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RESENHA

Obediência política em xeque

Ivón Natalia Cuervo

RESENHA: Frédéric Gros. Desobedecer. Tradução: Célia Euvaldo. São Paulo: Ubu
Editora, Coleção Exit, 2018. 224 pp.

Perante as circunstâncias atuais de instabilidade política e econômica na ordem


global, é valido se perguntar: o que mais tem de acontecer para que paremos de
obedecer e geremos mudanças políticas e econômicas?
Frédéric Gros, doutor em filosofia e professor de teoria política no Institut
d’Études Politiques de Paris (SciencesPo), em seu livro intitulado Desobedecer, nos
leva a refletir sobre a desobediência a partir da questão da obediênciana política.
Com o objetivo de responder a duas perguntas: por que obedecemos? e,E como
obedecemos? Gros faz uma distinção entre diferentes “núcleos de sentido da
obediência”: submissão, subordinação, conformismo, consentimento e obrigação.
Para o autor, aA submissão consiste na relação de dominação pela força. É
semelhante à relação entre o amo e o escravo descrita por Hegel, ou seja, aquela que se
fundamenta no medo porque o custo da desobediência pode ser a morte. O subalterno
pode tomar como alternativa obedecer da pior maneira possível, isto é o que Gros
denomina “submissão ascética”. Ou pode atuar de maneira mais radical, rebelando-se,
ação arriscada que requer coragem.
Uma expressão extrema da submissão é a “superobediência”, que consiste em
“fornecer as garantias, antecipar os desejos, obedecer o melhor possível, fazer de sua
obediência uma expressão de gratidão” (p. 59). É a atitude que La Boétie criticou em
seu Discurso da servidão voluntária1, citado por Gros, como um texto que provoca aos
leitores a parar de obedecer ao tirano.
Um exemplo de superobediência é o caso do tenente coronel Adolf Eichmann,
planejador logístico das deportações de judeus aos campos de concentração. Foi
processado em Israel no ano de 1961 e condenado à pena de morte -. E embora ele tenha
se defendido argumentando que ele não era responsável dos pelos resultados de sua

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Étienne de La Boétie. Discurso da servidão voluntária. Tradução: Laymert Garcia dos Santos. São
Paulo: Brasiliense, 1999.

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ação, porque ele “apenas obedecia a ordens”. Segundo Gros, a responsabilidade de


Eichmann estava marcada por obedecer além do que seu cargo demandava e procurar
fazer executar sua tarefa à perfeição. Conduta que Arendt qualificou como a
“banalidade do mal”2, que se traduze em uma “perversão ética”.
Por outro lado, a subordinação é seria uma relação de dominação que vai além
de naturalizar a ordem estabelecida. O sujeito subalterno legitima a autoridade de quem
comanda. Aqui, a jerarquia hierarquia impõe-se sem fazer uso da violência.

Gros relaciona essa esta categoria com o problema da cultura cristã da


obediência como via de salvação, que leva ao crente a conformar-se a uma ordem que se
assume como natural e indiscutível, cuja negação constituiria uma perversão. Em
contraposição, o autor destaca o direito de resistência. A modo ilustrativo, conta o mito
grego de Antígona, uma jovem que confrontou publicamente a seu tio (ele era a
autoridade máxima de Tebas) indo contra a tradição familiar. Ela foi condenada a um
tipo de morte agonizante. Esse relato da transgressão tornou-se popular como um
símbolo de desobediência pública.
O conformismo, por sua vez, mostra várias fases. Uma delas é o mimetismo,
animado pelo instinto de permanecer unido à coletividade. Outra é o conformismo
imediato, ancorado na tradição, na prática dos costumes e dos ritos. E o conformismo
moderno, que estabelece a igualdade por meio das normas. Frente ao conformista
coloca-se o indivíduo transgressor.
O consentimento é apresentado como o “estilo de obediência propriamente
política” (p. 131, cursivas do autor). Consiste na conduta racional de obediência às leis
públicas. Manifestada, por exemplo, no exercício dos direitos de voto e de casamento.
Deste modo, o consentimento é livre, é pontual em sua escolha e coloca o sujeito dentro
de um sistema de dependência. Nesses casos, as mudanças acontecem por via da
desobediência civil, como um movimento que se estrutura para revogar uma lei.
Um problema levantado pelo autor é saber se é legítimo ou não desobedecer na
democracia. Conclui que definir isto é falacioso desde o ponto de vista da democracia
processual, e que é necessário ir além da ideia de regímen político para fazer um
processo crítico. “Essa exigência, que faz desobedecer, é a “democracia crítica” (p.
144).

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Hannah Arendt. Eichmann em Jerusalem: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia
das Letras, 2006.

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A obediência como obrigação política, desde a perspectiva de Aristóteles, tem


teria como premissa que “aquele que comanda, comanda um semelhante” (p. 172). Mas,
hoje em dia, esse princípio tem sido ignorado, e existem servidores públicos que não
estão ao serviço do povo, mas sim de seus próprios interesses. Levadaos pelo egoísmo,
essas pessoas tendem a ser negligentes, corruptas ou atuam de maneira injusta. Por
consequência, legitima-se a desobediência como um compromisso ético consigo
mesmo.
Essa é a ração razão pela qual Gros coloca a dissidência cívica como o reverso
da obediência por obrigação. Trata-se de assumir, de forma individual, uma postura
ética de objeção de consciência. Ele denuncia como na ação em massa, sem consciência,
perde-se o poder crítico. Isto é o que chama de “comunidades de obediência”. Frente a
esse problema social, a resposta será discutir abertamente os temas que causam
desconforto social. Ao estilo Socrático, procurar a verdade como diálogo. Assim, o
apelo à moral coloca-se no plano da consciência individual.
Inspirado nas experiências de desobediência civil que contêém um elemento
ético transcendental (Thoreau, Gandhi, Martin Luther King) o autor conclui que a
decisão de não delegar a outros o agir a favor da justiça social é o ato que configura um
“sujeito indelegável”.
Fundamentando-se na sua análise de vários filósofos, de Sócrates a Foucault,
Gros argumenta que a filosofia aposta que “existe algo como esse si sujeito indelegável,
que é, ao se descobrir insubstituível para pensar, julgar, desobedecer, o que nos dá
acesso ao universal” (p. 216).
Em suma, desobedecer é um ato de liberdade, a liberdade de obedecer a si
próprio. Corresponde ao indivíduo resolver o dilema ético sobre quais são os limites das
suas liberdades e qual é o alcance das suas responsabilidades.
Como foi advertido pelo autor, com este livro ele não se propõe fazer um estudo
histórico da desobediência ou um estudo sociológico das formas de desobediência, nem
um estudo filosófico do ato fundamental de desobedecer. Em lugar disso, aborda “o
problema da desobediência na perspectiva de uma ética do político” (p. 33).
Uma intentoativa por para conectar a teoria com a prática nos levaria a
perguntarmos: quais são as condições sob as quais os atos individuais de desobediência
política (entendidos como dissidência cívica) se conectam para dar forma a
manifestações coletivas, tornando-se desobediência civil?

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Para responder a essa pergunta, talvez não seja suficiente observar alguns
exemplos históricos, porém, estes servem para encontrar regularidades. Entendendo que
cada caso é único em seu contexto. De outro modo, estaríamos procurando obedecer a
fórmulas.

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