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VII Ciclo de Estudos da Religião: Fé e Conhecimento

21 a 23 de setembro de 2004
Núcleo de Estudos da Religião - ICHS - UFOP

Fé e Conhecimento

Pe. Lauro Sérgio Versiani Barbosa - pelauroversiani@veloxmail.com.br


Instituto de Teologia do Seminário São José da Arquidiocese de Mariana

Resumo ____________________________________________________________________
O texto trata do tema Fé e Conhecimento a partir da teologia cristã, estruturando-se em três
tópicos, seguidos por uma conclusão final. Fé e Seguimento procura mostrar a inseparabili-
dade entre o conhecimento da fé e o envolvimento pessoal, na perspectiva do discipulado. Fé
e Conhecimento de Jesus Cristo em São Paulo trata de quatro níveis sucessivos de fé na
teologia paulina como crescente acolhida do Evangelho e, portanto, como conhecimento apro-
fundado da fé em Jesus Cristo. Fé e Conhecimento Teológico examina a relação entre fé e
teologia. A fé já possui o seu saber, concentrado, existencial, que, porém, se desdobra no sa-
ber reflexo da teologia. A fé é o princípio e fundamento do saber teológico. Conclui-se que
para fazer teologia é necessário abertura ao mistério de Deus e sensibilidade para com a vida
humana em sua realidade histórica. A fé e o amor estão na base do discurso cristão, feito por
uma razão convertida: estaurológica, pneumática e em perspectiva escatológica. Trata-se de
tarefa eclesial a serviço da vida e da esperança.
___________________________________________________________________________

Em primeiro lugar, quero agradecer o amável e honroso convite que me foi feito pelo
Prof. Ivan Antônio de Almeida, pelo Prof. Marcos Moreira e pelos estudantes Pedro e Camila,
do Núcleo de Estudos da Religião do ICHS/UFOP, para abrir este VII Ciclo de Estudos da
Religião que tem por tema: Fé e Conhecimento.
O tema proposto é, a um tempo, fascinante e demasiadamente amplo. Pela sua impor-
tância e vastidão é passível de ser trabalhado em diversos cursos e com abordagens variadas.
Posso dizer, sem hesitação, que a fé é uma palavra eminentemente cristã 1 . A nossa reflexão se
situa exatamente no campo da teologia cristã, partindo da revelação bíblica. A palavra fé e
seus derivados perpassam a Bíblia. Particularmente no Novo Testamento, o substantivo fé
(pístis) aparece 243 vezes, o verbo crer (pistéuo) ocorre 241 vezes, enquanto o adjetivo fiel
(pistós) aparece 67 vezes. Dividiremos a nossa exposição em três partes: Fé e Seguimento; A
Fé e o Conhecimento de Jesus Cristo em São Paulo; Fé e Conhecimento Teológico; seguidas
por uma conclusão final.

1 – Fé e Seguimento
O tom de nossa reflexão pode ser dado pelo versículo 1º do capítulo 11 da Carta aos
Hebreus: “A fé é um modo de possuir desde agora o que se espera, um meio de conhecer rea-
lidades que não se vêem” (TEB). Esta pode ser considerada a clássica definição teológica da
fé, saída diretamente do texto bíblico e abrindo todo um capítulo sobre a exemplaridade da fé
dos antepassados. Trata-se de uma multidão de testemunhas privilegiadas que vivem da e na
fé, agindo de forma coerente e constituindo uma tradição viva de fidelidade até chegar àquele
que é o “autor e realizador da fé”(Hb 12,2; Bíblia de Jerusalém), Jesus Cristo, pois, “para
nós existe um só Deus, o Pai, de quem tudo procede e para o qual caminhamos, e um só Se-
nhor, Jesus Cristo, por quem tudo existe e para quem caminhamos”(1Cor 8,6; Bíblia de Jeru-
salém). Pela “definição” da Carta aos Hebreus podemos perceber desde já que a fé tem um
caráter paradoxal: possui sem apreender e conhece sem ver. A fé aqui se relaciona com a es-
perança, com o futuro, mas também com o presente, com a história, compromisso de vida fiel.
O apóstolo Paulo enfatiza em suas cartas a relação pessoal entre o crente e o seu Senhor a
partir da fé. O apóstolo Tiago mostra a inseparabilidade entre a fé autêntica e a coerência de
vida testemunhada pelas boas obras (Tg 2,14.26). O certo é que o tipo de conhecimento pro-
piciado pela fé não permite a posse manipuladora mas aponta para a dinamicidade do cami-
nho de fé, para uma aventura espiritual encarnada na história, no seguimento de uma pessoa,
Jesus de Nazaré.
Tudo isto pode ser percebido a partir de um texto de capital importância encontrado nos
evangelhos sinóticos, Marcos (Mc 8,27-34), Mateus (Mt 16,13-23) e Lucas (Lc 9,18-23), com
as suas variações, mas substancialmente concordes. Jesus, depois de algum tempo de ministé-
rio público, toma a iniciativa de perguntar aos seus discípulos sobre o que pensam dele aque-

1
A. DULLES, Il fondamento delle cose sperate, Brescia, Queriniana, 1997.

2
les que o conhecem. As respostas não são lá, digamos assim, “desanimadoras”: uns dizem que
é João Batista ressuscitado, outros que é Elias que voltou, outros dizem que se trata de um
profeta. Respostas positivas que reconhecem a figura extraordinária de Jesus, diferentes de
outras opiniões emitidas por adversários de Jesus em outros contextos. No entanto, são res-
postas que representam uma tentativa de inserir Jesus dentro de um esquema já conhecido, ou
seja, a particularidade da experiência com Jesus é inserida num amor já conhecido. Podemos
dizer, modernamente, que se trata de um problema hermenêutico: as pessoas compreendem
num esquema já conhecido. Mas Jesus vai mais fundo, não se contentando simplesmente com
a opinião pública expressa pelos seus discípulos, pede uma resposta pessoal: “quem sou eu
para vocês? Para você?”. E Pedro, falando pelo grupo, diz algo novo, diferente, grandioso,
confessando que Jesus é o Messias, o Cristo, o Filho do Deus vivo. Sem dúvida, Pedro supe-
rou a opinião expressa anteriormente, apontando para a novidade de Jesus, o que é reconheci-
do explicitamente na versão de Mateus, quando Jesus se volta para Pedro e o chama de bem-
aventurado por ter recebido uma revelação do alto. Porém, também Pedro insere Jesus numa
concepção preexistente: Jesus será o realizador das esperanças messiânicas. Os sinóticos mos-
tram a seguir que Jesus pronuncia uma palavra sobre o sofrimento. Esta palavra deve ser
compreendida como uma correção necessária à confissão de Pedro. De fato, Pedro projetara
em Jesus a sua expectativa messiânica. Tanto é assim que diante do anúncio da paixão, Pedro
reage e repreende Jesus: Jesus deveria se conformar ao critério de Pedro. A reação de Jesus é
das mais duras dos evangelhos, mostrando o quanto o pensamento de Pedro se afastava do
pensamento de Deus. Particularmente me agrada aqui a tradução da TEB: “Afasta-te! Para
trás de mim, Satanás, pois teus intentos não são os de Deus, mas dos homens”(Mc 8,33). A
nota explicativa da TEB esclarece: ao opor-se à paixão de Jesus, Pedro coloca-se no papel de
Satanás, tentando desviar Jesus da obediência a Deus; Jesus o convida a voltar à condição de
discípulo, caminhando atrás dele e tomando a própria cruz.
Toda esta reflexão teológica nos ajuda a perceber que só se pode compreender Jesus no
seguimento, fazendo a experiência de andar com Ele sem se escandalizar. Não podemos co-
nhecer Jesus se só projetamos idéias preexistentes. O fenômeno Jesus Cristo vai além de todas
as representações: é necessário uma abertura para uma experiência nova com Ele. Não posso
me dirigir a Ele simplesmente como se fosse uma idéia. É preciso viver uma contemporanei-
dade com Ele. Esta contemporaneidade do discipulado é a própria fé. A fé que produz o co-
nhecimento. Saber-se contemporâneo dele pobre e maltratado (Mt 25,31-46) é ter fé. A fé já

3
tem em si o seu saber. Saber concentrado, existencial, que pode ser desdobrado no saber re-
flexo da teologia. Só a imediatez da experiência de fé atualiza a potencialidade do conheci-
mento. Para compreender Jesus Cristo é preciso envolvimento pessoal. Quem crê sabe que a
fé foi dada, é comunicação de Deus, é pessoal e comunitária. Quem crê deve poder dizer co-
mo Paulo: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim. Minha vida presente na
carne, vivo-a pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim”(Gl
2,20).

2 – A Fé e o Conhecimento de Jesus Cristo em São Paulo


A fé em Paulo é o modo de acolher o Evangelho. Trata-se de tema fundamental no Cor-
pus Paulinum. Das 243 vezes em que a palavra fé (pístis) aparece no Novo Testamento, 142
vezes ela se encontra no Corpus Paulinum, ou seja, 58% das vezes em que a encontramos no
Novo Testamento. Já o verbo crer (pistéuo), das 241 vezes em que ocorre no Novo Testamen-
to, 54 vezes o encontramos em Paulo, ou seja, 22, 4% das vezes em que aparece no Novo Tes-
tamento. Comparando com João, nós percebemos que Paulo prefere o substantivo fé (pístis),
enquanto João usa sempre o verbo crer (pistéuo), privilegiando a ação, o existencial. Pode-se
dizer que Paulo, intelectual, teoriza, cuida da conceptualização do fato (crer), através do subs-
tantivo fé 2 . Paulo, doutor da Lei, natural de Tarso, uma espécie de Atenas da Ásia Menor,
teve grande contato com o ambiente helenístico, ao lado da forte experiência judaica em Jeru-
salém, onde estudou aos pés de Gamaliel. Encontramos em Paulo uma pessoa que entra den-
tro do mistério de Cristo. Com senso agudo de Deus, fala sempre de uma forma apaixonada
sobre Deus e com a sensibilidade helenística pelo homem.
O Prof. Ugo Vanni, SJ, vê quatro níveis sucessivos da fé na teologia paulina, como uma
crescente acolhida do Evangelho 3 . O primeiro nível diz respeito à aceitação de Cristo morto e
ressuscitado na própria vida. A pessoa que acolhe o Evangelho deve saber o que faz. Saber
não no sentido puramente intelectual ou de “verificação”. A aceitação é “abertura”, “salto”
para fora do próprio sistema. Trata-se de acolher na própria vida, como elemento determinan-
te, “o dom de Deus” como tal, não como produto humano. Não se pode pretender controlar o
Evangelho. O que não significa irracionalidade, mas acolhida da transcendência na própria
vida. A fé é abertura total, incondicionada, ao dom de Deus. Trata-se de aceitar e querer Deus

2
U. VANNI, La Teologia Biblica Paoline – Una Strutura Portante, Roma, PUG, 2000.
3
Além do curso acima citado, ministrado na Pontifícia Universidade Gregoriana, é interessante consultar:
U.VANNI, L’Ebbrezza nello Spirito – una proposta di spiritualità paolina, Roma, Edizioni ADP, 2000.

4
na própria vida. É um salto para fora do próprio sistema para realizar-se plenamente. Não é
alienação, é alcançar o ser como deve ser, é encontrar-se a si mesmo. A fé não é mortificação
para o homem, mas realização. Não é coação, mas libertação. É isto que foi anunciado e crido
por Paulo e suas comunidades: 1Cor 15, 1-11. A fé como abertura da pessoa que diz “sim”
implica o batismo: Rm 6, 1-11. A fé é um dom gratuito que não está condicionado às obras ou
ao mérito. O batizado tem em si a morte e ressurreição de Cristo ativadas, tornando-se livre
do pecado. Morto para o pecado, vive em Deus por meio de Cristo, enquanto existe a relação
com Cristo, a seiva que vem dele como diz João (Jo 15, 1-17). A fé como abertura incondi-
cionada ao Evangelho exige conversão, deixar os ídolos (1Ts 1,9). Permanecendo a aceitação
do primeiro nível, a fé cresce. Pois no batismo se recebe o dom do Espírito que possibilita ao
cristão se conformar sempre mais a Cristo. O batismo torna operativo o Evangelho.
No segundo nível da fé, pela presença constante do Espírito Santo na vida do batizado,
ocorre a personalização crescente do Evangelho, o seu ingresso em todos as dimensões da
vida. Cresce a vitalidade de Cristo em nós. Há um aprofundamento, deixa-se permear pelo
Evangelho de Cristo em todos os campos da vida e sempre: 2 Tm 4,7 (“Combati o bom com-
bate, terminei a minha carreira, guardei a fé”); Gl 2,20 (“Já não sou eu que vivo, mas é Cris-
to que vive em mim. Minha vida presente na carne, vivo-a pela fé no Filho de Deus, que me
amou e se entregou a si mesmo por mim”); Fl 1,21 (“Pois para mim o viver é Cristo e o mor-
rer é lucro”); Fl 3,8-11 (“Mais ainda: tudo considero perda pela excelência do conhecimento
de Cristo Jesus, meu Senhor. Por ele, perdi tudo e tudo tenho como esterco, para ganhar a
Cristo e ser achado nele, não tendo como minha justiça aquela que vem da Lei, mas aquela
pela fé em Cristo, aquela que vem de Deus e se apóia na fé, para conhecê-lo, conhecer o po-
der da sua ressurreição e a participação nos seus sofrimentos, conformando-me com ele na
sua morte, para ver se alcanço a ressurreição de entre os mortos.”); Fl 3,12-13 (“Não que eu
já o tenha alcançado ou que já seja perfeito, mas prossigo para ver se o alcanço, pois que
também já fui alcançado por Cristo Jesus”). Há um empenho constante e ativo de cada bati-
zado conduzido pelo Espírito. O setor da vida que não é cristificado, necrotiza. Conhecer
Cristo é participar sempre mais de seus sofrimentos e de sua ressurreição, ou seja, trata-se de
uma experiência crescente da cruz de Cristo. E de um seguimento acelerado, de um amor
crescente! O conhecimento aprofundado e crescente deste segundo nível da fé na relação com
Cristo não é só uma questão de valores, mas uma questão de intersubjetividade de amor. Co-
nhecer Cristo sempre mais é uma meta que provoca tensões e medo. Trata-se de uma ousadia,

5
como dizia o teólogo Romano Guardini: “a fé é um ousar na direção de Cristo”. Portanto, para
Paulo, a fé é caminho, é amor a Cristo de forma crescente e nada pode nos separar do amor de
Cristo: Rm 8, 38-39.
O terceiro nível é o contexto comunitário da fé, que impulsiona e faz crescer a experiên-
cia de fé pessoal. Permanece sempre a responsabilidade pessoal, já que o grupo não pode
substituir a pessoa que não crê. O nível comunitário da fé é o das assembléias litúrgicas ou
reuniões motivadas pela fé. Trata-se da condivisão do conteúdo da fé que possibilita um
“mais”. Aprende-se da assembléia litúrgica, existe uma fé que se alarga na assembléia litúrgi-
ca. Encontramos em Paulo pequenas confissões de fé e hinos litúrgicos, nascidos da comuni-
dade de fé. Nesses textos emerge o “nós” litúrgico. Os hinos exprimem um entusiasmo novo.
O hino cristológico de Filipenses 2,6-11 tem a sua base comunitária expressa nos versículos
anteriores: Fl 2,1-5. Em Efésios 1,3-14 temos um hino que era cantado e está no mesmo nível
do prólogo de João. Temos vários outros hinos ou profissões de fé litúrgicas: Cl 1,15-20; 1
Tm 3,16; 1 Tm 6,15-16; 2 Tm 2, 11-13. O fato é que como diz Paulo na Carta aos Romanos
10,9-10: com o coração se crê (responsabilidade pessoal) e com a boca se confessa (condivi-
são da assembléia litúrgica).
O quarto nível da fé é simultâneo ao terceiro, porém distinto. Trata-se da exigência mis-
sionária da fé, como necessidade da condivisão do amor. Para Paulo não se trata de “propa-
ganda”. O missionário é a ponta emergente da comunidade. A comunidade é o ponto de parti-
da e de chegada da missão. Há um aumento “qualitativo” do Evangelho na missão, não se
trata de uma questão meramente quantitativa. Despoja-se de si mesmo para entrar no mundo
do outro. Paulo se faz “tudo para todos”, para salvar a todos “por causa do Evangelho”, “para
ser participante do Evangelho” (1 Cor 9,19-23). A missionariedade é condividir o Evangelho
e redunda em crescimento comum na missão e na fidelidade ao Evangelho.

3 – Fé e Conhecimento Teológico
A fé é o princípio (arché) da teologia, não só como fonte da teologia, mas como condi-
ção de sua vitalidade. A teologia nasce da fé que deseja saber, 4 conforme ensina Santo An-
selmo, 5 na esteira de Santo Agostinho 6 . A fé busca a luz da verdade, faz pensar 7 . Mas a fé faz

4
C. BOFF, Teoria do Método Teológico, Petrópolis, Vozes, 1998, 25-39.
5
Fides quaerens intellectum é a expressão de Santo Anselmo e que se tornou a definição clássica da teologia.
Santo Anselmo, como teólogo apaixonado, exprimiu bem esta vontade de saber da fé que impele a mente para a
contemplação de Deus, mobilizando todas as forças da razão a partir da fé: non essim quaero intelligere, ut cre-
dam; sed credo, ut intelligam S. ANSELMO, Proslogion, Col. Os Pensadores, São Paulo, Abril, 1979.

6
também amar, conforme diz São Paulo: “a fé opera pela caridade”(Gl 5,6). O amor é próprio
da fé e conduz ao pensamento, à meditação, à contemplação. Afirma Santo Tomás de Aquino:
“No fervor de sua fé, a pessoa ama a verdade que crê, a revolve no seu espírito e a abraça,
procurando encontrar razões para seu amor” 8 . E em outra passagem diz o mesmo Santo To-
más: “O amante não se contenta com a apreensão superficial do amado. Mas é levado a refle-
tir (disquirere) no seu interior cada coisa que concerne ao amado [...] Assim, o amado habita
(immoratur) no amante” 9 . Para Santo Tomás o amor proporciona o “êxtase intelectual” que
possibilita a meditação e a compreensão dos mistérios divinos, preparando o “êxtase afetivo”
da comunhão com Deus 10 . Para Santo Agostinho, o Doctor Caritatis, é o amor que faz conhe-
cer 11 . Segundo Agostinho, “o próprio amor é inteligência” 12 . E São Boaventura aponta o a-
mor crente como fonte da teologia: “Quando a fé crê por causa do amor daquele em quem crê,
então deseja possuir as razões disso” 13 .
A Congregação para a Doutrina da Fé na Instrução Donum Veritatis sobre a Vocação
Eclesial do Teólogo (1990) fala da fé e do amor como dupla fonte da teologia:

Por sua natureza a fé apela à inteligência, porque desvela ao homem a verdade sobre
o seu destino e o caminho para o alcançar. […] A ciência teológica que, responden-
do ao convite da verdade, busca a inteligência da fé, auxilia o Povo de Deus, de a-
cordo com o mandamento do Apóstolo (cf. 1Pd 3,15), a dar a razão da própria espe-
rança, àqueles que a pedem. O trabalho do teólogo responde assim ao dinamismo in-
terno da própria fé: por sua natureza a Verdade quer comunicar-se […] A teologia
oferece, portanto, a sua contribuição para que a fé se torne comunicável, e a inteli-
gência daqueles que não conhecem ainda o Cristo possa procurá-la e encontrá-la. A
teologia que obedece ao impulso da verdade que tende a comunicar-se, nasce tam-
bém do amor e do seu dinamismo: no ato de fé o homem conhece a bondade de

6
Desideravi intellectu videre quod credidi: S. AUGUSTINUS, De Trinitate, 15,28,51: PL 42,1098. Pode-se
dizer que nesta oração do final de sua obra sobre a Trindade, Santo Agostinho oferece o retrato do ideal que o
guiou ao longo de sua vida: “desejei ver pelo entendimento o que cria” ou “desejei ver com a inteligência o que
acreditei”. Conferir S. AGOSTINHO, A Trindade, São Paulo, Paulus, 1994, 555-557 e nota 80 à página 722.
7
R. FISICHELLA, Quando la Fede Pensa, Casale Monferrato, 1997.
8
S. TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologiae, II-II, q.2,a.10,c.
9
S. TOMÁS DE AQUINO, S. Th., I-II, q.28, a.2,c.
10
S. TOMÁS DE AQUINO, S. Th., I-II, q.28, a.3,c.
11
F.-A. PASTOR, “Quaerentes summum Deum”, Gregorianum 81 (2000), Roma, 453-491, especialmente 477-
478 e 484-490.
12
Amor ipse intellectus est, apud C. VAGAGGINI, “Teologia”, in G. BARBAGLIO – S. DIANICH, ed., Nuo-
vo Dizionario di Teologia, Cinisello Balsamo (MI) 1985, 1671 e 1674.
13
S. BOAVENTURA, Prooem. In I Sent., q.2, ad 6: “quando fides non assentit propter rationem, sed propter
amorem eius cui assentit, desiderat habere rationes”, apud CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ,
Instrução sobre a Vocação Eclesial do Teólogo (Donum Veritatis) 7, nota 3, Petrópolis, Vozes, 1990.

7
Deus e começa a amá-lo, mas o amor deseja conhecer sempre melhor aquele a quem
ama. Desta dúplice origem da teologia, inscrita na vida interior do Povo de Deus e
na sua vocação missionária, deriva o modo pelo qual ela deve ser elaborada para a-
tender às exigências de sua natureza 14 .

Como acena a Congregação para a Doutrina da Fé na Instrução Donum Veritatis, esta


dúplice origem da teologia implica conseqüências epistemológicas e metodológicas. Existe
um “espírito” que deve perpassar todo o labor teológico, conferindo-lhe autoridade e capaci-
dade persuasiva, como verdadeiro serviço missionário, serviço à Verdade revelada, ao Misté-
rio do amor trinitário. Pode-se dizer com Clodovis Boff que a fé amorosa é a fonte da teologi-
a.
A origem da teologia pode ser considerada também pelo lado do sujeito da fé, tendo em
conta as exigências do espírito humano, que é aberto e interrogativo. A aspiração ao conheci-
mento é natural e gratuita, conforme nos mostrou Aristóteles 15 e fortemente presente no cam-
po da fé 16 . A teologia contribui para que a fé seja esclarecida, lúcida, crítica, conforme o Con-
cílio Vaticano I que fala da ratio fide illustrata 17 . Sobretudo hoje, passados os tempos da cris-
tandade, quando a plausibilidade social da fé não é tão evidente, a urgência da inteligência
teológica faz sentir toda a sua força. Também a tentação do fundamentalismo religioso ou do
espontaneísmo carismático, reclamam, além do bom senso da própria fé, o rigor da reflexão
teológica 18 .
Porém deve-se considerar que a fé, origem e sustentáculo da teologia, significa conver-
são, mudança de vida, vida nova: “coração e espírito novos”(cf. Ez 36,26). É a fé-conversão
que está na origem do conhecimento teológico, que o viabiliza (cf. 2Cor 3,16). A metánoia dá
origem a uma subjetividade nova, transformada pela graça e capacitada para penetrar sempre
mais nos mistérios da fé 19 . Bernard Lonergan considera a conversão fundamento da teologia

14
CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Instrução sobre a Vocação Eclesial do Teólogo 6 e 7.
15
ARISTÓTELES, Metafísica, I (A), 1: 980 a 21.
16
M. SCHMAUS, A Fé da Igreja, I., Petrópolis, Vozes, 1976, 171.
17
DH 3016.
18
A propósito, conferir: F.-A. PASTOR, Semântica do Mistério, São Paulo, Loyola,1982, 62-69; ID., A Lógi-
ca do Inefável, São Paulo, Loyola,1989, 147-186; ID., “El Discurso del Método en Teología”, Gr. 76 (1995)
69-94; ID., “Principium totius Deitatis - Misterio inefable y Lenguaje eclesial”, Gr. 79 (1998) 247-294.
19
O Pe. Félix-Alejandro Pastor, SJ, em artigo sobre o itinerário de Santo Agostinho em sua busca de Deus e
da linguagem de fé adequada, sublinha a integração entre fé e razão realizada por Santo Agostinho a partir de
sua conversão. A prioridade do ato de fé é claramente afirmada, bem como a conversão, que faz passar da
superbia à humilitas, do amor sui ao amor Dei, possibilitando a iluminação d’Aquele que é fons veritatis et

8
quando trata das especializações funcionais constitutivas do método teológico. A conversão
está na base da quinta especialização funcional, que diz respeito à explicitação dos fundamen-
tos. Assim se expressa Lonergan: “Uma vez que a conversão é básica para a vida cristã, uma
objetivação da conversão constituirá os fundamentos da teologia” 20 . A fé-conversão possui
uma estrutura complexa que envolve o afetivo, o cognitivo e o normativo (respectivamente:
experiência, inteligência e prática) 21 . Esta estrutura se expressa especialmente e de forma con-
creta no culto litúrgico. A celebração de fé envolve os três elementos que tradicionalmente
são denominados fides quae, fides qua e fides informata. Correspondem, respectivamente, ao
que Clodovis Boff denominou: a fé-palavra (fé dogmática), a fé-experiência (fé fiducial) e a
fé-prática (fé encarnada). A Bíblia, 22 Santo Agostinho 23 e Santo Tomás 24 ensinam que o ser
humano deve crer com a totalidade de seu ser: inteligência, coração, prática. O ato de fé lança
o crente para além do tempo, para dentro da eternidade mesma de Deus, que lhe possibilita o
próprio ato como resposta ao convite-graça de Deus. Assim, o ato de fé implica credere Deum
(fides quae creditur), credere Deo (fides qua creditur) e credere in Deum (fides viatorum),
que engloba os dois anteriores e significa orientação radical da vida em direção à salvação
oferecida por Deus redentor, com dimensão escatológica. A fé possui um caráter teo-cêntrico
(conteúdo da fé), teo-lógico (o fundamento da fé) e teo-teleológico (o caminho da fé).
Clodovis Boff afirma claramente: “a fé é simultaneamente princípio, objeto e objetivo
da teologia” 25 . A relação existente entre fé e teologia é orgânica e vital: “A teologia é a fé
mesma que se vertebra, a partir de dentro, em discurso racional. É o desdobramento teórico da
fé. É seu desabrochamento intelectual. Teologia é fides in statu scientiae. É o pathos que toma

sol secretus. Só assim é possível o conhecimento de Deus. F.-A. PASTOR, “Quaerentes summum Deum- Bús-
queda de Dios y Lenguaje de Fe en Agustín de Hipona”, Gr. 81 (2000) 453-491, especialmente 470-473.
20
Puesto que la conversión es básica para la vida cristiana, una objetivación de la conversión constituirá los
fundamentos de la teología (B. LONERGAN, Método en Teología, Salamanca, Ediciones Sigueme, 1994, 129;
conferir também por inteiro os capítulos 5 e 11, p.125-143 e 261-285, sobretudo este último). Trata ainda da
relação entre conversão e teologia, o Cardeal Joseph Ratzinger, sob os títulos “Il nuovo soggetto come pre-
supposto e fondamento di tutta teologia” e “Conversione, fede e pensamento”. J. RATZINGER, Natura e
compito della teologia, Milano,1993, 49-53 e 53-55.
21
J. B. Libanio apresenta as diversas dimensões da fé, destacando a prática. Aponta quatro aspectos da fé:
fiducial, hermenêutico, práxico e escatológico. J. B. LIBANIO, Fé e Política, São Paulo, Loyola,1985, 15-39.
Mais recente, amplo e completo é o seu “Tratado da Fé”, onde, além da estrutura subjetiva da fé que na sua
dimensão antropológica compreende os aspectos citados, considera o contexto da modernidade e da pós-
modernidade, a racionalidade, a liberdade, as dimensões trinitária, eclesial, salvífica e os desafios atuais. J. B.
LIBANIO, Eu Creio, Nós Cremos. Tratado da Fé, São Paulo, Loyola, 2000.
22
J. PFAMMATTER, “A Fé segundo a Sagrada Escritura”, in Mysterium Salutis I/4, Petrópolis, Vozes,1978,
10-29.
23
S. AGOSTINHO, A Trindade, XIII, 2, São Paulo, Paulus, 1994.
24
S. TOMÁS DE AQUINO, S.Th., II-II, q.2, a.2 c.
25
C. BOFF, Teoria do Método Teológico, 30.

9
a forma do logos, a experiência que se faz razão. É a sabedoria no modo do saber”26 . É como
pensa também Clemente de Alexandria, citado por Clodovis Boff: “A fé é, por assim dizer,
um conhecimento elementar e concentrado das coisas necessárias. A gnose (conhecimento
teológico), por sua vez, é a demonstração firme e segura do que se recebe na fé. Ela se edifica
sobre a fé, por meio do ensinamento do Senhor, e conduz a uma indefectível posse intelectu-
al” 27 .
Não há dúvida sobre a primazia da fé em relação à teologia. A fé é a arché estrutural e
estruturante da teologia. A “carta da intelectualidade cristã” no dizer de Yves Congar 28 é a
frase de Isaías que atravessa a tradição teológica cristã, de Santo Irineu, passando por Santo
Agostinho e por toda a Idade Média: “Se não acreditardes, não compreendereis” (Is 7,9, ver-
são dos LXX). Santo Agostinho foi quem mais o sublinhou, definindo a teologia como intel-
lectus fidei, afirmando o credere ut intelligas 29 e, dialeticamente, o intellige ut credas,30 que o
Papa João Paulo II assumiria como títulos dos capítulos II e III da Fides et Ratio 31 . Santo An-
selmo continua a linha de Santo Agostinho com o credo ut intelligam, como já foi dito. E
também Ricardo de São Vítor no prólogo de seu De Trinitate, citado por Clodovis Boff. Já na
Idade Moderna, Clodovis recorda Melchior Cano com o seu De Locis Theologicis e até Fran-
cis Bacon, que reconhece a especificidade do discurso da fé. O certo é que a teologia deve ser
feita a partir de Deus, mais que em torno de Deus, como discurso segundo, que tem por objeto
um sujeito que é o próprio Deus: “A palavra teológica não passa de eco humano da Palavra
divina” 32 .
De resto, a fé como condição de possibilidade da teologia, é um caso singular, qualitati-
vamente único, de uma necessidade humana mais geral. A fé pode ser considerada também
como uma atitude humana necessária diante da realidade e da busca de sentido. Nessa pers-
pectiva se trata de “fé antropológica”, postura humana indispensável para viver. Tanto no ní-
vel pessoal, possibilitando a convivência social, como no nível hermenêutico, permitindo a

26
C. BOFF, Teoria do Método Teológico, 31.
27
CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Stromata, 7, 57, 3, apud C. BOFF, Teoria do Método Teológico, 31.
28
Y. CONGAR, La foi et la théologie, Paris, Desclée,1962, 172.
29
S. AGOSTINHO, Sermo 118, 1: PL 38, 672; Ev. Jo. Tract. 29, n.6: PL 35, 1630-1631; Ennarrationes in Ps.
118, 18, 3: PL 37, 1552; De Doctrina Christiana, 2, 12, 17: PL 34, 43; De Trinitate, XV, 2, 2: PL 42, 1058,
apud C. BOFF, Teoria do Método Teológico, 33.
30
S. AGOSTINHO, Sermo 43, 7, 9: PL 38, 258; De praedestinatione sanctorum, II, 5: PL 44, 936; Ennarra-
tiones in Ps. 118, Sermo 18, n.3: PL 37, 1551-1552; Carta 120, apud C. BOFF, Teoria do Método Teológico,
33.
31
JOÃO PAULO II, Fides et Ratio (cap. II: Credo ut intellegam e cap. III: Intellego ut credam).
32
C. BOFF, Teoria do Método Teológico, 34.

10
compreensão do sentido, como no nível científico, conforme reconhecem, entre outros, Albert
Einstein 33 e o filósofo das ciências Jean Ladrière 34 .

Conclusão
A fé informa o “espírito teológico”, que em sua racionalidade própria busca a lingua-
gem adequada ao Mistério. A fé pensada teologicamente, levando em consideração o objeto e
a perspectiva da teologia, a especificidade da racionalidade teológica e as fontes da teologia,
procura traduzir-se em linguagem. A passagem da experiência e do pensamento à linguagem,
se é sempre difícil, se torna ainda mais desafiadora considerando a inefabilidade de Deus 35 .
Para Santo Agostinho: “Tudo o que se diz se consegue pensar (sentire), mas nem tudo o que
se pensa se consegue dizer” 36 . Sempre existirá uma inadequação entre o Mistério e o pensa-
mento, bem como entre o pensamento e a linguagem religiosa.
Deus, transcendência absoluta, é o Mistério objeto da teologia, sua fonte e sustento. Fa-
zer teologia implica entrega amorosa ao Mistério: na escuta, obediência e serviço à Palavra.
Aquele que ninguém viu (cf. Jo 1,18; Jo 6,46) e que habita em luz inacessível (cf. 1Tm 6,16),
é o visado pela teologia. Claro, luminoso, compreensível em si mesmo, mas incompreensível
para o homem, Deus é mistério para a razão antes de sê-lo para a fé. Santo Tomás de Aquino
aplica a Deus a metáfora que Aristóteles refere à idéia de ser: diante d’Ele somos como a co-
ruja frente ao sol 37 . Karl Rahner, 38 em seu Curso Fundamental da Fé, apresenta belíssima e
profunda meditação sobre a palavra Deus, que questiona a totalidade lingüística do mundo,
em seu fundamento e em sua totalidade. A palavra Deus coloca o homem diante da totalidade
da existência e da realidade. A totalidade é o uno e o todo. O homem só existe como homem
quando diz: “Deus”! Esta palavra precede o ser humano independentemente de sua reação, é
“in-disponível”, palavra primeira e última. O ser humano, através de experiência atemática,
está referenciado ao Mistério inefável, que descobre pela graça como “Mistério Santo”39 . Paul

33
“Eu afirmo com todo o vigor que a religião cósmica é o móvel mais poderoso e mais generoso da pesquisa
científica. […] O espírito científico […]não existe sem a religiosidade cósmica”. A. EINSTEIN, Como vejo o
mundo, Rio de Janeiro, 1981, 22-23.
34
“O discurso científico se baseia […]numa escolha por um tipo característico de atitude intelectual”; J.
LADRIÈRE, A Articulação do Sentido, São Paulo, EDUSP,1977, 134.
35
F.-A. PASTOR, A Lógica do Inefável, especialmente 59-92.
36
S. AGOSTINHO, Sermo 117, V, 7: PL 38, 665: “Homo enim nihil potest dicere, quod non etiam sentire
possit; potest etiam aliquid sentire, quod dicere non possit”.
37
S. TOMÁS DE AQUINO, S.Th., I, q.1, a.5, ad 1.
38
K. RAHNER, Curso Fundamental da Fé, São Paulo, Paulinas, 1989,60-69.
39
M. FRANÇA MIRANDA, O Mistério de Deus em Nossa Vida, São Paulo, Loyola, 1975; L. C. LAVALL,
O Mistério Santo, São Paulo, Loyola, 1987.

11
Ricoeur, 40 em outro texto de profundidade e beleza, fala de verdadeira “polifonia bíblica” no
esforço, sobretudo do Antigo Testamento, para nomear Deus. Deus não se deixa aprisionar
por nenhuma nomeação, mas através da hermenêutica ricoeuriana se pode buscar “decifrar a
vida no espelho do texto”. Articulando os dois pólos, texto e vida, como faz Ricoeur, se pode
decifrar as diferentes formas de experiência de Deus na vida, pressupostas e/ou favorecidas
pelo texto bíblico. Este procedimento pressupõe a experiência vivida, precedida e instruída
pelo texto bíblico, bem como a Bíblia em seu conjunto. Percebe-se, então, diferentes formas
de discurso que têm em comum o respeito, o amor e o serviço ao Mistério, acolhido e experi-
mentado na vida de fé.
Deus é Mistério de graça que maravilha e interpela na história de Israel e, em grau
máximo, em Jesus de Nazaré. São Paulo o expressou em seu “hino ao amor de Deus” (Rm
8,31-39). A glória (kabod) de Deus é a revelação de seu poder e beleza, que possui evidência
subjetiva e objetiva, conforme afirma Hans Urs von Balthasar 41 . O livro de Jó, particularmen-
te, fala da transcendência de Deus como maravilha (cf. Jó 25,14; 36,22 – 37,24; 38 – 41;
42,3.6). Esta transcendência divina se manifesta na imanência da história como amor, tendo o
“agapé” como definição prática de Deus (cf. 1Jo 4,7-8). Por outro lado, se o nome de Deus é
revelado na glória (cf. Zc 14,9), só Deus conhece plenamente Deus. O Mistério provoca a
reflexão humana pelo seu excesso e plenitude de luz, capaz de iluminar e esclarecer a vida
humana.
Teologia não se faz, portanto, com frieza, mas no calor do Mistério que envolve o teó-
logo e a Igreja, compromete a vida no seguimento concreto de Jesus Cristo e impulsiona a
razão crente para os seus mais altos vôos, a fim de viver na comunhão com o “Mistério San-
to”. Clodovis Boff aponta para Maria, a Mãe de Jesus, como modelo para o fazer teologia. A
“Sede da Sabedoria” é aquela que acolhe fielmente a Palavra de Deus, meditando-a e guar-
dando-a no coração, “a figura viva da cogitatio fidei que palpita no coração de toda teologi-
a” 42 .
Fazer teologia exige humildade, pois como afirma o livro da Sabedoria: “A custo con-
jeturamos o terrestre, com trabalho encontramos o que está à mão: mas quem rastreará o
que há nos céus?” (Sb 9,16). Existe uma desproporção infinita entre a razão e o Mistério.

40
P. RICOEUR, “Nommer Dieu”, ETR 52 (1976) 489-508; o mesmo texto encontra-se agora em português: P.
RICOEUR, Entre Filosofia e Teologia II: Nomear Deus, IN P. RICOEUR, Na Fronteiras da Filosofia – Lei-
turas 3, São Paulo, Loyola, 1996, 181-204.
41
H. U. V. BALTHASAR, Gloria I – La Percezione della Forma, Milano, 1975.
42
C. BOFF, Teoria do Método Teológico, 534.

12
Além do mais, o objeto-sujeito da teologia é indisponível, a ele se tem acesso pela Revelação
(cf. Mt 11,27; 1Cor 2,10). Sem a humildade que tem o senso do Mistério corre-se o risco de
arrogância intelectual, objetivismo e até tagarelice43 : “A ciência incha, o amor (agapé) cons-
trói. Se alguém pensa que sabe alguma coisa, ainda não conhece como convém conhecer.
Mas se alguém ama a Deus, esse é conhecido por Ele” (1Cor 8,1-3). São Paulo propõe a “lin-
guagem da cruz” (1Cor 1 – 2) e o Eclesiástico recomenda modéstia intelectual (cf. Eclo 3,22-
24). Não se pode banalizar o discurso teológico, é preciso um espírito que respeite o Mistério.
Fazer teologia exige compromisso com a vida. Trata-se de um ministério eclesial,
compromisso de fé e caridade. Clodovis Boff cita São Bernardo em sua qualificação dos tipos
de saber:

Há os que querem saber só para saber – e isso é torpe curiosidade. Há os que


querem saber para aparecer – e isso é torpe vaidade […] Há os que querem saber pa-
ra vender sua ciência, por exemplo, em troca de dinheiro e de honras – e isso é torpe
ganho. Mas há também os que querem saber para edificar – e isso é caridade. Há a-
inda os que querem saber para se edificarem a si mesmos – e isso é prudência 44 .

A teologia deve ser sensível às alegrias e esperanças, tristezas e angústias do povo, con-
forme a Gaudium et spes 1. Uma teologia que não se interessasse pela vida concreta com os
seus desafios e promessas, seria alienada e diletante, incapaz de iluminar e frutificar. Tal teo-
logia trairia a fé e poderia se constituir em pecado. A boa teologia deve saber ouvir o outro: a
Palavra de Deus expressa nas Escrituras, a Tradição, o Magistério, os outros teólogos e os
clamores do povo. Fazer teologia implica uma razão compassiva, intellectus misericordiae,
intellectus amoris. Tudo isso porque a “experiência de Deus” é pré-condição para fazer teolo-
gia. A razão teológica é uma razão convertida, pois o discurso teológico se dá a partir de den-
tro da fé e a teologia antes de ser ciência é sabedoria.
Movido pela fé e pelo amor, o discurso teológico cristão é habitado por uma vontade
instauradora, sem ingenuidades, porque se trata de uma razão sob o signo da cruz, movida
pelo Espírito e em tensão escatológica. O método teológico integral tem a fé por arché e a
razão, por ela iluminada e aberta ao Mistério, disposta para os mais altos vôos, como tarefa
eclesial a serviço da vida e da esperança.

43
C. BOFF, Teoria do Método Teológico, 536-539.
44
S. BERNARDO, Sermo 36 in Cant.: PL 183, 968, apud C. BOFF, Teoria do Método Teológico, 541.

13
Mariana, 21 de Setembro de 2004.

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