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PLANEJAMENTO DIDÁTICO: DIFICULDADES APONTADAS POR UMA

PROFESSORA DE LÍNGUA MATERNA

Melissa Raposo Costa (bolsista do PET – Letras)


Orientador:Prof. Dr. Edmilson Luiz Rafael - Universidade Federal de Campina Grande – UFCG

1. Introdução

Notamos, nos últimos anos, uma crescente preocupação dos lingüistas aplicados em produzir
textos de divulgação científica que melhor atendam às necessidades teórico-metodológicas dos
professores no seu ambiente de trabalho, ou seja, nas salas de aula. As pesquisas realizadas nesse
ambiente têm revelado uma certa carência desses professores em relação à atualização acerca dos
conhecimentos teóricos de língua e linguagem e aos conhecimentos didáticos referentes à prática
pedagógica.
Desde então, vem aumentando o número de pesquisas na tentativa de unir a análise lingüística
ao estudo dos aspectos didáticos, como planejamento e avaliação dos conteúdos a serem ensinados.
Dessa forma, a preocupação dos lingüistas aplicados quanto aos problemas observados na sala de aula
está, aos poucos, deixando de ser exclusivamente lingüística e assumindo uma nova postura frente à
importância dos aspectos didáticos, sem, contudo, produzir “receitas” que se destinem a resolver esses
problemas.
Diante dessa nova perspectiva e acreditando ser o planejamento um dos momentos mais
apropriados para se consolidar a relação entre os conhecimentos lingüísticos e didáticos, este trabalho
tem como objetivo observar as dificuldades apontadas por dois professores do Ensino Fundamental, ao
participarem de uma proposta de estudo de planejamento didático. Para tanto, baseamo-nos, entre
outros, em Perrenoud (2002), Reinaldo (2001), Rojo (2001), Kleiman (2001), Bezerra (2001) e Marcuschi
(2002).Vale ressaltar, que este trabalho é parte integrante de uma pesquisa em andamento na qual
discutimos a importância da relação teoria/ prática no planejamento das aulas de língua materna.

2. Metodologia

Participam dessa pesquisa dois professores que atualmente lecionam na Escola Estadual de
Ensino Fundamental e Médio Dom Luiz Gonzaga Fernandez, localizada na cidade de Campina Grande,
Paraíba. Inicialmente, essa pesquisa seria realizada com uma única professora; no entanto, ao
divulgarmos o nosso projeto junto aos docentes de língua materna dessa escola, um outro professor
interessou-se por participar.
Até o momento, aconteceram seis encontros: o primeiro realizado no dia do planejamento da
escola e os demais realizados na Universidade Federal de Campina Grande. O objetivo desses
encontros era discutir alguns aspectos teórico-metodológicos atuais referentes à língua, linguagem e
ensino. Para tanto, foram selecionados alguns textos de divulgação científica escolhidos de acordo com
as necessidades teórico-metodológicas desses professores. Os textos discutidos foram: 1º) Modelização
Didática e Planejamento: Duas Práticas Esquecidas do Professor? (Rojo, 2001), no qual a autora relata
uma experiência vivida com professores participantes de um projeto de formação por ela coordenado, em
que foi constada ser o planejamento de ações didáticas a maior dificuldade apresentada por esses
professores; 2º) Textos: Seleção Variada e Atual (Bezerra, 2001), no qual a autora analisa qual a
tendência dos LDP ao fazer a seleção dos textos destinados às atividades de compreensão e
interpretação; e o 3º) Gêneros Textuais: definição e funcionalidade (Marcuschi, 2002), no qual o autor
conceitua os tipos e gêneros textuais, evidenciando a importância dos últimos para o processo de
comunicação.
Os dados deste trabalho foram obtidos através de dois instrumentos: 1º) um questionário
escrito, respondido pelos professores no segundo encontro, a fim de melhor conhecermos suas
experiências e dificuldades referentes ao ensino; 2º) a gravação em áudio dos encontros anteriormente
descritos. Posteriormente, essas gravações foram transcritas de acordo com as convenções de
transcrição adotadas em Kleiman (2001)1.

2.1. Perfil dos Professores

Como já foi dito anteriormente, participaram deste trabalho uma professora e um professor. Ela
é formada em Letras pela Universidade Federal da Paraíba e leciona há 13 anos; ele é formado em
Letras pela FAFIRE (universidade particular localizada na cidade de Recife) e em pedagogia pela
Universidade Estadual da Paraíba, tendo 10 anos de experiência na prática docente.
Ambos já trabalharam com o Ensino Médio, mas, atualmente, lecionam da 5ª à 8ª série do
Ensino Fundamental. Acreditam que a maior dificuldade dos alunos é com a leitura e afirmam que os
conteúdos estudados durante a graduação não ajudam a resolver todas as dificuldades da sala de aula.
Afirmam ainda, que as atividades realizadas com os alunos são planejadas de acordo com o LD 2.

3. Fundamentação Teórica
3.1. Relação Teoria/Prática, Saberes, Planejamento e Transposição Didática: Aspectos
Essenciais para a Formação da Prática Pedagógica Reflexiva

“A prática pedagógica do professor deixa margem para uma relativa autonomia docente que
será efetuada dependendo da formação teórica e metodológica do professor” (Basso e Mello, 2000, p.
163-164). Essa citação, de certa forma, resume o nosso pensamento acerca dos aspectos necessários à
formação do professor e da inter-relação entre eles. Essa inter-relação se reflete na articulação entre
teoria e prática, articulação esta, de fundamental importância para que os problemas da sala de aula
sejam amenizados.
No entanto, essa articulação não se realiza de forma automática; pelo contrário, ela é bastante
complexa e exige reflexão e mobilização de conhecimentos diversos por parte do professor. Sendo
complexa, ela só terá sentido caso existam objetivos a serem alcançados e, conseqüentemente,
planejamento. Este, torna-se, portanto, um momento bastante propício para que seja feita a relação entre
teoria e prática.
Segundo Reinaldo (2001), o planejamento, entretanto, exige um contínuo movimento de
reflexão e avaliação sobre a prática de sala de aula, e essa avaliação deve ser realizada com base no
desempenho dos alunos e dos professores e na técnica em si. Portanto, é indispensável que os cursos
de licenciatura privilegiem, desde o início, a formação reflexiva do professor, a qual passa,
necessariamente, pelas mãos de um formador reflexivo. Esse contínuo movimento de reflexão e
avaliação gera uma mudança gradual na prática pedagógica e “a insegurança decorrente da opção pelo
‘novo’ ou por práticas não habituais é parte desse processo de reestruturação da própria prática, por isso,
os professores necessitam de tempo para experimentar, testar seus limites e suas possibilidades” (Basso
e Mello, op. cit. p. 175).
No entanto, os professores, em sua grande maioria, não foram formados para refletir sobre a
sua prática, e tornaram-se transmissores de conteúdos dos livros didáticos, comprovando, portanto, que
as instituições universitárias privilegiam, “em primeiro lugar, os saberes de referência, os saberes a
serem ensinados; em segundo lugar, mais tardia e timidamente, saberes pedagógicos e didáticos,
aqueles ‘para ensinar’” (Perrenoud, 2002, p. 71). Mas, além dos saberes acadêmicos, científicos e
técnicos, existem os saberes próprios de cada profissão e os saberes decorrentes das experiências
pessoais, os quais são, também, pouco valorizados pelas instituições universitárias, dificultando, ainda
mais, a relação entre teoria e prática.

1 “...: pausa pequena; (+): pausa longa; /: interrupção ou corte brusco da fala; _ __ _: silabação; [ ]: sobreposição de
vozes; :: : alongamento forte de vogal; MAIÚSCULAS: alteração de voz com efeito de ênfase; (xxx): fala
incompreensível; (...): supressão de trecho da transcrição original; (( )): comentário do analista; trechos em negrito:
ênfase do autor a termos referidos na análise. Foram também utilizados sinais convencionais de pontuação gráfica:
vírgula (,); ponto (.); ponto de interrogação, assim como as convenções ortográficas do português.” (Kleiman, 2001,
p. 2).
2 O livro didático atualmente utilizado por esses professores é Português: linguagens, de Cereja e Magalhães.
Partindo do reconhecimento da existência desses saberes, Chevallard (1991, apud, Perrenoud,
op. cit. p. 74) constrói a cadeia clássica de transposição, demonstrando como se dá o processo de
transposição didática 3, essencial à prática de sala de aula. Essa cadeia está organizada da seguinte
forma: saberes e práticas sociais (saberes eruditos) - currículo formal, objetivo e programas (saberes da
escola) – currículo real (saberes realmente ensinados) – aprendizagens efetivas e duradouras (saberes
realmente aprendidos). Vale salientar que, a cada etapa dessa cadeia podem ocorrer
“descontextualizações, simplificações, desperdícios, esquematizações e mesmo traições, além de
emergências” (Perrenoud, op. cit. p. 73-74). Essas transformações ocorrem pois são essenciais para que
a transposição se realize, ou seja, para que os saberes possam ser ensinados e aprendidos.
Surge, portanto, uma questão referente a esses saberes: como determinamos quais deles
devem ser mobilizados numa determinada situação? De acordo com Perrenoud (op. cit.), não são os
saberes que mobilizam outros saberes, mas sim os esquemas de ação e de pensamentos, formando o
habitus do sujeito. Portanto, a formação reflexiva do professor estaria fundamentada num triângulo
constituído pelos saberes – competências – habitus. Ainda segundo Perrenoud (op. cit. p. 81), o habitus
do sujeito é a “gramática geradora de nossas práticas”, o mediador entre os saberes e as situações
incitadoras da ação; a formação desse habitus deveria ser o objetivo principal dos formadores, pois daria
ao aluno competências suficientes para que ele assumisse todas as responsabilidades de sua profissão.

4. Análise de dados

A partir das transcrições dos seis encontros realizados, escolhemos alguns trechos que foram
submetidos à análise e classificados dentro de quatro categorias, objetivando uma melhor visualização
das dificuldades apresentadas pelos professores. As categorias são as seguintes: 1ª) Interferência da
escola na trabalho docente; 2ª) Transposição dos conhecimentos teóricos mobilizados nos encontros; 3ª)
Utilização de materiais alternativos na sala de aula e 4ª) Dificuldade de se desprender do LD. Seguem
abaixo as especificações dessas quatro categorias seguidas dos respectivos trechos analisados.

4.1. Transposição dos Conhecimentos Teóricos Mobilizados nos Encontros

Observamos, na discussão do 3º texto (Gêneros Textuais: definição e funcionalidade,


Marcuschi, 2002), uma certa preocupação do professor R quanto à transposição dos conhecimentos
teóricos que estavam sendo ali estudados. Ao analisarmos a fala de R, percebemos ser a transposição
desses conhecimentos uma das dificuldades referente ao planejamento apontada pelo professor.
Analisamos abaixo o trecho no qual fica evidente essa dificuldade.

Exemplo 14
(...)
R: você falou, eu comecei a pincelar, né? Na, na... 8ª... sobre esses textos aí, a diferença de
um pra o outro... eu comecei a perguntar, isso é o que? É carta, é o que? ... como é que a gente podia
iniciar uma carta? Se fosse pra namorada, ia ser como? (...) eu já comecei colocando alguma coisa
daqui (...) levando devagarzinho pra fazer a diferenciação, né? (...) ((R comentando o texto do
Marcuschi)) mais na frente, a gente vai ver que... os textos, né? Você tem que levar vários tipos de
texto e mostrar como é a diferenciação de um para o outro... pr’eles ((alunos)) notarem a parte da
linguagem, né? Como é que escreve direitinho, como é a estrutura, né? (...) eu fiquei pensando hoje em
casa, antes de vir pr’aqui, como é que eu vou fazer isso? Eu vou catar os livros de P ((R refere-se
aqui aos livros de divulgação científica com os quais estávamos trabalhando)), recortar as folhas e
trazer (...)

3 Segundo Perrenoud (op. cit. p. 78) “a transposição didática faz passar de um universo do texto, cuja coerência é
lógica e discursiva, a um conjunto de atividades e aprendizagens, cuja integração ao espírito do estudante não é
automática.”
4 Utilizamos nas transcrições as letras P, para nos referirmos à pesquisadora, V, para nos referirmos à professora e

R , para nos referirmos ao professor.


Como vemos no exemplo 1, os saberes acadêmicos sobre gêneros e tipos textuais parecem
estar sendo adquiridos pelo professor R e levados para a sala de aula, fato que comprovamos quando
este diz “eu comecei a pincelar, né? Na, na... 8ª... sobre esses textos aí”, “eu já comecei colocando
alguma coisa daqui (...) levando devagarzinho pra fazer a diferenciação, né?” e “Você tem que levar
vários tipos de texto e mostrar como é a diferenciação de um para o outro...”. Entretanto, a transposição
necessária à prática parece ainda não ser um terreno seguro, pois R. questiona de que forma vai
aprofundar esse conteúdo, como comprovamos no trecho “como é que eu vou fazer isso?”. Percebemos,
a partir desse questionamento, que o professor R demonstra estar desenvolvendo uma atitude de
natureza reflexiva acerca de sua ação pedagógica; porém, a solução por ele encontrada para aprofundar
o conteúdo foi a seguinte: “Eu vou catar os livros de P, recortar as folhas e trazer (...)”, fato que nos
revelou a dificuldade de R relacionada à transposição. Esse exemplo parece nos indicar que os saberes
eruditos, por si só, não garantem o aperfeiçoamento da prática pedagógica.

4.2. Interferência da Escola no Trabalho do Professor

Durante a discussão do 2º texto (Textos: Seleção Variada e Atual, Bezerra, 2001),


comentávamos sobre um dos pontos deste (a supremacia dos LD’s na sala de aula) quando teve início
uma discussão acerca da exigência feita pela escola para que os professores sigam à risca os conteúdos
presentes no LD. Vejamos o trecho em que V descreve de que forma é feita essa exigência:

V: (...) até na caderneta eles colocam o plano pra você colocar na caderneta, pra vê se coincide
com o/ aquilo não é nada mais nada menos do que isso... pra deixar você bem preso ao livro
didático, porque você tem que colocar seu registro de aula e lá atrás tem pra você registrar o conteúdo,
se você for incoerente aí ele vai ver, quem for olhar vai ver se você tá sendo incoerente, registrou
uma coisa e:: tava planejado outra (...)

Nesse trecho, V afirma que são realizadas algumas “inspeções” para verificar se o professor
está seguindo os conteúdos do LD, como podemos comprovar com base nos trechos “aquilo não é nada
mais nada menos do que isso... pra deixar você bem preso ao livro didático” e “se você for incoerente aí
ele vai ver, quem for olhar vai ver se você tá sendo incoerente, registrou uma coisa e:: tava planejado
outra”. Ao analisarmos a fala de V, percebemos que a interferência da escola apresenta-se como sendo
uma dificuldade para a professora. Ao falarmos dessa exigência da escola, o professor R lembrou de
uma experiência por ele vivida, relacionada ao planejamento, que nos foi relatada da seguinte forma:

Exemplo 2
R: ((falando sobre planejamento)) (...) isso eu aprendi há muito tempo, a professora ((professora
da universidade)) da gente dizia sempre, olhe, planejamento só tem início... fim não tem, fim quem
vai dar é você no final do ano (...) eu aprendi assim, eu tentei fazer mas não consegui... a própria
direção ((direção da escola)) (...) dizia, olhe, isso daqui R, tá errado, mas porque tá errado, não
aprendi isso não, não é isso não, mas tem que seguir isso aqui (...)

Nesse exemplo, R. afirma que aprendeu ser o planejamento algo não-fixo e não-determinado,
como comprovamos no trecho “planejamento só tem início... fim não tem, fim quem vai dar é você no final
do ano”. Essa definição, entretanto, não foi aceita em uma das escolas onde R trabalhou, fato confirmado
pela fala “eu tentei fazer mas não consegui... a própria direção ((direção da escola)) (...) dizia, olhe, isso
daqui R, tá errado”. Essa fala nos mostra o quanto a escola interfere no trabalho do professor e o quanto
essa interferência pode desvalorizar o trabalho docente. Um outro aspecto que se evidencia nesse
exemplo é o distanciamento entre teoria e prática, colocando o professor em situações paradoxais, pois a
instituição universitária difunde um saber erudito e legitimado que o professor em formação, na maioria
das vezes, simplesmente assimila, e, ao deparar-se com a prática, percebe que, além do saber teórico,
existem outros tipos de saber, os quais nem sempre estão de acordo com a sua formação acadêmica.
4.3. Utilização de Materiais Alternativos na Sala de Aula
Durante a discussão do 1º texto, (Modelização Didática e Planejamento: Duas Práticas
Esquecidas do Professor? Rojo, 2001), esclarecíamos alguns aspectos teóricos nele presentes, relativos
à influência da teoria da enunciação bakhtiniana nos estudos lingüísticos atuais, quando a professora V
lembrou de uma atividade, sugerida por uma orientadora pedagógica da escola (E), com a qual poderiam
ser trabalhados vários gêneros textuais. Ao analisarmos a fala de V, percebemos que a utilização de
materiais alternativos na sala de aula é uma dificuldade apresentada pela professora. Analisemos o
trecho em que fica clara essa dificuldade:

Exemplo 3
V: E. ((orientadora pedagógica da escola)) deu, assim, uma orientação uma vez pra gente,
só foi uma vez mesmo, muito interessante, pra leitura de recibo de água, recibo de luz, aí a gente
incluiu produto, leite, produto que ele ((aluno)) tem em casa, fazer esse tipo de leitura, né?, e , é
interessante por que é bem próximo da realidade deles (...) aí, no caso, a nossa maior dificuldade, pelo
menos a minha, eu, eu não tento começar um trabalho desse, no início até que eu acho fácil, a
gente fez até um roteiro nessa aula ((o roteiro foi feito numa tarde de planejamento, juntamente com
outros professores)) , expôs e ficou interessante, foi um encontro com outros professores (...) só
que chega um ponto que você pára, não sabe mais o que fazer com aquilo, entendeu?
P: eles ((alunos)) se interessaram?
V: eu não trabalhei com os alunos, eu não tive co/ eu não tive...
P: CORAGEM
((risos))
V: eu não tive coragem de trabalhar com, de levar isso pra sala de aula (...)

Analisando a fala de V, percebemos que uma atividade de leitura com gêneros textuais diversos
foi sugerida, discutida e planejada, mas não foi executada, ou seja, não foi levada à sala de aula, como
podemos comprovar nos trechos “E. ((orientadora pedagógica da escola)) deu, assim, uma orientação
uma vez pra gente, só foi uma vez mesmo, muito interessante, pra leitura de recibo de água, recibo de
luz, aí a gente incluiu produto, leite, produto que ele ((aluno)) tem em casa, fazer esse tipo de leitura,
né?” e “nossa maior dificuldade, pelo menos a minha, eu, eu não tento começar um trabalho desse, no
início até que eu acho fácil, a gente fez até um roteiro nessa aula ((o roteiro foi feito numa tarde de
planejamento, juntamente com outros professores)) , expôs e ficou interessante, foi um encontro com
outros professores”. Tendo sido sugerida, discutida e planejada, o que poderia justificar a não execução
dessa atividade? Ao continuarmos a análise do trecho transcrito, nos deparamos com uma fala de V que,
provavelmente, explica esse questionamento: “eu não tive coragem de trabalhar com, de levar isso pra
sala de aula (...)”. A “falta de coragem” de V pode ser traduzida como desconhecimento acerca dos
saberes teórico-metodológicos que apoiariam uma atividade desenvolvida com materiais alternativos, ou
seja, materiais que não estão presentes no LD.

4.4. Dificuldade de se Desprender do LD

Iniciando a discussão do 2º texto (Textos: Seleção Variada e Atual, Bezerra, 2001),


questionávamos aos professores se eles notam que há nos LD’s variedade de temas e gêneros nos
textos destinados à leitura e compreensão. A resposta da professora V a esse questionamento originou
uma quarta categoria, caracterizada pela dificuldade por ela demonstrada de se desprender do LD.
Analisemos abaixo o trecho no qual fica evidente essa dificuldade.

Exemplo 4
P: ((iniciando a discussão do segundo texto)) vocês que tão diariamente trabalhando com livro
didático, vocês percebem que há essa variedade de temas e gêneros nos livros?
(...)
V: na verdade, a gente, como a gente, é... tá levando em conta só aquela seqüência do livro
didático, você toca no assunto e deixa ele pra trás (...)
P: vocês acham que isso pode ser um problema relacionado ao planejamento?
(+)
V: pode ser, eu acho que é diretamente relacionado ao planejamento, porque se a gente não
planejou trabalhar aquilo ali, você tá bitolado só ao livro, você não tem nem como avançar porque
você nem sabe como vai avançar, não é? Você não tem idéia, você pode até ter um desejo, vago, mas
aí você não planejou e não pensou no assunto, não toca nem TENTA, você nem tenta ampliar
aquilo ali, já parou, passou o exercício, pronto, acabou o objetivo (...)

Notamos, nesse exemplo, a supremacia do LD na sala de aula quando V afirma: “a gente, é... tá
levando em conta só aquela seqüência do livro didático” e “você tá bitolado só ao livro”. Na verdade, a
“acomodação” da professora ao LD reflete, novamente, um desconhecimento teórico e metodológico
necessário ao aprofundamento dos conteúdos, fato que se confirma quando V afirma que “não planejou e
não pensou no assunto, não toca nem TENTA, ampliar aquilo ali” e “você não tem nem como avançar
porque você nem sabe como vai avançar”. Acreditamos que a autonomia do trabalho do professor está
seriamente ameaçada pela ditadura e pelas facilidades do material didático por ele utilizado na sala de
aula, e acreditamos ainda que essa autonomia deve ser recuperada através de um trabalho de
planejamento teoricamente orientado, sem, contudo, descartar por completo o LD.

5. Considerações finais

Gostaríamos de concluir este trabalho com a análise de mais um trecho colhido a partir da
transcrição do último encontro. Esse trecho não foi classificado em nenhuma das categorias
anteriormente descritas, pois acreditamos que ele, de certa forma, resume todas elas e nos evidencia
qual a expectativa dos professores em relação ao trabalho que estamos desenvolvendo: a indicação de
“receitas” que resolvam os problemas da sala de aula:

Exemplo 5
R: P, e quando é que a gente começa a praticar isso aqui? (...) dê o caminho
V: dê o caminho

A expectativa dos professores, como comprovamos nas falas “dê o caminho”, não condiz com
os objetivos da nossa pesquisa, e além disso, não temos “receitas milagrosas” para resolver os
problemas de sala de aula desses professores. A nossa intenção é discutir esses problemas,
conduzindo-nos à troca de experiências e à reflexão acerca de nossas práticas. Não poderíamos dar
“receitas” porque elas simplesmente não existem e, assim como afirma Perrenoud (op.cit. p. 76),
“ninguém é o porta-voz autorizado de todos os profissionais e ninguém pode dizer qual é a prática
pedagógica que serve de referência atualmente.”
Quanto às dificuldades apresentadas por esses professores em relação ao planejamento,
percebemos que elas estão sempre relacionadas a outros aspectos, dentre os quais a mobilização de
saberes, as exigências da escola, a utilização de materiais alternativos e a supremacia do LD. Entretanto,
gostaríamos de frisar que essas são apenas algumas das muitas dificuldades que envolvem o trabalho
na sala de aula e que foram obtidas a partir de dados colhidos neste trabalho, ou seja, em outras
situações, trabalhando com outros professores, as dificuldades podem ser completamente diferentes
daquelas aqui apresentadas. Acreditamos, portanto, ser imprescindível, nesse tipo de pesquisa,
partirmos das necessidades dos sujeitos nela envolvidos; é isso que estamos fazendo: detectando onde
estão os problemas para, a partir deles, tentarmos encontrar alternativas que, de certa forma, tornem
mais produtivo o trabalho com língua portuguesa na sala de aula.

6. Bibliografia
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