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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

MATEUS BRAVO DE OLIVEIRA

A RELAÇÃO DO CORPO COM O PROCESSO DO CONHECIMENTO: CRUZANDO


PERSPECTIVAS, (RE)ENCANTANDO O CORPO

CURITIBA
2020
MATEUS BRAVO DE OLIVEIRA

A RELAÇÃO DO CORPO COM O PROCESSO DO CONHECIMENTO: CRUZANDO


PERSPECTIVAS, (RE)ENCANTANDO O CORPO.

TCC apresentado ao curso de Graduação em


Pedagogia, Setor de Educação Universidade
Federal do Paraná, como requisito parcial à
obtenção do título de licenciatura em
Pedagogia.

Orientadora: Profa. Dra. Carina Catiana Foppa

CURITIBA
2020
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TERMO DE APROVAÇÃO

MATEUS BRAVO DE OLIVEIRA

A RELAÇÃO DO CORPO COM O PROCESSO DO CONHECIMENTO: CRUZANDO


PERSPECTIVAS, (RE)ENCANTANDO O CORPO.

Tese/Dissertação/Monografia/TCC apresentada ao curso de Pós-Graduação em


____________, Setor de ____________, Universidade Federal do Paraná, como requisito
parcial à obtenção do título de Doutor/Mestre/Especialista/Bacharel em ____________.

______________________________________
Prof(a). Dr(a)./Msc. ____________
Orientador(a) – Departamento ____________, INSTITUIÇÃO

______________________________________
Prof(a). Dr(a)./Msc. ____________
Departamento ____________, INSTITUIÇÃO

______________________________________
Prof(a). Dr(a)./Msc. ____________
Departamento ____________, INSTITUIÇÃO

Cidade, __ de ____________ de 201_.

Mantenha essa página em branco para inclusão do termo/folha de aprovação assinado


e digitalizado.
Dedico às crianças, por ensinarem a nós adultos a riqueza
vívida presente na relação de nossos corpos com o
mundo.
AGRADECIMENTOS

Agradecimentos é o que não falta, sempre bom ter ao que agradecer!


Agradeço a Exú. Laroyê! por todas as portas abertas e caminhos cruzados, todos os
devaneios e firmezas, todas as pedras do caminho e as boas soluções para desviá-las, agradeço
por toda sua sabedoria e travessuras, aprendo tanto, principalmente com aquilo que não é dito.
À Oxóssi, meu Ori, Okê Arô! Por direcionar meus pensamentos e minhas ações por
essa mata acadêmica. Caçador de Axé, sempre me guia e me orienta pelos melhores caminhos.
À todos meus guias que me acompanham e sussurram conselhos no ouvido. Digo para
vocês: Se eles ouvissem, falariam que vocês são ótimos pedagog@s.
À minha Mãe de Santo, Nelly de Ogum e ao meu mestre de capoeira Mestre Negrão.
Por manterem diariamente essas práticas vivas. O quanto aprendo sobre o mundo e sobre mim
nesses espaços não caberia em um trabalho acadêmico.
À todas as crianças que me relacionei enquanto professor. Foi através de vocês e por
vocês que me inspirei em desenvolver esse trabalho.
À meus pais biológicos, por me concederem a benção de ter um corpo encarnado
podendo desfrutar das possibilidades infinitas desse mundo com ele.
À minha avó Doralia e à minha mãe Marilê. Sei que minha escolha pela educação
também é para dar continuidade aos sonhos de vocês como educadoras.
À minha irmã Ana, que só tem 9 anos, mas nem imagina o quanto que me ensinou.
À Carina, orientadora dessa pesquisa, se não fosse as suas contribuições e seu incentivo
para não fazer uma escrita tão impessoal esse trabalho não seria o mesmo.
À Escola que trabalho por ter possibilitado uma abertura para desenvolver diversas
práticas inovadoras, a fim de realizar uma educação inclusiva de fato, que tiveram ótimos
resultados.
À todas as professoras e professores que cruzaram meu caminho e muito me ensinaram
durante essa travessia na graduação.
À todas pessoas com quem compartilhei e desenvolvi muito das reflexões presente
nesta pesquisa. Agradeço as amig@s de trabalho que muito conversamos nos momentos de
intervalo e fora das dependências da escola, Talyssa Mendes, Ana Flávia, Tamara Baceti,
Mariana, Mayara Semann, Viviane Desande, e outr@s professor@s que contribuíram, mesmo
sem saber, com esse TCC. Agradeço a Renata Abel, minha companheira, por ouvir e contribuir
com as reflexões desta pesquisa quando ainda estavam descendo à terra, em conjunto de seus
conselhos gramaticais que ajudaram muito na minha escrita. Agradeço também ao meu amigo
Renan Pinna pelas longas conversas que potencializaram essa produção.
Há dois sentidos e apenas dois sentidos da palavra
existir: existe-se como coisa ou existe-se como
consciência. A experiência do corpo próprio, ao
contrário, revela-nos um modo de existência
ambíguo(...) Portanto, o corpo não é um objeto. Pela
mesma razão, a consciência que tenho dele não é
um pensamento (...) Não tenho outro meio de
conhecer o corpo humano senão vivê-lo, quer dizer,
retomar por minha conta o drama que o transpassa
e confundir-me com ele (MERLEAU PONTY,
1999, p.267).
RESUMO

A pesquisa aborda elementos da perspectiva cartesiana e sua influência sobre as noções de


corpo, mente e conhecimento que resultaram em uma visão fragmentada de mundo, uma
monocultura da mente. Em vista disso, a pesquisa aproxima caminhos para pensar, de forma
integrada, uma fenomenologia do corpo e sua relação com os processos cognitivos. Também,
para possibilitar um entendimento mais amplo acerca da relação do corpo com o conhecimento,
incorporo me aproximo do pensamento decolonial, que possibilita entender as causas da
fragmentação entre o corpo e mente e da produção de um mundo cindido, além de propor
novos(velhos) caminhos, para pensar o corpo e o conhecimento de uma forma integrada, já
praticados pelas culturas afro-diaspóricas a milhares de anos. Por fim, problematizo os olhares
dos adultos sobre o universo das crianças, negativando o fenômeno infantil, a partir de uma
perspectiva adultocêntrica e, em contrapartida, disponho de perspectivas que possibilitem
entendermos às crianças de forma íntegra em sua capacidade de conhecer o mundo a partir de
sua corporeidade. Para isso, relato uma experiência de educação inclusiva, vivenciada por
mim, que possibilita trazer os conteúdos teóricos dispostos aqui para pensar a prática educativa

Palavras-chave: 1. Fenomenologia 2. Corpo 3. Percepção 4. Conhecimento 5.


Decolonialidade.
ABSTRACT

Utilize o estilo Resumo. Digite seu texto com no mínimo 150 palavras e no máximo
500 palavras em parágrafo único. Digite seu texto. Digite seu texto. Digite seu texto. Digite
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Digite seu texto.

Keywords: Keyword 1. Keyword 2. Keyword 3. Keyword 4. Keyword 5.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 11
1.1 OBJETIVOS 16
1.2 METODOLOGIA 17
2 A MATA 19
2.1 A MATA DE MERLEAU PONTY 24
3 ASSENTAMENTO - O TERREIRO PARA PENSAR O MUNDO O CORPO E A EDUCAÇÃO 33
4 GIRA DE ERÊ 51
4.1 Caminho do conhecimento pelo corpo - É Jorge quem abre os caminhos! 74
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 82
REFERÊNCIAS 86
1 INTRODUÇÃO

Para realizar essa pesquisa, propus uma figura de linguagem para pensar o aglomerado
de conhecimentos produzidos no meio acadêmico: a Mata. Nesse sentido, interpreto que ao
adentrarmos em uma universidade, adentramos em uma mata encantada, por onde diversas
espécies e seres habitam. Porém, para quem está iniciando nesse caminho, como eu, a mata se
apresenta fechada, e só com o tempo e experiências vamos encontrando alguns caminhos já
abertos por aqueles que vieram antes. Muitas das vezes, quem nos apresenta e nos guiam por
esses caminhos são as professoras e professores, outros caminhos nós encontramos através da
ousadia de nossa curiosidade. Dessa forma, vamos conhecendo e tateando o terreno,
descobrindo quais caminhos podem nos aproximar daquilo que estamos procurando saber, falar
e relacionar com nossa experiência. Essa mata é uma grande encruzilhada, pois nos apresenta
espécies de conhecimentos dos mais variados tipos, daqueles que servem para produzir e
legitimar as más condições desse terreno, e outros que contribuem para a manutenção dessa
fauna e flora de forma saudável. É preciso sapiência para atravessar os caminhos, no meu caso,
caminhei por algumas trilhas, conversei com espíritos para tentar rascunhar e organizar em
palavras um entendimento mais amplo sobre a relação do corpo com o conhecimento.

A mata é morada de vários seres, animais, vegetais, minerais e “encantados”, aprendi


que, antes de adentrar em qualquer morada, independente de qual for, pede-se licença e
permissão, nesse caso, ao entrar na mata fazendo esses pedidos, demonstra-se uma postura
interna de respeito aquele espaço e seres que ali habitam anunciando a nossa presença para que
tudo ocorra da melhor forma possível. Digo isso, pois, foi assim que aprendi em minhas
experiências de terreiro: não se colhe uma erva sem pedir permissão a Ossain, senhor das
plantas sagradas e milagrosas, não se adentra a floresta sem pedir permissão à Exu, o senhor
dos caminhos e a Oxóssi, o senhor das matas. Sendo assim, peço licença e permissão para
atravessar por essa mata acadêmica, reconhecendo aqueles que vieram antes e abriram os
caminhos que possibilitaram o pensar e o fazer desta pesquisa.

Dessa forma, os caminhos encontrados por essa mata, foram no sentido de significar
algumas experiências pedagógicas, vivenciadas em escolas, universidade e na empiria da vida.
Antes de adentrar na mata literalmente, embora já esteja dentro dela, trago breves reflexões
acerca do que encontrei no curso de Pedagogia sobre o lugar do corpo nos processos
educacionais. Percebi durante o percurso acadêmico, dificuldade em encontrar produções que
olhassem a relação entre o corpo e o conhecimento de forma mais horizontal. Isto é, sem uma
separação ou uma distância entre o saber e o fazer, entre a mente e o corpo. Um dos autores que
mais tive contato durante minha graduação, Jean Piaget, por exemplo, propõe pensar o
desenvolvimento da criança a partir de etapas da maturação biológica do corpo no sentido do
desenvolvimento da inteligência lógico-formal. Nessas etapas, ele traz a relação que o corpo
tem com a aquisição do conhecimento, afirmando que a percepção corporal da criança é o
primeiro contato com o mundo, no entanto, ele entende essa relação entre corpo e o mundo
como algo incompleto, desregulado, onde só com a aquisição da inteligência para organizar as
informações seria possível de regular. Nessa perspectiva, o conhecimento acaba se tornando
uma qualidade restrita à mente, produzindo um distanciamento entre processos do corpo e
processos da mente.

A partir disto, compreendo que, aquilo que foi disposto durante a trajetória no curso de
Pedagogia, sobre conhecimentos relacionados à aprendizagem do corpo presentes no processo
educacional, ficou enfatizado à algumas perspectivas, a primeira relacionada às noções
piagetianas, que entendem o corpo como um fenômeno humano em processo de maturação
biológica necessário para o desenvolvimento cognitivo ou lógico/formal. A segunda se
relaciona com a importância de práticas relacionadas ao corpo nas fases da primeira infância.
E a terceira associada às práticas de corpo nas aulas de educação física. Nota-se, a partir disso,
que as noções de corpo e conhecimento são delimitadas pelo currículo da formação acadêmica
em Pedagogia de certa forma em esquemas binários. Desse mesmo modo, o espaço dado ao
corpo nas instituições escolares também o são, ficando restrito a educação infantil, momentos
de pátios, aulas de educação física e algumas propostas pensadas a partir das metodologias
ativas.1

Portanto, o que busquei para pensar o corpo na relação com o conhecimento, iniciou
com a necessidade de transformar o olhar em relação ao que se entende como conhecimento. A
noção de conhecimento, intrínseca na forma em que vivemos o mundo, fruto da perspectiva
ocidental, nos diz que possuir conhecimento é ter experiências conceituais obtidas no campo
das ideias. Nessa lógica, o pensamento lógico-formal, elaborado através de palavras e conceitos,
possui uma posição privilegiada em relação às demais formas de se relacionar e aprender o

1
“A metodologia ativa é uma possibilidade diferente de ensino que vem sendo usada nas escolas e universidades
brasileiras e do mundo todo em busca de tornar o ensino melhor e produtivo, utilizando recursos que vão incentivar
as funções mentais do aluno, como: observação, reflexão, raciocínio lógico, indução de melhor entendimento da
matéria e participação. Neste método o foco é no aprendiz que agrega conhecimento por descoberta, investigação
ou resolução de problemas” (SILVA, 2019, p.3)
mundo que nossos corpos possuem, assim, o conhecimento é visto como uma qualidade da
mente e o corpo é subvalorizado perante o protagonismo do “eu penso, logo existo”, do
paradigma analítico-reducionista. Essa perspectiva presente no fazer educacional dos diversos
níveis de ensino, é reflexo da lógica dualista cartesiana, onde entende a mente separada do
corpo2. Sob essa ótica, entende que o corpo é um mero receptáculo das “preciosas faculdades
mentais”. A afirmação “penso, logo existo”, elaborada por Descartes (1963), produz uma
redução da relação que o corpo tem com o mundo ao estatuto do pensado. Na perspectiva
cartesiana, só existe aquilo que habita o campo das ideias.

O privilégio dado ao conhecimento lógico-formal, não diz respeito a uma postura neutra,
alicerçada na produção de um conhecimento puro, como alega o positivismo. Encontro durante
minha travessia acadêmica, pesquisas que apontam que essa perspectiva, enraizada na visão de
mundo cartesiana cindida entre corpo e mente, está diretamente relacionada à legitimação das
ações coloniais, pois desconsidera os saberes corporais das culturas africanas e nativas das
américas. A professora Doutora Maria Antonieta Martines Antoniacci, apresenta em uma aula
sobre “Sentir e viver o mundo a partir de performances e de uma lógica oral”, gravada no ano
de 2020, o contraste entre essas visões de mundo.

O mundo mercantil, capitalista, euro ocidental, dissociou a cultura da


natureza, o corpo dos saberes e a arte da vida. Desde a época de Descartes se
produz uma crítica a uma razão de sentidos, ele vai dizer que não existirá uma
ciência e uma objetividade enquanto nos pautassemos pelo sentido, pois os
sentidos trazem à tona a subjetividade, isto é, como as diferentes pessoas no
mundo viveram alguma coisa. Portanto, dentro da perspectiva de criar uma
visão científica e uma razão incorpórea, Descartes foi produzindo aquilo que
veio a ser a razão iluminista. A razão iluminista é uma razão que se separou
do corpo. A partir disso, o corpo passa a ser entendido como algo que poderia
ser tripudiado, desmoralizado e mercantilizado. Portanto, quando Descartes
escreve o discurso do método no início do século XVII, ele abriu as portas
para um tráfego em larga escala, porque o corpo perde seu valor. Eles estavam
na europa produzindo a ideia de uma razão iluminada e incorpórea.
(ANTONACCI, 2020)

Já na perspectiva das culturas Africanas, Afro-diaspóricas e nativas da América ela


pontua que o universo desses povos:

… possuem uma visão de mundo, portanto uma cosmologia, uma concepção


de corpo e uma concepção de cultura, articulada. A cosmovisão desses povos,
não foi cartesianamente fragmentada em reino mineral, vegetal, animal e

2
Mas em Descartes esse singular saber que temos de nosso corpo apenas pelo fato de que somos um corpo permanece
subordinado ao conhecimento por idéias porque, atrás do homem tal como de fato ele é, encontra-se Deus enquanto autor
racional de nossa situação de fato. Apoiado nessa garantia transcendente, Descartes pode aceitar calmamente nossa condição
irracional: não cabe a nós sustentar a razão e, uma vez que a reconhecemos no fundo das coisas, resta-nos apenas agir e
pensar no mundo. Mas, se nossa união com corpo é substancial, como poderíamos sentir em nós mesmos uma alma pura e
dali ter acesso a um Espírito absoluto? (PONTY, 1989, 270)
humano.Portanto, nessa concepção, o homem faz parte do mundo animal
mineral e vegetal, ele é um ser dentro desse mundo. Com isso, dentro desta
visão cósmica, nós vamos ter uma concepção de corpo, de um corpo que não
vive a partir de uma razão abstrata, mas de um corpo que está nutrido com
saberes locais, essa idéia ainda se desdobra em uma concepção de cultura em
que de diferentes formas se expressa não por uma razão letrada, instituída e
documentada, mas por uma razão sensorial, que se manifesta pela visão,
audição, odor, vocalidade e o tato. Portanto, uma visão de unidade cósmica,
uma concepção de corpo e de uso do corpo, usado tanto de uma forma física
quanto dentro de seus sentidos e uma cultura nessa mesma dimensão…
Portanto é um corpo vivo que tem uma memória viva, por isso chega a ser
chamado de um arquivo vivo. 3(ANTONACCI, 2020)

A partir das contribuições de Antonacci (2020), identifica-se o contraste entre a relação


que essas diferentes epistemologias dão para o corpo e a natureza. No decorrer do texto estarei
retomando esse debate. Posto isso, o que busquei trazer com essa pesquisa, se relaciona com
minha travessia por essa mata acadêmica, onde apresento algumas autoras e autores que
contribuíram com a criação de um sentido que narrasse, nesses termos científicos, minhas
experiências educativas vivenciadas nas práticas escolares e não escolares, onde o corpo sempre
apareceu como uma questão.

Este Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) está organizado em três seções. A primeira,
apresenta os caminhos que percorri, através das produções acadêmicas, que possibilitaram um
entendimento mais amplo acerca do debate sobre o que é o conhecimento. Perspectivando a
relação do corpo nesses processos. Nessa travessia, encontro com dois filósofos, Renné
Descartes e Merleau Ponty e relato através de uma breve contação de história intercalada, , o
que eu encontrei por essas matas ao colocá-los para conversar.

A segunda seção, traz à tona o debate sobre o pensamento decolonial para evidenciar
quais fatores da cultura ocidental se relacionam com a produção da desvalorização do corpo
nos processos educativos presente nas práticas formais de ensino. Para além de denunciar o que
gerou esse menosprezo dos saberes dispostos nos corpos africanos e indígenas, nessa sessão,
também encontro nas referências decoloniais, caminhos que contribuem para pensar soluções
para esse “desmantelo cognitivo” (Rufino, 2019) causado pela colonização, a partir das
epistemologias afro-diaspóricas. Ressalto que, o contato com o pensamento decolonial,
infelizmente, só fui ter acesso ao final do curso, já na produção do TCC. Portanto, reconheço

3
ANTONACCI, M. A. M. 3ªEd. Perspectivas e Epstemologias do Sul. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=f5FtHPmWDX8&ab_channel=AlejandroAvellaneda
meu estatuto de iniciante no assunto. Porém, o contato com essas produções permitiram um
sentido mais amplo e mais potente, pois se relacionou diretamente com a realidade histórico-
social brasileira, acerca do tema dessa pesquisa e também com minhas experiências cotidianas.

A terceira seção, traz alguns encaminhamentos teórico-práticos sobre noções de corpo,


conhecimento e percepção das crianças. Nessa seção trago algumas contribuições que
possibilitam, nós adultos, nos aproximarmos da realidade fenomênica da criança, a fim de
produzir uma perspectiva que valorize o mundo percebido a partir do olhar delas, sem diminuir
ou julgá-las como incompletas. Apresento também, que, a noção de incompletude da criança
em relação ao adulto é mais uma camada da cultura ocidental/colonial, que impede nos
aproximarmos de fato da realidade delas. Por fim, trago uma experiência prática, tida na minha
área de atuação, a inclusão, que possibilitou um exercício acerca da relação do corpo com o
processo do conhecimento desenvolvido nesta pesquisa.
1.1 OBJETIVOS

1. Essa pesquisa buscou compreender as noções de corpo e conhecimento para pensar


processos educativos inclusivos que considerem a realidade corpórea das/dos
estudantes.

2. Considerar, através da bibliografia do pensamento decolonial, outras perspectivas, não


hegemônicas, acerca das noções de corpo e conhecimento, a fim de ampliar as
possibilidade desses conceitos e apresentar como está atrelado à essa noções, certas
perspectivas sócio-culturais provenientes do modelo ocidental/colonial de pensar o
mundo.

3. Sistematizar algumas perspectivas educacionais que preconizam um olhar limitante ao


fenômeno de ser criança, entendendo-as como um contínuo “vir a ser” adulto.

4. Produzir um relato de experiência pedagógica com estudante com necessidades


especiais para refletir sobre a prática que proporcione caminhos para pensar o corpo na
relação com o conhecimento.
1.2 METODOLOGIA

A metodologia utilizada para o desenvolvimento dessa pesquisa foi a revisão não


sistemática de literatura, investigando em artigos e livros, produções que abordassem o tema da
corporeidade e as relações do corpo com a cultura e com o processo do conhecimento. As
literaturas utilizadas para pensar o tema da pesquisa se relacionam com as produções das áreas
da Fenomenologia e Percepção, Corporeidade, Decolonialidade, Adultocentrismo. Dentro da
área da fenomenologia, percepção e corporeidade destaco Merleau Ponty (1945) e (1990),
Terezinha Petrucia Nóbrega (2005), Maturana e Varela (1996), Maria Marcondes Machado
(2010) e Luiz Augusto Passos (2019). Relacionado às produções decoloniais e sobre o
adultocentrismo estão: Maria Antonieta Martini Antonacci (2020), Leda Maria Martins (1997),
Luiz Rufino (2019), Luiz Antonio Simas (2018), Vandana Shiva (2018) e Farias e Santiago
(2015).

A experiência relatada foi realizada em 2018, com uma criança, que optei por chamar
de Jorge, de 8 anos, ingressa no 3º ano do Ensino Fundamental em uma escola particular
localizada em um bairro nobre da cidade de Curitiba. A experiência pedagógica vivenciada com
essa criança, se relaciona com o projeto de prática inclusiva presente na escola. Na época eu era
estagiário/tutor e acompanhava Jorge em sua rotina diária, pois ele apresentava, na interpretação
da escola, algumas dificuldades no âmbito relacional e pedagógico. Esse estudante não tinha
nenhum diagnóstico apresentado em Laudo clínico, mas a necessidade de acompanhamento
surgiu pelas dificuldades que ele apresentava em seu dia a dia escolar.

Nessa escola, existe uma prática feita com as crianças que precisam de um
acompanhamento mais específico, que se chama Projeto Individual. A metodologia desse
projeto se relaciona com momentos fora de sala onde se desenvolve com o aluno alguma prática
de seu interesse, com o intuito de, ao fim, ou até mesmo durante o projeto, compartilhar o
conhecimento desenvolvido nesses momentos com a turma.

Para produzir o relato de experiência, contei com registros escritos diariamente sobre
seu processo nos diversos âmbitos da escola e com registros audiovisuais dos momentos de
projeto. O projeto Individual desenvolvido com o Jorge durou o período de um ano letivo.
2. A MATA

Essa seção, busca trazer algumas reflexões acessadas durante minha travessia pelo curso
de Pedagogia na UFPR, no sentido de sintetizar as diferentes perspectivas que se relacionam
com o debate sobre o que é conhecimento. Pretendo colocar em perspectiva algumas
contribuições de autores e autoras que se relacionam com esse debate a fim de tecer uma noção
de conhecimento mais ampla. Primeiramente, apresento como a perspectiva dualista cartesiana
produz um mundo cindido, separando o corpo da mente e como esse mundo cindido está
presente em nós e também no fazer educacional, entendendo isso como influências do espírito
cartesiano nas estruturas sociais e também nas estruturas de nossa subjetividade. A travessia
por essa mata começa pelos caminhos abertos pelas perspectivas ocidentais, será através destes
caminhos que pretendo situar a discussão entre corpo e mente, com o intuito de desvelar essa
relação, indo ao encontro com a proposta de Nóbrega (2005) e Rufino (2019) onde afirmam, a
partir de diferentes pontos de vista, que: o conhecimento só é possível quando incorporado.

Nessa passagem, por essas perspectivas hegemônicas, a pesquisa percorrerá a discussão


teórica entre as propostas de Descartes e as de Merleau Ponty, buscando elaborar de forma mais
aprofundada o olhar pontiano, que contribuiu de forma significativa para um entendimento mais
amplo da relação entre conhecimento, corpo e mundo. Essas relações teóricas serão
apresentadas em conjunto com uma contação de história, onde busco descrever, de forma
lúdica, através da relação entre a mata e a produção acadêmica, os caminhos atravessados pelas
minhas experiências e reflexões no desenrolar desta pesquisa. Para ajudar na composição da
história, trarei, como forma de ilustrar as imagens mentais que a narrativa produz, algumas
contribuições feitas por Vandana Shiva em seu livro “Monocultura da Mente”. Como já dito,
essa mata acadêmica é uma grande encruzilhada, portanto, este capítulo traçará caminhos
cruzados entre diversas perspectivas do norte e do sul do mundo, com o intuito de ampliar
reflexões acerca do tema da pesquisa.

Sendo assim, adentro nessa mata e sigo por um dos primeiros caminhos dispostos, aos
poucos vou decifrando que espécies habitam por lá, me deparo com um terreno sórdido, nessa
floresta não avisto outras espécies de plantas além de Pinus e Eucaliptos, também não escuto
barulhos de pássaros ou de outros animais. Sigo caminhando ouvindo o que essas árvores têm
para dizer, no caminho, encontro com alguns teóricos do conhecimento, como Kant e Descartes,
e ao longo da travessia Descartes é com quem eu mais converso. Ele me conta brevemente sobre
suas teorias acerca do conhecimento e do mundo. Com muita inspiração, ele me explica como
o conhecimento é uma qualidade estrita da alma, segundo ele é a alma que nos proporciona a
capacidade de pensar o mundo em ideias, e, graças a essa capacidade que nós humanos temos,
é que se torna possível de conhecermos o mundo de uma forma, segundo ele, verdadeira,
racional, sem nos confundirmos com os instintos, a partir desses apontamentos, ele afirma que
é isso que nos torna diferente e superior aos demais seres. Ele continua explicando como chegou
a esse entendimento:

...ao analisar com atenção o que eu era, e vendo que podia presumir que não
possuía corpo algum e que não havia mundo algum, ou lugar onde eu existisse,
mas que nem por isso podia supor que não existia; e que, ao contrário, pelo
fato mesmo de eu pensar em duvidar da verdade das outras coisas, resultava
com bastante evidência e certeza que eu existia; ao passo que, se somente
tivesse parado de pensar, apesar de que tudo o mais que alguma vez imaginara
fosse verdadeiro, já não teria razão alguma de acreditar que eu tivesse existido;
compreendi, então, que eu era uma substância cuja essência ou natureza
consiste apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de lugar algum, nem
depende de qualquer coisa material. De maneira que esse eu, ou seja, a alma,
por causa da qual sou o que sou, é completamente distinta do corpo.
(DESCARTES, 1989, p.39, grifos meu)

Enquanto ouvia suas idéias, me questionava sobre como Descartes encontrou e


estabeleceu internamente uma posição tão distante do corpo em sua própria relação com o
mundo. Com isso em mente, pergunto a ele: “Ei Descartes, e o corpo no meio de toda essa
grandeza da mente e do espírito, onde ele se encontra?” Ele responde: “O corpo faz parte do
nosso primeiro contato com o mundo, por isso é algo primário e primitivo, portanto, as funções
corporais estão submetidas às qualidades da mente e do espírito, o corpo só é necessário para a
sustentação do espírito pois é o espírito que significa a vida através de sua particularidade
cognoscível.". Contudo, além de Descartes refutar o corpo, submetendo esse estrato de nossa
existência às operações do espírito, ele também não guarda palavras ao afirmar que os animais
poderiam ser entendidos como meros autômatos, insistindo na tese “segundo a qual tanto o
comportamento corporal do homem quanto o comportamento do animal podem ser explicados
em termos puramente mecânicos” (ROCHA, 2004, p.3).

Ouvindo-o e observando aquela mono vegetação que nos circundava, sem ouvir nenhum
pássaro, nem ver nenhum bicho, começava a entender os motivos daquela mata ser tão sórdida.
Vandana Shiva (2018) consegue nos ilustrar de forma concisa os motivos que fazem com que
essa mata, na qual encontro com Descartes, se torne tão ávida. Ela explica, as monoculturas de
espécies vegetais, no caso a monocultura de pinus e eucaliptos presentes nessa passagem, estão
estritamente relacionadas com uma monocultura do pensamento ao
...mostrar que as monoculturas ocupam primeiro a mente e depois são
transferidas para o solo. As monoculturas mentais geram modelos de produção
que destroem a diversidade e legitimam a destruição como progresso,
crescimento e melhoria. Segundo a perspectiva da mentalidade monocultural,
a produtividade e as safras parecem aumentar quando a diversidade é
eliminada e substituída pela uniformidade. Porém, segundo a perspectiva da
diversidade, as monoculturas levam a um declínio das safras e da
produtividade. (SHIVA, 2018, p.17).

Nesse sentido, a mata das perspectivas cartesiana se relaciona com uma visão de mundo
estreita, que se diz única e não demonstra abertura nem espaço para existência da diversidade
de espécies. Isso se dá pois, em sua filosofia, ele desconsidera outras formas de se relacionar e
aprender dispostas em nossos corpos, reduzindo o conhecimento somente àquilo que é
concebido pelo espírito. É visível como Descartes nega a existência de outras formas de
conhecer o mundo, para ele conhecimento é qualidade mental e o resto pode ser entendido de
forma mecânica. Ele faz isso na tentativa de encontrar um sistema de saber universal, tentando
separar aquilo que é considerado do espírito e o que é atribuído ao corpo, e, de certo modo, ele
consegue. Essa cisão entre corpo e mente, presente em larga escala no modelo ocidental de
mundo, tem suas raízes na filosofia cartesiana. O modelo ocidental de mundo utilizou desses
pressupostos para deslegitimar a veracidade dos saberes de outras culturas e estabelecer a
prática de uma monocultura do pensamento globalizada, como Vandana Shiva explica:
“Quando o saber local aparece de fato no campo da visão globalizadora, fazem com que
desapareça negando-lhe o status de um saber sistemático e atribuindo-lhe os adjetivos de
‘primitivo’ e ‘anticientífico’. (SHIVA, 2018, p.23). Portanto, se identifica nos caminhos abertos
por Descartes, tanto a negação do saber local do próprio corpo, quanto a negação do saber local
de outras culturas. Seria essa, uma das bases epistêmicas das ações coloniais, que, ao invocarem
um saber considerado universal, acabam desconsiderando os sistemas locais de saberes e
legitimando suas ações com o discurso do novo mundo, da civilização e de uma evolução social.
Logo, é inerente uma relação de saber e poder nas práticas da cultura ocidental.

No entanto, o sistema dominante também é um sistema local, com sua base


social em determinada cultura, classe e gênero. Não é universal em sentido
epistemológico. É apenas a versão globalizada de uma tradição local
extremamente provinciana. Nascidos de uma cultura dominadora e
colonizadora, os sistemas modernos de saber são, eles próprios,
colonizadores… A dicotomia universal/local é desvirtuada quando aplicada às
tradições do saber ocidental e autóctone porque a tradição ocidental é uma
tradição que se propagou pelo mundo inteiro por meio da colonização
intelectual (SHIVA,2018 , p. 21-, 22).

Vandana Shiva consegue ilustrar, através de suas palavras, a “paisagem mental” por
onde o colonialismo e as epistemologias ocidentais operam. A partir dessas contribuições,
conseguimos entender os motivos pelos quais a mata, dessa primeira travessia, não possui uma
variedade de espécies. Esse terreno sórdido é resultado da presunçosa idéia de um saber que se
reivindica como único e universal, as monoculturas de Pinus e de Eucalipto, narradas nessa
primeira passagem, nos mostram como esse sistema de floresta é um “sistema reducionista de
saber que ignora as relações complexas no interior da comunidade florestal e entre a vida
vegetal e outros recursos como o solo e a água.” (SHIVA, 2018, p.33). Nesse sentido, para as
perspectivas ocidentais, a variedade de espécies e de saberes, seriam consideradas como “ervas
daninhas”. Portanto, a floresta natural, com toda a sua diversidade, é vista como ‘caos’. A
floresta fabricada pelo homem é ‘a ordem’. (SHIVA, 2018, p. 37). É interessante como a autora
nos possibilita entender que existe uma relação direta entre a forma na qual pensamos o mundo
e como nos relacionamos com a natureza. “Quando o Ocidente colonizou a Ásia, colonizou
suas florestas. Trouxe consigo as idéias da natureza e da cultura enquanto derivações do modelo
da fábrica industrial.” (SHIVA, 2018, p.31). Dessa forma, o que é visto como pluralismo
cultural e biológico nas perspectivas das comunidades locais, onde compreendem as complexas
relações do sistema florestal como um todo, sobre o olhar da cultura ocidental/colonial é visto
como lugar de lucro e expansão do monopólio. Posto isso, sigo o caminhar com essas reflexões
em mente, procurando trilhas que fomentem a diversidade de saberes e cultivem uma mata mais
verde e viva, para que consiga contemplar, a partir das palavras, significações para as
experiências vivenciadas na prática educativa escolar e não escolar.

Percorrendo por essas trilhas acadêmicas, me deparei com muitos caminhos que se
cruzaram, e aqueles que propuseram alternativas para sair dos terrenos mais sórdidos de uma
vegetação única, era por onde optava por caminhar. Muito tempo caminhando e conhecendo
melhor essa floresta, é que em uma das encruzilhadas que atravesso, encontro com dois espíritos
debatendo seriamente sobre o que é o conhecimento, um era o já conhecido espírito de Renné
Descartes e o outro de Merleau Ponty. Me sento em uma pedra e escoro em uma árvore para
ouvir a conversa. O primeiro, como ele mesmo havia me contado, sugeria fielmente que
conhecimento é uma qualidade do espírito e o corpo é o suporte para isso, falava sempre, “eu
só existo porque eu penso”. Já o segundo, utilizando infinitos exemplos para questionar essa
afirmação, tentava mostrar que para o conhecimento surgir como uma qualidade mental
primeiro ele precisa fazer sentido no corpo, e o corpo, nunca se distancia desse processo de
conhecer o mundo. Mesmo intrigado com a conversa de ambos, aos poucos fui percebendo uma
preguiça surgindo em meu corpo, passava em meus pensamentos que eles estavam nessa
encruza discutindo a muito tempo antes de eu chegar, volta e meia perdia o fio das
argumentações. Me escoro de forma mais confortável em uma árvore. Num piscar de olhos,
daqueles que a gente quase dorme, vejo em relance a figura de Exú, sobre uma árvore em cima
deles, usando um gorro metade preto, metade vermelho, enquanto observava ambos discutindo,
ouvi sua gargalhada de fundo e peguei no sono ao som dela. Enquanto dormia, a imagem de
Exú surge nos sonhos, e dela são soltadas palavras que narram um conto.

...dois homens de sabedoria reconhecida, que até então são bons amigos,
vivendo de maneira tranquila. Porém, certo dia, ambos saem para trabalhar
esquecendo-se de reconhecer as proezas e poderes de Exu sobre o mundo e os
homens. O menino querido de Olodumaré passa serelepe entre os limites da
visão dos dois moradores, tocando sua flauta, de bornal e gorro na cabeça.
Para testar os homens, Exu passa da mesma maneira entre os dois, só que, na
cabeça, carrega um gorro de um lado pintado de preto, e do outro, de
vermelho.
Ao verem Exu, um comenta com o outro sobre o que viram, descrevendo
aquela presença. E um impasse é gerado acerca da descrição da cor do gorro.
Um querendo ser mais sábio que o outro, justifica a sua visão como sendo a
correta: um defendendo que o menino levava um gorro preto na cabeça, o
outro, que era um gorro vermelho. Nessa peleja em busca da certeza, do
esclarecimento, da verdade e do título de sabedoria, os dois entram em um
combate interminável, que se encerra com ambos se destruindo. (RUFINO,
2019, p.80).

Vale enfatizar, antes de dar continuidade a travessia, o que pretendo trazer com esse Ifá.
Sobre ele, explica Luiz Antonio Simas em uma publicação no jornal “O Dia”, ressaltando que
“a polêmica que envolve a verdadeira cor da carapuça de Exu, o andarilho, destrói a pretensão
dos sábios em relação ao domínio da verdade.” Luiz Rufino, sobre esse Ifá pontua que

Exu é aquele que, para ensinar os homens, prega peças, desautoriza todos
aqueles que se acomodam sobre a presunção de uma verdade limitadamente
acabada. É ele o princípio da imprevisibilidade que utiliza da astúcia da
aparência o correlacionando ao sentido de realidade. É ele que pune qualquer
forma de obsessão pela verdade, instaurando a dúvida.” (RUFINO, 2019,
p.80).

Exú, nesse contexto, representa o inacabado, a dúvida, as outras possibilidades para


além da dualidade das cores do seu gorro. O diálogo entre os dois sábios encontrados no meio
do caminho, Descartes e Merleau Ponty, sobre o que de fato é conhecimento, representa essa
dubiedade acerca de uma verdade e de uma perspectiva única, a qual Descartes aparentava ser
mais apegado. Cabe ressaltar que, enquanto ouvia o diálogo entre eles, sobre a cor do gorro de
Eexu, percebi em Merleau Ponty uma postura que não aparentava ser tão presunçosa na busca
de uma verdade limitada. E de fato não era… pesquisando sobre sua história, nota-se que sua
produção científica se manteve inacabada. Merleau Ponty desenvolveu em sua tese
“Fenomenologia da Percepção” (1945) um contraponto às perspectivas que ele percebeu como
limitantes das epistemes ocidentais, propondo um horizonte mais amplo, onde outros fatores
para além do pensamento se relacionam com nossa experiência de conhecer. Em
“Fenomenologia da Percepção”, o autor reconheceu os limites propostos em sua tese e buscou
corrigi-los, na sua obra póstuma “O visível e o invisível", que reúne diversos escritos de Ponty
e reorganiza os sentidos e algumas propostas de sua tese. Sendo assim, identifica-se na obra
desse autor e em sua história de vida, uma proximidade com a ideia do conhecimento ser algo
inacabado.4

Posto isso, continuo essa jornada. Levanto da pedra, ainda entre o mundo dos sonhos e
da realidade, observo os caminhos dispostos na encruzilhada para continuar a travessia, dentre
esses caminhos, aquele que foi aberto a facão por Merleau Ponty se apresentava mais verde e
com mais espécies do que o antigo caminho percorrido, sigo nesta direção, adentro essa mata
para conhecer melhor sua fauna e flora. Nessa caminhada, percebo que os caminhos abertos por
esse camarada, são mais vivos. Animais, insetos e plantas habitam suas matas, coexistindo. Eles
representam a pluralidade de conhecimento e formas de ver e se relacionar com o mundo que o
autor buscou trazer em suas produções. Essa trilha pontiana, elucida a relação entre o corpo, o
mundo e o conhecimento, questionando, de forma perspicaz, a visão limitada e dualista
produzida pela perspectiva cartesiana. Irei descrever um pouco sobre o que eu encontrei por
essa trilha, qual foi a “fauna e flora” cultivada por Ponty, a fim de ambientalizar o lugar do
corpo, muitas vezes esquecido no processo do conhecimento.

2.1 A Mata de Merleau Ponty

4
O caráter inacabado de sua obra não é definido. unicamente pela inesperada interrupção causada pela morte
prematura (l96l), mas o próprio Merleau-Ponty não deixou de insistir (aliás, como seu mestre Husserl já o
fizera), no “caráter incoativo da filosofia”, do incessante recomeçar da tarefa filosófica que recusa toda
cristalização da obra em sistema acabado e fechado. De fato, ele via no inacabamento da fenomenologia, da qual
foi e permanece ainda, pelas suas obras, um dos mais brilhantes representantes, não um sinal de fracasso, de
indefinição, mas sim o reconhecimento de sua fertilidade e de sua verdadeira tarefa, a saber: ‘revelar o mistério
do mundo e o mistério da razão”. (ZUBEN, 1984, p. 4)
Muitas pessoas já atravessaram por esses caminhos abertos por Merleau Ponty, seus
estudos influenciaram produções nas diversas áreas do conhecimento. Em sua tese
“Fenomenologia da percepção” (1945), ele propõe um debate que contrapõe as perspectivas
lineares do conhecimento, no caso, a mecanicista e a intelectualista. Nessas perspectivas o corpo
é entendido como um organismo com partes distintas (mecanicista), ou como o suporte do
mundo das idéias (intelectualista). Indo por um caminho mais amplo que esses pensadores, o
autor busca resgatar a relação que o corpo possui com o desenvolvimento do pensamento,
esquecida nessas outras perspectivas, capaz de representar o mundo. Nesse sentido, ele pretende
desvelar o estrato primário da consciência, uma consciência latente, situada através do corpo e
pelo corpo. Segundo Merleau Ponty (1945), antes de possuirmos a capacidade de constituir o
mundo no plano das ideias, estamos nos relacionando com o mundo através da experiência
corpórea-perceptiva. Um exemplo disso é a relação entre corpo e espaço, na qual o corpo,
através dos sentidos e de sua motricidade, movimenta-se e compreende o espaço em que habita
sem precisar pensar o movimento ou o espaço. Desse modo, Ponty constata que o corpo é
constituído por uma consciência própria (contudo anônima) que se relaciona com o mundo de
uma forma específica, através da percepção. É, portanto, na riqueza da vida perceptiva que
Merleau Ponty irá mergulhar e encontrar os limites destas correntes do conhecimento:
“...nenhuma das perspectivas dá conta da especificidade e riqueza dessa relação originária que
o homem vive com o mundo, relação anterior ao próprio processo de conhecimento, embora
fundante de todo o conhecer” (MATOS DIAS, 1989, p.19). Para isso, ele identifica nas duas
correntes suas limitações ao explicarem o sentido do mundo. Em vista dessa lógica objetivante,
ambas acabam por não abarcar a complexidade da relação entre sujeito, corpo e mundo,
reduzindo esta relação a meros aspectos da mente científica (no caso do empirismo) ou do
sujeito constituinte (no caso do intelectualismo).

Para o autor, o corpo não existe apenas como um corpo-objeto, submisso às atividades
mentais. A percepção é enraizada pelo corpo. O “horizonte do mundo perceptivo”, é revelado
através do corpo: “O corpo é sujeito da percepção” (MATOS DIAS, 1989, p.98). Sob essa ótica,
o corpo deixa de ser espectador das funções mentais e do espírito e torna-se protagonista ao
assumir uma forma própria e contínua de relacionar-se com o mundo. O corpo surge como um
novo “gênero de ser”, sendo uma “dimensão de nossa existência'', vivido como uma unidade
aberta, portanto inacabada. Tal é o corpo próprio, o corpo vivido”. (MATOS DIAS, 1989, p.98).
Dessa forma, nessa caminhada, aos poucos fui percebendo que Ponty buscou revelar-
nos a existência de um “mundo perceptivo” que habita em nós através do corpo e se relaciona
com o mundo continuamente. Esse “horizonte perceptivo”, enraizado no corpo, não se encerra
ao adquirimos a capacidade de representar o mundo em ideias, ele continua aberto e se
relacionando com nosso desenvolvimento cognitivo. Dessa forma, percebo esse caminho sendo
constituído por uma ampliação da experiência humana, através dele é possível encontrar outras
camadas e possibilidades de relação entre nós seres humanos em um corpo com o mundo,
vamos ver de que forma Ponty propõe essa ampliação.

Merleau Ponty, através de sua metodologia filosófica, a reflexão radical, identifica “o


solo originário da experiência”, vivida pelo sujeito perceptivo como: enraizada em uma
“consciência irreflexiva corpórea” incapaz de ser tida em termos objetivos, por isso irrefletida.
Desse modo, ele afirma a existência de um sujeito pré-verbal, mudo, anônimo, “situado no
mundo pelo seu corpo”. Através desta constatação, ele nos convida a alargar a “noção de
consciência”, levando em consideração a coexistência de uma consciência reflexiva, condizente
à capacidade de pensar com a palavra, em conjunto de uma vida irrefletida que se abre ao mundo
através da percepção. Com isso, tanto a noção de percepção e, consequentemente, a de corpo
terão, em Merleau Ponty, uma nova configuração.

A experiência originária é, para Merleau-Ponty, a percepção. (...) A percepção


é fenómeno original, abertura primeira ao objecto, anterior à posição de uma
consciência constituinte e de um mundo objectivo. É a percepção que abre o
mundo à consciência e mostra que esta é constitutivamente votada ao mundo.
(...) Trata-se de uma consciência perceptiva enraizada no mundo pelo corpo.
(MATOS DIAS, 1989, p.48-49, grifos meus).

A percepção e o corpo em sua filosofia estão intimamente conectados e se relacionam


com o mundo de uma maneira singular. Para o autor, como dito antes, existe o “mundo
perceptivo” anterior e coexistente ao mundo objetivado, este, construído através de conceitos e
palavras. “O mundo perceptivo, horizonte de todas as experiências, aberto e inesgotável, não é
susceptível de possuir-se: a relação de posse exercita-se apenas em relação aos objectos e aquele
[o mundo perceptivo] é horizonte não objeto.” (MATOS DIAS, 1989, p.49). Logo, a percepção
possui uma abertura contínua ao mundo, o autor identifica a percepção, como “abertura
primeira ao objeto”, é a percepção que abre a consciência ao mundo.

O retorno a experiência perceptiva implica voltar ao vivido ou percebido, que


é da ordem do pré-objectivo. [...] É preciso acordar a percepção [...] opondo-
se este acordar ao adormecimento ou esquecimento, em que a tradição
filosófica parece tê-la colocado; há uma vida perceptiva a que é necessária
retornar, se quisermos penetrar nas origens secretas e menos construídas da
relação entre a consciência e o mundo. (MATOS DIAS, 2000(1989), p.50)

A percepção é enraizada pelo corpo. O “horizonte do mundo perceptivo”, para Ponty,


é revelado através do corpo: “O corpo é sujeito da percepção” (MATOS DIAS 2000(1989),
p.98). Sendo assim, o corpo deixa de ser espectador das funções mentais e do espírito e torna-
se protagonista ao assumir uma forma própria e contínua de relacionar-se com o mundo. O
corpo surge como um novo “gênero de ser”, sendo uma “dimensão de nossa existência, vivido
como uma unidade aberta, portanto inacabada. Tal é o corpo próprio, o corpo vivido”. (MATOS
DIAS, 1989, p.98).
O corpo tomará destaque, no decorrer do caminho aberto pela teoria pontiniana da
percepção, pois, ele é o intermédio entre o irrefletido e o refletido, entre o mundo percebido e
o mundo da consciência. O corpo possui esse modo de vida ambíguo, existe na relação
silenciosa com o mundo e na relação com nossa consciência. Expressa uma própria forma de
relacionar-se com a vida que antecede qualquer reflexão. Antecede, inclusive, a própria cultura,
sendo para Ponty, o primeiro símbolo cultural que nos relacionamos, os corpos de outras
pessoas. O corpo
Revela-nos o mundo perceptivo e enraíza a consciência no mundo, abrindo-a,
assim, à experiência perceptiva originária. É o corpo que nos permite ter uma
experiência. É pelo corpo que estamos situados no mundo, é por ele que
comunicamos com os outros (MATOS DIAS, 1989, p.98)

Ponty remete ao corpo uma função semelhante à do sujeito, visto que, é ele quem “dá a
unidade de mundo. (...) O corpo próprio apreende-se a si mesmo como uma unidade.” (MATOS
DIAS, 1989, p.98, 99). Não é necessário um sujeito constituinte para identificar o corpo e a sua
unidade, a experiência corpórea, sua presença, é dada a nós como uma “fé perceptiva” 5 que
constitui a relação de nossos corpos com o mundo. Não é necessário afirmar a veracidade dessa
relação corpo-mundo pois ela se dá no silêncio perceptivo do “sujeito corpóreo”.
Vemos através dos caminhos abertos nessa mata por Merleau Ponty, que o corpo
participa de todo o processo do conhecimento, não existe mais um corpo suporte das faculdades
mentais, como afirma Descartes, mas sim, um corpo que produz essas faculdades e também é
atravessado por elas, (re)significando-as em sua experiência contínua com o mundo. Nesse
sentido, para engrossar o caldo das propostas Pontiniana, trago algumas reflexões
desenvolvidas por Terezinha Petrucia Nóbrega (2005), filósofa brasileira, que organizou os

5
Termo utilizado por Merleau Ponty em seu livro “Visível e Invisível” (2014) para referir-se à experiência
primordial, que é a certeza da presença encarnada no mundo através do conhecimento latente do corpo.
estudos de Ponty, aplicando-os na área da educação, a fim de ampliar o entendimento
relacionado às ciências do conhecimento, base das práticas pedagógicas. Ela tece algumas
reflexões onde ressignifica de que forma o corpo se relaciona com o processo do conhecimento,
apresentarei algumas dessas contribuições no sentido de firmar o ponto de que “todo
conhecimento só se manifesta na medida em que é incorporado” (RUFINO, 2019, p.137).
Nóbrega (2005) apresenta em alguns ensaios sobre corporeidade e educação, o diálogo
entre a fenomenologia de Merleau Ponty e o atual contexto das biociências e das ciências
cognitivas. “Especialmente nos estudos da percepção apresentados por Merleau-Ponty, há uma
aproximação com a pesquisa científica atual da cognição, no sentido de que a experiência
humana é, culturalmente, incorporada” (NÓBREGA, 2005, p.103). Dialogando com Ponty os
cientistas cognitivos descobriram que o
sistema nervoso central tem por função conduzir o impulso e não elaborar o
pensamento; a relação circular entre o organismo e o meio admitindo
fenômenos transversais e considerando não apenas os componentes físico-
químicos, mas a organização dos elementos, a estrutura. (NÓBREGA, 2005,
p.103, grifos meus)

Dessa forma, as ciências cognitivas comprovam as reflexões pontianas acerca do corpo


e da percepção. Nóbrega (2005) pontua que, mesmo com os estudos feitos pelas ciências
cognitivas sobre a função do corpo no processo do conhecimento, a noção tradicional de corpo-
objeto ainda é influente no olhar da maioria dos educadores. Ela propõe novos caminhos para
entender o corpo no processo educacional.
De modo geral, essa compreensão do corpo como elemento acessório no
processo educativo ainda é predominante. Nossa reflexão busca apontar outros
caminhos de compreensão do corpo na educação, segundo uma atitude que
busca superar o instrumentalismo e ampliar as referências educativas ao
considerar a fenomenologia do corpo e sua relação com o conhecimento,
incluindo reflexões contemporâneas sobre os processos cognitivos advindos
de uma nova compreensão da percepção. (NÓBREGA, 2016, p.101)

A autora também relaciona em seus escritos a fenomenologia desenvolvida por Ponty


com os estudos dos biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela. Segundo
Nóbrega, Varela (1996), afirma que suas pesquisas retomam os estudos de Merleau-Ponty no
contexto das ciências cognitivas. Ela considera, da mesma forma que Ponty, “que o
conhecimento é incorporado, isto é, refere-se ao fato de sermos corpo, com uma infinidade de
possibilidades sensório-motoras, e estarmos imersos em contextos múltiplos.” (NÓBREGA,
2005, p.102). Dessa forma, Varela propõe o termo enação6 ao entender que o conhecimento,
sendo ele incorporado, se situa no corpo.
A enação desloca o papel da representação ao considerar que o conhecimento
é incorporado. (...) A enação enfatiza a dimensão existencial do conhecer,
emergindo da corporeidade. A cognição depende da experiência que acontece
na ação corporal. Essa ação se vincula às capacidades sensório-motoras
envolvidas no contexto biopsicocultural. O termo significa que os processos
sensório-motores, a percepção e ação, são essencialmente inseparáveis da
cognição (VARELA et al., 1996, apud, NÓBREGA, 2005, p.102, grifos
meus)

Levando em consideração as reflexões acerca do corpo, da percepção e do


conhecimento trazidas neste capítulo, pode-se afirmar que a cognição também é um fenômeno
da corporeidade. Ela está intrinsecamente relacionada com um corpo que se move e que, através
do movimento, percebe e aprende. “As significações que surgem (o sentido) são, em última
instância, significações vividas e, portanto, marcas corporais que imprimem sentidos aos
processos cognitivos de apreensão do mundo.” (NÓBREGA, 2005, p.108). Portanto, segundo
a autora, o conhecimento que adquirimos não se distancia de nossa realidade corporal, as coisas
coexistem através do corpo e só é possível terem significados lógicos ou simbólicos no sujeito
pelo fato desses conhecimentos estarem incorporados, isto é, relacionados à uma experiência
corpórea.
Na passagem por essa mata pontiana, pude entender que aquilo que era entendido como
conhecimento nas perspectivas intelectualista e mecanicista, se transforma, ao resgatar o corpo
nesse processo. Dessa forma, amplia-se a noção de conhecimento, vejo nesses caminhos que
conhecer não diz mais respeito apenas ao saber racionalizado ou representado em ideias,
palavras e conceitos, ele nos mostra que o conhecimento científico, antes de ser elaborado no
campo das ideias, perpassa pela relação do corpo com o mundo. É o corpo que abre as portas
do mundo, através de seu horizonte perceptivo, para que se estabeleça o conhecimento
conceitual.
Portanto, afirmar que conhecimento condiz apenas com a capacidade de pensar resulta
numa limitação desse conceito. Em contrapartida, entende-se que o conhecimento é algo amplo,
não redutível ao mundo das ideias, e que se relaciona com tudo aquilo que atravessa o corpo e
produz sentido em nós, seja esse sentido tanto algo silencioso no campo do sensível e da
percepção, quanto um sentido racionalizado e pensado, para além da divisão entre corpo e
mente, percepção e racionalização, os autores com quem dialoguei por esses caminhos aberto

6
Do inglês enaction, neologismo criado por Varela et al. (1996) que significa fazer emergir e refere-se
aos processos cognitivos que emergem dos processos vitais. (NÓBREGA, 2005, p.102)
por Merleau Ponty, apontam que o saber humano se dá através da interrelação e
interdependência do corpo e da mente.
O caminho aberto por Ponty nessa mata acadêmica, apresenta uma variedade maior de
fauna e flora. Ponty não reduz, como Descartes, o conhecimento somente ao espírito,
produzindo uma monocultura da mente, ele propõe outras percepções e formas de aprender o
mundo que se correlacionam com os processos do corpo e mente, apresentando uma
interdependência entre eles. Desse modo, pelo fato de Ponty não desconsiderar os saberes locais
do próprio corpo, pois busca significá-los, a paisagem percorrida por essa mata pontiana possui
uma diversidade maior de espécies, pois suas propostas não pretendem eliminar ou
desconsiderar outras maneiras de se relacionar com o mundo.
Enquanto percorria por esse caminho, notei que, mesmo com uma variedade maior de
espécies que a do caminho anterior, a fauna e flora das propostas pontianas correspondiam às
espécies de plantas e animais presentes nas florestas do ocidente. Portanto, para trazer essas
contribuições/vegetações, pensando a partir de suas aplicações em terras brasileiras, é
importante delimitar certos pontos das propostas de Ponty, para que não se produza um processo
de generalização e desconsideração dos saberes e variedades das experiências vivenciadas por
essas terras.
É notório o quanto as propostas de Merleau Ponty de certa forma esculhambam a lógica
dualista, seus escritos abrem caminhos por dentro do meio acadêmico, possibilitando uma
abordagem epistêmica mais ampla e condizente com o fator inacabado da experiência humana.
O entendimento trazido na perspectiva pontiana de não existir a separação entre o corpo e mente
contribui para a abertura desses caminhos, produzindo nessa “mata acadêmica” um espaço ou
um terreno mais fértil para estar incluindo o corpo nessas relações. No entanto, Ponty situa o
lugar do corpo, na relação com o conhecimento, a experiência e o mundo, a partir de palavras,
ideias e conceitos, sendo necessário, para entender suas perspectivas, atravessar por um
caminho predominantemente intelectual. É, portanto, dessa forma que a produção e transmissão
do conhecimento acontece nas práticas ocidentais, onde, nesse caso, para validar a relação do
corpo com o processo do conhecimento, se faz necessário produzir e diagnosticar o lugar do
corpo no âmbito das ideias. Me parece, que se versa sobre o corpo de uma forma
descorporificada, isto é, de um lugar distante, porém necessário, entre teoria e prática, pois na
cultura ocidental temos a produção do sentido só possível quando elaborada no campo
intelectual. Então, para fazer sentido, no meio acadêmico e escolar, incluir o corpo de forma
contínua nos processos de ensino/aprendizagem, é necessário trazer pesquisas que afirmam isso
nos moldes dessa epistemologia.
Esse caminho percorrido até aqui, entendo como necessário para situar o lugar do corpo
no processo do conhecimento a partir das narrativas do ocidente, além de encontrar pelas matas
da epistemologia ocidental pensadores que contribuem com a proposta desse trabalho em
considerar que o conhecimento só é possível quando incorporado. Mesmo com essas diversas
produções científicas que questionam a existência de uma soberania de saber, continuamos
experienciando os processos educacionais, entre escolas e faculdades, a partir dessa lógica dual,
fruto do ocidente.
Contudo, para acentuar o lugar do corpo nos processos educacionais, levando em
consideração o contexto brasileiro, se faz necessário desviar dos limites das epistemologias
ocidentais, buscando relacionar a produção do conhecimento de forma cruzada com outras
epistemes, no sentido de encontrar propostas mais amplas e que proporcionem um sentido maior
quando se trata de um país que foi erguido a partir de uma estrutura de colonização. Sendo
assim, na travessia pelos caminhos abertos por Merleau Ponty, relacionados ao corpo e ao
conhecimento, quando próximos à realidade brasileira, fui, inevitavelmente, de encontro com a
encruzilhada da colonização. Não é possível versar sobre o resgate7 do corpo e de suas potências
nos processos educacionais hegemônicos, presente nos países colonizados, sem antes identificar
aquilo que produziu o esquecimento e despotencializou as múltiplas formas de vivenciar o
mundo que o corpo dá.
Nesse sentido, o encontro com a encruzilhada da colonização, me proporcionou entrar
em contato com um caminho de produções teóricas, que ainda não tinha visualizado em meu
percurso acadêmico, o do pensamento decolonial. Na próxima seção, pretendo ampliar o debate
acerca do tema gerador desta pesquisa cruzando-o com as perspectivas decoloniais. No entanto,
como caminho faz pouco tempo por essas rotas abertas no pensamento acadêmico, reconheço
que ainda há muito a conhecer. O primeiro contato que tive com o pensamento decolonial foi
através das sugestões da minha orientadora, ou seja, só no final da graduação. Antes de entrar
em contato com essas produções, busquei, através das perspectivas hegemônicas, encontrar em
palavras alguns caminhos conceituais que permitissem uma narrativa mais próxima da vivência
e entendimento de corpo que experiencio através das minhas práticas cotidianas8. Esse caminho

7
Acerca da noção de resgate: utilizo a noção de resgate do corpo ao me referir às práticas ocidentais
de educação, as quais, possuem como base epistêmicas, perspectivas que produziram um
esquecimento do estrato corpóreo de nossa existência.
8
Minha prática como umbandista experienciada desde pequeno através de minha família paterna,
como praticante de capoeira, através do contato com as crianças que possuem necessidades especiais
área em que atuo como professor, que nos convidam a olhar o mundo de maneira outra para as coisas
que já são dadas em nossas mentalidades adulta e como irmão de uma criança com síndrome de
Down.
foi apresentado nessa seção, com a fenomenologia de Merleau Ponty. A partir das pesquisas
desenvolvidas sobre a ótica decolonial, foi possível pensar a relação do corpo com o processo
do conhecimento através de perspectivas não hegemônicas. Brincando novamente com a figura
de linguagem da Mata, ao observar a trilha aberta por essas produções, me deparo com uma
floresta rica em variedades de espécies, isto é, com uma pluralidade de pensamento que
propõem pensar o mundo a partir de outros olhares. Essa paisagem, produziu em mim uma
sensação de encantamento, pois, ao caminhar por essas vias, encontro com autoras e autores
que através de suas produções e narrativas, geram um olhar mais responsável acerca das
questões do conhecimento e que se aproxima da realidade histórica brasileira. Dessa forma, o
pensamento decolonial, ao mesmo tempo que identifica a estrutura sócio-cultural que se espalha
como erva daninha e espécie invasora nos países que sofreram o processo de colonização,
produzindo uma realidade cindida que desconsidera os saberes e culturas locais, também
viabiliza outras rotas epistêmicas que questionam a visão de mundo hegemônica presente no
fazer educacional e social, dispondo outras possibilidades de se pensar e fazer a relação entre
corpo, mundo e conhecimento.
3. ASSENTAMENTO - O TERREIRO PARA PENSAR O MUNDO, O CORPO E A EDUCAÇÃO

As palavras e reflexões evocadas nessa seção surgem no sentido de abrir caminhos e


ampliar perspectivas acerca do que está em jogo nos processos educacionais escolares, em
especial àquilo que se refere aos processos do conhecimento e ao corpo. Para isso, faz-se
necessário desatar o nó da racionalidade que limita nossa compreensão a respeito do que é
“conhecimento”, abrindo espaço, desta maneira, para que outras perspectivas possam fluir.
Nesse sentido, trago algumas contribuições através das perspectivas decoloniais para
comporem o “terreno conceitual” desta pesquisa, com a intenção de apresentar as múltiplas
relações que estão implicadas no processo do conhecimento. Antes de dar início, no entanto,
gostaria de ressaltar o tom poético com que busco matizar essa produção acadêmica, inspirado
especialmente nas produções de Luiz Rufino e Luiz Antonio Simas (2019), a fim de dialogar
com alguns conhecimentos desenvolvidos nos estudos relacionados à educação, com o intuito
de desenrijecer e reencantar certas produções acadêmicas que produzem visões de mundo e de
educação limitantes.

O tom poético, por vezes, aqui versado, está relacionado à composição conceitual deste
trabalho. O contato com as produções decoloniais abriram caminhos para relacionar (e
repensar) as experiências vivenciadas por mim em espaços de resistência como terreiros e rodas
de capoeira com o fazer acadêmico9. Além disso, é através da escrita poética e compromissada
que se mostra possível trazer a potência das palavras em tom de encantamento, mandinga e
feitiço, como propulsoras de realidades outras, presente nas culturas, que, com muita sabedoria,
permanecem vivas resistindo a “marafunda colonial” 10. Nesse sentido, essa produção científica
compromete-se com a defesa da vida em sua diversidade, cruzando outros caminhos
epistêmicos que contribuem no entendimento do tema gerador desta pesquisa, a saber, a relação
do corpo com o processo do conhecimento.

Em minhas experiências formativas vivenciadas em espaços não escolares, como


terreiros e rodas de capoeira, o corpo é entendido como aquilo que possibilita a existência e a
manutenção dessas práticas. É através do corpo, nos terreiros, que se faz possível “baixar” a

9
Participo da corrente mediúnica do Terreiro de Umbanda “Tenda do Caboclo das 7 encruzilhadas”.
10
Termo proposto por rufino onde “compreende-se como sendo a condição da América Latina submetida às raízes
mais profundas do sistema mundo racista/capitalista/cristão/patriarcal/moderno europeu e as suas formas de
perpetuação de violências e lógicas produzidas na dominação do ser, saber e poder.”. (RUFINO, 20190, p.35)
força dos orixás, dos ancestrais e a sabedoria das entidades, é através do corpo também, nas
práticas da capoeira, que se torna possível cada um manifestar a própria mandinga, identidade
e potências. Tem sido através dos corpos que as manifestações culturais afro-diaspóricas
permanecem vivas até hoje. As relações e noções ligadas ao corpo dentro desses espaços,
compõem uma complexidade de afetos que são experienciados pelos praticantes dessas
culturas, portanto, não cabe a mim desenvolvê-los detalhadamente neste trabalho, tendo em
vista que grande parte desses conhecimentos são transmitidos através daquilo que Pedro
Almeida (2019), bàbálórisà, artista da dança e pesquisador, sugere como corpo-oralidade. Nessa
passagem de seu livro ele traz contribuições acerca desta prática no Candomblé:

Pois bem, então qual seria o idioma que mais se aproximaria do Candomblé?
Possivelmente a empiria da corpo-oralidade. Lembremos do quanto pode ser
dito em um abraço de Òrìṣá, o que leva a afirmação de que o Candomblé se
organiza para ser um conjunto de experiências (corpo-oralidade) que nem
sempre poderão ser traduzidas por ferramentas verbais de significação…
Considerar que as relações de ensino e aprendizagem no Candomblé são
somente “falada” é uma ideia pequena de oralidade. A transmissão dos saberes
nesta cultura se dá no e pelo corpo, através de ações e percepções de ordens
musicais, gestuais, narrativas, imagéticas e sensórias. (ALMEIDA, 2019,
p.107)

Dessa forma, trago essas breves considerações para colocar em perspectiva o


entendimento amplo que as epistemes afro-diaspóricas possuem em relação ao universo
corporal, e em como o corpo e suas possíveis manifestações estão conectados com os processos
educacionais dessas culturas, em contraste com a epistemologia ocidental/colonial que
preconiza uma superioridade da racionalidade em relação às possibilidades do corpo operando
a partir de uma lógica dualista/cartesiana que separa o corpo da mente e produz, aquilo que
Vandana Shiva (2018) propõe, como uma monocultura da mente.

Percebi que pensar a relação do corpo com o processo do conhecimento, somente a


partir das produções ocidentais, não seria suficiente para dar conta de explicar minhas
experiências educacionais nos mais diferentes âmbitos escolares 11e não-escolares vivenciadas
durante minha formação. Logo, para a organização do “terreno conceitual”, por onde essa
pesquisa vai estar assentada, se fez necessário dialogar com as perspectivas afro-diaspóricas, a
fim de alargar as possibilidades do corpo na relação com o processo educacional. É portanto,
através do contato com a tese “Pedagogia das encruzilhadas” escrita por Luiz Rufino (2019) e
também o contato com as produções de Leda Maria Martins (1997) que encontro caminhos

11
Minhas experiências no âmbito escolar se relacionam com minha prática como Professor atuante
da área de inclusão.
epistêmicos para pensar a relação do corpo com o processo do conhecimento para além do
pensamento ocidental.12 No entanto, para reivindicar esses outros caminhos como terreno
conceitual para pensar o fazer educacional, é necessário assumir uma postura de “respeito e
compromisso com as aprendizagens que foram plantadas nessa terra por muitas e muitos que
vieram antes de nós” (Rufino, 2021). Em vista disso, a perspectiva educacional por onde esse
trabalho caminha, se compromete em todos os fazeres e pensares com a prática da
descolonização: “Descolonizar é um ato educativo que parte da capacidade de lutar
incansavelmente pela dignidade existencial dos viventes, pela diversidade e pelo caráter
inconcluso das coisas’ (Rufino, 2021, p.37)

Posto isso, começarei a tecer os caminhos que servirão de base epistêmica para essa
pesquisa. Martins (1997), em seu livro “Afrografias da Memória”, narra a matriz africana
“como um dos significantes constitutivos da textualidade e de toda a produção cultural
brasileira, matriz dialógica e fundacional dos sujeitos que a encenam e que, simultaneamente,
são por ela constituídos”. (MARTINS ,1997, p.21). A partir disso, entende-se que a tentativa
de desterritorialização dos corpos e corpus africanos pelos colonizadores europeus, não
conseguiram apagar neles os “signos culturais, textuais e toda a complexa constituição
simbólica fundadores de sua alteridade, de suas culturas, de sua diversidade étnica, linguística,
de suas civilizações e histórias” (MARTINS, 1997, p.25). Como resultado dessa travessia
oceânica, a autora nos conta, que através da complexidade da textualidade oral e na oralitura
da memória dessas culturas, os

rizomas agrafos africanos inseminaram o corpus simbólico europeu e


engravidaram as terras das Américas… As culturas negras constituíram-se
como lugares de encruzilhadas, intersecções, inscrições e disjunções, fusões
e transformações, confluências e desvios, rupturas e relações, divergências,
multiplicidade, origens e disseminações. (MARTINS, 1997, p.25, grifo meu)

Dessa forma, Martins (1997) sinaliza que os africanos não vieram só, trouxeram para as
terras brasileiras seus modos singulares e diversos de perspectivar o mundo. Apesar das culturas
africanas serem menosprezadas sob a ótica dos colonizadores, pois, no imaginário europeu, a
África era entendida como um “território primitivo e selvagem que se compunha às ideias de
razão e civilização, definidoras da pretensa ‘supremacia’ racial e intelectual caucasiana”

12
Essa seção se orienta a partir das produções teóricas de Leda Maria Martins e de Luiz Rufino. Cabe ressaltar
que, meu contato com as produções decoloniais, aconteceu de forma temporalmente contrária, quero dizer, das
produções mais recentes, como a tese “Pedagogia das Encruzilhadas” de Luiz Rufino, para as mais antigas.
Reconheço que, de certa forma, não acessei por completo o debate em torno da decolonialidade e que para o
desenvolvimento desta pesquisa me limito à algumas produções, que poderiam tomar uma proporção mais ampla
se colocadas em diálogo com outros autores e autoras que também desenvolvem sobre esse tema.
(MARTINS, 1997, p.25). Elas permaneceram vivas, encontrando caminhos, abrindo frestas e
cruzando saberes, para resistirem ao “novo mundo” colonial.

As culturas negras que matizaram os territórios americanos em sua formulação


e modus constitutivos, evidenciam o cruzamento das tradições e memórias
orais africanas com todos os outros códigos e sistemas simbólicos, escritos
e/ou ágrafos, com que se confrontaram. E é pela via dessas encruzilhadas que
também se tece a identidade afro-brasileira, num processo vital móvel…
transformam-se e reatualizam-se, continuamente, em novos e diferenciados
rituais de linguagem e de expressão coreografando a singularidade e
alteridades negras (MARTINS, 1997, p.26)

A noção de encruzilhada trazida por Leda Martins para pensar o dialogismo entre os
conflitos na relação dos arquivos das tradições africanas, europeias e também indígenas, “é um
ponto nodal que encontra no sistema filosófico-religioso de origem iorubá uma complexa
formulação”. (MARTINS, 1997, p.27). A encruzilhada é entendida como lugar de interseções,
trocas, passagens, também como o entendimento das correlações entre as diversas
manifestações culturais que ao se cruzarem se modificam, se reorganizam ou se transformam.
Martins (1997), nos conta que, é na encruzilhada que se encontra o “senhor das encruzilhadas,
portas e fronteiras, Exu Elegbara, princípio dinâmico que medeia todos os atos de criação e
interpretação do conhecimento” (MARTINS, 1997, p.28). Exu, princípio dinâmico, dentro das
culturas iorubás matizadas nas Américas, é nomeado de diversas maneiras, Exu-Yangi, “o
caratér primordial de Exu” (Rufino, 2019, p.24), Exu-Onã o senhor dos caminhos, Obá Oritá
Metá, “...o rei da encruzilhada de três caminhos” (RUFINO, 2019, p.41). Entre esses e outros
tantos nomes, Exu demonstra sua multiplicidade de formas e princípios significantes, utilizadas
para traduzir certas relações das pessoas que praticam essas culturas com o mundo. “Exu
funciona como o princípio do qual emergem as possibilidades de criação e tradução de saberes”
(MARTINS, 1997, p.27).

O termo encruzilhada, proposto por Leda Martins, vem no sentido de criar a


“possibilidade de interpretação do trânsito sistêmico epistêmico que emergem dos processos
inter e transculturais, nos quais se confrontam e dialogam, nem sempre amistosamente,
registros, concepções e sistemas simbólicos diferenciados e diversos” (MARTINS, 1997, p.28).
A noção de sincretismo encontrada em terreiro de Umbanda, onde diversos elementos de
sistemas religiosos se cruzam, simboliza essa perspectiva da encruzilhada, no entanto, esse
termo, segundo a autora, não assume tudo o que comporta as encruzilhadas de saberes. Por
exemplo, as práticas culturais inscritas no Candomblé utilizaram como estratégia de
permanência de seus ritos os santos católicos para estarem em “coerência ideológica”
(MARTINS 199, p.31) com as exigências da cultura ocidental/colonial. Porém, no Candomblé
não se fundiram as divindades iorubás aos santos católicos, a encruzilhada de saberes entre
santos e divindade africanas, foram criadas no sentido de possibilitarem a realização das
práticas dessas culturas sem se perderem na religiosidade ocidental.

Trago essas reflexões, narradas por Leda Martins, para pensarmos que, a noção de
encruzilhada, utilizada como estratégias de permanência e resistência das culturas afro-
diaspóricas, refletem o sistema de conhecimento e dinamicidade utilizados como base
educacional dessas culturas. Como, Martins (1997) propõe: “A cultura negra é uma cultura das
encruzilhadas”. (MARTINS, 1997, p.28). A música “Santo e Orixá” cantada por Glória Bonfim,
representa a capacidade de se reinventar das culturas de terreiro, cruzando santo e orixá como
estratégia de resistência, possibilitando outros caminhos para darem conta das mazelas, mágoas
e desencantes produzidas nos corpos por esse modo de vida em que estamos submetidos a viver.

É muita mágoa
Nem mesmo o mar tem tanta água
Pouco prazer pra muita lágrima
Haja milagre pra tristeza se acabar

É muito pranto
Tem povo triste em todo canto
É muita dor pra pouco santo
E o santo vira dois é santo e orixá
(BONFIM, Glória, Santo e Orixá)13

Partindo dessa perspectiva das encruzilhadas, enraizadas nas bases epistêmicas das
culturas Africanas e Afro-brasileiras, e disponibilizadas pelas contribuições de Leda Maria
Martins (1997), trago Luiz Rufino (2019), que propõe, em sua tese Pedagogia das
Encruzilhadas, ampliar a noção de encruzilhada trazida por Leda Martin, junto com outros
termos e conceitos vivenciados nas culturas de terreiros, com a intenção de "reivindicar a
disponibilidade conceitual” desses para pensar o fazer educacional. A noção de encruzilhada
será a base teórico-metodológica de proposta pedagógica da tese de Luiz Rufino, baseando-se
nas práticas das culturas africanas e afro-brasileiras. Logo, essa pesquisa pretende dialogar com
esse mesmo fundamento conceitual, onde sobre o espaço da encruzilhada, torna-se possível

13
Link da música: Santo e Orixá
cruzar perspectivas presentes em outras epistemologias e práticas de vida, com as dispostas pela
produção ocidental de conhecimento.

Portanto, vale ressaltar que, a produção desta pesquisa é entendida como mais um ponto
de força, mais uma encruzilhada, que se abre no mundo para vencer e quebrar as demandas do
desencante produzido pelo colonialismo, também dos desmantelos cognitivos que criaram a
dicotomia entre corpo-mente advindas dos efeitos do colonialismo e da epistemologia ocidental
que nega outras formas de perspectivar o mundo e que se perdura até hoje em nossos corpos e
fundamenta muitas práticas escolares. É grande

... a dimensão da colonialidade que recai sobre o caráter epistemológico. Essa


face nos mantém dependentes do paradigma do saber eurocêntrico, nos
impedindo de pensar o mundo a partir do modo em que vivemos e das
epistemes que lhe são próprias. A perspectiva apresentada pelas encruzilhadas
de Exu se orienta pela noção de cruzo. Assim, essas encruzas e as suas
respectivas práticas não versam meramente sobre a subversão. O que se
propõe não é a negação ou ignorância das produções do conhecimento
ocidental e dos seus acúmulos, tampouco a troca de posição entre o Norte e o
Sul, entre o colonizador e o colonizado… O que se versa nas potências de Exu
é a esculhambação das lógicas dicotômicas para a reinvenção cruzada (Rufino,
2019, p.37).

A prática de uma Gira de Umbanda ou de um Xirê no Candomblé, por exemplo, bagunça


com essas lógicas dicotômicas, a cisão entre corpo e mente, saber e fazer, visível e invisível
não cabe dentro dos terreiros, ali tudo coexiste de forma integrada. Essas manifestações só são
possíveis, dentro desses espaços, pois nesses espaços Exu, o princípio dinâmico, das múltiplas
possibilidades, abre a encruzilhada para realidades outras poderem se manifestar. Dentro dessas
lógicas é através do princípio de Exu, também entendido com o mensageiro entre o céu e a
terra, que se torna possível que os Orixás e as entidades desçam à terra através dos corpos para
trazer seus conhecimentos, bênçãos e sabedorias, a fim de produzir a manutenção do axé,
entendido como energia vital de cada um ali presente. Sem exú não tem orixá, sem exú não se
faz nada e sua morada é a encruzilhada.

“Ifá, testemunho do destino e senhor da sabedoria, nos ensina que Exu precede
toda e qualquer criação. Assim, ele participa e integra tudo o que é criado, da
mesma maneira que também está implicado em tudo aquilo que virá a ser
destruído e o que ainda está por vir. É ele o princípio dinâmico que cruza todos
os acontecimentos e coisas, uma vez que sem ele não há movimento. Exu é
compulsório a todos os seres e forças cósmicas. É ele a divindade mais
próxima daqueles classificados como humanos, é o dono do nosso corpo e de
suas potências, é o princípio comunicativo entre os seres, as divindades e os
ancestre. Exu é a substância que fundamenta as existências; é a linguagem
como um todo. É o pulsar dos mundos, senhor de todas as possibilidades, uma
esfera incontrolável, inapreensível e inacabada… ‘Exu nasceu antes que a
própria mãe’.” (Rufino, 2019, p.23)

O caminho conceitual percorrido até aqui, foi na intenção de deixar claro que as
encruzilhadas relacionada ao princípio dinâmico de Exu, são os caminhos por onde as culturas
africanas conseguiram se reinventar nas terras do continente americano, nesse sentido, essa
proposta de pensar o mundo a partir das encruzilhadas de Exu, se amplia para pensarmos o fazer
educacional, acadêmico e pedagógico, tendo em vista que nesses espaços o espírito colonial
tenta ser unânime, superior às outras formas de vivenciar e conhecer o mundo, portanto,
reivindica-se as encruzilhadas e potências de Exu, para, como Rufino(2019) afirma, descadeirar
essa hierarquia dos saberes ocidentais.

Nesse sentido, saúdo Exu e suas múltiplas formas, abre-se a encruzilhada epistêmica,
colocando em movimento as possibilidades de realização dessa pesquisa, através das palavras
e preces aqui emanadas. Com Exu tudo é possível, sua potência é o que guia o desenvolvimento
deste trabalho possibilitando a comunicação cruzada entre epistemologias, modos de ser, pensar
e fazer o mundo. Sua manifestação por aqui é entendida como uma “esfera de saber, já que ele
é a própria linguagem, é ubíquo, se faz presente em todas as palavras, corpos, movimentos, em
todo ato criativo e em toda e qualquer forma de comunicação” (Rufino, 2019, p.40). Dessa
forma, se ele está presente em todas as coisas, não vai existir, em Exu, a soberania de um saber,
esse entendimento é fundamental para pensar o corpo nos processos educacionais, pois, não
atrela à ele um sentido inferior aos processos mentais. "Os esforços monoculturais,
monorracionais, desvios ontológicos, epistemicídios, desarranjo das memórias, desmantelos e
injustiças são reflexos da limitação, do inchaço e da arrogância de um saber que se quer único”
(Rufino, 2019, p.82). Portanto, sob a perspectiva de Exu, lógicas totalitárias perdem força, pois
na sua morada, a encruzilhada, atravessam e se cruzam realidades de várias bandas e aquelas
que negam a pluralidade, o movimento e a complexidade das coisas, quando postas em “cruzo”
perdem seus domínios e são reinventadas ou mesmo sucateadas, a fim de ampliar as “frestas”
para manifestação de outras formas de conhecimento.

A encruzilhada, símbolo pluriversal, atravessa todo e qualquer


conhecimento que se reivindica como único. Os saberes, nas mais diferentes
formas, ao se cruzarem, ressaltam as zonas fronteiriças, tempos/espaços de
encontros e atravessamentos interculturais que destacam saberes múltiplos e
tão vastos e inacabados quanto as experiências humanas. (Rufino, 2019,
p.86).
Exu e a encruzilhada, como disponibilidade conceitual, por onde esse trabalho se
assenta, permitem dar continuidade às práticas cruzadas daqueles que vieram antes, nada que
escrevo aqui já não foi dito ou vivenciado pelos que praticam a encruzilhada. As sabedorias
ancestrais advindas da diáspora africana cruzaram o atlântico e foram "reinventadas nas bandas
de cá como possibilidade de vida” (Rufino, 2019, p.27). As sabedorias ancestrais indígenas,
presentes no Brasil antes da chegada da colonização, também precisaram praticar a
encruzilhada como estratégia de resistência. Dessa forma, reivindicar Exu e a encruzilhada aqui
nessa “gira” para pensar a educação, entendo como uma forma de praticar o exercício
acadêmico de descolonizar os espaços educacionais e dar continuidade às práticas daqueles que
vieram antes, tendo em vista que, uma das qualidades de Exu é de ser sempre pulsante e
inacabado.

É sob a lógica da encruzilhada e com a permissão de Exu, que reivindico


conceitualmente a noção de assentamento utilizada nas casas de santo, para isso trago as
palavras de Rubens Saraceni, médium e escritor, que organizou de forma escrita os
fundamentos da “Umbanda Sagrada”14: “Assentamento é o local onde são colocados alguns
elementos com poderes magísticos, com a finalidade de criar um ponto de proteção, defesa,
descarga e irradiação” (SARACENI, 2007, p.15). Nesse sentido, entende-se que os “elementos
magísticos” nos quais esse trabalho estará assentado serão alguns termos e conceitos utilizados
nas casas de santo, como a encruzilhada e Exu que já foram lançados nesse trabalho, os quais,
serão reivindicados com o intuito de propor caminhos de entendimentos e afetos acerca dos
processos do conhecimento para o corpo-leitor que entrar em contato.

Portanto, assentar esse trabalho em termos e conceitos para além dos dispostos nas
produções hegemônicas, reflete em uma atitude de comprometimento com a pluralidade de
saberes dispostos nas encruzas da cultura brasileira. Sendo assim, essa produção acadêmica,
surge como mais uma encruza nesse meio, esculhambando com a lógica de uma monocultura
do pensamento, que desvirtua o corpo dos processos de ensino-aprendizagem.

O cruzo, perspectiva teórico-metodológica da Pedagogia das Encruzilhadas,


fundamenta-se nos atravessamentos, na localização das zonas fronteiriças, nos
inacabamentos, na mobilidade contínua entre saberes, acentuando os conflitos
e a diversidade como elementos necessários a todo e qualquer processo de
produção de conhecimento.(Rufino, 2019, p.88)

14
É a vertente iniciada a partir dos ensinamentos transmitidos por Rubens Saraceni, através de
psicografias ditadas por Pai Benedito de Aruanda no início da década de 90.
Com a encruzilhada aberta, lanço mais um conceito, título desta sessão, para pensar o
mundo, o corpo e a educação: O Terreiro. A noção de terreiro não deve ser aqui entendida
apenas como o espaço físico exclusivo das práticas religiosas, mas sim como Rufino (2019)
propõe: “o alargamento do terreiro para pensar o mundo”. Encontramos dentro das
manifestações religiosas cultuadas em terreiros, no meu caso a Umbanda, um sistema de
práticas, educações próprias, entendimentos e visões de mundo, muito diferente da lógica
ocidental/colonial. As práticas ritualísticas nesses espaços, operam e são credibilizadas pelos
corpos que as praticam, se vivenciam formas outras de aprender o mundo, para além da forma
racionalizada disposta pela epistemologia ocidental. Nesses modos de experienciar o mundo,
se aprende a partir das múltiplas possibilidades do corpo, espírito e também do pensamento,
entretanto, a razão não é a protagonista e, muitas vezes, pode atrapalhar o processo de conexão
com a prática religiosa. Isso nos mostra como as práticas nesses espaços, realizam-se através
de múltiplas linguagens sendo elas: corporal, espiritual, oral, entre outras, atrelando ao processo
educacional diversas possibilidades de caminhos de aprendizado. “Esses diferentes modos de
educação, gerados nas frestas e nas necessidades de invenção da vida cotidiana, evidenciam a
potência dos saberes de mundo que se assentam sob as perspectivas da corporeidade, oralidade,
ancestralidade, circularidade e comunitarismo” (RUFINO, SIMAS, 2018, p.22)

No livro “Fogo no Mato - A ciência encantada das macumbas” escrito por Rufino e Luiz
Antonio Simas (2018), os autores trazem essa noção de alargamento de terreiro para pensar o
mundo. Utilizarei de suas palavras para comporem essa reflexão, entendo-as como flechas
lançadas nas estruturas do pensamento colonial, as quais, lanço-as novamente aqui:

A noção de terreiro, mirada a partir das epistemologias das macumbas,


deflagra importantes questões para a problemática educativa, principalmente
no que se refere àquelas pertinentes ao tratamento dos saberes africanos e
consequentemente suas circulações na diáspora. Essas problematizações se
dão na medida em que se constata que mais do que abordar as temáticas
concernentes às histórias e culturas africanas e às recriações na diáspora,
devemos credibilizar as possibilidades de mundo geradas pelas mesmas. Em
outras palavras, mais do que pensar os terreiros e as culturas que o circundam,
existe a necessidade e a emergência de praticá-los como possibilidades de
invenção de outras rotas. A invenção de terreiros/mundos se faz necessária na
medida em que o projeto de mundo concebido pela lógica ocidental moderna
pratica, ao invés da diversidade, a escassez de possibilidades.
É na emergência por outros saberes, lançados como possibilidade de
encantamento do mundo, que firmamos os pontos entoados em nossos
terreiros/mundos. Terreiros que compreendem práticas, princípios e potências
de saberes que confrontam a primazia de um modo de conhecimento eleito
como único. (SIMAS, RUFINO, 2018, p.46).
Nessa direção, do terreiro para o mundo, penso em trazer alguns ensinamentos que tive
dentro do terreiro que frequento, Tenda do Caboclo das Sete Encruzilhadas, a fim de possibilitar
esse cruzamento entre os saberes trazidos na casa de santo, com o pensar acadêmico e a proposta
deste trabalho de visualizar o que está em jogo na relação do corpo com o conhecimento.
Vó Benedita, preta velha, uma entidade que volta e meia incorpora no terreiro para
aconselhar os filhos e filhas ali presentes, nos conta que o trabalho feito na casa de santo não é
só para os encarnados, quando uma gira é aberta vem a “banda toda” e muitos espíritos recebem
orientações para encontrarem melhores caminhos. Ela narra, que muitos espíritos continuam
sofrendo após desencarnarem e não encontram caminhos no mundo em que vivem para se
livrarem dos sofrimentos. É isso que se presencia quando se incorpora em alguém da corrente
de médiuns um “espírito sofredor”, essa manifestação é entendida como um espírito que está
precisando de ajuda, e é através dessa possibilidade, ao incorporar no corpo de algum médium,
que esse espírito recebe o amparo daqueles que estão ali presentes no visível e no invisível para
encontrar, como minha mãe de santo diz, “um nível de consciência maior”. É ciência outra,
tecnologia sutil, Simas e Rufino (2019) nomeiam essas e outras manifestações magísticas que
habitam essas terras de “ciência encantada das macumbas”.

Através dessas experiências e dos profundos conselhos de Vó Benedita, aprendi que os


espíritos são inteligências que habitam o invisível. Em uma passagem de sua tese Rufino propõe
algo parecido com essa perspectiva ao lançar que

Os conhecimentos vagueiam mundo para baixar nos corpos e avivar os seres.


Os conhecimentos são como orixás, forças cósmicas que montam nos suportes
corporais, que são feitos de cavalos de santo; os saberes, uma vez
incorporados, narram o mundo através da poesia, reinventando a vida
enquanto possibilidade.” Nesse sentido, contato com manifestações de
diferentes tipos (RUFINO, 2019, p.9).

Nesse sentido, espíritos como inteligências e “conhecimentos que vagueiam mundo para
baixar nos corpos” podem ser entendidos como similares. Mas como Vó Benedita diz, não é só
espírito bom e de luz que baixa, por aqui vem a “banda toda”. Dessa forma o entendimento de
espíritos sofredores proposto por Vó Benedita relacionando-os com os
espíritos/inteligências/conhecimentos presentes no empreendimento, carrego e marafunda
colonial, tendo em vista que esses espíritos também incorporam em nossos corpos engendrando
em nossa subjetividade uma

...condição permanente de desencante. A desigualdade, o trauma, o banzo, o


desarranjo das memórias e o desmantelo cognitivo, são efeitos do contínuo
desencantamento, operado pelo colonialismo. As sabedorias de terreiro da
afro-diáspora, em um sentir/fazer/pensar para além da fixidez na concretude,
já versariam que os elementos despotencializadores do ser são contra-axés,
forças prejudiciais às energias vitais… A marafunda colonial se versa no tom
do desencante, atenta contra a vida, uma vez que desperdiça as experiências
possíveis e propaga a escassez. (Rufino, 2019, p.68).

A disponibilidade conceitual da encruzilhada, proposta nos estudos decoloniais,


possibilita trazer em perspectiva cruzada, essas outras epistemologias, as quais muitos corpos
brasileiros convivem no cotidiano, para dialogar com essa estrutura rígida de desencante
perpetuada pela implementação do imaginário ocidental de civilização. Dessa forma, ao
pensarmos a relação do corpo com o conhecimento produzido em nossa sociedade brasileira,
se faz indispensável relacionar a construção objetiva, subjetiva e corporal dos sujeitos com as
formas coloniais aqui impregnadas, pois esse imaginário ocidental produz olhares e
entendimentos do mundo que limitam e dizimam as diversas formas de experienciar a vida a
partir daquilo “que o corpo dá”15. “A dimensão dessa esfera de terror reflete o quanto são
adoecidas as nossas mentalidades, o quão blindados são os nossos esquemas de saber, o quão
regulados são nossos corpos, tornando-os impedidos cognitivamente de nos desvencilhar dessa
trama” (RUFINO, 2019, p.37).

É portanto, de longa data que as existências negras e indígenas praticam a encruzilhada


em terras brasileiras, ampliando as possibilidade e permanência de suas culturas através das
frestas e fissuras encontradas no modo colonial de perspectivar a vida. Resistindo contra o
racismo epistemológico incutido nas práticas das populações brancas, essas práticas, instigadas
contra a superioridade construída pela lógica dominante, se alargaram através das encruzilhadas
no território brasileiro, e hoje encontramos nas esquinas do nosso cotidiano e nas encruzilhadas
dos saberes acadêmicos, as frestas e fissuras abertas por eles, as quais viabilizaram formas
outras de se pensar e fazer a educação brasileira. “A questão é que esses saberes subalternizados
- historicamente - formam nossas encruzilhadas. Essas encruzilhadas cosmopolitas e
pluriversais vão nos parindo para o mundo, sendo utilizadas para inúmeros fins em nossas
vidas.” (Rufino, 2019, p.54).

Um conceito elaborado por Rufino, em sua tese “Pedagogia das Encruzilhadas”, permite
conceber a produção científica comprometida com a pluralidade de saberes, como uma forma

15
Máxima do Filósofo Brasileiro Mestre Pastinha: “Capoeira é tudo que a boca come e tudo que o
corpo dá”.
de ebó epistemológico. Ebó é prática desenvolvida dentro de terreiros de candomblé e umbanda,
a fim de manifestar, a partir de oferendas com ou sem sacrifício animal, a comunicação com as
manifestações que habitam o âmbito espiritual. “Assim, o ebó opera também como um princípio
tecnológico, uma vez que é a partir dele que se estabelecem as comunicações, trocas e invenções
de possibilidades”. (Rufino, 2019, p.87). Dessa maneira, o que Rufino propõe como um ebó
epistemológico

… opera como um procedimento que aviva as razões absolutistas no encante


para que o conhecimento seja cruzado, engolido por outras perspectivas e
restituído de maneira transformada. Nessa lógica macumbística, teremos de
praticar o sacrífico das mentalidades, rompermos com as lógicas
desencantadas das razões absolutas para vitalizar o conhecimento plural. Os
efeitos dos ebós epistêmicos tendem a favorecer as condições de ampliação
das possibilidades em relação aos conhecimentos que são cruzados. É, em
suma, a condição que abre caminhos para a produção e circulação dos
conhecimentos pautados no vigor da diversidade epistêmica presente no
mundo... O ebó epistemológico, como um saber praticado, opera no
alargamento da noção de conhecimento; para isso, os seus efeitos
reinvindicam uma transformação radical no que tange às relações de
saber/poder. (Rufino, 2019, p.88).

Portanto, esse trabalho, sendo “uma operação cunhada como “ebó epistemológico”
(Rufino, 2019, p.94), surge como um feitiço, uma forma de encantamento, que possibilite a
manutenção da energia vital do próprio saber científico através da prática da encruzilhada.

Rompe-se com um modelo de ciência desencantada para a positivação dos


conhecimentos a partir do encantamento da ciência. Assim, transgride-se uma
perspectiva monoepistêmica para se lançar um horizonte pluriepistêmico. O
ebó está devidamente arrumado o cuspo nas raízes do edifício colonial
(Rufino, 2019, p. 94).

Nesse sentido, as preces aqui emanadas, os ebós oferendados em forma de palavra, tem
como intenção a potencialização do axé de uma educação que se faz plural.

Dessa forma, sendo um elemento dinâmico que pode vir a ser conduzido para
a potencialização do ser/saber por meio da sua circulação, troca e
multiplicação, o axé também pode sofrer desencante, perda de potência. Como
todo elemento vivo, também ele necessita de mobilidade para se manter
pujante. É nesse sentido que Exu emerge como um poder fundamental à
dinâmica do axé e, consequentemente, das existências/experiências. O orixá,
sendo o próprio movimento é aquele que cruza todas as atividades que poderão
influenciar a potencialização ou a perda de axé. (Rufino, 2019, p.67)

A prática educativa quando pensada sob uma lógica singular, reduz a complexidade
presente nos processos educacionais, possibilitando as/aos estudantes um viés único de
aprendizagem. Dessa forma, esse modelo de educação, herdado pelas práticas coloniais,
demonstra não dispor em sua base epistemológica, em seu assentamento, recursos capazes de
desempenhar práticas que valorizem e acolham a diversidade dos processos cognitivos do corpo
em conjunto da mente. A educação pautada sob essa lógica ocidental, defere um olhar
homogeneizador sob as/os estudantes, esse olhar preconiza uma condição única aos corpos, a
fim de incutí-los valores comuns que estejam em concordância com essa política de desencante.
Aqueles corpos que não se adequam a esses valores, são vistos, dentro dos espaços escolares,
como subalternos à lógica dominante. Portanto, essa prática educacional, fruto da “marafunda
colonial”, instaurada como projeto de desencanto e má sorte, é também uma prática que
despotencializa a energia vital daquilo que se relaciona no fazer pedagógico.

Assim, pensar a educação em termos de Axé e Exu é uma forma de reinvindicar a


dimensão plural e viva que circula o fazer pedagógico. Nesse sentido, alarga-se o significado
desses conceitos para além do uso estrito em terreiros, aqui se reinvindica a disponibilidade
conceitual de Axé, Exu e seus cruzos, para possibilitar caminhos outros que estejam
comprometidos com o encantamento e a mobilidade das energias vitais daqueles que participam
do processo educacional. “Dessa forma, ao pensar em educação como axé, minha proposta é
que consideremos o fenômeno educativo, em sua radicalidade, como um fenômeno oriundo da
existência e da dinâmica das energias vitais (axé)” (Rufino, 2019, p.70).

Portanto, para que a prática educativa surja nos termos de potencialização do Axé, é
fundamental que se dialogue com a pluralidade dos conhecimentos e saberes que cada corpo
traz para dentro dos espaços educacionais, Paulo Freire já versava sobre isso. Sob essa
perspectiva ampla, de uma educação inspirada na potência exusíaca, a escola surge como uma
grande encruzilhada de saberes e epistemes, Exu abre as portas para o atravessamento das
possibilidades que cada pessoa traz consigo, rompe com as barreiras rígidas da racionalidade
ocidental, descadeirando qualquer conhecimento que se quer único ou superior. “Uma educação
que rejeita Exu portanto, é uma educação sem mobilidade, é uma educação que não produz
mudança, pois é ausente de efeitos criativos e tensionadores” (Rufino, 2019, p.83).

Contudo, esse Ebó epistemológico, produzido e versado sobre as potências de Exu,


intenciona contribuir com a quebra do quebranto e o desate do nó colonial produzido em nossos
corpos, para isso, será preciso colocar em cruzo essa episteme ocidental que deslegitima outras
formas de saberes, a fim de esculhambar com a suposta supremacia desse conhecimento e,
(re)encantar, através das palavras, a mente e o fazer educacional. “A tal empreitada civilizatória
atou um nó que precisa urgentemente ser desembaraçado, e, para esse desate, haveremos de
reivindicar as sabedorias assentes em outros corpos e gramáticas.” (Rufino, 2019, p.141). É,
nesse sentido, que o corpo torna-se fundamental para o reencante acontecer, o corpo é elemento
principal desse ebó. Rufino (2019) aponta que todo o saber para ser manifestado necessita de
um suporte físico e o suporte físico é, por sua vez, parte do saber, não há separação. Dessa
forma, ele propõe pensar essa perspectiva através do conceito de incorporação, afirmando que
“todo conhecimento só se manifesta na medida em que é incorporado” (RUFINO, 2019, p.137).
A concepção do saber como algo incorporado, revela-nos a integridade entre saber e fazer,
mente, corpo e espírito. “Na Pedagogia das Encruzilhadas desatam-se os sentidos postos pelas
marafundas coloniais para reinscrever a incorporação como uma noção que engloba os
inúmeros saberes praticados, vibrados nos tons do sentir, fazer e pensar” (RUFINO, 2019,
p.137) Portanto, pensar o corpo como suporte dos conhecimentos, permite-nos a revitalização
do corpo como também uma esfera do saber

Os corpos negros e indígenas foram os primeiros alvos da colonização, sob essa ótica,
os corpos não-brancos sofreram um desvio existencial, suas práticas cotidianas, formas de ver
e conviver com o mundo foram desligitimadas perante a perspectiva colonial, essa perspectiva,
fundamentada em suas produções existenciais monológicas, produziram a morte do corpo físico
expurgando “os saberes e as subjetividades produzidas e incorporadas pelos sujeitos que vibram
em outro tom e se referenciam por outros modos de racionalidade” (RUFINO, 2019, p.138).
Portanto, a problemática do saber, da produção do conhecimento, quando encarnada por Exu,
reivindica e credibiliza esses saberes assentes em corpos e em outras perspectivas que não as
coloniais.

Firmo o ponto novamente, a racionalidade moderna ocidental é decapitada e


assombrada pela má sorte de ter o corpo (Bara) deslocado da cabeça (Ori). As
questões acerca dos saberes (epistemologias) perpassam necessariamente por
um reconhecimento e credibilização do corpo, na medida em que todo saber
se manifesta quando praticado, ou seja, incorporado. Se as questões acerca do
saber estão diretamente vinculadas às dimensões das práticas, incorporações,
e dos agentes que as praticam, as incorporam, as questões epistemológicas se
inscrevem também como uma problemática étnico-racial. (RUFINO, 2019,
p.146).

É, em vista disso, que entende-se essa forma cindida de conceber o mundo e a educação
no Brasil, como fruto das perspectivas coloniais. A produção do esquecimento do corpo, surge
como uma estratégia do pacote da “marafunda colonial”, a fim de invalidar os saberes
assentados nos corpos das culturas locais. A política colonial se instaura a partir da violência
de suas perspectivas epistemológicas, as quais buscaram legitimar o ataque direcionado às
outras culturas. É nos corpos, compreendendo-os em sua integridade, que se instaura o
desencanto produzido pelo modo de vida colonial. Rufino (2019) pontua que a estratégia de
colonização opera através da lógica: mata-se para civilizar. Tendo em vista que a morte nas
perspectivas das culturas da afro-diáspora está diretamente relacionada com a produção do
desencanto da vida. A realização da “civilização brasileira” só foi possível através do
desencantamento dos corpos colonizados. Porém, o corpo é um campo de possibilidades”
(RUFINO, 2019, p.149). Da mesma forma que se desencanta é possível se reencantar.

“Assim, o corpo rasura as determinações imposta pelo substantivo racial para


se inscrever como o suporte que resguarda saberes e possibilidade
intermináveis… O corpo, o primeiro alvo de ataques do colonialismo, é
também a mola propulsora das ações de remontagem e transgressão.”
(RUFINO, 2019, p.149)

O primeiro alvo desses ataques foram os corpos das culturas africanas e indígenas.
Pedro Almeida (2019), sugere em seu livro “corpo-oralidade”, “que dentre as culturas que
vieram trazidas da África para cá, as que mais se baseavam no corpo melhores condições
tiveram para permanecer… Em sua maioria, essas culturas não vieram trazidas em livros ou
outros artefatos.” (ALMEIDA, 2019, p.102). Ele continua ao explicar que no Candomblé:

“Todas as ações do corpo ocupam matérias fundamentais… O sistema corpo


como veículo e objeto de linguagem, é o responsável por toda manutenção dos
saberes, por toda transmissão dos conhecimentos, e deste modo pela
permanência destas culturas matrizes.” (ALMEIDA, 2019, p. 103)

Trago esses breves apontamentos acerca do lugar que o corpo ocupa nas práticas da
cultura do Candomblé, para refletir a diferença epistêmica que cada cultura compõe em suas
práticas e visões de mundo, e também, para pensar que os fatores que levam a perspectiva
colonial esquecer o corpo, atando a ele lógicas que o menosprezam, provém de uma estratégia
de mortandade de outras culturas e epistemes, essas culturas, alvo do colonialismo, são muitas
vezes assentadas, transmitidas e praticadas a partir do corpo. “Ora, se o candomblé se
fundamenta no corpo e o ideal difundido no país é menosprezar o corpo, podemos estar de
frente com um dos componentes do racismo estrutural.” (ALMEIDA, 2019, p.104). “A morte
do corpo físico acompanha a lógica de expurgar os saberes e as subjetividades produzidas e
incorporadas pelos sujeitos que vibram em outro tom e se referenciam por outros modos de
racionalidade. (RUFINO, 2019, p.138).
Assim, a dimensão do corpo, para essas sabedorias, transcende os limites do
emprego usado pela lógica ocidental. O mesmo é suporte de sabedorias
múltiplas que baixam e o encarnam; é também um elemento de imantação e
diálogo constante (cruzo) com o campo multidimensional. O corpo
potencializado pelo transe (deslocamento e trânsito por múltiplas dimensões)
passa a não ser meramente passivo às violências a ele empregadas, se desgarra
da fixidez material imposta pelo substantivo racial e passa a operar
inventando/inventariando ações de resiliência e transgressão. (RUFINO,
2019, p.131).

Dessa forma, a partir do contato com outras epistemes praticadas nas terras brasileiras,
percebemos que existem diferentes formas de compreender e vivenciar a relação entre corpo,
conhecimento e mundo. Sendo assim, é necessário o movimento de escaparmos dessa lógica de
validação e invalidação de determinados conhecimentos e saberes, indo ao encontro com a
proposta de Vandana Shiva, ao afirmar que as relações entre a episteme ocidental e as epistemes
das culturas locais, se consolidam a partir de uma estrutura de poder e domínio, onde a visão
ocidental se legitima em detrimento das perspectivas locais.

Cabe destacar que a condição para a autorização/interdito,


legitimidade/ilegitimidade, possibilidade/impossibilidade de determinados
conhecimentos muitas vezes não está vinculada à efetividade desses
conhecimentos, mas sim ao rigor que os mede e os autoriza. Nessa perspectiva,
as problemáticas acerca dos conhecimentos vinculam-se às questões relativas
ao poder e às correlações de força, afinal saber é poder, e deter a validade de
determinados conhecimentos e a possibilidade de invalidar outros é manter-se
na condição de quem detém esse poder (Rufino, 2019, p.128).

Nesse sentido, firmar o ponto de que todo conhecimento só é possível quando


incorporado, surge com o intuito de traçar um movimento contrário, de desvio e investida contra
a “marafunda” e o “carrego colonial” instituído e incorporado nos diversos processos
educacionais que atravessamos. Para que assim, possamos ampliar as perspectivas pedagógicas
acerca dos processos do conhecimento, para uma noção que traga de forma continuada o debate
étnico/racial na educação, pois em conjunto com as perspectivas das culturas não hegemônicas,
é que podemos estar reencantando o corpo nesses processos. Por isso, busca-se expandir as
frestas que a colonialidade tentou fechar, ao produzir o esquecimento do corpo.
Os espíritos/inteligências do colonialismo pairam em nossa cultura e sociedade e
incorporam em nós, produzindo o desencante e o adoecimento da vida. Dessa forma, se o
conhecimento só é possível quando incorporado, pode-se dizer que a permanência das
estruturas coloniais só acontece pelo fato de incorporarmos essas formas de perspectivar o
mundo. É nesse sentido que, para falar sobre as relações do corpo com o processo do
conhecimento, nos países que foram colonizados, é inevitável denunciar a forma pela qual a
perspectiva colonial subentende e atua sobre os corpos no sentido de “praticar o sacrifício das
mentalidades, rompermos com as lógicas desencantadas das razões absolutas para vitalizar o
conhecimento plural.”(RUFINO 2019, p.88). Portanto, apenas aplicar à educação brasileira, as
perspectivas de corpo, percepção e conhecimento de Merleau Ponty, sem trazer o quesito da
colonização e das estruturas assentadas no preconceito étnico/racial, resultaria em trazer as
matas ocidentais sem pensar no terreno e nas diversidades locais. Por isso, que a sugestão dessa
pesquisa, é a de reposicionar o corpo a partir de um curso de ser/saber outro, que, quando lido
pelas encruzilhadas de Exu, passa por credibilizá-lo como potência.

Através do entendimento do corpo como potência, que se estabelece a noção de “corpo-


encruzilhada”, sendo o corpo o lugar onde “contém o investimento da agência colonial, como
também representa o contra-ataque, o início, a marca, a pulsão e a continuidade da luta contra
esse sistema.”(RUFINO, 2019,p.158). É através do corpo que se estabelece as possibilidades
de fazer e refazer a vida. Sendo assim, o corpo, em sua integridade, será pensado aqui como a
mirada do fazer educacional.

A gira está aberta, assentada, firmada sob as potências das encruzilhadas de Exu, lócus
epistêmico das culturas africanas e afro-brasileiras, as quais, através da prática das
encruzilhadas conseguiram permanecer resistindo com muita sabedoria e reencantando
continuamente seus corpos perante a investida colonial. Nesse sentido, aprendemos com eles,
com os saberes presentes e assentados nessas culturas, a fim de encaminharmos a prática de
educação para espaços pluriepstêmicos e potenciadores da energia vital dos/das estudantes.

Antes de dar continuidade a essa travessia, me sento na encruza para firmar os elementos
desse ebó epistemológico.

o ebó epistemológico, como um saber praticado, opera no alargamento da


noção de conhecimento; para isso seus efeitos reinvindicam uma
transformação radical no que tange às relaçãos de saber/poder. Ainda,
confronta a noção desencatanda do paradigma científico moderno ocidental,
buscando transformá-lo a partir de cruzos com outras esferas de saber.
(RUFINO, 2019, p.88).

Tendo o reencante do corpo como objetivo principal desse ebó, lanço-o como um feitiço
a esse entendimento monológico de mundo, ampliando as possibilidades, através da prática
cruzada, do pensar e fazer pedagógico, (re)encantando o corpo e a mente a fim de destituir as
dicotomias e dualidades presentes nas práticas educacionais ao propor uma relação mais
significativa e integrada entre eles. Despacho esse ebó na encruzilhada, a fim de produzir o
descarrego das quizilas coloniais desatando-as de nossas práticas e pensamentos, possibilitando
um olhar mais amplo e respeitoso a pluralidade de saberes. Dessa encruzilhada em que me
encontro, após atravessar esse longo, diverso e complexo caminho, necessário para consolidar
dentro dos moldes ocidentais o tema gerador desta pesquisa, parto para o campo da prática
pedagógica.
Busco tecer no próximo capítulo, algumas reflexões acerca das dimensões da
perspectiva colonial que produzem uma visão sobre a infância limitada, ao considerarem como
incompletas as formas de perceber e entender o mundo das crianças. A partir das pesquisas
bibliográficas e algumas práticas pedagógicas, vou de encontro ao oposto dessa proposta: as
crianças são completas em si mesmas e em suas formas de entender o mundo. Essas reflexões
sobre a infância estarão relacionadas com algumas práticas desenvolvidas por mim na área da
inclusão, e também, em oficinas propostas à crianças em espaços não escolares, onde o corpo
sempre apareceu como elemento chave e nutridor das possibilidades pedagógicas.
4. Gira de Erê

Eu fico com a pureza


Das respostas das crianças
É a vida! É bonita e é bonita!
(GONZAGUINHA, O que é, o que é, 1982)

No caminho percorrido até aqui encontramos significados para entendermos quais os


motivos que levaram a sociedade a produzir uma monocultura de pensamento e espécie nas
matas das produções acadêmicas. Também encontramos quais os motivos que possibilitam uma
“floresta” mais diversificada, mais plural, existir nesse âmbito. Esse capítulo, portanto, busca
pensar sobre quais ações podem ser feitas para cultivar e manter a pluralidade e a diversidade
de espécies na produção acadêmica e na prática educativa, perspectivando, como caminho para
isso, um entendimento mais amplo da relação entre o corpo e as práticas da educação. Busco
também atar um nó na prerrogativa de que o reencante do corpo nos processos educacionais, se
relaciona indubitavelmente, com o resgate das crianças em suas integridades e formas próprias
de se relacionar com o mundo, lançando um olhar que positive o fenômeno da infância perante
a dimensão da colonização que paira sobre elas de uma sociedade “adultocêntrica” (FARIAS e
SANTIAGO, 2015). Antes de chegar nas crianças, farei um breve resumo do que foi conversado
até aqui.
A proposta de repensar o corpo nos processos educacionais lançada nas sessões anterior,
abarca diversas dimensões da existência humana, a partir do ponto de vista fenomenológico de
Merleau Ponty e as contribuições de Nóbrega, Maturana e Varela, distante das dicotomias entre
mente e corpo, entendemos que todo saber só é possível quando incorporado, pois, através do
horizonte perceptivo enraizado, pelo corpo e no corpo, a consciência se abre para o mundo.
Nesse sentido, tanto a percepção quanto os processos cognitivos serão entendidos como
fenômenos corpóreos. Integra-se corpo e mente. O conhecimento deixa de ser algo próprio do
mundo das idéias e passa a ser entendido como tudo aquilo que atravessa o corpo e produz
sentido, seja através da percepção ou do pensamento.
Portanto, cada corpo experiencia o mundo de formas diferentes a partir das coisas que
estão dispostas em seu “horizonte perceptivo”. Merleau Ponty em um dos cursos ministrados
na Sorbonne, sobre psicologia e pedagogia da infância, pontua que a primeira relação dos recém
nascidos com a cultura acontece através do contato entre corporeidades dela com seus pais e
pessoas próximas. Segundo o autor, o corpo possui uma própria forma de refletir o mundo, os
primeiros sorrisos dos bebês são reflexos dos sorrisos abertos a eles, os bebês não pensam em
sorrir, eles sorriem. Dessa forma, Ponty nos mostra que a cultura atua em diversas dimensões
de nossa existência, no âmbito corporal, através das trocas pelas intercorporeidades, e no âmbito
mental dispondo formas semânticas para significar as experiências.
A proposta Pontiana da relação entre corpo, conhecimento e mundo, abre caminhos para
pensar sobre qual dimensão sócio-cultural está disposta no horizonte perceptivo das relações
vivenciadas e significadas pelos diferentes corpos. Merleau Ponty reconhece que nós, enquanto
corpos, desde o início de nossas vidas, estamos nos relacionando com elementos culturais e
incorporando-os através do contato das possibilidades do corpo com as possibilidades do
mundo. Não é possível distanciar a relação entre o corpo e processos educacionais das práticas
culturais que constituem a formação corpórea16 de cada pessoa.
Porém, para possibilitar o resgate e o reencante do corpo é importante desvelar o que
produziu seu esquecimento. A dimensão cultural nos indica isso. Como versado anteriormente,
nos países que sofreram com o processo de colonização, as marcas da “marafunda colonial”
continuam operando através da cultura. A desvalorização e menosprezo do corpo, presente nas
práticas ocidentais instituídas no Brasil, como evidenciado por Almeida (2019), refletem o
racismo estrutural frente às culturas que possuem seus sistemas de transmissão assentados na
prática da “corpo-oralidade”. Em vista disso, para o resgate do corpo nas práticas educacionais,
é preciso driblar as perspectivas ocidentais que nos levam à produção de uma monocultura do
pensamento, ao desconsiderar os saberes locais do corpo e de outras epistemes assentadas em
solo brasileiro.

16
Me refiro a “formação corpórea” não só como formação do corpo, mas sim de todas as
possibilidades que o corpo dá, seja de forma racional ou sensível. A opção por utilizar esse termo vem
no sentido de não colocar o que está em jogo na formação da pessoa em esquemas binários.
Dessa maneira, a transformação dessa perspectiva monocultural atrelada à educação,
pode ser feita quando pensado através da prática das encruzilhadas de Exu. Como narrado por
Leda Martins (1997), as encruzilhadas, refletem o sistema de conhecimentos e dinamicidade
utilizado como base educacional das culturas afro-diaspóricas, essas culturas praticam o desvio
das lógicas ocidentais e investidas de outras formas de conceber o mundo a muito tempo, o
príncipio das encruzilhadas é utilizado como estratégias de permanência e resistência dessas
culturas. Na lógica da encruzilhada, qualquer conhecimento que se quer único, é descadeirado
frente à dinamicidade do princípio de Exu que a rege. Portanto, pensar através das
encruzilhadas, trazidas pelas epistemologias africanas, proporcionam um olhar dinâmico e
plural frente às formas enrijecidas e monoculturais do ocidente de conceber o mundo e o corpo.
Em vista disso, a partir das encruzilhadas, o corpo é entendido como potência, onde, da
mesma forma que é atravessado pelas dinâmicas e perspectivas coloniais, também possui a
capacidade de subvertê-las e transformá-las. Nesse sentido, entende-se o corpo como corpo-
encruzilhada. Se cruzam no corpo o mundo perceptivo e o mundo representativo, se cruzam no
corpo a dimensão da cultura colonial de desencante e a possibilidade de produzir caminhos
outros comprometidos com uma noção mais ampla e viva da condição humana.
A partir dessas reflexões, pretendo aproximar as dimensões da colonização que
influenciam em um olhar limitado à infância e desconsidera as potências do corpo das crianças,
compreendendo-as como seres incompletos. Busco relacionar a prática do reencante do corpo
nos processos educacionais com o desenvolvimento de um olhar que positive o fenômeno da
infância, em contraste com a perspectiva adultocêntrica da cultura ocidental. Para isso, estarei
dialogando com Merleau Ponty, a partir dos seus cursos relacionados ao tema da infância, com
Luiz Rufino, Luiz Augusto Passos, Maria Marcondes Machado e com os textos.
No artigo sobre infância e descolonização, os autores e autoras levantam o seguinte
questionamento: “a quem serve a percepção das crianças pequeninhas enquanto sujeitos não
produtoras de cultura?” (MACEDO et al., 2016, p.39). Essa percepção que desconsidera a
criança enquanto produtora de cultura, é oriunda dos pressupostos adultocêntricos de educação.
O adultocentrismo é um dos preconceitos mais naturalizados pela sociedade
contemporânea. Ele atribui capacidades e fazeres às crianças para que se
tornem adultos/as no futuro, desconsiderando os aspectos singulares da
própria infância, tomando este momento da vida apenas uma passagem, um
vir a ser, em que aprendemos a nos relacionar e a nos integrar à sociedade…
A infância, na perspectiva adultocêntrica, é somente um período de transição
e aquisição dos elementos simbólicos presentes na sociedade, tendo a criança,
assim, uma condição de ser menor, ser inferior, lugar que lhe é dado pelo
grupo dominante correspondente: os adultos e as adultas (FARIA;
SANTIAGO, 2015 p. 853).
Segundo Faria e Santigo (2015), a educação não transmite um conhecimento isento de
uma ideologia, os pressupostos teóricos nos quais a educação brasileira está alicerçada
legitimam esse olhar que diminui as produções, comportamentos e linguagens da criança.
Concebendo a criança como um constante “vir a ser” adulto. Essa lógica adultocêntrica,
reproduz a noção limitante acerca do que é conhecimento, pois atrela uma hierarquia de saberes
dos adultos em relação aos saberes das crianças. Sob essa perspectiva, a infância “é somente
um período de transição e aquisição dos elementos simbólicos presentes na sociedade, tendo a
criança, assim, uma condição de ser menor, ser inferior, lugar que lhe é dado pelo grupo
dominante correspondente: os adultos e adultas” (FARIA e SANTIAGO, 2015, p.851).
Nesse sentido, os autores trazem que:
Um dos mecanismos que legitima/contribui com este processo de
institucionalização do “universo adulto” é a escolarização forçada e precoce,
a qual funciona como um mecanismo que “rouba” e tenta apagar as
singularidades das crianças, obrigando-as a se alfabetizarem em uma única
linguagem visando à institucionalização de verdades únicas e universais
(FARIA, SANTIAGO, 2015, p.852).

Dessa forma, eles entendem que, o processo de escolarização, baseado na construção de


verdades universais e na legitimação dos saberes adultocêntricos faz parte do mecanismo de
“introjeção do discurso colonizador nas subjetividades das crianças” (FARIA e SANTIAGO,
2015, p. 852). A partir disso, entende-se que as dimensões da colonialidade na educação,
silencia as diferentes práticas corporais daqueles que não se enquadram no perfil colonial de
um corpo branco, adultos e homem. Dessa forma junto ao racismo e ao machismo estrutural,
que tentam silenciar os corpos negros, indígenas, femininos, LGBTQI+, também encontramos
a exisência de um adultocentrismo que silencia as expressões e linguagens das crianças.

Ainda na linha de Faria e Santiago:


A “descolonização adultocêntrica” nos permite visibilizar a potencialidade de
criação das crianças, o que elas têm em comum e o que as fazem singulares
entre si, expondo as suas relações com o mundo, bem como os processos de
negociação, reinvenções, resistências criadas entre si e nas relações com os
adultos, explicitando os movimentos de construção das culturas infantis… Ao
construirmos uma percepção não adultocêntrica das crianças, descolonizamos
a fundamentação epistemológica que as concebem somente enquanto um vir
a ser.( FARIA, SANTIAGO, 2015, p.855)
Para contribuir com a construção de uma percepção não adultocêntricas das crianças,
trarei alguns apontamentos sobre como as propostas de corpo e de conhecimento trazidas nesta
pesquisa, possibilitam um olhar mais próximo de uma cultura das crianças17, a fim de visualizar
as crianças como atores e atrizes sociais, produtores de cultura. E também como esses
apontamentos reverberam no pensar e no fazer pedagógico. Para isso, conto como referência o
livro “Merleau Ponty e Educação” escrito pela Drª Marina Marcondes Machado, que possibilita
uma sistematização dos assuntos sobre psicologia e a pedagogia da infância trazidos nos Cursos
da Sorbonne por Merleau Ponty. Sendo assim,

Para que ocorra a visualização do protagonismo das crianças temos que criar
instrumentos, ferramentas teóricas, conceitos, afetos e perceptos que
possibilitem a constituição social/individual de metodologias que estejam
alicerçadas na busca das singularidades infantis, criando novos olhares sobre
aquilo que elas produzem na interação com o mundo (FARIAS, SANTIAGO,
2015, p.856)

Nos cursos ministrados na Sorbonne e reunidos na obra Psicologia e Pedagogia da


Criança (2006), Merleau Ponty propõe pensar uma fenomenologia da infância, onde, através
do diálogo com diferentes autores e autoras de diversas áreas do conhecimento, ele busca
entender como a criança percebe o mundo. “Para chegar perto das noções sobre a criança e a
infância que Merleau-Ponty desvela nos Cursos na Sobornne, há que explorar um ‘saber
efetivo’, nas palavras do próprio autor. A diferença está em ouvir as crianças e acolhê-las em
seus pontos de vista.” (MACHADO, 2010, p.12).
Portanto, como relata Machado (2010), a educação a partir da perspectiva
fenomenológica de Merleau Ponty, não resulta em prerrogativas pragmáticas, pois a
fenomenologia é um método filosófico, ou seja, uma maneira de pensar. Isso implica na
transformação do olhar de quem educa, sintonizando a prática com o modo fenomenológico
de pensar a infância e a criança, “a grande diferença, portanto, residirá, em nossa atitude frente
a ela". (MACHADO, 2010, p.14). Nesse sentido, como propõe Faria e Santiago (2015), esse
capítulo busca compor alguns elementos para pensar o universo da criança necessários para a
transformação do olhar, do adulto sobre a criança, do educador sobre o educando. O estudo da
fenomenologia da infância propõe uma sensibilização do olhar ao estatuto de ser criança,
possibilitando um entendimento mais amplo da experiência infantil.
Merleau Ponty mostra que, antes de conhecermos o mundo em palavras, nós
percebemos o mundo com o corpo. Em vista disso, transformar o olhar significa expandir a
consciência ou, na perspectiva pontiniana: Enraizá-la. Mergulhar a consciência no horizonte
perceptivo que habita em nós através do corpo é ver e pensar como nosso corpo se relaciona
com a realidade que o cerca sem habitar a ordem dos conceitos. E quem melhor para nos
apresentar o mundo percebido do que as crianças? Elas se encontram mergulhadas no horizonte
perceptivo, e, enquanto se movimentam, fazem e refazem suas diversas formas de ser e estar
com o mundo.
Nos Cursos na Sorbonne o autor discute três diferentes perspectivas sobre a infância. A
perspectiva mecanicista ou empirista, aplicada às metodologias behavioristas de educação que
entendem o desenvolvimento como uma “soma de mudanças”; A perspectiva idealista ou
logicista onde “as formas iniciais do pensamento seriam quase um ‘não pensamento’
(inteligência sensório motora, por exemplo), e o crescimento se daria por um salto para um
pensamento em equilíbrio.” (MACHADO, 2010, p.18). E a concepção dialética18 de
desenvolvimento infantil, a que o autor mais se identifica. Essa “revela uma concepção
dinâmica em que “o movimento modifica seu próprio movimento.” (MACHADO, 2010, p.18).
Essas três perspectivas nos mostram como as diferentes noções de infância refletem diretamente
na proposta educacional. É o entendimento e o olhar que o educador tem sobre a perspectiva do
educando que irá nortear o sentido de suas práticas educativas.
As propostas educacionais mecanicistas e intelectualistas, que entendem o corpo como
corpo-objeto, reduzindo-o a uma mera ferramenta para o exercício da mente, ou que, através do
controle dos corpos buscam padronizar comportamentos e saberes, não são entendidas aqui,
como meras correntes filosóficas que cometeram erros ao descrever de forma incompleta as
dimensões educativas presentes nas relações humanas. Mas sim, como princípios filosóficos
que edificaram e legitimaram as ações coloniais sobre outros povos que não seguem a lógica
positivista de progresso ocidental. Portanto, a opção para pensar caminhos mais verdes e
diversos do conhecimento, surge pela necessidade vital de reflorestar as monoculturas
produzidas em nosso pensamento e consequentemente nos processos educacionais que são
marcados por essas práticas homogeneizadoras.
As perspectivas coloniais de educação, que são as perspectivas vigentes em nossos
sistemas de ensino, não abarcam em suas epistemes, a completude da criança no que tange sua
relação com o mundo e com o conhecimento, gerando um distanciamento do olhar de quem
educa e de quem é educado. Merleau Ponty, revela de forma conceitual algo que sempre esteve

17
“A cultura infantil pode ser compreendida, ao menos em certo grau, como práticas culturais nas quais as
crianças tentam diversas formas de ser e praticam, modificam e constroem habilidades e valores sobre a cultura
adulta.” (NOGUEIRA, 2017)
18
“Quem melhor tem expressado essa teoria é Wallon, alguns psicanalistas e os gestaltistas.”
(Machado (2010), p.18)
presente em nossos corpos e que muitas vezes não foi levado em consideração nos exercícios
dos pensares e das práticas educativas ocidentalizadas, a saber, a experiência perceptiva
corpórea. Por isso, umas das influências pontianas na educação resulta no rompimento da noção
dualista de mente e corpo, sua concepção de como o conhecimento se desenvolve no ser
humano não cabe a essas limitações. A mente e o corpo, em Ponty, se entrelaçam enquanto nos
movimentamos no mundo. O pensamento e a percepção são mediados pelo corpo e se
correlacionam na integridade do nosso organismo, no nosso “esquema corporal”. Desta
maneira, distante de dicotomias, o “filósofo nos convida a buscar totalidades. Para ele, a criança
vive um corpo ‘fenomênico e indiviso’. Ela ‘ela está no social e no seu corpo, nos dois ao
mesmo tempo sem nenhuma dificuldade’ ”(MACHADO (2010), p.17,[1990b, p.230]). Por isto,
segundo o autor, corpo e mente se relacionam dialeticamente no desenvolvimento cognitivo.
Portanto, pensar a criança situada em sua corporalidade resulta em um entendimento
mais amplo sobre ela e sobre o desenvolvimento de suas inteligências.
A corporalidade é uma noção central para compreender e realizar uma
fenomenologia das relações da criança consigo mesma, com o outro e com o
mundo: implica estar vivo, ter um eu, sentir-se um eu – algo vivenciado e
completado muito aos pouquinhos, algo nunca plenamente situado ou
satisfeito. (MACHADO, 2010, p.33)

Merleau Ponty considera que a experiência do corpo e da percepção na criança se


relacionam com um universo pré-verbal, ou
uma ‘natureza-primordial’: situada aquém de toda e qualquer cultura, aquém
de toda humanidade. (...) A ‘natureza primordial’ como pensada por Merleau
Ponty permite enxergar uma unidade entre ‘sentidos’ e ‘inteligência’: esta
unidade é coisa intrasensorial, algo que não se explica intelectualmente nem
do ponto de vista empírico ‘puro’. Apenas a unidade do corpo próprio
compreende esse evento, em que os sentidos operam em conjunto e nos dão a
experiência da realidade, uma realidade intersensorial.” (MACHADO, 2010,
p.34).

Levar em consideração a experiência perceptiva, relacionada à natureza primordial, o


“berço do conhecimento” que é sempre aberta ao horizonte perceptivo, faz com que estejamos
mais próximos do universo infantil, pois, segundo Ponty essa realidade existe em nós adultos
também, só que de forma mais manifesta nas crianças. Merleau Ponty (1990) propõe que para
identificar essa camada ocultada pela consciência em nós adultos, é necessário mergulhar a
consciência no horizonte perceptivo.
O conceito de percepção da criança tomará rumos mais amplos nos estudos de Merleau
Ponty. Trarei suas contribuições acerca desse tema, através da discussão teórica entre os
pressupostos de Jean Piaget e Merleau Ponty sobre a percepção na criança. Acho válido
compartilhar que, durante minha formação, as propostas de Jean Piaget acerca das etapas de
desenvolvimento da criança, foram em diversas disciplinas expostas e enfatizadas, porém não
lembro de ter entrado em contato com certos apontamentos que diagnosticam os limites dessas
teorias. Entendo que narrar as contribuições de Piaget e suas limitações, é importante, pois os
pressupostos teóricos desse autor, influenciam a produção da Base Nacional Curricular de
Ensino, da Lei de Diretrizes e Bases e também de vários Projetos Políticos Pedagógicos de
escolas públicas e particulares, além de ser referência teórica de um grande número de
profissionais da educação.
Tanto na epistemologia Genética de Piaget, quanto na fenomenologia da infância de
Ponty, encontramos a existência de um “sujeito perceptivo” anterior a de um “sujeito
constituinte.” Jean Piaget afirma que no início da infância a criança é egocêntrica, no sentido
de não existir uma diferenciação entre o mundo exterior e o “eu”. Nessa fase, segundo Piaget,
a percepção ainda não é estruturada, pois não existe um “eu” ou “uma inteligência” que a
estruture, o que leva a considerar que, por não diferenciar sujeito e objeto, a percepção na
primeira infância, conforme o mesmo coloca, é um “caos perceptivo”. Nesse sentido, a criança
durante essa fase apresenta-se incompleta, carente da capacidade de uma formulação lógica
para dar sentido à percepção, que, por si só, é insuficiente. Piaget propõe que a estruturação
dessa fase deve acontecer através de uma soma de interações com o meio que vão construindo
a capacidade lógica da criança. “A questão que Piaget está sempre formulando é o do
aparecimento do intelectual a partir da desordem inicial.” (MERLEAU PONTY, 2006, p.544).
Dessa forma, Merleau-Ponty afirma que Piaget, ao buscar identificar o fator lógico-operante
que faz com que a criança se desenvolva até a aquisição da linguagem e do sentido cultural,
concebe a percepção infantil no estágio sensório-motor como uma desordem inicial, preliminar
às operações lógicas, portanto, prenhe de uma capacidade regulatória, a qual só será possível
quando introduzida pela inteligência.
Quando Piaget afirma que a regulação do campo perceptivo da criança é resultado de
operações lógicas, ele propõe que a criança, em seu processo de maturação, é um projeto da
inteligência formal adulta, entendendo-a como um ser incompleto e limitado em sua capacidade
de entender o mundo. Nesse sentido, o fenômeno da infância sob a ótica piagetiana, é um
fenômeno negativo, pois ele busca adequar o olhar infantil ao olhar do pesquisador adulto.
Assim, é claro que a criança sairá perdendo, pois Piaget não se aprofunda no “mundo percebido
pela criança” e perde “a dimensão de uma das dimensões mais ricas de um pensamento que não
mata a fantasia, a poesia, uma imaginação criadora e a corporeidade em ascensão.” (PASSOS,
2019, p.9)
Merleau Ponty, identifica que a teoria de Piaget entende a infância de uma forma
negativa, pois parece considerar a criança incompleta em relação ao adulto. O fato de Piaget
querer identificar como se origina e se desenvolve a capacidade cognitiva faz com que ele
priorize o olhar ao mundo representado, o qual a criança em algum momento irá se apropriar,
mas não está dado para ela desde o começo. Para Ponty, entretanto, a criança não conhece o
mundo dessa forma e nem imagina a existência de um mundo representado, ela possui uma
forma de percebê-lo completa em si, e não incompleta em relação ao ser adulto. Percebe-se que
o interesse de pesquisa de Piaget prioriza a aquisição da capacidade lógico-racional de decifrar
o mundo na criança, já Merleau-Ponty sugere que para pensar a criança e seu desenvolvimento
de forma mais ampla é necessário evitar conceitos previamente estabelecidos que limitem ou a
tornem incompleta, pois, esses pressupostos resultariam em uma distância do adulto à criança.
A diferença epistemológica entre Piaget e Merleau-Ponty se encontra na forma em que cada
autor pensa a capacidade regulatória da criança. Em Piaget isso só é possível através da
inteligência, já em Ponty, a capacidade regulatória é intrínseca ao corpo da criança, sendo uma
inteligência própria do corpo. Essa diferença é o ponto chave que resulta em uma “reviravolta
metodológica” no entendimento do desenvolvimento da infância.
Acerca do conceito de inteligência, Merleau-Ponty (2006) trará diversas reflexões. Para
isso, ele busca distanciar-se das teorias que priorizam a capacidade cognitiva na criança, pois
elas encerram a experiência perceptiva no desenvolvimento da experiência cognitiva. Segundo
o autor, essas teorias acreditam que a criança só é capaz de regular suas pulsões quando começa
a ter uma capacidade de raciocinar, isso seria a inteligência para esses autores. Merleau-Ponty
entende o conceito de inteligência como a capacidade de organizar as experiências. A
capacidade de organização e regulação não é um fenômeno unicamente mental, a regulação é
algo intrínseco à criança através de seu esquema corporal. Com isso, ele identifica a existência
de uma estrutura perceptiva que possibilita a unidade dos fenômenos humanos.
Assim, já vemos esboçada uma contraposição à tradicional noção de
“inteligência sensório-motora”, pois haveria nos bebês, uma capacidade, ainda
que pré-reflexiva, de “decifrar” acontecimentos e pessoas do mundo
compartilhado, experiência de trocas entre bebês e adultos, revelando modos
de intersubjetividade: outra maneira Merleau-pontiana para definir
inteligência. (MACHADO (2010), p. 19)

Em contraponto aos postulados científicos de Piaget, Merleau Ponty propõe que se


estabeleça um olhar positivo ao fenômeno da infância. Para compor esse olhar positivo da
infância o autor dialogará com os Gestaltistas, com as teorias de Henri Wallon, alguns
psicanalistas, filósofos e teóricos da educação, buscando através de pesquisas feitas por esses
uma interpretação mais completa do universo infantil. Cabe a mim trazer as contribuições
acerca da percepção e da corporeidade da criança propostas por Ponty, para isso, me limitarei
a concepção gestaltista do tema e no conceito de “ultras coisas” em Wallon. A essas
perspectivas, Merleau Ponty admite uma proximidade conceitual ao que ele entende como
percepção, mesmo pontuando os limites dessas teorias. Portanto, é através desses estudos que
a noção pontiana de percepção, corpo e conhecimento e o contraponto às limitações
identificadas na epistemologia genética de Piaget poderão ser melhor entendidas.
Diferente de Piaget, Merleau-Ponty concorda com os Gestaltistas quando eles afirmam
que:

A percepção infantil está estruturada desde o início”. (...) “Mas dizer que a
percepção infantil está estruturada desde o início não significa dizer que ela
tem a mesma estrutura da do adulto. Trata-se de uma estrutura sumária com
lacunas, regiões indeterminadas, e não de uma estruturação precisa que tem a
do adulto. À medida que a criança se desenvolve ocorrem transformações,
reorganizações. Mas, já no início, existem conjuntos que merecem o nome de
coisas e constituem um ‘mundo’. (MERLEAU PONTY, 2006, P.186, grifo
meu.)

Nesse sentido, de acordo com Ponty e os teóricos da forma a organização perceptiva,


preliminar às operações lógicas, é capaz de funcionar segundo seus respectivos mecanismos
que se encontram no esquema corporal e não dependem necessariamente de uma estruturação
prévia da inteligência. O autor cita um estudo sobre a percepção realizado por Koffka, onde ele
Explica que a percepção infantil começa com desordem e confusão relativas,
e que destas emergem formas. O caos completo (“Und verbindung”) é
inconcebível; ter consciência do caos é uma impossibilidade. (...) A concepção
do “Und-verbindung”, o pluralismo, a análise, são concepções de adulto. A
experiência infantil é sempre experiência de uma totalidade. Mas é possível
dizer que a percepção vai do mais caótico ao mais estruturado: na criança, há
uma estruturação mais pobre, porém nunca nula. (MERLEAU PONTY, 2006,
p.188)

O que Ponty destaca na teoria da forma é a “evidenciação da ideia de estruturação


perceptiva” (MERLEAU PONTY, 2006, p.189), ou seja, uma ordem que é imanente à
percepção da criança, através da organização espontânea de seu corpo. Portanto, diferente de
Piaget que nega “a esse mundo percebido qualquer estrutura estável, que só poderá ser
introduzida pela inteligência” (MERLEAU PONTY, 2006, p.192), Merleau Ponty constata a
existência de uma regulação perceptiva inerente a cada percepção. A percepção da criança é
completa da forma perceptiva que cabe a ela, não está faltando partes, mas sim, se envolvendo
de partes. Desse modo, a equilibração não é sempre resultado de estruturas mentais, como julga
Piaget, mas também, do equilíbrio das estruturas perceptivas corporais, anteriores ao
desenvolvimento cognitivo e presentes com grande potência na relação da corporeidade infantil
com o mundo.
Complementando com ponto de vista sobre uma percepção infantil, capaz de se auto
regular, independente da função lógica/cognitiva, Luiz Augusto Passos (2019), pesquisador e
educador popular brasileiro, em algumas anotações sobre o debate teórico entre Merleau Ponty
e Piaget, afirma que:
A criança não é uma coisa parcial, incompleta. Ela é já uma unidade que se
expressa na corporeidade que a conforma em diálogo com a cultura e o
ambiente de forma pessoal e singular. Vive o mundo de maneira plena,
mergulhada nele por todos os poros, de maneira visceral, intuitiva,
compreensiva, não analítica, cheia de significados; sem poder contudo
expressá-lo ainda como ‘objeto’ coisa que o mundo nunca o será. (PASSOS,
2019, p.8)

Contudo, segundo Passos, pode-se dizer que Jean Piaget atribui uma superioridade à
complexidade do pensamento lógico-matemático do adulto frente a capacidade da criança de
perceber o mundo. Sendo essa forma de pensar, para Piaget, “a representação mais avançada
civilizatória modelar para qualquer outro ser humano, que se tornará menor e desabilitado, à
falta dele” (PASSOS, 2019, p.6). Passos, pontua que o fato de Piaget atribuir uma superioridade
à capacidade lógica do adulto em relação a falta dessa na criança remete ao debate colonial
entre primitivo e civilizatório. A criança nesse sentido estaria na etapa primitiva onde,
mergulhada em um completo caos, só alcançará o ápice de sua evolução com a detenção da
“sofisticada lógica-matemática civilizatória” e, vale-se dizer, capitalista. Nas palavras de
Passos:
“Há, na epistemologia genética um “sutil” etnocentrismo alimentado por um
evolucionismo linear. (...) A Pedagogia de Piaget, embora oscile entre muitas
direções, ela está prenhe de um adultocentrismo prepotente, que imagina que
conseguimos enxergar com nosso olhos, olhando as crianças de fora e por
cima -, com a concepção irrefreável, de que tudo está homogeneizado.

Entretanto, Passos contrapõe a essa perspectiva limitante do fenômeno da infância


afirmando, a partir de estudos da Antropologia, que:
Nenhuma sociedade considerada primitiva tem da criança essa forma de coisa
voltada para ser brinquedo de adulto. Todas as sociedades reconhecem na
criança, e às vezes de maneira radical, um ser humano que se mostra, mas que
possui já uma identidade que só aos poucos revela e que se desdobra e inova
(PASSOS, 2019, p.9)

Dando continuidade aos instrumentos teóricos que nos permitam aproximarmos da


realidade da infância, abordarei como Ponty traz o conceito de Ultracoisas de Henri Wallon
para pensar o universo infantil. Este conceito, compõe junto com a noção de estrutura
perceptiva dos teóricos da forma, a concepção da maneira na qual a criança percebe e entende
o mundo. Ponty identifica nesse conceito uma concepção profunda e necessária para entender
a diferença do mundo percebido da criança e do adulto.
As ultracoisas, como coloca Ponty, seriam “seres”, os quais, a criança não pode ainda
compreendê-los de forma direta com seu corpo e seus sentidos. “Seres” que estão no horizonte
perceptivo como o céu e a terra “sempre incompletamente determinados pela criança”
(MERLEAU PONTY, 2006, p.238). E também permeiam as relações com a cultura e com as
pessoas como a noção de espaço e tempo objetivos. “As ultracoisas são horizontes da realidade
de que a criança não duvida, mas sobre os quais não pode assumir atitude objetiva ou objetivista.
Essa ideia é estrutural; diz respeito à própria configuração do universo infantil.” (MERLEAU
PONTY, 2006, p.510).
“O pensamento da criança estaria, portanto, aberto para um horizonte duplo e não
preenchido por objetos” (MERLEAU PONTY, 2006, p.510). Esse “Horizonte duplo”, segundo
o autor, contempla as coisas e as ultracoisas. “Coisas” seriam os objetos já decifrados no âmbito
da palavra e “Ultracoisas” aqueles que a criança percebe a existência, porém, não entende o
funcionamento.
Por exemplo, em relação a noção do espaço e tempo tidos pelo pensamento objetivo: se
a criança ainda não formulou esses pensamentos, eles não farão parte de sua experiência.
Portanto, não se pode dizer que na criança “há simples ignorância do [espaço e] do tempo
objetivo, mas outra estrutura de [espaço e] tempo” (MERLEAU PONTY, 2006, p.511).
Supondo “na criança a presença de um tempo e de um espaço pré-objetivos, que não são ainda
dominados e mensurados por seu pensamento, que aderem de algum modo o sujeito que os
vivencia.” (MERLEAU PONTY, 2006, p.237). Desse modo, Merleau Ponty através do estudo
de experiências tidas com algumas crianças, relata que a criança é “incapaz de aceitar que nem
sempre existiu. (...) Ela acredita ter preexistido a seus próprios pais, assim como acredita que a
“casa” ou “o campo” são um absoluto dimensional (o adulto é do tamanho “da casa” etc).”
(MERLEAU PONTY, 2006, p.237, 238).19 Vale a pena ressaltar que, as ultrascoisas não são
realidades somente da infância, elas permeiam a vida adulta também, e isso seria para Ponty
um ponto importante que aproxima o adulto da criança.

19
Sobre a percepção de espaço na infância, encontrei em um poema de Alberto Caeiro algo que se parece com a
descrição feita por Ponty:
“Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...” (PESSOA, 2004, p.24)
“A mentalidade infantil, portanto, é caracterizada pela atemporalidade e pela a-
espacialidade, sendo ambas, aspectos de sua subjetividade”. (MERLEAU PONTY, 2006,
p.238). Já em nós, adultos, pelo fato de representarmos o mundo em palavras, as ultracoisas
presentes em nosso horizonte perceptivo vão se tornando coisas, porém, nunca cessamos as
ultracoisas em nossas vidas. “Mesmo para a consciência adulta, aliás, é impossível conceber
realmente o próprio início, assim como o próprio fim. Daí resulta que o sujeito se sente
coextensivo ao ser” (MERLEAU PONTY, 2006, p.238). Portanto, segundo aponta o autor, a
morte seria para nós uma ultracoisa, pois nós sabemos sobre sua existência, mas não sobre o
seu funcionamento. Desta maneira, pode-se dizer que, na perspectiva pontiniana, a distância
entre o adulto e a criança não é o resultado de um caminho linear, evolutivo, hierárquico, que
vai do pré-lógico ao lógico. O que nos difere é a forma na qual percebemos o mundo, existindo
a predominância das coisas na percepção do adulto e das ultrascoisas na percepção da criança.
Merleau-Ponty afirma, portanto, que não se pode “cristalizar o pensamento infantil,
pondo-o em categorias” (MERLEAU PONTY, 2006, p.504). Piaget ao fazer isso, elimina o que
seriam as ultracoisas do campo perceptivo da criança, assim, nessa perspectiva, a criança só
“realmente” percebe quando se inicia o rascunho da decifração das coisas ou de suas operações
lógicas. Desse modo, Piaget faz da criança um ser: “semelhante demais ao adulto: procura na
criança um modo de raciocínio diferente demais do adulto: não encontrando o mesmo sistema
de pensamento no adulto e na criança, atribui a responsabilidade a uma diferença de
mentalidade” (MERLEAU PONTY, 2006, p.504). Em contraponto a essas afirmações Merleau
Ponty atribui a criança como sendo polimorfa20.

Diferente do adulto: seu pensamento não é nem tético,21 nem categorial, mas
polimorfo. (...) [Ela] não é diferente do adulto em mentalidade. A diferença é
a mesma que existe entre o que ainda está confuso, polimorfo e o que foi
definido pela cultura. Mas essa diferença não é tão grande que o adulto seja
impermeável à criança ou vice-versa. A criança antecipa a condição do adulto.
(MERLEAU PONTY, 2006, p.504,505)

Por fim, Merleau-Ponty concebe ao estudar o fenômeno perceptivo dá criança a partir


de diferentes autores, uma linguagem capaz de acolher o universo infantil, sem reduzir a
capacidade da criança de entender o mundo à sua maneira. Atribuir a criança uma estrutura

20
A “característica de polimorfismo permite à criança a coexistência de possibilidades; a criança não
é nem um ‘outro’ absoluto, nem ‘o mesmo’ que nós.” (MACHADO, 2010, p.19)
21
Termo da filosofia fenomenológica onde tético significa: “que põe ou é posto como tendo certo modo
de realidade; posicional; existencial” (tético in Dicionário infopédia da Língua Portuguesa. Disponível
na Internet: https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/tético)
perceptiva capaz de se autorregular através de sua corporeidade, aberta para um horizonte
perceptivo repleto de ultracoisas, notando um movimento polimorfo em todos os âmbitos da
vida, sejam eles, corporeidade, espaço e tempo, expressão e cultura, proporciona um olhar
positivo à infância e em como a criança percebe o mundo. Será, portanto, a partir de um olhar
que enaltece e valoriza a capacidade do “ser criança” que podemos ir no caminho contrário a
perspectivas adultocentradas na educação estabelecendo

uma relação humana entre adultos e criança, pois a criança não está fechada
num mundo mágico, e o adulto pode compreender, pelas ‘ultracoisas’ que
estão no horizonte de sua experiência, o que é a experiência pré-objetiva da
criança, encontrando em si mesmo o equivalente da situação da criança.
(MERLEAU PONTY, 2006, p.238)

Nesse sentido, o filósofo nega a existência de uma “natureza infantil’, ou de uma


mentalidade infantil. Portanto, isso não significa “adultificar” a infância ou infantilizar o adulto,
mas compreender simplesmente que é o mesmo mundo percebido de formas diferentes. Ao
acolher a criança em sua totalidade, Ponty, se distancia das perspectivas que negativam o
fenômeno da infância, e que a distanciam do adulto pela capacidade cognitiva. Dessa maneira
ele aproxima o olhar do adulto à criança, do educador ao educando, pois possibilita pensar
integralmente as muitas formas de existir da criança. Para isso ser possível é preciso “reintegrar
a criança ao conjunto do meio social e histórico no qual ela vive e diante do qual ela reage”
(MERLEAU PONTY, 1990b, p.221 apude MACHADO, 2010, p. 19).
Outro conceito importante para compor essa transformação do olhar, é o conceito de
corporeidade, um dos elementos que fundamentam o olhar fenomenológico proposto por Ponty
à infância e amplia a compreensão acerca das possibilidades do fenômeno de conhecer. Merleau
Ponty afirma que o corpo da criança é a expressão primeira de sua subjetividade, de seu eu. É
pelo corpo que passam todas as experiências sensórias, motoras e cognitivas. Nóbrega (2005)
diz que “somos seres corporais, corpos em movimento. O movimento tem a capacidade não
apenas de modificar as sensações, mas de reorganizar o organismo como um todo, considerando
ainda a unidade mente-corpo” (NÓBREGA 2005, p.104). Dessa forma, pensar como acontece
o desenvolvimento do conhecimento na criança através do olhar de Merleau Ponty, é levar em
consideração o mundo percebido, experienciado, anterior a capacidade simbólica, pois entende
que a percepção também é uma forma de conhecer o mundo. O autor propõe pensar a cognição
e a percepção como fenômenos da corporeidade, uma não encerra a outra, elas coexistem em
nós.
Segundo Ponty, é através do movimento de nossos corpos, de nossa motricidade, que
percebemos e nos relacionamos com o mundo. No ponto de vista pontiano, a motricidade é
intensão originária, um “eu posso” anterior ao “eu penso”, uma espécie de reflexividade
corpórea que temos antes do pensamento e que é através dela que surge a percepção. O conceito
de motricidade, proposto por Ponty, contribuiu a entender que é através dela, da capacidade de
perceber e agir no mundo, que cada criança produz uma corporeidade específica, uma própria
identidade uma maneira única de expressar-se e regular-se com as condições socioculturais e
biológicas que a cercam. Cada criança percebe e sente o mundo à sua maneira através de sua
ação no mundo com o corpo (motricidade). Portanto vale-se dizer que inicialmente as crianças
(...) não representam o mundo: elas o vivem. A experiência da vida infantil
não se dá de maneira objetiva por não haver como ela distanciar-se. (...) Há na
criança uma unidade anterior à unidade intelectual, unidade vivida, pré-
lógica,que Merleau Ponty define como ‘uma ordem que não é uma ordem
racional mas que também não é o caos’ (1990b, p.229). (MACHADO, 2010,
p.21)

É através de seu corpo próprio que ela aprende o mundo através de suas percepções e
ações, sem precisar inicialmente de uma inteligência lógica para decifrar o mundo e se envolver
com a cultura em que está inserida. Merleau-Ponty nos mostra que a aquisição cultural acontece
de forma pré-verbal e verbal, os gestos e os movimentos que as crianças aprendem através da
imitação, não são racionalizados ou pensados, eles surgem, primeiramente da reflexividade
corpórea. Em vista disso, essas perspectivas acerca do desenvolvimento da criança, de sua
capacidade cognitiva, desenvolvidas por Ponty, contribuem no sentido de pensarmos esse
desenvolvimento acontecendo através da corporeidade (percepção e ação).
Levando em consideração as reflexões acerca do corpo, da percepção e do
conhecimento trazidas neste capítulo “As significações que surgem (o sentido) são, em última
instância, significações vividas e, portanto, marcas corporais que imprimem sentidos aos
processos cognitivos de apreensão do mundo.” (NÓBREGA, 2005, p.108). Portanto, segundo
a autora, o conhecimento que a criança aprende não se distancia de sua realidade corporal, as
coisas coexistem através do corpo e só é possível terem significados lógicos ou simbólicos no
sujeito pelo fato desses conhecimentos estarem relacionados à uma experiência corpórea.
Os estudos sobre corpo, percepção e conhecimento, trazidos até aqui, proporcionam
novas perspectivas para nós educadores e educadoras acerca do universo da infância. Nós
“desaprendemos a conviver com a realidade corpórea. (...) Privilegiamos a razão sem corpo,
mas, no entanto, a percepção, compreendida como um acontecimento da motricidade, pode
resgatar esse saber” (NÓBREGA, 2005, p.107). Desse modo, percebemos que as reverberações
da filosofia de Merleau Ponty acontecem em diversas áreas do conhecimento, principalmente
no que diz respeito ao olhar pedagógico às crianças. O pensamento pontiano sobre uma
fenomenologia da infância, sugere diversos pressupostos acerca do universo infantil, mas que,
em sua época não puderam ser comprovados cientificamente pois
não havia uma comunicação entre as ciências – neurologia, psicanálise,
psicologia, inteligência artificial, entre outras, diferente do que acontece hoje.
Entretanto, sua reflexão permanece válida e atual: ao enfatizar a experiência
vivida, possível pela corporeidade; os estudos iniciais sobre uma nova
abordagem do sistema nervoso, diferentemente da tradição positivista; o
sentido do corpo em movimento, configurando uma percepção que, ao
interpretar a realidade via motricidade, desloca o sujeito como epicentro do
conhecimento, privilegiando a complexidade dos processos corporais
(VARELA et al., 1996)” (NÓBREGA, 2016, P. 104)

Por esse motivo, enxergar a criança a partir do olhar fenomenológico Merleau-pontiano


e da complexidade dos processos corporais identificados pelas ciências cognitivas, “trará
interessantes desdobramentos para o modo de ser e estar do educador frente às crianças. (...)
Essa compreensão prevê uma reviravolta metodológica: a positivação dos fenômenos
infantis.”(MACHADO, 2010, p.24). Positivar, é deixar de buscar o que ali não está, em todos
os âmbitos da vida da criança. (...) Descrever a experiência infantil tal como ela se apresenta é
‘voltar as coisas mesmas’” (MACHADO,2010, p.24). Para isso, Merleau-Ponty, julga
necessário produzirmos uma atitude investigativa de nosso olhar acerca das crianças, buscando
não atrelar à criança juízos de valores, comparações, metas, concepções pré-estruturadas de
sucesso ou fracasso escolar. Dessa forma, o autor da importância ao que ele chama de
“descrição fenomenológica”, feitas pelos adultos: “narrativas do seu olhar relacional acerca das
crianças, grupos e situações.” (MACHADO, 2010, p.104). Teríamos assim, mais uma
ferramenta que possibilitaria a aproximação do adulto à realidade da criança. A descrição
fenomenológica seria, portanto:
A descrição que perscruta todos os âmbitos existenciais e relacionais –
criança-outro, criança-corpo, criança-língua, criança-tempo, criança-espaço,
criança-mundo – procura um retrato o mais completo possível, de como a
criança se apresenta naquele momento de vida. (MACHADO, 2010, p.104)

Por fim, denota-se que as reflexões desenvolvidas por Merleau Ponty no livro
Fenomenologia da Percepção (1945) e nos Cursos da Sorbonne, quando levadas ao âmbito da
educação, resultam em uma amplitude acerca dos conhecimentos sobre o desenvolvimento
humano, o que gera uma aproximação do olhar do adulto à criança, do educador ao educando.
Machado nomeia essa ação investigativa, epistêmica, como uma ação sensível do educador
frente ao educando, levando a um
Tipo de atitude de “agachamento” (de modo a ir para perto do chão, onde a
criança habita: atitude que foi, talvez descartada ou banalizada pelo viés da
técnica e do conhecimento especializado, da Psicologia e da Pedagogia
infantis, e hoje retomada por antropólogos e sociólogos que se dedicam ao
estudo da infância.”(MACHADO, 2010, p.13)

Essa aproximação nos leva a ouvir as crianças e acolhê-las em seus pontos de vista, o
que faz com que nos aproxime da realidade delas, e quem sabe encontremos alternativas
pedagógicas que contribuam no processo de ensino e aprendizagem de cada corpo em
movimento ali presente como estudantes
Por isso, para uma educação emancipatória, que se distancie das prerrogativas impostas
pelo modelo colonial adultocentrado sobre o universo da infância, é importante reconhecer o
corpo como potência individual de cada criança, pois é através de sua corporeidade que ela
expressa sua identidade se relacionando de forma autêntica com as possibilidades dispostas pelo
meio social/cultural. Nesse sentido, para uma educação emancipatória é preciso dar espaço e
acolhimento para a expressão corpórea de cada criança. Porém, quando penso em formas de
proporcionar esse acolhimento à integridade da criança, dentro do âmbito escolar, surgem
vários questionamentos.
4.1 - Caminhos do conhecimento pelo corpo - É Jorge quem abre os caminhos!

Como já dito anteriormente, a escola delimita os espaços para a expressão do corpo,


sendo eles, a educação infantil, aulas de educação física, momentos de pátios, e quando surge
na rotina pedagógica propostas alternativas de aula. No restante da rotina escolar, nota-se uma
padronização dos diferentes corpos, quando postos sobre uma forma comum de aquisição do
conhecimento. Todos os corpos, dos e das estudantes, são submetidos a um padrão de ensino,
os caminhos didáticos por qual a perspectiva vigente de ensino percorre, a partir dos anos
iniciais, se refere a transmissão dos conteúdos do mundo adulto para o mundo infantil, nesse
sentido, as corporeidades das crianças precisam se adequar aos caminhos abstratos dos
conteúdos que são ensinados de forma verbal. A fase da alfabetização letrada e numérica, nos
anos iniciais, quando perspectivada a partir de fundamentos teóricos como os propostos por
Emília Ferreiro (2011), irá considerar a experiência corporal da criança para construir um
sentido mais amplo nesse processo. Portanto, o espaço do corpo com o decorrer dos anos vai se
estreitando, e o da mente conceitual e abstrata se ampliando até ocupar a maior parte do tempo
escolar. Os conteúdos didáticos das diversas disciplinas, se relacionam com conceitos, métodos,
que muitas das vezes, são dispostos aos/às estudantes através de caminhos unicamente
conceituais. Por isso, no desenvolver dessa pesquisa, me deparei com a dificuldade em pensar
o acolhimento à integridade do corpo e da mente da criança dentro dos processos educacionais
vigentes, pois, nesses processos, cada vez mais o corpo e suas potências vão sendo sublimados
perante o mundo representado.
No entanto, foi através das minhas práticas, experienciadas na área da educação
inclusiva, que encontro com alguns caminhos que podem ser colocados para pensar outras
formas de educação, mais próxima do universo corpóreo das/dos estudantes e contribuir com
um encaminhamento positivo dessas questões. Irei trazer alguns apontamentos dessas práticas,
que podem prover formas de estar aproximando a educação dos fenômenos corporais da
criança. Por esse caminho, início parafraseado uma fala lançada, em uma mesa de debate sobre
“Exu como tecnologia de saber”22, pelo Prof. Dr. Babalorisá Sidnei Barreto Nogueira. Ao
responder a pergunta: “Como trazer Exú efetivamente para sala de aula?” Babá Sidnei
desenvolve uma resposta completa para esse questionamento:

Exú já está em sala de aula, já está em tudo, pois justamente, é essa capacidade
existencial, de atravessamentos, que comporta Exú… Gosto muito quando

22 Link de acesso à mesa de debate: Mesa de debate com o tema: "Exu como tecnologia do saber"
Mãe Giselda fala que Exú pode ser o que ele quiser, ele também pode ser um
demônio… Isso que é Exú, ele é atravessado por tudo que existe. Então de
verdade, Exú já está na escola, na presença das crianças… Essa pergunta é
muito oportuna, pois a escola tem lutado para retirar Exú de dentro dela, ela
tenta todo o momento ser esse lugar de controle, de hermetismo, de teorias
únicas, e é nessa hora que Exú pula como se estivesse em uma fogueira, fica
saltitando e dando gritos na manifestação das crianças que se sentem
desconfortáveis com a escola de hoje, pois a escola deixou de ser brincante,
exusísticas, um lugar de acolhimento das tensões e dos conflitos com vistas à
reorganização. Então, eu penso que as tensões que estão ali naquele universo
educacional, são efetivamente, tensões e encruzilhadas de Exú. Portanto Exú
já está lá, é só a gente ver e acolher Exú que está lá e fazer a nossa oferenda,
transformar a escola em um grande Ebó, se oferecer a Exú com liberdade,
brincadeira e coragem, pois precisa de coragem para revitalizar Exú… Para
isso, a gente precisa se livrar do carrego colonial, se a gente quer uma
brincadeira, uma educação que ensine, nós precisamos fazer o exercício da
consciência existencial, porque na verdade, as práticas herméticas tem tirado
Exú de nós, arrancado Exú das escolas, arrancado Exú dos terreiros.. Sabe
quando a professora neopentecostal chama as crianças travessas,
indisciplinadas de Exu? ‘Ai seu Exú’ ela fala pra criança bagunceira. É
verdade professora, eu sou Exú, acertou meu nome. A gente precisa aprender
a trabalhar com essa força subversiva, uma força subversiva que nós
encontramos nas cantigas de terreiro, ele canta, ‘Exú que tem duas cabeças ele
faz a gira com fé, uma é satanás do inferno, a outra é de Jesus de Nazaré’.
Quer mais subversão do que um corpo com cabeça de Jesus e outra Satanás?
Isso é Exu. É isso que precisamos.Então é isso, quando a professora
neopentecostal fala, Ai seu Exú, ela fala uma verdade, ele é Exú mesmo e isso
é elogio. A criança travessa, indisciplinada, que não comporta os padrões é
Exú, Laroyê!. Então é isso que eu quero dizer, sejamos Exú. 23 (NOGUEIRA,
2021)

A partir das palavras de Babá Sidnei, compreendo que as crianças consideradas


indisciplinadas, fora dos padrões hegemônicos, abrem a encruzilhada para outras possibilidades
de se relacionar com o ambiente escolar. Relacionando essas palavras com as minhas práticas
dentro da área da inclusão, consigo identificar claramente o que Sidnei quis trazer ao relacionar
essas crianças como sendo Exú, e por isso, abrem uma encruzilhada em meio ao chão da escola.
As crianças com quem trabalho e já trabalhei, possuem diferentes características e
necessidades, algumas crianças possuem laudos médicos que diagnosticam suas
particularidades biológicas, como as crianças com espectro autista, síndrome de down, altas
habilidades, transtorno do déficit de atenção, hiperatividade, entre outros laudos. Outras
crianças, apresentam algumas demandas educacionais específicas, às vezes relacionadas a uma
área do conhecimento, outras vezes com questões comportamentais, mas não possuem um laudo
específico. Independente de terem ou não um laudo, existe um fator comum que visualizo entre

23
NOGUEIRA, B. S. Mesa de debate com o tema: "Exu como tecnologia do saber". Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=CdXFKutmG2U&ab_channel=Cl%C3%A3doJabuti.
elas: Os caminhos e métodos pelos quais os conteúdos são passados na escola, não são
acessados por essas crianças da mesma forma que a maioria acessa. Dessa forma, para incluí-
las no processo de ensino, é preciso decifrar por quais caminhos pedagógicos essas crianças
melhores aprendem. A partir disso, retomo a proposição de Sidnei, essas crianças, vistas como
Exú, abrem a encruzilhada no meio escolar. Elas esculhambam, a partir de suas presenças, a
lógica vigente de ensino de suas comunidades escolares, demonstrando que, dentro de seus
sistemas corporais, esses métodos dispostos na escola, não conseguem produzir o mesmo
sentido e resultado que em outras crianças. Esse fato, nos leva a retirar qualquer
responsabilidade dessas crianças em se adequarem a um método que não condiz com suas
corporeidades, e, a partir da perspectiva de uma inclusão efetiva, entende-se que, os caminhos
dispostos, de ensino/aprendizagem tradicionais, por não condizer com a realidade delas, a
função dos/das educadores/educadoras seria de encontrar outros caminhos para que esses
conhecimentos possam fazer sentido nos corpos dessas crianças.
A encruzilhada aberta por essas e esses Exús, nos mostram que existem outras milhares
de formas de estar ensinando os mesmos conteúdos. Como professor que atua na área da
inclusão, através das práticas vivenciadas fui ao encontro com a necessidade de dispor caminhos
outros, que se relacionassem com a experiência corpórea dessas crianças para construir um
sentido acerca maior nelas acerca do conteúdo curricular. Dessa forma, no trabalho com as
crianças que possuem necessidade especiais, identifiquei na corporeidade delas, significada a
partir do olhar pontiano, uma ferramenta pedagógica que contribui para pensar e construir os
caminhos metodológicos que possibilitem uma gama maior de sentidos dos conteúdos para o
corpo integrado. Para encontrar os caminhos dispostos nessas crianças de acesso ao
conhecimento escolar, foi necessário me sensibilizar com a realidade perceptiva de cada uma.
As atitudes internas de “agachamento”, positivação dos fenômenos da infância, noção de
conhecimento incorporado, de relacionar os conteúdos com as experiências corpóreas, do
entendimento sobre o horizonte perceptivo atuando com maior presença nas crianças que o
mundo representando, da noção de coisas e ultrascoisas, da noção de uma capacidade
regulatória através do corpo, de um mergulho na própria experiência perceptiva, da consciência
sobre as condições coloniais e sobre as expectativas adultocentradas presente nas escolas,
possibilitaram essa proximidade do meu olhar como professor adulto, para a realidade
fenomênica das crianças de inclusão ou as crianças travessas, ou mesmo, crianças Exú. Por isso,
os trabalhos que desenvolvo com essas crianças sempre vão ao encontro da atitude de pensar,
aquilo que entendo como os “caminhos do conhecimento no corpo”. Ao alterarmos a raiz do
problema do fracasso escolar para o método pedagógico, ao invés de depositá-lo na
incompetência da criança, se produz uma atitude mais responsável de quem educa para estar
pensando maneiras outras do conhecimento “caminhar”, acessar e fazer sentido nas diversas
corporeidades.
Trarei brevemente uma experiência que tive com uma criança Exú, para ilustrar como
precisei pensar outros caminhos de ensino/aprendizagem. Das muitas possibilidades de
experiências tidas com essas crianças, que se encaixam com a linha da pesquisa, irei narrar uma.
A experiência que pretendo trazer, faz parte de umas das propostas alternativas de ensino que a
escola possibilita propor com as crianças que possuem alguma necessidade especial, essa
proposta se chama projeto individual. O projeto individual, intenciona desenvolver com a
criança, geralmente em outro ambiente da escola que não a sala de aula, um projeto que surja a
partir de algo de seu interesse, com a intenção de conhecê-lo e aprofundá-lo, para que se
produza algum conhecimento que possa ser compartilhado com a turma, quem guia o
desenvolvimento do projeto é o professor/tutor ou a professora/tutora.
Essa criança, que vou chamá-la de Jorge24, estudava no 3ºano do Ensino Fundamental,
em uma escola particular, localizada em um bairro nobre da Cidade de Curitiba. Ele não possuía
um laudo específico, porém era fácil de identificar suas dificuldades no âmbito da aprendizagem
e relacional. Jorge não conseguia ficar muito tempo em sala de aula, vivia saindo de sua carteira
para fazer “alforria” com seus colegas, andava pela sala derrubando estojo e incomodando
verbalmente os outros. Quando era proposto a ele fazer qualquer atividade que exigia um
registro escrito ele se recusava com bastante resistência em fazer, algumas vezes jogava as
atividades no lixo e riscava a folha. Notava-se, também, que o mundo imaginário de Jorge se
misturava com a realidade, ele compartilhava suas imaginações narrando cenas mórbidas, de
terror, morte e outras coisas consideradas pesadas para uma criança de 8 anos. Muitas vezes
percebia ele habitando mais o mundo imaginário, através de brincadeiras e expressões
corporais, do que o mundo material no dia a dia escolar. Outra característica facilmente
reconhecível, estava presente em suas expressões corporais, elas eram um tanto desengonçadas,
parecia, a partir do meu olhar, que ele sempre estava com um corpo mole e isento de ritmo, no
entanto, ele sempre estava brincando a partir de suas imaginações com seu corpo.
Dispondo um pouco sobre como Jorge era em seu dia a dia escolar, começo a narrar as
práticas compartilhadas com ele. Na época, ainda não tinha entrado em contato com as

24
Optei por esse nome pois Jorge me remete a São Jorge que na umbanda é sincretizado com o
Orixá Ogum. Esse orixá, tem como uma de suas qualidades aquele que abre os bons caminhos. O
estudante com quem trabalhei, abriu caminhos na escola tanto para ele quanto para seus colegas,
que possibilitaram práticas de ensino integradas.
produções de Ponty e as teorias decoloniais, no entanto, tinha o corpo como horizonte das
minhas práticas pedagógicas por outras referências, como a vivência cotidiana da capoeira, do
terreiro e das aulas de palhaço que estava fazendo no mesmo período, além de me relacionar
diariamente com minha irmã mais nova, que possui a condição genética de síndrome de down,
e que muito me ensinou para pensar os variados caminhos que o conhecimento percorre no
corpo.
Voltando a prática pedagógica com Jorge, nos primeiros contatos, notei que ele não
conseguia permanecer de uma forma saudável no ambiente de sala de aula, e pelo fato dele em
diversos momentos estar inventando brincadeiras com seu imaginário, eu convidava-o para
brincar fora desse espaço. Aos poucos fui vendo que ele demonstrava uma resposta melhor para
as minhas propostas depois que brincávamos juntos, no entanto o registro escrito continuava
sem fazer sentido para ele, inclusive em algumas atividades a escola possibilitou que ele
respondesse de forma oral e eu transcrevia suas respostas. Como percebia que ele respondia
melhor depois das brincadeiras, virou rotineiro esses momentos. Todo dia, escrevia com ele sua
própria rotina, mostrando os momentos em de sala de aula e os momentos que iriam acontecer
essas brincadeiras. Inicialmente as brincadeiras sempre surgiam dele e eu acompanhava suas
propostas adicionando outros elementos. Com o tempo, vendo um resultado positivo em seu
desempenho escolar e relacional, por conta desses momentos de brincadeiras, surge a
possibilidade de iniciar um projeto individual.
Para a construção do projeto foi necessário ouvir seu interesse, ele demonstrou que
gostaria de brincar nesses momentos. Como na época estava fazendo um curso de palhaço, e,
muitos jogos teatrais propostos pelo professor de teatro buscavam trazer um estado de presença
ao corpo antes de começar qualquer prática teatral, pensei em trazer esses jogos, que foram
propostos a ele com o termo brincadeiras teatrais. Muitas das propostas feitas nesses momentos
de projeto são possíveis encontrar no livro “Jogos Teatrais: O diário de Viola Spolin” (SPOLIN,
1975). Dentro das brincadeiras propostas, uma ganhou maior visibilidade no âmbito corpóreo
de Jorge, a brincadeira se chamava “O corpo que narra a história”.
A proposta dessa brincadeira está no nome dela, um corpo se movimenta por um
determinado ambiente gerando gestos e um narrador, ao ver esses gestos, constrói uma história
a partir da narrativa corporal. Isso produziu diversos ganhos, no âmbito do corpo, essa
brincadeira exigiu que ele organizasse certos movimentos para construir um sentido melhor no
olhar de quem estava narrando, no caso, eu. De movimentos aleatórios e desengonçados, ele
começou a fazer movimentos pontuais, determinados e que possibilitasse a construção de um
sentido mais claro sobre a história que ele estava pretendendo narrar com seu corpo. Claro que
existe uma distância entre a história imaginada por ele e aquela observada pelo narrador, mas
era justamente esse o exercício que o convidava a estar mais atento às suas expressões corporais.
Dessa forma ele começou a narrar uma história com seu corpo.
Era a história de Rodrigo25, um menino perdido em meio a floresta. Essa história inicia-
se com ele andando sozinho e triste, até que avista um animal, inicialmente eu não soube dizer
qual era esse animal, como narrador falei diversos nomes, até que ele anunciou verbalmente,
era um porco espinho. Ambos viraram amigos e seguiram suas jornadas pela floresta. Outros
animais foram encontrados pelo caminho, dentre eles, uma onça que quase o matou, mas
fizeram amizade, um macaco que jogou uma banana no chão para escorregar, e um sagui que
foi encontrado ferido. Caminhando por um longo tempo, Rodrigo e seus novos amigos animais
avistaram algumas plantas carnívoras mutantes que começaram a atacá-los, eles se defenderam
e conseguiram ganhar delas. Eles viram que estava escurecendo e precisavam encontrar um
abrigo, acharam uma caverna e dormiram lá. Essa foi a primeira parte da história narrada pelo
seu corpo e interpretada pelas minhas palavras, quando acabou o tempo do projeto nesse
primeiro momento, ele deitou no chão e disse, “Nossa! Fazia tempo que não me divertia tanto,
vamos continuar essa história nos próximos dias de projeto?”. Claramente concordei.
Nos outros dias de projeto continuamos a história, precisou de mais cinco dias até
finalizá-la, enquanto acontecia a brincadeira nesses momentos eu registrava a história a partir
de gravações audiovisuais para não nos esquecermos. Não contarei a história completa aqui,
apenas darei um spoiler de como acaba. Rodrigo e seus amigos descobrem que existe uma mãe
planta-carnívora-mutante que está produzindo esses invasores na floresta, eles a procuram e
encontram, ao fazerem isso a matam junto com seus filhos e filhas plantas carnívoras. Porém,
não se encerra nesse momento, as plantas carnívoras voltam em forma de fantasma para
assombrar Rodrigo e seus amigos. Para lidar com essa situação, eles constroem máquinas caça-
fantasmas com elementos da natureza, e vão à caça, coletam todas as plantas fantasmas e
armazenam em um depósito próprio para elas. Porém, Jorge não gostou da ideia de prendê-las,
para que esses fantasmas não ficassem presos, ele criou um portal para mandá-los em um lugar
mais seguro, pois só assim eles seriam felizes. Rodrigo e seus amigos encontraram formas de
fazer esse portal e ajudar os espíritos das plantas carnívoras a irem para um lugar melhor. Ao
fim dessa jornada, Rodrigo encontra seus pais, e eles resolvem construir uma casa na floresta
para que Rodrigo não se distancie de seus amigos.

25
Nome dado por Jorge para o personagem fictício construído na história.
No dia do projeto em que finalizamos essa jornada, Jorge deita-se em um escorregador
e olha para o céu, lança um suspiro apresentando um profundo relaxamento e fica um bom
momento em silêncio olhando o horizonte, até que ele fala: “nossa pareceu tão real toda essa
história que vivemos com os animais, até pensei que meus pais iriam aparecer de verdade”.
Nota-se o quanto o imaginário em seu esquema corporal, muitas vezes apresentado de forma
“exagerada”, construía um sentido de realidade diferente dos de seus colegas, era tão grande a
força desse imaginário, que chegava a ser confundido com a realidade material.
A partir de uma leitura sensível às necessidades de seu corpo, encontramos, no projeto
individual uma forma de dar vazão a essa demanda de seu imaginário e também de delimitar e
direcionar os momentos que esse imaginário entrava em ação. Muitas vezes, parecia que a
imaginação um controle, ou de Jorge, não tinha até mesmo um filtro sobre as imagens que ele
criava, a imaginação atravessava os limites do imaginário e era traduzida em seu corpo a partir
de movimentos e falas descontextualizados do ambiente em que ele estava. Com a continuidade
de momentos de brincadeiras e das práticas do projeto, percebemos que ele, de certa forma, se
autorregulou, conseguindo compartilhar mais momentos com seus colegas. Portanto o projeto
não finaliza no fim da história, seria necessário pensar uma forma em compartilhar essa vivência
com os colegas, ele sugeriu escrever um livro contando essa brincadeira.
Acatei sua proposta e fomos produzir, adaptamos para que ele, ao invés de escrever a
história no papel, o que exigiria um grande esforço e tempo, tendo em vista a resistência que
ele apresentava para registros escritos, ele poderia escrever no computador, narrar a história
oralmente e eu transcrever a partir de suas palavras e também em alguns momentos utilizar da
ferramenta disposta em computadores e celulares que possibilita captar a fala e transcrevê-la
automaticamente. Levamos alguns meses para finalizar essa produção escrita. Me surpreendi
com a disposição que ele demonstrou para registrar essa história, a escrita dessa história fazia
muito sentido para ele, Jorge não demonstrava resistência ou alguma revolta em ter de escrevê-
la, alguns momentos ficavam cansado e eu alterava com ele a metodologia da escrita.
Ao visualizarmos esse caso, retomo a noção de caminhos do conhecimento no corpo. A
escrita, quando vista a partir das propostas de atividades não era uma possibilidade para essa
criança, porém, quando precisou escrever sobre uma história vivenciada integralmente, cheia
de sentidos e afetos, a escrita não pareceu ter o mesmo peso, dessa forma, entendo que o
conhecimento da escrita quando relacionado com a experiência corporal de uma brincadeira
teatral, encontrou um caminho aberto para percorrer e ser realizado através daquele corpo.
Vale-se dizer que, em diferentes momentos, convidamos seus colegas para estarem
participando dessa história que ele criava e de outras brincadeiras teatrais que eu propus.
Quando terminamos de escrever as experiências, vivenciadas a partir da proposta dessa
brincadeira, ele levou os escritos até sua turma e fez uma contação de história para todos os
colegas, depois dessa contação, Jorge propôs a eles que o ajudassem a ilustrar essa história, pois
possuía a intenção em produzir um livro de forma coletiva com seus colegas de turma. Todos
os colegas se animaram com e, junto com a professora, organizamos os momentos para seus
colegas ilustrarem, o resultado disso está apresentado na figura 1.

Figura 1. Capa do livro desenvolvido com Jorge a partir da prática do Projeto individual. Foto: o Autor

Por fim, lanço uma reflexão, a partir dessa experiência, para pensar caminhos
outros que confortem as dificuldades que encontrei e que muitos de nós educadores e
educadoras encontram, ao pensarmos propostas e alternativas pedagógicas que incluam e
acolham o corpo de forma íntegra a partir das noções de conhecimento lançadas nessa pesquisa,
no cotidiano e na rotina escolar. A reflexão surge no sentido de que, dentro das estruturas
escolares que se apresentam muitas das vezes com uma rigidez para outras propostas, práticas
e perspectivas, as crianças com alguma necessidade especial, ou aquelas que não possuem um
laudo mas apresentam uma recusa em se enquadrar no esquema de ensino disposto a elas, como
bem colocado pelo Professor Sidnei, essas são as Crianças-Exú, que abrem uma encruzilhada a
partir de suas potências corpóreas no meio da escola, reivindicando novas possibilidades de
caminhos por onde os conhecimentos possam percorrer nesses corpos.
Nesse sentido, interpreto que essas crianças, ao disporem com seus corpos, diferentes
encruzilhadas no meio escolar, elas não reivindicam outras propostas de ensino e aprendizagem
somente para elas, de certa forma, elas abrem os caminhos, como Jorge fez, para que outras
crianças também possam participar dessas propostas que atuam a partir de um olhar que positiva
a infância e suas realidades, tendo como exemplo, o alcance do projeto individual. Nota-se que,
o projeto se relacionou com a turma inteira, não só no momento de sua finalização, durante o
processo da construção da história, as crianças o observavam saindo comigo de sala de aula e
questionavam a mim e a ele várias coisas como: o que ele estava fazendo quando saía comigo,
quais os motivos que faziam com que Jorge pudesse sair de sala e eles não, o que diferenciava
Jorge deles, porque Jorge brincava em mais momentos que os seus colegas, entre outras
questões. A turma também se relacionou com essa proposta diretamente, a partir da contação
de história feita por Jorge, a ilustração do livro que todos participaram e também em alguns
momentos, quando convidamos as crianças em pequenos grupos, com a autorização da
professora, para participarem do projeto e visualizarem o que estava sendo desenvolvido.
Para encerrar, seguindo na proposta de Sidnei, essas crianças vistas como Crianças-Exú,
abrem a encruzilhada no meio da escola reivindicando caminhos outros de ensino e
aprendizagem, sendo elas entendidas como manifestação desse Orixá, detêm uma outra
qualidade dele, a de senhor dos caminhos, desta forma, elas também abrem, possibilitam e
ampliam os caminhos para que outras crianças possam ter acesso a processos de ensino e
aprendizagem mais horizontais e sensíveis a cultura infantil. Portanto, junto dessas crianças,
que são visualizadas como diferentes por não se enquadrarem no padrão de ensino, podemos
estar abrindo frestas dentro da cultura escolar adultocêntrica, para práticas que possibilitem
novos caminhos por onde os diferentes saberes/conhecimentos/conteúdos, possam percorrer,
atravessar e construir mais sentidos nos diferentes corpos presentes nas escolas.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Trago algumas considerações possíveis para o pensar e fazer pedaǵogicos pensado


durante a travessia por essa mata acadêmica. Inicialmente, vale dizer que, as questões ligadas
ao corpo e ao conhecimento sempre estiveram incluídas no pensar e fazer das minhas práticas
escolares e não escolares. Acredito que, pelo fato de experienciar cotidianamente práticas que
me convidam a estar mais próximo do próprio corpo, como vivências de terreiro e capoeira, o
corpo sempre foi propulsor de questionamentos, dúvidas e também soluções, de forma que, me
levou a pensar sobre quais segredos nossos corpos podem mostrar sobre nós mesmos.
Nesse sentido, essa pesquisa aponta para algumas possibilidades do corpo em sua
relação com o processo do conhecimento. Como Merleau Ponty nos mostra, o corpo se
relaciona com o mundo de uma forma própria. O corpo, sujeito da percepção, percebe o mundo
de forma anônima, silenciosa, não-verbal. A percepção corpórea, não se encerra quando
adquirimos a capacidade de representar o mundo em palavras, ela permanece aberta, compondo
nossa relação com o mundo. O corpo é quem possibilita essa unidade entre o mundo percebido
e o mundo representado. Dessa forma, entende-se que, nem todos os “segredos do corpo
próprio” podem ser revelados de forma verbal, é preciso fazer, como Ponty assinala, um
mergulho no horizonte perceptivo para melhor conhecê-lo.
Em vista disso, para que as possibilidades do corpo aqui versadas, estejam em harmonia
com o pensar e o fazer educacional, será necessário (re)encantá-lo. Para que isso seja possível,
é preciso praticar o (re)encante no mundo das idéias e no mundo perceptivo a fim de integrá-
los. No mundo das idéias, o encantamento é sugerido através das palavras. Para incluir o corpo
de forma íntegra no processo do conhecimento, é necessário, nos termos de Vandana Shiva
(2018), produzir um reflorestamento da mente, pois, dentro dessa lógica de uma monocultura
da mente, o corpo e suas potências são deslegitimados. Dessa forma, essa pesquisa me permitiu
o (re)encante do corpo e o reflorestamento da mente ao ampliar a noção de conhecimento para
além das possibilidades da mente, incluindo o corpo nesse processo de forma continuada. E
também, ao denunciar os conflitos coloniais responsáveis pelo desmantelo cognitivo das
culturas locais, preservadas através da corpo-oralidade, que engendram até hoje em nossos
corpos e em nossas subjetividades perspectivas dicotômicas que separam o corpo da mente.
No desenvolvimento dessa pesquisa, compreendi que, o (re)encante do corpo só se faz
possível quando pensado em cruzo com perspectivas não hegemônicas e decoloniais, pois, a
desvalorização dos fenômenos corporais está diretamente atrelada à perspectiva colonial, a qual
se constrói a partir de uma ótica racista que nega e desconsidera os saberes praticados em outras
culturas. Portanto, ao desconsiderar o corpo dos processos educacionais, nós reproduzimos essa
lógica colonial e perpetuamos o racismo estrutural dentro de nossa sociedade. Nesse sentido, o
contato com o pensamento decolonial contribui com a elaboração de um sentido ético ao pensar
a prática de incluirmos o corpo no processo educacional.
Através dessas produções, podemos entender que a "descorporificação” dos processos
educacionais, está atrelado à investida da colonização sobre as culturas assentadas nos corpos
negros e indígenas. Dessa forma, ao falarmos sobre o corpo no processo da educação, será
inevitável o encontro com a encruzilhada da colonização. A dimensão ética que o pensamento
decolonial produz no fazer pedagógico, leva nós, educadores e educadoras, a pensar quais
estruturas étnico/raciais, perpetuadas pelas ações do colonialismo estão entrelaçadas com nosso
cotidiano escolar e no dia a dia, sendo uma delas a separação entre o corpo e mente. Portanto,
para pensar o corpo relacionado no processo do conhecimento, foi necessário sair dos limites
da epistemologia ocidental, indo ao encontro das Encruzilhadas de Exu, sabedoria das culturas
afro-diaspórica que permitem pensar a relação entre corpo
mente/conhecimento/cultura/sociedade/natureza, a partir de uma lógica não dual, onde as coisas
se integram e se cruzam gerando algo novo. É a partir dessa perspectiva filosófica em cruzos,
que se pensa o termo corpo-encruzilhada, onde, no mesmo corpo que comporta as ações
coloniais é possível encontrar as potências para subvertê-las. No mesmo corpo que atravessa o
mundo representativo, atravessa o mundo perceptivo. Contudo, é a partir da lógica das culturas
afro-diaspóricas da encruzilhada, que conseguiremos entender de uma forma integrada, a
relação do corpo com o conhecimento.
Em vista disso, é que o (re)encante do corpo, no âmbito das palavras, surge no sentido
de “guiar” nossas práticas e reflexões para além das dicotomias do modelo hegemônico
ocidental/colonial em que estamos inseridos. A partir do entendimento de que em nós adultos
a capacidade representativa já está mais desenvolvida e muitas vezes mais fixada do que nas
crianças, sugerir as palavras como “guias” vem no sentido de entendê-las como propulsora de
realidades outras, onde através delas, é possível apresentar que mesmo nesse mundo objetivante
e enrijecido, nós adultos e crianças temos um corpo que se relaciona continuamente de forma
silenciosa, sensível e perceptiva com o mundo, que coexiste com a mente e a partir da correlação
que criamos.
Ao entender, em palavras, o que está presente na realidade perceptiva corpórea, somos
convidados a mergulhar em nosso horizonte perceptivo. Para além de saber sobre o (re)encante
do corpo, é preciso praticá-lo, isso sugere uma postura de compromisso consigo mesmo.
Segundo as pesquisas compartilhadas aqui, o exercício de “mergulho” no horizonte perceptivo,
proporciona a nós um conhecimento, de ordem não-verbal, que habita nossos corpos, e é nesse
âmbito, perceptivo-corpóreo, que as crianças habitam.
Vimos aqui, que a perspectiva educacional hegemônica, que entende as crianças como
seres incompletos, nega as possibilidades e potências que o corpo delas têm de se regular,
organizar, relacionar e conhecer a vida. Essa lógica, baseia-se em uma dimensão da
colonização, que resulta em uma ótica adultocêntrica. Sob essa perspectiva, as crianças são
seres incompletos até que adquiram o conhecimento lógico-formal, assim, elas são entendidas
como um contínuo vir-a-ser adulto. Portanto, o que encontro nessa pesquisa, a fim de produzir
o (re)encante do corpo nas escolas, é que, para nós educadores e educadoras, é necessário fazer
um movimento contrário, isto é, ao invés de sempre estarmos convidando as crianças a olharem
como nós adultos olhamos, é necessário nos aproximarmos da realidade delas, sem “negativá-
las”. Por isso, para desatar da prática educacional noções adultocentradas, como propõe
Machado, é importante termos a atitude de “agachamento”: buscar nos aproximarmos de sua
realidade corpóreo-perceptiva. Essa capacidade de fazer o “agachamento”, torna-se mais viável
quando também nos conectamos com nossa experiência corpórea, que interpreta o mundo de
forma silenciosa a partir dos sentidos e percepções. Dessa forma, através, desse contato com as
possibilidades do corpo próprio é que conseguimos nos aproximar da realidade e perspectivas
das crianças, pois, como versado no terceiro capítulo, compartilhamos com elas um lugar em
comum, relacionado ao horizonte perceptivo, que nunca se encerra, por onde ambos, adultos e
crianças estão se relacionando com o mundo. Por isso, para uma educação emancipatória, que
se distancie das prerrogativas impostas pelo modelo colonial adultocentrado sobre o universo
da infância, é importante reconhecer o corpo como potência individual de cada criança, pois é
através de sua corporeidade que ela expressa sua identidade se relacionando de forma autêntica
com as possibilidades dispostas pelo meio social/cultural.
Através da experiência pedagógica compartilhada na última seção, consegui trazer de
forma prática, como é possível nos aproximarmos da realidade da criança através do contato
com a corporeidade dela. Como pontuado, Jorge não tinha nenhum laudo que direcionasse meu
olhar para um entendimento da condição dele, suas necessidades pedagógicas foram percebidas
através do meu contato e observação de sua realidade corpórea, daquilo que ele apresentava em
sua integridade no dia a dia da escola. Portanto, através dessa experiência e das bibliografias
consultadas para essa pesquisa, surge uma reflexão sobre como a corporeidade dos e das
estudantes podem nos apresentar um campo fértil, que se expressa de forma verbal e não-verbal,
sobre as necessidades pedagógicas de cada um.
Outra reflexão, que surgiu a partir dessa prática, é a possibilidade de pensar os caminhos
do conhecimento no corpo. Levando em consideração que cada corporeidade dispõe uma forma
única de ser e estar se relacionando com os conhecimentos, podemos notar que em alguns
corpos os caminhos hegemônicos de ensino/aprendizagem fazem sentido, em outros, como no
caso de Jorge, foi preciso encontrar outras possibilidades de caminho, que estava dispostas em
seu corpo, para que os conhecimentos possam fazer sentido. E foi só através da relação e
aproximação com a realidade corpórea e perceptiva de Jorge que pude decifrar esses caminhos.
Por fim, essa questão leva a mais uma ponderação sobre a prática com Jorge, a noção das
Crianças-Exu. As Crianças-Exu são aquelas que abrem a encruza na escola reivindicando outros
caminhos por onde o conhecimento possa passar, dessa forma, são elas que abrem um dos
caminhos possíveis, para estarmos pensando em como proporcionarmos práticas que se
relacionem com a integridade corpórea dos e das estudantes e além de tornarem possível
práticas alternativas para lidar com suas dificuldades no dia-a-dia escolar, elas possibilitam
ampliar essas ações para a turma inteira.
Por fim, faço uma consideração acerca da importância de trazer, de forma mais
aprofundada, os debates acerca da corporeidade e descolonização nos currículos de formação
de professores. Tendo em vista que, o contato que eu tive com as referências bibliogŕaficas
dispostas nesta pesquisa, se deu através da minha própria curiosidade e do contato com as
leituras disponibilizadas através da orientação deste TCC. Durante minha passagem no curso
de Pedagogia não entrei em contato com nenhum debate acerca da fenomenologia e das
contribuições de Merleau Ponty e dos autores e autoras trazidas aqui para a área da educação,
da mesma forma em que não presenciei, na maioria das aulas, o debate trazido pelo pensamento
decolonial, sendo que as duas referências foram as bases da produção desse trabalho. Nesse
sentido, o ponto que trago como reflexão é para pensarmos quais motivos estão relacionados
ao fato de não ser incluído de forma mais ampla o debate acerca dos temas da corporeidade e
da decolonialidade no currículo de formação em Pedagogia, levando em consideração a
relevância desses no pensar e no fazer pedagógico.
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