Você está na página 1de 8

A doutrina brasileira do habeas corpus e a

origem do mandado de segurança


Análise doutrinária de anais do Senado e da
jurisprudência histórica do Supremo Tribunal Federal

Luiz Henrique Boselli de Souza

A origem do mandado de segurança


em nosso ordenamento jurídico está in-
trinsecamente relacionada com a história
da defesa dos direitos fundamentais em
juízo e também com o que ficou conhecido
como Doutrina Brasileira do Habeas Corpus
no período da Primeira República.
Em nossa atual Constituição, o habeas
corpus coloca-se ao lado do mandado de
segurança, do mandado de injunção, do
habeas data, da ação popular e da ação civil
pública para formar o rol dos remédios
constitucionais ou writs. Esse termo, como
ressalta Manoel Gonçalves Ferreira Filho
(1999, p. 85), “lembra que na origem eram
ordens escritas, em latim, expedidas pelos
tribunais reais. Com efeito, writ tem a mes-
ma raiz do verbo to write (escrever)”.
Essas ações constitucionais são espécies
de garantias ativas, ou seja, instrumentos
jurídicos para se defender e implementar
os demais direitos. Direitos sem garantias
tornam-se fórmulas vazias, faltando-lhes o
veículo para a efetividade. Essa distinção
já era sabiamente feita por Ruy Barbosa ao
tempo da Primeira República.
Ocorre que a Constituição de 1891, do-
Luiz Henrique Boselli de Souza é mestre cumento de notórias influências liberais e
e doutorando em Direito do Estado pela Uni- que trazia em seu bojo uma Declaração de
versidade de São Paulo – USP; especialista em Direitos na qual eram enunciados direitos
Processo Civil pela Pontíficia Universidade
eminentemente individuais, continha ape-
Católica de Campinas e em Interesses Difusos
e Coletivos pela Escola Superior do Ministério
nas uma espécie de garantia ativa ou writ:
Público de São Paulo. o habeas corpus.

Brasília a. 45 n. 177 jan./mar. 2008 75


Em razão disso, o tempo e a prática ju- O habeas corpus já estava previsto no
diciária evidenciaram a carência de instru- Código Criminal de 1830 e no Código de
mentos para defesa de inúmeros direitos. Processo Criminal de 1832. Tais textos, po-
A conseqüência foi uma reinterpretação do rém, faziam menção expressa à prisão e ao
instituto do habeas corpus decorrente dos es- constrangimento físico. Por isso, defendia
forços doutrinários e da jurisprudência do Ruy Barbosa que “a questão está resolvida
Supremo Tribunal Federal, dando origem pelo confronto da letra das instituições
à doutrina brasileira do habeas corpus, que republicanas com a letra das instituições
conferiu, em nossa terra, ao antigo instru- imperiais. Se a Constituição de 1891 preten-
mento processual inglês, maior extensão. desse manter no Brasil o habeas-corpus com
Segundo alguns, a maior do mundo. os mesmos limites dessa garantia durante
A razão disso estava na redação original o Império, a Constituição de 1891 teria
do art. 72, § 22, da Constituição de 1891 que procedido em relação ao habeas-corpus como
dizia, “dar-se-á habeas-corpus sempre que o procedeu relativamente à instituição do
indivíduo sofrer ou se achar em iminente júri. A respeito do júri, diz formalmente o
perigo de sofrer violência ou coação, por texto constitucional: É mantida a instituição
ilegalidade ou abuso de poder”. do júri”. E completa Ruy: “o habeas-corpus
Como se pode notar, o referido dis- hoje não está circunscrito aos casos de
positivo não fazia nenhuma remissão constrangimento corporal; o habeas-corpus
ao direito de ir e vir, nem à liberdade de hoje se estende a todos os casos em que
locomoção. Também não falava em prisão, um direito nosso, qualquer direito, estiver
constrangimento corporal, em liberdade física ameaçado, manietado, impossibilitado no
propriamente dita. Somando-se a isso a seu exercício pela intervenção de um abuso
presença das expressões coação, ilegalidade de poder ou de uma ilegalidade” (SENADO
e abuso de poder, construiu-se a tese da uti- FEDERAL, [19 -- ?]).
lização desse writ em todas essas hipóteses, Como exemplo, o Habeas Corpus no 3.536
independentemente da presença de um do Supremo Tribunal Federal, de 6 de maio
constrangimento físico direto. de 1914, em que Ruy Barbosa é, ao mesmo
Essa tese, que ficou conhecida como tempo, impetrante e paciente. Insurge-se o
a Doutrina Brasileira do Habeas Corpus, então Senador pelo Estado da Bahia contra
encontrou em Ruy Barbosa ardoroso de- o Chefe de Polícia que impediu a publi-
fensor. Segundo ele, “não se fala em prisão, cação no jornal denominado O Imparcial
não se fala em constrangimentos corporais. de discurso por ele proferido no Senado
Fala-se amplamente, indeterminadamente, Federal contra ato do Governo da União
absolutamente, em coação e violência; de que, infringindo preceitos constitucionais,
modo que, onde quer que surja, onde quer prorrogou por seis meses o estado de sítio.
que se manifeste a violência ou a coação, Assim decidiu o Supremo:
por um desses meios, aí está estabelecido “Considerando que o constrangi-
o caso constitucional do habeas corpus” mento ou coação de um deputado ou
(SENADO FEDERAL, [19 -- ?]). senador no exercício de seu mandato
Ruy defendia a utilização do habeas cor- concedido pela soberania nacional,
pus em todas as hipóteses. Para ele, não se partindo de poder público, incide
tratava de uma mera interpretação do texto evidentemente na hipótese do art. 72,
constitucional. Antes, o legislador consti- § 22, da Constituição da República,
tuinte havia, de fato, agido intencionalmen- que manda conceder habeas corpus
te, dando ao instituto do habeas corpus co- ‘sempre que o indivíduo sofrer ou se
notação ampla, tornando-o instrumento de achar em iminente perigo de sofrer
defesa contra todos os abusos e ilegalidades. violência ou abuso de poder’;

76 Revista de Informação Legislativa


Considerando que o fato de que se termos, e não com a generalidade que
queixa o senador impetrante do pre- a maioria lhe empresta.
sente habeas corpus ‘de se achar priva- É essa a opinião de Lucio de Men-
do de publicar os seus discursos na donça, conselheiro Lafayette, Hwrd,
impressa, fora do Diário Oficial’, por Kent, Rossi, Blackstone e outros, os
ato do chefe de Polícia desta cidade, quais provam que o habeas corpus é
importa em manifesta restrição na destinado tão-somente a proteger a
sua liberdade de representante da liberdade pessoal, isto é, o poder de
Nação, porque o seu mandato deve franca locomoção: personal liberty is
ser cumprido em sessões públicas do the power of unrestrained locomotion.
parlamento (art. 18 da Constituição), Este artigo, pela expressão indivíduo,
em discursos, pela palavra falada circunscreve a disposição à pessoa
para a Nação que ele representa; física. Na hipótese, por exemplo, do
Considerando que neste regímen art. 80, § 2o da lei fundamental, só
político a publicidade dos debates as pessoas físicas podem ser presas
do Parlamento é da sua essência, e desterradas e não as morais, por
porque todos os poderes políticos não serem susceptíveis de prisão ou
surgem da Nação no exercício de sua desterro.
soberania, e ela, como comitente do O impetrante e paciente não está
mandato, precisa saber como agem coagido em sua liberdade, nem ame-
seus representantes; açado de constrangimento ilegal com
Considerando finalmente que a relação à sua pessoa” (SUPREMO
publicação dos discursos, restrita à TRIBUNAL FEDERAL, [19 -- ?]).
imprensa oficial sob a fiscalização do Outro julgado emblemático foi o do
executivo, anula a publicidade; “Caso da Bahia”, em que os advogados Ruy
Acordam por estes fundamentos Barbosa e Methodio Coelho impetraram
conceder a ordem impetrada, para ordem de habeas corpus em favor de Aurélio
que seja o impetrante, senador Ruy Rodrigues Vianna, 2o vice-governador em
Barbosa, assegurado no seu direito exercício do Estado da Bahia, e outros de-
constitucional de publicar os seus putados estaduais, alegando encontrarem-
discursos proferidos no Senado, pela se em constrangimento ilegal, pois haviam
imprensa, onde, como e quando lhe sido impedidos de exercer seus cargos em
convier” (SUPREMO TRIBUNAL Salvador, ocupada por força militar da
FEDERAL, [19 -- ?]). União. Neste julgado, Habeas Corpus no
A questão, porém, contou com votos 3.137 do Supremo Tribunal Federal, ficou
divergentes, que demonstram a polêmica consignado que “compete ao Poder Judici-
do debate acerca do cabimento do habeas ário garantir com habeas corpus a liberdade
corpus em hipótese como esta que, na ver- individual necessária ao exercício das
dade, resguarda a liberdade de expressão. funções políticas” (SUPREMO TRIBUNAL
De fato, vale consignar o voto do Ministro FEDERAL, [19 -- ?]).
Godofredo Cunha, vencido: Em verdade, à posição extrema de Ruy
“Não tomei conhecimento do pre- Barbosa contrapunha-se a interpretação or-
sente pedido de habeas corpus, por todoxa do habeas corpus apenas como meio
entender que este não é o remédio de defesa da liberdade de ir e vir.
hábil para corrigir ou reparar o mal Entretanto, de notável importância,
de que se queixa o impetrante. posto que empregada na jurisprudência
O preceito do art. 72, § 22, da Cons- do Supremo Tribunal Federal, foi corrente
tituição, deve ser interpretado em intermediária que, a despeito de também

Brasília a. 45 n. 177 jan./mar. 2008 77


permitir uma interpretação mais ampla, o impetrante fosse privado de sua liber-
fundava seu entendimento na tese de que dade, que deveria ser vista também como
a liberdade de locomoção era condição um meio de exercício de todos os demais
necessária para o exercício de inúmeros direitos. Tanto que, dias após, votou favo-
outros direitos que, por isso, poderiam ser ravelmente à Concessão da ordem a outro
protegidos pelo habeas corpus. grupo de Conselheiros do Distrito Federal,
De fato, nenhum direito pode ser exerci- os quais ele considerava regularmente
do se não houver liberdade de locomoção. investidos e que, portanto, pretendiam tão-
Ela é condição e meio para o exercício de somente a preservação de sua liberdade de
praticamente todos os demais direitos. Se exercer suas funções, e não a investidura.
um redator é impedido de adentrar na sede Em suas exatas palavras no HC no 2794, de
do jornal, ou se um religioso é obstado a 11.12.1909:
freqüentar determinado culto, justificada “O habeas corpus tem por função
seria a concessão de habeas corpus; porém, exclusiva garantir a liberdade indi-
não para defender a liberdade de impren- vidual, e não investir quem quer que
sa, ou a liberdade de religião, mas sim o seja em funções políticas e adminis-
direito de ir e vir, condição para o exercício trativas.
daqueles. Desta vez concedi a ordem, porque,
Exemplo concreto é o caso dos Con- analisando a espécie, verifiquei que é com-
selheiros Municipais do Distrito Federal. pletamente distinta da anterior.
Alegando ilegalidade na formação interna Os impetrantes, neste caso, alegam e
do referido Conselho, com infração a dispo- provam que, exercendo os direitos que
sitivos do Regimento Interno, o Presidente lhes davam os seus diplomas, passados
da República expediu decreto impedindo pela Junta de Pretores, se haviam reunido
o Conselho de compor-se e reunir-se, fe- regularmente sob a presidência do mais
chando também o edifício. Contra tal ato velho para a verificação de poderes.
e em favor de Conselheiros eleitos foram O habeas corpus tem por fim exclusivo
impetrados habeas corpus a fim de ser permi- garantir a liberdade individual.
tido o ingresso dos pacientes no edifício do A liberdade individual ou pessoal, que
Conselho e para o exercício do mandato. é a liberdade de locomoção, a liberdade
O mérito pela tese que coloca o direito de ir e vir, é um direito fundamental, que
de locomoção como condição para os de- assenta na natureza abstrata e comum do
mais, possibilitando o amparo pelo habeas homem.
corpus, deve ser atribuído a Pedro Lessa, A todos é necessária; ao rico e ao indi-
então Ministro do Supremo Tribunal Fede- gente; ao operário e ao patrão; ao médico
ral. Para ele, o habeas corpus tem função es- e ao sacerdote; ao comerciante e ao advo-
pecífica de proteger a liberdade, entendida gado; ao Juiz e ao industrial; ao soldado
em sua acepção estrita. Tanto que chegou a e ao agricultor; aos governados e aos go-
negar provimento em um dos habeas corpus vernantes.
do Conselho do Distrito Federal, sob o ar- O direito de locomoção é uma condição
gumento de que o que se tentou conseguir sine qua non do exercício de uma infinidade
“não foi garantir a liberdade individual de direitos.
somente, mas resolver concomitantemente Usa o homem da sua liberdade de
uma questão de investidura em funções de locomoção para cuidar da sua saúde,
ordem legislativa” (SUPREMO TRIBUNAL para trabalhar, para fazer seus negócios,
FEDERAL, [19 -- ?]). para se desenvolver científica, artística e
Porém, Lessa defendia que o habeas religiosamente”. (SUPREMO TRIBUNAL
corpus deveria ser admitido sempre que FEDERAL, [19 -- ?]).

78 Revista de Informação Legislativa


Quando Pedro Lessa afirmava que o são tolhidas por outros meios que não a
habeas corpus servia à proteção da liberdade coação à liberdade de locomoção, absurdo
entendida em sentido estrito (ponto em fora conceder o habeas-corpus para garantir
que foi, inclusive, acusado de contraditório quaisquer direitos fundamentais. Se uma
pelo Presidente da República na ocasião em autoridade despótica arranca um templo,
que concedeu habeas corpus em favor dos apreende arbitrariamente os exemplares
Conselheiros), ele queria dizer, na verdade, de um livro, ou de uma folha diária, quem
que o writ não se prestava a defender outros no gozo de suas faculdades mentais se
direitos que não o de liberdade, mas que, lembraria de requerer um habeas-corpus?”.
todavia, deveria ser concedido sempre que (REVISTA DO SUPREMO TRIBUNAL
este, de alguma maneira, mesmo como con- FEDERAL, 1914, p. 267)
dição de outros direitos, fosse ofendido. Para Pontes de Miranda (1972, p. 185),
Pontes de Miranda (1972) critica o en- “a argumentação do ministro obscurecia a
tendimento de Pedro Lessa externado no verdadeira extensão do habeas-corpus: não
Habeas Corpus no 3.567, de 1o de julho de se protege o indivíduo, nesses casos, pelo
1914, quando este diz que “é evidente que simples fato de não serem atentados à li-
a liberdade de pensamento, a de consci- berdade física, e sim a coisas. Se fossem, o
ência e a religiosa podem ser violadas por habeas-corpus seria indicado. Não no sendo,
dois modos: ou pela coação à liberdade de como nos exemplos lembrados pelo jurista,
locomoção impedindo-se que o jornalista, o ou dar-se-ia início ao processo criminal
tipógrafo e os demais empregados do jornal pelos crimes imputados, ou, no caso de
penetrem no edifício da folha ou pratiquem dano, propor-se-ia, para eficiente e pleno
quaisquer outros atos de locomoção, ne- reembolso do paciente, a respectiva ação
cessários à publicação do jornal, ou que o de indenização...”.
orador vá à praça pública ou suba à tribuna No entanto, Pontes de Miranda (1972,
onde tem de falar, que o adepto de certas p. 186), não era a favor da interpretação
idéias religiosas se afaste do lugar onde lhe restritiva ou ortodoxa do habeas corpus.
ofendem as crenças, que o sectário de um Muito pelo contrário, como se pode inferir
culto se entregue aos atos do culto externo, das seguintes passagens: “Qualquer que
dependentes da liberdade de movimen- fosse o modo de acentuar, restringindo
tos, ou por outros quaisquer meios, pelo ou ampliando, as limitações do remédio,
embaraço ao exercício de outros direitos, da forma, que o da Constituição de 1891,
tolhendo-se, por exemplo, a construção de art. 72, § 22, equiparou a direito público
edifícios que tenham a forma de templo, constitucional, subjetivo, o que não se pode
apreendendo-se uma tipografia, todos os negar é a intenção do constituinte dando-
exemplares de um livro, exigindo-se, para lhe mais larga esfera de aplicabilidade. Boa
a nomeação para certos cargos públicos, ou ou excessiva: pouco importaria. Era o que
para todos, a profissão de certa fé religiosa. lá estava”.
No primeiro caso, está claro que o remédio E mais adiante: “E que é que dizia o
é o habeas-corpus, visto como há coação § 22 da Declaração de Direitos? O que os
ilegal à liberdade de locomoção, condição, vocábulos desse parágrafo consignavam e
meio, caminho, para um sem-número mandavam é que se desse o habeas-corpus
de direitos. Dá-se o habeas-corpus para o ‘sempre’ que houvesse coação ou violência,
paciente ir à praça pública, ou ao edifício proveniente de atos ilegais ou abuso de
do jornal, e poder manifestar os seus pen- poder. O ‘abuso de poder’ era conceito, aí,
samentos pela tribuna ou pela imprensa” complementar de ‘ilegalidade’. A Consti-
(...) “Quando a liberdade de pensamento, tuição considerou que o abuso de poder
a de consciência e a de cultos, ou religiosa, pode não ser ilegal. Como se deveria en-

Brasília a. 45 n. 177 jan./mar. 2008 79


tender isso? Restritivamente, como se todos sentado pelo antigo instrumento jurídico
esses dizeres mantivessem apenas a antiga inglês, adquiriu contornos pátrios bem
instituição? A negativa impunha-se a olhos particulares. Alguns chegaram a dizer que
vistos. Seria acusar o legislador constituinte o instituto brasileiro era o mais amplo do
de incurável e absoluta incompetência, ou mundo. Outros o comparam com o direito
prolixidade vazia, em coisas de escrever. de amparo previsto na Constituição do
Seria excetuar, por meio de interpretação México de 1917.
cinicamente tendenciosa, toda a história De qualquer forma, esse episódio foi um
liberal de nossa jurisprudência e de nossa dos capítulos mais importantes de nossa
política. Seria mais ainda: atentaria contra história jurídica, principalmente por ter
os mais corriqueiros preceitos universais de dado azo ao desenvolvimento e a posterior
exegese” (MIRANDA, 1972, p. 187). criação de outros institutos. Para Pontes de
Assim, apresenta seu veredicto: “tec- Miranda (1972, p. 233), “a tese reacionária
nicamente, o parágrafo estava perfeito. e a antítese liberal fizeram explodir a mais
Miudear circunstâncias seria impróprio memorável contenda jurídica constitucio-
de uma Constituição: dizer mais do que nal do Brasil. Mais: da América Latina”.
disse rastrearia pelo ocioso e redundante; Tal foi a eficiência e a eficácia do habeas
e dizer menos seria prometer outra coisa corpus durante o atribulado período da
menos liberal, o que não foi, positivamente, Primeira República que logo precipitou
a intenção do constituinte” (MIRANDA, seu fim.
1972, p. 188). De fato, em 3 de setembro de 1926 ad-
Othon Sidou (1969, p. 53), assim como veio revisão constitucional que introduziu
Pontes de Miranda (1972), enxerga no alterações no art. 72 da Constituição de
habeas corpus da Constituição de 1891 uma 1891, a declaração de direitos. No entanto,
criação típica nacional, visando a defesa dos nenhuma delas foi tão substancial como a
direitos fundamentais. Para ele o equívoco realizada no parágrafo 22, que passou a ter
foi mais na escolha do nome do instituto a seguinte redação: “Dar-se-á o habeas-cor-
criado para defesa dos direitos individuais pus sempre que alguém sofrer ou se achar
do que nele próprio. Segundo Sidou, “é em iminente perigo de sofrer violência por
tempo de atentar para que, em verdade, meio de prisão ou constrangimento ilegal
o que a primeira constituição republicana em sua liberdade de locomoção”.
fez não foi elevar o habeas corpus da sua A leitura demonstra que foi omitida
condição processual para dar-lhe guarida a coação e acrescentada a liberdade de
em seu bojo, porém batizar com o nome locomoção.
específico do habeas corpus a garantia gené- Passando a fazer referência expressa
rica em preservação dos direitos pessoais. ao direito de locomoção, a Constituição
Criou-se um instituto que, potenciado em restringiu o campo de aplicação do habeas
defesa dos direitos individuais, exigia curso corpus às hipóteses de cerceamento do di-
célere, e nesse propósito, perseguindo a reito de ir, ficar e vir.
rapidez, deu-se-lhe o nome de habeas corpus, A jurisprudência ainda tentou resistir,
tomando de seu, apenas, essa característica, mantendo a interpretação de que o writ po-
peculiar a todos os interditos, e de todas a deria ser utilizado sempre que a liberdade
mais impositiva”. de locomoção fosse um direito condição
Houve, assim, sem dúvida, a criação de para o exercício de outros direitos, mas
uma doutrina própria e autêntica do habeas certamente a posição restou enfraquecida
corpus – a doutrina brasileira –, denomi- pela alteração constitucional.
nação justa em face de sua originalidade, Direitos outros que não a liberdade de
que, apesar de ter partido do molde apre- locomoção restaram, dessa forma, desam-

80 Revista de Informação Legislativa


parados. E para solucionar esse problema a Porém, em 1946 o mandado de segu-
doutrina teve que buscar alternativas. rança retornou ao quadro constitucional,
Alguns chegaram a defender a tese da nele permanecendo até hoje. Vale destacar,
posse dos direitos pessoais, ensejando a todavia, a redação do art. 141, § 24, da
possibilidade de utilização dos interditos Constituição da 1946, que assim dispunha:
possessórios para sua defesa. Ruy Barbosa “Para proteger direito líquido e certo não
foi novamente um dos defensores de tal amparado por habeas-corpus, conceder-se-á
tese, que acabou não vingando. mandado de segurança, seja qual for a au-
Mas o fato é que a discussão jurídica ao toridade responsável pela ilegalidade ou
fim da doutrina brasileira do habeas corpus abuso de poder”.
acabou rendendo frutos. A lacuna teria que Certo é que a menção expressa a tutela
ser preenchida por outro instrumento. por via de mandado de segurança de direi-
Esse cenário fez parte da gênese do to não amparado por habeas corpus – e na
mandado de segurança, criação jurídica atual Constituição acrescida da referência
nacional como a doutrina que o precedeu também ao habeas data – deixa transparecer,
e incentivou, introduzido pela primeira vez sem dúvida, sua origem.
na Constituição de 1934 (art. 113). Na esteira desse dispositivo constitu-
Como disse Pontes de Miranda (1972, p. cional, adveio a lei disciplinadora em 1951
235): “como dar remédio àquelas coações (Lei no 1.533, de 31 de dezembro), até hoje
e ameaças provindas dos poderes públicos vigente.
quando a liberdade de locomoção não fosse Assim, a análise da doutrina brasileira
o direito condição? Foi então que se pensou do habeas corpus e das origens do mandado
no Mandado de Segurança, criação poste- de segurança demonstra que este surgiu
rior, porém que remonta ao projeto de Gui- da necessidade e da importância de se dis-
desteu Pires, em 1926. A data é sugestiva. ponibilizar ao cidadão instrumentos para
Fechando-se a porta que a jurisprudência a garantia, isto é, tutela e preservação, de
abrira, era preciso abrir outra”. seus direitos.
Em 1934, era a seguinte a redação Sua gênese remete a um meio rápido,
constitucional do art. 113, no 33: “Dar-se-á eficaz e constitucionalmente assegurado,
mandado de segurança para a defesa de criado como defesa contra as ilegalidades
direito, certo e incontestável, ameaçado ou do Poder Público e, pois, indispensável ao
violado por acto manifestamente inconstitu- Estado de Direito.
cional ou illegal de qualquer autoridade. O Desse modo, deve ser prestigiado como
processo será o mesmo do habeas corpus, de- meio acessível e indispensável à manuten-
vendo ser sempre ouvida a pessoa de direito ção das instituições democráticas e como
público interessada. O mandado não pre- criação do direito brasileiro.
judica as acções petitoriais competentes.”
Note-se que até o rito era o mesmo do
habeas corpus. Inclusive, diante disso, não
haveria, na prática, diferença entre os dois Referências
institutos, caso não tivesse o mandado de
segurança sido regulamentado pela lei no FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos huma-
191, de 16 de janeiro de 1936, que especifi- nos fundamentais. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
cou as hipóteses de seu cabimento. MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança. 20.
A Carta de 1937, por sua vez, obviamen- ed. São Paulo: Malheiros, 1998.
te em virtude do regime autoritário então MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. História
adotado, suprimiu tal garantia, como é e prática do habeas corpus. 7. ed. Rio de Janeiro: Borsoi,
afeto a regimes dessa natureza. 1972. 1 t.

Brasília a. 45 n. 177 jan./mar. 2008 81


REVISTA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. SIDOU, J. M Othon. Do mandado de segurança. 3. ed.
Rio de Janeiro: Supremo Tribunal Federal, v. 2, ago./ São Paulo: Revista dos Tribunais, 1969.
dez. 1914.
______ . Habeas corpus, mandado de segurança, mandado
SABINO JÚNIOR, Vicente. O habeas corpus e a liberdade de injunção, habeas data, ação popular. 5. ed. Rio de Ja-
pessoal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1964. neiro: Forense, 1998.
SENADO FEDERAL. Annaes do senado: sessão de 22 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: julgamentos histó-
de janeiro de 1915. Brasília, [19--?]. ricos. Brasília, [19--?]. Disponível em: <http://www.
stf.gov.br >. Acesso em: 26 mar. 2006.

82 Revista de Informação Legislativa

Você também pode gostar