização
compatível com mais alto desenvolvimento das realizada pelo capital, mas sim na sua superação
forças produtivas e, portanto, também o mais por uma sociedade na qual a universalização não
alto desenvolvimento dos indivíduos. Tão logo seja feita às custas dos indivíduos:
esse ponto é alcançado, o desenvolvimento poste-
rior aparece como decadência e o novo desenvol- Assim a antiga visão, na qual o ser humano
vimento inicia-se sobre uma nova base. (p. 541, aparece como o objetivo da produção, indepen-
tradução minha) dentemente de seu limitado caráter nacional,
religioso e político, aparenta ser muito superior
Diferentemente das sociedades que a quando contrastada com o mundo moderno, no
precederam, a sociedade capitalista promove a qual a produção aparece como o objetivo da
destruição de tudo que se apresente como bar- humanidade e a riqueza, como o objetivo da
reiras à produção da riqueza. Tal produção pas- produção. Contudo, na verdade, quando sua li-
sa a ser um fim em si mesma, porque ela sig- mitada forma burguesa é removida, o que é a
nifica valorização do capital a qual é alcançada, riqueza senão a universalidade das necessidades,
como anteriormente foi mencionado, pela apro- capacidades, prazeres, forças produtivas etc.,
priação da mais-valia e pela universalização do dos indivíduos, criados por meio do intercâmbio
valor de troca. A macrovisão histórica de Marx universal? O pleno desenvolvimento do domínio
pode ser considerada como sendo caracteriza- humano das forças da natureza, tanto aquelas da
da por três estágios do desenvolvimento da in- assim chamada natureza como aquelas da própria
dividualidade humana. O primeiro estágio seria natureza humana? A absoluta explicitação de suas
o das sociedades pré-capitalistas nas quais o potencialidades criativas, sem nenhum outro pres-
desenvolvimento dos indivíduos teria como suposto que não seja o prévio desenvolvimento
barreiras naturais aquelas postas pela própria histórico, o qual transforma em um fim em si
vida em comunidade. Nesse primeiro estágio, mesmo esse desenvolvimento em sua totalidade,
há uma fusão entre o indivíduo trabalhador e isto é, o desenvolvimento de todas as forças hu-
as forças produtivas existentes na comunidade. manas, não sendo medido por nenhum padrão
No segundo estágio, seria o da sociedade ca- predeterminado? No qual ele [o indivíduo] não
pitalista, no qual as forças produtivas separam- reproduz apenas a si mesmo em sua particulari-
se do indivíduo e colocam-se frente a ele como dade, mas produz sua totalidade? [No qual o
forças estranhas e das quais ele se encontra ali- indivíduo] empenha-se por não permanecer na-
enado. O trabalho objetivado domina a ativida- quilo que ele veio a ser, estando em contínuo
de do trabalhador. O trabalho morto compra o movimento de vir a ser? (Marx, 1993, p. 487-
trabalho vivo e dele extrai a mais-valia. É o 488, tradução minha)

614 Newton DUARTE. A contradição ente universalidade da cultura...


Transposto esse argumento de Marx potencial que ela têm de ‘ressignificar’ idéias,
para a transmissão e apropriação da cultura na práticas, crenças, rituais etc. A idealização ro-
educação escolar, todo um rol de questões mântica está nessa própria idéia que existe um
sobre conteúdos escolares e sobre ensino e cotidiano no qual a cultura popular existe sem
aprendizagem destes pode ser redefinido em a intervenção colonizadora da cultura burgue-
termos de uma visão histórica da construção da sa. É curioso que relativistas culturais argumen-
cultura humana e de uma visão dialética das tem contra a distinção entre alta cultura e cul-
contradições contidas nessa cultura e no senti- tura de massas, não se cansem de valorizar os
do que ela tem na sociedade contemporânea. fenômenos da cultura popular e não considerem
Pensando-se no sistema educacional público e ser um problema a influência marcante sobre
na meta que esse sistema deveria perseguir, de essa cultura exercida pelos meios de comunica-
universalização do acesso ao que de mais rico ção de massa, mas quando se trata de transmis-
exista na ciência e na arte por parte de todos são do conhecimento científico pela escola,
os filhos da classe dominada (posto que os fi- esses intelectuais não revelem a mesma confian-
lhos da classe dominante já têm esse acesso ça na criatividade e na capacidade de
assegurado), penso ser muito simplista o argu- ‘ressignificação’ por parte do povo. É como se
mento que alguns intelectuais de esquerda a transmissão do conhecimento científico pela
contrapõem a essa meta, qual seja, o de que a escola pudesse contaminar a subjetividade de
ciência e a arte burguesa são alheias à cultura crianças, adolescentes e jovens da classe domi-
da classe trabalhadora e produzem um nada com uma espécie de vírus propagador de
alheamento em relação a essa cultura por par- paradigmas supostamente superados pela assim
te daqueles que a vivem. Discordo desse argu- chamada ‘pós-modernidade’, matando nas
mento, em primeiro lugar, porque o fato de boa novas gerações qualquer espírito de curiosida-
parte da produção científica e artística terem de, criatividade, valorização da diversidade, es-
sido apropriadas pela burguesia, transformando- pírito crítico e autonomia intelectual. Não é por
se em propriedade privada e tendo seu sentido acaso que as pedagogias mais difundidas atu-
associado ao universo material e cultural bur- almente valorizem tanto a subordinação das
guês, não significa que os conhecimentos cien- atividades escolares a interesses e necessidades
tíficos e as obras artísticas sejam inerentemen- surgidos espontaneamente na cotidianidade
te burgueses. Mesmo quando a ciência avança dos alunos. No entanto, há uma incoerência
por força das exigências sociais postas pelo bastante grande em tudo isso: se os conteúdos
capital e pelo Estado a serviço do capital, ain- científicos ensinados pela escola tivessem o
da assim o conhecimento científico resultante poder de dominar de forma tão profunda as
desse contexto pode ter um valor universal para mentes dos alunos, se a transmissão de conhe-
a humanidade. O segundo motivo pelo qual dis- cimento tivesse o poder de alienar tão profun-
cordo do argumento contrário à universalização da damente os alunos, então por que, durante
ciência e da arte pela escola é o de que há nele todo o século XX e continuando neste início de
a presunção de que a classe dominada terá sua século XXI, os críticos da assim chamada ‘es-
consciência invadida e colonizada por esses co- cola tradicional’ têm repetido à exaustão que o
nhecimentos. Há aí ao mesmo tempo um precon- ensino praticado nessa escola limita-se à
ceito e uma idealização românica. O preconcei- memorização e ao verbalismo e, além disso,
to é o de que a classe trabalhadora não saberia por seu caráter essencialmente livresco, esse
dar um novo significado ao conhecimento adqui- ensino transcorreria de maneira totalmente di-
rido. Curiosamente os defensores de tal tipo de vorciada da vida real dos alunos? Como pode
argumento são, normalmente, os primeiros a uma educação escolar com essas características
louvarem a criatividade da cultura popular e o ter o poder de influenciar negativamente de

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 607-618, set./dez. 2006 615
maneira tão forte a mentalidade dos alunos? Tudo isso se traduz, no que diz respeito ao
Em termos do debate sobre o etno- campo educacional, na defesa de uma pedago-
centrismo e o relativismo cultural, defendo, por- gia marxista que supere a educação escolar em
tanto, que é um equívoco considerar-se suas formas burguesas sem negar a importân-
etnocêntrica a transmissão universalizada da ci- cia da transmissão, pela escola, dos conheci-
ência e da arte pela escola e que é também um mentos mais desenvolvidos que já tenham sido
equívoco considerar-se que o relativismo cultu- produzidos pela humanidade.
ral favoreça o livre desenvolvimento dos indi-
víduos. Não se trata de propor uma volta ao Os desafios didáticos e
Iluminismo assim como não se trata de uma filosóficos na construção de
aceitação ingênua da forma capitalista de acu- uma pedagogia marxista
mulação da riqueza e sua corresponde concep-
ção de progresso social. Para escapar à arma- Um dos desafios ao mesmo tempo filo-
dilha contida na opção entre etnocentrismo e sóficos e didáticos no desenvolvimento dessa
relativismo cultural, é preciso adotar-se a pers- pedagogia é o da análise da dialética entre a
pectiva da superação do capitalismo rumo a natureza contextual da produção do conheci-
uma sociedade comunista tal como ela foi mento e a validade universal (em maior ou
concebida por Marx em seus escritos. Uma menor grau) do conhecimento como produto.
sociedade comunista deve ser uma sociedade A universalidade não implica, porém, a perda da
superior ao capitalismo e, para tanto, ela terá de historicidade do conhecimento ou, o que seria
incorporar tudo aquilo que, tendo sido produ- idêntico, seu suposto valor eterno. O conheci-
zido na sociedade capitalista, possa contribuir mento é universal enquanto tem validade para
para o desenvolvimento do gênero humano, toda a humanidade, mas deixa de sê-lo tão
para o enriquecimento material e intelectual da logo venha a ser superado. A propósito da
vida de todos os seres humanos. Minha recu- complexa dialética entre o contexto específico —
sa do pensamento pós-moderno não decorre no qual é gerado um determinado produto cul-
do fato de ele ser um produto cultural da so- tural — e a validade universal que esse produto
ciedade burguesa, mas sim do fato de se tratar pode vir a adquirir, vale a pena citar aqui uma
de uma ideologia que, ao invés de valorizar passagem de Bakhtin (1997), na qual este argu-
aquilo que de humanizador a sociedade bur- menta que as circunstâncias sociais, ideológicas
guesa tenha produzido, se entrega de corpo e e da personalidade de Dostoievski influenciaram
alma à celebração do irracionalismo, do ceticis- na construção artística dos romances desse es-
mo e do cinismo. Minha radical rejeição do critor, mas que suas obras trouxeram para a li-
pensamento pós-moderno visa, entre outras teratura uma contribuição artística que em muito
coisas, defender uma abordagem marxista que ultrapassou os limites circunstanciais da vida
supere os limites do Iluminismo sem negar o daquele romancista:
caráter emancipatório do conhecimento e da
razão; que supere os limites da democracia As contradições extremamente exacerbadas do jo-
burguesa sem negar a necessidade da política; vem capitalismo russo, o desdobramento de
que supere os limites da ciência posta a servi- Dostoiévski enquanto indivíduo social e sua inca-
ço do capital sem, entretanto, negar o caráter pacidade pessoal de adotar determinada solução
indispensável da ciência para o desenvolvimen- ideológica, tomados em si mesmos, são algo ne-
to humano; que supere a concepção burguesa gativo e historicamente transitório mas, não
de progresso social sem negar a possibilidade obstante, constituíram as condições ideais pra a
de fazer a sociedade progredir na direção de criação do romance polifônico, ‘daquela inaudita
formas mais evoluídas de existência humana. liberdade de vozes na polifonia de Dostoievski’

616 Newton DUARTE. A contradição ente universalidade da cultura...


que é, sem qualquer sombra de dúvida, um passo Um terceiro desafio filosófico e didático
adiante na evolução do romance russo e europeu. está na questão da dialética entre o abstrato e
A época com suas contradições concretas e a per- o concreto, ou melhor, no papel do abstrato
sonalidade biológica e social de Dostoiévski com como mediação no processo de apropriação do
sua epilepsia e sua dicotomia ideológica há muito concreto pelo pensamento. Em texto intitulado
se incorporaram ao passado, mas o novo princípio “A anatomia do homem é a chave da anatomia
estrutural da polifonia, descoberto nessas condi- do macaco: a dialética em Vigotski e em Marx e
ções, conserva e conservará a sua importância a questão do saber objetivo na educação esco-
artística em condições inteiramente diversas das lar” (Duarte, 2003), formulei uma análise na qual
épocas posteriores. As grandes descobertas do gê- procurei extrair algumas implicações para a Edu-
nio humano só são possíveis em condições deter- cação nas reflexões de Marx e de Vigotski sobre
minadas de épocas determinadas, mas elas nunca esse tema. Uma das críticas mais inconsistentes
se extinguem nem se desvalorizam juntamente feitas aos conteúdos escolares é a de que eles
com as épocas que as geraram. (p. 36) seriam, em geral, abstratos, como se as abstra-
ções fossem algo a ser evitado na formação e na
Essa análise feita por Bakhtin pode ser vida das pessoas. A história da ciência, da arte
aplicada a todos os campos do conhecimento e da filosofia é a maior prova da inconsistência
humano e pode ser tomada como base para dessa crítica. É por meio das abstrações que a
uma pedagogia que valorize o ensino, na esco- humanidade conhece, explica e representa a
la, daqueles conhecimentos que tenham se tor- realidade social e natural. Ao possibilitar aos
nado patrimônio universal da humanidade. Em alunos o acesso às abstrações científicas, artís-
vez disso, porém, vários educadores preferem ticas e filosóficas, a escola permite que esses
usar o conceito estético de polifonia para de- alunos dominem referências indispensáveis para
fender uma educação relativista que tem como a análise crítica do mundo no qual o aluno vive
resultado o esvaziamento dos conteúdos esco- e da concepção de mundo que serve de medi-
lares e a banalização da idéia de cultura. adora em suas relações com esse mundo.
Outro desafio filosófico e didático na Concluirei este artigo citando um tre-
construção de uma pedagogia marxista está na cho da reflexão registrada por Gramsci (1999)
questão da objetividade do conhecimento cien- sobre as relações entre filosofia e concepção de
tífico. Freqüentemente essa questão é mal inter- mundo. Creio não estar interpretando equivo-
pretada, como se a objetividade implicasse que o cadamente o pensamento gramsciano ao ver
conhecimento tivesse liquidado de uma vez por nessa passagem uma importante defesa da ne-
todas qualquer nova indagação sobre a realida- cessidade de elevação, por meio da Educação,
de conhecida. A objetividade do conhecimento é da concepção individual de mundo ao nível
alcançada por um processo histórico de contínua dos conhecimentos mais avançados e univer-
apropriação do objeto pelo pensamento. Como sais já alcançados pelo gênero humano:
escreveu Lênin (1975):
Quando a concepção de mundo não é crítica e
O conhecimento é o processo pelo qual o pen- coerente, mas ocasional e desagregada, perten-
samento se aproxima infinita e eternamente do cemos simultaneamente a uma multiplicidade
objeto. O reflexo da Natureza no pensamento de homens-massa, nossa própria personalidade
humano deve ser compreendido não de maneira é compósita, de uma maneira bizarra: nela se
‘morta’, não ‘abstratamente’, não sem movi- encontram elementos dos homens das cavernas e
mento, não sem contradição, mas sim no pro- princípios da ciência mais moderna e progressis-
cesso eterno do movimento, do nascimento das ta, preconceitos de todas as fases históricas pas-
contradições e sua resolução. (p. 123) sadas estreitamente localistas e intuições de

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 607-618, set./dez. 2006 617
uma futura filosofia que será própria do gênero ca torná-la unitária e coerente e elevá-la até o
humano mundialmente unificado. Criticar a ponto atingido pelo pensamento mundial mais
própria concepção de mundo, portanto, signifi- evoluído. (p. 94)

Referências bibliográficas

BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoievski


Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

DUARTE, N. A individualidade para-si


para-si: contribuição a uma teoria histórico-social da formação do indivíduo. Campinas: Autores
Associados, 1993.

______. Sociedade do conhecimento ou sociedade das ilusões? Quatro ensaios crítico-dialéticos em Filosofia da Educação.
Campinas: Autores Associados, 2003.

______. A rendição pós-moderna à individualidade alienada e a perspectiva marxista da individualidade livre e universal. In: DUARTE,
N. (Org.). Crítica ao fetichismo da individualidade
individualidade. Campinas: Autores Associados, 2004. p. 219-242.

GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere


cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v. 1. 1999.

LÊNIN, V. Os cadernos sobre a dialética de Hegel


Hegel. Lisboa: Editorial Minerva, 1975.

LEONTIEV, A. N. O desenvolvimento do psiquismo


psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte, 1978.

MARKUS, G. Marxism and anthropology


anthropology: the concept of “Human Essence” in the philosophy of Marx. Assen, Holanda: Van
Gorcum, 1978.

MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos


escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Os
Pensadores, 2. ed.)

______. O ca pital
capital
pital: crítica da economia política. São Paulo, Abril Cultural, 1984. v. I. Livro Primeiro: “O Processo de Produção do
Capital”. Tomo 2.

______. Elementos fundamentales para la crítica de la economía política (Grundrisse) 1857-1858


1857-1858. México: Siglo Veintiuno
Editores, 15. ed., v. 1., 1987a.

______. Elementos fundamentales para la crítica de la economía política (Grundrisse) 1857-1858


1857-1858. México: Siglo Veintiuno
Editores, 15. ed. v. 2. 1987b.

______. Early writtings


writtings. Londres: Penguin Books, 1992.

______.Grundrisse
Grundrisse. Londres: Penguin Books, 1993b.
Grundrisse

______. The german ideolog


ideologyy . Nova Iorque: Prometheus Books, 1998.

Recebido em 03.07.06
Aprovado em 09.10.06

Newton Duarte é docente da UNESP, campus de Araraquara, e pesquisador do CNPq.

618 Newton DUARTE. A contradição ente universalidade da cultura...

View publication stats

Você também pode gostar