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Artigo Anuário Antropológico
Artigo Anuário Antropológico
RESUMO:
ABSTRACT:
Some post-structuralist theories of the subject and sexuality that has tried to shape
national etologies of the former European protectorates in North-Saharan Africa are out
of step with the daily life of recent history and, therefore, invite for their revisions. For
this aim the article seeks to decentralize the interest in the phallo-colonized
masculinities of modern Egypt towards the stories of men as collapsed intimates. We
suggeste that the biopolitics of truth should be changed in favor of a metapolitics of the
subject and sexuality as truths and colapses.
1
O al-mashriq é a região mais a oriente da África Setentrional. O tipo effendi expressaria as qualidades
sensíveis do homem de virilidade ostensiva, e que, sempre que preciso, valer-se-ia de atributos
intelectuais empregados ao trabalho e às artes. No Egito do início do século XX, o effendi ocupava
geralmente as sucursais dos serviços públicos. Já o multaz é o devoto religioso, tipo inspirado nas
várias personalidades do pietismo egípcio (Sobhy, 2011; Abdalla, 2003; Wise, 2013).
mualtāz (o devoto). Vitrinismos masculinos dos quais as mulheres seriam, no máximo,
flexões lexicais: a effendya e a mualtāzyna.
Ora, o Estado matricialmente ocidental e moderno – aquele tentativamente
inaugurado no Egito ao final da primeira metade do século XX – ressoa da alegoria
consensual das vozes, daquele petitio principii (pequeno princípio) arendtiano existente
no ato performativo de fala que propala o acordo mutualístico, convertendo a
metafísica do “absoluto” em carta dos intentos comuns (Santos, 2015). Como elementos
expressivos, figuras como a “perífrase” (a homogenia retórica) e a “paráfrase” (a
emulação das mesmas ideias por via de engendramentos sintagmáticos distintos)
formam, por excelência, algumas das escoras figurativas da experiência dialógica que
inauguraria a política: é na arteirice de limites estilísticos como esses que as operações
lógico-discursivas do poder são acobertadas pelas vozes. Se o auspício da aparição do
Estado se antecipa do decalque performativo de um falar como ato coletivo, não é
estranho que ele também seja perdurante pela replicação de muitos atos de fala.
Rancière (1995) aclarou essa qualidade autorreferida e replicante do conteúdo de
linguagem da política através da noção de “estruturas do desentendimento”:
[...] diz o que quer dizer e quer dizer o que diz [...] isto é, fala e ouve
uma linguagem não alienada, que é expressão adequada de um eu
íntegro. Mas só esse Outro tem o falo; o sujeito, qualquer que seja o
órgão que tenha, é simbolicamente castrado. (Gallop, 2001, p. 279)
[…] O Egito Antigo teria visto o sexo como algo tão definitivo ou de fácil
demarcação como no final do século XX. Mesmo o potente Nilo, com
o seu phallus fertilizador é representado, algumas vezes, como um
deus hermafrodita com seios femininos. (Montserrat, 1962, p. 14,
nossa tradução)
O dispositivo e o disposicional
“Eles nos querem como carneiros. Para eles, nós, coptas, somos ḥalāl, estamos
a um fio da morte. E isso não é pecado para eles!” – Mithāt aponta para a feira popular
de carnes de Zilzāl, onde criações animais são desossadas e repartidas pelos cuteleiros
ruidosos da vizinhança. Em uma aldeia do Baixo Egito, um grupo de atiradores
aparentemente ligados ao Daesh tinha acabado de executar vários cristãos que
voltavam de uma oads, a missa ortodoxa. Aquela era a tisana emocional de sua fala.2
Mithāt chegara em Muᵓaṭam um pouco antes do terremoto, onde foi embebido
por todos os conflitos entre os moradores de Zilzāl, as discussões, as chacinas, as riots
(Tambiah, 1997) de invasões a templos que marcaram uma geração que ainda hoje tenta
ajustar suas formas de conviver. Como um funcionário do governo egípcio, mesmo que
de baixo prestígio institucional, Mithāt tinha tudo para ser o grande effendi de sua
comunidade copta, tão orgulhosa de seu nacionalismo militarista e de sua convicção
pietista que às vezes vinha pela elocução: “estamos mais próximos de nossa fé do que
os muçulmanos da deles!”. Mas ele se reservava a ser apenas o homem de 58 anos
frequente em seu templo, o zelador de amizades e das condutas solidárias. Para evitar
as rusgas convivenciais, a Qadīs Shinūda, igreja de seus principais encontros, foi
construída no centro de um cemitério copta que fica nos arrabaldes de Zilzāl, nos
extremos urbanos de Muᵓaṭam. Foi primeiramente lá, e depois por passeios pela cidade
e na sua própria residência, que o conteúdo de suas histórias foi sendo vagorosamente
compulsado pelo diário particular de nossa amizade.
2
D.A.E.SH é o acrônimo para o grupo al-Dowla al-Islāmiyya fī-il-Iᶜrāq wa-ash-Shām (Estado Islâmico no
Iraque e do Levante). Shām, que também pode ser traduzido como “levante”, é a forma como
Damasco é chamada pelo dialeto sírio. O termo também pode se referir à Síria como um todo.
Homens egípcios são muitos, e às vezes só um
3
[a.e.c.]: árabe egípcio coloquial.
sulcos irregulares na areia imitando as hastes de um crucifixo. Então, colocaram os pênis
à mostra e, diante do seu orgulho, passaram a urinar sobre a imagem.
Os dois momentos machucaram uma confusão em Mithāt, e a confiança que
devotava ao amigo muçulmano se distende e termina por se perder com o fim da estada
de veraneio na aldeia. Passam-se anos, e ele recebe uma ligação no seu trabalho. Era o
amigo de tempos atrás, que percorreu uma quantidade considerável de contatos e
informações de conhecidos até encontrar o número daquele telefone. Ele convidava
Mithāt para o seu casamento, que não só aceitou, como também se prestou a levar o
casal de carro das festividades à casa em que passariam a noite de núpcias. No caminho,
o seu amigo reclama com ciúmes à esposa pela presença de um dos primos dela na festa,
um malquerente a quem tinha como um conviva indesejado naquela noite. O casal
discute e, ali, no interior do carro, ela é espancada. Após socorrê-la e repreender o
amigo com exprobrações que apelavam ao seu respeito à esposa e a um casamento que
acabara de ocorrer, Mithāt avisou que nunca mais voltaria a vê-lo.
Vão-se mais alguns anos, e ele recebe uma segunda ligação: é novamente o
amigo, que lhe traz desculpas e apela por um encontro em uma cafeteria do centro do
Cairo. O amigo envelheceu, tem sinais labutados distribuídos pelas mãos e nas veias
saltadas dos antebraços, além do hábito nervoso do fumo. E é nesse momento, na visão
de um rosto que de alguma forma consumiu-se, depois de tantos desabamentos, que
Mithāt disse ter estranhamente reencontrado o amigo muçulmano em sua confiança.
Mais do que isso, dizia incrédulo e em surdina apenas para si que sempre admirou a
beleza daquele rosto, que era de um homem egípcio comum, daqueles das kafeterias,
que são muitos no seu país, mas que naquele momento parecia único.
O homem que está sentado ao seu lado naquele mesmo corredor de hospital
chora e soluça vigorosamente. Mithāt desconsidera a etiqueta masculina que diz para
não interpelar o choro de outro homem, quando de raro esse é demonstrado em
público, e vai até ele para lhe perguntar o que aconteceu e de que maneira poderia
ajudá-lo. Não, ninguém poderia fazer nada por ele: ele acabava de saber, através de uma
enfermeira, que a instituição da primogenitura tinha lhe dado o desprazer de ter uma
mulher, e não a “benção” de um homem como filho.
A esposa de Mithāt também estava em trabalho de parto numa das salas daquele
hospital. Mas havia um complicador: o médico experiente que deveria assisti-la naquele
momento decidiu não cumprir o plantão noturno. Como muçulmano, preferiu participar
das celebrações religiosas da ᶜYd al-Aḍiḥa (Festa do Sacrifício), na companhia de sua
família. Para substituí-lo, enviou um médico obstetra inexperiente.
Duas coincidências indesejadas se colocaram fortuitamente uma em face da
outra: um trabalho de parto difícil e um médico recém-formado. À sua esposa, depois
de horas de sofrimento, é garantida a vida, o mesmo não ocorreu ao filho; sim, um
homem. A imperícia cirúrgica também lhe fez perder a capacidade de reprodução, fato
que seria atestado por exames feitos tempos depois. A Mithāt é anunciada a vinda ao
mundo de um filho natimorto. Lá fora, há um murmúrio de algo como festa ou
simplesmente trânsito, e Mithāt associa aquilo a uma multidão de muçulmanos que, de
dentro de suas celebrações da Festa do Sacrifício, saúdam a morte de uma criança copta.
Após a criança ser envolta pelas mortalhas hospitalares, Mithāt pede o corpo
dela para si, que o acomoda no banco dianteiro de seu carro, ao seu lado, a uma altura
em que é permitido vê-lo. Agora é ele quem chora o filho que não virá. Pai e filho partem
para a Qadīs Shinūda, em Muqaṭam. Lá, Mithāt dobra os joelhos nas escadas do altar do
templo e deposita o natimorto estendido diante de si, de quem oferta o corpo, seu
destino e sua servidão devotada a Allāh. Por serem gravuras típicas nos frontispícios de
madeira dos altares coptas, nesse momento, enquanto reproduzia as récitas oratórias,
Mithāt talvez enxergasse diante de si as cenas de um Cristo vivendo os estupores do
Gólgota. “Seus filhos seriam todos os filhos de sua Igreja” – Mithāt assumiria para si,
tempos depois. Todo homem, um natimorto.
Os Desabamentos
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Zourabichvili