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DIREITO PENAL II/NOITE

2021-2022/2.º SEMESTRE

AULA 7
14.03.2022

TEXTO PARA USO EXCLUSIVO DOS ALUNOS NA CONDIÇÃO DE


IDENTIFICAÇÃO DA RESPECTIVA FONTE, SOB PENA DE PLÁGIO

EQUIPARAÇÃO DA OMISSÃO À ACÇÃO, EM ESPECIAL NA INGERÊNCIA

5. Artigo 10.º/2 do CP: caracterização das fontes das posições de garante

(CONTINUAÇÃO DA AULA ANTERIOR)


(....)
O monopólio do meio ou da acção salvadora só será fonte de posição de garante se se tratar de
pessoa investida numa função pública, que tem por objecto a protecção de bens jurídicos. Exemplos:
polícias, enfermeiros ou médicos (cfr. artigos 284.º e 285.º do CP, em vez do artigo 200.º),
mesmo fora de serviço.
A comunidade espera que as pessoas com estas posições sociais, que implicam uma
função de relevante interesse público, actuem dentro dos limites permitidos pela situação
para remover ou minorar perigos para os bens jurídicos ameaçados, fazendo uso dos seus
eventuais conhecimentos e competências especiais (ASD, 2013/2014: 52-53).

6. A questão do precedente como fonte de posição de garante de vigilância sobre


a própria fonte de perigo criada

Quem cria um perigo para bens jurídicos alheios, deve agir para remover ou diminuir
esse perigo e, em certos casos, até fica investido numa posição de garante da não verificação
de resultados mais gravosos.
Costuma associar-se:

1
(i) A criação lícita de perigo (i.e., dentro do risco permitido ou do risco geral da vida
ou ao abrigo de legítima defesa) para bens jurídicos alheios a um mero dever
intensificado de auxílio, alicerçado num especial dever de solidariedade social (cfr.
artigo 200.º/2 do CP); e
(ii) A criação ilícita de perigo a uma posição de garante e a um dever jurídico e pessoal de
evitar resultados mais graves (artigo 10.º/2 do CP).
Fundamento jurídico do dever de garante por ingerência: “articulação entre
responsabilidade pela [própria] acção”, que obriga a “compensar as consequências da
intromissão na esfera alheia” e a “relativa perda de controlo da vítima sobre os seus bens
jurídicos” e a igualdade. Se não existisse “um dever de compensar consequências indirectas
da situação criada, permitir-se-ia um alargamento da liberdade de acção de uns à custa do
sofrimento de outros” (PALMA, 2020: 88).
O problema é que esta fundamentação jurídica do dever de garante de bens jurídicos
alheios não limita a afirmação de tal dever às situações de precedente ilícito. Como resolver
então?
Se bem se interpreta, MARIA FERNANDA PALMA (2020: 86-88) admite que mesmo
as situações de precedente lícito podem fundar um dever jurídico e pessoal de evitar o
resultado. Em seu entender, nesses casos não deixou de existir “uma ultrapassagem da
esfera de risco própria [e] uma violação, ainda que objectiva, do risco permitido”, pois a
liberdade de actuação do agente “interferiu, involuntariamente, com a de outros, deixando-
os numa situação de impossibilidade de controlo sobre a sua sobrevivência”. “A liberdade
de acção do agente transferiu para ele o domínio sobre uma esfera de [actuação] alheia”.
Segundo MARIA FERNANDA PALMA, para existir uma posição de garante por
ingerência, não é precisa “uma autêntica ilicitude o comportamento anterior, bastando (....)
uma contrariedade objectiva ao dever [por ultrapassagem da própria esfera de risco e de
actuação], de modo que a vítima não esteja em posição de suportar (...) a intromissão na
sua esfera ainda que acidental”.
Daqui decorre que a actuação prévia perigosa para bens jurídicos alheios fundamenta
uma posição de garante. Esta, porém, não impedirá uma punição do agente pela
incriminação subsidiária da omissão de auxílio agravada (artigo 200.º/2 do CP), sempre
que:

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a) Falte uma conexão de risco entre o perigo criado e o resultado verificado, o qual se deu em
virtude da materialização de um outro risco (v.g. morte do ciclista acidentalmente
atropelado e ligeiramente ferido, que foi abandonado à sua sorte, mas veio a morrer
em virtude da hemofilia de que padecia – F. DIAS, 2019: 38.º Cap., §40);
b) Se comprove que a vítima, mesmo que socorrida, faleceria.
Para MARIA FERNANDA PALMA (2020: 88), só não fundamentará uma posição de
garante por ingerência a actuação prévia em legítima defesa ou ao abrigo de qualquer outra
causa de justificação. Porém, a Autora não esclarece se, nestes casos, admite uma punição
do defendente, que depois abandona o agressor à sua sorte, ao abrigo do artigo 200.º/2 do
CP.

Note-se o facto precedente perigoso pode ser activo ou omissivo – v.g. não mandar
arranjar o telhado em mau estado que cai em cima de um transeunte e o fere gravemente.
Aqui pode afirmar-se a existência de uma omissão ilícita precedente que fundamenta
responsabilidade por ofensas graves negligentes à integridade física mediante
comportamento omissivo (artigos 148.º/3, sem necessidade de recorrer ao artigo 10.º por
a violação do dever de cuidado poder realizar-se indiferenciadamente mediante um
comportamento activo ou omissivo)

Diferente da posição de MARIA FERNANDA PALMA é a defendida por F. DIAS


(2019: 38.º Cap., §§ 38-41), para quem, sendo a ilicitude pessoal e não meramente causal,
a provocação prévia do perigo é incapaz, só por si, de fundamentar um dever de garantia e
a consequente posição de garante. Por isso, a conduta prévia criadora do perigo deve reunir
certos requisitos para poder desencadear uma responsabilidade em comissão por omissão.
Para F. DIAS falta a posição de garante quando:
(i) O facto precedente se mantém dentro do risco permitido. Nesses casos, nunca seria
possível imputar objectivamente o resultado à omissão;
(ii) O facto precedente está justificado por legítima defesa, pois neste caso rege o
princípio da auto-responsabilidade do agressor colocado em perigo pela acção
defensiva. De contrário, o agressor, que “deu causa à conduta defensiva que
veio a colocá-lo em perigo”, seria mais protegido do que aquele que, sem culpa
própria, foi colocado em perigo (HILGENDORF/VALERIUS, 2019: §11, n.m.
64).

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Segundo F. DIAS, diferentemente, quando se esteja perante uma prévia actuação em estado
de necessidade justificante (artigo 34.º), nos termos da qual o perigo para bens jurídicos do
agente é transferido para a esfera jurídica de um terceiro que nada tem a ver com a situação
de perigo, já seria possível afirmar um dever de garante do autor da acção de necessidade
relativamente aos bens jurídicos do terceiro por ele colocados em perigo. Assim sucederia porque
neste caso estaria ausente o princípio da auto-responsabilidade do colocado em perigo,
tendo o agente em estado de necessidade intervindo “no âmbito de liberdade de uma pessoa
a quem não cabe qualquer responsabilidade pelo estado de necessidade”.

Lisboa,14 de Março de 2022


Teresa Quintela de Brito

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