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Artigo Duarte A Contradicao Entre Universalidade Da Cultura Huma
Artigo Duarte A Contradicao Entre Universalidade Da Cultura Huma
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Newton Duarte
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Newton Duarte
Universidade Estadual Paulista
Resumo
Palavras-chave
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 607-618, set./dez. 2006 607
The contradiction between the universality of human
culture and the void of social relations: for an
education to overcome the false choice between
ethnocentrism and cultural relativism
Newton Duarte
Universidade Estadual Paulista
Abstract
Keywords
Contact:
Newton Duarte
Depto de Psicologia da Educação
UNESP - Campus de Araraquara
Rodovia Araraquara-Jaú km 01
14800-901 – Araraquara – SP
e-mail: newton.duarte@uol.com.br
608 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.3, p. 607-618, set./dez. 2006
A libertação de cada indivíduo singular será forma alienada de enriquecimento do capital
alcançada na medida que a história seja total- pela classe trabalhadora. Entendo por classe
mente transformada em história mundial. A ri- trabalhadora a totalidade dos indivíduos que na
queza real do indivíduo depende inteiramente da sociedade capitalista vivem da transformação
riqueza de suas conexões reais. Apenas isso li- de sua atividade de trabalho em mercadoria,
bertará os indivíduos das barreiras nacionais e trocando-a por uma determinada quantidade de
locais, os trará para a conexão prática com a dinheiro, ou seja, vendendo a sua força de tra-
produção (inclusive a produção intelectual) de balho em troca de um salário. O núcleo da
todo o mundo e tornará possível a eles a aqui- classe trabalhadora é constituído por todos
sição da capacidade de desfrutar dessa multila- aqueles que executam o trabalho produtivo tal
teral produção de todo o planeta (as criações como este foi definido por Marx (1984):
do homem). (Marx, 1998, p. 59)
A produção capitalista não é apenas produção
É bastante conhecida a tese do fim das de mais-valia. O trabalhador produz não para
metanarrativas defendida pelo pós-modernismo, si, mas para o capital. Não basta, portanto,
a qual tem como um de seus corolários a ne- que produza em geral. Ele tem de produzir
gação da universalidade da cultura. Para o pós- mais-valia. Apenas é produtivo o trabalhador
modernismo, não se trata apenas do fato de que produz mais-valia para o capitalista, ou
que a cultura humana ainda não tenha alcan- serve à autovalorização do capital. Se for per-
çado um estágio de verdadeira universalidade mitido escolher um exemplo fora da esfera da
nem mesmo se trata do fato de que a classe produção material, então um mestre-escola é
dominante tenha até hoje submetido a cultura um trabalhador produtivo se ele não apenas
humana a seus interesses particulares de clas- trabalha as cabeças das crianças, mas extenua
se e, para tanto, tenha sufocado e destruído a si mesmo para enriquecer o empresário. O
muito da riqueza contida nas culturas locais. fato de que este último tenha investido seu ca-
Para o pós-modernismo, o problema não resi- pital numa fábrica de ensinar em vez de numa
de na visão burguesa de cultura humana, mas fábrica de salsichas, não altera nada da rela-
sim na própria idéia de que possa haver uma ção. O conceito de trabalho produtivo, portan-
cultura universal. Rejeitando tal idéia, os pós- to, não encerra de modo algum apenas uma
modernos afirmam que qualquer projeto educa- relação entre a atividade e efeito útil, entre
cional pautado explícita ou implicitamente no trabalhador e produto do trabalho, mas tam-
suposto da existência ou mesmo da possibilidade bém uma relação de produção especificamente
de uma cultura universal é um projeto conser- social, formada historicamente, a qual marca o
vador, autoritário e etnocêntrico. Em oposição a trabalhador como meio direto de valorização do
tudo isso, postulam o relativismo cultural como capital. Ser trabalhador produtivo não é, por-
um dos pilares da educação em geral, incluída tanto, sorte, mas azar. (p. 105-106)
nesta a educação escolar.
Apoiando-me em Marx, defenderei nes- Assinalo, apenas de passagem, que alguns
te artigo a existência de um processo histórico intérpretes de Marx têm uma compreensão redu-
de construção da cultura humana entendida zida desse conceito de trabalho produtivo, pois o
como a riqueza material e intelectual de todo identificam com o trabalho propriamente indus-
o gênero humano. Essa riqueza humana ainda trial, o que é claramente negado pela citação
traz a marca de todas as profundas contradi- apresentada acima. Deixando, porém, para outro
ções da intensa luta de classes, travada na his- momento as implicações dessa discussão para
tória da sociedade capitalista. Nessa sociedade, a análise do trabalho do professor, meu obje-
o enriquecimento do gênero humano existe na tivo aqui é o de defender a tese de que uma
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revolução mundial realizada pela classe traba- acompanhará aquela como sua legítima antí-
lhadora, ao suprimir totalmente da sociedade tese até sua abençoada morte. (Marx, 1987a,
essa subordinação do trabalho ao processo de p. 90; 1993b, p. 162, tradução minha).
valorização do capital, isto é, ao despir a rique-
za humana dessa sua forma historicamente si- Marx analisou com precisão e profun-
tuada, a forma de capital, tornará possível a didade essa contradição entre, por um lado, a
efetivação, na vida de todos os indivíduos, do universalização da alienação, decorrente da
potencial de emancipação humana contido universalização do valor de troca como medi-
nessa riqueza. Tal processo possibilitará a cons- ação entre os seres humanos e, por outro lado,
tituição de uma cultura universal, que supere os a criação de uma riqueza universal, de relações
limites das culturas locais, incorporando toda a sociais universais e de capacidades humanas
riqueza nelas contida e elevando essa riqueza universais. A criação pelos seres humanos de for-
a um nível superior. ças universais, isto é, a amplitude cada vez maior
Em trabalho anterior (Duarte, 2004), con- do processo de objetivação do gênero humano,
trapus a concepção pós-moderna de indivíduo à produz como efeito colateral uma certa nostalgia
concepção do indivíduo livre e universal elabora- do passado pré-capitalista, pois pareceria que
da por Marx, a qual tem sido objeto de meus nesse passado os indivíduos conseguiriam realizar-
estudos desde o livro A individualidade para-si se mais plenamente em comparação com o esva-
(Duarte, 1993). A questão da universalidade ocupa ziamento a que está submetido o indivíduo na
lugar central na concepção marxiana do desen- sociedade capitalista. Essa aparência de maior ple-
volvimento histórico da individualidade humana: nitude do indivíduo da sociedade pré-capitalista
resulta do caráter limitado e localizado das relações
Os indivíduos universalmente desenvolvidos, que o indivíduo tem com o mundo. No entanto,
cujas relações sociais, como suas próprias rela- Marx considerava a nostalgia desse passado tão
ções comunais são, portanto, também subordi- ridícula quanto acreditar que a história teria che-
nadas ao seu próprio controle comunal, não são gado ao seu fim, teria estancado para sempre
produto da natureza, mas sim da história. O nesse esvaziamento total. Esse esvaziamento,
grau e a universalidade do desenvolvimento da resultante da universalização do valor de troca
riqueza na qual essa individualidade torna-se como mediação social, manifesta-se, entre outras
possível supõe a produção sobre a base do valor maneiras, de uma forma particularmente inten-
de troca como uma pré-condição, cuja univer- sa no poder universal assumido pelo dinheiro, o
salidade produz a alienação do indivíduo não representante abstrato e universal da atividade
somente em relação a si mesmo e aos demais de trabalho na sociedade do capital:
indivíduos, mas também a universalidade e a
amplitude de suas relações e capacidades. Em A dependência mútua e generalizada dos indivíduos
estágios anteriores de desenvolvimento o indiví- reciprocamente indiferentes constitui seu nexo soci-
duo singular aparenta ser mais plenamente de- al. Este nexo social se expressa no valor de troca, e
senvolvido, porque ele ainda não exercitou suas somente neste a atividade do indivíduo e o produto
relações em sua plenitude, ou não as erigiu dessa atividade se transformam em atividade ou em
como poderes sociais independentes e relações a produto para o próprio indivíduo. O indivíduo deve
ele contrapostas. É tão ridículo ansiar por um produzir um produto universal: o valor de troca
retorno a essa plenitude original como o é acre- ou, considerado este em si mesmo isolado e indi-
ditar que a história tenha paralisado-se nesse vidualizado, o dinheiro. O indivíduo leva consigo
esvaziamento completo. A visão burguesa ja- mesmo, em seu bolso, o poder social, bem como
mais avançou para além dessa oposição entre seu nexo com a sociedade. (Marx, 1987a, p. 98;
ela e a visão romântica e, por isso, esta última 1993b, p. 156-157, tradução minha)
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espécie animal com o meio ambiente é sempre dade privada. A superação dessa atitude somen-
limitada aos processos que asseguram a repro- te seria possível por meio da superação da
dução biológica da espécie. Mesmo nos casos propriedade privada, isto é, da sociedade capi-
dos animais adestrados e incluídos em ativida- talista. É nesse sentido que, nos Manuscritos
des humanas, a relação deles com essas ativi- econômico-filosóficos de 1844, Marx (1978)
dades ocorre nos limites das necessidades pu- afirma que a socialização da riqueza também
ramente biológicas. implica uma mudança nas relações entre os
Pelo fato das relações entre o gênero indivíduos e as forças essenciais humanas ob-
humano e a natureza serem mediatizadas por jetivamente existentes na sociedade, as quais,
ações que não satisfazem necessidades biológi- no comunismo, tornar-se-iam forças essenciais
cas e por objetos (os instrumentos) que também também do indivíduo, assim como os objetos
não satisfazem diretamente as necessidades dos sociais (ou mais genericamente os fenômenos
indivíduos, forma-se na atividade social uma da cultura) tornar-se-iam o aspecto objetivo da
tendência à expansão tanto da amplitude dos individualidade:
fenômenos naturais incorporados à dinâmica
sociocultural como também das relações que os Como vimos, o homem só não se perde em seu
seres humanos estabelecem uns com os outros objeto quando este se configurar como objeto
e com suas próprias atividades e seus próprios humano ou homem objetivado. E isso somente
produtos. A mediação torna-se um fenômeno será possível quando se lhe configurar como objeto
essencial ao gênero humano. social e quanto ele mesmo se configurar como ser
Nesse processo de ampliação constan- social, assim como a sociedade se configurará
te da apropriação da natureza pela atividade nesse objeto como ser para ele. (p. 11-12)
social, o gênero humano torna-se cada vez
menos submetido à pura causalidade das for- Trata-se aqui da relação entre os seres
ças naturais e vai submetendo essas forças às humanos e a totalidade da cultura humana. Se
finalidades conscientes da atividade humana. a humanização é resultante da construção social
Essa socialização das forças naturais não divor- dessa cultura, entendida como o processo his-
cia o ser humano da natureza, mas sim incor- tórico de objetivação do gênero humano, e da
pora esta à processualidade social. Em Marx, o apropriação das obras e dos fenômenos culturais
processo de desenvolvimento do gênero humano pelos indivíduos, então a emancipação da hu-
é, ao mesmo tempo, um processo de humanização manidade deverá ocorrer como transformação da
da natureza e de naturalização do ser humano apropriação dessa cultura e, por conseqüência,
(Markus, 1978). transformação também da objetivação tanto do
O processo histórico de desenvolvimen- gênero humano quanto de cada indivíduo. Marx
to humano é também visto por Marx como uma já havia analisado no século XIX algo que neste
mudança na maneira como os seres humanos início de século XXI torna-se cada vez mais
se relacionam com as condições sociais de visível: apropriação da totalidade das forças
produção e reprodução da vida em sociedade. produtivas pela totalidade dos trabalhadores é
De início, as condições nas quais os seres hu- necessária tanto para o desenvolvimento da
manos trabalham, bem como as próprias rela- auto-atividade como também para a própria
ções sociais que presidem a divisão social do sobrevivência dos trabalhadores. A alienação
trabalho e a apropriação dos produtos do tra- atinge não apenas a atividade de trabalho em
balho são tomadas pelos indivíduos como algo si mesma, que se torna opressiva, desumana e
imutável, natural e integrante da própria vida. sem outro sentido para o trabalhador além
Tal atitude prevalece, segundo Marx, durante daquele dado pela venda de sua força de tra-
toda a história humana marcada pela proprie- balho em troca do salário. A alienação também
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no. No entanto, mesmo reconhecendo toda essa estágio do esvaziamento completo. Ao mesmo
importância da ciência, Marx (1993) ressaltou tempo, é esse estágio que destrói as barreiras
que a força desta no embate das idéias está que as comunidades locais anteriormente ante-
relacionado ao momento no qual se encontre o punham ao desenvolvimento dos indivíduos.
desenvolvimento das forças produtivas no seu Entretanto, isso ‘liberta’ o indivíduo apenas para
todo e, em particular, o desenvolvimento da base que ele não tenha outro vínculo com a sociedade
material da sociedade. que não seja o contrato de venda de sua força de
trabalho para o capital. É esse processo que gera
Em verdade, havia não somente um desenvolvi- a ilusão de que retornar às comunidades locais re-
mento sobre a velha base, mas também um de- humanizaria o indivíduo, traria de volta a plenitu-
senvolvimento da própria base. O mais alto de- de primitiva. No entanto, na verdade, trata-se de
senvolvimento da própria base [...] é o ponto no uma ilusão pensar dessa maneira. A solução não
qual ela foi desenvolvida numa forma que é reside no retrocesso em relação à universalização
compatível com mais alto desenvolvimento das realizada pelo capital, mas sim na sua superação
forças produtivas e, portanto, também o mais por uma sociedade na qual a universalização não
alto desenvolvimento dos indivíduos. Tão logo seja feita às custas dos indivíduos:
esse ponto é alcançado, o desenvolvimento poste-
rior aparece como decadência e o novo desenvol- Assim a antiga visão, na qual o ser humano
vimento inicia-se sobre uma nova base. (p. 541, aparece como o objetivo da produção, indepen-
tradução minha) dentemente de seu limitado caráter nacional,
religioso e político, aparenta ser muito superior
Diferentemente das sociedades que a quando contrastada com o mundo moderno, no
precederam, a sociedade capitalista promove a qual a produção aparece como o objetivo da
destruição de tudo que se apresente como bar- humanidade e a riqueza, como o objetivo da
reiras à produção da riqueza. Tal produção pas- produção. Contudo, na verdade, quando sua li-
sa a ser um fim em si mesma, porque ela sig- mitada forma burguesa é removida, o que é a
nifica valorização do capital a qual é alcançada, riqueza senão a universalidade das necessidades,
como anteriormente foi mencionado, pela apro- capacidades, prazeres, forças produtivas etc.,
priação da mais-valia e pela universalização do dos indivíduos, criados por meio do intercâmbio
valor de troca. A macrovisão histórica de Marx universal? O pleno desenvolvimento do domínio
pode ser considerada como sendo caracteriza- humano das forças da natureza, tanto aquelas da
da por três estágios do desenvolvimento da in- assim chamada natureza como aquelas da própria
dividualidade humana. O primeiro estágio seria natureza humana? A absoluta explicitação de suas
o das sociedades pré-capitalistas nas quais o potencialidades criativas, sem nenhum outro pres-
desenvolvimento dos indivíduos teria como suposto que não seja o prévio desenvolvimento
barreiras naturais aquelas postas pela própria histórico, o qual transforma em um fim em si
vida em comunidade. Nesse primeiro estágio, mesmo esse desenvolvimento em sua totalidade,
há uma fusão entre o indivíduo trabalhador e isto é, o desenvolvimento de todas as forças hu-
as forças produtivas existentes na comunidade. manas, não sendo medido por nenhum padrão
No segundo estágio, seria o da sociedade ca- predeterminado? No qual ele [o indivíduo] não
pitalista, no qual as forças produtivas separam- reproduz apenas a si mesmo em sua particulari-
se do indivíduo e colocam-se frente a ele como dade, mas produz sua totalidade? [No qual o
forças estranhas e das quais ele se encontra ali- indivíduo] empenha-se por não permanecer na-
enado. O trabalho objetivado domina a ativida- quilo que ele veio a ser, estando em contínuo
de do trabalhador. O trabalho morto compra o movimento de vir a ser? (Marx, 1993, p. 487-
trabalho vivo e dele extrai a mais-valia. É o 488, tradução minha)
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maneira tão forte a mentalidade dos alunos? Tudo isso se traduz, no que diz respeito ao
Em termos do debate sobre o etno- campo educacional, na defesa de uma pedago-
centrismo e o relativismo cultural, defendo, por- gia marxista que supere a educação escolar em
tanto, que é um equívoco considerar-se suas formas burguesas sem negar a importân-
etnocêntrica a transmissão universalizada da ci- cia da transmissão, pela escola, dos conheci-
ência e da arte pela escola e que é também um mentos mais desenvolvidos que já tenham sido
equívoco considerar-se que o relativismo cultu- produzidos pela humanidade.
ral favoreça o livre desenvolvimento dos indi-
víduos. Não se trata de propor uma volta ao Os desafios didáticos e
Iluminismo assim como não se trata de uma filosóficos na construção de
aceitação ingênua da forma capitalista de acu- uma pedagogia marxista
mulação da riqueza e sua corresponde concep-
ção de progresso social. Para escapar à arma- Um dos desafios ao mesmo tempo filo-
dilha contida na opção entre etnocentrismo e sóficos e didáticos no desenvolvimento dessa
relativismo cultural, é preciso adotar-se a pers- pedagogia é o da análise da dialética entre a
pectiva da superação do capitalismo rumo a natureza contextual da produção do conheci-
uma sociedade comunista tal como ela foi mento e a validade universal (em maior ou
concebida por Marx em seus escritos. Uma menor grau) do conhecimento como produto.
sociedade comunista deve ser uma sociedade A universalidade não implica, porém, a perda da
superior ao capitalismo e, para tanto, ela terá de historicidade do conhecimento ou, o que seria
incorporar tudo aquilo que, tendo sido produ- idêntico, seu suposto valor eterno. O conheci-
zido na sociedade capitalista, possa contribuir mento é universal enquanto tem validade para
para o desenvolvimento do gênero humano, toda a humanidade, mas deixa de sê-lo tão
para o enriquecimento material e intelectual da logo venha a ser superado. A propósito da
vida de todos os seres humanos. Minha recu- complexa dialética entre o contexto específico —
sa do pensamento pós-moderno não decorre no qual é gerado um determinado produto cul-
do fato de ele ser um produto cultural da so- tural — e a validade universal que esse produto
ciedade burguesa, mas sim do fato de se tratar pode vir a adquirir, vale a pena citar aqui uma
de uma ideologia que, ao invés de valorizar passagem de Bakhtin (1997), na qual este argu-
aquilo que de humanizador a sociedade bur- menta que as circunstâncias sociais, ideológicas
guesa tenha produzido, se entrega de corpo e e da personalidade de Dostoievski influenciaram
alma à celebração do irracionalismo, do ceticis- na construção artística dos romances desse es-
mo e do cinismo. Minha radical rejeição do critor, mas que suas obras trouxeram para a li-
pensamento pós-moderno visa, entre outras teratura uma contribuição artística que em muito
coisas, defender uma abordagem marxista que ultrapassou os limites circunstanciais da vida
supere os limites do Iluminismo sem negar o daquele romancista:
caráter emancipatório do conhecimento e da
razão; que supere os limites da democracia As contradições extremamente exacerbadas do jo-
burguesa sem negar a necessidade da política; vem capitalismo russo, o desdobramento de
que supere os limites da ciência posta a servi- Dostoiévski enquanto indivíduo social e sua inca-
ço do capital sem, entretanto, negar o caráter pacidade pessoal de adotar determinada solução
indispensável da ciência para o desenvolvimen- ideológica, tomados em si mesmos, são algo ne-
to humano; que supere a concepção burguesa gativo e historicamente transitório mas, não
de progresso social sem negar a possibilidade obstante, constituíram as condições ideais pra a
de fazer a sociedade progredir na direção de criação do romance polifônico, ‘daquela inaudita
formas mais evoluídas de existência humana. liberdade de vozes na polifonia de Dostoievski’
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uma futura filosofia que será própria do gênero ca torná-la unitária e coerente e elevá-la até o
humano mundialmente unificado. Criticar a ponto atingido pelo pensamento mundial mais
própria concepção de mundo, portanto, signifi- evoluído. (p. 94)
Referências bibliográficas
______. Sociedade do conhecimento ou sociedade das ilusões? Quatro ensaios crítico-dialéticos em Filosofia da Educação.
Campinas: Autores Associados, 2003.
______. A rendição pós-moderna à individualidade alienada e a perspectiva marxista da individualidade livre e universal. In: DUARTE,
N. (Org.). Crítica ao fetichismo da individualidade
individualidade. Campinas: Autores Associados, 2004. p. 219-242.
______. O ca pital
capital
pital: crítica da economia política. São Paulo, Abril Cultural, 1984. v. I. Livro Primeiro: “O Processo de Produção do
Capital”. Tomo 2.
______.Grundrisse
Grundrisse. Londres: Penguin Books, 1993b.
Grundrisse
Recebido em 03.07.06
Aprovado em 09.10.06