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III Simpósio Internacional de Música na Amazônia

03 a 07 de novembro de 2014
Universidade Federal do Amazonas

Anais do 3º Simpósio
Internacional de Música
na Amazônia

ISBN 978-85-7401-772-3
EDUA - UFAM
III Simpósio Internacional de Música na Amazônia
03 a 07 de novembro de 2014
Universidade Federal do Amazonas

Anais do 3º Simpósio Internacional de


Música na Amazônia
Programação
Comunicações
Palestrantes convidados
Obras Artísticas

Núcleo Amazônico de Pesquisa em Música - NAP/UFAC


Grupo de Estudos e Pesquisa em Música na Amazônia – GEPMUSA/UFAM

Manaus – Amazonas
2014
Governo Federal
Ministério da Educação
Universidade Federal do Amazonas

Presidente Coordenadores do Simpósio


Dilma Roussef Profa. MSc. Lucyanne de Melo Afonso -UFAM
Ministro da Educação Prof. MSc. João Gustavo Kienen -UFAM
Henrique Paim Prof. Dr. Damián Keller – NAP -UFAC
Reitora NAP – Núcleo de Pesquisa em Música - UFAC
Profa. Dra. Márcia Perales Mendes Silva Prof. Dr. Damian Keller
Vice-Reitor Grupo de Estudos e Pesquisa em Música
Prof. Dr. Hedinaldo Narciso Lima na Amazônia – GEPMUSA-UFAM
Pró-Reitor de Extensão e Interiorização Profa. Dra. Rosemara Staub de Barros
Prof. Dr. Luiz Frederico Mendes dos Reis Arruda Coordenação Editorial
Pró-Reitora de Inovação Tecnológica Damian Keller
Profa. Dra. Socorro Chaves João Gustavo Kienen
Diretora do Instituto de Ciências Humanas e Letras Lucyanne de Melo Afonso
Profa. Dra. Simone Baçal Maíra Scarpellini
Chefe do Departamento de Artes Estruturação e Adaptação
Profa. Dra. Denize Piccolotto Carvalho Levy Fernando Alves Matos
Coordenadores do Curso de Música Identidade Visual SIMA 2014
Prof. MSc. João Gustavo Kienen – Matutino Fernando Alves Matos
Prof. Dr. Jackson Colares – Noturno

Publicação:
Anais do 3º Simpósio Internacional de Música na Amazônia.
ISBN 978-85-7401-772-3
Editora da Universidade Federal do Amazonas, EDUA, 2014.
Sumário

Apresentação……………………………………………………05
SIMA e o impacto da pequisa musical amazônica…………...…06
Expediente……………………………………………...……….09
Programação…………………………………………………….14
Homenagem - Professor Emérito da UFAM: Nivaldo Santiago..15
Palestrantes convidados………………………………………...19
Comuincação Oral………………………………………………28
Obras Artísticas………………………………………………..427
Textos/Resumos das palestras…………………………………438
APRESENTAÇÃO

É com satisfação que o Curso de Música e o Grupo de Estudos e Pesquisa em


Música na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas promoveram a terceira
edição do Simpósio Internacional de Música na Amazônia – SIMA. O Simpósio é uma
idealização do Núcleo Amazônico de Pesquisa em Música-UFAC que realizou as duas
primeiras edições na Universidade Federal do Acre.
O SIMA foi organizado com palestras, mesa redonda, cursos, comunicações
orais e apresentações musicais. Os palestrantes convidados são professores de
Universidades Federais do Brasil e a convidada internacional da Venezuela.
O Simpósio teve patrocínio de algumas instituições como Capes, a principal
patrocinadora, UFRN, Protec-UFAM, Observatório da Economia Criativa-Amazonas,
Proext-UFAM, Programa PRODECA-UFAM, Secretaria de Estado de Cultura,
Associação Brasileira de Etnomusicologia-ABET, Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social-UFAM, Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na
Amazônia-UFAM, Universidade do Estado do Amazonas, Instituto Nacional de
Pesquisa Brasil Plural-INCT, Parque Científico e Tecnológico para Inclusão Social-
PCTIS, Centro de Artes da Universidade Federal do Amazonas, Addassu Design.
O evento foi um meio de investigar e resolver algumas questões sobre a música
na região amazônica, do ensino à pesquisa, tudo em função de um ensino melhor.
O Simpósio trouxe novas formas de pensar sobre a música na região
amazônica, tanto em questões de pesquisa quanto de ensino e formação. Além de
estabelecer relações nacionais e internacionais com outras instituições de ensino
superior da região amazônica, possibilitando o desenvolvimento de pesquisas, de ensino
e extensão e as parceirias entre as universidades.

Coordenação UFAM!!

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O SIMA e o Impacto da Pesquisa Musical Amazônica

Damián Keller, Maíra Scarpellini


Núcleo Amazônico de Pesquisa Musical - NAP
Universidade Federal do Acre
Novembro 2014

dkeller@ccrma.stanford.edu, maira.scarpellini@gmail.com

Ao finalizar o segundo Simpósio Internacional de Música na Amazônia


comentávamos que ainda não tínhamos a dimensão real do impacto do evento. A
situação mudou. O terceiro Simpósio Internacional de Música na Amazônia (SIMA
2014), organizado pelo Departamento de Artes da UFAM em parceria com o NAP se
perfila como um dos principais encontros acadêmicos da área de música no Brasil. Por
que afirmamos isso?
Primeiro, no comitê de programa participam pesquisadores da maioria das
instituições públicas de ensino superior da região Norte, incluindo colegas de Acre,
Amazonas, Pará, Rondônia e Roraima (e no próximo evento esperamos contar com a
participação de pesquisadores do Amapá). Isso inclui institutos técnicos e universidades
federais. Nesta edição também participam pesquisadores de Colômbia, Equador, Peru,
Venezuela, Uruguai, Irlanda e Estados Unidos.
Segundo, neste ano temos a participação de pesquisadores de todas as regiões
do Brasil. Gostaríamos de agradecer os pareceres detalhados e as críticas construtivas
fornecidas pelo comitê de programa durante o processo de revisão dos trabalhos escritos
e das propostas artísticas. Esperamos que a revisão dos trabalhos tenha ajudado a
aperfeiçoar as propostas. Foram setenta e dois submissões abrangendo múltiplas
subáreas de conhecimento musical, tendo como resultado 47 aprovações (71% de
trabalhos aprovados). Na programação do evento constam os detalhes sobre os trabalhos
artísticos. Aqui incluímos todos os textos aprovados pelo comitê, incluindo trabalhos em
espanhol e em português.
Terceiro, neste simpósio estão representadas pelo menos cinco subáreas da
pesquisa musical: educação musical; musicologia (subdividida em trabalhos de
musicologia histórica com temas relacionados a assuntos anteriores ao século XX, e de
musicologia do século XX, enfatizando o estudo da produção brasileira);
etnomusicologia (com ênfase na produção cultural da região Norte); performance
musical (abrangendo também aspectos da gestão da produção artística e aplicações
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educacionais da prática interpretativa); e por último a subárea de práticas criativas (com
destaque para a aplicação de recursos tecnológicos no fazer musical).
Os anais do II SIMA incluíram trabalhos em educação musical, discussões
sobre a pesquisa em performance musical e as suas relações com outras áreas de
investigação, discussões sobre aspectos históricos e musicológicos da música produzida
em Manaus entre os anos 1920 a 1980, e propostas metodológicas para implementação
de suporte e aplicações artísticas dentro do campo de pesquisa em música ubíqua
(Keller e Scarpellini 2013). Parte dessas propostas estão novamente representadas nos
artigos publicados nesta edição, apresentando avanços e contribuições a partir das ideias
discutidas durante o segundo simpósio. As temáticas abordadas na área de educação
musical incluem aspectos regionais (Duarte 2014; Silva 2014; Soares 2014) e assuntos
de abrangência geral (Caregnato 2014; Melo et al. 2014; Vieira 2014). A produção
musicológica pode ser classificada em assuntos vinculados à música brasileira do último
século (Abreu 2014; Amstrong et al. 2014; Barbosa 2014; Benetti 2014; Froz e Afonso
2014; Hartmann 2014; Henderson Filho 2014; Kienen 2014; Kubala e Souza 2014; ;
Oliveira, J. 2014; Ramos e Moraes 2014; Santos e Hank 2014) ou à produção musical
anterior ao século XX (Almeida 2014; Duarte 2014; Lima e Páscoa 2014). A subárea de
etnomusicologia inclui trabalhos em música indígena e em música popular amazônica
(Apontes 2014; Chada 2014; Severiano 2014; Puget 2014) e abrange tanbém a música
regional do Nordeste (Queiroz e Correa 2014a; Queiroz e Correa 2014b). A subárea de
práticas criativas apresenta discussões metodológicas (Packer 2914; Pochat 2014), uma
revisão histórica da produção eletroacústica brasileira (Guerra 2014) e dois trabalhos em
música ubíqua (Ferreira da Silva et al. 2014; Keller et al. 2014). Já os trabalhos
agrupados na categoria de performance musical abrangem aspectos da prática
interpretativa, porém o seu embasamento foge um pouco do foco proposto pela
produção vinculada à Associação Brasileira de Performance Musical. Temos aspectos
técnicos e educacionais da prática interpretativa em cordas friccionadas (DeFreitas et al.
2014; Silva e Queiroz 2014), aspectos interpretativos do uso atual do canto gregoriano
(Gaby 2014) e considerações sobre a gestão das orquestras sinfônicas (Diniz Silva
2014).
Resumindo, a produção teórico-prática apresentada durante o terceiro SIMA
abrange um leque de questões que inclui as problemáticas específicas da região
amazônica e que vai além das temáticas regionais. Mais uma vez, estamos falando em
pesquisa musical feita na Amazônia e para a Amazônia com um leque de aplicações nos

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aspectos musicais, artísticos, sociais e interdisciplinares relevantes para a produção
científica e artística internacional. A riqueza cultural e biológica desta região oferece um
potencial pouco explorado nos trabalhos de cunho acadêmico produzidos nos centros de
pesquisa do hemisfério Norte. Esperamos que a troca incentivada pelo SIMA sirva para
despertar a consciência sobre o impacto que a destruição total do ecossistema
Amazônico terá no patrimônio cultural e biológico da humanidade.

Agradecimentos
O terceiro SIMA só foi possível pelo esforço conjunto dos professores que participaram
na comissão organizadora (Lucyanne de Melo Afonso, João Gustavo Kienen, Damián
Keller, Maíra Scarpellini e Raildo Brito Barbosa), pela ajuda da equipe técnica
incluindo alunos da Universidade Federal do Amazonas e da Universidade do Estado do
Amazonas, pela colaboração dos pareceristas nacionais e internacionais, e pelo apoio
das seguintes instituições: CAPES, Universidade Federal do Amazonas, Universidade
Federal do Acre, Universidade do Estado do Amazonas, Associação Brasileira de
Etnomusicologia, PROTEC – Pró-Reitoria de Inovação Tecnológica, OBEC/AM –
Observatório da Economia Criativa – Amazonas, PCTIS – Parque Científico e
Tecnológico para Inclusão Social, Instituto Nacional de Pesquisa BRASIL PLURAL,
Escola de Música da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Programa "ouvindo
conselhos na área da criança e adolescente" – PRODECA – UFAM, Universidade do
Estado do Amazonas – UEA, Secretaria de Estado de Cultura.

Referências
Keller, D. & Scarpellini, M. A., (eds.). (2013). Anais do II Simpósio Internacional de
Música na Amazônia (SIMA 2013). Rio Branco, AC: EDUFAC.

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EXPEDIENTE

COMISSÃO ORGANIZADORA
Departamento de Artes, UFAM
Núcleo Amazônico de Pesquisa Musical – NAP (UFAC/IFAC)

COORDENAÇÃO GERAL
Prof. Dr. Damián Keller – UFAC
Prof. MSc. João Gustavo Kienen – UFAM
Profa. MSc. Lucyanne de Melo Afonso – UFAM

COORDENAÇÃO DO COMITÊ CIENTÍFICO


Prof. Dr. Damián Keller - UFAC
Profa. MSc. Maíra Scarpellini - UFAC

COORDENAÇÃO DO COMITÊ ARTÍSTICO


Prof. MSc. João Gustavo Kienen – UFAM
Prof. MSc. Raildo Brito – UFAC
Prof. MSc. Vadim Ivanov - UEA

COMISSÂO LOCAL
Prof. MSc.. Bernardo Mesquita – UEA
Prof. Bruno Nascimento – UFAM
Profa. Edna Soares – UFAM
Prof. Damyan Parushev – UFAM
Profa. Dra. Deise Lucy – UFAM
Profa. Dra. Denize Piccolotto Levy - UFAM
Prof. MSc. Elias Farias – UFAM
Prof. Dr. Jackson Colares – UFAM
Prof. MSC. Márcio Lima de Aguiar – UFAM
Prof. MSc. Renato Antonio Brandão Medeiros Pinto – UFAM
Prof. Dra. Rosemara Staub de Barros – UFAM
Prof. MSc. Vadim Ivanov- UEA

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COMISSÃO DE DESIGN E DIVULGAÇÃO
Profa. MSc. Lilia Valessa Mendonça - UFAM
Fernanda Gabriela de Souza Pires - UFAM
Fernando Alves Matos – UFAM
Prof. Naziano Pantoja Filizola Júnior – ARII (Assessoria de Relações Internacionais e
Interinstitucionais-UFAM)
Jornalista Márcia Grana – ASCOM (Assessoria de Comunicação-UFAM)
Jessica Botelho - Discente de Jornalismo - UFAM
CPD – Centro de Processamento de Dados - UFAM

GRUPOS DE PESQUISA
Núcleo Amazônico de Pesquisa Musical - UFAC
Coordenação: Prof. Dr. Damián Keller
Grupo de Pesquisa em Música na Amazônia – UFAM
Coordenação: Profa. Dra. Rosemara Staub de Barros

PROGRAMAS
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – PPGAS – UFAM
Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia – PPGSCA – UFAM

INSTITUIÇÕES PATROCINADORAS DO III SIMA - 2014


CAPES
PROTEC – Pró-Reitoria de Inovação Tecnológica
OBEC/AM – Observatório da Economia Criativa – Amazonas
PCTIS – Parque Científico e Tecnológico para Inclusão Social
Instituto Nacional de Pesquisa BRASIL PLURAL
Escola de Música da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Programa "ouvindo conselhos na área da criança e adolescente" – PRODECA – UFAM

INSTITUIÇÕES PARCEIRAS DO III SIMA - 2014


Universidade do Estado do Amazonas – UEA
Secretaria de Estado de Cultura
Associação Brasileira de Etnomusicologia – ABET

EQUIPE DE TRABALHO
Discentes do Curso de Música da UFAM
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André Vital
Camila Barbosa
Danielle Moura
David Aragão
Erica Oliveira
Evelyn Ferreira
Hevellen Rodrigues
Hully Rios
Jeorgio Santos
Lucas Pereira
Lucas Mesquita
Marlúcia Dias
Moira Nunes
Nancy Soares
Rebeca Caroline
Rubem Levi
Selton Riateque
Suzana Vieira
Taísa Almeida
Vanessa Rocha
Discente do Curso de Artes Visuais da UFAM
Mariene Mendonça
Suzane Teodósio

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COMITÊ DE PROGRAMA SIMA 2014

Adina Izarra (Universidad Simón Bolívar, Venezuela)


Aldebaro Barreto da Rocha Klautau Júnior (Universidade Federal do Pará)
Ana Elisa Bonifácio (Universidade Federal do Acre)
Anselmo Guerra de Almeida (Universidade Federal de Goiás)
Bernardo Mesquita (Universidade Estadual do Amazonas)
Catalina Peralta (Universidad de los Andes)
Cesar Augusto Viana Melo (Universidade Federal do Amazonas)
Cleber da Silveira Campos (Universidade Federal do Rio Grande do Norte)
Cleuton Batista (Universidade Federal do Acre)
Damián Keller (Universidade Federal do Acre)
Deise Lucy Montardo (Universidade Federal do Amazonas)
Ernesto Donas Goldstein (Universidad de la República, Uruguay)
Ezequias Oliveira Lira (Universidade Federal do Rio Grande do Norte)
Flávio Miranda de Farias (Instituto Federal do Acre)
Jackson Colares (Universidade Federal do Amazonas)
João Gustavo Kienen (Universidade Federal do Amazonas)
José Ignácio Lopes (Pontífícia Universidad Católica del Perú)
Juan Carlos Arango (Indiana University)
Lucas José Bretas dos Santos (Universidade Federal de Minas Gerais)
Lucyanne de Melo Afonso (Universidade Federal do Amazonas)
Luiz Matos (Universidade Federal do Acre)
Maíra Andriani Scarpellini (Universidade Federal do Acre)
Marcelo Brum (Universidade Federal do Acre)
Marcelo S. Pimenta (Universidade Federal do Rio Grande do Sul )
Radamir Souza (Instituto Federal do Acre)
Raildo Brito Barbosa (Universidade Federal do Acre)
Raimundo da Silva Barreto (Universidade Federal do Amazonas)
Rosemara Staub de Barros (Universidade Federal do Amazonas)
Rubens Vaz Cavalcante (Universidade Federal de Rondônia)
Rucker Bezerra de Queiroz (Universidade Federal do Rio Grande do Norte)
Talisman Cláudio de Queiroz Teixeira Junior (Instituto Federal do Pará)
Vadim Ivanov (Universidade Estadual do Amazonas)
Valéria Cristina Marques (Universidade Federal do Pará)
Valério Fiel da Costa (Universidade Federal da Paraíba)

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS - UFAM
Departamento de Artes – Curso de Música
Av. General Rodrigo Otávio Jordão Ramos, 3000, Setor Norte, Coroado I, Manaus, AM

Reitora:
Profa. Dra. Márcia Perales Mendes Silva

Vice-Reitor:
Prof. Dr. Hedinaldo Narciso Lima

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS - UEA


Escola Superior de Artes e Turismo
Av. Leonardo Malcher, nº1728, Centro, Manaus, AM

Reitor:
Prof. Dr. Cleinaldo de Almeida Costa

Vice-Reitor:
Prof. Dr. Mario Augusto Bessa

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ACRE


Curso Superior de Música
Campus Universitário, BR 364, Km. 4, Distrito Industrial. Rio Branco, Acre

Reitor:
Prof. Dr. Minoru Martins Kinpara

Vice-Reitora:
Profª. Drª. Margarida de Aquino Cunha

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PROGRAMAÇÃO GERAL DO III SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE MÚSICA
NA AMAZÔNIA

Segunda-Feira Terça-Feira - UEA Quarta-Feira - UFAM Quinta-Feira - UEA Sexta-Feira - UFAM


Horário 03.11 04.11 05.11 06.11 07.11
MESA REDONDA
8:00 DESAFIOS DA
PESQUISA EM
ETNOMUSICOLOGIA PALESTRA
NA AMAZÔNIA UTILIZACIÓN DEL CANTO DE
9:00
CURSOS/masterclass COMUNICAÇÕES Profa. Dra. Liliam PÁJAROS EM LA MUSICA
Comitê Científico Barros Cohen (UFPA) ELETROACÚSTICA
Credenciamento Profa. Dra. Deise Lucy
(segunda-feira Montardo (UFAM) Profa. Dra. Adina Izarra
PELA MANHÃ, Prof. Dr. Bernardo (Universidad Simón Bolivar –
Local: Mesquita (UEA) Venezuela)
Departamento de
Artes- ICHL (Apoio – ABET, INCT (Apoio PROTEC/OBEC-UFAM)
Sala 04 Brasil Plural e
Horário: 8h às PPGAS/UFAM)
13h
12:30 Almoço Almoço Almoço
MESA REDONDA PALESTRA
MÚSICA E (DES)
PALESTRA CÉREBRO: PROBLEMATIZANDO
14:00 ECONOMIA DESAFIOS E A LEITURA
CRIATIVA E MÚSICA CONTRIBUIÇÕES DA MUSICAL:
Nerine Lúcia Alves de TEMÁTICA PARA O CONTRIBUIÇÕES DA
Carvalho ENSINO SUPERIOR PSICOLINGUISTICA
PROTEC/OBEC - Profa. Dra. Luciane Profa Dra Valéria
UFAM da Costa Cuervo Cristina Marques
Prof. Dr. Felipe Kirst (UFPA)
Adami (Apoio PROGRAMA
Dra. Anelise Sonza PRODECA-UFAM)
(UFRGS)

(Apoio Capes)
MESA REDONDA
ORQUESTRA,
CORAL,
PALESTRA CONFERÊNCIA COMUNIDADE E ENCERRAMENTO!!!!!!!
MÚSICA UBIQUA MAGNA INSTITUIÇÃO
Prof. Dr. Damian Hall do ICHL - UFAM
16:00 Keller Prof. Dr. Rucker
(UFAC) Robério Braga Bezerra de Queiroz
Grupo de Música (UFRN)
Ubiqua Secretário de Estado Prof. MSc. Eduardo
de Cultura de Oliveira Nóbrega
(Apoio Capes) (UFPB)
(Apoio Capes e
UFRN)

ABERTURA
TEATRO APRESENTAÇÕES APRESENTAÇÕES APRESENTAÇÕES
19:30 AMAZONAS ARTÍSTICAS ARTÍSTICAS ARTÍSTICAS
SESSÃO Comitê Artístico Comitê Artístico Comitê Artístico
20:00 SOLENE

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HOMENAGEM AO PROFESSOR EMÉRITO DA UNIVERSIDADE
FEDERAL DO AMAZONAS
NIVALDO SANTIGO

Texto Prof. Dr Jackson Colares

“NIVALDO SANTIAGO: SUA ARTE - SUA VIDA.”

Escrever sobre o maestro Nivaldo Santiago é como escrever sobre a própria


história da música no Amazonas e das artes na Universidade Federal do Amazonas.
Esse amazonense de Boca do Acre nascido à 85 anos, ainda hoje é ativo no seu processo
de criação e de realização musical e não pensa em parar. Na verdade o maestro mantém
uma intensa rotina de aulas e composições musicais e ainda desenvolve um projeto
chamado “Crescendo com música”, voltado para as crianças e adolescentes de Bom
Despacho, localizado na região do Alto São Francisco no Estado de Minas Gerais. Ele
mesmo afirma, “A Arte não para. A arte é vida e mantém o artista dentro da eternidade.”
Nesse sentido, escrever sobre o Maestro fazendo uma Homenagem não é pra ser algo
difícil nem mesmo uma excepcionalidade, é na verdade, escrever sobre sua dedicação,
insistência e perseverança na busca de concretizar no seu Estado um fazer musical, que
envolve desde a formação de público, de professores de música, e por fim de músicos
de alta performance.
Ao longo de mais de 60 anos de carreira, o maestro como professor de música,
compositor e regente – tem uma trajetória de sucesso nos principais corais do país e
pioneiro na introdução da música no Amazonas, em meados da década de 1950. Sua
história se configura em momentos bem marcantes e contextos diversos. Ainda menino,
transferiu-se para Santa Catarina onde ingressou na vida monástica no colégio dos
religiosos Servos de Maria, em Turvo SC, onde enveredou pelos caminhos musicais. No
dia 15 de agosto de 1945, aos 16 anos, estreou como regente de coro, na apresentação
do coral dos meninos do colégio. Desde então jamais abandonou a regência coral. Com
os Servitas foi para a Itália - Bolonha onde estudou órgão clássico e aperfeiçoou-se em
regência. Voltando ao Brasil, passou a intensificar seus estudos de música, graduando-se
em piano pela Faculdade de Música “Carlos Gomes”, em São Paulo. Na sequencia
retornou a Europa agora como bolsista da Fundação “Calouste Gulbenkian”, em Lisboa
15
- Portugal, para especializar-se em Musicologia, frequentando ainda cursos de
composição, regência coral e orquestral com João Gomes Jr., Emerich Csamer, Fritz
Iöede e Michel Corboz.
Ao chegar em Manaus, encontrou uma cidade simpática e agradável. A música
das óperas do Teatro Amazonas havia sido calada. Mas o gosto e o talento do povo
permaneciam. Empreendedor e incentivado por um grupo de pessoas da sociedade entre
as quais podemos destacar o professor Afonso Celso Maranhão Nina, Neusa Alves
Ferreira, o cantor e compositor Pedro Amorim, e pelo seu grande amigo Walter
Nogueira, deixou-se ficar por um tempo na cidade, atendendo alunos de piano e
reconhecendo vozes privilegiadas, levando-o a criar em 1956 o Coral João Gomes
Junior, em homenagem ao seu professor. Vale ressaltar que esse coral encontra-se em
plena atividade, sendo um dos mais antigos do Brasil.
Muitas são as contribuições do Maestro Nivaldo Santigo para o campo da
música, e em especial para o desenvolvimento do Canto Coral no Brasil. Podemos
destacar algumas ao longo de sua carreira: Criou e dirigiu corais principalmente na
região norte, onde além do Coral “João Gomes Jr.”, também criou o Coral Universitário
do Amazonas hoje Coral da Universidade Federal do Amazonas possibilitando a
formação e criação de espaços para a atuação de vários outros maestros, por exemplo:
Maestros Nelson Edy, Jackson Colares, Jussara Guedes, Elson Jonson e Bruno Bastos,
este ano completou 43 anos de atividade; o Coral da Escola Técnica Federal do
Amazonas, hoje IFAM e o Madrigal Santiago.
Sua contribuição no âmbito universitário começa logo depois da transferência
do Conservatório de Música Joaquim Franco para a Universidade do Amazonas em
1968, esse Conservatório pertencia ao Governo do Estado. Vale ressaltar que o Decreto-
Lei nº 1292, de 30 de dezembro de 1968, determinava que o Conservatório seria
transferido para a FUA, sob a condição de o mesmo “fazer funcionar, dentro de 1 (um)
ano, uma escola superior de música”.
Tal transferência somente foi concretizada porque na época a perspectiva da
Universidade do Amazonas era implementar um coral e uma orquestra sinfônica, e
acreditava-se que seria possível implantar tais grupos musicais através do Conservatório
de Música Joaquim Franco. Fica evidente nos termos dessa Lei de transferência que,
além do compromisso em proporcionar formação superior, essa instituição universitária
teria um prazo mínimo para a sua implementação.

16
O Conservatório, como unidade acadêmica, reabriu suas portas para os
procedimentos de matrícula no ano de 1970, com base da Resolução Nº 75/70 -
CONSUNI de 07/08/70, no entanto suas efetivas atividades de ensino foram retomadas
somente a partir do segundo semestre de 1971, quando então o maestro Nivaldo
Santiago já estava contratado para desenvolver suas atividades e contribuir efetivamente
para implantação do Conservatório de Música Joaquim Franco do qual também foi seu
diretor.
Podemos destacar ainda, que 1972 o Conselho Universitário criou o
Departamento de Música da Universidade, vinculado ao antigo Instituto de Letras e
Artes hoje Instituto de Ciências Humanas e Letras, e o maestro Nivaldo Santiago foi seu
primeiro chefe. Nesse ato de criação do Departamento de Música, o Conservatório de
Música ”Joaquim Franco” passaria a ser subordinado à “administração e
responsabilidade” desse departamento acadêmico.
Em meados de 1979, uma novo momento se inicia na Universidade com
implementação do Setor de Artes. Esse upgrade do conservatório nasce com a finalidade
de ampliar e dar apoio às modalidades de artes que já estavam sendo desenvolvidas em
cursos de extensão. Em função dos cursos de música e de artes já existentes no
Conservatório de Música e a franca expansão do Setor de Artes, capitaneada pelo
Maestro Santiago foi criado, em 1980, o Curso de Educação Artística, com duas
habilitações: música e desenho.
Com a extinção do Conservatório de Música Joaquim de Franco, mais tarde
como Setor de Artes e finalmente como Centro de Artes, ampliou seu campo de ação,
desencadeando um movimento artístico-cultural na cidade de Manaus e dando origem a
vários projetos artísticos em execução no contexto manauara, como por exemplo o
Núcleo Universitário de Dança Contemporânea, hoje desativado após mais de 15 anos
de funcionamento, Núcleo de Teatro, Núcleo de Música de Câmera. Esses grupos
tiveram grande repercussão não só na cidade de Manaus, mas em outros Estados da
Federação, com ativa participação da comunidade universitária: alunos, professores e
técnicos, em eventos de âmbito nacional e internacional.
Podemos destacar ainda que o Maestro Nivaldo Santiago é considerado
polêmico, uma vez que vem de uma época em que os corais eram sobretudo eruditos e
ele foi um dos grandes responsáveis pela tentativa de introduzir no repertório coral
músicas populares. Nesse sentido, desenvolveu para a música coral mais de cinquenta
arranjos de música popular e folclórica brasileira, duas delas conquistaram espaços no

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Brasil e no exterior: “Prelúdio para ninar gente grande”, de Luiz Vieira e o “Tamba-
tajá”, de Waldemar Henrique.
Portanto, lembrar do Maestro Nivaldo Santigo no contexto do SIMA –
Simpósio Internacional de Música na Amazônia é uma estimada e justa homenagem a
um professor que ao longo de sua carreira se dedicou a empreender e criar espaço para
realização das Artes, pelo seu engajamento constante nos vários contextos onde atuou o
Maestro Nivaldo Santiago instruiu e influenciou gerações de compositores,
instrumentistas, cantores e Coralistas com a sua música e o seu trabalho, principalmente
revitalizando a Música e as artes em Manaus e na Amazônia, além disso corrobora com
a também justa homenagem homologada pelo Conselho Universitário da Universidade
Federal do Amazonas por meio da Outorga do Título de Professor Emérito dessa
Universidade. Permitam-me aqui destacar que esse que vos escreve é fruto direto desse
trabalho, foi o trabalho do Maestro Nivaldo Santiago e do Coral Universitário que me
preparou e trouxe para vida acadêmica, criou novos espaços e me possibilitou realizar
estudos avançados, possibilitou ainda por meio do hoje Departamento de Artes a
formação de mais 600 profissionais nas Áreas de Música e Artes Visuais. Por isso,
nossas palavras finais são. Obrigado, Obrigado e Muito Obrigado!!!
Prof. Dr. Jackson Colares da Silva
Universidade Federal do Amazonas
Departamento de Artes
Coordenador do Curso de Música-Noturno

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PALESTRANTES CONVIDADOS

Profa. Dra. Adina Izarra

Universidad Simón Bolivar – Caracas –Venezuela


Compositora venezuelana. PhD em composição pela Universidade
de York, Inglaterra. Professora da Universidade Simón Bolívar,
que atualmente é Chefe do Laboratório de Música Digital. Realiza
pesquisas nas áreas de artes eletroacústica, com ênfase na
interatividade, na composição colaborativa e em vídeo-arte.
Recentemente concluiu residências em estudos CMMAS, em
Morelia, no México (2013) e na Universidade de Huddersfield,
Inglaterra (2014). É membro ativo da RedAsla Red de Arte Sonora
Latina.

Prof. Dr. Damian Keller

Universidade Federal do Acre


Possui doutorado em tecnologia e composição musical pela
Universidade Stanford (2004) e mestrado interdisciplinar em
arte pela Universidade Simon Fraser (1999). Realizou pós-
doutoramento em ciência da computação na Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (2012). Atualmente é
professor associado na Universidade Federal do Acre, onde
lidera o grupo de pesquisa NAP - Núcleo Amazônico de
Pesquisa Musical. Tem experiência nas áreas de computação
musical, composição musical, cognição musical, interação humano-computador, atuando
principalmente nos seguintes temas: música ubíqua, ecocomposição, design criativo, arte
multimídia. É um dos fundadores da rede de pesquisa Grupo de Música Ubíqua, consultor ad
hoc do CNPq e Fapesp, parecerista nos eventos científicos: ICMC, SBCM, Congresso da
ANPPOM, ERIN3, ISMIR, SIMA, UbiMus, editor convidado nas revistas: Journal of New Music
Research, Sonic Ideas, Journal of Cases on Information Technology.

19
Profa. Dra. Luciane Cuervo

Universidade Federal do Rio grande do Sul


Docente da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, nos cursos de Música e Pedagogia. Coordena os
projetos “Articulações entre Música, Educação e
Neurociências” (PROPESQ/UFRGS) e “Educação
Integral: Escolas da Paz” (UFRGS/MEC). Bacharel
em Música e Mestre em Educação, realiza doutorado
em Informática na Educação/UFRGS com pesquisas
sobre o processamento neuronal da música e o papel
das tecnologias. Dedica-se à interpretação de música
antiga e contemporânea, tendo estreado diversas obras brasileiras. Gravou os CDs Sonetos e
Amor e Morte (Fumproarte) e Octoeólio (Independente), incluindo obras especialmente criadas
para estes projetos

Prof. Dr. Felipe Kirst Adami

Universidade Federal do Rio Grande do Sul


Compositor e pianista natural de Porto
Alegre/RS, Felipe Kirst Adami é doutor em
composição pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, onde leciona nas áreas de
composição e música popular. Como
pesquisador, investiga os processos criativos da
composição musical e a construção de objetos
virtuais de aprendizagem para a
instrumentação e orquestração. Suas obras têm
sido executadas por renomados intérpretes na América Latina, Estados Unidos e Alemanha e
gravadas em CDs como “Sonetos de Amor e Morte” (2002), da flautista doce Luciane Cuervo e
“I” (2006), do violonista Paulo Inda. A partitura de sua composição “Variações sobre
Daphne”, gravada no CD “Octoeólio”, foi lançada pela editora alemã “Tre Fontane”, em
2009. Tem intensa participação em eventos de música contemporânea, como compositor,
intérprete e pesquisador, destacando-se o VII Encompor (Porto Alegre, 2001), onde seu
Concerto para Piano, estreado pelo pianista André Loss com a Orquestra da Unisinos, foi a
obra de encerramento, e a XVIII Bienal de Música Brasileira Contemporânea (Rio de Janeiro,
2009), na qual sua obra Pontos de Bifurcação, estreada pela Orquestra Sinfônica Nacional foi

20
a obra de abertura. Em 2008 foi vencedor da “Bolsa de Incentivo à Criação
Artística/Composição” da FUNARTE (Fundação Nacional de Artes do Brasil), sendo
comissionado a compor a obra “Sinfonia Sistêmica”, para grande orquestra. Atualmente
coordena e rege o InCoMuN Ensemble, grupo de música contemporânea da UFRGS voltado a
interpretação de música nova e a improvisação guiada.

Profa. Dra. Anelise Sonza

Universidade Federal do Rio Grande do Sul


Possui graduação (Bacharelado) em Fisioterapia pela
Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC (2001),
mestrado em Ciências do Movimento Humano pela UDESC
(2004) e doutorado em Neurociências pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS) (2014). Doutorado em com
cooperação internacional pela University of Calgary - Canada
(2011-2012) e doutorado sanduíche pela Universidade de
Duisburg-Essen - Alemanha (2013-2014). Atualmente faz estágio
de livre docência (pós-doutorado) pela Universidade Federal de
Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Professora
colaboradora - contratada da Universidade do Estado de Santa
Catarina (de 2005 a 2010) e Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL) (2009 a 2010).
Atuou como professora do curso de bacharelado em piano e violino – UDESC (Bases anátomo-
fisiológicas do movimento) e curso de extensão Música e Cérebro pela UFRGS. Pesquisadora
parceira da Nike Inc. de 2004 a 2008. Especialista em Acupuntura, atuando principalmente nos
seguintes temas de pesquisa: vibração de corpo inteiro, mecanorreceptores, efeitos pós-
vibratórios, dor, sensibilidade cutânea, neuroanatomia, biomecânica.

21
Nerine Lúcia Alves de Carvalho

PROTEC – Pró-Reitoria de Inovação Tecnológica

OBEC/AM – Observatório da Economia Criativa/Amazonas


Possui graduação em Processamento de Dados pela
Universidade Federal do Amazonas (1992). Atualmente é
analista de Tecnologia da Informação na UFAM. Possui
Mestrado em Engenharia de Produção com pesquisa em
Modelagem de Processos de Negócio.

Profa. Dra. Líliam Barros

Universidade Federal do Pará


Possui graduação em Bacharelado Em Música Piano pela
Universidade Estadual do Pará (2000), mestrado em
Etnomusicologia pela Universidade Federal da Bahia
(2003), doutorado em Etnomusicologia pela Universidade
Federal da Bahia (2006) e Pós-Doutorado em Antropologia
pela Universidade de Brasília (2009). Atualmente é
professora da Universidade Federal do Pará. Tem
experiência na área de Música, com ênfase em
Etnomusicologia.

22
Profa. Dra. Deise Lucy Montardo

UFAM, INCT BRASIL PLURAL (Cnpq/Fapeam/Fapesc)


Graduada em Ciências Sociais pela UFSC, Mestre
em Arqueologia pela PUC/RS e Doutora em
Antropologia Social, pela USP. Foi pesquisadora
do Museu Universitário da UFSC e atualmente é
Professora Adjunta de Antropologia na UFAM.
Realiza pesquisa sobre antropologia da música
Guarani desde 1995, publicou o livro “Através do
Mbaraka: música e xamanismo guarani”, pela
editora da USP em 2009, editou o dossiê especial “
Objetos sonoros-visuais ameríndios” na Revista
Trans - Revista Transcultural de Música, TRANS
15 (2011), entre outras publicações. Atualmente é presidente da Associação Brasileira de
Etnomusicologia (ABET).

Prof. Dr. Bernardo Mesquita

Universidade do Estado do Amazonas


Doutor em Etnomusicologia pela Universidade Federal da
Bahia (UFBA. 2014). Compositor, Baterista e percussionista,
também têm experiência na área de Educação Musical,
Música Popular tradicional e urbana. Como pesquisador
atua principalmente nos seguintes temas: Música popular na
Amazônia, Carimbó, Guitarrada, Música Afro-caribenha,
hibridismo cultural e o fenômeno da canção engajada
brasileira na década de 60. Atualmente, é professor de
Etnomusicologia no Curso de Música da Universidade do
Estado do Amazonas, UEA.

23
Profa. Dra. Valéria Cristina Marques

Universidade Federal do Pará


Bacharel em Piano pela UNICAMP e Doutora
em Educação Musical pela Universidade
Federal da Bahia. Professora do Curso de
Licenciatura em Música da Universidade
Federal do Pará desde 1994 do qual foi
Coordenadora e posteriormente Diretora da
Escola de Música da UFPA. Produziu e
apresentou programas de rádio, tendo
participado como pianista, durante um ano, do
Programa Allegro da TV Cultura – São Paulo.
Participou de conjuntos e orquestras barrocas como cravista. Compôs obras para teatro. Foi
coordenadora do Programa Arte, Cultura e Lazer nos Hospitais da Secretaria de Estado de São
Paulo. Atualmente coordena grupo de pesquisa sobre leitura musical, tema ao qual se dedica
desde 2000.

Prof. Dr. Rucker Bezerra de Queiroz

Universidade Federal do Rio Grande do Sul


Graduado pela UFPB (1991), Mestre (2002) e
Doutor pela Unicamp - SP, é professor efetivo de
violino da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte, spalla da Orquestra Sinfônica da
AMUSA-PB e spalla da Orquestra Filarmonia-
RJ. Foi aluno de Yerko Pinto, Andzej Grabiec e
Erick Friedman. Foi solista de várias orquestras
no Brasil atuando com regentes como Eleazar de
Carvalho, Elena Herrera, Carlos Veiga, Per
Brevig, Paolo Bellomia, dentre outros. Apresentou recitais em todo Brasil, nos Estados Unidos e
Itália. É membro fundador do Quinteto Uirapuru. Vencedor do prêmio Tim, categoria música
instrumental com o CD Sivuca & Quinteto Uirapuru.

24
Maestro Adroaldo Cauduro
Universidade do Estado do Amazonas - UEA

Mestre em Artes-Música/Regência pela Eastern


Illinois University nos Estados Unidos e estudou
Condução Sinfônica e Ópera no Conservatório
Rimsky-Korsakov em São Petersburgo, Rússia. O
maestro é Bacharel em Engenharia Civil pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (PUCRS) e em Música – Regência pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS).O maestro tem desenvolvido sua carreira como regente de coro e orquestra no Brasil
e no exterior, bem como professor, instrumentista e compositor. É professor das disciplinas
Regência Coral, Regência Orquestral do curso de Música e Voz e Movimento do curso de
Teatro, bem como é o Maestro Titular da Orquestra Sinfônica e do Madrigal Amazonas da
Universidade do Estado do Amazonas - UEA. Como compositor é autor do Livro “Cantando o
Imáginário do Poeta” que traz à cena poemas do poeta Mario Quintana musicados para coro
misto (SCTB) a cappella. Lançou em agosto de 2014 o livro “Cantando Poetas Ibero-
Americanos”. Trata-se de poemas dos poetas amazonenses Elson Farias, Luiz Bacellar, Tenório
Telles e Thiago de Mello, do poeta gaúcho carlos Nejar, do poeta português Fernando Pessoa e
do poeta espanhol Federico Garcia Lorca musicados para orquestra de cordas, coro, cantores
solistas e músicos convidados. Apresenta o programa semanal “Conversando com o Maestro”
na TV e Rádio Cultura do Amazonas.

Prof. Dr. Eduardo Nóbrega

Universidade Federal da Paraíba

Possui graduação em Educação Artística / habilitação


em música pela Universidade Federal da Paraíba
(1980). BACHAREL EM MUSICA ( PEFORMACE -
FAGOTE) pela Universidade Federal da paraíba.
mestre em Etnomusicologia pelo programa de Pós-
Graduação do Departamento de Musica da UFPB.

25
Kalinka Damiani

Soprano Brasileira
Graduada em Música pela Udesc, aperfeiçoou-se com
a renomada professora Neyde Thomas em Curitiba, no
Bacharelado em Canto e no curso de Especialização
em Performance em Canto da EMBAP, estudando
também com Martha Herr, Niza Tank, Carol McDavid
e Luiz Senise. Foi integrante do projeto “Tela
Lírica”, intercâmbio do Centro Cultural Teatro
Guaíra e Universidade e Conservatório de Adria,
Itália.
Premiações: Melhor Soprano Leggero,
Melhor Intérprete de Mozart e Prêmio do Público no
Concurso Maria Callas; 1° lugar e Troféu ABAL no
Concurso Carlos Gomes; 1º Prêmio no Concurso Aldo
Baldin.
Protagonizou Inúmeras óperas no Brasil e exterior destaque para Rainha da Noite no
Teatro Municipal do Rio de Janeiro, La Traviata no Teatro Argentino de La Plata, e Lucia di
Lammermoor na Temporada de Ópera de Medellin.
Integra o corpo docente do Encontro de Cantores de Curitiba, Festival de Música de
Londrina, Oficina de Música de Curitiba e Semana de Música da UFAM. É idealizadora e
orientadora do projeto "Pisando no Palco" de estudo de repertório e performance
e orientadora vocal do grupo de música antiga "Cantus Firmus ". Diretora e cantora do projeto
“Cantigas” de resgate das melodias de roda harmonizadas por Villa Lobos. Projeto
contemplado pela Funarte em 2014.
Solista do cd "Carmina Burana" recentemente lançado na Alemanha com a Camerata Antíqua
de Curitiba e Carmina Mundi sob regência de Harald Nickoll e do DVD “Madrigali d’Amore”
com o grupo de música antiga Cantus Firmus.

Convidada artística principal da Abertura do III SIMA no Teatro Amazonas.

Direção musical e cênica da Obra Bastien und Bastienne de Mozart.

Masterclass de canto.

26
Prof. Dr. Hermes Coelho
UNICAMP

É Maestro e Compositor, Doutor em


Música/Regência pelo Instituto de Artes da
Unicamp, onde também recebeu o título de
Mestre em Música. É graduado em
composição e regência pela Universidade
FMU- FIAM- FAAM. Em 2008 venceu o
concurso para regente titular da Orquestra
Sinfônica de Americana e tem atuado
frente a diversas orquestras: Sinfônica da
Unicamp, Sinfônica de Sorocaba, Sinfônica
de Americana, Sinfônica de Bragança
Paulista, L’estro Armonico de São Paulo e
Orquestra de Câmara do Amazonas. Em 2006 e 2010 esteve em Stuttgart-Alemanha regendo o
Gärchinger Kantorei und Bach-Collegium Stuttgart sob orientação de Helmut Rilling. Em 2013
regeu, como convidado, o Coral do Amazonas no Teatro Amazonas em Manaus, onde também
ministrou Workshop de Regência. Em Campinas recebeu a medalha Carlos Gomes, nos anos de
2000, 2003, 2006 e 2013, e em 2005 o Diploma de Honra ao Mérito "Herbert de Souza -
Betinho" outorgados pela Câmara Municipal. Atualmente é regente associado dos corpos
artísticos do Teatro Amazonas, em Manaus; professor de regência no curso de Pós-graduação
em regência da Faculdade Mozarteum de São Paulo; diretor artístico da Associações Canto
Coral Exsultate e Orquestra e Coral Ars Musicalis de Campinas e regente do Coral do Círculo
Militar de Campinas.

Robério Braga

Secretário de Estado de Cultura

Robério dos Santos Pereira Braga, Secretário de Estado


de Cultura, professor e advogado, mestre em Direito
pela Universidade do Estado do Amazonas e doutorando
pela Universidade Illas Baleares, Espanha, é escritor e
membro do Instituto Geográfico e Histórico do
Amazonas e da Academia Amazonense de Letras.

27
Comunicação oral
Comitê científico

28
Índice de Conteúdos

Educação Musical……………………………………………..………………………32

Caroline Caregnato. O desenvolvimento da abstração e suas implicações para o


desenvolvimento da percepção musical..........................................................................33

Jordanna Duarte. O estágio supervisionado em música à distância: estrutura curricular


da UnB e o olhar dos alunos dos polos de Sena Madureira/AC e Cruzeiro do
Sul/AC………………………………………………………………………………….42

Marcos T. S. Melo, Damián Keller, Ana E. B. Barros, Floriano Pinheiro da Silva.


Guitarreando: estudo do suporte visual, sonoro e simbólico para o ensino de
violão…………………………………………………………………………………...51

Jefferson T. S. M. Silva. Metodologia Dalcroze: uma ação de extensão na UFRR……59

Edna Andrade Soares. Ações de extensão: relato de experiência coral em projeto de


extensão universitária…………………………………………………..………………65

Lia Braga Vieira. Educação musical em pedagogias sociais do cotidiano……………..73

Etnomusicologia……………………………………………………………………….81

Selmo Azevedo Apontes. A congada de Vila Bela do Mato Grosso e a importância


linguística da performance musical…………………………………………………….82

Sonia Chada. Tecnobrega: música eletrônica em Belém do Pará………………………93

Dayse Maria Puget. Os blocos e as Escolas de Samba: a resistência do carnaval em


Belém do Pará…………………………………………………………………………101

Rucker Bezerra de Queiroz, Samuel Cavalcanti Correia. E a música Armorial


continua...: trajetória e atualidade em breves considerações………………………….113

Rucker Bezerra de Queiroz, Samuel Cavalcanti Correia. A composição no movimento


Armorial: Laconismo e Escritura de um Toré………………………………………...123

Rafael Severiano. Música indígena e processos de educação: Saberes musicais da


sociedade tupinambá na Amazônia do Brasil colonial……..…………………………132

Musicologia Histórica………………………………………………………………..141

Vicente Casanova de Almeida. O éthos diastáltico e a exaltação patética em música no


discurso de Claudio Monteverdi (1638)………………………………………………142

29
Mário Alexandre Dantas Barbosa. Ensino institucional e demanda composicional: a
produção coral de Otávio Meneleu Campos (1872-1927) para o Conservatório Carlos
Gomes…………………………………………………………………………………158

Fernando Lacerda Simões Duarte. Prometeu em tempos de romanização: o impacto dos


órgãos eletrônicos na música litúrgica católica anterior ao concílio vaticano II……...168

José Ruy Henderson Filho, Rodrigo Gabriel Ramos Rodrigues. Memórias musicais da
Amazônia: catalogação e edição de partituras para banda de música do início do século
XX...…………………………………………………………………………………..183

Gabriel S. Lima, Márcio L. F. R. Páscoa. Precipício de Faetonte, do Judeu a Cyrillo


Machado: análise iconográfica para fins paleográficos na reconstrução na parte de viola
e canto da ária “Naquela Deidade Galharda”…………………………………………192

Musicologia do Século XX…………………………………………………………..206

Alexandre José de Abreu. Construindo o templo, música para catedral de Campinas


como índice para um estudo da recepção……………………………………………..207

Neil Armstrong, Q. Natividad, Lucyanne de M. Afonso, João G. Kienen. O Centenário


musical do Boi Caprichoso (1913-2013)……………………………………………...213

Gustavo Frosi Benetti. Guilherme de Mello. Música no Brasil: uma análise sobre a
publicação reeditada por Luiz Heitor (1947)………………………………………….230

Grazeane de B. Froz, Lucyanne de M. Afonso. A trajetória artística de Teixeira de


Manaus………………………………………………………………………………...236

Ernesto Frederico Hartmann. Cláudio Santoro e o Nacionalismo na perspectiva do


Realismo Socialismo. Uma análise do uso da escala pentatônica na Sonata nº3 (1955)
para piano……………………………………………………………………………..256

João Gustavo Kienen. Campo, cotidiano e não-cotidiano na construção da música


nacionalista……………………………………………………………………………270

Ricardo L. Kubala, Bárbara de Souza. O dodecafonismo e o papel do solista no choro


para viola e orquestra de Camargo Guarnieri…………………………………………277

João de Deus Vieira de Oliveira. Domingos Lima: uma historiografia do mago do


violão...………………………………………………………………………………..290

Eliana Asano Ramos, Maria José Dias Carrasqueira de Moraes. Interação texto e música
na canção A Chácara do Chico Bolacha de Ernst Mahle……………………………...298

Rodrigo A. S. Santos, Helena Jank, Paulo A. Ronqui. Os trombones de Sant´Anna


Gomes: um estudo sobre a utilização dos trombones nas composições Valsa Club
Campineiro, Polka sem Fim Polka Filuta……………………………………………..306

30
Performance Musical………………………………………………………………..317

Áureo D. de Freitas Júnior, Letícia S. Silva, João P. S. Nobre, Danihellen P. Siqueira,


Ana B. Malheiros, Jonatas Araújo. A educação musical como forma de intervenção com
alunos com dificuldades de aprendizagem do projeto violino e viola em grupo……..318

André A. Gaby. A pesquisa do canto gregoriano no século XX: implicações em sua


prática interpretativa…………………………………………………………………..327

César A. Diniz Silva. A Orquestra sinfônica enquanto campo de trabalho: considerações


sobre a gestão estatal………………………………………………………………….341

Israel Victor L. Silva, Rucker Bezerra de Queiroz. Aspectos técnicos-interpretativos da


Sonata nº2 de Guerra-Peixe: a importância das obras brasileiras pós 1950 para
violino……………………………………………………………………………...….354

Práticas Criativas……………………………………………………………………364

Anselmo Guerra. Produção brasileira no contexto da música eletroacústica na América


Latina: ontem e hoje…………………………………………………………………..365

Damián Keller, Ariadna Capasso, Patricia Tinajero. Prácticas creativas cognitivo-


ecológicas. (Em espanhol)…………………………………………………………….377

Max Packer. Primeira leitura: o comentário composicional apócrifa…………………392

Alex Pochat. Feira de São Joaquim: um campo do compor…………………………..404

Edemilson Ferreira, Damián Keller, Flávio Miranda de Farias, Floriano Pinheiro da


Silva, Victor Lazzarini, Marcelo Soares Pimenta, Maria Helena de Lima, Leandro L.
Costalonga, Marcelo Johann. Criatividade musical cotidiana: engajamento, esforço
cognitivo e personalidade……………………………………………………………..412

31
Educação Musical

32
O desenvolvimento da abstração e suas implicações para o
desenvolvimento da Percepção Musical
Caroline Caregnato1
1
Escola Superior de Artes e Turismo – Universidade do Estado do Amazonas (UEA)
Manaus – AM
Instituto de Artes – Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
Campinas - SP
carolinecaregnato@gmail.com

Resumo. O conceito de “abstração”, cunhado por Piaget, se refere a uma espécie de “leitura”
da realidade. Acreditamos que o processo de identificação e notação de estruturas musicais,
que ocorre durante os exercícios aplicados no ensino de Percepção Musical, depende da
realização de abstrações. O objetivo deste trabalho é estudar o desenvolvimento da abstração
e, consequentemente, o desenvolvimento da identificação e notação de estruturas musicais. De
acordo com o levantamento teórico realizado, esses desenvolvimentos ocorrem em três etapas,
marcadas pelas abstrações empíricas, pseudo-empíricas, reflexionantes e refletidas, ao longo
das quais o sujeito desenvolve o seu modo de compreender a realidade e a música.
Abstract. The concept of "abstraction", coined by Piaget, refers to a kind of "reading" of the
reality. We believe that the process of identification and notation of musical structures that
occurs during exercises applied in Ear Training teaching depends on the realization of
abstractions. The aim of this work is to identify the development of abstraction and
consequently the development of identification and notation of musical structures. According to
the theoretical survey conducted, these developments occur in three stages, marked by
empirical, pseudo-empirical, reflexive and reflected abstractions, along which the subject
develops his way of understanding reality and music.

1. Introdução
O termo “abstração” se constitui em um conceito tomado de empréstimo da Psicologia
Cognitiva. Mais especificamente, o referencial que embasa a construção deste trabalho e
do qual retiramos a definição para o termo é a Epistemologia Genética, teoria criada por
Jean Piaget.
Este artigo se constitui em um recorte da tese de doutorado de sua autora, ainda
em fase de produção, e busca relacionar o conceito piagetiano de abstração com o
desenvolvimento de saberes dentro do contexto de aprendizagem de Percepção Musical.
Como aponta um levantamento realizado por Otutumi e Goldemberg (2008), a
disciplina de Percepção Musical (às vezes apresentada sob outras nomenclaturas, como
“Treinamento Auditivo”) está presente na maior parte dos cursos de Graduação em
Música do país. As atividades realizadas dentro do contexto dessa disciplina geralmente
abordam a identificação de estruturas musicais e sua escrita, através da realização de
ditados, bem como abordam a leitura musical, por meio de exercícios de solfejo.
Neste artigo iremos nos focar, mais especificamente, sobre o desenvolvimento
da identificação e notação de estruturas musicais, deixando em aberto a questão da
leitura musical, também envolvida na Percepção Musical, para que ela seja abordada em
trabalhos futuros. Segundo nossa leitura, o processo de identificação e notação de
estruturas musicais, que ocorre durante os exercícios de ditado aplicados no ensino de
Percepção Musical, depende da realização de abstrações. Para Piaget (1995), uma
abstração se constitui em uma espécie de “leitura” ou interpretação da realidade.

33
O objetivo deste trabalho é estudar o possível processo de desenvolvimento da
abstração e, consequentemente, o processo de desenvolvimento que conduz à
identificação e notação de estruturas musicais durante a aprendizagem de Percepção
Musical. Deste modo, o que apresentamos neste artigo são hipóteses de
desenvolvimento, cunhadas a partir do contato com a teoria piagetiana. Essas hipóteses
encontram-se em fase de validação, por meio de um estudo ainda em andamento,
realizado com estudantes de Percepção Musical e músicos profissionais.
Acreditamos que este trabalho pode vir a elucidar o modo como ocorre o
desenvolvimento das competências envolvidas na aprendizagem de Percepção Musical,
vindo assim a contribuir para a construção de propostas de ensino dentro do contexto
dessa disciplina que respeitem o modo como ocorre o desenvolvimento do estudante e,
ao mesmo tempo, impulsionem novas aprendizagens.
Ao longo de seus estudos, Piaget (1995) observou a existência de diferentes
tipos de abstração. Esse autor observou ainda que cada um desses tipos é característico
de algum dos momentos do desenvolvimento dos sujeitos. Iniciaremos este artigo
expondo brevemente os tipos de abstração observados por Piaget (1995). Para maiores
informações sobre o assunto e sobre o modo como as abstrações se relacionam com a
Percepção Musical, o leitor poderá ser indicado ao trabalho que dedicamos ao assunto
(CAREGNATO, 2013). Em seguida, voltar-nos-emos ao tema do desenvolvimento das
abstrações e suas relações com a Percepção Musical, que é efetivamente a que nos
dedicamos neste trabalho.

2. Os tipos de abstração segundo a teoria piagetiana


De acordo com Piaget (1995, p. 5-6), existem abstrações de tipo empírico,
reflexionante, refletido e pseudo-empírico.
As abstrações empíricas são dirigidas aos aspectos materiais dos objetos, se
construindo sobre conteúdos, que podem ser entendidos dentro da teoria piagetiana
como as características de um objeto (BATTRO, 1978, p. 65). Dessa forma, as
abstrações empíricas recolhem características que estão contidas nas coisas que nos
cercam (PIAGET, 1995, p. 5). Aspectos como a cor dos objetos, ou mesmo as alturas
emitidas pelos instrumentos musicais, podem ser alvo da abstração empírica.
Enquanto a abstração empírica “retira sua informação dos objetos [grifo nosso]”
(PIAGET, 1995, p. 141), a abstrações reflexionante insere informações nos objetos
graças a uma ação do pensamento do sujeito. A introdução da quantidade, por exemplo,
ocorre por força da abstração reflexionante, já que os números não são uma qualidade
dos objetos, mas uma informação introduzida neles pelo pensamento do sujeito que
conta. A atribuição de nomes (Dó, Ré, Mi, etc) às frequências sonoras também parece
ser fruto de abstrações reflexionantes.
A abstração reflexionante atua a partir do estabelecimento de relações entre as
características dos objetos. Desse modo, ela não se constrói sobre conteúdos, mas sobre
formas, ou seja, sobre o que poderíamos chamar de “lei de organização” dos objetos
(PIAGET, 1995, p. 166).
De acordo com Piaget (1995, p. 250), a abstração reflexionante é composta por
dois processos: pelo reflexionamento, que retira as informações do plano do real,
levando-as ao plano do pensamento; e pela reflexão, que integra, reorganiza e reconstrói
as informações dadas pelo reflexionamento dentro do pensamento.

34
Ainda de acordo com Piaget (1995, p. 6), é possível que reflexões sejam
construídas sobre reflexões já estabelecidas, dando origem ao que foi denominado de
abstração refletida. Essa abstração leva a comparações entre objetos e à testagem de
hipóteses de explicação para acontecimentos e a sua compreensão (PIAGET, 1995, p.
175, 193, 251-252, 280). A abstração refletida parece atuar no relacionamento entre
notas e ritmos, necessário para a escrita de uma melodia, por exemplo.
Por fim, o último tipo de abstração mencionado por Piaget (1995, p. 6) é a
abstração pseudo-empírica, que permite ao sujeito inserir propriedades nos objetos
como ocorre com o uso da abstração reflexionante, mas valendo-se de observáveis
exteriores ao indivíduo e não apenas do seu pensamento, como ocorre durante a
abstração empírica. Este tipo de abstração parece estar em curso quando os sujeitos se
utilizam do apoio de um instrumento musical para a atribuição de nomes de notas às
alturas de uma melodia.

3. O desenvolvimento da abstração e a identificação e notação de estruturas


musicais dentro do contexto da Percepção Musical
Piaget (1995) observou o desenvolvimento da abstração através de uma série de
experimentos diferentes. Na sequência iremos apresentar uma exposição de alguns
desses estudos a fim de buscar traçar as linhas gerais do desenvolvimento da abstração
segundo a visão piagetiana. Em paralelo a essa exposição, iremos buscar tecer
inferências sobre como esse desenvolvimento da abstração poderia ser observado no
caso da identificação de estruturas musicais e da sua notação, que ocorre no contexto de
aprendizagem da Percepção Musical.
Ao longo de seus experimentos sobre a abstração, Piaget (1995) observou a
existência de basicamente três estágios ou etapas de desenvolvimento denominadas
simplesmente de etapas I, II e III. Essas etapas são por vezes subdivididas em dois
níveis (níveis A e B) que guardam semelhanças entre si. A fim de objetivar a exposição
a seguir, iremos nos referir apenas às três etapas de modo mais amplo (mesmo porque,
na maioria dos experimentos, a subdivisão de uma etapa se deve a questões específicas
do estudo e do problema que está sendo analisado): uma etapa inicial de
desenvolvimento, outra intermediária, e a etapa final.
Piaget (1995, p. 180, 184-185) observou que no estágio inicial de
desenvolvimento ocorrem predominantemente abstrações empíricas. Esse tipo de
abstração não permite que ocorra compreensão de alguns eventos. De acordo com um
dos experimentos realizados por esse autor, a compreensão não se torna possível nem
mesmo com o auxílio de outra pessoa, durante esta fase inicial. Isso ocorre porque a
abstração empírica – que é praticamente o único tipo de abstração realizada nos
momentos iniciais do desenvolvimento – é ainda um tipo de abstração muito limitado,
que não busca inserir elementos no evento (como a causa do evento) que não sejam
observáveis de forma direta. Assim sendo, a abstração empírica é limitada porque não
leva à compreensão. Esse tipo de abstração tampouco conduz à aprendizagem, por isso,
qualquer ajuda que seja fornecida ao sujeito não será “aproveitada” enquanto a
abstração empírica se mantiver reinante (PIAGET, 1995, p. 184).
Podemos ensaiar uma aplicação dessas ideias de Piaget (1995) ao campo da
Percepção Musical: em uma atividade de notação de uma dada música ou excerto
ouvido, não basta fornecer as respostas do que foi percebido ao sujeito se este indivíduo
se mantiver preso à realização de abstrações empíricas. Dificilmente o sujeito irá
formular alguma aprendizagem a partir do que lhe foi demonstrado. Se o sujeito ainda

35
estiver preso a abstrações empíricas, que se limitam à observação dos resultados,
também dificilmente ele irá compreender de fato a situação que foi posta. Relembrando:
a abstração empírica não é um instrumento suficientemente desenvolvido a ponto de
permitir a aprendizagem ou a compreensão.
Apenas a abstração reflexionante é capaz de permitir a compreensão dos fatos e
de gerar aprendizagens. Pensamos que o professor de Percepção Musical precisa
estimular o desenvolvimento deste tipo de abstração (e dos posteriores) no aluno. No
experimento de Piaget (1995, p. 181-184) que estamos relatando, a abstração
reflexionante começa a se destacar na segunda fase de desenvolvimento – embora já
existam esboços de abstração reflexionante nos momentos iniciais, em que há primazia
da abstração empírica (PIAGET, 1995, p. 272). Nesse momento surgem os primeiros
indícios de compreensão, mas inicialmente apenas após tentativas ou “tateamentos”, ou
seja, não de modo imediato. Essa compreensão nascente, contudo, ainda não é
completa, pois esbarra em abstrações refletidas que ainda são insuficientes.
No caso da notação musical, podemos inferir que “tateamentos” como repetir
por meio do canto o que foi ouvido, ou identificar alturas musicais com a ajuda de um
instrumento, são característicos dessa fase intermediária de desenvolvimento.
Acreditamos que os professores de Percepção Musical podem estimular seus alunos a
utilizarem esses recursos, ao invés de limitá-los, como frequentemente ocorre. Como,
nesse nível, a compreensão ainda não é completa por falta de reflexão adequada,
condutas como a classificação errada de acordes, intervalos, ritmos, etc, também podem
ser características de uma fase intermediária de desenvolvimento musical.
Esses “tateamentos” a que nos referimos parecem ser característicos de
abstrações pseudo-empíricas. De fato, Piaget (1995, p. 141-148) observou que a
abstração pseudo-empírica se manifesta em fases intermediárias do desenvolvimento.
De acordo com as observações desse autor, a abstração pseudo-empírica antecede a
realização de abstrações reflexionantes puras durante o desenvolvimento. Desse modo,
o contato com o objeto que se busca abstrair e a realização de ações sobre este objeto,
em curso durante atividades de abstração pseudo-empírica, são as bases para a
realização de abstrações reflexionantes, focadas apenas no exame ou em ações
imaginadas e não na ação concreta.
Estendendo essa observação para o caso da Percepção Musical, parece provável
então que a realização de ações características da abstração pseudo-empírica, como
identificar um som por meio do canto ou com o auxílio de um instrumento, sejam ações
de fato intermediárias, necessárias no processo de desenvolvimento, uma vez que essas
ações concretas, realizadas sobre os objetos que se busca abstrair, são ações necessárias
para que ocorram futuras “ações mentais”, completamente internalizadas, características
da abstração reflexionante, e para que o indivíduo possa, finalmente, se libertar da
necessidade de um apoio concreto. Acreditamos, portanto, que se o professor de
Percepção Musical não “queimar etapas” no desenvolvimento do aluno e estimulá-lo a
superar a realização de abstrações pseudo-empíricas assim que possível, não existirão
motivos para temer a dependência eterna do estudante ao uso de um instrumento
musical ou do canto como apoio. Essas condutas tendem a ser superadas à medida em
que ocorre o desenvolvimento.
Retomando o experimento de Piaget (1995, p. 176-177) a que nos referíamos
inicialmente, no último estágio do desenvolvimento ocorre avanço na comparação entre
duas situações, possível graças a abstrações refletidas mais apuradas, e surge uma
compreensão também mais precisa da realidade. No caso da notação musical, é possível

36
que nesse estágio o sujeito obtenha pleno êxito ao identificar o que foi ouvido. Esse
êxito pode ser devido a avanços no sentido da coordenação (ou da comparação), que
permitem, por exemplo, um estabelecimento de relações mais precisas entre conceitos
que o sujeito possua e sons recentemente ouvidos.
Em um experimento diferente deste último, Piaget (1995, p.204-205) observou
resultados semelhantes. Esse autor também verificou que o primeiro estágio de
desenvolvimento é marcado pela realização de abstrações empíricas variadas, contudo,
mal coordenadas entre si. Essa falha na coordenação pode levar o indivíduo a leituras
equivocadas de aspectos observados (voltaremos novamente a esse ponto). Parece
possível supor que, na notação de músicas ouvidas, o prevalecimento de abstrações
empíricas mal coordenadas pode conduzir à percepção, por exemplo, de escalas
ascendentes em lugar de escalas descentes, ou vice-versa. Essa inversão pode ser
resultado de duas abstrações empíricas, centradas sobre a nota inicial e final daquilo que
foi ouvido, mas mal coordenadas (mal relacionadas) entre si.
Essas dificuldades na coordenação são parcialmente superadas ao longo da fase
intermediária de desenvolvimento, em que se manifesta uma abstração reflexionante
mais ativa, por vezes ainda baseada em abstrações pseudo-empíricas (PIAGET, 1995, p.
204-205).
Piaget (1995, p. 204-205) observou, durante essa segunda fase, algumas
tentativas de superação da necessidade de utilização de abstrações pseudo-empíricas
através do uso de reflexões ainda não perfeitamente desenvolvidas. O uso de reflexões
ainda incompletas pode conduzir a leituras equivocadas. Essas leituras também ocorrem
por falta de uma verificação empírica que seja capaz de constatar a impossibilidade de
que a realidade seja organizada do modo como o sujeito supõe.
No caso da Percepção Musical – voltando à questão do equívoco de direção
mencionado acima – é possível também que uma escala, por exemplo, seja conceituada
de modo invertido porque houve uma coordenação entre a nota mais grave e mais
aguda, contudo resultado de uma reflexão não suficientemente desenvolvida e de uma
falta de retomada do que foi ouvido (de constatação empírica através do canto, por
exemplo, ou de nova audição) que permitisse a verificação do equívoco.
Piaget (1995, p. 273) observou que uma das grandes tendências dessa segunda
fase rumo ao terceiro momento do desenvolvimento, especialmente quando se trata de
abstrair aspectos espaciais da realidade, é o estabelecimento de trocas contínuas entre a
abstração empírica e a abstração reflexionante. Ao longo da segunda fase, a abstração
empírica fornece os dados indispensáveis para que a abstração reflexionante ocorra, pois
não se pode compreender uma realidade que não tenha sido constatada por abstração
empírica; e a abstração reflexionante, por sua vez, volta a recorrer à abstração empírica
no momento em que se torna necessária a comprovação das hipóteses formuladas (pela
abstração reflexionante). Em síntese, nesse momento do desenvolvimento a abstração
reflexionante passa a se servir dos dados sobre as propriedades do objeto, que são
fornecidos pela abstração empírica, para verificar a validade de seus “produtos”.
Por fim, no último estágio de desenvolvimento observado por Piaget (1995, p.
205) através do experimento a que nos referíamos, ocorrem reflexões sobre reflexões
anteriores, ou seja, manifestam-se abstrações refletidas em estado mais desenvolvido. A
reflexão é capaz de corrigir equívocos de leitura manifestos em fases anteriores do
desenvolvimento.
Em outro conjunto de observações, Piaget (1995, p. 179) constatou que a
abstração refletida sempre se apoia sobre abstrações reflexionantes anteriores.
37
Abstrações refletidas uma vez realizadas também podem servir de base para futuras
abstrações refletidas. Assim sendo, as abstrações reflexionantes antecedem as abstrações
refletidas durante o desenvolvimento, e abstrações refletidas de caráter mais elementar
também podem anteceder abstrações refletidas posteriores e de caráter mais complexo
(PIAGET, 1995, p. 176).
Ao que parece, essa relação entre esses dois tipos de abstração ao longo do
desenvolvimento também pode ser observada no caso específico do desenvolvimento da
Percepção Musical. A abstração reflexionante parece permitir a conceituação do que foi
ouvido. A partir dessa abstração o indivíduo passa a identificar o que ouviu e transforma
a coisa ouvida em um novo “produto”, capaz de ser transportado a um patamar superior
de reflexão. Nesse “patamar superior” de pensamento, podem ocorrer novas reflexões
como, por exemplo, o estabelecimento de comparações entre trechos musicais já
conceituados. Essa comparação poderia levar à constatação de repetições motívicas, por
exemplo. Ou, comparações dessa ordem ainda poderiam levar à observação de um
conjunto de escolhas composicionais semelhantes. Esse “conjunto de escolhas
composicionais” poderia se tornar um novo objeto do pensamento, e poderia ser
transposto novamente a um patamar superior de reflexão. Essa reflexão poderia resultar
na identificação de um determinado estilo composicional, por exemplo.
Piaget (1995, p. 276-277) observou, portanto, que existe uma alternância
ininterrupta entre abstrações reflexionantes e refletidas, pois todo o produto de uma
reflexão pode ser transposto a um patamar superior, se tornando assim alvo de um novo
reflexionamento e de uma nova reflexão. Essa alternância se sucede como em uma
espiral, em que a cada novo patamar se adquire maior riqueza na compreensão do objeto
observado. Cada um desses patamares representa um novo começo e um novo fim, de
modo que começos e finais nunca sejam absolutos e se sucedam ininterruptamente.
Portanto, se a notação de músicas ouvidas obedecer às “leis” de Piaget (1995)
sobre o desenvolvimento da abstração é possível que ações que dependem da abstração
refletida ocorram em constante e ininterrupto relacionamento com abstrações
reflexionantes. É possível ainda que os frutos da reflexão (como a conceituação de sons,
a identificação de motivos, estilos composicionais, etc) se tornem cada vez mais ricos
na medida em que forem sendo absorvidos pelo processo espiral de abstração.
Retomando a questão dos equívocos de leitura levantada acima, Piaget (1995, p.
206) realizou ainda outro experimento buscando compreender se a fonte dos erros de
interpretação, característicos dos momentos iniciais do desenvolvimento, seriam as
abstrações empíricas ou as abstrações reflexionantes, que coexistem nessa fase
(PIAGET, 1995, p. 219, 221).
Segundo as observações de Piaget (1995, p. 221), esses erros não se devem às
abstrações empíricas características da primeira fase de desenvolvimento, mas são
resultado de abstrações reflexionantes (sempre solidárias às abstrações empíricas) não
propriamente incorretas, mas ainda incompletas. Piaget (1995, p. 221) argumenta que,
mesmo no caso do experimento anteriormente relatado, os erros de interpretação,
resultantes de uma abstração refletida que não tenha sido verificada de modo concreto
(pela observação da realidade), não são devidos a abstrações incorretas. Eles são, antes,
resultado de uma aplicação abusiva da reflexão, que não buscou embasamentos para a
sua aplicação na realidade (a explicação incorreta fornecida por uma abstração reflexiva
abusiva poderia ser aceita em uma situação que fosse condizente com ela, ou seja, não
há uma explicação absurda, apenas uma explicação mal aplicada por falta de verificação
com a realidade).

38
Portanto, as inversões de direções que ocorrem durante a notação musical, de
que falávamos anteriormente, ou mesmo os outros erros que ocorrem durante esse
processo, não parecem resultado de falhas no processo de abstração empírica. Elas
parecem ser fruto de abstrações reflexionantes (ou refletidas) ainda não completamente
desenvolvidas.
Em outro de seus experimentos, Piaget (1995, p. 236) também buscou observar a
alternância entre a diferenciação (reflexionamento do processo de abstração
reflexionante, ou observação apenas das características aparentes) e a integração
(reflexão) ao longo do desenvolvimento. A diferenciação é marcante durante as fases em
que há pouca abstração reflexionante e predomínio de abstração empírica. A integração
é resultado do predomínio da abstração reflexionante sobre a abstração empírica.
Desse modo, na fase I (fase inicial do desenvolvimento) há constatação de
diferenças graças à realização de abstrações empíricas, e começo de diferenciação, em
virtude das primeiras coordenações possibilitadas pela abstração reflexionante nascente.
Nos estágios seguintes, a abstração reflexionante e, posteriormente, a abstração
refletida, se aprimoram permitindo coordenações mais desenvolvidas e o próprio
desenvolvimento da integração. Cabe reafirmar que as abstrações refletidas são mais
tardias, na linha de desenvolvimento, que as abstrações reflexionantes (PIAGET, 1995,
p. 236-237).
Concluindo sua abordagem, Piaget (1995, p. 287-288) sintetizou o
desenvolvimento das formas de abstração. Segundo ele, no primeiro nível de
desenvolvimento há predomínio da abstração empírica e a abstração reflexionante
nascente assume o papel de elaborar quadros assimiladores para aquele tipo de
abstração, ou seja, a abstração reflexionante passa a permitir a apreensão e compreensão
dos dados fornecidos pela abstração empírica, principalmente graças à interferência da
representação. No segundo nível, a abstração reflexionante se torna capaz de engendrar
a forma (a “lei de funcionamento”) daquilo que é observado, mas graças à intervenção
da abstração pseudo-empírica, de modo que “os resultados dos reflexionamentos e das
reflexões permanecem materializados nos objetos transformados e enriquecidos pelas
atividades do sujeito” (PIAGET, 1995, p. 287). No terceiro nível, a abstração refletida
torna possível a realização de reflexões sobre reflexões e, dessa forma, também permite
a formação de um pensamento propriamente reflexivo.
É curioso observar que, de acordo com Piaget (1995, p. 289), na medida em que
ocorre o desenvolvimento da abstração reflexionante e da abstração refletida, a
abstração empírica também se desenvolve. Segundo esse autor, quanto mais as formas
se desenvolvem, melhor se torna a apreensão dos conteúdos, ou seja, a “apreensão de
observáveis até então não-assimiláveis, mesmo a título de simples constatações”
(PIAGET, 1995, p. 289). Desse modo, características do objeto não observadas (ou
observadas de forma equivocada) podem passar a sê-lo com o desenvolvimento da
reflexão.
Esse parece ser o caso da percepção de alterações melódicas. É comum (ao
menos durante as situações de ensino de Percepção Musical) que alterações ascendentes
no sétimo ou sexto grau sejam ignoradas durante a notação de músicas em tonalidades
menores. Parece que a interferência de conhecimentos teóricos sobre a formação de
escalas menores, por exemplo, é capaz de corrigir esse tipo de erro de leitura ou de
apreensão do que foi ouvido. Nesse caso, os conhecimentos teóricos podem ser
relacionados (graças a uma reflexão) com o que foi ouvido, para que a melodia ouvida
seja melhor verificada e, desse modo, para que as alterações sejam percebidas. Em

39
síntese, esse parece ser um caso em que conhecimentos sobre a forma de organização de
tonalidades menores influem sobre a percepção do conteúdo, ou seja, influem sobre o
modo como uma realidade específica (uma música) é apreendida.
Essa observação de Piaget sobre o desenvolvimento da abstração empírica,
fundado sobre o desenvolvimento da abstração reflexionante e refletida, apenas reforça
a ideia de que o modo como “lemos” a realidade não depende pura e simplesmente de
processos perceptivos, mas depende do desenvolvimento do pensamento e da sua
capacidade de reflexão.

4. Conclusões
Ao longo deste artigo pudemos observar que a identificação e a notação de
estruturas musicais, que ocorre durante as atividades de aprendizagem de Percepção
Musical, parece relacionar-se com o processo de abstração conforme proposto por
Piaget (1995).
Como aponta a Epistemologia Genética, as abstrações se desenvolvem ao longo
de três etapas, durante as quais ocorre a passagem das abstrações empíricas às
abstrações pseudo-empíricas, reflexionantes e, por fim, refletidas. Ao longo desse
processo de desenvolvimento o sujeito se torna cada vez mais apto a interpretar a
realidade a sua volta.
O desenvolvimento da identificação e da notação de estruturas musicais parece
seguir as mesmas linhas de desenvolvimento da abstração, uma vez que esse processo
de identificação/notação pode ser entendido como um processo de abstração, capaz de
retirar informações do real e oferecer formas de compreensão a essa realidade.
Observamos que, também no caso da identificação e notação de estruturas
musicais, o desenvolvimento parece ocorrer em três etapas, durante as quais o sujeito
supera os equívocos de notação, característicos de uma abstração empírica e
refleionante ainda pouco estruturada e insuficiente para resolver os problemas propostos
nas situações tradicionais de aprendizagem de Percepção Musical; o desenvolvimento
passa à realização de abstrações pseudo-empíricas, caracterizadas pela atribuição de
significações musicais ao material ouvido através de materiais concretos, indo em
seguida ao domínio das abstrações reflexionantes e refletidas que permitem, em síntese,
a escritas de excertos musicais complexos.
Conforme apontamos na introdução deste artigo, o próximo passo deste trabalho
será a verificação, por meio de um experimento, das hipóteses aqui levantadas e
construídas a partir da Epistemologia Genética. Acreditamos que as linhas de
desenvolvimento aqui sugeridas serão verificadas em sua totalidade, e que essas
informações poderão auxiliar os educadores voltados ao ensino de Percepção Musical
na formulação de propostas de ensino com metodologias, objetivos e formas de
avaliação bem delineadas, e condizentes com o modo como ocorre o desenvolvimento e
a aprendizagem dos alunos.

Referências
BATTRO, A. M. Dicionário terminológico de Jean Piaget. Pioneira: São Paulo, 1978.
CAREGNATO, C. “Manifestações do conceito piagetiano de abstração na
aprendizagem de Percepção Musical”. In: Encuentro de Ciencias Cognitivas de la
Música, 11, 2013, Buenos Aires. Actas... Buenos Aires: ECCoM, p. 381-385.

40
OTUTUMI, C. H. V.; GOLDEMBERG, R. “Um olhar quantitativo sobre a situação da
Percepção Musical nos cursos de graduação em música: respostas dos professores
atuantes na área”. Encontro Nacional da Associação Brasileira de Educação Musical,
17, 2008. São Paulo. Anais... São Paulo: ABEM p. 1-7.
PIAGET, J. Abstração reflexionante: relações lógico-aritméticas e ordem das relações
espaciais. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.

41
O estágio supervisionado em música à distância da UnB:
estrutura curricular do curso e o olhar dos alunos dos polos
de Sena Madureira/AC e Cruzeiro do Sul/AC
Jordanna Duarte1, Paulo Roberto Affonso Marins2
1
Escola de Música e Artes Cênicas – Universidade Federal de Goiás.
Caixa Postal 131 – 74.001-970 – Goiânia – GO - Brasil
2
Departamento de Música – Universidade de Brasília (UnB).
Caixa Postal 4318 – 70.904-970 – Brasília – DF – Brasil
jordannaduarte@gmail.com, pramarins@gmail.com

Resumo. Este artigo trata sobre o olhar do aluno do curso de Licenciatura em Música a
Distância da Universidade de Brasília no que tange a disciplina Estágio Supervisionado em
Música III. Para tal, iniciamos nossa reflexão partindo dos pressupostos da Educação a
Distância (EaD) no âmbito do Sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB), como também
dispomos sobre o Projeto Político Pedagógico do referido curso de música. Em específico,
tratamos sobre a disciplina de Estágio Supervisionado em música III e sua estrutura, focando,
na parte final, nos relatos dos alunos sobre sua própria trajetória no estágio, sobre a
disciplina em questão, sua relação com o tutor e sobre o desenvolvimento da prática na
escola. A partir dos relatos, analisamos os resultados obtidos visando elaborar propostas que
possibilitem melhorias da disciplina para suas próximas ofertas.
Abstract. This article is about the view of the students of the undergraduate distance education
program in music of Universidade de Brasília (UnB) concerning the Supervised Internship III
course. We started this research by making reflections about distance education under the
Open University of Brazil (UAB) system. Additionally, we discussed the political-pedagogical
project of the UnB program focusing specifically on the Supervised Internship III course and
its structure. We also analyzed the reports made by the students in aspects such as: their
trajectory in the internship, the course itself, their relationship with the tutors, and the
development of their practice in schools. Following the reports, we provided a discussion
based on the results obtained in order to elaborate proposals for improvements in the course
for its next offerings..

1. Universidade Aberta do Brasil (UAB) e Universidade de Brasília (UnB)


A UAB é constituída por diversas universidades públicas que atendem grande parte da
população com dificuldades para iniciar uma formação universitária, articulada aos três
níveis governamentais (federal, estadual e municipal) buscando proporcionar uma
universidade pública de qualidade principalmente nos estados e municípios com baixos
índices de desenvolvimento humano (IDH) e de desenvolvimento da educação básica
(IDEB) que, na grande maioria, estão localizados no interior do Brasil.
O Programa Universidade Aberta do Brasil insere-se em uma política
maior do Governo Federal que busca ampliar e interiorizar a oferta de
ensino superior no país por meio da educação a distância, uma vez que
um número significativo de universidades se encontra na faixa
litorânea do território nacional, fazendo-se necessário um esforço para
o atendimento a populações tradicionalmente alijadas de políticas
públicas dessa natureza (FERNANDES, GOMES, 2011, p. 6).
A UnB é uma das pioneiras no ensino superior a distância no país, pois, já em
seu projeto original de 1961, previa o emprego de tecnologias na educação. De 1979 a
1985, em parceria com a Open University da Inglaterra iniciou a oferta de vários cursos
não presenciais e, desde então, tem empregado o ensino a distância em toda a sua

42
estrutura pedagógica tanto no ensino presencial, com o uso de tecnologias quanto
diretamente no ensino a distância.
Através de parcerias com o Ministério da Educação a UnB ampliou de forma
regular as demandas de formação superior a distância, oferecendo os seguintes cursos
de licenciatura e bacharelado: Administração, Artes Visuais, Biologia , Educação Física,
Geografia, Letras, Música, Pedagogia, Teatro e Administração Pública.
Também adotou um modelo de educação a distância expandindo o seu número
de vagas e garantindo também um ensino de qualidade fundamentado num programa
politico-pedagógico que ampliasse, na graduação a distância, o conhecimento e a
utilização de ferramentas pedagógicas de software, baseada em sistemas gerenciadores
de conteúdo. Desde 2005, a plataforma de apoio pedagógico é baseada no software
Moodle1.

2. O curso de Licenciatura em Música a distância da UnB


O curso de Licenciatura em Música a Distância da UnB iniciou em 2007 e, conforme
seu Projeto Político Pedagógico, enfatiza a formação do educador musical em seus
diversos contextos de atuação, levando em consideração
fornecer subsídios teórico-práticos para desenvolver um futuro
educador musical reflexivo, com autonomia e conhecimento para
mobilizar saberes e competências condizentes com seu contexto de
atuação. (Projeto Político Pedagógico, 2011, p. 6-7).
Para a implantação do projeto uma base de concepção de aprendizagem foi
adotada. Trata-se da concepção construtivista de Jean Piaget e a sócio-construtivista de
Vygotsky que procuram demonstrar que ao se deparar com dificuldades ou problemas,
o aluno tente resolve-las por um movimento próprio de busca de soluções apelando para
uma operação de flexibilidade de esquemas mentais já adquiridos ao longo da vida e
que não lance mão de respostas aprendidas ou solucionadas somente pelo tutor a
distância2. Nesse sentido, o papel da mediação é essencial para todo o processo de
ensino-aprendizagem em ambiente virtual, pois os alunos vão construindo o
conhecimento a partir das relações estabelecidas individual e coletivamente com o
grupo, com os tutores e com as ferramentas disponibilizadas na plataforma, quais sejam
textos, vídeos, fóruns de interação e chats.
A concepção construtivista poderá melhor adequar-se à
consecução deste projeto, uma vez que ela exerce atribuições que
requerem, constantemente, a busca de indagações, da construção de
opiniões e da elaboração de pesquisas. Assim, o aluno da educação a
distância, apoiado pelo tutor, seguirá ao seu ritmo próprio e entenderá

1
Plataforma criada em 2001 por Martin Dougiamas da Universidade de Perth, Austrália.
Trata-se de um ambiente de aprendizagem dinâmico que podemos chamar de Sistema de Manejamento de
Cursos (Course Manegement System - CMS).
2
Atua a partir da instituição mediando o processo pedagógico junto aos estudantes. A
principal atribuição é o esclarecimento de dúvidas através de fóruns de discussão pela Internet,
videoconferências, entre outros. Também promove espaços de construção coletiva de conhecimento,
seleciona material de apoio e sustentação teórica aos conteúdos e, frequentemente, participa dos processos
avaliativos de ensino-aprendizagem junto com os docentes (MEC, 2007).

43
que é fazendo que se aprende (Projeto Político Pedagógico, 2011, p.
12-3).
Assim, o foco passa a ser a construção do conhecimento e não o conhecimento
repassado via unilateral professor-aluno também concilia-se a informação curricular
com as várias possibilidades que o acesso a web promove, em um espaço menos rígido
que a sala de aula. Em relação à cooperação entre o alunos, o ambiente virtual de
aprendizagem incentiva não só a autonomia mas também a autoria, ou seja, são grupos
(alunos e tutores) que cooperam entre si numa estratégica didática capaz de fomentar a
produtividade do aluno.
Para DUARTE e PACHECO (2010) a prática pedagógica a distância inclui todo
o apoio que a instituição disponibiliza, presencial e virtual, ao processo de
aprendizagem de um indivíduo ou do grupo. Neste aspecto a mediação assume papel
fundamental para a prática da tutoria a distancia.
Segundo TIJIBOY et all (2009) cabe ao tutor “mediar o processo de
apropriação/construção do conhecimento partindo do nível de conhecimento real, aquilo
que o aluno previamente tem conhecimento [...], para um nível de desenvolvimento
potencial, que é aquilo que este será capaz de aprender” (s/p). Dentro das ações ou
categorias de mediação, os autores definem que o tutor deve direcionar o foco do aluno
para a tarefa exposta (focalização), propiciar expansão do pensamento do aluno através
de explicações e comparações emitidas pelo mediador (expansão), auxiliar o aluno a
compreender o significado dos conteúdos e/ou atividades (significação), expressar seu
envolvimento afetivo com o aluno através do incentivo a participação e a iniciativa do
mesmo (afetividade), expressar sua satisfação com o empenho do aluno, elogiando e
explicando o motivo (recompensa), intervir no sentido de auxiliar o aluno a organizar
sua ação, implicando em planejamento para alcançar o objetivo (regulação), orientar o
aluno sobre como proceder, abrangendo comportamentos, atitudes, procedimentos
específicos da modalidade EaD (gerenciamento) e promover questionamentos e
perguntas ao aluno visando a solução de um problema, provocando o raciocínio critico
do aluno (reflexão).
A divisão das atividades são concentradas tanto no polo, que são unidades físicas
que propiciam apoio presencial aos estudantes, quanto na própria UnB. De acordo com
o Projeto Político Pedagógico (2011), a atuação no polo conta com: a) coordenador de
polo, que é o responsável pelas condições de permanência do aluno no curso bem como
por todas as atividades dos cursos ofertados, b) tutor presencial, que auxilia os alunos na
resolução das dúvidas tanto quanto ao ambiente virtual quanto às disciplinas, de acordo
com a instrução do tutor a distância.
Na UnB temos: a) coordenador operacional de ensino de graduação a distância,
que está diretamente responsável pela articulação política entre UAB e UnB; b)
coordenador do curso, que fomenta pedagogicamente a implementação do Projeto
Político Pedagógico; c) coordenador de tutoria, indicado para acompanhar e
supervisionar as atividades dos tutores; d) coordenador pedagógico, que acompanha o
desenvolvimento de disciplinas pelos professores autores e revisores assegurando a
integração de conteúdos, atividades e cronogramas; e) professores autores, responsáveis
pela produção do material didático de suas disciplinas; f) professores supervisores
compromissados em acompanhar todas as atividades de rotina e atuar junto aos
professores tutores e, g) tutores a distancia, que são o elo entre os alunos e a instituição
além de serem facilitadores de aprendizagem.

44
O currículo do curso é divido em quatro eixos, a saber: 1) acesso, com
disciplinas como fundamentos do curso e estratégias de ensino e aprendizagem a
distância; 2) fundamentação pedagógica, que engloba a leitura e produção de textos,
bem como teorias da educação, psicologia e construção do conhecimento e antropologia
cultural; 3) formação musical, focada na execução de instrumento3 principal e optativo e
a prática em conjunto, disciplinas de criação, percepção e estruturação musical e as
práticas musicais da Cultura e, 4) formação em educação musical, com as práticas de
ensino e aprendizagem, investigação e pesquisa em educação musical, história,
tendências, métodos e teorias da educação musical e regimentos legais além dos
estágios supervisionados.
O curso tem duração mínima de 4 anos, divididos em no mínimo 8 semestres ou
16 bimestres, contemplando uma carga horaria mínima de 3.015 horas/aula ( o mínimo
exigido por Lei é 2800 h/a) sendo divididas em: 1) práticas: 510 h/a; 2) estágio: 480 h/a;
3) conteúdo curricular: 1815 h/a e, 4) atividades complementares: 210 h/a.

3. A disciplina de estágio supervisionado III


O Estágio Supervisionado em Música III é uma disciplina obrigatória de 8 créditos com
carga horária de 120 horas/aula distribuídas em 16 semanas. É ofertada no curso de
Licenciatura em Música da UnB para os alunos do 7o período com foco para a atuação
em escolas públicas de educação básica, podendo ser realizado tanto no Ensino
Fundamental II como no Ensino Médio. Os alunos em situação de estágio contam com a
supervisão da professora da disciplina de Estágio da UnB e a colaboração direta do tutor
à distância no Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA) Moodle. Assim, é a
oportunidade que o estudante tem de desenvolver a prática em sala de aula, construindo
e desenvolvendo atividades de ensino musical, além de passar pela reflexão de teoria e
estratégias metodológicas de sua prática.
A referida disciplina está dividida em três etapas: 1) elaboração de projeto de
estágio e observação de aulas na escola; 2) atuação na escola e, 3) apresentação final do
estágio e elaboração do relatório final. Na primeira e última etapa o foco é a abordagem
teórica por meio de leituras e discussões sobre textos, vivências educacionais,
apreciações de vídeos de seminários, como também na realização de tarefas escritas.
Na segunda etapa o foco é a atividade prática de atuação nas escolas, a elaboração de
planejamentos de aulas e relatórios, bem como a participação em discussões e
apresentações das experiências vividas no estágio e, na terceira o aluno apresenta os
resultados obtidos ao longo das semanas em formato de relatório final que também é
apresentado ou via webconferência ou por vídeo gravado que é enviado como tarefa no
AVA Moodle. Neste vídeo, deve constar o conhecimento desenvolvido pelo estagiário
durante a disciplina e sua atuação em sala de aula, incluindo sua reflexão sobre a
atuação, literatura estudada e aprendizagem musical.
É imprescindível que o estagiário cumpra no mínimo 87,5% de presença na
atividade de atuação prática na escola para ser aprovado na disciplina. Como ele atuará
em duas aulas durante 9 semanas, são no total 18h de estágio.

3
O aluno poderá escolher entre teclado e/ou violão. Instrumentos ofertados do 1 o ao 7o
períodos.
45
4. O olhar do aluno sobre a disciplina de ESM III nos polos de apoio
presencial de Sena Madureira e Cruzeiro do Sul
Durante o período de 10 de março a 29 de junho de 2014, 10 (dez) alunos cursaram a
disciplina, sendo: 5 (cinco) alunos de Primavera do Leste/MT, 3 (três) alunos de Sena
Madureira/AC e 2 (dois) alunos de Cruzeiro do Sul/AC. Para este estudo, focamos nos
alunos dos polos do Acre por entendermos que seus relatos nos trouxeram reflexões
importantes sobre melhorias na referida disciplina.
Somente um aluno não apresentou seu produto final, pois, não atendeu aos
prazos solicitados na disciplina. Os demais, abordaram os temas: musicalização através
da prática de canto coral, instrumentos alternativos no acompanhamento de canções e,
dois alunos, trabalharam com percussão corporal no acompanhamento de canções.
Também produziram ao final da última semana de estágio apresentação musical na
escola, como forma de demonstrar os resultados obtidos.
Ao final do semestre eles relataram no AVA Moodle, no fórum semanal da
disciplina, suas considerações sobre os aspectos: a) a disciplina, levando em
consideração o formato proposto, as atividades, as leituras disponibilizadas; b) a
participação/colaboração do tutor à distância; c) sobre o desenvolvimento do estágio na
escola, e d) o próprio percurso (envolvimento no trabalho proposto para as três etapas).

Relato dos alunos:


Aspecto: A disciplina, levando em consideração o formato proposto, as
atividades, as leituras disponibilizadas.
Aluno A: A minha trajetória percorrida na disciplina foi bastante diversificada e
ao mesmo” tempo desafiadora, pois o formato proposto fez com que eu pudesse buscar
um caminho inovador e rico em aprendizado, e no inicio achava que não ia conseguir,
pois a atuação nas aulas fez com que tivesse um olhar diferenciado da prática musical
dentro e fora da escola. As atividades foram sem dúvidas muito importantes para o
aprendizado eficaz dentro da disciplina, pois proporcionou uma leitura aprofundada em
textos que a gente precisava para desenvolver o estágio amplo e objetivo.
Aluno B: Bem para mim foi melhor que o esperado, pois a cada estagio é um
degrau que subimos logo quando começamos a estagiar no estagio 1 eu por exemplo
tive muita dificuldade para atuar, saber planejar e trabalhar em sala de aula e com os
estágios que estamos realizando a cada semestre vamos aprendendo algo novo, novas
experiências enfim, estamos nos aperfeiçoando e nos preparando para futuramente. E os
conteúdos trabalhados neste semestre na disciplina estavam ricos em conhecimentos
então acredito que tivemos mais facilidade para realizarmos as tarefas.
Aluno C: Falar de minha trajetória é como falar de desafios em todos os
sentidos. Realmente esse momento que vivi foi cheio de situações que me tornaram
mais forte, porém muito difíceis de se ultrapassar. Cheguei ao ponto de achar que não
conseguiria concluir, pois lidar com problemas de saúde e fazer um estágio não foi nada
fácil. Houve momentos em sala de aula que me superei, pois estando sob efeito de
remédios e me sentindo muito mal de saúde ainda assim consegui dar minhas aulas e
com a ajuda de todos estou hoje aqui relatando minha trajetória como professor nesse
estágio. Poderia ter lido e me aprofundado mais um pouco sobre as performances de um
professor ao lidar com os ritmos diferentes que os alunos têm e quanto às atividades
tenho certeza que foram importantes.

46
Aluno D: Gostei muito da organização da disciplina, seu formato, as atividades,
os textos para orientação e leitura, nos ajudaram bastante durante nossa trajetória.

Aspecto: A participação/colaboração do tutor à distância.


Aluno A: Na minha interação entre o professor, tutor e os colegas vejo como
uma chave para alcançar um grande sucesso na disciplina, pois é através deste contato
que mesmo sendo a distância proporcionou um acervo rico em informações, que sem
dúvidas me ajudou e muito no decorrer do estágio. E hoje podemos contar com recursos
como, por exemplo, Skype, Facebook, Chat e dentre outros que só facilita a nossa
aproximação de quem está distante.
Aluno B: Minha interação acredito que foi sempre produtiva com a tutora ela
sempre muito atenciosa tirando duvidas via skype ou mensagens no fórum, acredito que
não deixamos nada a desejar. Com a minha professora que me ajudou no estagio sempre
tive o apoio dela ela sempre me ajudou sempre tivemos um bom relacionamento entre
estagiaria e professor tanto que tivemos bons resultados no final do estagio graças a
Deus deu tudo certo apesar de alguns imprevistos conseguimos finalizar com sucesso;
Aluno C: Penso que interagi de forma a expressar dúvidas e conseguir tirá-las no
que tange a tutor e professor. Quanto aos demais colegas estagiários não houve um
contato mais profundo devido ao distanciamento ao vir de Cruzeiro do Sul para Rio
Branco. De qualquer forma os Chats serviram como veículo de comunicação.
Aluno D: As orientações foram claras e favoráveis, as professoras foram
flexíveis e atenciosas, sempre nos dando força para prosseguir adiante.

Aspecto: Desenvolvimento do estágio na escola.


Aluno A: No desenvolvimento do estágio na escola foi para mim um tanto
quanto desafiador e ao mesmo tempo amplo e eficaz. Pois no inicio achava que não ia
conseguir desenvolver as minhas aulas nas turmas que escolhi, o ensino médio. Então,
vi que estava completamente enganado, e que apesar de uma turma sair melhor que a
outra, tudo acabou bem, e mesmo com algumas dificuldades, consegui levar até o final.
Aluno B: O desenvolvimento do estagio na escola questão de apoio da equipe
gestora escola sempre foram muito atenciosos principalmente a professora presencial
que me acompanhou nos estágios. Confesso que no começo logo após a primeira aula
de teoria me desanimei um pouco por motivo de poucos se interessarem, contudo a
professora presencial sempre me motivava me falava que era assim mesmo e que não
deveria desanimar enfim com o decorrer das semanas pude perceber que ouve grande
interesse por parte daqueles alunos que realmente querem aprender e as aulas ocorreram
tudo como o planejado, a equipe gestora gostou dos resultados e espero que eles possam
continuar a dar apoio para os próximos estágios como o que tive.
Aluno C: Sempre é um desafio entrar no mundo escolar e principalmente como
estagiário. O medo inicial é inevitável porém com o passar do tempo passamos a ter
mais confiança em nós mesmos para adentrar uma sala de aula e passar aos alunos algo
que eles não conhecem. A frase que diz que o professor aprende no mesmo tempo em
que ensina é realmente verdade.
Aluno D: Aprendi bastante durante este estágio. Foi uma experiência nova e
maravilhosa para mim.

47
Aspecto: O próprio percurso (envolvimento no trabalho proposto para as três
etapas).
Aluno A: O meu percurso foi desenvolvido na forma que pudesse trabalhar
compreendendo da melhor maneira todos os assuntos propostos. Acredito que o
envolvimento no trabalho proposto para as três etapas ocorreu espontaneamente, é claro
que teve momentos de incertezas e muitas dúvidas, mas que foram sanadas no decorrer
das semanas, pois a cada nova etapa, pude aproveitar as informações que eram
colocadas de uma maneira ampla e objetiva. Portanto, as três etapas possibilitou um
grande aprendizado, para que futuramente possamos atuar como professores de música,
e que através disso possamos por em prática tudo que aprendemos, melhorando assim
todos os nossos conhecimentos em música.
Aluno B: Meu percurso foi uma forma de desafio, pois a cada semana era
um obstáculo que tinha que vencer, eu sempre preocupada com o conteúdo que planejei
para eles por motivo de termos pouco tempo mais tentei fazer da melhor forma possível,
acredito que eles até se divertiram um pouco as duas primeiras etapas foram de teoria e
quando chegamos na parte legal que foi o coral não tivemos a oportunidade de finalizar
da forma que havia planejado por motivos de alguns imprevistos, no entanto no deu
tudo certo todas as dificuldades e preocupações foram resolvidas com sucesso.
Aluno C: Penso que se eu não estivesse fazendo tratamento de saúde meu
feedback nesse sentido teria sido melhor. Consegui me envolver no trabalho docente e
caminhar dentro do que foi proposto, tive dificuldades que foram sanadas no decorrer
do processo e que também serviram como degraus para que pudesse ver erros e tentar os
acertos. As três etapas possibilitaram um melhor envolvimento com minha atuação
como professor.
Aluno D: Dificilmente tudo sai como planejamos, mas as mudanças muitas das
vezes são favoráveis para nosso melhor desempenho. Foi isso que aconteceu comigo,
planejei de uma forma e depois tive que mudar, mas tudo deu certo no final.

5. Resultados obtidos a partir dos relatos dos alunos e considerações finais


O presente artigo teve o intuito de relatar a experiência dos alunos dos polos de
Cruzeiro do Sul e de Sena Madureira, ambos no estado do Acre, com a disciplina de
Estágio Supervisionado em Música III, levando em consideração o formato da
disciplina e seu produto final disponibilizado em relatórios e apresentados ao final do
semestre por videoconferência ou por vídeo gravado enviado na plataforma AVA
Moodle ao tutor à distância.
Percebemos pelos relatos que a disciplina de estágio supervisionado III agregou
às teorias percorridas pelos alunos ao longo da graduação a distância experiências
acadêmicas, práticas e de reflexões, levando-os a construir seu próprio caminho
acadêmico de forma mais autônoma, já que eles não foram amparados pelo professor
supervisor ou tutor à distância no campo de atuação do estágio. Seus questionamentos
foram assumidos como forma de aprendizagem por todo o grupo participante da sala de
aula virtual e juntos, mediados pelo olhar atento do tutor. Percebeu-se também que os
alunos avançaram em aspectos referente à solução de problemas e verticalização de
reflexões, buscando aprofundar tanto a teoria quanto a prática em campo.
A avaliação por parte dos alunos quando assumem que nem tudo o que
planejam é executado à risca (aluno A) e, por conseguinte, assumem a responsabilidade

48
para a solução dos problemas de forma autônoma, corrobora com os aspectos
pedagógicos que estruturam os programas de educação à distância, quer sejam, os
aspectos das teorias construtivista e sócio-construtivista e também, nos mostra que o
caminho da educação a distância tem potencial para suprir as lacunas educacionais do
ensino superior nas regiões mais afastadas dos grandes centros (leia-se região Sul e
Sudeste, especificamente), o que está ao encontro da proposta do Sistema UAB, cujo
objetivo é o de expandir e interiorizar a oferta de cursos e programa de educação
superior no país através do ensino a distância. Corroborando com o estudo de Ramos e
Medeiros (2009), que destaca as políticas públicas que têm o intuito de democratizar o
acesso ao ensino superior, buscando amenizar as exclusões sociais e práticas
discriminatórias, por meio da EaD.
Quando é relatado as dificuldades em “atuar, saber planejar e trabalhar em sala
de aula” (aluno B) observamos que ainda é possível melhorar a disciplina dando mais
subsídios aos alunos no que concerne à questão do planejamento das aulas e a postura
diante da turma, quer sejam com mais webconferências com os tutores à distância
refletindo sobre a questão junto aos alunos quer seja na fundamentação teórica sobre o
tema. Ainda observando o relato do aluno B, podemos enfatizar junto à escola que cede
o espaço para o estágio a importância de cumprir a agenda prévia do estagiário e
garantir que suas aulas possam fluir de maneira mais organizada objetivando o produto
final na escola, que são as apresentações musicais decorrentes de todo o trabalho
realizado ao longo das semanas.
O aluno C nos relata que “poderia ter lido e me aprofundado mais um pouco
sobre as performances de um professor” nos mostra que ainda é possível dinamizar a
mediação do tutor à distância sendo mais atento às dificuldades encontradas por seus
alunos. Esse dinamismo pode ser mais trabalhado no envio de mensagens questionando
possíveis problemas e buscando soluções conjuntas para que o aluno à distância consiga
obter mais qualidade em seus trabalhos. Sobre o envolvimento dos demais estagiários é
relatado que “não houve um contato mais profundo devido ao distanciamento ao vir de
Cruzeiro do Sul para Rio Branco”, nos levando a refletir sobre a importância dos
encontros presenciais como ferramenta de compartilhamento de reflexões e soluções de
problemas entre os alunos. É possível garantir que os encontros presenciais sejam mais
eficazes e que os alunos participem em todas as semanas, promovendo atividades que
enriqueçam a prática e a reflexão conjunta.
Os relatos dos alunos nos mostraram como ainda é possível melhorar a
disciplina de Estágio Supervisionado III para sanar os desvios que os alunos relataram
ao final do semestre.
Assim, percebe-se que a educação a distância vai avançando naquilo que é um
dos seus fundamentos: levar ensino superior à regiões do país que mais necessitam,
fomentando o ingresso de jovens e adultos à formação continuada e - no que tange
especificamente ao curso de Licenciatura em Música a Distância da UnB - oportunizar
o ensino da música na graduação o que leva, consequentemente, à formação de
profissionais para atender às exigências da educação musical, principalmente, nas
escolas de educação básica da rede pública do país.

Referências
DUARTE, Gilmar Pereira; PACHECO, Jossivaldo de Carvalho. (2010) “As funções do
tutor online”. VII Congresso Brasileiro de Ensino Superior a Distância. Novembro,
3-5, 2010. Cuiabá/MT. ESUD. Anais. Pp. 53-9..

49
FERNANDES, Maria Lidia Bueno; GOMES, Ana Lucia de Abreu. (2011) “Trajetórias
das Licenciaturas da UnB: em busca de um olhar qualificado sobre a Educação a
Distância”. In: Trajetórias das Licenciaturas da UnB. EAD em Foco. FERNANDES,
Maria Lidia Bueno (org.). 1a edição. Editora da Universidade de Brasília: Brasília.
pp . 4-17.
Ministério da Educação. (2007). Referenciais de qualidade para a educação superior a
distância. Secretaria de educação a distância. Brasília.
Projeto Político Pedagógico. Curso de Licenciatura em Música. (2011). Universidade de
Brasília. Curso de educação a distância.
RAMOS, Wilsa Maria; MEDEIROS, Larissa. (2009). “A Universidade Aberta do
Brasil: desafios da construção do ensino e aprendizagem em ambientes virtuais”. In:
SOUZA, A.M., FIORENTI, L.M.R., RODRIGUES, M.A.M. (Orgs.). Educação
superior a distância: Comunidade de Trabalho e Aprendizagem em Rede (CTAR).
Brasília. pp.37-64.
TIJIBOY, Ana Vilma; CARNEIRO, Mara Lúcia Fernandes; WOICIECHOSKI, Lediane
Raquel; PEREIRA, Eliane Almeida. (2009). “Compreendendo a mediação do tutor a
distância”. Revista Renote: Novas Tecnologias na Educação. Vol. 7 n. 1, julho, 2009.
CINTED-UFRGS. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/index.php/renote/article/view/13913.
Último acesso em: 06/09/2014.

50
Guitarreando: Estudo do suporte visual, sonoro e
simbólico para o ensino de violão
Marcos Thadeu S. Melo, Damián Keller,
Ana Elisa Bonifácio Barros, Floriano Pinheiro da Silva
Núcleo Amazônico de Pesquisa Musical (NAP)
Universidade Federal do Acre
BR 364, Km 04 - Distrito industrial - CEP: 69.920-900 Rio Branco - Acre
Agosto 2014
{marcosthadeu.melo@gmail.com, musicoyargentino@gmail.com,
alaudista@hotmail.com, absoluts12@hotmail.com}

Resumo. No presente projeto estudamos a relação entre ação e percepção no desenvolvimento


de suporte para o ensino de instrumentos de cordas dedilhadas, com destaque para o violão
clássico. O projeto envolve o design e o reaproveitamento de tecnologia musical e
educacional, a conceituação e o teste de propostas metodológicas através de aplicações
educacionais, abrangendo a elaboração de princípios embasados em dados experimentais para
escolha e estruturação de ambientes músico-educacionais integrados.
Abstract. In this project we study the relationship between action and perception in the
development of support for the teaching of plucked-string instruments with emphasis on the
classical guitar. The project involves the design and repurposing of musical and educational
technology, the conceptualization and testing of methodological proposals through
educational applications, including the elaboration of principles grounded on experimental
data for the choice and implementation of integrated musical-educational environments.

Definimos os ambientes músico-educacionais integrados (ameis) como espaços de


experimentação que permitem a participação ativa dos membros na elaboração,
refinamento e aferição de materiais e atividades de aprendizagem musical. Esses
espaços abrangem ambientes formais e informais, adotando a atividade musical como
unidade estruturadora, em substituição ao foco na aquisição de conhecimentos isolados
do seu contexto de aplicação. Os ameis propõem a experiência como forma de
ampliação do acervo de técnicas e conceitos dos alunos. Portanto, a principal
característica desses espaços é o seu perfil prático e flexível.
Uma dificuldade encontrada em trabalhos recentes em educação musical é o
descompasso entre a disponibilidade de novas ferramentas de ensino e o impacto do uso
dessas ferramentas no desenvolvimento musical dos usuários [Lima 2013]. Se por um
lado a popularização dos aplicativos musicais permitiu a ampliação do interesse pelas
atividades criativas [Juul 2010] – o caso dos jogos musicais como Guitar Hero e
Rocksmith é o exemplo mais chamativo [Assunção 2012] – ainda é cedo para responder
a pergunta mais alarmante: esse tipo de tecnologia tem impacto positivo ou negativo na
musicalidade dos participantes?
Para definir experimentalmente o problema enfrentado pelo ensino musical
embasado na utilização de instrumentos acústicos, podemos separar dois aspectos-chave
na nossa pesquisa [Sloboda 2005] (1) o estudo dos aspectos cognitivos do fazer
musical-instrumental, e (2) o estudo dos fatores biomecânicos. Duas estratégias podem
ser aplicadas no design de ambientes educacionais que visem o desenvolvimento
cognitivo desde a perspectiva da indissolubilidade entre ação e percepção: (a) o enfoque
holístico, que propõe a realização de atividades multimodais como forma de explorar a
relação entre movimento corporal e resultados sonoros complexos [Wilson 2001], e (b)
o enfoque modular, que sugere a combinação de ações motrizes simples para a

51
construção progressiva de resultados sonoros complexos [Kobori e Takahashi 2010]. O
enfoque holístico enfatiza os fatores relacionados à fluidez cognitiva, visando a
integração entre domínios diversos do conhecimento. O enfoque modular focaliza o
desenvolvimento da memória de curto prazo, ampliando a capacidade de integração de
elementos na dimensão temporal. No entanto, a aplicação efetiva dessas duas estratégias
só é possível se forem levadas em consideração as limitações ergonômicas da relação
executante-instrumento. Essas limitações são espaciais – dependem das dimensões do
instrumento e do corpo do intérprete –, funcionais – existe uma relação direta entre a
ação e o resultado sonoro – e cognitivo-fisiológicas – a execução resulta da capacidade
física e mental do intérprete no momento em que é realizada a ação.
As implicações biomecânicas da execução instrumental vêm sendo estudadas
dentro do campo do desenvolvimento de instrumentos digitais musicais (ver pesquisa de
Marcelo Wanderley relatada em Keller e Budasz 2010). Apesar das possibilidades de
aplicação dessa pesquisa no âmbito educacional [Hiyama et al. 2008], as barreiras
técnicas e econômicas na implementação de novos instrumentos musicais impedem a
sua adoção no âmbito da educação formal. No Brasil, esse vácuo acaba sendo ocupado
pelo uso de pacotes comerciais, que nem sempre estão sustentados em estudos
confiáveis. Como alternativa, Visi et al. (2014) sugerem a utilização de instrumentos
musicais tradicionais, propondo uma definição ampla que engloba tanto os instrumentos
acústicos quanto os instrumentos eletrônicos que adotam os mecanismos de interação já
padronizados.
Complementarmente, a popularização de emuladores instrumentais para
dispositivos portáteis está transformando o padrão de referência do que é fazer música
fora do âmbito musical acadêmico [Tanaka 2004]. Esse fenômeno é um dos problemas
focados na pesquisa emergente em música ubíqua (conferir os anais do IV UbiMus para
exemplos atuais de uso no campo educacional – UbiMus 2013).
A estratégia adotada no presente projeto estende os avanços recentes no estudo
de fenômenos musicais ubíquos para o suporte das ações educacionais dentro do campo
instrumental. É importante destacar que a utilização de instrumentos acústicos não
delimita o alcance do desenvolvimento cognitivo proposto pelas atividades
educacionais. Os instrumentos podem constituir ferramentas para a expansão da
capacidade musical dos alunos. O objetivo da nossa pesquisa não é atingir o virtuosismo
instrumental mas aproveitar a disponibilidade de recursos materiais de baixo custo (o
violão é o instrumento acústico mais popularizado no Brasil) para viabilizar a inserção
de um maior número de pessoas em atividades musicalmente relevantes desde o ponto
vista criativo. Tendo em mente esse objetivo estaremos aplicando modelos visuais,
sonoros e táteis de representação dos dados musicais [Brodsky et al. 2008], sem excluir
os padrões históricos de notação musical.

Objetivos (Geral e Específicos)


Objetivo Geral:
● Pergunta experimental: Quais modos de suporte têm melhores resultados para o
ensino de violão?
Objetivo Específico:
● Desenvolver três protótipos para o ensino de violão (básico) embasados em tipos
específicos de representação de dados musicais.
● Testar os três protótipos com grupos específicos de usuários.

52
● Avaliar qual forma de representação é a mais adequada para o ensino de violão
semipresencial.

Metodologia
Para estudar a relação entre ação e percepção, desenvolvemos três ambientes de suporte
para o ensino semipresencial de violão. As condições aplicadas são:
● Ambiente embasado na ação através do suporte visual;
● Ambiente embasado na ação do suporte sonoro;
● Ambiente embasado na representação simbólica da ação (com ênfase na
utilização da tablatura).

Para viabilizar a parte experimental do projeto, criamos exemplos de suporte


visual, sonoro e simbólico para atividades musicais, visando sua aplicação na segunda
fase - os experimentos com diversos grupos de sujeitos.

Perfil dos Sujeitos

Foram selecionados alunos sem nenhum conhecimento de execução de violão. Os


sujeitos foram distribuídos da seguinte forma: um grupo para aprendizagem por vídeo,
um para aprendizagem por som e um para aprendizagem mediante tablatura. Sendo que
o número de grupos foi 3 e o número de integrantes por grupo foi 5, houve um total de
15 participantes nas sessões. Desses 15 participantes, somente 3 sujeitos forneceram
dados para o experimento, incluindo dois homens e uma mulher com idades entre 20 e
29 anos. Os sujeitos preencheram o formulário ISE v.04 [Carroll et al. 2009; Keller et
al. 2011b] no inicio das atividades e responderam o questionário de desempenho CSI-
NAP [Keller et al. 2013b] para cada sessão.
Para as sessões envolvendo o suporte notacional, foram convidados músicos -
todos homens com idades entre 25 e 33 anos - com habilidades no instrumento violão,
com ênfase no violão clássico. Os três participantes eram conhecedores da simbologia
utilizada na tablatura.

Tabela 1. Perfil dos sujeitos - ISE v.04 [Carroll et al. 2009; Keller et al. 2011b].
estudo estudo
Sujeitos sexo sexo Idade escolaridade
musical musical

N mulheres homens 20 a 29 superior incompleto músicos leigos

6 1 5 6 6 3 3

Materiais
Para realizar as sessões experimentais foram utilizados os seguintes materiais:
● Suporte visual - vídeo com áudio compilado em MP4, utilizando um
microcomputador desktop com tela de LCD LED 24”;
● Suporte sonoro - áudio em formato em formato PCM, estéreo, 44,1 kHz, 16 bits foi
utilizado o mesmo material do suporte visual, o sujeito ouvia o som e imitava a
execução: um microcomputador desktop com caixas de som 3Wx2 RMS;
● Suporte simbólico - por tablatura. O experimento foi realizado no mesmo ambiente,
porém não foi utilizado o microcomputador. A tablatura que foi impressa em papel A4.

53
Procedimentos

Nos exercícios para a mão direita os sujeitos tinham o desafio de coordenar a execução
ao mesmo tempo em que se ouvia o som. Cada sujeito ficou livre para voltar a fazer os
exercícios quantas vezes achasse necessário. No exercício 5 com suporte de áudio, foi
solicitado que o sujeito a ouvisse o exercício e executasse por imitação. O exercício 10
utiliza todas as cordas. O vídeo mostra a execução indicando os dedos a serem
utilizados para tocar cada corda, o polegar tocando as cordas mi, la e re e o indicador,
médio e anelar as cordas sol, si e mi. No exercício 13 o sujeito utiliza a tablatura para
determinar as indicações das cordas e dos dedos a serem utilizados.
As sessões com os leigos ocorreram no intervalo do almoço. Esse era o horário
em que os sujeitos tinham disponibilidade para realizar os experimentos no seu local de
trabalho. os 15 participantes foram convocados para realizar a experiência na mesma
sala em dias diferentes. Os sujeitos preencheram o formulário CSI-NAP v.04 [Carroll et
al. 2009; Keller et al. 2011b] durante o intervalo entre cada atividade. Os dados
coletados foram utilizados para realizar a comparação entre as três condições
experimentais: áudio, vídeo e tablatura.
As sessões com músicos ocorreram em uma sala de aula na Universidade
Federal do Acre (UFAC). Três músicos realizaram uma sessão utilizando a tablatura
como material de suporte. O objetivo foi comparar o desempenho entre músicos e leigos
de forma de complementar as observações feitos com leigos para os três tipos de
suporte. As sessões com músicos ocorreram com as mesmas condições as dos leigos. A
única diferença foi que com os músicos realizaram todos os exercícios em um único dia.
No inicio do experimento os três participantes preencheram o formulário ISE v.04 e nas
pausas entre uma sessão e outra, eles preencheram o questionário de desempenho CSI-
NAP v.0,04 [Keller et al. 2011b]. Os sujeitos músicos tiveram a liberdade de fazer o
exercício quantas vezes achassem necessário.

Aferição
Para aferir o nível de suporte a criatividade, foi utilizada a ferramenta CSI-NAP –
versão adaptada pela equipe do NAP do Creativity Support Index que consiste em um
formulário eletrônico com os itens apresentados na tabela 1, incluindo um campo para
observações por parte dos sujeitos [Keller et al. 2011b]. Os sete fatores de avaliação
visam determinar o tipo de suporte necessário para realizar atividades criativas (tabela
2). A escala de aferição da versão 0,04 é de -2 a +2 e cada magnitude tem um descritor
semântico correspondente: -2 para discordo totalmente, -1 discordo parcialmente, 0 não
sei, 1 concordo totalmente e 2 concordo totalmente (tabela 3). Para fins de aplicação, as
perguntas foram impressas em folhas de papel e o questionário foi apresentado ao
sujeito imediatamente após a conclusão de cada atividade.

Tabela 2. CSI-NAP v. 0,04: Adaptação do índice de suporte a criatividade


proposto por [Carroll et al. 2009].
construto (fator) avaliação (no formulário) escala
relevância o resultado foi bom
-2 a + 2
originalidade o resultado foi original

54
esforço cognitivo (inverso de facilidade) a atividade foi fácil
engajamento fiquei atento na atividade
diversão a atividade foi divertida
produtividade a atividade foi produtiva
colaboração foi fácil colaborar

Tabela 3. CSI-NAP v. 0,04: Escala Likert e descritores semânticos.


valor numérico equivalente semântico
-2 discordo totalmente
-1 discordo parcialmente
0 não sei
1 concordo parcialmente
2 concordo totalmente

Resultados com leigos


Na discussão a seguir apresentamos primeiro a média e depois o desvio padrão dos
resultados para cada fator, utilizando a seguinte nomenclatura (Média ± Desvio Padrão)
(tabela3). Primeiro apresentamos os dados do conjunto de 13 exercícios e depois os
resultados para cada condição estudada: som suporte de áudio, audiovisual (vídeo) e de
representação simbólica (tablatura).
Tabela 4. Resultados gerais obtidos com leigos.
relevância originalidade facilidade atenção diversão colaboração produtividade

Média 2 1,5 0,6 1,9 0,8 1,7 1,8

Desvio 0 0,8 1,4 0,2 1,8 0,4 0,3


padrão

De acordo as respostas dos sujeitos leigos, o conjunto de exercícios foram


positivos nos seguintes fatores: relevância (2 ± 0), atenção (1,9 ± 0,2) originalidade (1,5
± 0,8), produtividade (1,8 ± 0,3). Já os fatores facilidade (0,6 ± 1,4) e diversão (0,8 ±
1,8) tiveram avaliações negativas, porém com grande divergência entre as atividades.

Tabela 5. Resultados da condição áudio.


colaboraçã
relevância originalidade facilidade atenção diversão produtividade
o

Média 2 0,8 -0,6 1,7 2 1,3 2

Desvio padrão 0 1,0 1,4 0,4 0 0,6 0

De acordo com as respostas coletadas, o uso do áudio como suporte apresentou


avaliações positivas nos seguintes fatores: relevância, diversão e produtividade (2 ± 0).
Os fatores atenção, colaboração e originalidade tiveram desempenho um pouco inferior
(1,7 ± 0,4; 1,3 ± 0,6; 0,8 ± 1,0), respectivamente. Porém, o item facilidade (-0,6 ± 1,4)
não foi avaliado positivamente.
Tabela 6. Resultados condição vídeo.
originalidad colaboraçã
relevância facilidade atenção diversão produtividade
e o

55
Média 2 1,9 0,6 2 1,8 2 1,8

Desvio
0 0,2 0,7 0 0,3 0 0,3
padrão

Na condição de suporte com vídeo, as respostas colhidas foram positivas nos


fatores relevância e colaboração (2 ± 0). Originalidade, diversão e produtividade
também tiveram desempenho alto (1,9 ± 0,2; 1,8 ± 0,3; 1,8 ± 0,3). As avaliações
inferiores foram no item facilidade (0,6 ± 0,7).
Tabela 7. Resultados condição tablatura.
facilidad atençã
relevância originalidade diversão colaboração produtividade
e o

Média 2 2 2 2 -1,3 2 1,8

Desvio padrão 0 0 0 0 1,4 0 0,3

Utilizando a tablatura como suporte, cinco fatores apresentaram escores


máximos: relevância, originalidade, facilidade, atenção e colaboração (2 ± 0). Porém, o
fator diversão teve avaliação negativa com desvio padrão alto (-1,3 ± 1,4).

Resultados com músicos


No estudo realizado com sujeitos músicos podemos ver que os escores maiores
corresponderam aos fatores relevância e colaboração (1,8 ± 0,3). Originalidade,
facilidade e produtividade tiveram resultados próximos, (1,7 ± 0,5; 1,6 ± 0,4; 1,5 ± 0,4).
O menor desempenho correspondeu aos fatores atenção e diversão (1,4 ± 0,7).
Tabela 8. Resultados gerais obtidos com músicos.
relevância originalidade facilidad atenção diversão colaboração produtividade
e

Média 1,8 1,7 1,6 1,4 1,4 1,8 1,5

Desvio padrão 0,3 0,5 0,4 0,7 0,7 0,3 0,4

Discussão dos resultados e conclusões

O projeto abrangeu os seguintes procedimentos: 1. a elaboração de material de suporte e


a documentação para uso desse material, 2. o convite e seleção dos sujeitos para
realização dos experimentos, 3. a execução das sessões de experimentos envolvendo a
coleta de dados, 4. a análise dos resultados. O material do experimento se encontra no
NAP para consulta e utilização pela comunidade acadêmica. Todas as sessões foram
documentas por meio de formulários e gravadas em vídeo ficando disponíveis no
Estúdio NAP (UFAC) para futuros estudos.
Para realização das seções de experimentos com leigos foram utilizados os
intervalos do almoço no ambiente de trabalho dos sujeitos. A facilidade e a
disponibilidade de tempo ocioso nesses horários viabilizaram a efetividade do ambiente
músico-educacional integrado, tendo impacto direto nas atividades musicais. Ao longo
do projeto observamos que os sujeitos desenvolveram o gosto em aprender a tocar
violão.
Em relação aos fatores econômicos – o custo da infraestrutura necessária para a
realização das atividades – foram aproveitados os espaços de trabalho dos participantes.
Desta feita, não foi preciso a deslocamento dos sujeitos para realizar as sessões.

56
Acreditamos que o aproveitamento dos espaços disponíveis para atividades cotidianas
aumenta a validade ecológica do experimento. Esta proposta é apoiada pelos resultados
obtidos em estudos anteriores no campo do design oportunista [Keller et al. 2013b].
Ao concluir o projeto temos uma multiplicidade de dados obtidos através de três
tipos de suporte em aplicações no ensino de violão clássico (áudio, audiovisual e
simbólico). Visando o design e o reaproveitamento de tecnologia musical e educacional,
os resultados permitem fundamentar a elaboração de princípios para escolha e
estruturação de ambientes músico-educacionais integrados (ameis). Segundo os sujeitos
leigos, o suporte audiovisual - vídeo com áudio - e o suporte sonoro - áudio em formato
PCM - foram os avaliados positivamente. O suporte simbólico - representado neste
estudo pela tablatura - não obteve bons escores por parte dos sujeitos leigos no fator
diversão, porém o desempenho foi positivo nos outros fatores. A comparação do uso de
tablatura por parte de sujeitos leigos e músicos indica que o impacto negativo se limita
ao fator diversão. Esse resultado aponta para o uso de sistemas simbólicos de
representação nos estágios mais avançados do ensino do instrumento, mas indica que o
suporte sonoro e audiovisual pode ser mais apropriado para uso nos estágios iniciais.

Referências
ASSUNÇÃO, A. B. M. (2012). “Música, entretenimento e cognição: análise
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58
Metodologia Dalcroze: Uma ação de extensão na UFRR
Jefferson T. S. M. Silva
Curso de Música - Universidade Federal de Roraima
Av. Cap. Ene Garcez, 2413 - Aeroporto - 69310.000 - Boa Vista - RR – Brasil
jefferson.mendes@ufrr.br

Resumo. Este artigo descreve a primeira Ação de Extensão realizada pelo Curso de Música
da UFRR, “A pedagogia Dalcroze nos dias atuais – uma educação por e para a música”,
ministrada pelo Prof. Iramar Rodrigues do Instituto Dalcroze de Genebra, com foco principal
na formação educacional dos licenciandos da universidade.
Abstract. This paper describes the first Action of University Extension undertaken by the
Course Music UFRR, "The Dalcroze pedagogy these days - one for education and for music",
taught by Prof. Iramar Rodrigues Insitute of Dalcroze in Geneva, with a primary focus in
educating undergraduate students of the university.

1. O Curso de Música da UFRR


O Curso de Licenciatura em Música da Universidade Federal de Roraima foi criado no
ano 2013, através da Resolução nº 001/2013-CUni, sendo o primeiro curso na área no
Estado de Roraima, um sonho antigo de muitos músicos e apontado como um desejo de
ser implantado através de consulta a comunidade roraimense.
Com o envolvimento da comunidade do Estado de Roraima em
atividades artístico-musicais, constata-se existência de uma demanda
entre os inúmeros profissionais que já atuam diretamente com a
música. Dentre eles, estão os músicos e regentes de orquestras, bandas
e coros, que muitas vezes necessitariam ter uma melhor qualificação,
além dos profissionais com pouca qualificação que atuam como
formadores musicais (UNIVERSIDADE FEDERAL DE RORAIMA,
p. 7, 2014).
Com a aprovação da Lei nº 11.769/08 a oferta de vaga nos Cursos de Música
passam a ser uma necessidade do Estado Brasileiro, “nesse contexto que o curso de
graduação em Música-Licenciatura da UFRR vem desempenhar a função de propiciar
um espaço educativo no ensino superior para desenvolver competências na área da
música, visando uma formação integral do futuro músico profissional e educador
musical favorecendo o ensino, a pesquisa e a extensão” (idem).
A licenciatura conta com sete professores com concepções distintas o que poderá
privilegiar os licenciados.
Formação Acadêmica Áreas Específicas Áreas de Atuação
01 Graduado
Teoria e Percepção Musical
(Licenciatura) Educação Musical
Performance Musical
01 Mestre Violão
Prática Instrumental Violão
(Bacharelado / Performance)
01 Graduado Educação Musical
(Licenciatura) Educação Musical Musicologia
01 Mestre Flauta Análise Musical
(Licenciatura / Análise Musical) Prática Instrumental Flauta

59
Educação Musical
02 Especialistas Educação Musical Música e Tecnologia
(Licenciatura e Bacharelado) Teclado Performance
Prática Instrumental Teclado
01 Doutorando Educação Musical Musicologia
(Bacharelado e Musicologia) Canto Prática Instrumental Canto
Tabela 1. Áreas de Formações e Atuações Professores de Música UFRR
Tendo a preocupação na formação de um Educador Musical dinâmico os
professores reformularam o Projeto Político Pedagógico do curso de Música com uma
gama de disciplinas teóricas e práticas e/ou instrumental “para aulas em grupo, o que
adentra nas possibilidades do ensino de música na Educação Básica, atender de forma
mais completa às necessidades educacionais e musicais de Boa Vista e região, que
compreendem tanto os instrumentistas, os cantores e os educadores musicais”
(UNIVERSIDADE FEDERAL DE RORAIMA, p. 5, 2014).
2. Metodologia Dalcroze como uma Ação de Extensão
Com viés para a licenciatura o Curso contém diversas disciplinas para o conhecimento,
fortalecimento e aprimoramento das áreas teórico-práticas da educação musical, sendo
umas das abordagens a ser discutida ao longo do curso, a Metodologia Dalcroze.
Émile Jacques-Dalcroze (1865-1950) é considerado um dos grandes pedagogos
musicais da primeira metade do século XX, foi o criador de um sistema de
ensino rítmico musical através do movimento corporal, que se difundiu a partir de
1930.
A técnica, que promove a integração da melodia musical com a
expressão corporal, foi desenvolvida inicialmente pelo pedagogo para
ensinar música a seus alunos. Com o tempo, os princípios dessa
pedagogia – de trabalhar com o corpo vivenciando os elementos
musicais – passaram a influenciar outras áreas, como a dança, as artes
cênicas e a educação física (CARVALHO, p. 1b, 2014).
Um dos grandes incentivadores da Metodologia Dalcroze é o brasileiro Iramar
Rodrigues, naturalizado suíço ele é professor do Instituto Dalcroze de Genebra há 40
anos. Tem participado de vários congressos de Rítmica e Educação Musical
e ministrado cursos em vários países, como França, Suíça, Espanha, Brasil, Argentina,
Uruguai, México, República Dominicana, Tailândia, como representante do
Método Dalcroze.
Com contato preliminar com as professoras Rosângela Duarte (UFRR) e
Rosemara Barros (UFAM) propuseram a vinda do professor Iramar a Boa Vista. Através
da Coordenação do Curso de Música, foi proposta a Ação de Extensão: A Pedagogia
Dalcroze Nos Dias de Hoje “Uma Educação por e para a Música”, com as seguintes
justificativas:
1. Para divulgar um pouco as ações do pedagogo musical Emile Dalcroze, o curso
ofereceria uma Oficina (40h) e uma Palestra (2h) horas, ministradas pelo Prof.
Iramar Rodrigues.
2. Um dos motivos para se aprovar a ação é que atende a relação entre as ações do
projeto de extensão e o estabelecido nos Projetos Políticos Pedagógicos do
Curso envolvido, no Plano Nacional de Extensão Universitária e o Plano de
Desenvolvimento Institucional (PDI) da UFRR.

60
3. Previsto a ser discutida nas disciplinas de Educação Musical do Curso de
Música, a Metodologia Dalcroze visa à aprendizagem com a utilização do
movimento e da sensação corporal. Por meio desse ensinamento, as atividades
propostas na experiência musical transformam-se em conhecimento durante um
processo altamente interativo.
Dalcroze buscou traduzir a linguagem musical em gestos e expressões
corporais, processo denominado como Plástica Animada. Para cada
elemento da música (fórmulas de compasso, figuras rítmicas,
intervalos melódicos, acordes, fraseados melódicos e progressões
harmônicas) deveria existir uma correspondência gestual. A
PLÁSTICA ANIMADA é um dos três pilares da Rítmica, juntamente
com a leitura ativa de partituras, o SOLFEJO e a IMPROVISAÇÃO,
primeiramente de gestos e movimentos corporais e, em seguida, de
melodias vocais e instrumentais, individualmente (solista) e em grupo
(coro) (MADUREIRA, 2012).
Ação além de oferecer formação para os acadêmicos de música, também teria a
perspectiva de atender diretrizes do PDI 2011-2016:
2.8.1.1. Fomentar conceitos inovadores de ensino que
ultrapassem o espaço físico da sala de aula, estabelecendo a
relação educação-sociedade, onde o ponto de partida e de
chegada são a ciência, o educando e as condições sociais – um
verdadeiro espaço de expressão e construção;
2.8.1.5 Estimular a prática docente como espaço para a reflexão
e ação comprometida, com indissociabilidade entre as atividades
de pesquisa, ensino e extensão e com o contexto social;
2.8.2.1. Executar atividades de pesquisa articuladas com o
ensino e a extensão, de forma permanente e integrada, através da
geração, divulgação e aplicação de novos conhecimentos;
2.8.3.3. Produzir conhecimento, contribuindo para viabilizar a
relação transformadora entre a UFRR e a comunidade;
2.8.3.4. Promover o conhecimento, através da cultura; a
democratização do acesso ao saber e a intervenção solidária
junto à comunidade, para a transformação social
(UNIVERSIDADE FEDERAL DE RORAIMA, 2011).
O evento foi aberto ao publico (acadêmicos da UFRR e a comunidade geral),
uma vez que é possível trabalhar a capacidade de aprimoramento artístico e musical por
meio de atividades corporais que nos leva a vivenciar os elementos do sensorial e da
própria sensibilidade tátil humana, sem a necessidade de um conhecimento inicial na
área de música.
A realização da Palestra tinha como foco divulgar e propiciar conhecimento a
estudantes e sociedade geral sobre a Pedagogia e o Método Dalcroze, carga horária de 2
horas, 30 de junho de 2014, o evento era gratuito com um público esperado de 70
pessoas.

61
Figura 1. Participantes da Oficina em atividade de Sensibilização Corporal
A Realização da Oficina como objetivo de divulgar, propiciar e estimular ações /
atividades no sentido de musicalização e expressões corporais voltadas a Pedagogia e o
Método Dalcroze, carga horária de 40 horas, 30 de junho a 04 de julho de 2014. O
evento tinha a inscrição nos valores de R$ 50,00 (estudantes) e R$ 80,00 (público
geral), público esperado de 60 pessoas.

Número de Participantes
Ação Número de Vagas
com 75% de presença
17 Acadêmicos e Professores do
Oficina 60 Curso de Música
13 Público Geral
21 Acadêmicos e Professores do
Palestra 70 Curso de Música
21 Público Geral
Tabela 2. Participação nos Eventos
Foram preenchidas 50% das vagas para a Oficina e 60% das vagas para a
Palestra, sendo uma média de 19 acadêmicos e professores do Curso de Música. Um
dado interessante é que somente três dos seis4 professores do curso de licenciatura
tiveram interesse em participar dos eventos, uma realidade comum em cursos com
bacharéis e licenciados.

4
No período do evento, um dos professores se encontrava em afastamento para
doutorado sanduíche.
62
As ações foram realizadas nas dependências da coordenação do curso de música,
durante o turno de manhã e tarde para a oficina, já a palestra no turno noturno, do
auditório do Centro de Ciências Humanas (CCH) da UFRR.
3. A ação de extensão na opinião do público participante
Ter o retorno do público participante para a coordenação do evento é uma forma de
avaliar a ação de extensão, temos abaixo relatos do ponto de vista de acadêmicos do
Curso de Música da UFRR, professores de música da cidade e público em geral sobre a
Oficina e Palestra realizada.
Para a acadêmica da primeira turma de música, Raísa Lima, “este curso me
trouxe novos horizontes de como lidar com o ensino da Música e pretendo usá-lo com
meus futuros alunos, uma vez que o método Dalcroze foi criado para abranger pessoas
das classes menos favorecidas, não vejo tantos obstáculos em se ensinar desta forma
em escolas públicas ou de ensino regular em geral. Claro, que algumas atividades teriam
que ser levemente modificadas, mas nada que um pouco de criatividade do professor
não supere”.
Na opinião do professor Áquilas Torres, ter o professor Iramar lecionando na
primeira ação de extensão do Curso de Música da UFRR é de ampla importância, visto
que Dalcroze é considerado um dos grandes pedagogos musicais do Século XX.
Dalcroze “veio transformar a educação musical de tal maneira revolucionária por isso é
importante termos trazido este professor [Iramar] que é tão importante para este
método” (YOUTUBE, 2014).
Em entrevista para TV Universitária a diretora da Escola de Música de Roraima,
afirma que aprendeu com a pedagogia uma forma de sair do tradicional, com exemplos
reais, para ela a Metodologia Dalcroze é “um método mais adequado não só para as
crianças, mas para o adulto também, o método é muito bom!” (YOUTUBE, 2014).
Para o professor Marcos Vinicius, a experiência de 40 anos do professor Iramar
Rodrigues com o Método Dalcroze é um grande ganho não só para o Curso de Música
da UFRR, mas para todo o estado de Roraima que poderá elevar a educação nas escolas
regulares e escolas livres de música.
De acordo com outra acadêmica, Beatriz Teixeira, “o educador musical deve
estar sempre se atualizando e aprimorando suas técnicas, pois desta forma alcançará
meios de atingir seu objetivo, fazendo o aluno aprender. E como cada pessoa é um
indivíduo singular, é natural que a forma de obtenção de conhecimento varie também,
logo o professor tem que estar preparado para saber conduzir atividades que facilitem o
aprendizado do aluno. Com a experiência que tive da oficina, percebi que a metodologia
Dalcroze pode ser utilizada tanto num ambiente formal de ensino como no informal,
pois após o entendimento desta prática, o professor pode criar atividades que envolvam
a rítmica e os movimentos, adaptando-as ao contexto no qual está inserido”.

4. Considerações
A proposta de extensão atingiu os objetivos propostos: Divulgar a Metodologia
Dalcroze no Estado de Roraima; Propiciar um diálogo sobre as ações do pedagogo
Émile Dalcroze; Estimular a educação musical voltada para a área de musicalização;
Promover a integração da melodia musical com a expressão corporal; Desenvolver
ações / atividades com o corpo vivenciando os elementos musicais.

63
Com a Oficina e a Palestra propiciou-se um diálogo inicial sobre as ações do
pedagogo Émile Dalcroze dentro do Estado de Roraima, estimulando a musicalização
inovadora através de jogos que promovam a integração da melodia musical com a
expressão corporal, como pode ser percebido em alguns relatos.
O desenvolvimento da ação gerou impacto admirável aos participantes, uma vez
que promoveu pela primeira vez no estado o diálogo sobre a pedagogia e metodologia
utilizada pelo educador Émile Dalcroze. Com 30 participantes na Oficina e 42 na
Palestra.
A ação que tinha um cunho didático com as disciplinas do curso de música teve
a participação não só dos acadêmicos do curso como estudantes de dança, teatro,
pedagogos entre outros. Com grande aceitação do público pelo evento já se espera que
no próximo ano o prof. Iramar Rodrigues possa novamente continuar a dialogar e trocar
experiências com os acadêmicos da UFRR e a comunidade geral a respeito da
Metodologia Dalcroze.

Referências
CARVALHO, R. “Aprendizagem da música através do movimento”. Folha de Boa
Vista, Boa Vista, 05 jun. 2014. Caderno B, p. 1b.
MADUREIRA, J. R. “Rítmica Dalcroze e a formação de crianças musicistas: uma
experiência no Conservatório Lobo de Mesquita”. In: Revista Vozes dos Vales:
Publicações Acadêmicas, nº. 02, Ano I, 10/2012, p. 1-12.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE RORAIMA. Plano de Desenvolvimento Institucional
da UFRR, 2011.
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YOUTUBE. “Reportagem sobre a Oficina da Metodologia Dalcroze”. MUSICA UFRR,
10 jul. 2014. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=9-6D0ccgmA0.
Acessado em 07 set. 2014.

64
Ações de extensão: relato de experiência coral em projeto de
extensão universitária
Edna Andrade Soares
Departamento de Artes – Universidade Federal do Amazonas (UFAM)
musicedna@gmail.com

Resumo. Esta comunicação relata a experiência de discentes do Curso de Licenciatura da


UFAM que participaram do Projeto de Extensão Coral da Escola de Arte da UFAM em 2012.
O Coral é formado por alunos da graduação do Departamento de Artes - música e artes
visuais, técnicos administrativos e comunidade adjacente. São cogitadas as aprendizagens
alusivas à atuação dos discentes, as relações desses com os participantes do coral e as
dimensões relevantes para a formação dos futuros professores de música. As dimensões dessa
interação em que teoria e prática se interligam ultrapassam os limites do desenvolvimento
musical dos discentes e da aprendizagem musical do coral, pois tem impactos tanto na esfera
musical quanto na pessoal e social.
Abstract. This communication reports the experience of students of the Degree Course UFAM
who participated in the Project Choir Extension School of Art UFAM in 2012. The Choir is
formed by graduate students of the Department of Arts - music and visual arts, technical
administrative and adjacent community. The learning is alluding to the work contemplated of
students, the relationships with these participants choir and relevant dimensions to the
training of future music teachers. The dimensions this interaction in which theory and practice
are interlinked exceed of the beyond the limits of musical development of students and
learning musical choir because has impacts both on the musical sphere as in personal and
social.

Introdução
O Coral da Escola de Arte do Programa de Extensão PIBEX/MEC/SESu vem
desenvolvendo em conjunto com o projeto de Extensão Técnica Vocal (PACE) desde
2011 atividades no Departamento de Artes da UFAM, voltadas a alunos de graduação,
técnicos administrativos, comunidade em geral. Em 2012 o Coral contou com a
participação de cinco alunos da disciplina Canto Coral II dessa instituição que tiveram a
oportunidade de participar do processo de formação docente; planejando e refletindo
sobre as ações pedagógico-musicais, desenvolvendo e praticando suas habilidades numa
experiência enriquecedora entre extensão e ensino. Tal participação nos projetos,
principalmente no coral da Escola, possibilitou um crescente envolvimento com a
comunidade e motivação para o desenvolvimento musical dos discentes e coralistas,
resultando nas apresentações performáticas.
No Amazonas, pouca publicação há na área de coral, mas podemos destacar o
trabalho de Cláudia Sampaio da Costa et al no artigo Música e Transformação no
Contexto da Medida Socioeducativa de Internação que desenvolve o projeto de canto
coral junto a adolescentes que cumprem medida socioeducativa de internação no Estado
do Amazonas, cujo objetivo principal é desenvolver recursos musicais, sociais,
cognitivos e afetivos através do canto. Logo, este relato é um dos motivos para o
incentivo de trabalho coral na região.

65
1. Envolvimento dos discentes com o coral
A participação dos alunos no projeto de extensão teve início no segundo semestre de
2012 quando era ministrada a disciplina de Canto Coral II do Curso de Licenciatura em
Música da UFAM, momento em que foi possível perceber o interesse de alguns alunos
pela área de canto. Após a divulgação dos projetos de extensão Coral da Escola de Arte
e Técnica Vocal (Pace) que serve também de apoio ao Coral, o que se seguiu, após um
tempo de preparação nas aulas da graduação foi o envolvimento dos discentes nos dois
projetos de extensão que estava sob nossa, supervisão e regência.
O trabalho coral na qualidade de projeto de extensão possibilita a aproximação
com a comunidade através de diversas atividades pertinentes a este tipo de atividade em
grupo. Tais ações envolvem uma gama de conhecimentos técnicos e requer do regente
que por vezes é ator, músico, preparador vocal, psicólogo, etc. um grande esforço em
sua condução. [...] “Por apresentar-se como um grupo de aprendizagem musical,
desenvolvimento vocal, integração e inclusão social, o coro é um espaço constituído por
diferentes relações interpessoais e de ensino-aprendizagem”. Fucci Amato (2008, p.1).
Porém, o conjunto dessas habilidades vai além do preparo técnico-musical, requer a
condução de um grupo formado de diferentes pessoas que tem anseios diferentes tais
como motivação, educação musical e convivência em um grupo social.
Assim, tanto a equipe formada pelos alunos quanto o coral puderam
experimentar uma troca de saberes a partir do convívio envolvendo música. Os
discentes, ao mesmo tempo em que colaboravam com o trabalho musical, se envolviam
cantando ou tocando no coral.

2. Desenvolvimento dos ensaios com Ramon, David, Robert, Evelyn e Elizeu


Mediante as muitas atividades e funções concernentes ao coral, deu-se início uma árdua
preparação com os discentes quanto ao trabalho vocal, a começar com a conscientização
quanto aos cuidados e higiene da voz e exercícios de técnica vocal. A técnica vocal
consiste no treinamento da voz e tem por base exercícios de relaxamento, respiração,
uso da caixa de ressonância e vocalização. Behlau & Pontes (1995). Mediante a vasta
literatura disponível para o trabalho com voz foram utilizadas as de Mathias (1986),
Coelho (2008), Pacheco & Baê (2006). A frente do coral, os discentes iniciavam suas
atividades com exercícios de interação e quebra gelo para que todos se conhecessem e
tivessem um momento de descontração. Após um período de aquecimento iniciado com
relaxamento, trabalho respiratório e vocalize, a turma se dividia em naipes e em salas
separadas, os alunos tornavam-se monitores responsáveis pela aprendizagem de cada
naipe do coral. O repertório e os ensaios eram previamente escolhidos e planejados em
reuniões e em sala de aula com os alunos que se tornaram monitores bolsistas no
semestre seguinte.
Com a participação dos discentes o trabalho coral tornou-se otimizado, pois
após tempo de ensaio em separado, o grupo já tinha conhecimento e aprendizagem das
suas linhas melódicas, ou seja da sua voz , na peça musical; o que indicou a
relevância do trabalho em conjunto, democratizando tais atividades e tornando-as
significativas pelo partilhar das diferentes vivências que ampliam o trabalho dos
futuros educadores musicais.
3. Processo das atividades com o coral
Conforme a divisão do trabalho com os cinco discentes, considerando suas habilidades e
preferências, os ensaios do coral acontecem às quartas-feiras com ensaio de naipe das

66
14h00 às 16h00 e sextas-feiras das 16h00 às 18h00 como ensaio geral, após o curso de
técnica vocal que começa as 14h30.
o PREPARAÇÃO DO AMBIENTE.
Momentos antes do ensaio os discentes preparam o ambiente para receber o
coral que ensaia na sala 06 do Departes da UFAM. Afastam as cadeiras
junto às paredes criando um espaço para que os participantes se deitem e
relaxem ao som musical que é executado ao piano ou através de CD’s
depois de um momento de quebra gelo.
o TÉCNICA VOCAL
São realizados os exercícios de técnica vocal universal: relaxamento,
respiração, vocalize e desaquecimento. Esse trabalho é conduzido por
Ramon, David, Robert e Evelyn ao piano. Após os exercícios de
relaxamento e aquecimento físico são realizadas atividades de respiração,
que na sua maioria é inspirada na metodologia de Dalcroze em que se
utiliza o movimento corporal associado à respiração. Em seguida realiza-se
a vocalização e finaliza-se com o desaquecimento no final do ensaio.
o MONITORIA.
Dos cinco alunos, quatro trabalham como monitores dos quatro naipes onde
cada um é responsável por ensaiar uma das vozes. Após o trabalho de
técnica vocal, os naipes soprano, alto, tenor e baixo ensaiam,
separadamente com os seus respectivos responsáveis, Evelyn, Elizeu,
Ramon e Robert, onde após uma hora de duração, se reúnem para o ensaio
geral com todos os naipes. Os ensaios realizados separadamente somente
com os naipes facilitam e agilizam o trabalho como todo.
o SECRETARIA.
Além do trabalho de monitoria vocal, contamos com o trabalho eficiente de
David um discente que atua também como secretário que cuida da
frequência dos coralistas e da atuação do grupo na rede social onde os
componentes do coral se comunicam. Utilizando-se também do meio
tecnológico o discente edita as peças musicais e as expõe através do
programa Finale, Áudio e Midi no grupo da rede social (Facebook). Esta
iniciativa serve para facilitar e reforçar a aprendizagem das vozes na peça
musical no horário disponível dos componentes do coral.

O conjunto das atividades dos discentes torna o trabalho coral eficiente e com o
tempo bastante otimizado, fato notório através da rápida aprendizagem do repertório.
Tal envolvimento dos monitores no coral trabalhando, cantando e tocando gerou
a criação de um grupo instrumental chamado Puxirum - palavra de origem indígena
que significa união de pessoas para planejar e realizar ações. Este grupo iniciou sua
atividade acompanhando o coral e logo se tornou um grupo independente que toca nos
eventos dentro e fora da universidade. As peças executadas pelo grupo foram arranjadas
por Elizeu um dos monitores que ensaia o grupo separadamente, a fim de otimizar o
trabalho. É interessante observar como o desenvolvimento de um trabalho musical a
exemplo do coral da Escola de Arte pode motivar e estimular a criação de outros grupos
musicais a exemplo do grupo Puxirum.

67
Gagnard (1974, p.19) ressalta a razão da importância da criação de grupos
musicais:
A formação de pequenos coros e orquestras, ao nível do ensino
infantil, primário, secundário e, evidentemente, universitário – porque,
desde que tenham uma formação musical de base, os estudantes
universitários de outros ramos poderão constituir agrupamentos
musicais – deverá projectar-se fora da escola, como meio de convívio
e de democratização da cultura musical.
A cultura musical pode ser democratizada a partir do partilhar dos trabalhos
musicais de grupos que motivados, desenvolvem e melhoram as suas habilidades de
forma prazerosa traduzidos nas apresentações, como podemos perceber na figura
abaixo:

Figura 1. Grupo Puxirum. Fonte: Próprio autor.


Tendo em vista o desenvolvimento do coral, em março de 2013 o mesmo
participou de forma expressiva do evento Encontro Musical, realizado com objetivo de
estimular o grupo e divulgar suas atividades, pois a apresentação é o reflexo de todo o
trabalho, é o resultado do desenvolvimento das muitas atividades executadas num coral.
A alegria por conta do evento foi contagiante, o grupo mostrou-se bastante motivado, e
isso se refletiu significativamente na diminuição do número de faltosos e aumentou a
adesão de outros componentes. A ideia do programa, bem como a sua execução, indicou
a partir da aprendizagem das músicas, da interação, envolvimento do grupo e a
expectativa no preparo e nos ensaios, e em todo o processo que antecede a tão esperada
apresentação performática, sem dúvida corroborou para esta motivação e
consequentemente, crescimento do grupo de forma geral.
4. Repertório e Performance
O repertorio do coral é eclético, mas prima por músicas regionais. As peças trabalhadas
no coral foram Glory to God de Hal H. Hopson, Humus de E. Matos/José Ma. Bezerra

68
- Arranjo Vocal: Ana Souza, Dona Ubensa de Chacho Echenique, arranjo de Liliana
Cangiano, Lamento de Raças de Emerson Maia, arranjo de Zacarias Fernandes, Bicho
Homem de Ronaldo Barbosa, C. Paulaim de Simão Assay, entre outras. Essas últimas
são interpretadas por cantores amazonenses e contam estórias de dois bois rivais
chamados Garantido e Caprichoso que fazem parte do folclore regional amazonense.
A performance foi o momento muito esperado pelo coral, pois representou todo
o esforço do trabalho executado. Ela é um importante meio de definição de identidades
e também de transformação social, visto o interesse comum dos participantes em fazer
música; é o espaço em que o indivíduo tem a liberdade de mostrar-se e defender seu
ideal e seus anseios. Pois é tocando e ou cantando que o indivíduo expressa-se de forma
mais real e natural, é no palco que o artista apresenta-se em todos os sentidos. Embora a
performance seja bastante valorizada pelo coral enquanto produto final é importante
salientar que é no processo que ela se desenvolve musicalmente e socialmente, pois no
trabalho em grupo há interação e troca de saberes. Dentro da etnografia de acordo com
Pinto (2001, p. 227) a performance musical não está somente no produto final que
envolve o trabalho com música, mas no processo de significado social, que está além
dos aspectos puramente sonoros. Esse partilhar de atividades no fazer artístico musical
retoma as ideias de Merriam (1964) e Hargreaves (1997), quanto às funções e usos da
música a favor do homem na sociedade. Sua utilização é muito importante, pois,
geralmente as pessoas escolhem músicas para acompanhar várias atividades ou
situações diversas. Eles consideram a música como um produto das atividades sociais,
assim a performance musical por abarcar esses elementos, responde aos ideais dos
autores supra citados.
Concordando com os autores acima quanto às funções da música e o fazer
artístico Figueiredo destaca:
As funções da atividade coral podem ser bastante diversas. O objetivo
de cantar em coral pode estar relacionado ao desenvolvimento de
habilidades técnicas, por exemplo, abrangendo questões de leitura
musical, percepção de elementos sonoros, técnica vocal e assim por
diante. A prática coral também pode contribuir para a ampliação do
universo sonoro dos participantes através da realização de repertório
diversificado. E também pode relacionar-se a experiências de
performance em grupo através de apresentações públicas dos trabalhos
realizados. Todas estas funções, e outras que poderiam ser agregadas,
podem ser observadas em diversos tipos de corais. [FIGUEIREDO,
2005, p. 363].
Dada a relevância da performance para o grupo, após a estimulante
apresentação ocorrida no Encontro Musical, o coral participou também da VII
Semana de Música na UFAM, em Junho de 2013, onde os monitores, juntamente
com os participantes do coral celebraram uma atividade que contou com a participação
e envolvimento de todos, inclusive de dançarinos vestidos de acordo com a música. As
relações interpessoais entre os participantes do coral foram bastante significativas para o
desenvolvimento dessas atividades em grupo que é crescente, prazerosa e motivadora.

69
Figura 2. Encontro Musical. Fonte: Próprio autor.

5. Aprendizagem dos monitores e coral: resultados


É interessante destacar como esses alunos se motivaram a partir do envolvimento no
trabalho coral, tornaram-se mais participativos, disciplinados e interessados nas
disciplinas, principalmente, Coral II. Salienta-se ainda o bom relacionamento
estabelecido entre os monitores e os integrantes do Coral, bem como a confiança deste
último nos monitores que prestavam atenção, com respeito, a tudo que era ensinado. As
atividades voltadas ao exercício de técnica vocal, estratégia de ensaio em separado onde
cada aluno se responsabilizava por um naipe, a utilização da tecnologia para o ensaio
individual do coralista utilizado como reforço na aprendizagem da peça musical, o
repertório ensaiado de acordo com a ordem progressiva de desenvolvimento, ou seja, da
peça considerada mais fácil à mais difícil, a organização e execução das apresentações
entre outros todos esses fatores contribuíram para o desenvolvimento e aprendizagem
do aluno e do coral, onde houve a oportunidade de desenvolver um trabalho em equipe.
Para nós docentes e discentes vinculados às atividades inerentes ao mundo
universitário, ressaltou-se o desenvolvimento do aprendizado musical, representado no
fazer artístico e no resultado a partir das apresentações do Coral Escola de Arte.
A relação entre extensão e ensino oportunizou uma reflexão a respeito dos
processos educativos envolvidos na teoria e prática e na relação professor-aluno que
acontece não somente no processo, mas, antes e depois da realização das atividades.
Esta interação permitiu a construção de um mecanismo de desenvolvimento musical
importante para os discentes monitores que se empenharam inicialmente, no
desenvolvimento do seu próprio aprendizado que foi repassado para o grupo coral onde
de forma positiva correspondeu aprendendo as peças musicais em curto espaço de
tempo. Foi notório e legítimo tal exercício para o desenvolvimento musical e
profissional dos futuros professores de música, pois tiveram contato com uma realidade
que só teriam em um tempo posterior e sem um maior acompanhamento e partilhar de
diferentes vivências advindas do grupo de monitores, professora e coral.
70
6. Considerações finais
Neste trabalho, buscou-se destacar a relevância da extensão universitária em
contribuição ao desenvolvimento do trabalho de discentes no Coral Escola de Arte
enfatizando a conexão teoria e prática.
Dada as atividades vivenciadas pelos discentes junto à aproximação destes com
a realidade do grupo coral, foi possível perceber a motivação e interesse destes em criar
estratégias para o trabalho coral apresentados através da divisão de grupo, envolvendo
todo trabalho de técnica vocal, ensaio, secretaria e performance, etc., além do maior
envolvimento no tocante a disciplina destes na sala de aula. A aplicação prática dos
conhecimentos adquiridos em sala de aula possibilitou o desenvolvimento e o
crescimento construídos a partir do contato com o ensino, o que não ocorreria de forma
semelhante caso os alunos se dedicassem somente a sala de aula.
É importante salientar que foi de suma importância para a atuação dos
discentes nas atividades a confiança, apoio e estímulo da parte docente, pois, além do
desenvolvimento no coral, eles também desenvolveram a própria autoconfiança, isto é,
perderam o medo de se colocarem a frente de qualquer trabalho musical com a
comunidade ou ate mesmo com os colegas de classe. É relevante o envolvimento entre
extensão e graduação na formação acadêmica dos discentes para viabilizar o
aprendizado através da aplicação, pois além de aperfeiçoar suas técnicas de
aprendizagem e enriquecer seus currículos, vivenciam experiências que fornecerão
subsídios para o trabalho futuro, além da contribuição com a sociedade.

Referências

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Abordagem Global na reabilitação vocal”. In: Avaliação e tratamento das disfonias.
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Leopoldo - RS, 2008.
COSTA, C. R. B. S. F. da et al. “Música e Transformação no Contexto da Medida
Socioeducativa de Internação”. Psicologia: Ciência e profissão, 2011, 31(4), 840-
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estudo em cursos superiores de licenciatura e bacharelado em música”. XV
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2005. Disponível em:
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FUCCI AMATO, Rita de Cássia. “Habilidades e competências na prática de regência
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Educação Musical, Porto Alegre, v. 19, 15-26, mar. 2008.
GAGNARD, Madalena. Iniciação musical dos jovens. 2. ed. Lisboa: Editora Estampa,
1974.

71
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IAMAMOTO, Marilda Villela. “Reforma do Ensino Superior e Serviço Social”. Revista
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Brasília: Valci, 2000.
JANNIBELLI, Emilia D´Anniballe. Musicalização na escola. 2. ed. Rio de Janeiro:
Poligráfica Limitada, 1980.
MERRIAM, Alan P. The anthropology of music. Evanaston: Northwester University
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MATHIAS, Nelson. Coral, um canto apaixonante. Brasília: MusiMed, 1986.
PACHECO, Cláudia; BAÊ, Tutti. Canto. Equilíbrio entre corpo e som. Princípios da
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e-extencao-universitaria). Acesso em: 10 jun. 2013.

72
Educação Musical em Pedagogias Sociais do Cotidiano

Lia Braga Vieira1

1
Programa de Pós-graduação em Artes – Universidade Federal do Pará (UFPA) Avenida
Magalhães Barata, nº 611 – CEP 66060-281 – Belém – Brasil

lia41braga@yahoo.com.br

Resumo. Neste artigo, reflito sobre situações de educação musical flagradas em pedagogias
ou práticas pedagógicas sociais, no cotidiano. O objetivo é apreender incorporações,
transformações e mobilizações e como estas se dão na educação musical escolar e
extraescolar local. Para tanto, valho-me da história oral, a partir de depoimentos coletados
em pesquisas por mim realizadas desde 1995 e publicadas entre 2001 e 2013. Minhas
reflexões, apoiadas em autores da Sociologia, permitiram-me perceber que as práticas
pedagógicas sociais relacionadas à música correspondem a representações musicais da
sociedade e a representações sociais da música, apropriadas em um processo silencioso,
invisível, longo, constante, eficaz e duradouro.
Abstract. In this article, I reflect on situations in music education caught pedagogies or
teaching social practices, in everyday life. The goal is to understand takeovers,
transformations and mobilizations and how they give in school music education and
extraescolar site. For this, I make use of oral history, from the testimonies collected in
surveys conducted since 1995 by me and published between 2001 and 2013 My reflections,
supported by authors of Sociology, allowed me to realize that social pedagogical practices
related to music correspond to musical representations of society and the social
representations of music, appropriate for a silent process, invisible, long, steady, effective
and lasting.

1. Introdução

Meu interesse em relação à história oral é recente. Explico. Nos últimos anos, realizei
pesquisas sobre as práticas de educação musical que correspondiam às práticas musicais
identificadas em partituras publicadas pela editora paraense Empório Musical na
primeira metade do século XX (VIEIRA, 2012; 2013) e senti necessidade de ouvir as
pessoas que participavam dessas práticas musicais tocando ou ouvindo − todos
professores de conservatórios locais. Eu queria e ainda preciso saber: como essas ou
outras músicas de mesmo gênero1 chegavam até essas pessoas? Como elas as
percebiam, ou seja, como se dava o processo de transmissão e aprendizagem?
1
Os resultados desta pesquisa (VIEIRA, 2012; 2013) indicam que os gêneros indicados nas partituras são
dançantes, à exceção da “Ave Maria”, para canto e piano, de Paulino Chaves (RN, 1883 − RJ, 1948).
Isso me interessava e ainda me interessa pelo fato de que as pessoas de um
modo geral não se dão conta sobre os processos “silenciosos”2 de educação musical.
Digo “silenciosos” porque estão relacionados aos sons do dia a dia, compondo as
rotinas do cotidiano, “naturalizados”, aos quais nem sempre se dá atenção e tampouco
se está atento aos seus efeitos.
Segundo Agnes Heller (2008: 31), é no cotidiano que se colocam “‘em
funcionamento’ todos os seus sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, suas
73
habilidades manipulativas, seus sentimentos, paixões, ideias, ideologias”, e por isso
mesmo nenhuma dessas capacidades se realiza “em toda sua intensidade” e em pleno
estado de autoconsciência. Talvez isto possa ser explicado pelo fato de que, segundo a
autora, há uma hierarquia necessária à organicidade da vida cotidiana (HELLER,
2008: 32), o que diminui ainda mais a intensidade do funcionamento de algumas
capacidades em relação a outras ou de sua ativação ou de seu funcionamento, ainda
que “a forma concreta da hierarquia não [seja] eterna e imutável”.
No entanto, ainda que as pessoas não se deem conta do quê, do como, do
quando e do quanto ouvem, ou dos efeitos de quando de fato se propõem a escutar, as
sonoridades presentes na rotina colaboram para a formação de modos de sentir, pensar
e agir em música e socialmente, apontando para uma educação musical não anunciada,
mas deflagrada.
As partituras às quais tive acesso não me deram as indicações suficientes sobre
o que se passava nas práticas musicais quanto às suas pedagogias, isto é, quanto aos
seus modos de “condução” da apropriação no campo da educação musical, ainda que
revistas da época3 apontassem, por meio da palavra escrita algumas opiniões.
Considerei, então, que os detalhes dos quais eu precisava eu os encontraria por meio
da história oral.
Cheguei a essa conclusão quando comecei a vasculhar os depoimentos orais de
professores de música que entrevistei para outra pesquisa (VIEIRA, 2001). Revendo
trechos transcritos, percebi sinais de que cada prática tem sua educação musical e que
isto faz parte das pedagogias sociais do cotidiano4, marcadas pelo “invisível” no ver-
fazer e pelo “inaudível” no ouvir-dizer presentes nas rotinas da oralidade das práticas
sociais. Tratam-se de pedagogias que fundamentam e organizam as mediações em que
as disposições são incorporadas, transformadas, mobilizadas, nos diversos espaços
sociais (Bourdieu; Chartier, 2011).
Interessa-me compreender como se dão tais incorporações, transformações e
mobilizações, porque entendo que isso ajuda a compreender e, quiçá, encontrar aí
sinalizações de caminhos para superar as relações hierárquicas que atualmente se
estabelecem entre as práticas musicais na educação musical escolar local.
2
Celson Gomes (2011), fundamentando-se em Pierre Bourdieu, entre outros autores da Sociologia,
identifica a presença da educação musical na rotina como “invisível”. Por isso mesmo, é necessário
explicitar a presença da educação musical e compreender seus efeitos e processos e compreendê-los em
seus sentidos, em seus significados, em suas pedagogias e, assim, trazer sua sistematização à luz.
3
Refiro-me especialmente às revistas paraenses “Belém Nova” e “Guajarina”.
4
Meu interesse e investigações sobre pedagogias sociais emergiram a partir de discussões estabelecidas
nas sessões de supervisão de Pós-doutorado, com a Profª Drª Jusamara Souza, e no Grupo Cotidiano, do
Programa de Pós-Graduação em Música da UFRGS, em 2011.

2. Cenas

As cenas que vou apresentar são lembranças de professores de música extraídas de


Vieira (2001) e de Vieira et al. (2013). São reminiscências que eles evocaram de
práticas musicais em seu meio de convívio. Dizem respeito a um tempo remoto de
suas vidas, quase sempre a infância, em alguns casos fazendo coincidir com a origem
de suas trajetórias musicais, quando estabeleceram os primeiros contatos com a
música.

74
Nesse sentido, o historiador Roger Chartier e o sociólogo Pierre Bourdieu
denominam “incorporação original” a que ocorre desde a infância e enfatizam que
“todos os estímulos externos, as experiências serão percebidas, em cada instante,
através das categorias já construídas” e que “portanto, há uma espécie de bloqueio”,
sendo o envelhecimento “uma espécie de bloqueio progressivo dessas estruturas”
(Bourdieu; Chartier, 2011, p. 60-61).
Penso, como Bourdieu e Chartier (2011), que esses momentos, por terem sido
vividos ainda na infância são determinantes, no sentido de marcantes, na percepção de
mundos musicais e nas respectivas práticas que envolviam, por meio de uma
pedagogia social, que tende a delimitar o marco inicial do ingresso nesses mundos.

2.1. Em casa

A casa é o espaço de referência social familiar, percebido como o lugar de


origem que tende a funcionar como o primeiro contexto de formação dos modos de
sentir, pensar e agir, ou seja, das disposições. Apresentar as lembranças musicais neste
meio de convívio é também assinalar simbolicamente que a música está na origem
familiar e que o pertencimento ao mundo musical está no “desde sempre”,
apresentando-se como um herdeiro que se reconhece nessa condição de modo
incontestável e que, portanto, não recusa a herança e que não pode ser acusado de não
ter “dote”. Desse modo, remarca seu pertencimento ao mundo da música e ao mesmo
tempo a sua posse musical. Isto é importante nesse mundo da música, onde as noções
de precocidade e talento estão fortemente ligadas ao inatismo (VIEIRA, 2001).

Lá em casa, nós todas estudávamos música. Eu, já com três anos,


estava catando melodias para tocar. Nós brincávamos em casa, por
exemplo: tu sentada aí, eu sentada aqui. Então, uma das duas
perguntava: “O que é isso que eu estou tocando?” Dá três toques na
mesa. “Então, que lição é essa?” A outra tinha que adivinhar. (VIEIRA
et al., 2013: s/p)

Esta cena apresenta a dupla relação com a música, de estudo e brinquedo, e que
essa dupla relação se dava desde a mais tenra idade. A brincadeira era um desafio à
percepção auditiva, ao mesmo tempo em que a formava. O domínio da percepção é um
“capital” considerado fundamental no campo da música, e a entrevistada o privilegia
ao destacá-lo na memória de suas experiências musicais no meio de convívio familiar.
Em outro momento da entrevista, ela revela o quanto multiplicou esse capital, ao
recordar quando tocou, para audição de um ilustre pianista, quase toda uma obra de
alto nível de complexidade em outra tonalidade, interrompendo a execução quando se
deu conta do equívoco e reiniciando na tonalidade correta.
Outra entrevistada assinala a presença de um instrumento musical em sua casa,
que ela via desde muito criança.

Eu não nasci aqui. Nasci em Portugal. Vim para cá com seis anos. Mas
já o piano me chamava muito atenção. Eu sempre tive uma fascinação
enorme pela sala onde estava o piano. Meu pai tinha mandado buscar

75
um piano da Alemanha. (VIEIRA, 2001: 130)

O piano em uma casa tinha um sentido. Um entrevistado mencionou que até


meados do século XX, em Belém, ele percebia que a educação de moças da elite social
incluía algum domínio do piano e do idioma francês. A presença do piano anunciava à
entrevistada o seu destino de distinção social, e pelos olhos ela aprendia a se
familiarizar com a sua condição.
Noutra cena, outra entrevistada revelou seu convívio diário com a música:
Até hoje, de vez em quando, eu ainda me lembro que às cinco horas
da tarde, depois que a minha tia acabava com todos os afazeres da
casa, ela ia para o piano, abria-o e tocava. Aquilo era religioso, todas
as tardes, às cinco horas, ela se sentava e tocava. (VIEIRA, 2001: 167)

O fato de ouvir sua tia tocar, desencadeou um processo de musicalização não


só pela percepção auditiva, mas como familiaridade com a forma de relacionar-se com
a música por meio do instrumento e da partitura: como sentar para tocar, como colocar
as mãos, a necessidade da leitura do escrito diante dos olhos de quem toca e tudo que
implica a execução musical, com a qual ela previamente se “alfabetizava” e que mais
tarde seria exigida pelas regras de um ensino escolar, no qual ela ingressou como aluna
e onde permaneceu como professora.
Pude perceber um crescendo na intensidade das experiências musicais nas
casas dos entrevistados, por onde circulavam os nomes de destaque no mundo da
música da capital paraense na primeira metade do século XX, como no trecho a seguir:
Desde criança eu ouvia a Serenata de Schubert, desde menino, cinco
anos de idade... E a família Nobre [tradicional de músicos] era muito
amiga de minha mãe e costumava ir lá em casa e cantar. Ouvia-se
bastante música. Minha mãe, de vez em quando, tocava um pouco de
violino. Havia uma “Hora da Arte”: Emília Nobre, Helena Nobre,
Paulino Chaves. Meneleu Campos estudava lá em casa. (VIEIRA,
2001: 181)
A menção ao repertório erudito europeu e a nomes que se destacavam no
circuito local, nacional e internacional dessa música, anuncia o meio no qual o
entrevistado cresceu e, portanto, ao qual pertencia.
Nestas cenas, além da indicação de pertencimento, antecipada à própria
vontade, mas também sem a sua negação, é percebido um processo de aprendizagem
pelo olhar, pelo ouvir, que favorecia a imitação, a repetição e a continuidade, com
todas as facilidades das condições materiais e culturais ofertadas pela família. Essa
facilidade remete ao sentimento de “naturalidade” do pertencimento em face da
aparente ausência de esforço, que se dilui na presença constante da música no
cotidiano, muito especialmente por ser uma presença prática, marcada pela oralidade.
2.2. Entre a Casa, a Escola e o Quintal
O relato a seguir revela o espaço da casa ora como um lugar de aprendizagem lúdica da
música, ora como um espaço semelhante ao escolar, dependendo de com quem a
entrevistada se relacionava, se com a irmã, com quem brincava de ser ensinada e
aprender ou com a mãe que alternava dois papeis: o de professora de piano e o de mãe
que orientava o estudo diário do instrumento. Cabia à sua irmã envolvê-la numa relação
afetiva com a música para que pudesse iniciar os estudos com a professora/ mãe, que
76
por sua vez a preparou para a disciplina exigida em uma escola de música, onde a
entrevistada logo ingressou como aluna e de onde, concluído o curso, tornou-se e
permanece professora e, anos depois, diretora.
Eu não sei se tu chegaste a conhecer aquele método antigo do Mário
Mascarenhas, que tinha o dó, que era um dedinho machucado, o ré...
O meu tio mandou esse livro do Rio de Janeiro e a minha irmã
começou a me ensinar muito na base da brincadeira. Eu deveria ter
uns quatro anos e ela tinha uns oito. Era muita brincadeira, lógico!
Mas era bom. Oficialmente, eu comecei a ter aulas aos seis anos, com
a mamãe, em casa. Nessa altura, só entrava para o Conservatório
quando já se sabia música. Não existia Musicalização. Tinha que
estudar para depois fazer um testezinho. Eu fiz esse teste com uns sete
ou oito anos. Depois desse teste, eu comecei normalmente, fazendo o
curso de piano, lá no Conservatório. Em casa, a mamãe fazia comigo
o esquema de aluno particular. Eu tomava banho, me arrumava toda,
na hora da aula, para descer. Os outros alunos particulares estavam lá.
Eu vinha toda pronta, como qualquer um deles. Nos dias que não eram
de aula, ela sentava como mãe, para ensinar, para ajudar a estudar,
para eu aprender a estudar. Os programas de audição que eu toquei e
tenho guardados são da época em que eu entrei para o Conservatório.
Não havia provas nas aulas particulares. Era mais livre do que no
Conservatório. Ela nunca fez prova com os alunos particulares.
(VIEIRA, 2001: 190-191)
O sentido lúdico das relações no mundo da música podia se manter entre os
colegas de conservatório, mas nos devidos espaços desse estabelecimento, que
compreendem práticas diversas, como se observa a seguir, o espaço de dentro, em
primeiro nível e plano, onde acontece o recital; e o de fora, o da borda, secundário, o
quintal, onde se ouve música de quadrilha e se dança, come e bebe simultaneamente.
Nós fundamos um Grêmio lá dentro e começamos a todo mês fazer
recitais no Conservatório. Nós fazíamos uma das coisas que hoje se
faz bastante, mas naquele tempo era coisa rara. Por exemplo, em
época de São João: “Vamos fazer recital de música brasileira!”
Fazíamos recital só de música brasileira. [...] e no fim, como a casa era
grande, tinha um belíssimo quintal, quando terminava o recital íamos
parar no quintal e fazíamos quadrilha, tacacá, mingau, essas coisas
todas. (VIEIRA, 2001: 178)
Essa separação entre os espaços das práticas musicais e os comportamentos
que marcam a prática musical do quintal, permite apreender representações sociais em
torno da música do recital e da música que não está no recital, e perceber as relações
simbólicas entre práticas sociais, espaços sociais e comportamentos sociais, bem como
flagrar que aí se transmite mais do que saberes musicais, mas também os valores a eles
agregados.
2.3. Entre a Casa e a Igreja
Modos de confirmação do pertencimento ao campo da música evidenciam uma rede
familiar e de espaços de circulação, no trecho a seguir envolvendo a casa, a igreja, o
teatro, multiplicando os testemunhos e as testemunhas.

A família era toda católica e cuidava de coral e dos problemas da


paróquia. Eu me lembro da minha tia falar das Pastorinhas Belemitas,
que foi um grupo famoso aqui. Meu pai compunha para as

77
Pastorinhas. Ele escrevia os textos. Uns tios tocavam violino. E
reuniam-se - a minha tia era pianista e cantora. Essa vida musical em
casa começava na Igreja e terminava nos salões de casa, em saraus
famosos. (VIEIRA, 2001: 169)
A expressão “vida musical” é um indício da dimensão da presença da música
em práticas sociais dentro e fora da casa, estando a rede familiar presente nas práticas
e nos espaços.

2.4. Fora de Casa


Alguns entrevistados revelam que a música não foi herança recebida, mas algo buscado
fora, desejado, almejado. Observei que a faixa etária desses entrevistados se afasta da
precocidade, como um efeito que denuncia de onde eles não vêm: de uma família de
músicos, pois se daí viessem, as recordações seriam mais remotas, da tenra idade.
Uma certa vez eu fui assistir um culto numa Igreja Evangélica. Nas
igrejas evangélicas o meio musical é bastante desenvolvido. Há
pianistas, violinistas... Eu assisti a um pianista tocando naquele culto.
Nasceu, em mim, o grande desejo de ser músico e comecei a
manifestar vontade de estudar música. Eu via na televisão os pianistas
e os regentes e começava a fazer gestos na mesa. (VIEIRA, 2001:
130-131)
Lá em Macapá, eram realizados ensaios de marcha. Numa bela tarde,
jogando bola na rua Padre Manoel da Nóbrega, bairro Jesus de
Nazaré, me vem a banda do Ginásio de Macapá, tocando dobrados e
tudo. Nós corremos para ir assistir ao ensaio de marcha do G. M.
(Ginásio de Macapá) e a banda tocando aqueles dobrados, como o
“220”, “Saudade de minha terra”, que são dobrados tradicionais de
banda. Aquilo me encantou. (VIEIRA, 2001: 168)
2.5. Dois Espaços Inconciliáveis
Então, o mercado de trabalho era grande: tocava-se em Pássaros5,
hotéis, bailes e Pastorinhas. Em 1942, eu era aluno do Conservatório e
já tocava, porque meus pais eram muito pobres e eu já gostava de
andar bem vestido, bem alinhado no Conservatório. O Conservatório
era um colégio de elite, naquela época. Eu tocava em toda parte,
embora, naquela, época aluno do Conservatório fosse proibido de
tocar música popular. Não se podia tocar em conjunto popular. Um
dia, fui chamado à diretoria e disse: “Toco e vou explicar-lhe porque
eu toco. Eu preciso ajudar meus pais da seguinte maneira: meu pai é
muito pobre, eu tenho profissão, tenho condições de tocar e eu preciso
de tocar, vestir-me, calçar-me e essa coisa toda. Eu não posso estar
dependendo do meu pai, já estou com dezoito anos. Meu pai é muito
pobre, é operário”. (VIEIRA, 2001: 176)
Este trecho traz vários aspectos: além dos espaços do mercado de trabalho
musical em Belém, na década de 1940, ele informa que músicos formados no Instituto
Estadual Carlos Gomes atuavam nesses diferentes espaços, não obstante as tentativas de
interdição pela instituição, cuja prática musical não coincidia com as práticas de música
“popular”. E vem desse “desacordo” entre práticas vividas simultaneamente pelo
entrevistado o aspecto mais importante, que Michel de Certeau (2011) denomina
“antidisciplina”, a subversão revelada sobre os usos “desviados” – nas práticas
“populares” – do conhecimento musical ensinado pelo Conservatório - tocar um

78
instrumento e ler partitura com virtuosismo -, sinalizando uma “reapropriação” ou
“recomposição” de uma prática, a “astúcia” do “reemprego” de ferramentas de um
campo em outro, para, “traindo” as regras do Conservatório (“Eu tocava em toda parte,
embora, naquela época, aluno do Conservatório fosse proibido de tocar música
popular”), ter condições materiais de nele permanecer (“e eu já gostava de andar bem
vestido, bem alinhado no Conservatório. O Conservatório era um colégio de elite,
naquela época”).
Em entrevista posterior (agosto de 2011), esta pessoa demonstrou a sua
identificação com o Conservatório, quer pelo reconhecimento do saber dos profissionais
de “dentro” (seu primeiro professor, de “fora” era “fraco”), quer pela música que
gostava de tocar e de ouvir (na opção pela compra de partituras de música erudita
europeia na loja que também vendia partituras de gêneros “populares”) e, finalmente, ao
abandonar a prática da música “popular” e ingressar na docência em escola de música.
Sobre seu aprendizado nas práticas musicais de gêneros “populares”, o entrevistado se
remete constante e insistentemente à leitura de partitura, condição para a circulação de
um músico como ele pelas orquestras de música “erudita” e por orquestras de música
“popular”. No entanto, é sabido que a escrita é um domínio que marca a erudição.__

5
Folguedo junino, que compõem o teatro popular de época, no Pará. Também são chamados de Bichos
(SALLES, 1994).

3. Considerações Finais
As cenas acima expostas são marcadas por saberes e fazeres musicais nas casas, nos
quintais, nas igrejas, nas ruas, no trabalho, no conservatório. São fundadas em
pedagogias (ou conduções da educação) do cotidiano, que se revelam nas relações onde
se efetivam as práticas sociais, entre elas a da música.
As pedagogias vislumbradas nas cenas apresentadas são marcadas pelo
sentimento de pertencimento sinalizado no inatismo, na precocidade, no lúdico,
quando o contexto envolve a casa, a família; e pelo encantamento, pelo desejo, pela
vontade de pertencimento, quando o contexto está fora de casa.
Por meio dessas pedagogias, aprende-se que se pertence ou não a algum lugar
no mundo da música, e dependendo do espaço musical onde o indivíduo pratica, ali se
aprende também que se pertence a um espaço social respectivo com a respectiva
valoração. Assim, nas cenas apresentadas, essas pedagogias sempre envolvem alguma
aprendizagem que não é somente musical. Desse modo, as pedagogias das práticas
sociais relacionadas à música correspondem a representações musicais da sociedade e
a representações sociais da música.
É um processo longo, constante e eficaz, o dessas práticas pedagógicas
silenciosas, invisíveis que fundamentam a aprendizagem no cotidiano.

4. Referências
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Vieira, L. B. (2001) A Construção do Professor de Música: modelo conservatorial na
formação e atuação do professor de música em Belém do Pará. Belém: CEJUP.

80
Etnomusicologia

81
A congada de Vila Bela do Mato Grosso e a importância
linguística da performance musical
Selmo Azevedo Apontes
Centro de Educação Letras e Artes – Universidade Federal do Acre – AC – Brasil
Doutorando em Linguística – Universidade Federal de Minas Gerais – MG – Brasil
selmo@ufac.br

Resumo. Esta comunicação tem como objetivo apresentar uma inter-relação entre a
entomusicologia e a etnolinguística através da performance musical da congada de Vila Bela,
com base em gravações realizada pelo autor, no mês de julho de 2010, tendo em vista
identificar elementos que remetam a manutenção de traços linguísticos estritamente de
característica da família linguística do grupo banto.
Abstract. This communication aims to present an inter-relationship between entomusicology
and ethnolinguistics of Vila Bela’s, Mato Grosso, musical performance of congada. Based on
recordings made by the author, during in July 2010, the study tries to identify traits with
characteristic of the Bantu linguistic family.

1. Introdução
Todos os anos no mês de julho, a comunidade quilombola de Vila Bela da Santíssima
Trindade, às margens do rio Guaporé, no Mato Grosso5, realiza o período de ‘festejos’:
duas ‘festas religiosas’ em louvor ao Divino Espírito Santo e a São Benedito. Essas duas
festas são organizadas por duas irmandades: a Irmandade do Divino Espírito Santo e a
Irmandade de São Benedito. Durante essas festas ocorre a apresentação de dois grupos
tradicionais da população quilombola local: a Congada, ou Festa do Congo, e a outra é a
Dança do Chorado. A primeira é formada por homens e a segunda é formada apenas por
mulheres. Trataremos aqui apenas da congada, deixaremos a Dança do Chorado para
outra oportunidade.

5
Os membros das Irmandades que mantém os Festejos são descendentes dos negros
aquilombados ao longo do Rio Guaporé e afluentes. Descendentes dos primeiros que chegaram para
trabalhar nas minas encontradas em Pouso Alegre, no período entre 1720-1730. Pouso Alegre vai se
transformar na cidade de Vila Bela da Santíssima Trindade (fundada em 19 de Março de 1752), uma
cidade situada nas nascentes do Guaporé que foi idealizada em Portugal, pela sua importância aurífera
para a Metrópole. Como era a cidade mais importante para escoamento da produção aurífera,, e devido a
fluxo do rio Guaporé que segue em direção ao Amazonas, foi a sede do governo da Capitania do Mato
Grosso até 1835. Nessa data, a cidade de Cuiabá se torna o centro administrativo, para onde se direciona
toda a população ‘branca’ e administradora. Os negros ficaram com a cidade, organizando-a a seu modo.

82
Imagem 1: Rei, Rainha, Juiz e Juíza do ano de 2010.

2. O Sorteio
Em Vila Bela, todos os anos há um sorteio, entre os membros da irmandade, para definir
quem será o Rei e a Rainha da Festa6. O Rei e a Rainha não ‘usam’ a coroa na cabeça,
como ocorre em outras regiões do país7. Eles a levam nas mãos, sob uma pequena
almofada. O Rei leva a coroa e o cetro, e a Rainha leva uma pequena coroa. Esses
objetos são relíquias histórica, feitas de prata. Os Juízes carregam dois ‘bastões’ de
prata, com a imagem de São Benedito no topo.

Imagem 2: Coroa e Cetro da Irmandade de São Benedito.


A congada de Vila Bela também possui diferentes performances para diferentes
momentos da festa. Os ritmos e as cantigas estão que estão presente na comunidade são

6
Na Festa do Divino, ocorre o sorteio para o ‘Imperador’ e a ‘Imperatriz’.
7
Apesar de saber da ocorrência de festa do congo em outras regiões do país, tal como
participei na localidade de Ibirité e na Comunidade dos Arturos, Contagem, em Minas Gerais, não
entraremos nessa questão comparativa, pois não é o foco da questão.

83
executadas a mais de 200 anos. Esses toques e cantigas são para buscar o Rei e Rainha
da Festa, buscar os demais integrantes da corte negra, juiz e juíza, e as damas dos
ramalhetes, promesseiras. Depois de completar a realeza negra, há uma apresentação
em que a guarda conga realiza diferentes performances rítmicas e melodiosas, toques,
cantos, danças, executadas diante da corte. No momento da apresentação para a
comunidade se percebe que essa visita da guarda conga, que percorre a cidade, remete a
um fato histórico interessante ocorrido na região do entorno do que hoje é Angola. Essa
comitiva da congada é, na verdade, uma ‘visita’ da embaixada vizinha ao reino do
Congo, enviada ao reino do Congo para cobrar uma promessa antiga entre os dois
reinados: ‘o Rei do Congo havia prometido a filha princesa ao rei vizinho, e não o fez’ 8.
Assim, diante da corte negra do Congo se desenlaça um roteiro de averiguação de quem
são os membros dessa comitiva: ‘se são gente de festa ou gente de guerra’9.

Imagem 3: Guarda Conga, tendo ao centro o Embaixador com o manto azulado,


atrás as ramalhetes.

3. O suporte interpretativo
Durante essa festa, há uma sobreposição de memórias, com fatos superpostos,
sobrepostos, de ritmos étnicos com toques e performances de guerra, lembranças de
fatos vividos e recontados pelo corpo, pelos gestos, pela constante adaptação e
rememorização léxica da atividade musical como um fato. Buscam a religação histórica,

8
Carta do Rei trazida pelo mumbica de Mumbaça lida pelo Secretário do Rei do Congo
durante a performance da congada diante da realeza negra: ‘Meu irmão, Rei do Congo, lhe remeto essa
mucanda, por meio do Embaixador de Guerra, que tu prometestes tua filha, princesa, se não haver de
me mandar, haverá guerra para pertencê-la.’

9
Esse fato só é entendido se ligarmos os fatos históricos com as ‘pistas’
linguísticas que ocorrem durante a apresentação da congada diante da corte negra. A
congada é chefiada e encabeçada pelo ‘Embaixador’, seguida depois pelo Secretário e
pelo Príncipe. No entanto, o Embaixador é do reino vizinho (no caso do texto da
apresentação é Mumbaça), e o Secretário e o Príncipe são do Reino de Congo.
84
a atualização de uma história contada nas expressões musicais. Fatos que apresentam
pistas interpretadas com o auxílio teórico de autores que conseguem ver a importância
da expressão cultural e a formatação da linguagem, tais como Martinet (1971), Sapir
(1969, 1979), Couto (2007).
A festa do congo trás uma riqueza a ser pesquisada tanto do ponto de vista da
etnomusicologia quanto da etnolinguística, pois entre um refrão e outro aparecem
termos, palavras e situações que podem ser ampliados e reinterpretados. Desse modo,
toda locução só se torna compreensível se interpretarmos pelo seu contexto de situação.
Tendo em vista que o léxico faz parte de um conjunto de saberes culturais de uma
determinada comunidade, nada mais justo que conhecer tal comunidade para poder
‘interpretar’ melhor o que o léxico representa ou apresenta (ou o que ele evoca, suscita,
instiga...). Essa inter-relação entre a linguagem e a comunidade, conhecer a comunidade
da qual provém o léxico, foi muito esquecida durante os estudos linguísticos mais
divulgados (Malinowski, apud Couto 2007). No entanto, de acordo com Sapir (1979) o
léxico é o componente da língua que mais diretamente reflete a cultura da comunidade.
Então, o léxico reporta a um grande elo de fios e emaranhados campos constituidores de
saberes, para nominar não apenas o objeto, mas também os fatos, os ritos, os momentos
significativos representados pelo léxico. Desse modo, o léxico atua como uma ‘porta de
entrada’ às ações culturais, ou seja, é através do léxico que se tem entrada do mundo
cultural. No entanto, esse mundo cultural nem sempre é interpretado a partir da
comunidade de fala, mas sim é interpretado a partir de um etnocentrismo que cega e
impede olhares enriquecidos de histórias negadas.
Faremos apenas recortes de estrofes cantadas com objetivo de apresentar
aspectos linguísticos evidenciados pela performance da congada. Aspectos linguísticos
que conseguem realizar a rememoração léxica, ou seja, o léxico consegue ser uma porta
de entrada para eventos guardados na memória coletiva do povo da diáspora. As
unidades lexicais que veremos fazem parte do universo linguístico e cultural do grupo
banto, da África.

4. Os cantos e as palavras
As estrofes que iniciam os festejos da congada e a que terminam os festejos possuem
dois núcleos lexicais que só podem ser interpretados em seu devido contexto. Vejamos
as duas estrofes:
Início da festa:
‘Sai, sai, ô (i)10ngombe sai
Saia do caminho
Sai (i)ngomberê’...

Entrega da realeza em sua própria casa


‘Chegô, chegô (i)ngandaiá

10
Esta vogal entre ( ) indica que pode ou não ser realizada.

85
Pra fazê a nossa Festa de São Benedito’

Final da festa
‘...
Acabou-se a festa, oh quanta alegria,
Acabou-se a festa, oh quanta alegria,
Viva Deus, o Espírito Santo, e as três pessoas’
‘...
Acabou-se a longa, todo mundo sabe
Acabou-se a longa, todo mundo sabe
Viva Deus, o Espírito Santo, e as três pessoas’

Em relação aos termos em negrito, ‘(i)ngombe/(i)ngomberê’, e ‘longa’,


segundo Angenot, Angenot-de-Lima e Maniacky (2013), ngombe é um termo muito
usado em diversas regiões do Brasil para referenciar ‘gado’ Já o significado de
‘(i)ngomberê’ é de difícil precisão. Observando características de línguas da família
banto, há um marcador – ir/er- indicando um aspecto gramatical denominado de
benefactivo, codificando o elemento beneficiário do evento descrito. Se assim o for,
ngomb-er-ê será traduzido como ‘aquele que se beneficia/beneficiado com o gado’,
fazendo menção ao ‘fazendeiro’. Com essa estrofe a congada inicia os festejos que sai
em diversas ruas em busca dos integrantes para compor a corte negra. Também é
cantada quando vai buscar a realeza negra logo após a celebração da missa católica, e
quando termina a apresentação da performance da congada diante da realeza negra.
A palavra em negrito na segunda estrofe (i)ngandaiá, é uma variação de ngana
‘ rei’. Essa estrofe é cantada quando a guarda do congo deixa o membro de cada realeza
em sua casa: juiz, juíza, rei e rainha. Ao entrar na residência a congada canta a estrofe e
deixa o membro da corte aos cuidados de uma equipe da irmandade que entoa cantos
tradicionais em louvor a cada membro da corte, enquanto a pessoa homenageada manda
servir bolos, sucos, canjinjin11 à população presente12.
O terceiro termo possui duas versões: ‘festa’ e ‘longa’. Devido ao uso da mesma
estrofe, sendo modificada apenas a mesma palavra, parece uma ‘tradução’ de ‘longa’,
por ‘festa’. Na verdade, é mais um ‘acomodação’ que um ‘tradução’. Por ‘longa13’

11
Canjinjin é uma bebida local feita com uma base de gengibre e outros
ingredientes. É considerada por muitos como uma bebida afrodisíaca.
12
Para uma descrição da comunidade de Vila Bela, ver: BANDEIRA,
Maria de Lourdes (1988). Território Negro em espaço branco. São Paulo, Brasiliense.
13
Para mais dados ver: APONTES, Selmo Azevedo. Bundinzando as
palavras portuguesas: lenço e rilenzo, lenços e malénzo, um breve olhar sobre a
86
entende-se ‘conversa, diálogo, interação de informação’14. Então, ao se acabar a ‘festa’,
acaba-se o diálogo, a expressão gratuita da interação de informação. Esse trecho é
significativo se pensarmos no contexto em que essas festas eram feitas, durante o
período da escravidão e pós-escravidão. A estrofe que encerra a festa, também encerrava
esse momento de gratuidade e liberdade.
Para demonstrar que essa interpretação não está equivoca, há outra estrofe
cantada no momento de deixar a realeza negra em sua residência: ‘Sinhô Rei vamo
s’imbora/ sinhozin mandô chamá./ O glorioso São Benedito/ fica aí no seu lugá’.
Segundo contam os moradores, no momento de iniciar a festa, antigamente, a corte
negra ia com a sua embaixada ‘informar’ às autoridades da cidade que o ‘comando’ da
cidade havia mudado. No período da festa, era a corte negra que iria mandar na cidade.
Assim, apesar da palavra ‘rei’ ter um estatuto de ‘maior importância’ que ‘sinhozin’, o
uso de cada uma deixa bem claro que a ordem hierárquica é invertida: ‘rei’ está abaixo
de ‘sinhozin’, pois é o senhor manda chamar o rei.
Uma outra estrofe que merece futuros trabalhos para tentar delimitar o
significado real é apresentada durante a entrega do rei em sua residência:
‘...
Olha o viracongo [vira congo?]
Nós vamos ver o viracongo [vira congo?]
Olha o mutxirongo’
No período da escravidão, muitos escravos recebiam ‘sobrenomes’ genéricos,
tais como benguela, significando o porto de onde foram enviados; congo, angola, uma
referência aproximada de onde provinha o escravo. No entanto, ainda não temos dados
disponíveis nos dicionários para uma comparação lexical com ‘mutxirongo’.
Em outro momento ocorre o canto do seguinte refrão: ‘Marinheiro, marinheiro/
tá na hora de embarcar/ o navio tá lá no porto/ sou marujo, vô remá.’ Esse refrão é
complexo, pois remete a um momento fulcral, momento da diáspora forçada de África.
Desse modo, entre a riqueza e rememorização léxica, aqui e acolá, entre uma cantiga e
outra aparece palavras como: nariz de muqueto, ‘nariz de mulher?’, pretinho de guiné,
mucanda ‘carta’. Vale citar um refrão que o membros da irmandade cantam quando
entregam rainha e juíza em cada casa: ‘A filha da Pemba pariu/ Não se sabe se é fêmea
ou se é macho/ Agora que vamos vê/ A burundanga de baixo....’. Burundanga é uma
palavra de difícil tradução, pois parece um item lexical que pode preencher muitas
lacunas interpretativas, tal como ‘coisa feita’, ‘feitiço’, mas nesse refrão específico tudo
indica remeter a uma identificação do órgão genital do bebê. Essas e outras palavras
conseguem estabelecer um elo etnolinguístico: assim a característica linguística está
intimamente ligada com a expressão étnica com povos do grande grupo bantu, no
continente africano. Ressaltamos que há pesquisadores buscando elaborar dicionários
especializados em recuperar a riqueza lexical e relacionar com determinados grupos

acomodação da prefixação banto em Cannecattim (1805). Rio de Janeiro: Revista


Philologus, Ano 17, nº 49, 2011.
14
Essa palavra esta presente em uma famosa música, cujo trecho é: ‘... vai
pra tonga da milonga do caburetê’.

87
bantu, tais como: Angenot, Beltrão e Teixeira (2009), Bonvini, (1996), Kempf (2009),
Mutombo (2007), Taralo e Alkmin (1987), Angenot, Angenot-de-Lima e Maniacky
(2013)15.
No contexto musical, encontramos elementos coesivos, recriadores e
mantenedores da riqueza histórica dos povos quilombolas de Vila Bela da Santíssima
Trindade. Eles mantém através de seus hábitos musicais, a capacidade expressiva,
criadora e recriadora de contar ‘histórias’ através da performance musical de tradições
bicentenárias.

5. Um trecho para finalizar


Para finalizar, segue trecho da apresentação da performance da guarda conga diante da
corte negra:

Imagem 4: Guarda Conga se apresentando diante do Rei, Rainha, Juiz, Juíza e


todo o povo.

(O Rei do Congo houve barulhos e convoca seu Secretário de Guerra para averiguar que
barulho e que pessoas são essas que adentram em seu reino)
Rei - Secretário de Guerra?
Secretário - Gana (Ngana)
Rei - Vai me congiar que mucamba é essa, se for dia de festa, grita festa vai ter festa
Se for dia de guerra, grita guerra, vai ter guerra. Vai prup?
Secretário - Sim Sinhô, Ngana. Escambando.

O Secretário de Guerra faz uma performance de reconhecimento da guarda que


adentrou o reino do congo. Após averiguar, volta ao rei e diz:

15
Esses três pesquisadores elaboram um apanhado geral de lexias a ver
verificadas se pertencem ao universo linguístico do grupo banto.
88
- Rei, Sinhô, para mim são gente de festa não de guerra.
O Rei manda realizar a averiguação por mais 3 vezes. A cada sondagem e
reconhecimento, o secretário de guerra e a guarda ou o esquadrão realizam
performances diferentes.
O Secretário retorna e informa ao rei:
- Rei, Sinhô, pra mim são pretinhos de Guiné, coroados de penas
Após ser enviado novamente pelo Rei, há um diálogo entre o Secretário e o Embaixador
do Congo. Após esse diálogo, o secretário retorna e diz ao Rei.
- Rei, sinhô. Aí chegou o embaixador de Mombica de Mucamba, contrastada de
Mucamba...E que mandas morrer, morrer de gana.
O Rei chama o Príncipe, e manda que traga esse fidalgo até à sua real presença: ‘assim
como manda a minha real coroa. Vai prub?’
O príncipe convocou o embaixador para ir até a presença do rei e ele atendeu o
chamado. E o Embaixador diz:
- Vim saber se nessa casa festeja o glorioso espírito santo como bem são colocados e
como bem a gente vês.16
Rei - Podereis entrar. Entrai porque sua importância.... verás como são lavrados em
ouro e prata, assim como manda a minha real coroa. Vai brup?
Embaixador - Sim Sinhô, (general). Escambando.
O rei chama o secretário para ver ‘que mucanda é essa’, e lhe apresenta uma carta que
lhe foi entregue pelo Embaixador, mumbica17 de Mumbaça.
O secretário lê ao rei: ‘Meu irmão, Rei do Congo, lhe remeto essa mucamba, por meio
do Embaixador de Guerra, que tu prometestes tua filha, princesa, se não haver de me
mandar, haverá guerra para pertencê-la.’
Rei - Embaixador, que atrevida mucanda que mandaste à minha presença, ficarás preso
dentro do meu reino, até a minha segunda ordem. E sabereis ainda que meu reinado é
lavrado em ouro e prata, assim como manda a minha real coroa. Vai brup?
Embaixador - Sim Sinhô...
Rei - E se arrecolha. (dito ao Embaixador)
Escambando, muqueto. (dito à comitiva da embaixada)
Nesse instante, ocorre uma performance da embaixada, cantando seu desagravo por ter
prendido o embaixador. O rei chama seu secretário de guerra para ver que barulho é esse
A embaixada18 realiza uma nova performance e canta:

16
No entanto, o embaixador traz uma mucanda, uma carta. Essa carta diz o
oposto da fala do embaixador.
17
Segundo CASTRO (2005), mubica é um termo para ‘escravo’.
89
‘Paz, Paz, Paz,
Paz, Paz, ngandaiá’.
O Secretário passa entre a comitiva e recolhe as armas dos soldados e as entrega aos pés
do Rei. Enquanto a comitiva continua cantando, ‘Paz...’. Após desarmar a comitiva, o
Secretário de Guerra passa a fio de espada os integrantes da comitiva, enquanto eles
iniciam um novo canto mais enérgico:
‘Savará, Muquêto, Saravá Muquêto’

Imagem 5: Secretário de Guerra passando a fio de espada membro da embaixada


O Secretário performa tipos diferentes de passar os soldados a fio de espada. Enquanto a
comitiva inicia um canto de lamento:
‘Oiá, matingombê!
Oiá, matingombé, iá iá.’
O Secretário de Guerra, após passar a fio de espada, retorna dançando sem música em
direção ao Rei, e diz:
- ‘Rei, Senhor, pra mim os irmão MOMBUCO... tá tudo vencido.
Agora quero que Seu Rei me dê um título melhor que Secretário de Guerra.’
O Rei chama o Secretário de Guerra, e pede para trazer a ele os irmãos de Mombuco até
à sua real presença, assim como manda real coroa dele.
O Secretário de Guerra elabora outra performance silenciosa, passando por toda a
embaixada que jaz morta. Ele bate palmas no final do alinhamento da embaixada, e
todos os ‘mortos’ da comitiva se levantam. Agora se inicia uma nova música e nova
performance: os membros da embaixada vão de dois em dois prestar homenagem ao
Rei, realizando um verso em quadra rimada. O Rei responde e graceja com cada dupla...
Rei - .... nariz de muqueto....

18
Por que não dizer: a guarda, ou o esquadrão de guerra do reino vizinho
ao congo? Isto se justifica até mesmo pela ordem dos membros da embaixada: uma
linha distribuída em duas fileiras (tendo como embaixador ao centro), os músicos estão
justamente bem no meio da guarda. No início e fim estão a guarda portando espadas.
90
Membros da Embaixada: ‘Amém, Seu Rei’.
Após cada dupla da comitiva prestar homenagem ao Rei, o Embaixador volta a assumir
o comando da embaixada (ou da guarda) e elabora uma nova performance. Enquanto a
guarda canta:
“Olha muleque, seu menino,
Saia fora do caminho
Eu pego meu facão
Sua cabeça cai no chão’
Ao grito do Embaixador, muda-se a performance e o toque
‘Olha o furundum,
Diga adeus, Sinhá,
Olha glória a Deus
Que eu já vou me embora’.

A guarda conga encerra a apresentação para a realeza negra, esperando todos os


membros levantarem-se, em seguida vão abrindo caminho para fazer a entrega dos
membros da realeza negra. Enquanto saem do local da apresentação, cantam:
-‘ marinheiro, marinheiro
Tá na hora de embarcar
O navio tá lá no porto
Sô marujo, vô remá’

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Internacional sobre procedência poliétnica dos afroiberoamericanos de origem
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91
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92
Tecnobrega: música eletrônica em Belém do Pará
Sonia Chada1
1
Instituto de Ciências da Arte – Universidade Federal do Pará (UFPA)
Belém – PA – Brasil
sonchada@gmail.com
Resumo. O tecnobrega é uma modalidade de música eletrônica associada às periferias da
cidade de Belém-Pará. Prioriza o uso de tecnologias computacionais na manipulação de
timbres, melodias e ritmos. As músicas produzidas são utilizadas em estúdio, em shows de
bandas, em “festas de aparelhagem” e na confecção de CDs para o comércio informal. O
objetivo da pesquisa foi o de investigar os processos de criação e o repertório musical do
tecnobrega. Foram realizadas diversas análises musicais, assim como os agentes sociais que
atuam nesse contexto foram entrevistados. Os aspectos musicais foram apreciados à luz da
etnomusicologia, onde a música é concebida como produto de relações sociais e culturais.
Abstract. Tecnobrega is a form of electronic music associated with the outskirts of the city of
Belém-Pará. Prioritizes the use of computer technologies in the manipulation of timbres,
melodies and rhythms. The songs produced are used in the studio, on shows for bands in
"festas de aparelhagens" and making CDs for informal trade. The objective of the research
was to investigate the processes of creation and the musical repertoire of tecnobrega. Diverse
musical analyzes were performed, as well as social agents that operate in this context were
interviewed. The musical aspects were considered in the light of ethnomusicology, where
music is conceived as a product of social and cultural relations.

O tecnobrega é uma modalidade de música eletrônica associada às periferias da cidade


de Belém-Pará. Concebido no final do século XX, geralmente distante das grandes
gravadoras e dos meios de comunicação de massa, é música dançante, percussiva, que
prioriza o uso de tecnologias computacionais na manipulação de timbres, melodias e
ritmos. Frequentemente é associado ao público jovem e ao modo de vida das classes
populares da periferia urbana, em expansão, todavia, de forma independente, dos
bairros periféricos para a região metropolitana.
De acordo com Costa (2009), baseado no relato do compositor, embora existam
outras versões, o tecnobrega é uma variação do brega criado pelo compositor Tonny
Brasil, cantor e compositor reconhecido de brega, proprietário do Estúdio Digital Brasil,
na preparação do primeiro CD do cantor Nelsinho Rodrigues, em 1999. Essa
modalidade ganhou espaço no contexto local, surgindo, posteriormente, festas
denominadas tecnobrega. Segundo Brasil:
Antigamente chamavam o dance de house. Aí virou dance porque
mudaram as batidas. Fiquei com essa ideia: ‘por que o brega não pode
também mudar?’ Botar uma batida mais pesada. Aí tive essa ideia aí.
E deu certo. Montei o tecnobrega. Era só trance. Pedacinho assim de
vinheta, de música, peguei uma batida, o baixo de uma música, de
tudo... Fui montando. Aí peguei o brega. Só que fiquei pensando em
como eu ia chamar, que é um ritmo mais pesado. Aí como tinha gente
falando de tecnobrega, mas não era ainda tecnobrega como é hoje, era
teclado... Aí falei, esse aqui vai ser o verdadeiro tecnobrega. Lancei e
todo mundo quis dançar. Depois disso começaram a vir outros... E até
hoje [Lemos e Castro, 2008: 32].
O tecnobrega é considerado uma versão contemporânea do brega. Este se
estabeleceu a partir da década de 1960, em diversas partes do Brasil, como música de
“má qualidade” relacionada ao gosto estético e ao modo de vida de classes populares

93
das periferias urbanas. Para Samuel Araújo (1987:21), o termo brega mantém
incorporado um aspecto depreciativo que alcançou projeção em diferentes localidades
do Brasil. No Pará, o termo teria surgido na época da “corrida do ouro” - exploração de
ouro na região de Serra Pelada, durante as décadas de 1970 e 1980, para designar
cabarés. Frequentemente é relacionado com gêneros musicais caribenhos e latino-
americanos, populares e dançantes, como o bolero e o calipso, conhecidos no Pará
depois da 2ª Guerra, quando se conseguia sintonizar algumas rádios das Antilhas
[Martins, 1997: 8].
Musicalmente, grosso modo, brega, no Pará, designa tradicionalmente um estilo
de música romântica, criado por artistas locais, produzido por estúdios localizados na
cidade. Para Tonny Brasil:
O brega é o seguinte: o brega não é a música. O brega é o evento. (...)
O brega é a festa. E dentro do brega, o que é que nós temos? Temos as
coisas que surgiram dentro dele. (...) A festa de brega, basicamente,
não é a festa de aparelhagem. É onde tá reunido ali àquela galera,
aquele povão e tal, você pode montar um sonzinho, colocar um
sonzinho ali na frente da sua casa e tal, pode pegar essas minhas duas
caixas e colocar aqui na frente da minha casa, reunir meus amigos, aí
vem, quem vem parando, vem chegando e a música tocando... É isso
aí. (...) Então é o nosso brega, vamo (sic) sentar aí, tomar uma cerveja,
comer um churrasco, essa que é a jogada [Costa, 2009: 61].
O movimento de música brega passa a se constituir como importante produto
cultural da cidade de Belém na década de 1960, resultado da aproximação cultural com
os novos espaços midiáticos que esse tempo promove. O grande momento de
repercussão do brega na mídia local, principalmente nas rádios belenenses, acontece na
década de 1980, consagrando muitos artistas. Dez anos depois, o brega paraense perde
espaço na mídia local permanecendo, contudo, nas festas populares. Posteriormente, em
um segundo movimento, o brega volta a se reerguer, agora com a denominação de brega
pop e, no final da década de 1990, se encontra na programação de quase todas as rádios
locais, representando, também, o surgimento de uma nova indústria cultural local
[Costa, 2009].
A evolução tecnológica e o acesso a outras sonoridades e produções musicais
estrangeiras possibilitou modificações nas composições e na sonoridade do brega. A
presença marcante dos teclados e a eliminação da bateria acústica nesse repertório
musical ampliou a produção de música e tornou o brega cada vez mais pop. Sobre a
origem do termo brega pop, Antônio Jorge Reis comenta:
Nós logo notamos que o ritmo era diferente. Não era necessariamente
Brega, como até então conhecíamos. Para diferenciar, resolvemos ali
no Programa, devido a nossa formação musical que inclui o Rock e o
Pop, chamar o novo ritmo de Brega POP. Antes, chamavam de
Calypso. Mostramos no programa Zuera Liberal, junto a Tonny Brasil,
Chimbinha, Kim Marques e outros que Calypso era um nome
inadequado, já que o ritmo Cha Du Dum estava mais para bandas
como Beach Boys, Pat Boone, Neil Sedaka ou Donovan e outros, do
que para a música de Harry Belafonte, estrela maior do ritmo Calypso
nos anos 50 e 60. Em 99, consideramos que o Zuera já tinha dado o
seu recado e criamos o programa Brega Pop Liberal. (...). Os caras
passaram anos ouvindo o pop mundial e hoje produzem o resultado de
suas influências [“A origem do nome Brega Pop.” Disponível em:
<http://www.bregapop.com/servicos/historia/317-jorge-reis/41-a-
origem-do-nome-brega-pop-antonio-jorge-reis>].

94
O brega pop, concebido no final do século XX, objeto de experimentações e
modificações de artistas paraenses ao brega local, constitui-se de diversas vertentes
musicais, sendo as três principais o tecnobrega, o brega melody e o calypso,
comumente associadas aos bairros periféricos da cidade de Belém do Pará e,
consequentemente, aos indivíduos e grupos sociais pertencentes a esses espaços, como
mencionado.
Para Costa (2009: 145), o tecnobrega teria surgido no declínio da difusão
radiofônica do brega, no início da década de 1990, especialmente nas frequências FM
locais, que passaram a investir em músicas de sucesso nacional como o pagode, a
música sertaneja e o axé. O fechamento de casas de shows especializadas em brega e de
gravadoras locais contribuiu para a divulgação dessa prática musical. Segundo
Guerreiro do Amaral (2009: 92):
O tecnobrega apresenta-se como uma espécie de resposta à referida
crise da indústria cultural, de um lado resistindo ao monopólio
absoluto das gravadoras e outras mídias consideradas convencionais
através de um modelo próprio de produção, circulação e recepção
musicais, e de outro desconstruindo este mesmo modelo,
conceitualmente e em termos das práticas musicais, artísticas e
culturais cotidianas na “aparelhagem”, na banda e no estúdio.
O grande impacto na produção musical do tecnobrega acontece com a facilidade
de aquisição de computadores caseiros. Com isso, muitos músicos paraenses puderam
comprar um PC, instalar os programas de produção e edição de música disponíveis e
produzir suas músicas.
Uma das grandes dificuldades para quem se propõe a realizar pesquisas neste
universo está relacionada à nomenclatura dos gêneros musicais. Há divergências, por
exemplo, entre as bandas, os programadores das rádios, as informações disponibilizadas
nos sítios virtuais e nas capas dos CDs e, entre os vendedores de CDs. Várias vezes nos
deparamos com a seguinte situação: para uma mesma música, uns a classificam como
tecnobrega e outros como tecnomelody. Para este artigo, consideramos o tecnomelody
como uma vertente do tecnobrega19.
Considerando a força do rádio como veículo de comunicação no Brasil,
especialmente a partir da década de 1930 e, sua influência decisiva no gosto e na
tendência do público, para esta pesquisa, optamos por realizar a análise musical dos dez
tecnobregas mais tocados, no mês de fevereiro de 2013, nas rádios Liberal e Rauland –
divulgadoras desse repertório musical.
Considerando os dez tecnobregas mais tocados na Rádio Rauland – FM 95.1, em
fevereiro de 2013, segundo o Programador Musical Luiz Cláudio – Coyote e na Rádio
Liberal – FM 97.5, em fevereiro de 2013, segundo o produtor do Super POP, Walmir
Nascimento da Cruz, chegamos ao seguinte resultado: quinze músicas e onze
bandas/cantores, objeto da nossa análise.

19
Hoje, nas festas das aparelhagens do Super Pop, Tupinambá, Príncipe Negro, Vetron,
entre outras, se toca muito “melody”, principal tendência do tecnobrega com músicas românticas, na sua
maioria com vocal feminino, e reefs de tecladinhos que grudam na cabeça de qualquer um, e, também, o
“eletro melody”, vertentes desenvolvidas pelos DJs Waldo Squash, Joe Benassi, David Sampler e Marlon
Branco com forte influencia da euro dance e os teclados ácidos da eletro house, mas também tem outros
estilos como os sucessos do funk carioca, do pagode, do sertanejo e da música pop comercial em geral
[Disponível em: <http://www.overmundo.com.br/overblog/o-tecnobrega-o-que-e-isso>].

95
O repertório musical analisado é constituído de música para dançar. Utiliza
principalmente instrumentos eletrônicos como a bateria, o baixo e o teclado (sons
sintetizados), algumas vezes em conjunto com instrumentos acústicos e, voz feminina
e/ou masculina. A ênfase é percussiva, priorizando o uso de tecnologias computacionais
na manipulação de timbres, melodias e ritmos. É perceptível a apropriação de timbres e
fragmentos sampleados de diversas músicas, a mistura de múltiplas sonoridades, a
incorporação no repertório musical de diferentes gêneros, de lugares e épocas distintas,
assim enriquecendo a produção musical. Os textos tratam de diferentes temas, dentre os
quais o amor, a tristeza, a alegria, o ciúme, a traição, a cultura regional e, homenagens a
personagens e instituições integrantes desse contexto. As melodias são construídas em
tonalidade maiores e menores. A harmonia é baseada em apenas quatro acordes, com
funções de tônica, subdominante e dominante.
Grosso modo, as músicas analisadas apresentam a seguinte forma: Batida base;
Introdução – na maioria das músicas, instrumental; Parte A – melodia com texto,
algumas vezes um diálogo entre voz feminina e masculina; Interlúdio instrumental com
vinhetas; Refrão; Parte B - melodia com texto, algumas vezes um diálogo entre voz
feminina e masculina, essa parte algumas vezes é uma variação da Parte A; Coda
instrumental. Cada uma dessas partes é repetida e a música é tocada duas vezes na sua
forma completa. É utilizada a mesma harmonia em cada uma dessas partes. O que muda
são as “cenas”20 criadas em cada uma dessas partes com a adição, supressão e/ou
combinação de timbres distintos, algumas vezes acústicos, fragmentos sampleados de
diversas músicas, mistura de múltiplas sonoridades e, incorporação de outros gêneros
musicais, de lugares e épocas distintas.
As músicas apresentam pulso rápido (cerca de 160 a 200 batidas por minuto)21 e
compasso quaternário. São estruturadas na seguinte “batida base”, tocada pelo bumbo e
pela caixa da bateria eletrônica:

O resultado sonoro são duas alturas distintas, visto que o bumbo e a caixa
possuem timbres distintos. A batida base é ouvida durante toda a música. Com
raríssimas exceções, em alguns poucos compassos a batida é supressa ou substituída
pelas “viradas” executadas pelos tom-tons da bateria eletrônica, geralmente entre uma
parte e outra da música. Todo tecnobrega inicia com essa batida base. De acordo com
Waldo Squash, para ser tecnobrega tem que ter essa batida. O DJ precisa dessa batida
para sua orientação (Entrevista realizada em 30.05.2013).
Segundo Nketia (1974: 131-2), a batida base:

20
Termo utilizado por Waldo Squash, músico, compositor e produtor
musical da Banda Gang do Eletro.
21
Geralmente o pulso é ainda mais acelerado quando as músicas são
tocadas nas aparelhagens.
96
Pode ser demonstrado através de bater palmas ou através das batidas
de um idiofone simples. (...) Uma vez que a time line é emitida como
parte da música, é considerada como um ritmo de acompanhamento e
um meio pelo qual o movimento rítmico é sustentado.
Considerando a definição do autor, podemos considerar a batida base um time
line, uma vez que faz parte do tecnobrega, é um ritmo de acompanhamento e estrutura a
música. Todo tecnobrega externaliza essa batida base.
Arriscamo-nos em afirmar que o que não muda no processo da transmissão oral,
aquilo que mantém a integridade de uma unidade do pensamento musical e que
inclusive a define no contexto do tecnobrega são a batida base e a utilização de
tecnologias computacionais na manipulação de timbres, melodias e ritmos. Uma música
para ser tecnobrega tem que ser estruturada nessa batida, que é externalizada e serve de
guia e acompanhamento rítmico para a música, e utilizar tecnologias computacionais
para a manipulação de timbres, melodias e ritmos, perceptíveis em toda a produção
dessa vertente musical do brega paraense.
Como, geralmente, há pouca preocupação no registro dos nomes dos cantores e
compositores, tanto nas coletâneas produzidas pelos DJs ou por selos locais quanto nas
cópias “piratas” reproduzidas para o comércio informal, os cantores e DJs, para garantir
a divulgação de seus nomes, se utilizam de vinhetas, executadas no meio das músicas.
Neste contexto, a produção de música acontece de várias formas. Geralmente
inicia com uma “ideia musical”, quase sempre relacionada ao cotidiano. Em seguida
esta “ideia musical” se transforma em tecnobrega com a ajuda de teclados eletrônicos,
mesa de som e computador. As duas fases podendo, também, ocorrer simultaneamente.
O programa mais utilizado para a produção musical é o Fruity Loops, algumas vezes
associado a outros programas disponíveis (Entrevista realizada com Waldo Squash em
30.05.2013). A produção musical neste contexto é tanto de “versões” quanto de música
“nova”, composta.
Na análise das músicas percebemos algumas características interessantes,
possíveis pela utilização de programas como o Fruity Loops: 1. Quantização – o tempo
da música cai exatamente no tempo certo. 2. Correção de quase 100% da afinação das
vozes - quando isso ocorre, a passagem entre a altura de um som para outro é brusco,
“robotizando” a voz. 3. Compressão das vozes – as vozes são “comprimidas” gerando
uma dinâmica igual para todas as vozes – humanas e instrumentos. Esses efeitos
produzem uma música mais “robotizada”, dificilmente alcançada pela interpretação
humana (Entrevista realizada com Luiz Moraes em 10.05.2013).
Os produtores e DJs disponibilizam as músicas na internet, na maior parte das
vezes no site 4Shared e, é desse site que o público e os camelôs produzem os CDs. Em
várias esquinas da capital paraense é possível comprar esses CDs.
Esta prática musical pode ser considerada como uma performance “não
convencional” evidenciada através da utilização do computador. A figura do compositor
podendo ser substituída por personagens que atuam coletivamente na criação estética
musical lançando mão de tecnologias digitais a partir dos quais emergem formas
inovadoras de propaganda, difusão e consumo musical.
As músicas produzidas são utilizadas em estúdio, em shows de bandas, em
“festas de aparelhagem” e na confecção de CDs para o comércio informal. O estúdio, a
banda e a “festa de aparelhagem” são os três espaços de produção musical do
tecnobrega. O cantor geralmente é o compositor envolvido no processo de criação
musical, seja de músicas próprias ou de “versões”. Existem, todavia, compositores não
97
intérpretes que compõem para bandas e artistas reconhecidos pelo público. O DJ atua
nas “festas de aparelhagem” e o produtor musical geralmente está relacionado ao
estúdio.
Nas bandas, músicos e dançarinos dividem o palco cujo vestuário e coreografias
variam de acordo com as temáticas sugeridas nas letras das músicas, enquanto que nas
“festas de aparelhagem”, eventos itinerantes que acontecem em diferentes locais, tanto
nas periferias de Belém quanto em áreas da zona metropolitana, o palco é ocupado por
DJs, que controlam as estruturas metálicas conhecidas como “aparelhagens”. No interior
dessas estruturas há uma diversidade de equipamentos eletrônicos e computadores
utilizados na reprodução do tecnobrega. Contam também com a participação de técnicos
de som, de imagem e de efeitos visuais que atuam na iluminação, na reprodução de
videoclipes, entre outros.
O circuito bregueiro, segundo Costa (2009), é composto pelas casas de shows
onde as festas acontecem, por equipamentos que constituem as “aparelhagens”, pelos
fã-clubes e públicos frequentadores de eventos festivos, por bandas, cantores,
gravadoras, produtoras, pela venda de CDs, pela difusão musical radiofônica e por
táticas de publicidade com vistas a informar aonde e quando as festas vão acontecer.
Por sua vez, a criação e o assentamento do tecnobrega como música de e para as
periferias de Belém do Pará parece estar ligado a um particular “modelo de negócios”
[Vianna, 2003] que parece funcionar à margem de princípios que regem a indústria
fonográfica convencional, no que diz respeito, por exemplo, à questão dos direitos
autorais e da comercialização de mídias de áudio. Esse repertório musical faz parte do
cotidiano das periferias da cidade belenense, aqui adquirem significação e são
facilmente encontradas em diversos ambientes sociais como as feiras de bairro, as festas
públicas e, em bares e clubes. A passagem dessa música de um contexto restrito e
rejeitado para a sociedade mais ampla deveu-se em grande parte às formas populares de
divulgação, através dos mecanismos alternativos como os sistemas sonoros das feiras e
as conhecidas “aparelhagens de som”, tradicionalmente utilizadas em festas realizadas
nos bairros de periferias das capitais e nas cidades do interior.
O tecnobrega espelha ainda os novos modelos de produção cultural que
emergem das periferias globais. Entre as principais características desse modelo estão a
sustentabilidade econômica; a flexibilização dos direitos de propriedade intelectual; a
horizontalização da produção, em geral, feita em rede; a ampliação do acesso à cultura;
a contribuição da tecnologia para a ampliação desse acesso e, a redução de
intermediários entre o artista e o público [Lemos e Castro, 2008: 21].
O tecnobrega faz parte de uma radical transformação ocorrida no mercado
fonográfico brasileiro, experiência bem sucedida de público e de venda, “apresentando
como trunfo estar associado a uma ‘novidade’ que reúne tecnologias, mercado informal
e periferia cultural” [Maia, 2008: 15]. Mais do que uma vertente musical do brega é um
mercado que criou novas formas de produção e distribuição.
Partindo do suporte dado pelo pensamento etnomusicológico e dos estudos
culturais, investigamos os processos de geração do repertório musical do tecnobrega.
Não obstante, fugimos do que Alberto Ikeda (1998) chama de musicografia, ou seja, a
mera descrição dos objetos musicais. Por meio de análises interpretativas, buscamos
compreender como esses aspectos musicais se coadunam no contexto sociocultural de
Belém, conformando a identidade plural da música amazônica. Enfatizamos seus
desdobramentos dentro da modernidade trazida pelo desenvolvimento da região Norte
enquanto espaço interligado com as transformações do mundo capitalista do século XX.

98
O interesse aqui não foi no aspecto focal da criação musical, um dos problemas
cientificamente menos estudados da musicologia. Penetrar na essência do processo
criativo transcende à Etnomusicologia sozinha; talvez nem seja um de seus problemas,
ainda que interdisciplinar ela se conceba. Na opinião de Nettl (2005: 27), para isso seria
necessário um “consórcio de disciplinas acadêmicas.”
Merriam (1964: 165-6), ainda que comentando sobre três pontos levantados por
Nettl referentes à composição concorda com dois deles: 1 - "qualquer composição é, em
última instância, o produto da mente de um indivíduo ou grupo de indivíduos"; 2 -
"generalizações não podem ser feitas acerca de técnicas de composição em música
primitiva que a contrastem com a música de altas culturas, com exceção de que, em
contraste com a última, ela é composta sem registros escritos (ou de outro modo
preservados)." Trata-se, portanto, de um problema de mudança cultural e musical se
buscou abordar do ponto de vista da antropologia cognitiva. Se para a antropologia
cognitiva, em sua teoria da cultura esta é vista inteiramente como conhecimento,
conhecimento necessário para interpretar a experiência e ditar o comportamento, a
situação de mudança cultural implica em vários mecanismos que assegurem a revisão de
tais conhecimentos para a interpretação de uma nova realidade e a adequação dos
comportamentos.
Aqui privilegiamos o debate crítico em torno do que se pode considerar um novo
conceito na produção musical. Trata-se do conceito de hibridismo, que, em voga na
literatura de estudos da cultura globalizada, auxiliou no entendimento do tecnobrega
como um dos elementos construtores da identidade musical em Belém. O conceito de
hibridismo utilizado foi assentado na leitura de Nestor Garcia Canclini (1992: 43):
“entendo por hibridização processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas
discretas, que existiam em forma separada, se combinam para gerar novas estruturas,
objetos e práticas”. Na mesma direção caminha o comentário de Paul Gilroy (2001:
209): a música revela de forma clara os processos de livre apropriação e recombinação
que configuram a cultura mundial: (...) a música e seus rituais podem ser utilizados para
criar um modelo no qual a identidade não pode ser entendida nem como uma essência
fixa, nem como uma construção vaga e extremamente contingente a ser reinventada pela
vontade e pelo capricho de estetas, simbolistas e apreciadores de jogos de linguagem.
Considerando John Blacking, o olhar investigativo contemplou os elementos
musicais dentro de um contexto sócio histórico. A chave para entender o pensamento
etnomusicológico de Blacking parece estar em seu conhecido conceito de música:
“Música é o produto do comportamento de grupos humanos, seja informal ou formal: é
som humanamente organizado” (2000: 10). Este conceito é importante, pois se o
admitimos como premissa, então nosso olhar investigativo voltar-se-á não mais
exclusivamente aos elementos estruturais da música, mas buscará na forma de
organização social seu mais profícuo caminho de compreensão.
Nossa hipótese é a de que a geração de música, nesse contexto, considera o
mercado musical, o que as pessoas querem ouvir, cantar e dançar, as possibilidades de
trabalho e valoração para o produtor, o reconhecimento das composições na esfera do
consumo e as técnicas e tecnologias empregadas na elaboração da música propriamente
dita.
Reconhecendo a grande variedade de manifestações musicais existentes em
Belém do Pará, contrapostas às mudanças profundas de contexto a que a cultura musical
paraense vem se submetendo (modernização, explosão demográfica, globalização, entre
outras), pretendeu-se fornecer interpretações sobre um fazer musical específico,
visualizando um dos perfis da música e da cultura paraense.
99
Referências
ARAÚJO, Samuel. (1987). Music and Conflict in Urban Brazil. Dissertação (Mestrado
em Música). University of Illinois at Urbana-Champaign, Urbana.
BLACKING, John. (2000). How musical is man? Seattle, University of Washington.
CANCLINI, Nestor Garcia. (1992). Culturas híbridas: estratégias para entrar y salir
de la modernidad. Buenos Aires, Sudamericana.
COSTA, Antonio Maurício Dias da. (2009). Festa na cidade: o circuito bregueiro de
Belém do Pará. Belém, EDUEPA.
GILROY, Paul. (2001). O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. São
Paulo, Editora 31.
IKEDA, Alberto. (1998). “Pesquisa em música popular urbana no Brasil: entre o
intrínseco e o extrínseco”. In Atas do III Congresso Latino-americano da Associação
Internacional para o Estudo da Música Popular.
<http://www.hist.puc.cl/historia/iaspmla.html>.
GUERREIRO DO AMARAL, P. M. (2009). Estigma e Cosmopolitismo na Constituição
de uma Música Popular Urbana de Periferia: etnografia da produção do tecnobrega
em Belém do Pará. Tese (Doutorado em Música). Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.
LEMOS, R. & CASTRO, O. (2008). Tecnobrega: o Pará reinventando o negócio da
música. Rio de Janeiro, Aeroplano.
MAIA, Mauro Celso Feitosa. (2008). Música e Sociedade: a performance midiática do
tecnobrega de Belém, do Pará. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Universidade
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MARTINS, C. (1997). “Pequena história do brega”. In O Liberal. Belém, 7 mar.,
Cartaz, p. 8-9.
MERRIAM, Alan P. (1964). The Anthropology of Music. Evanston, Northwestern
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NETTL, Bruno. (2005). The study of Ethnomusicology: Thirty-One Issues and Concept.
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NKETIA, J. H. Kwabena. (1974). The Music of Africa. New York, W. W. Norton &
Company.
VIANNA, H. (2003). “Tecnobrega: música paralela”. In Folha de São Paulo, São
Paulo, 13 out., Caderno Mais, p. 10-11.

100
Os Blocos e Escolas de Samba: A Resistência do Carnaval
em Belém do Pará
Dayse Maria Puget1
1
GPMIA – Universidade Federal do Pará (UFPA) Caixa Postal 15.064 – 91.501-970 – Belém – PA – Brasil
decamusica@yahoo.com.br
Resumo. Este trabalho tem como objeto, apresentar os resultados do mapeamento,
preliminarmente quantitativo, dos blocos e escolas de samba dos bairros de Belém do Pará,
referentes ao ano 2014. Toma-se como referência o mapeamento da Fundação Cultural do
Município de Belém (FUMBEL); foram pesquisadas e mapeadas também algumas
agremiações não oficiais e que não possuem cadastros na FUMBEL. O carnaval em Belém
parece que vem atuando aos moldes das agremiações cariocas que se impuseram como
modelo para todo o Brasil, ao mesmo tempo em que, apresenta singularidades que necessitam
de pesquisas mais abrangentes.Abstract. This work has the purpose to present the results of
mapping, preliminary quantitative, the blocks and neighborhoods of the samba schools of
Belem do Pará, for the year 2014. Taking as reference the mapping from the city of Belem
Cultural Foundation (FUMBEL); were also surveyed and mapped some unofficial and
associations that do not have entries in FUMBEL. The carnival in Belem looks like it comes
from acting as the Rio associations that were imposed as a model for all of Brazil, at the same
time, presents singularities that require more extensive research.

1. Introdução
O carnaval paraense na visão de Oliveira (2006) perpassa por todas ou quase todas as
formações historicamente originadas no carnaval carioca, iniciando pelo entrudo que
começa no Século XVII e permanece até o século XIX e, segundo ainda as outras
formações como cita ainda Oliveira, (2006, p.14), “os Bailes de Máscaras, Zé Pereira,
Corso, as concentrações de sujos e mascarados, os desfiles de cordões, blocos e carros
alegóricos”. Além destas agremiações, Ferreira (2004, p.304), não só cita outra,
denominada rancho, como também ressalta sua importância, importância essa
publicada no periódico “O Imparcial de 21 de Fevereiro de 1925”.
Segundo Ferreira:
Dos ensurdecedores “Zé Pereira aos cordões, destes aos “blocos de
combinações”, assim foram evoluindo os sentimentos foliescos dos
carnavalescos cariocas até atingirem a perfeição que hoje temos – os
ranchos – que apresentam o admirável conjunto de arte, luxo, graça,
música, poesia e dança. [...] dos “ranchos”, que foram os criadores do
atual sistema de se submeterem os clubes carnavalescos à apreciação
do Povo e da Crítica, apresentando a representação fiel de um assunto
previamente anunciado e descrito”.
O carnaval historicamente, portanto, tem sua marca registrada no Rio de
Janeiro, o que determina desta forma, a existência do carnaval por todo Brasil segundo
o que cita Galvão (2009, p.27). “... em proporções mais restritas. Todas as cidades
brasileiras promovem alguma espécie de carnaval”. Embora o carnaval, há muito que,
fazia parte da vida dos brasileiros, em um momento ele passa a ser tradição, e nesse
sentido Ferreira (2004 p. 255) pondera que “... o Carnaval já se tornava um verdadeiro
depositário das “tradições” do povo brasileiro, sendo considerado como o único (!)
lugar onde a essência nacional podia ser encontrada, sem dificuldade, em estado puro”.
Observando-se o carnaval nas diversas formas midiáticas atuais, verifica-se
que, esta tradição ano após ano ocorre no Brasil, em que pese os diferenciados gostos e

101
as contingências políticas e sociais. Ocorrem mudanças sim, com respeito a algumas
inserções de gêneros musicais e blocos diferenciados nos carnavais de rua, mormente
na Bahia e Pernambuco, mas nas ruas de Belém, parece que, prevalecem os blocos e as
escolas de samba, representantes de uma tradição que resistindo ao tempo anualmente
desfila por todo Brasil. Matta se refere a respeito desta resistência deste modo:
Existe no Brasil a suposição de que durante o carnaval nada do que
acontece é sério. É curioso (sic) para dizer o mínimo, que essa seja a
crença popular, porque na verdade muitas instituições civis têm
mudado e desaparecido, ao passo que esses grupos carnavalescos,
pobres, imprecisos e despretensiosos continuam com seu antigo vigor,
dando uma enorme impressão de perpetuidade, como aliás, cabe às
corporações (MATTA, 1997, p. 122).
A configuração dos blocos e escolas de samba apresenta algumas
diferenciações na visão de Matta (1997, p. 128). Segundo o seu olhar:
A impressão é de que os blocos recortam a cidade tomando como
ponto central a residência numa área comum (o fenômeno da
vizinhança e do bairrismo), ao passo que as escolas enquadram sua
unidade na possibilidade de criar um espaço que, embora ligado por
cordão umbilical ao “morro”, à favela e à pobreza, permite a junção –
para o carnaval– de gente rica branca e bem nascida com os pobres e
pretos. As escolas, então, promovem uma sistemática integração
dessas classes no seu desfile altamente complexo.
Os blocos e escolas de samba de Belém do Pará segundo Oliveira (2006)
também provem como acontece com as outras capitais do Brasil, das antigas
formações carnavalescas cariocas, que apesar das novas tendências provenientes
principalmente dos trios elétricos originados na Bahia, que segundo Oliveira (2006),
chegaram ao Pará nos anos 90, atuam ainda de certa forma, dentro dos padrões dos
carnavais que se faziam no Rio de Janeiro no início do século XX e que se impuseram
como modelo para o carnaval em todo Brasil.
Entretanto, para Oliveira (2006), o carnaval paraense recebeu influências do
Rio de Janeiro e também de Pernambuco, revestindo-se também de expressões
culturais que foram sendo adquirida ao longo do tempo, isto pode ser percebido
quando da citação deste autor a este respeito, “Ainda na vigência do isolamento
geográfico, para reproduzir em Belém certas expressões culturais desenvolvidas no
Rio de Janeiro, seria preciso consumar tarefas nem sempre viáveis” (OLIVEIRA,
2006, p.22).
Entre estas expressões culturais ou singularidades citadas por Oliveira (2006),
estão os termos ”brincante”, as figuras do “mestre sala” e do “porta-estandarte”, a
temática e a matéria prima regionais, usadas no enredo e na confecção das fantasias e
alegorias. Oliveira (idem) também refere os sambas enredos em relação ao andamento
que, inicialmente eram mais lentos em relação aos sambas enredos cariocas, entretanto
esta singularidade foi deixando de existir.
Estas singularidades são significativas, visto que, algumas parecem
permanecer, como a expressão “brincante” que para Oliveira (2006), “se constitui
verdadeira jóia (sic) da invenção popular”, e diz respeito à pessoa que participa do
desfile, ou seja, a que brinca no asfalto e a outra que é a personagem “Porta-
Estandarte”, a figura masculina que carrega o estandarte com o nome da agremiação.
Para Oliveira (2006), esta tradição remete provavelmente aos maracatus
pernambucanos e que já apareciam no carnaval a partir “das duas primeiras décadas do
século XX”.
Com relação à importância do estandarte, oportuno é o que a revista da
Semana de 16 de março de 1906 escreveu a respeito, “Os estandartes eram
102
importantes expressões das identidades dos diversos grupos que desfilavam no
Carnaval brasileiro da virada para o século XX” (Biblioteca Nacional). Oliveira (2006,
p. 23) refere que, “A atração dos cordões era o porta estandarte, que devia trazer o
estandarte mais rico que pudesse. O orgulho de todo cordão era o estandarte”. Em
continuação, Oliveira (2006, p.23) cita que, “obviamente, o estandarte e o porta
estandarte foram incorporados pelas escolas de samba, passando a ser um dos quesitos
dos concursos oficiais de Belém do Pará e que isto não acontece nos desfiles
cariocas”.
É importante ter conhecimentos a cerca de como o carnaval de Belém
continua existindo, configurando ou não uma resistência em permanecer dentro de
parâmetros tradicionais, em que pese as possíveis e passíveis inovações advindas de
influências externas e internas ao seu meio, e nada melhor para se conhecer um pouco
desta realidade, adentrando na experiência de carnavalescos que atuam no carnaval de
Belém.
A figura do carnavalesco é de importância capital atualmente na elaboração do
desfile de uma escola de samba. Segundo Ferreira (1999) este importante elemento
começa a aparecer no cenário carnavalesco a partir da finalização dos anos 60; este
aparecimento ocorreu em função da necessidade de se substituir a função do artesão
que era responsável pela elaboração das alegorias e outras funções plásticas, por
profissionais mais qualificados como artistas plásticos, cenógrafos e escultores, que,
aos poucos foram contratados pelas escolas de samba em substituição aos artesãos.
Com o passar do tempo, estes profissionais qualificados, passam a ser responsáveis
também pela parte da criação.
Atualmente o carnavalesco se constitui uma figura fundamental na formação
de uma escola de samba “... uma figura síntese, ao condensar e agregar em si uma
pluralidade de funções e múltiplas tarefas na produção artística de um desfile de
carnaval” (BLASS, 2007, p. 97).
Em 08 de Julho de 29014, os carnavalescos Neder Charone, que é mestre em
Educação e professor da Faculdade de Artes Visuais (FAV) da Universidade Federal do
Pará (UFPA) e Guilherme Repilla – cenógrafo, figurinista, bailarino e atual assessor
cultural do Pará Criativo, em entrevistas concedidas, à pesquisadora, quando foram
questionados a respeito da resistência na manutenção da tradição do carnaval em
Belém do Pará e às suas singularidades, se expressaram de certa forma com opiniões
similares.
Charone evoca a importância da academia na manutenção da tradição do
carnaval; relaciona as singularidades do carnaval paraense e os elementos que
identificam uma resistência na manutenção deste carnaval aos moldes do carnaval
carioca, ainda porque, a seu ver “a matriz carioca permanece porque já está no
domínio de todo mundo. O problema é se adaptar e dar uma personalização”.

Relacionando os itens que considera uma resistência: o povo costuma cantar e


sabe os sambas de enredo do passado, muitas das vezes não conhecem o samba atual;
entretanto para ele (CHARONE) a maior resistência se encontra na figura do porta-
estandarte, embora que, em sua experiência vem observando que “deixam de ser
sambistas para serem alegorias andantes; alguns não sambam mais, e de certa forma,
desfazem a tradição”; também comenta que esta personagem vem algumas vezes no
fim e não no início da escola.
Com relação ainda a este item, Charone refere que, pessoalmente não tem nada
contra a introdução do balé clássico e das danças de rua, entretanto “tem que manter a
tradição da pureza do samba”, além do que, o estandarte por representar a síntese do

103
enredo, necessita vir logo depois da comissão de frente e do carro abre alas, e que se
deve lutar pela manutenção da tradição que é a integração e visão do contexto da
escola nos seus aspectos social e coletivo; refere Charone que o porta estandarte
paraense se nega a usar algo que não seja o tradicional luxo das grandes escolas
cariocas, o que configura uma tradição aos moldes do carnaval matriz.
Em sequência, Charone chama a atenção para algumas singularidades, algumas
que já desapareceram como a rumbeira (sambista), e também ao que considera uma
dicotomia no carnaval paraense “o carnaval paraense tem, certa resistência, por conta
deste distanciamento do carnaval em si”. Esta dicotomia se refere segundo ele, à perda
de referenciais, que levam ao rompimento da tradição, configurando de certa forma
uma singularidade.
Um item que Charone chama a atenção, e que para ele não se configura em
uma resistência, mas a busca de uma identidade se revela, em alguns arranjos usados
por mestres de bateria que fazem uso de, “andamentos carimbolados (relacionados ao
gênero musical carimbó) e também, para o uso de materiais nativos por parte das
escolas do grupo de acesso, diferentemente das escolas do 1º grupo que permanecem
pela preferência aos materiais luxuosos”.
Já com relação à Repilla, embora concorde que existe uma resistência pela
manutenção de uma tradição aos padrões cariocas por parte das agremiações
carnavalescas paraenses, referiu que, isto ocorre mais em função dos “sambistas de
bamba” para os quais a visão é igual no sentido da coordenação e divisão da escola aos
moldes do carnaval do Rio de Janeiro, entretanto, com relação à utilização de
materiais, à criatividade e à confecção é diferente, “se dá o jeitinho brasileiro;
pegamos o nosso material para fazer de forma interessante, luxuosa, lúdica,
fantasiosa”.
Sintetizando, Repilla diz que, considera esta criatividade não como uma
resistência, mas como uma singularidade já que, “A gente não precisa copiar o
carnaval do Rio de Janeiro, porque a gente já tem materiais ricos, importantíssimos
que acampam como um todo, a criatividade e a confecção”. Em resposta ao
questionamento da figura do porta estandarte, Repilla acredita que seja um signo:
“Um elemento muito forte porque traz o nome e o enredo da escola;
na fantasia ele sintetiza todo o enredo, é a figura mais significativa do
desfile, é o respeito; se respeita a porta bandeira e o mestre sala, mas o
estandarte firma o nosso carnaval tão peculiar em sua
responsabilidade de introduzir a escola. (REPILLA, 2014).
Em continuação, quando questionado se o elemento porta estandarte poderia se
constituir em uma identidade, ele afirma que sim, visto que segundo ele, esta
personagem “só é vista no Pará”, personificada por uma figura masculina. Observou
ainda que os estandartes por conter além do enredo o ano do desfile, “são guardados
como um marco” e acredita que, o carnaval se apropriou de outras manifestações
populares tais como, autos religiosos, batalhas medievais entre outras, para criar suas
manifestações.
Finalizando suas considerações e respondendo à singularidade observada por
Oliveira (2006) em relação ao termo “brincante”, refere que este termo a seu ver, é
usado não com exclusividade para aquela pessoa que brinca o carnaval, mas para quem
brinca quadrilha, boi e outras manifestações populares; entretanto refere que a pessoa
que brinca o carnaval no Rio de Janeiro é conhecida como “desfilante”.
Evocar tradição reporta a conhecimentos e habilidades que são transmitidos de
uma geração a outra, entretanto essa idéia para Burke (1937) é por sua vez
problemática, por dois motivos, primeiramente porque uma “aparente inovação pode
mascarar” a manutenção de uma tradição, por outro lado, paradoxalmente a tradição
104
pode mascarar uma inovação, em continuação a este tema, este teórico refere que “o
legado muda – na verdade tem que mudar no decorrer de sua transmissão para uma
nova geração” (1937, p. 40).
Todavia as singularidades que ainda fazem parte do carnaval paraense e que, se
transformaram em tradição, se configuram como identidade na visão de Villoro (apud
WILDER, 2009, p.79).
...identidade é um conceito que varia conforme a classe de objetos aos
quais se aplica. Num primeiro nível significa singularizar-se,
distinguir algo como uma unidade no tempo e no espaço, discernível
dos demais. Identificar é apontar as marcas que particularizam,
personificam o objeto, mesmo que seja o mesmo objeto.
A classificação dos blocos carnavalescos em Belém parece seguir a mesma
citada por Matta (1997), em três tipos, a saber: os blocos de enredo ou de desfile, os
blocos de embalo ou empolgação e os blocos de sujo.
Os blocos de enredo são considerados como aqueles que se cadastram
oficialmente para que tenham acesso a um patrocínio e ao desfile oficial; os blocos de
empolgação (ou alternativos na classificação da FUMBEL) não participam de desfiles
oficiais, embora alguns tenham ata, diretoria e organização preestabelecidas, mantendo
certa tradição; Para Matta (1997), como o próprio nome indica, estes blocos
promovem com sua empolgação, a anulação do espaço existente entre os que
participam e os que apreciam.
Os blocos de sujo, na visão de Matta (1997) são os que não possuem
organização programada. Entretanto, em uma visão mais aprofundada Matta (1997,
p.127).diz que, o nome “evoca” uma fantasia sem definição de sua forma, em sua
formação estão os excluídos socialmente, “... representam os párias, os mais baixos, os
que estão no fim da linha social: onde a natureza e a cultura se confundem, útero e
cloaca, esgoto e porão”.
Os blocos carnavalescos se organizam de maneira informal; eles nascem em
momentos de lazer quando amigos vizinhos e ou parentes se reúnem. Conforme o que
explica Moraes (1987, p.120).
Os blocos nascem hoje de moradores de uma rua, de amigos, de
conhecidos, de gente que vai sozinha e adere a um outro mascarado, o
número vai crescendo, os instrumentos vão surgindo, um cavaquinho
ali, um violão acolá, algumas vezes uma flauta, pandeiro, reco-reco, e
eis o bloco formado e atuando, lançando para os céus as canções das
últimas músicas carnavalescas, enchendo o ar de melodias enquanto
alguns dos componentes dançam e pulam. Moraes (1987, p.120).
Com relação às escolas de samba, muitas são as análises que tentam
estabelecer sua origem, entretanto é muito pertinente e que muito ajuda neste
entendimento, é a conclusão a que chegaram Mussa e Simas (2010); segundo eles, a
escola de samba seria um universo que teria em sua formação todas as organizações
carnavalescas que existiram sendo, um produto da articulação não só destes grupos,
mas também de uma variedade de “interesses políticos e sociais”, e isso teria
acontecido na, primeira metade do Século XX, no então distrito Federal.
A formação das escolas de samba está intimamente relacionada ao samba,
gênero musical historicamente nascido segundo Galvão (2009) na virada do século
XIX na cidade do Rio de Janeiro, e mais especificamente nos terreiros dos bairros
pobres da área central desta cidade onde os pobres, mulatos e os negros dançavam e
cantavam e seus momentos de diversão. Muito pertinente, são as designações do
samba existentes na Enciclopédia da música brasileira erudita folclórica popular
(apud SIQUEIRA, 2012, p. 19).

105
1) Dança popular e música de compasso binário e ritmo sincopado
reveladores de sua ligação original com os ritmos batucados
acompanhados por palmas dos bailes folclóricos denominados
sambas.2) Gêneros de canção popular de ritmo basicamente 2/4 e
andamento variado, surgido a partir do início do século XIX como
aproveitamento consciente das possibilidades dos estribilhos cantados
ao som de palmas e ritmo batucado, aos quais seriam acrescentados
uma ou mais partes ou estâncias de versos declamatórios (apud
SIQUEIRA, 2012, p. 19).
Existia no Rio de Janeiro, segundo Ferreira (2004), dois tipo de samba,: um
conhecido como da Praça Onze, com características advindas do maxixe, e o
“batuque”, este ligado à malandragem, à capoeira dos morros. Este último conhecido
como “samba do morro”, apresentando ritmo mais marcado sendo considerado como o
que mais se aproxima do samba atual. O maxixe segundo Tinhorão (1998), seria uma
versão da polca gênero musical europeu, “mais melodioso”.
Dentro desta mesma perspectiva com relação aos tipos de samba, Sandroni
(2001), refere que este gênero musical teria sofrido uma separação ao final dos anos
20; se conhecia até então o samba mais antigo e o samba mais moderno. O samba mais
antigo, era elaborado por diversos compositores em noitadas musicais na casa da Tia
Ciata, negra baiana moradora do Rio de Janeiro no bairro da Saúde; o samba tido
como mais moderno, está relacionado aos sambas produzidos no bairro do Estácio de
Sá, também da cidade do Rio de Janeiro. Esta forma mais recente generalizou-se e
segundo ainda Sandroni (2001), e tornou-se “tal como se conhece hoje”.
As análises referentes à origem do samba e também às escolas de samba ainda
não conferem uma unanimidade, Ferreira (2004, p. 327), por exemplo, cita que:
Na verdade, como acontece com relação a todos os grupos
carnavalescos, é muito improvável que algum dia se chegue a uma
resposta para essas dúvidas, visto que já existem referências ao ritmo
“samba” em 1893, conforme relata Olga Von Simson em sua tese de
mestrado A Burguesia se diverte no reinado de Momo (“...
transformando o vasto salão do teatro numa colmeia enorme, em que o
ferver opus do samba e do maxixe se embaralhavam com o zum-zum
contínuo das vozerias sussurrantes da turba-multa” (O Commercio de
São Paulo, de 15 de Fevereiro de 1893)).
Corroborando as indefinições a cerca das origens do samba, Siqueira (2012),
refere que, apesar de algumas publicações e ser no mundo reconhecidamente como “a
música do Brasil”, seus historiadores ainda não conseguiram chegar a um consenso
relativo às suas origens, como também ao seu nascimento e desenvolvimento.
As escolas de samba tradicionalmente desfilam ao som de um samba
diferenciado do samba propriamente dito, que é o samba enredo ou samba de enredo,
uma variação que segundo o que explica Galvão (2009), surgiu entre as décadas de 40
e 50, criado, a partir de um enredo previamente escolhido pela escola de samba.
Elucidando também, o significado do samba de enredo, Mussa e Simas (2010,
p.24), citam que: “O samba de enredo, seria assim, o poema musicado que alude,
discorre ou ilustra o tema alegórico eleito pela escola. Se não há enredo, não há samba
de enredo”. O enredo se configura, portanto, na visão de Mussa e Simas em um
contexto carregado de significados e de singular importância em uma escola de samba.
Samba de enredo, portanto, é o samba cuja letra, entre outros
requisitos estéticos, desenvolve, expressa ou alude ao tema da escola –
tema esse que também se manifesta, paralelamente, em fantasias,
alegorias e adereços. (MUSSA e SIMAS, 2010, p.24).
Observa-se nos desfiles carnavalescos, que, as escolas divididas em alas,
desfilam em cortejo, a sua bateria toca o samba de enredo e todos os que compõem a

106
escola, cantam e dançam. Tem-se observado por intermédio da mídia, que, a cada ano
cresce nos desfiles das escolas, a importância da arte cênica em seus contextos de
dramatização e coreografia, entretanto, na visão de Cabral (2011), as escolas de samba
já não apresentam o mesmo contexto social, para ele, a ditadura militar, implantou um
outro modelo econômico, que fez com que “o brasileiro pobre ficasse cada vez mais
pobre”(idem, 2011. p. 259), enquanto as escolas de samba enriqueceram.
A primeira escola de samba fundada, em Belém do Pará segundo o que cita
Oliveira (2006) foi o Grêmio Recreativo Jurunense Não Posso Me Amofiná em 1934,
que como o nome sugere, teve como berço o bairro do Jurunas. Com relação aos
blocos, estes começam a “proliferar”, segundo Oliveira (2006, p. 16) a partir do início
do século XX, entre 1910 e 1920; “Principados Brutamontes; Novos Fidalgos de
Fancaria, Filhas da Manhã de Maio; Reque-reque; Pim-pam-pum”.
A partir deste início, e a despeito do apelo cada vez mais evidente das
tecnologias, muitas agremiações carnavalescas têm surgido, e outras tantas
desaparecido em Belém A esse respeito Blass (2007, p.140) refere que, “Contudo, as
raízes locais das escolas de samba são cada vez mais reafirmadas diante dos processos
sociais da globalização”.
2. Mapeamento
A classificação elaborada pela FUMBEL para as escolas de samba em 1º, 2º e 3º
grupos e blocos em 1º e 2º grupos, se realiza segundo a ordem de classificatória do
desfile carnavalesco do ano anterior, A partir destes dados, se processou um
mapeamento inicial, baseando-se em que, o mapeamento se constitui em um
importante instrumento que de certa forma simplifica e organiza dados.
Mapeamento de informação é um processo de preparação de mapas de
informação, constituído por um conjunto de regras para: analisar,
escrever, organizar e apresentar qualquer tipo de informação que tem
suas origens na instrução programada e permite ao usuário decidir
como utilizar o conteúdo. Esta técnica organiza as informações
analogamente a um Atlas-Geográfico. (Stefanelli).
Neste primeiro momento, o mapeamento é apresentado, como já referido, de
forma quantitativa, por bairros, e em ordem alfabética. Ainda não se denomina neste
primeiro momento as agremiações, para que se tenha uma visão de quantas
agremiações têm cada bairro e qual a classificação destas agremiações. Belém do Pará
contabiliza setenta e dois bairros, contudo, só 20 bairros possuem agremiações
carnavalescas contabilizadas até o momento.
Com respeito aos bairros de Mosqueiro, Outeiro, Cotijuba e Icoaraci, se fez um
mapeamento em separado, visto que não são cadastrados como oficiais pela FUMBEL,
e, portanto não se enquadram na sua classificação. Embora pertençam ao município de
Belém, estes bairros encontram-se geograficamente afastados. O bairro de Cotijuba é
uma ilha, assim como Outeiro e Mosqueiro, já Icoaraci embora não sendo ilha se
encontra ainda em zona urbana afastada da região mais central de Belém.
Com relação ao bairro de Icoaraci, em que pese o grande crescimento urbano
que faz com que a cada dia esta distancia seja diminuída, esta distancia ainda faz com
que juntamente com Outeiro, Cotijuba e Mosqueiro segundo informações da
FUMBEL, se desenvolvam neles, um carnaval localizado. Entretanto Icoaraci possui
uma escola de samba cadastrada no 1º grupo nos dados fornecidos pela FUMBEL.
Quanto aos blocos de empolgação ou alternativos, se apresenta uma relação
por bairros relativa ao ano de 2012, a partir de um trabalho desenvolvido por Maria de
Fátima da Silva (Fatinha), uma das fundadoras e coordenadoras do bloco de
empolgação - “Os Irrecuperáveis” e funcionária do CENTUR (Gerência de

107
LinguagemVisual).

Bairro Escola 1º Escola 2º Escola 3º Bloco Bloco

grupo grupo grupo 1º 2º

grupo grupo

Bengui 01

Canudos 01

Cidade 01

Velha

Condor 01 01

Cremação 01

Fátima 01 01

Guamá 01 01

Icoaraci 01

Jurunas 01

Marco 01 01

Pedreira 02 02

Sacramenta 01 01 01

Telégrafo 01 02

108
Terra firme 01 01 01

Umarizal 01 01 01

Tabela 1. Blocos Carnavalescos e Escolas de Samba Oficiais (2014)

Bairro Escola Bloco

Cotijuba 07

Icoaraci 04 07

Mosqueiro 03

Outeiro 06 04

Tabela 2. Blocos Carnavalescos e Escolas de Samba – Não oficiais (2014)

Bairro Bloco

Batista Campos 02

Bairro Da Cidade Velha 09

Guamá 02

Jurunas 01

Marambaia 01

109
Telégrafo 02

Terra Firme 01

Umarizal 01

Outeiro 07

Mosqueiro 12

Tabela 3. Blocos de Empolgação ou Alternativo (2012)

3. Conclusão
O foco desta pesquisa (que se encontra em andamento) está dirigido para um
mapeamento dos blocos e escolas de samba de Belém do Pará. O mapeamento
realizado aborda 20 bairros onde se localizam as sedes das agremiações pesquisadas e
que constam dos arquivos da FUMBEL. Durante o desenvolvimento dos trabalhos,
encontrou-se uma relação dos blocos de empolgação ou alternativos referentes ao ano
de 2012, não mapeados pela FUMBEL, e como não existe um cadastro oficial destes
blocos e porque ainda não se obteve fontes de dados confiáveis em relação ao ano de
2014, esta relação foi adicionada para que se tenha uma visão embora não muito
atualizada, da existência deste tipo de agremiação e Belém do Pará.
O carnaval em Belém continua acontecendo, representado por algumas formas
que permaneceram tendo como modelo as formações carnavalescas cariocas a despeito
do apelo cada vez mais evidente das tecnologias. Percebe-se neste primeiro momento,
que o carnaval dito “de época” em Belém do Pará continua existindo basicamente com
os blocos e as escolas de samba.
É fato observado na mídia que, embora exista a ocorrência dos carnavais fora
de época conhecidos também como “micaretas” e que tem suas origens no estado da
Bahia, e que atualmente estão também fazendo o carnaval dito “da época” de alguns
municípios do Pará, estabelecendo a participação de grande massa popular que
acompanha os trios elétricos (que representam o elemento de suma importância), o
carnaval dito tradicional e que tem como molde o carnaval carioca, ainda representa a
força do carnaval no período carnavalesco oficial.
Em que pese a representação de uma resistência em permanecer dentro dos
parâmetros ditados pelo carnaval do Rio de Janeiro em seus primórdios, o carnaval
paraense apresenta singularidades que parecem se constituir em uma identidade pelo
menos na visão de dois influentes carnavalescos paraenses: Neder Charone e
Guilherme Repilla.
Estes dois carnavalescos embora apresentem visões diversificadas, mas não

110
conflitantes, apresentam um consenso, com relação à figura do porta-estandarte,
personagem de extrema importância e relevância no contexto das escolas de samba; em
suas observações fica demonstrado que o porta estandarte é uma personagem exclusiva
do carnaval paraense. Pelas referencias apresentadas com relação à identidade, talvez
que, este elemento possa se constituir enquanto singularidade, uma identidade do
carnaval paraense, entretanto, é necessário que, se amplie esta pesquisa para que se
possa comprovar esta evidência.

Referencial Teórico
CABRAL, Sergio. As Escolas de Samba do Rio de Janeiro. O autor nesta obra em sua
primeira edição elabora um histórico das escolas de samba do Rio de Janeiro, o
histórico dos seus desfiles e uma visão abrangente do carnaval carioca, e desta forma se
torna um dos referenciais para este trabalho de pesquisa.
FERREIRA, Felipe. O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro. Rio de Janeiro. Ediouro,
2004. Nesta obra, o autor realiza um minucioso histórico do carnaval desde suas origens
até seu estabelecimento no Brasil. Obra de importância fundamental para os trabalhos
de pesquisa sobre carnaval.
MATTA, Roberto da. Carnavais, Malandros e Heróis. Para uma sociologia do dilema
brasileiro. Ediouro, 2004 Nesta obra, o autor realiza uma abordagem antropológica do
carnaval, seus paradigmas, estabelecendo uma visão diferenciada do carnaval em seus
aspectos sociais e antropológicos de suma importância para esta pesquisa.
OLIVEIRA, Alfredo: Carnaval Paraense. (SECULT, 2006); Alfredo Oliveira é médico,
músico, e compositor; reconhecidamente um dos maiores pesquisadores da história do
carnaval paraense. Esta obra forneceu subsídios históricos do carnaval no Pará, dados de
suma importância para o conhecimento da história do carnaval no Pará.
SANDRONI, Carlos. Feitiço Decente; Transformações do samba no Rio de Janeiro
(1917-1933). Sandroni que é doutor em musicologia e também etnomusicólogo, elabora
nesta obra, uma análise histórica, sociológica e musical das origens do samba através de
uma viagem que inicia no tempo dos lundus até chegar nos padrões dos sambas atuais.
Esta análise é de fundamental importância para os estudos mais aprofundados sobre a
origem do samba.

Referências
BLASS, L. M. da S. (2007). Desfile na Avenida, Trabalho na Escola de Samba. A
dupla face do carnaval. São Paulo: Annablume.
BURKE, P. (2008). O que é história cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
CABRAL, S. Escolas de Samba do Rio de Janeiro. 1. ed. São Paulo: Lazuli Editora:
Companhia Editora Nacional, 2011.
GALVÃO, W. N. (2009). Ao som do samba: uma leitura do Carnaval carioca. São
Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo.
MANITO, J. (2000). Foi no bairro do Jurunas: A trajetória do Rancho Não Posso Me
Amofiná (1934 / 1999). Belém: Ed. Bresser Comunicação e Produções Gráficas.
MATTA, R. da (1997). Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do
dilema brasileiro – 6º ed. Rio de Janeiro: Ed. Rocco.
MORAES, E. (1987). História do Carnaval Carioca. Rio de Janeiro: Ed. Record.
MUSSA, A., SIMAS, L. A. (2010). Sambas de Enredo: história e arte. Rio de Janeiro:
Ed. Civilização Brasileira.

111
OLIVEIRA, A. (2006). Carnaval Paraense. Belém: SECULT.
SIQUEIRA, M. B. (2001). Samba e Identidade Nacional; das origens à era Vargas. 1
ed. São Paulo: Editora Unesp.
STEFANELLI, E. http://www.stefanelli.eng.br Bairros de Belém. Disponível.
http://www.guiadoeleitor.com.br/bairro/bairro.htm

112
E a música armorial continua...: trajetória e atualidade em
breves considerações
Rucker Bezerra de Queiroz1, Samuel Cavalcanti Correia2
1
Escola de Música – Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN) Natal – RN – Brasil
2
Laboratório de Composição Musical (COMPOMUS) – Universidade Federal
da Paraíba, João Pessoa – PB – Brasil
ruckerb@terra.com.br, sccpianoviola@yahoo.com.br
Resumo: O presente trabalho sintetiza recente pesquisa desenvolvida ao longo de quatro
anos sobre a prática interpretativa no Movimento Armorial a partir da investigação da
trajetória histórica, seus protagonistas e o legado deixado para as gerações atuais. Tendo
como referencial primário outras pesquisas já realizadas em áreas afins, focou-se aqui em
demonstrar o sentido vivo e os traços deixados por esta manifestação autêntica da cultura
regional brasileira.
Abstract: This paper synthesizes recent research developed through four years long about
interpretative practices into the Armorial Movement scenario by investigating the historical
line, its protagonists and the legacy in our days. The main references are other academic
researches already done in music areas. The aim here is present the live context of this
authentic Brazilian musical Movement in contemporary northeastern scene and beyond.

1. Trajetória e seus protagonistas:


Em circunscrição histórica estrita, o Movimento Armorial dura apenas uma década e
tem seu fim pela carta aberta de 1981 publicada no Diário de Pernambuco. Nesta
espécie de despedida, Ariano Suassuna declara sua “aposentadoria” seja na
representatividade política, seja na atuação pública, incluindo a militância armorial.
Contudo, o Movimento transcende ao seu progenitor, alçando alargamentos, diluições e
adentrando na práxis cotidiana da qual muitos grupos instrumentais foram tomados
como ponto de partida estético-performático para uma nova estilística que manteve a
“logomarca” armorial. A Orquestra Armorial foi o primeiro marco pós-Ariano a ser
retomado em 1989 sob a batuta de Cussy de Almeida. Na ocasião foi apresentada uma
série de concertos tendo como convidado, o cantor e compositor pernambucano Geraldo
Azevedo. O foco já não era mais o mesmo e foram feitas gravações referenciais no
início da década de 1990: A Grande Missa Armorial, em primeiro registro, com a
presença do próprio Capiba. Já em 1994 foi gravado o disco Orquestra Armorial, com
coletânea do Quinteto Armorial e da própria Orquestra. Ambos os discos obtiveram
apoio da Secretaria de Cultura de Recife, época em que Cussy dirigia o Conservatório
Pernambucano de Música. A intransigência que perpassava discussões musicais e
estéticas entre os protagonistas do Movimento, os posicionamentos políticos e as
divergências na interpretação das obras suscitaram tanto a decadência do Movimento
entre seus pioneiros, como também trouxe à baila críticas sociopolíticas. O estudioso
em sociologia Antônio de Pádua de Lima Brito enfatiza certas posturas, sobretudo
aquelas adotadas por Ariano:

O Movimento Armorial, criado em Pernambuco por Ariano Suassuna


nos anos de 1970 é apresentado como exemplo paradigmático de uma
tradição de pensamento segundo a qual as culturas populares seriam a
base da identidade nacional. Essa tradição teria contribuído para
legitimar ideologicamente o regime militar no seu esforço de
apresentar-se não como um fator de ruptura, mas como garantia de

113
continuidade histórica e de integridade da nação. Nesse sentido, o
Movimento Armorial, por ter sido uma das instâncias que
contribuíram para a construção dessa ideologia, configurou-se como
parte do bloco histórico que garantiu sustentação ao regime. (BRITO,
2005: p. i)
Já Herom Vargas contrapõe a “brandura” do Movimento aludindo ao seu
contexto histórico:
Não é à toa que a proposta Armorial se concretizou em um momento
crucial da história política e cultural do país. Os anos de 1970 foram
pródigos em exemplos de como é possível manter a ordem, seja à base
da força, seja pela ação ideológica. Vale lembrar que tal concordância
histórica não significa determinismo ou mecanicismo simplistas. Ou
seja, o Movimento Armorial não surgiu por causa do momento
histórico; mas, suas propostas se aproveitaram de algumas ideias e
alguns mecanismos políticos presentes no início dos anos de 1970.
(VARGAS, 2007, p.53)
Ao ser questionado sob este contexto, Jarbas Maciel rebate Vargas:
Aparentemente, o Sr. Herom Vargas tenta emprestar ao seu livro
algum sabor de atualidade jornalística, imprimindo ao seu discurso um
viés ideológico que nos parece inteiramente descabido, tanto no que
diz respeito à sua leitura da música de Chico Science e de Nação
Zumbi, quanto no que se refere ao Movimento Armorial. Uma
“ligação” ao militarismo vigente na década de 1970, quando o
Armorial foi lançado, além de não ter base histórica nenhuma, mais
parece o delírio de uma mente que se contorce no vazio característico
daqueles que não têm nada a dizer. (QUEIROZ, 2009)
Sem entrar no mérito da questão política, não se pode deixar de pensar em
trajetória do Movimento Armorial, sem atrelá-la a contextos e ações de seus integrantes;
nisto, Suassuna é figura emblemática. Este sempre deixou claras posições pessoais –
progressistas e esquerdistas – e, já na década de 1960 era por isto criticado, além de sua
ligação às figuras engajadas em movimentos sociopolíticos tais como Paulo Freire e
Miguel Arraes. Em entrevista ao jornalista Geneton Moraes Neto, em 1989, Suassuna
fala abertamente de política, de monarquia, e analisa a falta de visão dos militares
brasileiros:
Como a família real brasileira é descendente, por um lado de Filipe
“Egalité” – o Duque de Orleans que se colocou ao lado dos
revolucionários jacobinos franceses – eu julguei, durante algum
tempo, que a casa de Bragança teria imaginação, garra e grandeza
suficiente para, no Brasil, tornar o lado do socialismo-de-pobre de
Canudos e do povo que lutou por ele ao lado de Antônio Conselheiro e
da própria casa de Bragança. Mas a realidade provou que essa era,
apenas, mais uma quimera, desmentida brutalmente pela adesão de D.
Luís e D. Bertrand à TFP. Eu sonhava, e continuo sonhando, como
escrevi em 1978, com um partido político que tivesse alguma coisa
característica das grandes ordens religiosas dos monges combatentes.
Hoje o partido que mais se aproxima disso é o PT. O que me preocupa
nas Forças Armadas é que a maioria dos componentes da alta
hierarquia militar ainda não se apercebeu que o povo brasileiro é
nosso objetivo final e maior. Em Canudos, o Exército se portou como
se o brasileiro fosse a grande ameaça contra a qual ele tinha que lutar.
Infelizmente parece que esse espírito continua. (SUASSUNA apud
MORAES NETO, 1989)
Fernando Torres Barbosa, integrante da segunda formação do Quinteto
Armorial, comenta-nos sobre a “pitoresca” atitude de Suassuna quando arguido sobre

114
questões e posicionamentos políticos, envolvendo, sobretudo, os acontecimentos na
década de 1970:
Eu estava conversando com Ariano em sua casa quando puxei o
assunto sobre aquele momento político que o Brasil estava passando...
perguntei, meio disfarçadamente qual era o posicionamento dele e
então ele me sai com essa: “... para os comunistas, eu sou reacionário,
para os reacionários, eu sou comunista!” ( 2011)
O teatrólogo pernambucano Hermilo Borba Filho traçou com precisão um perfil
de seu dileto companheiro em notas bibliográficas para a segunda edição do texto das
peças “O santo e a porca” e “O casamento suspeitoso” de 1976:
Magro e alto, de uma coerência extremada, radical em suas opiniões, é
preciso vê-lo numa discussão com amigos (com inimigos basta que se
leiam os seus artigos): zombeteiro, argumentador desnorteante,
irreverente. Vive, com a maior convicção, o preceito de Unamuno de
que o artista espalha contradições. É capaz de destruir o argumento
mais sério com uma piada ou sair-se com um problema metafísico dos
mais angustiantes numa conversa ligeira. Tem horror aos aparelhos
modernos – enceradeira, vitrola, televisão, rádio, telefone –
considerando-os coisas do demônio. Gostaria de crer em Deus como
as crianças, mas crê com angústia, fervor e perguntas. Não vai a
reuniões oficiais, jantares, coquetéis, espetáculos, mas amanhece o dia
num bate-papo ou ouvindo repentistas. Tem pavor de avião e se
martiriza com uma alergia que lhe dá comichões no nariz. Seu caráter
é ouro de lei, e, embora o negue, esforça-se para amar os inimigos
como manda o Evangelho. Pode, pessoalmente, atacar um amigo, mas
defende-o de público até com armas na mão. A Arte e a religião são
por ele encaradas de maneira fundamental. (BORBA FILHO apud
SUASSUNA, 1976).
Independentemente de qualquer tipo de polêmica, um fato irrefutável é que o
Movimento Armorial ganhou força primeiramente no Nordeste e acabou por levar essa
música a todo o país, ganhando, em muitos locais, bastante aceitação. Não é que Ariano
confunda-se com o Movimento, mas não há como contestar que este é a mola-mestra
propulsora, como nos indica Idelette Muzart:
[...] não por se tornar um mestre ditatorial que comanda a criação de
artistas, mas porque, ao identificar pontos comuns e tendências
paralelas em artistas e escritores, permitiu a sua reunião em torno de
um centro, o Movimento, e deu-lhes os meios de realizar seus projetos
e seus sonhos. (MUZART, 1999: p. 28)
A imprensa nacional já no início da década de 1970 atestara a aceitação e o
impacto que este movimento vinha imprimindo fora do Nordeste:
A característica principal do Movimento Armorial está na globalidade,
preocupada com todas as origens culturais brasileiras, buscando
encontrar o resultado fundamental. O movimento não se detém no
indianismo, nem na negritude, nem na tradição ibérica, mas aproveita
dessas influências na medida em que formam o tronco cultural
brasileiro (RAJÃO apud SUASSUNA, Jornal do Commercio, Recife,
1971).
Neste sentido poder-se-ia especular que havia uma preconização ou vivência do
que viria a ser a worldmusic, termo já emulado na década de 1960 pelo etnomusicólogo
norteamericano Robert E. Brown. Assim como na worldmusic, essa percepção do
Movimento Armorial como algo amalgamador entre artes e entre origens, saberes e
fazeres artísticos promove simbioses culturais e novas resultantes. Então aí se agrega a
ideia de Mário de Andrade com relação ao particular/local projetando-se ao universal

115
pelas inerentes „verdades‟ que este particular carrega no bojo de contextos maiores. É
como se já tivéssemos então pensando uma espécie de „aldeia global’ artístico-
nordestina. No Movimento Nacionalista – sem dúvida, inspirador do Movimento
Armorial – nota-se facilmente equivalências estilísticas entre compositores europeus e
brasileiros. Debussy, para muitos, é uma espécie de ponto de partida. Da mesma forma
Ravel que, mesmo consubstanciado pela efervescência artística parisiense, já se deixara
embriagar pelos elementos exoeuropeus:
Wisnik considera Debussy um eixo de ligação importante entre os
nacionalismos românticos e os nacionalismos musicais do século XX,
influenciando compositores de diversos países, mais especificamente
os compositores brasileiros, na utilização do emprego dos “modos” e
melodias do folclore musical. O nacionalismo brasileiro buscou em
Stravinsky, Falla, Copland, Kodaly e nos compositores russos, como,
por exemplo, Khatchaturian, elementos que contribuíam na renovação
e na modernização de sua linguagem. (NÓBREGA, 2000: p. 16)
Convém lembrar que, se por um lado a geração nacionalista de Francisco
Mignone espelhou-se nas figuras mais proeminentes da primeira metade do século XX,
no Movimento Armorial é a forma e o estilo barrocos que se explicitam mais
facilmente, sobretudo nesta época estrita de atuação. Mário de Andrade não
desconsidera a riqueza do global, das “Europas” pelas quais deve um compositor
brasileiro passar, experienciar, para então poder tornar-se um excelente artista. Nisto
revelar-se-ia o lado oposto no Movimento Armorial que não logrou de ampla cultura
musical, sob a égide suassuniana, relacionando quase que absolutamente, elementos
locais com formas barrocas. A Europa do presente fora deixada de lado e, mesmo de
modo consciente por uma espécie de recusa, uma alternativa neoclássica (ou
neobarroca) de retornar às origens. Nisto apercebe-se as sonoridades armoriais: os
impressionistas ou expressionistas estariam distantes da heráldica, ou do brilho ou da
estridência ou da rudeza necessárias para a mimese sertaneja e interiorana, assim como,
era necessário ir ao encontro de um passado que mesmo já tonal – pois no barroco o
mundo modal fora pouco a pouco relegado somente ao uso eclesiástico – diferenciasse
da atualidade em música séria. Não obstante, vale ressaltar que Camargo Guarnieri no
seu Concerto para Orquestra de Cordas e Percussão – encomendado pela Orquestra de
Câmara de Pernambuco em 1972 – tenha, sobretudo no segundo movimento, dado um
aspecto textural similar aos de seus contemporâneos franceses, transcendendo em muito
a harmonia modal, geralmente usada pelos armorialistas. Retomando o pensamento
andradeano, é possível denotar um paradoxo de ponto de vista em outro momento de
sua lavra:
A tal de “música universal” é um esperanto hipotético, que não existe.
Mas existe, não posso negar, a música internacionalista, a granfinagem
tendiosa e fatigada dos “transatlantiques” da comédia célebre (...) Não
há música internacional e muito menos universal; o que existe são
gênios que se universalizam por demasiado fundamentais, Palestrina,
Bach, Beethoven, ou mulheres que se internacionalizam por
demasiado fácies, a “Traviata”, a “Carmen”, “Butterfly”. Porém,
mesmo dentro desta internacionalidade e daquela universalidade, tais
músicos e tais mulheres não deixam nunca de ser funcionalmente
nacionais. (ANDRADE apud NÓBREGA, 2000, p. 23)
Sob este argumento fica-nos árduo o enquadramento da música armorial como
uma arte puramente nacional, posto que assume como brasileiro aquilo que mais tem de
preservado de ibérico e suas mestiçagens negras e ameríndias. Fato é que os
Movimentos Nacionalista e Armorial, tanto como as figuras centrais de Mário e Ariano
são paralelizadas – e no caso de Suassuna até mesmo pretendidas de imitação – como
norte criativo para os compositores referenciais em cada um desses movimentos. Em
termos musicais práticos, é a figura de Guerra-Peixe quem, de fato, promove a música
116
armorial. O acordeonista e compositor Sivuca, de carreira internacional notável, iniciou
seu métier sob a fundamental orientação de Guerra-Peixe:
[...] ele então pegou a orquestra (da Rádio Jornal do Commercio) da
qual era regente e diretor, e a transformou numa espécie de orquestra
experimental, na qual a gente ia trabalhando e já ia ouvindo o que
escrevia, quer dizer, havia também o lado prático. E foi nesse clima
que eu transitei na música e foi aí que eu aprendi a lidar com o
mistério da arte de orquestrar. Portanto, eu acho que Guerra-Peixe foi,
na verdade – como já disse e afirmo – meu timoneiro musical. Acho
que tudo que eu disser de Guerra é pouco. Eu sou muito grato ao que
ele fez; eu e todos nós que morávamos em Recife. O próprio Capiba
resolveu estudar música com Guerra. (FARIA et alli, 2007)
Mesmo que Guerra-Peixe não tenha “atualizado” os ouvidos e prática dos
músicos pernambucanos com o que havia de mais novo – incluindo as possibilidades
dodecafônicas a que o próprio Guerra se identificaria quando de sua aproximação a
Koellreutter – a ideia era suscitar mudanças, cambiar espíritos, seja nos instrumentistas
seja nos compositores – conquanto a maioria transitava naturalmente por ambas as
práticas. Usar, portanto, apenas elementos da tradição popular não era suficiente. Surgiu
então a necessidade de incorporar com abrangência o fazer musical regional: a técnica
de arco então vigente teria de ser adaptada; a interpretação no que tange aos ataques,
articulações, e tipos de sopros ficariam mais “rústicos” e as hibridizações modais seriam
largamente exploradas. Mas esta trajetória estaria longe de ser posta linearmente ou
facilmente consensual; desde o princípio havia divergências estilísticas – muito embora
o “estilo armorial” ainda estivesse por ser feito. O compositor José Ursicino da Silva
sobre este assunto, se expressou: “Procuraram-me com essa ideia de música armorial
que era muito boa, mas Ariano tinha a ideia e Cussy queria aparecer; acabou que eu fiz
os arranjos dos primeiros concertos e nunca recebi nenhum crédito por isso!” (XXX,
2009).
O Movimento Armorial desde seu princípio quando de sua oficialização perante
o público com o Concerto “inaugural” em 18 de Outubro de 1970 na Catedral de São
Pedro dos Clérigos em Recife, já estabelecera não somente no trato composicional
como mesmo numa indução da percepção do público a intrínseca relação entre a música
barroca e a armorial propriamente dita:
[...] puderam ver uma exposição que reunia gravuras, pinturas e
esculturas exibindo o conceito de arte defendido pelo Movimento
Armorial. A música foi a atração principal. A Orquestra de Câmara
Armorial, nascida no Conservatório Pernambucano de Música e sob a
direção do violinista Cussy de Almeida, executou, iniciando a noite de
festa, músicas barrocas do século XVIII. Os compositores escolhidos
para a primeira parte do programa foram os pernambucanos José Lima
e Luís Álvares Pinto [...]. O segundo trecho do programa trouxe
música de compositores do século XX, como Capiba, Jarbas Maciel,
Clóvis Pereira e Guerra-Peixe. (VICTOR e LINS apud MARINHO,
2010, p. 35)
É possível pensar que um dos aspectos que suscitou divergências é que, as
pesquisas sobre música barroca no mundo já haviam aprofundado o suficiente para que
um músico como Cussy defendesse ideias que só depois foram alargadas para o ensino
e, sendo este um violinista de estirpe eminentemente centro-europeia, não se contentou
ao meramente “rústico” e uma mimese demasiadamente objetiva. Fato é que as
divergências permaneceram e acirraram-se. Logo a orquestra se desfez e Suassuna
“tomou para si” o Quinteto Armorial que passaria a ser posteriormente a Orquestra
Romançal. Estes partidos estilísticos por assim dizer, fincaram bandeiras mesmo em
críticas mais recentes. Em 1994 Clóvis Pereira divergia com Jarbas Maciel sobre o
disco do Quinteto da Paraíba Armorial & Piazzola. Enquanto Clóvis requeria mais
“agressividade” no toque de modo geral, que sem isto, em sua concepção,

117
“europeizava” em demasia a música, Jarbas declarava que o grupo “captou
perfeitamente o espírito da música armorial”. Mesmo sob permanentes discussões, o
Movimento rendeu seis álbuns: Quinteto Armorial – Do Romance ao Galope
Nordestino (1975); Orquestra Armorial – Onça (1975); Quinteto Armorial – Aralume
(1976); Orquestra Armorial – Gavião (1976); Quinteto Armorial (1978) e Sete
Flechas (1980). Após a retomada em 1989 da orquestra quando Cussy de Almeida era
diretor do Consevatório Pernambucano de Música, as últimas apresentações foram
feitas em série de concertos em Dezembro de 1996 no Centro de Convenções de
Pernambuco. Essa série foi intitulada As melodias que encantaram o século e em nada
se aproximou da música que faziam antes. Tratou-se de um programa composto por
temas populares internacionais recentes, em sua maioria norte-americanos como Misty,
New York, New York, My Way, dentre outros.
Com o fim “oficial” do Movimento Armorial, seu esfacelamento foi inevitável,
principalmente porque entre os membros havia divergências latentes a ponto de
prejudicar o andamento artístico. O forte ego e as personalidades infladas tanto de
Ariano como de Cussy ou de outros músicos, desde o princípio ligados ao Movimento
como o próprio Clóvis e Antônio Madureira, impossibilitaram, seja por uma iniciativa
individualizada, seja por algum intuito coletivo, a continuação do Movimento tal como
fora pensado.
2. Atualidade e seus herdeiros:
O legado armorial é inegável e inequívoco – seja para os que ainda estão em plena
atividade como Antônio Madureira, Clóvis Pereira, ou Maestro Duda, seja para os que
diretamente têm seguido seus passos – e gerações posteriores ao rompimento desfrutam
de muita influência sendo esta expressiva produção um norte identificador. Nesse
sentido, não mais como movimento coletivo, é possível pensar em uma música armorial
não só presente como em plena vigência enquanto emblema criativo e modus operandi
composicional/performático. Das gerações diretamente ligadas aos pioneiros, ficam-nos
hoje nomes como Dadá Malheiros e Danilo Guanais ou Josélio Rocha e Eli-Eri Moura.
Esses compositores têm perpassado essa tradição, fincando raízes sem vivenciar
conflitos estéticos. Suas obras aludem a uma sonoridade que, se não como pretendia
Suassuna, marcou-se como uma espécie de “ferro-de-boi” sonoro que instiga não só
compositores radicados no Nordeste, mas, sob o espírito modal, nomes como Osvaldo
Lacerda ou Edino Krieger. Esses, cada qual ao seu estilo, continuam mantendo ou
difundindo a ideia de uma armorialidade, diluída em prática e argumento criativo.
Jarbas Maciel elucida sobre as relações ou legado armorial deixado para a atualidade:
O Movimento Armorial é uma parcela importante desse grande
movimento geral de tomada de consciência nacional que o Brasil está
atravessando e que se manifesta praticamente em todos os níveis –
econômico, social, político e cultural. Sua influência musical direta
está patente em um “som característico” que já conquistou seu lugar
ao sol entre nossos arranjadores e compositores, como também no
extraordinário interesse que as novas gerações de músicos vêem
demonstrando ultimamente. (QUEIROZ, 2009)
Das grandes obras compostas mais recentemente reiteramos o Concerto duplo
para viola e violoncelo (2007) de Eli-Eri Moura, escrito – em homenagem aos 80 anos
de Ariano – sob o título Armorialis e que foi estreado no Festival Virtuosi em Recife.
Outra obra recém-estreada é a Paixão segundo Alcaçus de Danilo Guanais, que segue o
modelo tradicional barroco e possui uma instrumentação rica e de proporções
significativas. Também, a primeira ópera armorial Dulcinéia e Trancoso de Eli-Eli feita
a partir de libreto do escritor e teatrólogo Waldemar José Solha. No enredo constam
dentre os personagens adaptações de clássicos da literatura alla Ariano como Dom
Pixote e São Chupança e os profetas Cervantes e Ariano numa espécie „nordestinesca‟
118
de “esculhambação” humorística assim como é na Commedia dell’arte. Para ilustrar
obras compostas sobre este argumento na novíssima geração de compositores, citamos a
obra Tocccatarmorial, composta em 2008 por XXX. Bem mais ousada do ponto de
vista rítmico e métrico, a peça alça outros patamares de armorialidade, numa concepção
atualíssima que mostra como essa atmosfera segue servindo aos interesses compositivos
contemporâneos. Jargões comuns, como acompanhamentos rítmicos e sequências em
terças, são amplamente explorados na obra, além do emblemático intervalo de quarta
aumentada, presente na chamada “escala nordestina”, que divide o total cromático ao
meio e que se revela como uma simbiose entre os modos lídio e mixolídio. A existência
dessa obra deve-se ao contato com a violinista Marina Marinho – então desenvolvendo
pesquisa sobre obra de Clóvis Pereira através da qual o conheceu. Eis alguns trechos da
peça e breves comentários que dão ideia do “caráter armorial”:

119
Exemplo 1: Toccatarmorial, compassos 1-5, escalada em dó mixolídio.
Já na introdução da obra (os onze primeiros compassos), é possível denotar o
“tom” heráldico, a sonoridade “mixolídia” como que clareando e prenunciando o
discurso que, por sua vez, é marcado por uma dualidade denotada do andamento
Pesante e Rápido além da incisiva e contundente dinâmica em fff. Para acirrar ainda
mais esta sonoridade inicial, exige-se a ressonância e a coloração contínua dada pela
permanência do pedal direito. A partir do décimo segundo compasso vemos a entrada de
um pulso rítmico, uma espécie de baião e galope misturados, desta vez noutra
sonoridade e dinâmica diametralmente opostas:

Exemplo 2: Padrão de acompanhanmento.

No décimo nono compasso inicia-se um constructo rítmico-melódico, a partir da


melodia Asa Branca acima deste padrão rítmico e que surge em oitavas em cada mão
na região aguda, por relações de terças e em polirritmia com o „acompanhamento‟
mais grave. A entrada da “voz superior” por assim dizer, retoma a sonoridade agressiva
e em oitavas apresentada na introdução, o sentido igualmente ascendente, e a dinâmica
permanentemente forte. As terças contíguas apontam para o canto de repentistas e
cantadores de viola tanto como o som mais rude que pode ser interpretado
analogamente ao som gutural percebido neste tipo de emissão vocal: fatores indiciais da
sonoridade defendida por Ariano e que se embrenham em criações recentes:

120
Exemplo 3: Complexo rítmico.
Após uma espécie de reintrodução, nova seção se estabelece com o intervalo-
chave e a melodia de Asa Branca:

Exemplo 4: Quarta aumentada.

Neste trecho, faz-se uso do mesmo recurso que Ariano ou Solha fazem, ao valer-se de
seus conhecimentos do repertório pretérito: aqui, Liszt é evocado através da sutil
citação à Sonata Dante que, por sua vez, alude ao intervalo-chave diabolos in musica
igualmente presente, por via medieval, na cultura nordestina. Assim depreendemos que,
de uma maneira ou de outra, o que Maciel afirma é verificado sem muitos esforços, em
obras de vários compositores que continuam a combinar e recombinar elementos
naturais na estética armorial em novos jogos criativos. Cabe aqui a importância do
suscitar de novos trabalhos investigativos, sobretudo musicológicos, que esmiúcem a
matéria para que tenhamos melhor consciência das dimensões e resignificações que este

121
temário nos aponta. Com relação ao legado deixado pelos grupos armoriais oficiais,
sobretudo no que tange à performance, em Pernambuco é fácil citar diversos conjuntos
instrumentais que ainda desenvolvem – muitos em franca atuação – repertório com
marcas armoriais entranhadas em suas concepções. É o caso do Quinteto Violado,
Quarteto Romançal, Cascabulho, Sá Grama, Cordel do Fogo Encantado, Chão e
Chinelo, Zabumba de Virgulino, além de trabalhos individuais de ex-integrantes do
movimento como Antônio Nóbrega ou Antônio Madureira. Sérgio Campelo, flautista e
arranjador no Sá Grama, assim comenta sobre o estilo do grupo:
Em nossos arranjos, procuramos buscas o máximo de efeitos sonoros.
Isso é influência clara do Quinteto Armorial, da Música Armorial e do
Movimento Armorial como um todo. É nessa coisa de Pernambuco,
buscar aquelas músicas, de tons modais, os sons dos caboclinhos, dos
maracatus. Não há dúvida que existe essa influência, existe uma
paixão por esse lado Armorial, pela nossa música, então eu busco
sempre trazer isso para o trabalho do Sá Grama (QUEIROZ, 2012).
Obviamente, este trabalho não pretende fazer um relato completo, e um
apanhado musicológico de tantos outros grupos, fora de Pernambuco ou mesmo
compositores pernambucanos que tem se valido em suas poéticas de resquícios ou
referências armoriais, mas, deixe-se claro que há muitos outros nomes a serem
explorados e investigados em suas medidas.

Referências:
FARIA, Antônio, BARROS, Luitgarde, SERRÃO, Ruth. Guerra-Peixe. Um músico
Brasileiro. Rio de Janeiro Ed. Lumiar, 2007.
LIMA BRITO, Antônio de Pádua. Ariano Suassuna e o Movimento Armorial:Cultura
brasileira no regime militar. Campinas. Unicamp 2005. (Dissertação de Mestrado em
Sociologia).
MARINHO, Marina Tavares Zenaide. Aspectos analítico-interpretativos e a estética
Armorial no Concertino em Lá maior para violino e orquestra de cordas de Clovis
Pereira. João Pessoa: UFPB, 2010. Dissertação, Mestrado em Música, PPGMUS-
UFPB.
MORAES NETO, Geneton. O Brasil, seu povo e seu destino, segundo Suassuna
(entrevista), Jornal do Commercio. Recife, 12/09/1989.
MUZART, Idelette. Em demanda da poética popular. Campinas. Editora Unicamp,1999.
NÓBREGA, Ariana. A Música no Movimento Armorial. Rio de Janeiro: Escola de
Música da UFRJ, 2000. Dissertação, Mestrado em Música.
RAJÃO, Alberto. “Sucesso Armorial no Sul”. Em Documentos. Recife: CD-ROM
Movimento Armorial – Regional e Universal. Maga Multimídia Produtora, 2008.
SUASSUNA, Ariano. O santo e a porca – O casamento suspeitoso, 2ª edição. Rio de
Janeiro. Ed. José Olympio, 1976.
VARGAS, Herom. Hibridismos Musicais de Chico Science e Nação Zumbi. São Paulo:
Ateliê Nacional, 2007
TOCCATARMORIAL, Samuel Cavalcanti Correia. 2008. Partitura manuscrita não
publicada.
QUEIROZ, Rucker Bezerra, Entrevistas orais.

122
A Composição no Movimento Armorial: Laconismo e
Escritura de um Toré
Rucker Bezerra de Queiroz1, Samuel Cavalcanti Correia2
1
Escola de Música – Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN) Natal – RN – Brasil
2
Laboratório de Composição Musical (COMPOMUS) – Universidade Federal
da Paraíba, João Pessoa – PB – Brasil
ruckerb@terra.com.br, sccpianoviola@yahoo.com.br
Resumo. Este trabalho resulta de pesquisa em aporte interdisciplinar na qual o Movimento
Armorial, seus protagonistas, intérpretes e compositores foram estudados pelas influências em
gerações que se seguiram no Nordeste Brasileiro. O ato compositivo enquanto prática
interpretativa que se dilui no universo ideologicamente orientado pela figura inconteste de seu
criador, o teatrólogo e literato Ariano Suassuna. Três gravações foram tomadas como base,
na interpretação criativa de uma mesma obra, por meio do exame da escritura, tanto impressa
quanto no registro interpretativo dos grupos envolvidos pelo Movimento.
Abstract. This paper aims a brief discussion on the Armorial Movement, its protagonists,
interpreters and composers. Especially the composing act as a collective practice under
aesthetics directions of Ariano Suassuna. In particular, three recordings of one piece where
examined in comparison one to another in which was verified the interpretative decisions and
contributions of the performers linked to the armorial scenario.

1. Da trajetória à composição:
Em três interpretações de Toré de Antônio Madureira, a ideologia que o norteia, – uma
alusão ao rústico, primitivo, verificado na primeira gravação feita pelo Quinteto
Armorial e sua relação mimético-organológica – a recriação na escritura e na
performance dos Quintetos da Paraíba e Uirapuru, foram consideradas no tocante a
parâmetros como dinâmica, articulações, aproximações rítmicas, nuances de tempo, etc.
Concomitantemente, ao expormos uma ideologia, confrontamo-nos com exigências
composicionais, além de concepções interpretativas – perfazendo em três quintetos, um
legado de quarenta anos – para apresentarmos os desdobramentos em som e sentido
enquanto argumento ou provocação para o ato criativo. Não obstante, outro aspecto
posto em questão é o da denominação da contemporaneidade da música, não enquanto
feitura do tempo, mas, aludindo à afirmativa de Madureira, da possibilidade de inclusão
em repertórios de concerto de „música erudita contemporânea‟. Ora, tanto na América
Latina, quanto nos países de primeiro mundo, a terminologia „música contemporânea‟,
usada na conotação de Madureira, toma outros significados, por vezes – e
essencialmente – bem distintos dos rumos que a música armorial aponta. Não há, por
assim dizer, busca por quebras de paradigmas formais, estruturais, ou de transcendência
dos elementos e suas organizações tal como são dispostos nas manifestações populares
matriciais. Tampouco – sem desmerecer o feito e a trajetória compositiva de seus
criadores – a ligação dos compositores armorialistas perpassa outro fazer que não este
etnicizado. Trazendo mais substância ao tema, Nóbrega (2000) cita o próprio Guerra-
Peixe:
Os compositores, no entanto, tomariam a matéria-prima "rude" e
transformariam em obras de arte. A música brasileira partindo do
"inconsciente do povo", como diz Travassos (2000), passaria para um
nível artístico através dos compositores com formação em Escolas de

123
Música e Conservatórios. Numa carta escrita para Mozart de Araújo,
Guerra-Peixe, instalado na época em Recife para pesquisar sobre
elementos da música popular brasileira, fala da sua dificuldade em
assimilar os códigos da “matéria-prima”: Quanto aos descobridores do
Maracatu... nem o Mignone e nem eu fizemos realmente coisa alguma
(NÓBREGA, 2000, p. 26).
Essa dificuldade não se dá apenas pelo distanciamento do objeto sonoro
primário, mas também, pelo afinco de artistas como Guerra-Peixe e Mignone que
procuravam atrelar isto, suas „descobertas‟ ao linguajar atual, sem maneirismos. Um
exemplo muito forte – e diametralmente oposto – de contemporaneidade já ocorria na
Bahia com Ernst Widmer, Walter Smetak e Koellreutter e com o grupo Música Viva:
Foi criado em 1939, no apogeu da ditadura de Getúlio Vargas.
Formado por um pequeno grupo de músicos, que, no ano seguinte,
começa a editar a revista Música Viva, onde discutiam problemas
técnicos e estilísticos da música contemporânea, buscando novas
técnicas composicionais e uma nova linguagem. Em alguns artigos,
atacam-se o nacionalismo musical ortodoxo e a forma como o
compositor nacionalista se aproveita da temática folclórica, não
possuindo assim, seus temas próprios. Cláudio Santoro, Guerra-Peixe
e Edino Krieger foram alguns dos representantes mais importantes.
Em 1948, esse grupo divulgou um manifesto chamado Música Viva,
dizendo-se acreditar “no poder da música como linguagem
universalmente inteligível, e, portanto na sua contribuição, para a
maior compreensão e união entre os povos”. Valorizou a importância
da música popular no plano artístico e social e também contestou o
falso nacionalismo, alegando que por meio do folclore, se estimulava
“tendências egocêntricas e individualistas que separam os homens”
(NÓBREGA, 2000, p. 31).
Para reforçar, Nóbrega ainda traz palavras de Claudio Santoro e segue
comentando:
Em 1941, Cláudio Santoro publicou matéria em uma revista, dizendo
que os compositores brasileiros preocupados com a pesquisa do
folclore não dariam nenhuma contribuição de “novo” e nenhum
avanço em relação à música erudita brasileira. Falou ainda que o uso
de temas folclóricos apenas iria contribuir para a elaboração de peças
com um “suposto paladar nacional”. Santoro também comentou da
importância do compositor ter um conhecimento profundo das
técnicas de composição para não aproveitar o folclore apenas no nível
de uma“mera intuição e estilização”. Sendo assim, o folclore deveria
ser estudado sob o ângulo puramente técnico, como por exemplo: tipos
de escala, cadências, estruturas rítmicas e timbres dos diversos
instrumentos folclóricos (NÓBREGA, 2000, p. 33).
A Música Armorial parecia já definida com o Quinteto e a Orquestra Armorial.
O Quinteto da Paraíba trouxe em seus arranjos e recriações, releituras dessa música. Já
o Quinteto Uirapuru, conjectura novos conceitos, que buscam imprimir à música já
conhecida algum tipo de “atualização” que fosse rítmica, harmônica ou mesmo
interpretativa. O Quinteto Uirapuru iniciou trabalho de pesquisa experimental e
procurou recriar „atmosferas‟ de cada referencial musical base do Movimento. No caso
Toré, a intenção foi usar de licença interpretativa para co-criar numa mistura de estilos
que se percebem em cada grupo anterior e de suas leituras da escritura sempre lacônica
de Antônio Madureira. O próprio compositor considera sua peça como uma espécie de
versão “minimalista” por ser constituída de poucos elementos que se alternam
124
repetidamente sem desenvolvimento. Não adentraremos no mérito específico e
conceitual sobre minimalismo aqui, mas, deixa-se notar a comunal referência ao
movimento intrínseco e ininterrupto entre ambas estéticas que, por sua vez, buscam
raízes em comportamentos musicais de culturas ancestrais. Em depoimento a Ariana
Nóbrega, Madureira assim se expressa:
Acho que se tiver de criar uma música brasileira, nordestina, só
existiria um caminho, trazendo a erudição para a música popular,
fazendo um caminho contrário. Teria que transcender da própria
matriz, tornando uma obra de arte de interesse universal. Não pegando
elementos dessa matriz, levando para outro local querendo fazer uma
arte erudita. No trabalho que fiz para o Quarteto, nas quatro suítes
indígenas, Ariano acha que esse trabalho superou tudo que foi feito. A
impressão que tem é que a própria música indígena, ela mesma que
transcendeu tornando uma música erudita, e não elementos de cultura
indígena, melodias e ritmos que entraram numa estrutura de música
erudita europeia como o nacionalismo fazia. Foi como se o músico de
uma cultura indígena conseguisse levar adiante a experiência da
tradição (NÓBREGA, 2000, p. 53).
A pesquisadora esmiúça essa trama de instrução ou ideário estético de
Madureira, trazendo ainda elucidações válidas no contexto de Toré:
Tentou absorver todo o material melódico e harmônico, tais como
duetos e pedais rítmicos a levar essa experiência mais adiante,
respaldado com o conhecimento de música erudita. Ele achava que
pelo conhecimento que teve [...] jamais deveria utilizar princípios
harmônicos tradicionais europeus e modulações.
[...] “O que consigo dizer é que a nossa música é popular enquanto
essência e erudita enquanto concepção e elaboração”. Para Antonio
Madureira, a atitude erudita resulta em fazer um trabalho de síntese a
partir do modelo popular, criando conexões entre elementos distintos,
intenções, expectativas e resoluções (NÓBREGA, 2000, p. 54).
Estas intenções, expectativas e resoluções não possuem naturalmente, os
mesmos significados de música tonal ou mesmo modal eclesiástica – como no caso da
musica ficta – pois a aplicação de princípios harmônicos é demasiadamente desprovida
de relações de tensão e relaxamento sob a percepção eurocêntrica. No entanto vê-se
claramente que Madureira traz, não só para Toré, mas para o corpus de sua criação, sua
experiência perceptiva. Frise-se: não a própria manifestação, mas sua mimese e
proposta interpretativa de um compositor que transcreve e os intérpretes que (re)criam
sua forma de percepção da ou na escritura. Ainda com relação à economia rítmica e
detalhes de repetição de notas em Toré, Nóbrega afirma:
Madureira explica que esses elementos são encontrados com maior
frequência na música ligada a uma herança antiga porque fazem parte
da música dançada. Para ele, a música dançada não precisa de
desenvolvimentos melódicos ou harmônicos, ela é uma sequencia de
ritmos [...] outra característica encontrada nas melodias das Músicas
Armoriais é a nota rebatida, como chama Antonio Madureira. Ligadas
de duas em duas notas, tendo sempre uma que se repete para ligar à
seguinte. Essa característica também é observada com frequência em
gêneros musicais nordestinos como forró, repertório de sanfona e de
rabeca [...]. E não é apenas o uso da ligadura, essa célula tem uma
acentuação bem característica, própria do estilo [...]. São acentuações
que estão fora dos tempos (NÓBREGA, 2000, p. 63).

125
2. Da escritura e suas peculiaridades:
A escritura musical – e neste aspecto assemelha-se também aos demais processos de
escrituras linguísticas – é imperfeita e essencialmente insuficiente. A interpretação de um
hieróglifo maia ou egípcio requer, por exemplo, assim como em música, muito mais do que
leitura estrita do código, mas, sobretudo, seu contexto simbólico e semântico. Na escritura
da música armorial tal máxima não seria diferente mesmo ainda porque se trata de prática
artística eminentemente calcada em fazeres populares, cultura oral e seus contextos sócio-
antropológicos. Arnold Schoenberg, quando da explanação sobre a escala cromática
enquanto fundamento da tonalidade ou de sua conceituação é taxativo a este respeito:
O material de todas as configurações produzidas através do enlace dos
sons é uma série de doze sons. (fato de que aqui existem 21 nomes de
notas e que se representem a partir de dó, corresponde e se deve à
nossa imperfeita escrita musical; uma notação mais perfeita
conheceria apenas 12 nomes de notas e fixaria, para cada um deles,
um signo independente) (SCHOENBERG, 2001, p. 533).
Sem dúvida, escrever em papel, sentimentos, afetos, emoções, memórias, e
igualmente representações sonoras, ou codificar para que se chegue a isto não é tarefa
fácil e, seja na cultura ocidental ou na oriental é na prática interpretativa que se verifica
a “mágica” do acontecimento recriativo, da contextual decodificação que transcende
qualquer leitura estrita de sinais para alçar o som e o sentido de cada época, cada mente
criadora, cada expectativa. No caso de Toré, por exemplo, embora Madureira assine a
lavra musical, há um bojo de percepções, eminentemente coletivas, sem desconsiderar
uma crença ideológica, uma estética a seguir que tende a enaltecer a música feita no
Nordeste, propondo amálgamas com outras tradições mais recentes, sem perder de vista
o já misturado artesanato musical popular, resultante de tradições tanto ameríndias e
africanas quanto eurocêntricas ou mesmo, por via ibérica, mouras. Isto aponta para dois
aspectos: a exiguidade de detalhes escritos, ou seja, a falta de necessidade
composicional em escriturar ao máximo intenções; e, por conseguinte, a valoração da
performance, o ato interpretativo permanente que tem na partitura um suporte, não uma
regra de fé: esta estaria fundamentalmente fincada na interpretação viva. Eis o primeiro
sistema da primeira versão da peça, pela caligrafia do próprio Madureira:

Figura 1. Fac-símile de Toré.

126
A voz enquanto “escritura invisível” e “poética” é o desafio dos músicos
armorialistas, tanto da primeira geração quanto para todos os que desejarem interpretar
tais obras. Será na voz, no grito, no lamento, no aboio, na reza, na cantiga de cego e em
outras manifestações que os compositores armoriais e todos os intérpretes deverão
buscar esteio para seus planejamentos artísticos, seus pensamentos organizacionais.
Peter O‟Sagae suscita a questão “o que esta música nos diz?”; Arnold Schoenberg fala
por si e nos dá uma possível resposta: “o artista tem ainda algo mais a dizer, diferente,
além de sua técnica; e a mim ele diz, antes de tudo, este algo. Sempre compreendi
apenas dessa forma, e somente mais tarde vim a analisar” (SCHOENBERG, 2001, p.
545). Ariana Nóbrega ainda remete ao aspecto contextual e estilístico referindo-se ao
próprio Madureira:
Para ficar com mais “sotaque” a interpretação, Antonio Madureira
explica que se faz necessário uma vivência, um conhecimento de
como a tradição elaborou as melodias para que sejam tocadas no
estilo. Segundo ele, a partitura em si não quer dizer nada, não diz
nada, não passa nada, fazendo uma analogia da melodia das músicas
com a língua, que também tem que ser aprendida da maneira como se
fala e articula [...] relata que está muito interessado em “coisas” que
passaram despercebidas, procurando estudar e ouvir a música
indígena, observando como é construída a melodia e como eles
solucionam de uma "maneira tão diferente do que é estabelecido como
melodia popular” (NÓBREGA, 2000, p. 64).
Este ”sotaque‟ – peculiaridade eminentemente vocal – é o acento, a inflexão
que o ato performático tem de mais natural e que a escritura impressa não aperfeiçoa em
sinais, mas apenas infere, provoca, para que a interpretação construa e a traga ao mundo
físico dos sons. Nisto acreditamos o cerne deste trabalho: que a escritura interpretativa
traz luz para investigação de performances a partir de um mesmo ponto comum. O Toré
de Madureira é „inventado‟ e reinventado, inscrito, e reescrito em três entendimentos
interpretativos. Seja por quaisquer destas versões – interpenetradas e complementares –
a escritura de Toré carrega em seu bojo de aparente simplicidade, uma gama de leituras,
percepções, e “traduções” subjetivas, mas sob pontos de vistas distintos: do compositor
e dos interpretes. Se há “reevocações” muitas destas não serão meramente das
“vontades” de Madureira, mas antes, da atmosfera que ele recria em sua música, e de
toda a significância que traz à tona em cada versão ou “licenças interpretativas” que se
mostram bastante ricas, e distintas entre si:
Na partitura para a música, como na pauta para os versos, registram-se
brilhos de menor intensidade quanto às ideias originais que
precederam a primeira codificação do “gérmen criador-criativo” à
inscrição do pensamento – exercício de tradução entre a mensagem
que quer dizer a si e o fazer do artista. [...] Também é o momento do
compositor aniquilar o silêncio de possibilidades dúbias em favor de
sua música, no desejo (tentativa e esperança) de uma escrita clara e o
mais próxima de sua obra interna. E ainda, é a hora da tradução que,
por fim, transfigura o corpo do artista na malícia do tempo [...] Há,
portanto, uma responsabilidade no registro do intérprete: a segunda
enunciação da obra, a passagem progressiva do estado de latência à
manifestação da tessitura poética feito música. Assim a identidade
interpretativa tonifica a escritura inicial, faz aderir sua voz à voz
criadora, recria a mensagem em seu meio, seu instrumento [...] Assim,
do músico-compositor ao intérprete-executante de sua obra, o texto
musical adquire constantemente as vozes que parecerão, por vezes,

127
soar em uníssono na locução musical. [...] a voz de um fazer compor
(e recompor, em alguns casos) em audição da voz do fazer tocar (e
criar conjuntamente) projetadas sobre o discurso de um único corpo
musical. [...] A música que já existia (intuída) desde um plano abstrato
da expressão, passa a existir (sensivelmente) em um corpo organizado
e estável na duração de um tempo de presença, através de sua
materialidade expressiva. Em contrapartida, outra sorte de existência
será conferida ao texto musical quando a situação comunicativa se
estabelece com o ouvinte da obra – seja este público: leigo ou músico,
compositor ou intérprete (O‟SAGAE, 1998).
Refletindo ainda sobre escritura e sobre a experiência composicional, sempre
individuada, Nóbrega trata de especificar o ato ou “gérmen criador-criativo” como se
refere O‟Sagae, quanto à inscrição do pensamento; vemos especificamente em Toré:
Na música Toré, como exemplo, o que Antonio Madureira considerou
mais importante foi a tentativa de trazer uma experimentação de uma
nova forma musical. Revela ele, que não adianta querer dar “grandes
voos” na composição quando se está reconhecendo um "novo terreno”
[...] A repetição de fragmentos melódicos é constante, apresentando-se
em diferentes instrumentos, com poucas variações, sobrepondo com
uma diversidade de material rítmico. Muitas vezes o material
melódico surge em superposição de terças paralelas, técnica essa
frequente na música popular e na polifonia europeia (falso-bordão) e
acompanhada de nota-pedal. O uso de pedais, muito comum, é
encontrado com nota sustentada como ostinato, podendo também ser
rítmicos, como observamos no violão nos compassos 31 ao 36 e 55 e
56 (NÓBREGA, 2000, p. 66).
Disto depreende-se não só a autoconsciência artística do compositor, mas, sua
simplicidade, suas intenções, sua percepção que da dança toré, do canto ou do
instrumento – ainda do que mais o tenha estimulado sonora ou psicologicamente – que,
se não se imprime na partitura original, está embutida na gravação que traspassa a
escritura impressa, a codificação por si só. A imitação, suas transformações, a mimese
intrínseca e extrínseca na experiência composicional e a tentativa de escriturar o todo
apreendido, é, para cada compositor e em cada circunstancia uma meta inequívoca:
A primeira percepção do estímulo sonoro é ainda uma escuta
instintiva: de aceitação, se o discurso lhe cai em decoro, i.e.,
diretamente ao coração, o centro motor de sua existência particular; ou
de recusa, se na tessitura de sons não encontra o reconhecimento de
sua necessária segurança. Trata-se obviamente de uma apreensão
imediata, um rápido reflexo frente às possibilidades rumorosas de um
“não-sei-quê” incômodo – que, enfim, é seu próprio silêncio... mas
isso jamais se evidencia, pois o lócus emocional, uma espécie de
representação do Eu centrado, evita reconhecer tamanha instabilidade
como sua, quer por preconceito, quer pela formatação do próprio
gosto musical. Desejamos, nesta postura, que o compositor tenha
enfrentado as dicotomias sonoras, como representação da vida e da
morte através do silêncio, entregando-nos somente o momento suave
de suas descobertas. Neste ponto, incide refratariamente a alegria do
Da Capo, nossa alegoria para a repetição dos padrões melódicos,
agora pressentida entre duas escrituras musicais que se confrontam:
uma que é ouvida com ineditismo, outra já constando do espaço
sonoro mental, servindo sempre como referência para as novas
identidades discursivas. É um paradigma que controla a experiência,

128
financiando julgamento e justificativa para a “beleza” da obra.
(O‟SAGAE, 1998).
Assim denotamos facilmente que a percepção de Madureira dos “mundos
sonoros” – não somente indígenas – que o estimularam a uma escuta instintiva e
espontânea – quando do reconhecimento de um “novo terreno” como ele próprio atesta
– trás à tona, no caso de Toré, uma obra que lhe cai diretamente ao seu centro motor, ao
andamento que a peça terá, seus batimentos, repetições, à forma e à tessitura. Esta
experiência de apreensão das características dos torés, como já observado, não é
somente de um, mas de todos os membros do Quinteto Armorial que gravaram a obra,
pois o interesse é coletivo, e também, porque ao executar, monta-se uma relação
dialógica, se não tão rápida como um reflexo diante do silencioso ouvir do compositor,
mas também, repleta de novas intuições e compartilhamento de ideias. Ratificando este
princípio dialógico levantado por O‟Sagae – em cuja experiência armorialista é uma
espécie de contínuo reviver do Da Capo ideológico na interpretação, na construção dos
timbres, sua imitação e evocação das paisagens sonoras interioranas – citamos um
considerável trecho autoanalítico escrito por XXX em que se percebe o paradigma
norteador da experiência, uma quase revelação do lócus emocional por meio de uma
aparente dicotomia em cujo relato se escancara os mundos influenciadores que
nortearam a escrituração da ideia musical:
A dialética é estabelecida aqui na medida em que o discurso alheio,
dos compositores influentes, é imitado por meio de impressões aurais
ou de trechos musicais específicos (no caso de Messiaen). Essas
referências miméticas, processadas e subordinadas a um contexto
discursivo mais amplo, promovem a dialética entre as diversas
“vozes” imitadas e a “voz” que as transforma e submete.
Uma percepção passeriforme do meio ambiente é uma outra
transcrição imitativa operando nesse contexto dialógico e dialético. A
imitação de procedimentos em relação aos compositores escolhidos e
suas obras se dá em Católicos Limiares, de maneira exemplificável,
em alguns momentos específicos [...] Em relação ao Catalogue
D’Oiseaux, o trabalho imitativo foi bem mais desdobrado. A imitação
dos outros compositores baseou-se em impressões aurais enquanto
que em Messiaen, houve seleção e processamento de trechos
específicos. Messiaen usa um processo descritivo e sugestivo de
imagens transcritas para o idioma pianístico, as quais são misturadas
às imitações dos cantos dos pássaros. A paisagem em geral e detalhes
específicos do hábitat de cada pássaro imitado por Messiaen são
inclusos na partitura de Catalogue D’Oiseaux de maneira detalhada,
em forma de objetos sonoros que formam uma rede intricada de
relações entre si, como é a própria rede de conexões dos seres vivos
no meio ambiente. Toda essa rede de conexões significativas foi
imitada em Católicos Limiares, além de trechos específicos de
Messiaen terem sido absorvidos e transformados em vários
momentos. [...] Da mesma forma, cada canção é introjetada no
discurso sem necessariamente ser percebida como canção, ou seja,
sem sua alusão natural, seus contextos primários (CORREIA, 2008).
Ao especificar na escritura detalhadamente espaços sonoros nos quais as
influências de outros compositores e os universos estéticos a que cada um evoca, XXX
revela uma relação simbólica indispensável em sua criação e explicita a “sedutora rede
de vozes” de que trata O‟Sagae a partir de sua própria experiência. O argumento central
neste caso foram os pássaros que os unem a uma tradição de relacionamento ambiental

129
do artista ao seu entorno. Dada as devidas proporções em cada caso, há inúmeras
semelhanças entre a percepção de Madureira e a de XXX que, sendo compositores
nordestinos, mas de gerações distintas, imbuíram-se de valores não somente estéticos,
mas, sobretudo aurais. As impressões que em cada um se fizeram externar, erigem obras
que os caracterizam e demonstram as necessidades particulares, as razões de foro íntimo
que norteiam o “Eu centrado” através do ouvir silenciosamente de suas intuições e o
exprimir mimético de seus afetos. Tal como Schoenberg assinala, tanto em um como em
outro, apercebe-se um transcender de meras técnicas, um crédito ou que-dizer
individuado para depois suscitar ensaios analíticos os mais diversos, ou mesmo
reinterpretações a partir do já criado. Ademais, mesmo com uma larga distinção entre o
nível de detalhamento entre as partituras de Toré – em sua versão original – e Católicos
Limiares, verifica-se que em ambos os casos, será na interpretação que essa rede de
significados, aparentemente misteriosos ou velados, emergirá ao ouvinte, se este – no
caso dos executantes – devotarem-se a ouvir ideias e não somente a decodificação de
sinais que se somam no tempo. É ai que entraria o entendimento de H. J. Koellreutter
sublinhado por Abdo: “o executante tem um papel eminentemente ativo e criador  a
interpretação é „decodificação dos signos musicais, logo operação que se define como
tradução subjetiva, mas, o processo interpretativo não fica inteiramente entregue à sua
subjetividade” (ABDO, 2000). E ai deixa-se as pistas para a percepção das relações
intencionadas pelo compositor: na verdade, uma questão de busca incansável por uma
interpretação que se renova a cada execução e a cada reflexão sobre a obra e o fazer a
que ela se destina. Se por um lado XXX delineia outros compositores – de gerações
anteriores e culturas distintas – como fontes de emanação estilística, técnica ou de
influências de seus que-dizeres; por outro lado, Madureira também revela fontes em que
bebe e em cujas águas vê-se espelhado:
Os compositores que Antonio Madureira também considera como
referência são: Villa-Lobos, Bártok, Stravinsky e Erick Satie. Ele diz
que suas composições, em termos de concepção, muito se assemelham
aos compositores referidos, e explica: “Não é no material harmônico.
Se colocar um monte de bemóis na música, aí o ouvinte irá perceber
essa aproximação. Acho que é um Stravinsky, mas um Stravinsky
modal, tonal, como também é Bartók, só que muito simplificado. É
Erick Satie, só que nordestino”. Para Antonio Madureira não
interessava saber que acorde Stravinsky utilizava e sim a atitude dele
com a música, criando contrastes, “sensação de primitividade” e
desenvolvimento rítmico. Madureira comenta que seu trabalho é
criticado por pensar dessa maneira, acusando-o de não saber música.
Dizem que é uma música primitiva o que ele faz por não ter
encadeamento harmônico. Madureira diz não ser música primitiva, e
sim outra concepção de música (NÓBREGA, 2000, p. 84).
Outro ponto comum em ambos compositores é a relação prosódica, as inflexões
que a palavra e o texto imprimem – ainda que diretamente, e muitas vezes, sob o
licencioso foro íntimo composicional – na música instrumental propriamente dita:
Antonio Madureira, o compositor que mais se aproximou da
“concepção Armorial”, afirmação essa, feita por Ariano Suassuna,
comentou [...] sobre a importância do estudo da língua e sua relação
com a música para a interpretação da música brasileira, mais
precisamente, da Música Armorial, pois as canções populares refletem
os ritmos, as pronúncias e os andamentos que caracterizam o modo de
falar, ou sotaque de um determinado povo. A linguagem da poesia, por
exemplo, sugere contornos melódicos e rítmicos. Os ritmos da fala

130
inspiram determinadas acentuações, refletindo características da
linguagem verbal na música popular e de concerto desse povo. Apesar
disso, Madureira também afirma que não considera problema que
músicos sem esse conhecimento, vindo de outras culturas, toquem as
músicas compostas por ele (NÓBREGA, 2000, p. 125).
A rusticidade do Toré original, gravado em 1974, permeia o laconismo da
partitura, as evocações das raízes timbrísticas dos instrumentos do Quinteto Armorial e
igualmente os recursos de gravação. Há também características peculiares na
interpretação, o andamento rápido e leve que se assemelha ao do Quinteto da Paraíba e
se difere do Uirapuru. A referência imagética das danças torés, seus movimentos,
embutem a rítmica e as reiterações entre as seções. Refletindo sobre o conteúdo
tímbrico, quando de frases em terças paralelas, estas nem sempre estão aludidas
exclusivamente ao mundo indígena ou mesmo africano, mas também, aos cantadores –
ligação direta que se dá pelos instrumentos de cordas dedilhadas que os acompanham –
numa espécie de simbiose, uma confraternização de tradições, um sincretismo de
costumes e músicas em que o Nordeste, sobretudo o sertão, está imerso e, muitas vezes,
difícil de discernir origens quando da obra musical já pronta: puro imaginário e
percepção composicional. A flauta – mágica não só em Mozart – remete a uma imitação
do instrumento toré, que não se distancia neste caso também, das referências aos
pífanos. A articulação é em todos os instrumentos desprovida de vibratos, arroubos
românticos ou de agógica que iniba o galope frequente do vaqueiro, ou do tambor de
coco que embala a disputa de negros e índios. Tudo desde a escolha das alturas e das
tessituras – sempre medianas em todos os instrumentos – numa estase como bem admite
Madureira. Tal estase nada mais é que como uma “fotografia composicional” de seu
identitário sonoro, um flash que se materializa sob o argumento do toré. O afeto aqui é o
mais intimista, o mais recôndito, de um compositor que buscou em sua vida o sentido de
sua música e que se conscientizou de sua condição criativa pela admiração que se nutre
no passado, nas raízes, no mito e no movimento.

3. Referências
ABDO, Sandra Neves. Execução/Interpretação musical: uma abordagem filosófica.
Belo Horizonte. Permusi, 2000. GOMES, L. F. Cinema nacional: caminhos
percorridos. São Paulo: Ed.USP, 2007.
CORREIA, Samuel Cavalcanti. Pássaros, Poesia e Canções: limiares de uma concepção
musical. João Pessoa: UFPB, 2008. (Dissertação, Mestrado em Música - PPGM).
MARINHO, Marina Tavares Zenaide. Aspectos analíticos-interpretativos e a estética
Armorial no Concertino em Lá maior para violino e orquestra de cordas de Clovis
Pereira. João Pessoa: UFPB, 2010. (Dissertação, Mestrado em Música).
NÓBREGA, Ariana. A Música no Movimento Armorial. Rio de Janeiro: Escola de
Música da UFRJ, 2000. (Dissertação, Mestrado em Música).
O´SAEGE, Peter. O texto musical. Revista Plural. Rio de Janeiro. Fundação das Artes,
1998.
SCHOENBERG, Arnold. Harmonia. São Paulo. Ed. Unesp, 1999.

131
Música indígena e processos de educação: saberes musicais da
sociedade Tupinambá na Amazônia do Brasil Colonial
Rafael Severiano

Programa de Pós-Graduação em Artes – Universidade Federal do Pará (UFPA)


Av. Magalhães Barata, 611 - 66.060-281 – Belém – PA – Brasil

rafael_severiano@yahoo.com.br

Resumo. Este artigo apresenta os resultados parciais de pesquisa de mestrado, que tem por
objeto de estudo a cultura musical da sociedade Tupinambá. A pesquisa é de natureza
histórica, tendo como fontes primárias os relatos de cronistas e viajantes que estiveram no
Brasil colonial e como fontes secundárias estudos sobre a organização desta sociedade.
Utiliza como referencial teórico as noções do historiador Serge Gruzinski e dos
etnomusicólogos Bruno Nettl e Jean Michael Beaudet. Como resultados parciais, apresenta
elementos que sustentam a concepção desta pesquisa, de que a música na sociedade
Tupinambá era um importante meio na constituição e organização desta sociedade, sendo
transmitida sob um modelo de Pedagogia do Cotidiano.
Abstract. This paper presents partial results of masters research, whose object of study the
musical culture of the society Tupinambá. The research is historical in nature, with the
primary sources reports of chroniclers and travelers who've been in colonial Brazil as
secondary sources studies on the organization this society. Use as a theoretical notions
historian Serge Gruzinski and ethnomusicologists Bruno Nettl and Jean Michael Beaudet. As
partial results, introduce elements that underpin the design of this research, that the music in
society Tupinambá was an important means in the constitution and organization of this
society, being transmitted in a model of pedagogy everyday.

1. Introdução
Esta pesquisa se propõe estudar a cultura musical dos índios Tupinambá, seus saberes
musicais e o processo de transmissão destes saberes.
A História da Educação era marcada por problemas e objetos tradicionais, como
a história das ideias pedagógicas e a história das políticas educacionais. Esse quadro
mudou a partir do movimento que deu nova direção à produção historiográfica [Fonseca
2003]. Segundo a autora, essas mudanças no Brasil foram percebidas de forma mais
nítida a partir da década de 1990. Fonseca ressalta ainda a necessidade de “extravasar o
mundo da escola para o enfrentamento de outras dimensões dos processos e das práticas
educativas” (Ibid.).
A pesquisa na área da Educação Musical era marcada por objetos tradicionais e
contextos formais ou escolares. Nas últimas décadas, os pesquisadores vêm mudando o
foco e a forma de pesquisarem a música, privilegiando múltiplos espaços. Dentro dessa
visão de múltiplos espaços, a cultura tem sido vista como campo principal de atuação.
Para Arroyo (2000), nas últimas três décadas a Educação Musical assumiu uma
postura mais relativizada, considerando os diferentes contextos sociais e culturais.
Segundo a autora a “educação musical deve ser muito mais do que aquisição de
competência técnica; ela deve ser considerada como prática cultural que cria e recria
significados que conferem sentido à realidade” [Arroyo 2000].

132
Ronaldo Vainfas prefaciando o excepcional livro de João Fernandes, De cunha a
mameluca: a mulher Tupinambá e o nascimento do Brasil (2003), diz que a tradição
brasileira, no campo da história sobre os seus indígenas, é tímida, acanhada, isso para
não dizer negligente, e que estes, geralmente, são estudados como mão-de-obra da
colonização, objeto da catequese, obstáculo ao avanço europeu, mas dificilmente, no
mínimo continua Vainfas, como protagonista da história do Brasil [Fernandes 2003].
Sztutman (2005) traz o pensamento de Varnhagen (1854) sobre a
impossibilidade de escrever uma história dos índios do Brasil, devido, sobre tudo, à
escassez das fontes, ou seja, os indígenas estariam impossibilitados de se constituírem
como sujeitos históricos. Contra este pensamento, Sztutman argumenta que os trabalhos
interessados em reconstruir uma história indígena, provam que essa escassez é apenas
relativa, e que do ponto de vista historiográfico, é possível reunir materiais sobre os
povos indígenas da América do Sul desde a chegada dos europeus nesta região
[Sztutman 2005].
Em face do exposto, parece razoável a busca por um olhar historiográfico que
possibilite um estudo das sociedades indígenas brasileiras como sujeitos de sua própria
história e como protagonistas da história do Brasil. Este estudo aproxima-se dos
pressupostos teórico-metodológicos da chamada Historia Cultural. O campo
historiográfico da História Cultural tornou-se mais preciso e evidente a partir das
últimas décadas do século XX, entretanto essa historiografia tem claros antecedentes
desde o início do mesmo século, ligados à chamada Nova História, que teve seu “início”
com a “Escola” dos Annales22.
A abordagem feita a partir da História Cultural compreende que toda a prática
social, toda a vida cotidiana está inquestionavelmente mergulhada no mundo da cultura.
Este posicionamento permitiu o estudo de objetos perpassados pela noção plural de
“cultura”. Mais adiante, serão discutidos os pressupostos teórico-metodológicos da
História Cultural utilizados nesta pesquisa.

2. Contextualização do Objeto
Os Tupinambá habitavam boa parte da costa brasileira, especificamente, partes do que
hoje são os atuais estados do Rio de Janeiro, Bahia, Maranhão, Pará e na Ilha de
Tupinambarana, no médio Amazonas [Mariosa 2003; Papavero et. al. 2002].
Os Tupinambás eram uma das mais importantes tribos do Brasil dos séculos
XVI e XVII. Habitavam a baía da Guanabara, no trecho entre Camamu e o rio Real, no
baixo Paraguaçu, nas margens do São Francisco, nas costas do Maranhão, nas praias do
Pará e na ilha de Tupinambarana, que atingiram já na época da colonização. Varnhagen
(1852) diz que “se alguém perguntasse a um índio a que “raça” pertencia, fosse esse
índio do Maranhão ou do Pará, Bahia ou do Rio de Janeiro, a resposta era invariável:
índio Tupinambá” [Métraux 1979].
Do final do século XV aos meados do XVII, inúmeros viajantes e missionários
de diferentes países tiveram intenso contato com os Tupinambá, que deixaram de sua
vida e dos seus costumes relatos extremamente fiéis (Idem.). Dentre esses estrangeiros
pode-se citar Hans Staden no atual Rio de Janeiro, Gabriel Soares de Sousa na atual

22
Cf. Burke 1990; 1992; 2005.
133
Bahia, Claude d’Abbeville e Yves d’Évreux no atual Maranhão e João Daniel na região
Amazônica.
Pode-se observar a presença dos índios Tupinambá na Amazônia: ilha de
Tupinambarana, Pará e Maranhão,23 e ainda, a produção de relatos sobre estes na
mesma região. Estudar a referida sociedade é também tratar de uma população
amazônica.
A educação na sociedade Tupinambá se dava conforme a orientação e o exemplo
dos mais antigos, que preparavam as gerações mais novas para a tarefa de seguirem com
o modelo de organização em vigor. Sendo assim, os diversos saberes culturais eram
mantidos e transmitidos às novas gerações mediante práticas, costumes e rituais
repetidos nas mesmas ocasiões e oportunidades [Mariosa 2003]. A preparação dos filhos
para integrar a ordem social tribal acontecia desde cedo: “as crianças aprendiam vendo e
fazendo” [Fernandes apud Mariosa 2003].
O modelo de educação era baseado na tradição oral e na imitação, configurando
uma Pedagogia do Cotidiano. Para Corrêa (2008), esta pedagogia acontece onde há
“aprendizagem de costumes, tradições e saberes adquiridas nas práticas sociais
cotidianas, através da comunicação oral”.
Estas práticas eram então, além de celebrações, o momento onde um conjunto de
saberes era transmitido às gerações mais novas pelas mais velhas, sendo um locus de
circulação e apropriação de saberes, dentre eles os saberes musicais.
Para Brandão (2002, p.26) “aprender é participar de vivências culturais”, e era
assim que se dava a aprendizagem das gerações mais novas entre os Tupinambá:
aprendiam participando das práticas socioculturais.
Diversos estudos24 abordaram vários aspectos da sociedade Tupinambá, tais
como festejos do nascimento, da primeira menstruação das moças, no ritual de
perfuração do lábio inferior dos mancebos, nos momentos anteriores e posteriores à
guerra; nas cerimônias canibalescas, no trabalho coletivo da tribo na roça do chefe, nas
reuniões políticas, na consulta aos espíritos, na fabricação de cauim, nos rituais
mortuários, na couvade – um tipo de resguardo masculino. Em todas essas ocasiões,
fazia-se presente as bebidas fermentadas, cantigas, danças e instrumentos musicais
[Albuquerque 2011].
A partir dos diversos relatos da sociedade Tupinambá do Brasil colonial,
contidos nas fontes primárias, pergunta-se como eram os aspectos da transmissão
musical desta sociedade nos diversos contextos sociais?

3. Aspectos Metodológicos

23
O Maranhão do Brasil colonial era considerado parte da região
amazônica. Cf. Gruzinski 2014.
24
Cf. Clastres 1978; Fernandes 1989; Viveiros de Castro 2002; Sztuman
2005; Albuquerque 2011; 2012; Thomas 2014.
134
O objetivo geral desta pesquisa é investigar aspectos da transmissão musical da
sociedade Tupinambá do Brasil colonial nos diversos contextos descritos nas fontes
históricas primárias dos séculos XVI a XVIII.
Analisar os demais saberes que perpassavam a prática musical e analisar a
cultura material musical são os objetivos específicos.
Para alcançar os objetivos desta pesquisa, metodologicamente, o estudo
realizado é de natureza histórica em fontes documentais e bibliográficas. Como fontes
primárias, utilizo os relatos e crônicas de viajantes que estiveram no Brasil colonial,
bem como as cartas jesuíticas deste período, que descreveram com riqueza de detalhes
os diversos aspectos da sociedade Tupinambá, inclusive aspectos referentes à música.
Como fontes secundárias, utilizo estudos sobre a organização social dos Tupinambá.
No que se refere à temporalidade, este estudo enfoca os séculos XVI a XVIII,
período em que se processou a colonização do Brasil.
A perspectiva teórica de análise desta pesquisa fundamenta-se nos princípios de
Jean Michel Beaudet25, Serge Gruzinski26 e Bruno Nettl27.
Para Beaudet (1997) a música deve ser estudada de forma integrada aos outros
domínios da cultura, entendendo que esta não deve ser vista como consequência da
estrutura social, mas como um importante meio para constituir e organizar a sociedade.
Esta noção proposta por Beaudet pode ser relacionada à História Cultural, pois em sua
proposta seria estudado além da música como objeto e seus sujeitos, os meios através
dos quais esta se produz e se transmite: as práticas e processos vistos de um modo mais
amplo.
Gruzinski [apud Fonseca 2003] desenvolveu a noção de passeurs culturels, que
foi utilizado por ele como instrumento analítico dos processos de mestiçagem cultural
nos movimentos de colonização, em especial os ocorridos entre os séculos XV e XIX.
Esta noção tem sido utilizada por diversos pesquisadores e historiadores, sendo
considerado um pressuposto teórico-metodológico da História Cultural. Fonseca (2003)
traduziu a expressão passeurs culturels como mediadores culturais que seriam:
Elementos – pessoas, objetos – que atuam como mediadores entre
tempos e espaços diversos, contribuindo na elaboração e circulação de
representações e do imaginário. Por seu forte enraizamento cultural e
sua grande mobilidade, esses mediadores atuam como catalisadores de
ideias, sendo capazes de organizar sentidos e de criar um sistema de
conexões dentro do universo cultural no qual transitam [Fonseca
2003].

25
Francês, professor de etnomusicologia e etnologia da dança na Universidade de
Nanterre. Dedica-se ao estudo da música de diversos povos da América do Sul.
26
Frances, historiador e arquivista-paleógrafo, diretor de estudos na École des Hautes
etudes en Sciences Sociales, em Paris.
27
De origem checa, emigrado para os Estados Unidos onde é professor emérito de
música e etnomusicologia na Universidade de Illinois.
135
Assim sendo os mediadores culturais constituem-se num valioso instrumento de
análise de culturas e seus cruzamentos, possibilitando também a “análise dos processos
de elaboração, difusão e compartilhamento de representações sociais e imaginários”
[Albuquerque 2012].
Nettl (1992; 1997) afirma que “o modo pelo qual uma sociedade ensina sua
música é um fator de grande importância para o entendimento daquela música” e ainda,
“uma das coisas que determina o curso da história em uma cultura musical é o método
de transmissão” [apud Queiroz 2010]. Justifica-se então, para uma melhor compreensão
da música dos Tupinambá, o estudo do método de transmissão dessa música.
A concepção desta pesquisa é de que a música na sociedade Tupinambá era um
importante meio na constituição e organização desta sociedade, contribuindo na
elaboração e circulação de representações e do imaginário, sendo transmitida sob um
modelo de Pedagogia do Cotidiano.

4. Desenvolvimento
Neste momento tornam-se necessárias algumas reflexões sobre parte das fontes
primárias e secundárias, em busca de algumas respostas para a problemática e objetivos
desta pesquisa.
Primeiramente, questiona-se, a possibilidade de compreender a cultura musical
de uma sociedade tão distante do tempo atual?
Sztutman (2005) se deparou com semelhante questão na tentativa de
reconstrução do passado indígena. Para defender sua abordagem, Sztutman lançou mão
do pensamento sustentado por Viveiros de Castro quando este diz que “a noção de
situação colonial ou histórica desenvolvida por certos antropólogos encerra um
problema grave de ordem epistemológica.” Com esta noção, “os indígenas apareceriam
como sujeitados a uma situação que não foi gerada por eles, ou seja, deixariam de ser
agentes (sujeitos) para serem pacientes de um processo que os perpassava” [Viveiros de
Castro 1999 apud Sztutman 2005].
Ainda segundo Viveiros de Castro, é preciso pensar como os indígenas se
situaram e não como foram situados [apud Sztutman 2005]. Sztutman completa:
Noutras palavras, pensar os indígenas como agentes de seu próprio
destino significa mergulhar em seus próprios termos, experimentar o
seu ponto de vista, e esse ponto de vista cria contextos em vez de ser
criado por eles (Idem.).
Sztutman está interessado no ponto de vista dos indígenas, compreender as
representações, apropriações e ressignificações que estes tinham e as que criaram no
momento histórico de encontro com os europeus [Sztutman 2005].
É nestes termos, de pensar os indígenas como sujeitos de sua própria história,
que este estudo se propõe à compreensão da cultura musical dos Tupinambá.
Florestan Fernandes (1964) objetivou demonstrar a existência de um discurso
pedagógico de transmissão da cultura e das funções sociais da educação entre os
Tupinambá [apud Thomas 2014].
Entretanto, Thomas (2014) diz que a idealização proposta por Florestan
Fernandes, é frágil e fortemente criticável, pois se tratava de um “mito de uma
sociedade igualitária e sem hierarquia”, onde “todo mundo educa todo mundo” [Ibid.].

136
A reflexão sobre essa idealização de Florestan Fernandes, é necessária para o
aprofundamento e avanço do conhecimento de diversos aspectos da sociedade dos
Tupinambá. Fernandes (2003) diz que, embora a contribuição da obra de Florestan
Fernandes seja grande, ela “não deve ser objeto de qualquer tipo de ‘reverência’ acrítica
[...]”.
Para Thomas (2014), Fernandes toma como pretexto a educação tupinambá, com
práticas pedagógicas supostamente igualitárias e livres, e reflete sobre a pedagogia
tradicional de seu tempo. Contudo, continua Thomas, Florestan Fernandes “esqueceu”
de:
Integrar certas observações, bastante pertinentes, dos observadores
europeus. D’Evreux, por exemplo, escreve que os tupinambás
distinguem suas idades por certos graus e que a passagem, em cada
idade entre os graus, impõe cargas para mantê-los nos limites do dever
que requer cada uma das idades em sua diversidade [Thomas 2014].
Thomas (2014) desenvolve então, uma lúcida reflexão crítica sobre esta
idealização de Fernandes, estudando os rituais de parto, couvade, puberdade, as faixas
etárias, concluindo que nestes, “circulam os saberes transmitidos pelos agentes de
educação, que são os pais e o grupo” e que “em certas circunstâncias, a educação
tupinambá se insere em fortes estruturas familiares, e é nelas que se forjam as
identidades e se reforçam os laços entre os membros”, comprovando a fragilidade da
idealização proposta por Florestan Fernandes [Thomas 2014].
Segundo Thomas (2014), rituais como as beberagens – termo cunhado por
Albuquerque (2011; 2012) – amplamente narrado pelos cronistas, “participam desse
esforço de socialização e educação” [Thomas 2014]. É possível observar esse “esforço”
do qual Thomas nos fala, neste relato de Monteiro (1949) que relaciona as beberagens
com o ritual de tomada de novos nomes dos guerreiros tupinambá:
[...] assim recontam o modo com que os tais nomes alcançaram, como
se aquela fora a primeira vez que a tal façanha acontecera; e daqui
vem não haver criança que não saiba os nomes que cada um
alcançou, matando os inimigos, e isto é o que cantam e contam
[apud Fernandes 2003, grifos do autor].
É possível perceber a educação “acontecendo” no ato dos guerreiros recontarem
suas façanhas e das crianças assimilarem estes contos, ou seja, houve circulação e
apropriação de saberes, portanto, houve educação. Tem-se a educação partindo de um
agente educador específico: o guerreiro que está a cantar e contar suas façanhas.
Constata-se a proposição feita por Thomas (2014), de que o processo educativo não era
tão livre e igualitário como idealizado por Florestan Fernandes (1964).
Agora, o que aqui interessa a esta pesquisa, é perceber a educação acontecendo
nesses rituais, mediada pela música. Como ficou relatado pelos cronistas, a música
fazia-se presente nas principais cerimônias e no cotidiano dos Tupinambá: no canto das
mulheres para caçar formigas comestíveis [Évreux 1874 apud Fernandes 2003]; quando
cantavam e dançavam ao redor dos potes de cauim [Staden 1930]; quando cantavam
canções fundadas sobre a morte daquele que morreu, e em louvores do que matou
[Sousa 2000].
Quanto aos demais saberes que possivelmente perpassavam os saberes musicais
(ou por estes eram perpassados), é possível perceber a música muito presente nos
diversos rituais e eventos cotidianos, geralmente ocorrendo concomitantemente com a
beberagem e a dança: “[...] bebem com grandes cantares, e cantam e bailam toda uma

137
noite às vésperas do vinho, e ao outro dia pela manhã começam a beber, bailar e cantar
[...]” [Sousa 2000]; “Alguns ficam de pé, cantam e dançam [...] dançam por entre
fogueiras e, quando ficam bêbedos, gritam, tocam [...]” [Staden 1930]. Cardim (2009)
observou a forte relação da música com a dança: [...] bailam cantando juntamente,
porque não fazem uma cousa sem a outra (sic) [...].
Ocorre nesses rituais, o que Barros (2014) chama de comunicação
“intersemiótica”, que “envolve a transmissão de códigos culturais em linguagens
diversas – cênica, dança, corporal, musical, mitológica”.
Em relação ao processo de transmissão de saberes fica claro, ao analisar os
rituais e eventos cotidianos, que o modelo de transmissão era baseado na comunicação
oral e na imitação, configurando assim, uma Pedagogia do Cotidiano, pois a
aprendizagem de costumes, tradições e saberes, eram adquiridos nas práticas sociais
cotidianas.
Os pais ensinavam os filhos, desde muito pequenos, a bailar e cantar. É assim
que Cardim (2009) relata um dos processos de Educação Musical Tupinambá.
Aproximando-se o relato acima com outros que evidenciam variados processos
educativos dos Tupinambá, pode-se constatar que a transmissão dos saberes musicais
ocorria nos diversos rituais e práticas cotidianas:
[...] os meninos aprendem [com os homens mais velhos] muito cedo as
técnicas necessárias à sobrevivência [...] as meninas, ainda muito
pequenas, já manuseiam a terra e imitam as de idade mais avançada,
mais adultas e experimentadas na fabricação de vasos e tigelas
[Évreux 1874 apud Thomas 2014].
A partir dessa aproximação é possível propor que os saberes musicais eram
transmitidos às crianças desde muito pequenas (três e quatro anos), através da
Pedagogia do Cotidiano.

5. Resultados Parciais
Destes diálogos surgem conclusões parciais na busca pela compreensão da cultura
musical da sociedade Tupinambá, descortinando alguns aspectos sobre seus saberes e
transmissão musical.
Apoiado em Thomas (2014), supõe-se que as práticas musicais não eram
igualitárias e livres, como é possível pensar a partir da idealização proposta por
Florestan Fernandes (1964).
A música funcionaria como um passeurs culturels, mediando tempos e espaços
diversos e contribuindo na elaboração e circulação de representações e do imaginário.
Constato que a música era muito presente nos rituais e eventos cotidianos dos
Tupinambá, tendo grande contribuição para a constituição e organização desta
sociedade. Verifica-se que a educação musical entre os Tupinambá ocorria nas práticas
socioculturais.
Perceber que a música acontecia, perpassada por outros saberes, nos leva a
compreender que a música deve ser estudada de forma integrada aos demais domínios
sociais e culturais, como já nos falou Beaudet (1997), e não a “música pela música”,
como se esta ao ser estudada numa determinada prática social, pudesse ser contemplada
isoladamente dos demais fatores sociais e culturais.
Nesta breve discussão, procura-se sustentar a concepção desta pesquisa, de que a
música na sociedade Tupinambá era um importante meio na constituição e organização
138
desta sociedade, contribuindo na elaboração e circulação de representações e do
imaginário, sendo transmitida sob um modelo de Pedagogia do Cotidiano.

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140
Musicologia Histórica

141
O ethos diastáltico e a exaltação patética em música no
discurso de Claudio Monteverdi em 1638
Vicente Casanova de Almeida
Mestre em Musicologia Histórica pelo PPGMUS da ECA - Escola de
Comunicações e Artes da USP - Universidade de São Paulo
casanova@usp.br

Resumo. O presente artigo estabelece um estudo sobre o discurso prefacial de Claudio


Monteverdi (1567-1643) ao Oitavo Livro de Madrigais publicado em 1638 visando aprofundar
as questões levantadas pelo autor sobre o que diz respeito à questão ética e patética em
música e a incidência destes tópicos em suas decisões composicionais. Para tal, aprofundare
mos o estudo sobre o éthos diastáltico e a exaltação patética em música como ópoit
específicos na edificação de seu discurso prefacial.
Abstract. The present article establish an investigation about Claudio Monteverdi's (1567-
1643) preface to his Eight Book of Madrigals, published in 1638. We aim to achieve a
deepening about some questions raised by the author about the ethic and pathetic elements in
music and the influence of its aspects in Monteverdi's compositional choices. Thus, we'll deep
our attention inside the topics like the diastaltic ethos and the pathetic frenzy concerning the
edification of Monteverdi's preface discourse.

1. Introdução
O Oitavo Livro de Madrigais é uma obra pertencente ao último período composicional
do italiano Claudio Monteverdi (1567-1643) e publicada por Alessandro Vicenti em
Veneza, no ano de 1638. A obra é composta em duas partes distintas escritas no gênero
madrigal concertato, os Madrigali Guerrieri et Amorosi, cuja temática gira em torno
das peripécias do Eros ou Cupido militante, figurado amplamente na emblemática
amatória ou imprese dos séculos XVI e XVII bem como na produção poética do
período.
A obra é introduzida por uma dedicatória onde o nome de Ferdinando III,
Imperador do Sacro Império Romano-Germânico, é reverenciado e louvado. Segue-se
à dedicatória um importante prefácio onde observa-se a consideração do compositor
sobre a questão ética e patética em música, temas tratados com rigoroso argumento
probatório e como embasamento de suas técnicas composicionais,principalmente no
que se refere ao seu novo dispositivo denominado stile concitato, um estilo distinto e
eficaz no ornato de certos matizes patéticos em música.
Portanto, nossa intenção no presente trabalho é investigar a origem dos tópicos
discriminados anteriormente, a saber, o éthos diastáltico e a exaltação ou concitação
patética tal como os mesmos foram manejados pelo compositor na edificação de seu
discurso prefacial. Desta forma, acreditamos contribuir para o entendimento das
considerações de Monteverdi e suas motivações compo sicionais justificadas no
prefácio.
2. O prefácio do Oitavo Livro deMadrigais de 1638
O discurso prefacial de Monteverdi está organizadoretoricamente e utiliza-se do éthos
diastálticoe da exaltação ou concitação patética como tópoi, ou seja, como “lugares-
comuns” ou “sedes” discursivas onde é possível entr ever o argumento partilhado por
diversos autores situados na filosofia e na própria tratadística musical.

142
Entretanto, apenas o nome de Platão (República) e Boécio (De Intitutione
Musica) são mencionados no texto do prefácio, ficando a responsabilidade por descobrir
ou revelar as argumentorum sedes (sedes de argumentos, conforme ensinam as
doutrinas retóricas) a cargo do pesquisador dedicad o à questão. Assim, portanto,
configura-se nossa tarefa, e logo abaixo apresentamos o excerto do prefácio de
Monteverdi que diz respeito aos objetos aqui apresentados e colocados em análise:
Tenho considerado que as principais paixões ou afecções de nossa
alma são três, a saber, a ira, a moderação e a humildade ou súplica;
assim declaram os melhores filósofos, e a própria natureza da nossa
voz assim também indica, possuindo os registros grave, médio e
agudo. A arte da música aponta claramente para estes três termos:
“agitado”, “mole (brando)” e “temperado”. Em todos os exemplos de
compositores precedentes eu encontrei apenas exemplos do gênero
“mole” ou do “temperado” na suas músicas, mas nunca do “agitado”,
um gênero todavia já descrito por Platão no terceiro livro de sua
Retórica [sic] nestas palavras: “Tome aquela harmonia que i mita
convenientemente as pronunciações e os acentos de u m bravo homem
que está engajado em uma guerra”. A partir disto, estando eu
consciente que são os contrários que com grandeza movem nossa
alma, eque este é o propósito que toda boa música deveria possuir –
como Boécio afirma, dizendo: “A Música está ligada a nós, e tanto
enobrece como corompe o caráter” – por esta razão, portanto, eu
tenho me aplicado com muit a diligência e fadiga para redescobrir este
gênero. (MONTEVERDI, apud DE'PAOLI, 1973, p.416, tradução
nossa)
Monteverdi noticia seu esforço na busca pelo genere concitato (ou gênero
exaltado) baseando-se, primeiro, no argumento de Platão, cuja República serviu à
Seconda Pratica (ou seja, à música praticada no século XVII) como sedimento aos
argumentos em defesa dos partidários da moderna música em oposição aos da Prima
Pratica (os seguidores da prática estrita do contraponto do século XVI). Logo de início
Monteverdi deixa clara sua preocupação com a mobili zação de afetos que a música é
capaz de empreender no público ouvinte, modificando seu estado de ânimo. Logo,
sendo este o objetivo maior da Seconda Pratica, Monteverdi recorre, como ele mesmo
indicou, aos três gêneros musicais que, por sua vez, conectam-se aos conceitos também
ternários deéthos e páthos. Portanto, perguntamos: quais são os principais co nceitos
envolvidos na questão ética e patética em música? O que é o éthos diastáltico e a
exaltação ou concitação patética?
3. Éthos e pathos e sua relação com a música
3.1. De Platão a Boécio
A sede mais antiga onde o argumento ético e patético vinculado à música pode ser
observado é na opinião do filósofo Damon de Oa (século V. a.C.) cujas considerações
giram em torno dos caracteres morais, ou éthoi. Temos notícia de seus apontamentos
através dos diálogos daRepública de Platão. Sobre as sentenças damonianas relativas
ao poder ético e patético de atuação da música, Panti(2008) lembra que:
O poder da música de mover a alma, estimulando ou acalmando suas
afecções e turbamentos, tem um significado importan te na cultura
grega clássica, e na idade de Péricles, o filósofo e político Damon de
Oa, de escola pitagórica, deu início a uma verdadeira e apropriad a
teoria ética da música, elaborando a doutrina do ethos musical, ou
seja, a correspondência entre gêneros musicais específicos, que Platão

143
definirá omoc harmoniai, e determinados caracteres ou estados da
alma. (PANTI, 2008, p.17)
Lippman (1964) aponta os argumentos de Damon referentes à correspondência
do ethos com a música como condição essencial na política, ou seja, na licitude ou
ilicitude de ações empreendidas pelos dirigentes na condução do Estado. O autor
esclarece, sentenciando que:
[Damon] era a autoridade principal no campo específico dos efeitos
morais da música, mantendo o argumento de que havia uma
indissolúvel conexão entre a música e a sociedade, pois mudanças no
caráter da música implicariam igualmente mudanças legais. A tese de
s eu argumento é que o guardião da boa lei e da boa ordem deveria
comparti lhar a função expressa no Aeropagus, o mais velho e mais
distinto tribunal ateniense, e que estas funções deveriam ser
licenciadas pela música, que, por sua vez, afetando a alma humana,
poderia igualmente afetar a alma do Estado – suas leis e sua
constituição política. (LIPPMAN, 1964, p.69, traduç ão nossa).
Damon a responsabiliza a música por esta mutação no caráter dos dirigentes do
Estado. Entretanto, é necessário dizer que a noçãode música que o filósofo frequenta é a
da totalidade de disciplinas sob a égide damousiké, aplicadas na paideia (educação), e
não apenas a aulética, a citarística ou a pura especulação teórica do fenômeno sonoro.
Damon admite que as funções do Aeropagus (julgamento de causas criminais, decisões
políticas, ordenações, legislação, etc.) são sancio nadas pela música na medida em que
seu poder mimético (imitar, no caso, diferentes caracteres morais) pode definir ações
lícitas ou ilícitas, virtuosas ou viciosas. Sobre este aspecto do pensamento damoniano
Lippman aponta que:
[…] as bases do Estado estariam extremamente prejud icadas se esta
situação se configurasse [da veiculação pela música de
éthoiviciosos], acarretando na decaída moral da vida ateniense, em
falhas militares que comprometeriam a liberdade na pólis, e,
consequentemente, na perda d a estatura política do Estado; todos
estes aspectos estariam relacionados de alguma forma à imoralidade
e à lassidão da música.(LIPPMAN, 1964, p.79)
Os aspectos particulares dos modos e também os elementos que fazem parte da
metrificação, da prosódia e do ritmo fizeram parte do alcance investigativo de Damon.
Quanto à raiz rítmica da música o filósofo desenvol veu detalhada argumentação que é
retomada por Platão na República. Damon , segundo Sócrates em diálogo com
Glauco, indica as qualidades específicas de cada tipo rítmico e sua correspondência
aoséthoi. Certos ritmos são considerados apropriados para fix ar determinados estados
psicológicos ou comportamentos (WALLACE, 2004, p. 2 58). Conforme o referido
diálogo, Sócrates elenca uma tipologia rítmica e evoca o filósofo como autoridade
para seus argumentos, dizendo: “Para este caso consultar emos Damon sobre quais
ritmos correspondem à baixeza, à desmesura, à demência e a outros males, e quais
ritmos devemos reservar para os estados contrários a estes”. (PLATÃO, 1988, p.173,
tradução nossa). Sócrates lembra Glauco da distinção entre o bom e o mau ritmo, os
quais dependem, sobretudo, da qualidade do éthosda alma:

[…] o ritmo perfeito se adapta à dicção, assemelhan do-se a ela; o


ritmo defeituoso, à dicção oposta. O mesmo acontece com o que
detém harmonia e, por outro lado, com o que é desprovido de
harmonia,se consideramos que o ritmo e a harmonia se ajustam ao

144
texto, como dizíamos há pouco, e não o texto ao ritmo ou harmonia,
por outra parte. - Claro que se ajustarão ao texto, respondeu Glauco.
E a maneira de dizer o texto, não se ajustará aocaráter da alma? -
Sem dúvida, respondeu – E o resto não seguirá a dicção? - Sem
dúvida – Então, tanto a linguagem correta como o eq uilíbrio
harmonioso, a graça e o ritmo perfeito são consequência da
simplicidade da alma. […] Nossos jovens, portanto, deverão buscar
instruir-se em tais qualidades, se buscam realizar suas tarefas.
(PLATÃO, 1988, p.174- 5, tradução nossa, grifo nosso)
Para o guardião da pólis e para o filósofo Platão a pontará qualidades éticas que
mostram-se convenientes às suas respectivas ativida des relacionando a capacidade de
certos modos musicais de mimetizarem os caracteres morais e estados afetivos. Discorrerá
sobre os elementos éticos que gostaria ueq fossem observados nas respectivas atividades
pelas quais o Estado permaneceria munido do equilíbrio desejado. Ainda na República, em
399a-e, Platão, inserido no pensamento de Damo n, correlaciona Frígio e Dório como
modos musicais con venientes às funções desempenhadas pelos guerreiros e filósofos:
Sócrates: Quais são então as harmonias lamentosas? Diz-me, já que és
músico. Glauco: A Lídia mista, a Lídia tensa, e outras similares. […] -
E quais harmonias são moles, aptas para os bebedores? - Algumas
harmonias Jônias e Lídias, que são consideradas relaxantes. - E
poderiam ser empregadas para guerreiros? - De nenhum modo, para
eles, nada mais que a Dória ou a Frígia. […] As harmonias, portanto,
que devemos sancionar são aquelas que melhor poderão imitar as
vozes dos info rtunados e dos afortunados, dos moderados e dos
valentes. (PLATÃO, 1988, p.170, tradução nossa)

145
Sendo a mimesis o processo, portanto, de imitação da natureza, a música é
considerada uma eficaz veiculadora de vícios e virtudes, os quais são determinantes
também para as atividades educativas e políticas. Neste sentido, a Política de
Aristóteles vincula sob as premissas da paideia os argumentos vigentes sobre a
doutrina do éthos musical. A prática musical é endereçada eticamentepor Aristóteles e é
considerado lícito o envolvimento deleitável que a música proporciona ao homem
livre. Este aspecto deleitável caminha ao lado das premissas educativasda música.
Sobre este ponto, Panti esclarece: "A perspectiva é diversa daquela proposta por Platão
no terceiro livro da República, onde o exercício lícito da música era endereçado à curar
e sanar a desarmonia da alma, fato proporcionado apenas por determinados tipos de
harmoniai" (PANTI, 2008, p.28, tradução nossa).
Aristóteles, portanto, amplia as diretivas platônic as e observa na música a
capacidade de vinculação de caracteres virtuosos ou viciosos. Disponibilizar o
conhecimento dos vícios e colocá-los diante das virtudes possui uma finalidade
educativa louvável, o do reconhecimento dasvirtudes como fonte de licitude nas ações
individuais, as quais refletem imediatamente na sociedade. Na Poética, por outra parte,
Aristóteles , observando o poder da mimesis, procura pelos elementos que configuram a
tragédia como arte licitamente educativa, na qual o poder da katharsis opera o
transporte das paixões. Tratando dos caracteres mor ais, sanciona a música como
indispensável à instrução dos jovens, como deleite lícito dos homens livres e como
reguladora das paixões humanas. A partir de 1339b, Aristóteles aproxima-se do caráter
ético do ensino e da prática musical:
[...] E como a música é do número das coisas agradáveis, e a virtude
consiste em deleitar, amar e odiar corretamente, é evidenteque nada
deve-se aprender tanto e em nada alguém deve habituar-se tanto
como a julgar com retidão e deleitar-se nas disposições morais nobres
e nas ati vidades belas. (ARISTÓTELES, 2005, p.158, tradução
nossa)
O Filósofo também verifica nos elementos rítmicos e melódicos a capacidade
de veiculação de éthoiatravés do poder mimético da música, afirmando que:
É nos ritmos e nas melodias onde encontramos as imi tações mais
perfeitas da verdadeira natureza da vida e da mansidão, da forta leza
e da temperança, assim como de seus contrários e de todas as
demaisdisposições morais (a experiência assim demonstra, já que
nosso estado deânimo modifica-se quando os escutamos). A aflição e
o deleite que exp erimentamos mediante imitações estão muito
próximas da verdade desses me smos sentimentos. (ARISTÓTELES,
2005, p.158, tradução nossa)
Ford (2004) propõe três premissas nas quais o argumento aristotélico embasa-se
e de onde é gerada toda a argumentação em torno da finalidade educativa que suporta a
relação ético-musical:

146
Em linhas gerais Aristóteles argumenta que (a) desde que a música
pode diretamente dispor nossas almas a certos estados emocionais
dolorosos e a outros prazerosos, e (b) desde que a virtude consiste em
sentir prazer ou repulsa sobre corretas ações e caracteres, então (c) o
uso seletivo da música na educação elementar pode ajudar a habituar
as cri anças e jovens às atitudes emocionais corretas, as quais os
guiarão para a for mação ajuizada do caráter refletindo numa vida
realmente virtuosa. (FORD 2004, p.319, tradução nossa)
Aristóteles demonstra através de exemplos que os éthoi ligam-se à música mais
do que a qualquer outra arte mimética e no final de1340b referencia o lugar da música
ética na paideia. Acaba por definir no final do item 5 do quinto capítulo de sua Política
detalhes sobre os elementos melodia e ritmo, como portadores do potencial ético,
sublinhando que:
[…] nas próprias melodias há imitações dos estados morais. Isto é
evidente, pois as melodias começam por não serem todas da mes ma
natureza, de sorte que aqueles que as ouvem são afetados de maneira
di stinta por cada uma delas; umas nos dispõem mais tristes e graves,
como a chamada mixolídia; outras debilitam a mente, como as
lânguidas, outra, por sua vez, inspira um estado de espírito
intermediário e recolhido, como assim parece fazer a harmonia dória,
e a frígia, entretanto, inspira o e ntusiasmo. […] Igual ocorre com os
ritmos: uns tem um caráter mais repousado, utros um caráter mais
movido, e destes últimos, uns tem movimentos mais vulgares, e outros
mais dignos. De tudo isto, portanto, resulta claro que a música pode
imprimir certa qualidade ao caráter, e se assim procede é evidenteque
se deva aplicá-la e que os jovens devem ser educados nela. O estudo
da música se adapta à natureza dos jovens, pois estes, por sua idade,
não suportam de bom grado nada que não esteja adoçado pelo prazer,
e a música é por natureza doce. Parece, além disso, que há em nós
algo aparentado omac harmonia e o ritmo, e por isso muitos sábios
dizem que a alma é harmonia, ou que nela detém harmonia.
(ARISTÓTELES, 2005, p.159)
A partir de 1342a, Aristóteles demanda três pontos fundamentais que englobam
a totalidade de seus apontamentos musicais:
Admitimos a divisão das melodias estabelecida por a lguns filósofos
que as classificam em éticas, práticas e entusiásticas,atribuem a cada
uma destas classes uma natureza peculiar de harmonia, e afirmamos,
por outra parte, que a música não deve ser estudada porque
proporciona apenas um benefício, mas sim porque proporciona
muitos, pois deve cultivar-se com vistas à educação e à purificação
[…]; em terceiro lugar, deve-se cultivar a música como divertimento
e como conforto e descanso após o esforço e é claro portanto, que
devem ser utilizadas todas as harmonias, porém não da mesma
maneira; contudo, as predominantemente éticas devem ser
direcionadas à educação; […] Pois as emoções que em algumas almas
são de muita força, se dão em todas, com diferenças de grau, como a
compos ição, o temor e o entusiasmo. Alguns inclusive tem propensão
a deixar em-se dominar por este último, e vemos que quando usam as
melodias que arrebatam a alma, a música sagrada os afeta como se
tivessem encontrado nela a cura e a purificação. Isto mesmo

147
experimentam necessariament e os que estão possuídos de compaixão
ou de terror, ou em geral de qualquer paixão, e os demais a medida em
que cada um é afetado por estessentimentos, e em todos se produzirá
certa purificação e alívio acompanhado de prazer. […] Para a
educação, como se tem dito, deve-se utilizar as mel odias éticas e as
harmonias da mesma classe. (ARISTÓTELES, 2005, p.16 4, tradução
nossa)
Educação, purificação e divertimento são as três vias pelas quais Aristóteles considera a
música como essencial no seu modelo de pólis. A educação por via musical aponta
diretamente ao plano ético, a purificação envolve a katharsis no plano patético, e o
divertimento ocupa convenientemente e licitamente o tempo livre. Sobre as paixões, por
outra parte, Aristóteles assim define na Poética:
As paixões são todos aqueles sentimentos que, causa ndo mudança
nas pessoas, fazem variar seus julgamentos e são seguid os de tristeza
e prazer, como a cólera, a piedade, o temor e todas as outras paixões
análogas. (ARISTÓTELES, 2000, p.5, grifo nosso)
O movimento melódico e a modulação entre os distintos gêneros modais são
dispostos por Ptolomeu (90-168 d.C.) em relação dir eta com a mobilização de afetos na
alma humana. O astrônomo e filósofo acerca-se da ar te da música em consonância com
suas potencialidades afetivas, utilizando-se dos mesmos conceitos previstos nas
autoridades supracitadas. No sétimo capítulo do terceiro livro de sua Harmônica ,
Ptolomeu esclarece:
Da mesma maneira nós podemos agora comparar as muda nças
(modulações e transposições) do sistema tonal com as mudanças ou
movimentos da alma humana durante as vicissitudes da vida. […]
Circuns tâncias pacíficas convertem as almas dos cidadãos à
constância e equi dade; a guerra, por outro lado desperta a coragem e
a autoconsciência; o perigo e a fome provocam que poupemos e que
sejamos autossuficientes, mas a abundância e o excesso conduzem à
licenciosidade e à glutonaria, e assim p or diante. Um efeito similar é
mostrado através das modulações melódicas . Um único e repetido
compasso suscita uma expressão animada nos modos ag udos, mas um
compasso desanimado, por sua vez, igualmente assim o faz nos
graves, porque um âmbito agudo causa tensão na alma, enquan to tons
graves levam-na a relaxar. (PTOLOMEU apud GODWIN, 1993, p.28,
tradução nossa)._________________________________________
Ptolomeu estabelece comparações entre determinados modos musicais e as
condições afetivas correspondentes na alma:___________________________________

Assim, também os modos médios, na região do Dório, são


comparados às condições ordenadas e estáveis da alma humana; os
mais agudos, em torno do Mixolídio, por sua vez, são comparados à
ativida de e inquietude; os mais graves, portanto, em torno do
Hipodório, são compar ados ao peso ou à moleza. [...] a alma, por
assim dizer, reconhece a afinidade entre as relações harmônicas e sua
própria condição; ela é moldada po r movimentos peculiares de
certas expressões melódicas, e mergulha imediata mente no prazer e
na diversão, na simpatia e humildade, entre outros. A alma pode ser

148
levada ao repouso, ou então estimulada novamente ao despertar .
Algumas vezes ela afunda em conforto e relaxamento, ou então é
inflamada em paixão e entusiasmo. Tudo isso é possibilitado pela
melodia pois ela detém a capacidade de modular de uma direção à
outra, enquanto a alma é simultaneamente deslocada às condições
apropriadas pela ressonância interna existente entre ela e a música.
(PTOLOMEU apud GODWIN, 1993, p.28-9, tradução nossa, grifo
nosso) .
Estes tópoi éticos e patéticos até aqui observados nos autoresestudados também
são objeto especulativo do filósofo Cleonides e igu almente de Aristides Quintilianus,
ambos devedores do contributo aristoxênico. O primeiro estabelece a diferença de
tensão das alturas da voz diastemática(ou voz intervalar, apropriada à música) e aponta
que a resultante de seu movimento é o agudo, ou o grave, conforme o acréscimo ou
decréscimo de tensão:
O movimento intervalar da voz é oposto ao movimento contínuo da
voz falada.[…] As hesitações presentes na voz diastemát ica
chamamos de alturas; a passagem entre alturas chamamos de
intervalos. As causas das diferenças entre os intervalos são causas
ascendentes e descen dentes, e seus efeitos são o agudo e o grave.
(CLEONIDES apud STRUNK, 1998, p.36, tradução nossa.)
Como a voz é o objeto de expressão dos afetos, Cleonides preocupa-se em
estabelecer esta noção de maior ou menor tensão na voz intervalar ou diastemática,
justamente porque os diferentes caracteres éticos eas distintas paixões da alma levarão
a diferentes expressões vocais, ora em âmbito agudo , ora médio, ora grave. Neste
sentido, temos notícia que o filósofo estabeleceu, portanto, uma divisão ternária (que
chegou até o prefácio de Monteverdi em 1638) doséthoiem música. Sobre esta divisão
Cleonides afirma:
A modulação na composição musical se apresenta semp re que houver
uma modulação do éthosdiastálticopara o sistáltico, ou deste para o
hesicástico, ou deste último para qualquer um dos outros éthe. O éthos
diastáltico é aquele que na composição mélica revela feitos heroicos, a
grandeza de uma alma viril, e um afeto aparentado a estas disposiçõ
es. É mais utilizado na tragédia e em outros gêneros que tangenciam
estesaracteres. O sistáltico é o éthos através do qual a alma é colocada
em desânimo, tristeza e numa condição efeminada. Tal estado irá se
ajustar com os afetos eróticos, lamentações, expressões de piedade, e
coisas semelh antes a isso. O hesicástico, por sua vez, é o éthos da
composição mélica que é acompanhado pela quietude da alma e um
estado livre e pacífico. Para tal ajustam-se hinos, cânticos, encômios,
conselhos, e coisas similares a isso. (CLEONIDES apud STRUNK,
1998, p.46, tradução nossa, grifo nosso.)
Aristóteles já havia abordado qualitativamente as três categorias éticas
denominadas por Cleonides, porém sem evidência de ueq houvesse delimitado estas
categorias nominalmente. Ptolomeu também estabeleceu a forma ternária referente à
questão na sua Harmônica , porém sem atribuir uma classificação como a de Cleonides.
Já Aristides Quintilianus, em seu De Musica, adota a mesma estrutura tópica dos
Elementos de Harmônica de Aristoxenus, salvaguardados os apontamentos de viés
neoplatônico. De modo muito direto, Quintilianus ex plica o potencial ético e patético

149
da música pelo reiterado conceito de número e proporção. Afirmando que “[...] é
evidente que quando determinadas proporções são mobilizadas, os afetos
correspondentes também são movimentados no mesmo instante (QUINTILIANUS apud
GODWIN, 1993, p.53, tradução nossa, grifo nosso). Na sequência de seu pensamento,
sentencia que:

A composição musical distingue-se [...] no éthos, como o sistáltico,


através do qual movemos as paixões dolorosas, o diastáltico, através
do qual nós acordamos o espírito, e o medial [ou hesicástico], através
do qual nós colocamos a alma próxima à quietude. Estes são cham
ados éthos [éthoi] desde que os estados da alma foram primeiramente
observados e dispostos através deles. Eles trabalham conjuntamente
como parte no tratamento das paixões [páthos], e o mélosdesta forma
era perfeito, pois incessantemente os antigos nele aplicavam a
paideia.” (QUINTILIANUS apud STRUNK, 1998, pg. 66-7, tradução
nossa, grifo nosso)

Éthos e páthos adentram o raciocínio de Boécio (480-525 d.C.), no De


Institutione Musica, cujas autoridades que concorrem para seu discurso variam desde
Platão ( República), Aristóteles ( Política), Nicômaco ( De Institutione Arithmetica e
Enchiridion) a Ptolomeu (Harmônica ). O contributo do filósofo romano traz as
preceptivas observadas no argumento aristotélico que circunscreve o fenômeno sonoro
ao plano cognitivo ou perceptivo. O argumento de Boécio diz respeito à sensação
auditiva, “[...] cuja potência é capaz de captar tão bem os sons, que sobre eles não
somente julga e reconhece as diferenças, mas se del eita se os sons são doces e
concordantes e sofre quando são desordenados e inco erentes (BOÉCIO apud PANTI,
2008, p.92, tradução nossa).
Segundo ele, a música vai além da especulação matemática e destaca-se pela
incidência pungente namoral. O ânimo dos ouvintes altera-se conforme os modos, diz
Boécio. Monteverdi no prefácio de 1638, cita diretamente o aspecto moral sedimentado
por pelo tratadista. O autor do De institutione Musica também referencia-se ao
enobrecimento ou corrupção do caráter pela música ejustifica o deleite do homem nos
sons concordantes, utilizando-se do argumento encontrado no Timeu, de Platão:

[...] pode reconhecer-se o que Platão disse: que a alma do mundo está
unida por uma conjunção musical. Quando, em efeito, capta mos
mediante o que em nós está harmonizado aquela sonoridade também
ajustada e harmonizada, nos deleitando desta forma, damo-nos conta
de que nós m esmos fomos configurados à imagem e semelhança
[desta harmonia universal]. Conveniente é, em efeito, a semelhança; a
dessemelhança é odiosa e repulsiva. (BOÉCIO apud
CASTANHEIRA, 2009, p.62)

Finalizando seu argumento, refere-se à doutrina ético-musical trazendo mais


uma vez a autoridade de Platão sobre a música na paideia:

150
[…] Platão prescreve, portanto, que de modo algum é conveniente que
as crianças sejam instruídas em todos os modos, mas si m somente
naqueles vigorosos e simples. […] Desta forma, julga que é g rande
salvaguarda ao Estado uma música ajustada à melhor parte da moral
[éthos] e que tenha pudor, de modo que seja mesurada, simples,
masculina, e não afeminada, selvagem ou alterada. (BOÉCIO apud
CASTANHEIRA, 200 9, p.66, tradução nossa)
Até aqui, como pudemos verificar, tópoi éticos e patéticos são mobilizados nos
discursos e tratados sobre música a partir do entendimento ternário destes dois
conceitos, ou seja, primeiro, o que concerne à form a tripartida do éthos, consistindo em
sistáltico, diastáltico e hesicástico, e, por último, ao que se refere ao páthos, consistindo
em agitado, brando e temperado. Estas categorias, portanto, permanecem sendo
acessadas na composição dos discursos sobre a arte da música no decorrer dos séculos
seguintes e adentram, a seu turno, nos importantes tratados e discursos dos séculos XVI
e XVII, devedores do contributo dos principais autores elencados neste estudo.
É oportuno, portanto, o estudo destas sedes argumen tativas nos discursos mais
próximos cronologicamente do período de atuação de Claudio Monteverdi, para
verificarmos, por comparação, o agenciamento destes tópoi na composição de seu
próprio argumento probatório e nas suas justificati vas composicionais.

3.2. De Cortesi à Monteverdi


Nos textos cronologicamente mais próximos ao contexto de Monteverdi - aqueles
situados entre o século XVI e XVII - seguiremos observando em alguns autores o
agenciamento de éthos e páthosem relação estrita com a arte da música. O trecho
abaixo, extraído do discurso de Paolo Cortesi, de 1510, revela os tópoi antevistos. O
autor evidentemente frequenta o argumento aristotélico onde a música possibilita além
de um deleite decoroso, também a distinção entre vício e virtude e a possibilidade de
julgar convenientemente entre os contrários:
A Música deve ser investigada por causa da moral, na medida em que
o hábito de proceder julgamento sobre as coisas que ãos similares à
moral na sua base de raciocínio não pode ser considerada dif erente do
hábito de proceder julgamento sobre as bases da moral em si mesma,
e em tornar-se especialista neste julgamento que referimos através do
uso da imitação [mimesis]. Também, desde que os modos melodiosos
da música parecem imitar todos os hábitos da moral e todos os
movimentos das paixões, não há dúvida que ser entretido por uma
combinação tempera da de modos deve significar, da mesma forma,
adquirir o hábito de julgar sobre as bases racionais da moral. Isto pode
ser também provado, porque é evidente que todos os hábitos e
movimentos da alma são encontrados na natureza dos modos
[musicais], e nesta natureza a similaridade com a fortaleza, com a
temperança, ou com a raiva, ou com a brandura é exibida, e pode ser
facilmente observado e julgado que a mente dos homens é
frequentemente disposta àqueles movimentos da alma exatamente
como são excitados pela ação dos modos. Nem pode haver qualquer
dúvida de q ue as coisas que se assemelham umas às outras são

151
forçadas a serem assi m, de fato, pela própria proximidade de suas
afinidades.” (CORTESI apud STRU NK, 1998, p.318, tradução nossa)

Baldassare Catilglione (1478-1529), no seu “Il Cort egiano”, de 1528, assim


como Cortesi acessa os conceitos relacionados a éthos e páthosatravés das premissas
platônicas e aristotélicas:

Lembro que aprendi de Platão e Aristóteles que este s consideram


que um homem que é bem educado, compulsoriamente também
émúsico; e declaram por infinitas razões a força da música constituir
e m nós grande propósito, e por inúmeras causas (que seriam muito
longas para enumerar) deve necessariamente ser aprendida na
infância, não apen as das melodias superficiais que agora são
ouvidas, mas este aprend izado deve ser suficiente para trazer-nos
um novo bom hábito e uma singular nclinação à virtude, que torna a
mente mais apta a conceber a felicidade, tal como os exercícios
físicos tornam o corpo mais vigoroso […]. (CASTIGLI ONE, 1998,
p.327, tradução nossa)
No mesmo sentido, os apontamentos educativos de Alessando Piccolomini
(1508-1579) no seu “ Institutione di tutta la vita dell'huomo nato nobile in città libera”
, publicado em Veneza, em 1542, corroboram a mesma chave discursiva frequentada
por Castiglione. O discurso de Piccolomini assemelha-se à prosa de Castiglione no
sentido de esclarecer o lugar da música na sociedade cortesã do século XVI.
Piccolomini localiza primeiramente a arte da música e demais disciplinas artísticas
como convenientes aos períodos ociosos do cortesão, onde , segundo ele, o tempo deve
ser devidamente preenchido com atividades que enobreçam o caráter (como na tópica
aristotélica). Aponta as qualidades da música e osmotivos pelos quais esta matéria é
considerada fundamental na educação humanista, move ndo-se nas preceptivas do
plano ético e patético:

[...] a Música oferece grandíssimo ornamento aos costumes e igual


benefício à disposições de ânimo, a respeito das operações virtuosas
. Desta forma, pelo uso da Música se dispõe e transmuta o ânimo a
diver sos afetos, como a Ira, o Amor, a Piedade, a Mansuetude, e
similares, e consequentemente à diversas virtudes, as quais em torno
de tais afetos consistem.” (PICCOLOMINI, 1543, p. 60, tradução
nossa, grifo nosso)

Emite também um parecer sobre o quanto a música pode favorecer ou


prejudicar o discernimento conforme for conduzida e conforme sejam os afetos por
ela despertados ou movidos. Cito Piccolomini:

[...] existem os mais variados tipos de música, dos quais alguns à


piedade, outros à mansuetude, outros à fortaleza e outros a distintas
operações induzem aqueles que os escutam, como afirmam os

152
Gregos que destinavam as harmonias lídias aos Lídios, a Hipolídia,
a Dóri a, e assim sucessivamente conforme o caráter de cada povo;
por isso é muitomportantei que as crianças nelas se exercitem e que
à diversas operações virtu osas sejam convidadas e inflamadas [...]
(PICCOLOMINI, 1543, p.61)

Este tópos é partilhado também no essencialDiscorso sopra la Musica Antica et


Moderna, de Girolamo Mei, publicado postumamente em 1602. O conteúdo do
Discorso já estava presente nas cartas de Mei à Vicenzo Galilei (músico florentino),
datadas de 1572. Mei retoma éthose páthoscomo embasamento de sua argumentação:

[...] sendo distintas as variadas qualidades da voz, cada uma delas


deve ser apropriada ao expressar o afeto de determinado estado da
alma, e cada um destes, além disso, deve facilmente expressar sua
própria afecção, mas não qualquer outra afecção que não lhe
pertença. Deste modo, a voz aguda não poderia adequadamente
expressar afetos da voz intermediária e muito menos aqueles da voz
grave, nem a intermediária poderia xpressar qualquer afeto da voz
aguda ou da grave, por sua vez. Antes, a qualidade de uma
obrigatoriamente impede a operação de outra, posto que são opostas.
(MEI apud STRUNK, 1998, p. 486, tradução nossa)

Mei evidentemente está diferenciando as qualidadesda voz diastemática (aquela


própria da arte musical por operar com intervalos) através dos conceitos implícitos
nestes caracteres. Conforme Mei, a tensão elevada p roduzirá as qualidades de uma voz
aguda, a baixa tensão corresponderá às qualidades da voz grave, e uma tensão
equilibrada às qualidades da voz intermediária, sendo os níveis de tensão imediatamente
opostos uns aos outros. Cada uma destas categorias corresponderá aos caracteres éticos
e patéticos específicos, como o ethos sistáltico, o diastáltico e o hesicástico, oupáthos
exaltado, o brando ou o temperado. Dentro deste contexto, Mei informa que:
A agudeza e a gravidade da voz Diastemática, intervalar, é o próprio
assunto da Música, como qualidade que nasce de diversas e opostas
causas, vindo a primeira [a aguda] da velocidade, e a outra [a grave]
da lentidão do movimento com o qual é produzida; são signos própri
os de diversos, e em tudo contrários,afetos da alma, dos quais cada
voz exprime naturalmente o seu afeto apropriado. (MEI, 1602, 3-4,
tradução nossa, grifo nosso)
Mei, por último, retornando ao argumento de Platão, faz correspondência entre
as modulações conforme a tensão alta, baixa ou média e as diferenças perceptíveis
entre voz aguda, grave e intermediária, fazendo a conexão destas categorias com éthos
e páthosem música:
[…] a voz média, entre a velocidade e a morosidade, mostra um
ânimo repousado; a velocidade, um ânimo excitado [exaltad o] e a
morosidade um ânimo lento e preguiçoso; e é claro que todas estas
qualidades, portanto, do número e da harmonia, tem por própria
natureza a faculdade de mover afetos semelhantes a cada uma. Por
exemplo, os tons muito altos e os muito graves foram por Platão

153
refutados na sua República; os muito agudos por serem lamentosos e
os muito graves, lúgubres; e somente concebia aqueles sons médios,
assim como foi feito com relação aos números e aos ritmos.” (MEI,
1602, p.4, tradução nossa)
Especialmente neste excerto, como pudemos perceber, Mei utiliza termos muito
próximos aos termos utilizados por Monteverdi para posicionar suas justificativas em
torno do stile concitato no prefácio de 1638, partindo do plano ético ao patético. Mei
refere-se à tripartição da voz diastemática como: animo posato, concitato, lento e pigro
(ou seja, ânimo repousado, excitado ou exaltado, le nto ou preguiçoso). Os termos de
Monteverdi (temperato, concitato e molle) são muito próximos dos termos empregados
no Discorso.
Já o Compendio del tratato de Generi e de Modi della Musica, de Giovanni
Battista Doni (1593-1647), por sua vez, acerca-se de forma aprofundada sobre os
caracteres musicais gregos e o conteúdo ético e patético dos modos musicais,
relacionando-os à maneira de Mei quanto à velocidad e ou morosidade conforme o
movimento e a tensão e suas correspondências ao éthose páthos. As modulações, para
Doni, distinguem-se entre as qualidades da voz aguda, média e baixa, como Mei já
havia referenciado. Estas qualidades, por último, são endereçadas por ele ao plano ético
e ao patético, de onde conjecturamos, pelo contato de Monteverdi e Doni através de
cartas, que o compositor do Oitavo Livro de Madrigais teve a obra deste autor como
sede mais próxima para o levantamento de suas consi derações e justificativas
composicionais em 1638. Doni, portanto, explica a relação de conceitos até aqui
partilhados em nosso estudo, dizendo que:

[...] segundo os autores Gregos, a música se apresenta de três


maneiras: a primeira, que não induz afetos desordenados na alma , ou
a alguma perturbação veemente, mas, pelo contrário, somente deleita
agradavelmente o ânimo, induzindo uma moderada alegria, alegrando
a mente com pensamentos sérios e tranquilos, denominavam esta
disposição como Hesicástica, que significaaquietar. A segunda, que
gera uma viva alegria e júbilo, que chamava-se Diastáltica,
significavaalargar (onde diástole se diz do dilatação do coração e das
artérias), porque nes ta sorte de afetos parece que se alarga em certo
modo o coração. E a terceira é a Sistáltica, a qual veicula os
infortúnios, o temor, a languidez, e similares afetos femininos.
Significa comprimir ou restringir, onde sístole se diz da compressão
ou restrição das artérias e do coração. Porque estas p aixões parecem
que comprimem o peito e o ânimo. E cada uma destas pred omina em
um dos três principais modos: a Hesicástica no Dório, a Diastáltica no
Frígio, e a Sistáltica no Lídio. Então, aquele que deseja que a música
torne-se eficaz, há de procurar que estas qualidades operem não só nas
modulações vocais, mas também operem e façam-se sentir nas
instrumentais.” (DONI, 1635, p.54, tradução nossa)

Conforme Chafe (1992), Monteverdi, provavelmente deteve a posse do Compendio del


tratatto de generi e modi della musica (1635) e encontrou nele e na argumentação de
Doni as ideias correspondentes à su as próprias preocupações composicionais. O

154
prefácio de 1638 compartilha a forma ternária doéthos e páthos associados aos modos
musicais e disponibiliza, direta e indiretamente, o acesso a estas categorias, fato que
motivou o presente estudo. O compositor lembra que a matéria de sua reflexão é a busca
pelos elementos que observamos particularmente no éthos diastáltico, cujo teor patético
indica-nos um ânimo guerreiro (a excitação e concitação da alma), o que fomenta seu
stile concitato e que nomeia a prima pars de sua coleção de madrigais, os Madrigali
Guerrieri. Se tomarmos esta observação de Chafe (1992), vemos que o argumento de
Doni sobre o éthos diastáltico é que este, pela própria etimologia da palavra, indica um
processo físico de diástole, ou dilatação das artérias e do coração, naturalmente, pela
concitação anímica o u exaltação patética, justamente o objeto da preocupação de
Monteverdi ao propor o stile concitato como emblema musical dos afetos exaltados e
guerreiros em seu Oitavo Livro de Madrigais de 1638.

4. O éthos diastáltico aplicado no Stile Concitato


Baseando-se nas camadas de tópicas que expusemos an teriormente, Monteverdi
engendrou seu Stile Concitato objetivando o procedimento retórico intitulado evidentia
(ou enargheia), ou seja, colocar diante dos olhos de seu público os afetos advindos dos
textos poéticos dos madrigais. Para tal, propôs uma série de emblemas rítmicos,
melódicos e harmônicos que edificam este engenhoso estilo.
Conforme vimos acima, o éthosdiastáltico trata do processo de diástole, ou seja,
a dilatação das artérias e do coração, movida pela exaltação patética na alma do
ouvinte. Esta exaltação, na escrita musical monteverdiana, e mbasa-se ritmicamente na
reiteração de colcheias e semicolcheias, tocadas de forma a conferir o sentido adequado
aos excertos guerreiros dos madrigais que expressam o turbamento afetivo, a ira e até
mesmo o furor em uma ocasião de batalha (como no Combattimento di Tancredi i
Clorinda).
Neste estilo, o tratamento conferido por Monteverdi no âmbito melódico indica
o uso de melodias virtuosísticas de grande fôlego p ara os intérpretes (como no caso
dos madrigais Altri Canti d'Amor, tenero arciero e Altri Canti di Marte). O contraponto
estabelecido nas passagens em Stile Concitato é de crescente intensificação rítmica, e,
no plano harmônico, como estabelece Chafe (1992), o compositor emprega emblemas
cordais específicos, como a reiterada modulação ent re as tonalidades de DM, GM e
CM.
Todos estes recursos originam-se na busca pela eloquência do discurso musical,
que, a seu turno, retira dos textos poéticos o material afetivo que será emblematizado na
escrita musical do Stile Concitato monteverdiano.
4. Conclusão
Através deste estudo, portanto, pudemos investigar mais profundamente as questões
levantadas por Claudio Monteverdi (1567-1643) em seu prefácio ao Oitavo Livro de
Madrigais, de 1638, principalmente no que concerne aos tópoi éticos e patéticos
relativos à arte da música, tal como o compositor teve notícia em seu período de
produção musical através de seus interlocutores cronologicamente mais próximos.
Estes, por sua vez, disponibilizaram o conhecimento de variadas sedes de argumentos
que variaram de Platão até Boécio, ambos, a seu turno, citados diretamente no discurso
prefacial do compositor. Tendo em vista, portanto, o aprofundamento investigativo,

155
dirigimos um olhar minucioso às camadas de argument os que não transpareceram à
primeira vista, procurando trazer à luz os conceito s ternários implícitos nas categorias
éticas e patéticas estudadas.
Demonstramos, portanto, que o argumento relativo ao éthos diastáltico e à
exaltação patética encontra sedimento em variados argumentos fornecidos na filosofia,
na tratadística e nos discursos sobre música, e que estes, por sua vez, serviram de base
à Monteverdi na composição de seu argumento prefacial . No terreno de seus madrigais
de 1638, suas considerações atualizaram-se de fato na partitura através do uso dos
emblemas rítmicos, harmônicos e melódicos do stile concitato.

Referências
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157
Ensino institucional e demanda composicional: a produção
coral de Otávio Meneleu Campos (1872-1927) para o
Conservatório Carlos Gomes

Mário Alexandre Dantas Barbosa

Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EM/UFRJ)


malexdantas@gmail.com

Resumo. O presente artigo destina-se a apresentar uma parcela da produção musical do


compositor paraense Otávio Meneleu Campos (1872-1927), referente às peças corais que
endereçou expressamente ao Conservatório Carlos Gomes e que foram produzidas nos anos
em que esteve à frente da referido instituição de ensino musical como diretor (1900-1906). O
acesso a fontes primárias (manuscritos musicais e periódicos de época) permitem um
levantamento minucioso de tal repertório que põe seu compositor entre os principais
incentivadores da música coral de sua cidade natal no início do século XX.
Abstract. This article aims to present a parcel of the musical production of the Para composer
Octavio Campos (1872-1927), relating to choral pieces which were specifically addressed the
Carlos Gomes Conservatory and produced in the years he was in charge of that musical
education institution as its director (1900-1906). Accessing to primary sources (musical
manuscripts and newspapers of the time) allow a detailed survey of such repertoire that sets
its composer among the main encouragers of choral music from his hometown in the early
twentieth century.

A imprensa belemense ocupou-se em noticiar enfaticamente o retorno do filho de João


Marinho de Campos e Adelaide da Costa Campos que voltava em janeiro de 1900 à
terra natal na condição de maestro e compositor diplomado pelo Conservatório de Milão
e futuro diretor do Instituto Carlos Gomes a convite do Governo do Estado28. Otávio
Meneleu Campos (1872-1927), portanto, colocava os pés de volta em solo brasileiro,
aportando em sua cidade natal e dando início a um novo momento de sua carreira como
músico. Sua posse na instituição que dirigiria pelos próximos anos se deu aos vinte e
sete dias do mesmo mês de sua chegada. Nesta mesma data teve a oportunidade de ver
inseridos no programa do concerto da cantora gaúcha Amalia Iracema, alguns títulos de
obras suas, estreando, dessa forma, no principal palco da capital paraense desde então, o
Theatro da Paz.

28
Ver A Provincia do Pará, 02/01/1900, p. 2, Seção Noticias; A Provincia do Pará,
05/01/1900, p. 2, Seção Noticias; A Provincia do Pará, 10/01/1900, p. 3, Seção Noticias; A Provincia do
Pará, 11/01/1900, p. 1, “Meneleu Campos”; A Provincia do Pará, 11/01/1900, p. 1, Seção Echos; A
Provincia do Pará, 11/01/1900, p. 3, Seção Noticias; A Provincia do Pará, 12/01/1900, p. 2, “Meneleu
Campos”; A Provincia do Pará, 21/01/1900, p. 4, Seção Espectaculos e concertos; A Provincia do Pará,
26/01/1900, p. 3, Seção Espectaculos e concertos; A Provincia do Pará, 27/01/1900, p. 4, Seção
Espectaculos e concertos; A Provincia do Pará, 28/01/1900, p. 3, Seção Conservatório Carlos Gomes; A
Provincia do Pará, 29/01/1900, p. 3, Seção Espectaculos e concertos.

158
A atividade composicional de Meneleu Campos mostra-se ininterrupta a despeito
da grande responsabilidade institucional que está em suas mãos - e talvez até em função
dela - a partir daquele momento. Uma nova peça vem datada “Fine/ Pará/ 6-2-900”, dez
dias, portanto, passados de sua posse. Trata-se da romanza para soprano “Semplice
storia”, que em sua primeira versão aparece com acompanhamento destinado ao piano e
que foi instrumentada para orquestra ainda no mesmo mês.
O levantamento do que foi produzido nos meses seguintes demonstra que o
compositor voltou sua atenção de forma exclusiva ao que demandava sua atuação
didática. Maio, junho e julho foram os meses em que surgiram as primeiras obras corais
destinadas à formação vocal que atendia às características do alunado presente no
Instituto Carlos Gomes à época. Embora já contasse com várias composições para coro
misto, Meneleu Campos era requerido a compor neste momento especificamente para as
formações de coro feminino, uma vez que as classes de canto coral eram formadas
principalmente de moças. Em vista disso surgem, em sequência, os madrigais “Nell'aria
della sera” e “Col maggio torna anche la speranza” (ambos em maio), a romanzeta “Il
linguagio del fior” para Soprano solista com acompanhamento de coro feminino
(junho), o “Scherzetto em Fá” e o madrigal “La nell'imenso azurro” (ambos em julho).
Constante nos frontispícios de tais composições, a indicação “Composto
propositalmente para ser cantado/ pelos alumnos da aula de Canto Coral/ do
Conservatorio ‘Carlos Gomes’” confirma o seu destinatário imediato. As cinco peças
são escritas para coro feminino a 3 vozes, exceto “Scherzetto” (SMMA), a cappella.
No segundo semestre de 1900, especialmente os meses de setembro e outubro,
houve uma ênfase na música orquestral. Os concertos comemorativos que ocorriam
anualmente em alusão ao aniversário de morte de Carlos Gomes constituíam uma
importante oportunidade para Meneleu Campos apresentar obras suas à sociedade de
Belém num evento de grande vulto. O Intermezzo Elegíaco, composto aos sete de
setembro de 1900 tem seu contexto de composição ligado diretamente a esta
oportunidade, conforme expresso no frontispício de sua partitura: “Composto
expressamente para ser executado no concerto, que terá lugar no/ salão do
Conservatorio Carlos Gomes/ na manhã de 16 de Setembro, 4º anniversario de
passamento do Gran/ de Maestro Carlos Gomes, a cuja/ memoria o autor dedica.”.
Importante ressaltar que no programa do concerto ora aludido, dos dezesseis
números constantes dez tratavam-se de composições de Meneleu Campos,
oportunamente dando a conhecer também trabalhos de canto coral e canto solista.
Quanto às peças corais apresentadas pelo compositor e regidas por Ettore Bosio,
manifesta-se o crítico:
Tanto o Madrigal como a Romanzetta fôram muito bem interpretadas
e causou optima impressão no publico, pela finura com que fôram
cantadas e mesmo por constituir uma novidade entre nós./ Este
delicado trabalho do illustre maestro Meneleu Campos veio assentuar
ainda mais os dotes artisticos que bem justificam a opinião elevada
que de si fazem valiosas individualidades musicaes europeas,
nomeadamente da Italia onde o seu nome conta referencias
honrosissimas. [...] Terminou o concerto com dois trabalhos do
maestro Meneleu Campos: Madrigal a 3 vozes e Scherzetto a 4 vozes,
muito bem feitos e de grande effeito. (A Provincia do Pará,
18/09/1900, p. 2, grifo nosso)

159
Tratam-se justamente dos títulos surgidos no final do primeiro semestre, tendo
como destinatário imediato a classe de canto coral do Conservatório Carlos Gomes.
Perceba-se que o crítico considera os gêneros apresentados naquela ocasião como
novidades no meio musical paraense e aproveita a oportunidade para pôr em evidência o
gabarito de Meneleu Campos como compositor, evocando, para reforçar o seu
argumento, a autoridade da opinião de “valiosas individualidades europeas,
nomeadamente da Italia”. Figura de destaque no evento, Meneleu Campos também foi o
regente que esteve à frente da orquestra naquela noite, onde “seiscentas cadeiras foram
todas occupadas e muita gente esteve assistindo ao concerto de pé”, contando a plateia
com a presença de diversas autoridades, dentre elas o governador do Estado, o vice-
governador e o intendente municipal. (A Provincia do Pará, 18/09/1900, p. 2).
A demanda por mais um concerto, desta feita o de encerramento do ano letivo do
Instituto Carlos Gomes, poderia traduzir-se como justifica para a continuidade da
produção orquestral. Contudo o que se vê da lavra de Meneleu Campos em meio às
peças que compuseram o programa do concerto, conforme publicado em meados de
outubro foram peças de câmara - quarteto de cordas: “N. 6 – A – Meneleu Campos
Romanzetta – B – Scherzetto – para quartetto de cordas, pelas alumnas donas Zulima
Redig, Thereza M. da Cruz, Maria A. Serra Freire e Ignez Godinho” (A Provincia do
Pará, 14/10/1900, p. 2, seção Espectaculos e Concertos). Estranho o fato de tratar-se de
títulos de composições originalmente situadas, conforme as fontes disponíveis, na
produção coral.
Contando com onze novos trabalhos, com data de composição concentrada no
período entre abril e agosto, no que estão envolvidos dois arranjos de obras
anteriormente compostas, a produção de 1901 guarda certa familiaridade com o ano
anterior quanto à predominância de obras corais com finalidade didática. O local
encontrado para o novo domicílio de Meneleu após o casamento com Rosetta foi a
aprazível ilha do Mosqueiro, onde compôs entre abril e julho ininterruptamente em
função de atender a classe de canto coral do Conservatório. A primeira partitura deste
período é uma adaptação para coro feminino a 3 vozes do Padre nostro composto
originalmente para Soprano, em 189529. O mesmo arranjo para coro feminino teve seu
acompanhamento orquestrado em julho do mesmo ano, época em que também
orquestrou o acompanhamento da romanza “Perché”. Neste ínterim surgem seis novos
títulos, todos voltados para o uso didático. São eles o madrigal “Nella mia barca vieni,
oh fanciulla” (maio), Fuga a 2 vozes “molto svilupatta” (1º junho), Cânone em Dó
Maior a 3 vozes (9/junho), Cânone em Fá Maior a 3 vozes (16/junho), Cânone Infinito
em Sol Maior (23/junho), Doze Corais a 4 partes (junho) e a romanza “Il Canto della
Tempesta” (maio), cujo acompanhamento também foi orquestrado em julho30.

29
A partitura traz a indicação “Adaptado pelo autor,/ para a aula de/ canto
coral/ do Conservatorio “Carlos Gomes”/ (Pará – Abril – 1901)”.
30
Tal como constatado nas peças do primeiro semestre de 1900, estas peças de cunho
didático tiveram seu destinatário imediato indicado expressamente nos frontispícios das respectivas
partituras através da seguinte inscrição, de próprio punho do compositor: "Composto expressamente para
ser cantado/ pelos alumnos da aula de Canto Coral/ do Conservatorio ‘Carlos Gomes’”.

160
Neste primeiro semestre, a atividade didática em torno do canto coral na
instituição dirigida por Meneleu Campos foi alvo de atenção da imprensa local, que
divulgou uma interessante nota apreciativa após a visita do literato Antonio Marques de
Carvalho a uma das aulas:
No Conservatorio/ A convite amavel do illustre lente de esthetica do
Instituto Carlos Gomes, dr. Paulino d Brito, assistimos, sabbado
ultimo, á aula de canto choral do nosso conservatorio de musica,
n’aquelle estabelecimento, que será, mais tarde, o luminoso foco do
estudo das bellas-artes, em Belém./ O programma do dia era conciso,
mas expressivo pelo valor dos numeros de musica que o compunham.
Eil-o:/ 1º Ave Maria – do “Otelo”, de Verdi, arranjo para 3 vozes,
pelo maestro Meneleu Campos./ 2º. – Padre nosso, - Taticliff, de
Mascagni, arranjo para 3 vozes, pelo maestro Meneleu Campos./
3º - Ave Maria – Coro da opera “Duque de Vizeu”, do maestro Ettore
Bosio, arranjado para 3 vozes, pelo auctor./ 4º - Madrigale – “Manon
Lescaut”, de Puccini, arranjo para 4 vozes, pelo maestro Meneleu
Campos./ [...] Á medida que as massas erguiam as vozes agrupando-
se, digamos assim, em sonoros bouquets de melodias, convenciamo-
nos de que n’aquelle instituto o trabalho é uma realidade./ Depois de
pouco mais de cinco mezes de estudo choral, os resultados que me
chegaram aos ouvidos, em bellas ondas harmoniosas, representavam o
louvavel esforço do maestro Meneleu Campos, director do
estabelecimento, e a competencia, paciencia e bôa vontade do
maestro Ettore Bosio, professor de canto choral, na casa./ [...] Só de
sua parte, o maestro Campos, como componista, tem produzido
para a aula de canto os seguintes trabalhos: Romanzetta, solo com
acompanhamento de vozes, cinco madrigaes, Scherzetto, para 4
vozes, Padre nosso; Il canto della Tempesta, para orchestra e
vozes./ [...] Concluimos dizendo que a hora por nós passada no
conservatorio fortificou as nossas opiniões sobre as vantagens do
canto choral, opiniões que aventamos perante o Congresso
Pedagogico, no discurso que alli proferimos sobre a admissão dos
cantos patrioticos, em côro, nas escholas publicas [...]. Antonio de
Carvalho (A Provincia do Pará, 20/05/1901, p. 1, seção Critica
D’Arte, grifo nosso)

Esta é uma fonte importante ao passo que as palavras do jornalista evidenciam


Meneleu Campos, não só como compositor de novas peças corais, mas também como
arranjador de peças de outros compositores. Aliás, é com certa frequência que se vê em
programas de concertos ocorridos no Conservatório Carlos Gomes durante o período
sob sua direção a inclusão de peças desta natureza. Infelizmente, tais arranjos parecem,
em sua maioria, ter se perdido31. Além do aspecto composicional, a crítica acima
transcrita deixa subentendido o apoio de Meneleu como diretor da instituição às
atividades lideradas por Ettore Bosio à frente da classe de canto coral32.

31
Os raros exemplos localizados no âmbitos desta pesquisa restringem-se à Ave Maria,
de Charles Gounod e ao Coro di Monelli, de Georges Bizet.
32

161
No tocante à produção vocal com destinação à classe de canto coral da
instituição que dirigia, a exemplo do que ocorreu nos dois anos anteriores, continuam a
haver, embora em menor número, casos que exemplificam essa preocupação do
compositor em 1902. No decorrer deste terceiro ano de sua gestão como diretor ocorrem
duas adaptações de obras anteriormente compostas, uma delas a romanza “Ora mística”,
a outra o madrigal “La nell'imenso azurro”. Enquanto a primeira, cuja adaptação se deu
em março, destina-se a vozes femininas (SMA), a segunda é destinada à formação mista
(SMAB), tendo sua adaptação ocorrida em junho.
Em meados de 1902 Meneleu Campos foi solapado com a perda de sua esposa,
falecida aos 10 de agosto. As circunstâncias do fatídico evento são noticiadas pela
imprensa da época:
Hontem, ás 10 horas da noite, após ter dado á luz uma menina que
nasceu morta, a estremecida esposa do nosso collaborador maestro
Meneleu Campos, sucumbiu a um acesso de febre perniciosa, mao
grado aos incessantes esforços da sciencia. Já atacada de febres, a dois
dias que se havia transportado do Mosqueiro para esta cidade e em
meio dos carinhos e desvelos de seus parentes, falleceu a inditosa
senhora na residencia do sr. João Marinho de Campos, pae do maestro
Meneleu Campos./ A finada, dona Rosetta Bosi de Campos era natural
de Genova (Italia), filha do sr. Luigi Bosi e de dona Carlota Bosi, já
fallecida. (A Provincia do Pará, 11/08/1902, p. 3, seção Necrologia)
O cortejo fúnebre com a presença de diversas personalidades da sociedade
belemense de então, incluindo autoridades governamentais e expressivo número de
elementos do meio musical, revelam a solidariedade expressada a Meneleu naquele
momento tão difícil (cf. A Provincia do Pará, 12/08/1902, p. 2, seção Necrologia). Salles
(1972, p. 162) assim se pronuncia sobre a repercussão do falecimento de Rosetta sobre a
carreira de Meneleu Campos:
A fase, muito fecunda, e que parecia indicar novas tendências ao
artista, é interrompida bruscamente, a 10 de agosto de 1902, com o
falecimento de Rosetta./ A morte de Rosetta Bossi [Campos]
constituiu um duro golpe para o compositor. Ela lhe transmitia muito
entusiasmo para trabalhar. [...] Perdendo-a, sua produção não cessou
imediatamente, mas, a partir de 1904, se tornará cada vez mais
escassa.

Não obstante, o balanço apresentado já apontasse para certo declínio da curva


quantitativa referente à produção de Meneleu Campos, e a reflexão trazida por Salles
apontar um marco factual para tal declínio, os meses restantes deste ano caracterizam-se
como um período de atividade intensa e em certa medida ainda bastante produtivos.
Em setembro, repete-se uma oportunidade em que obras de Meneleu Campos
são ouvidas num evento de grande repercussão no seio da sociedade belemense.
Novamente, trata-se das comemorações alusivas ao aniversário de morte de Carlos
Gomes. O programa da parte musical da solenidade realizada na Cathedral inclui o

A parcela voltada para o canto coral em meio à produção musical de


Meneleu Campos já foi considerada por Barbosa (2008, p. 3) como argumento para
enfatizar a questão das preocupações do referido músico quanto ao ensino da música.

162
Intermezzo “Elegíaco” e o Prelúdio “Tramontando” - ambos para orquestra -, bem como
a versão do Padre nostro para coro e orquestra33. Segundo a imprensa da época “uma
esplendida orchestra, composta dos melhores professores de musica d'esta capital e de
um selecto numero de alumnas do conservatorio Carlos Gomes [...], sob direcção do
maestro Ettore Bosio esteve devéras arrebatadora e tocante” (A Provincia do Pará,
17/09/1902, p. 1). A parte coral esteve consignada às alunas do conservatório34.
Além do Allegro scherzando e de dois movimentos do seu Quarteto de Cordas
em Mi, duas peças corais também sofreram adaptações neste ano.
Um período de aproximadamente cinco meses se passaram entre as últimas
composições de 1902 e as primeiras do ano seguinte. Enquanto o Noturno em Mi já
tinha recebido uma versão para violino solista e quarteto de cordas no início do ano
anterior, chegava a vez do Allegro scherzando, segundo movimento desta obra
apresentada originalmente com os dois movimentos encadeados, a receber
instrumentação similar. Trata-se da primeira peça composta em 1903. A propósito da
anotação que o compositor deixou ao fim da partitura com relação à data e local da
instrumentação, “(Istr. Milano 16 Maggio/ 1903)”, advém que houve um deslocamento
geográfico neste interregno, o que justifica em parte o lapso de tempo entre as
composições. Antes de deixar o Brasil, contraiu segundo matrimônio com Marieta
Guedes da Costa35 que o acompanhou até o fim de sua vida. A licença obtida junto ao
Governo do Pará permitiu que Meneleu Campos estivesse liberado das atividades do
Conservatório por aproximadamente um ano, possibilitando a estadia do compositor na
cidade de Milão, após ter de lá retornado ao concluir seus estudos, cerca de três anos
antes.
Embora afastado geograficamente da instituição que o tinha como diretor,
continuava demonstrando sua atenção quanto a produzir material com finalidade
didática, tendo como destinatário imediato o seu corpo discente. As peças que surgem
durante o ano em Milão tratam-se de novos títulos de música “composto[s]
expressamente para a aula de canto coral do conservatorio 'Carlos Gomes'.”36.

33
Cf “A Provincia do Pará”, 16/09/1902, p. 2
34
A referida edição do periódico traz uma lista dos músicos
(instrumentistas e cantoras) que fizeram parte dos respectivos grupos.

35
O casamento de Meneleu Campos com Marieta Costa deu-se em
18.01.1906, segundo informado no inventário da documentação exposta no evento
comemorativo do Centenário de Meneleu Campos, promovido pelo Conselho Estadual
de Cultura. (RÊGO, 1972, p. 246).
36
Tratam-se das últimas obras que, assim como a maioria das congêneres
do mesmo período, trazem essa indicação de destinatário imediato.

163
Totalizando cinco peças, os coros “Addio dei pastori ai monti”, “Come quel sol tu sei” e
“Festa nel villaggio”, a romanzetta “Il linguagio dei fiorio” e o madrigal “Sulo stelo una
rosa si mostrava”, cujas partituras trazem datas de composição entre dez de junho e
dezessete julho, são todos para coro feminino (SMA) com acompanhamento de
orquestra. Destes trabalhos, apenas a romanzetta trata-se de obra pré-existente, cuja
versão original, de 1900, destinava-se a Soprano solo com acompanhamento de coro
feminino em vocalizo. Deste grupo de composições corais, duas delas se destacam por
trazem como autor do texto o próprio Meneleu Campos - “Come quel sol tu sei” e
“Festa nel vilaggio”. Uma terceira peça - “Sullo stelo una rosa si mostrava” não traz
alusão específica ao autor do texto utilizado na composição, podendo-se aventar a
hipótese de também ter sido da autoria de Meneleu. A outra composição totalmente
nova deste grupo - “Addio dei pastori ai monti” - é sobre texto de Andrea Maffei (1798
– 1885), mantendo o traço do compositor em utilizar textos de compositores
consagrados37. O coro “Come quel sol tu sei!”, uma das peças cuja autoria do texto é de
Meneleu Campos, traz no frontispício de sua partitura “(Consacrato alla celestiale/ mia
visione: - Rosetta)”, o que reporta à recente perda que tivera.
Como se pode perceber, o período em que Meneleu Campos permaneceu em
Milão na condição de licenciado pelo governo do Pará teve uma produção não
desprezível compreendendo composições instrumentais para diversas formações
(camerística, banda e orquestra), o adensamento significativo da parcela de música
coral, e além de ter tido a oportunidade de incluir dois recitais bem recebidos pela
crítica musical italiana no elenco de suas conquistas. Datam ainda deste momento as
duas únicas obras didáticas de sua autoria que receberam publicação, Novo Methodo de
Solfejo (CAMPOS, 1903) e Elementos da Música (CAMPOS, 1904)38, que atestam,
junto às obras corais do mesmo período, que o compositor não deixou de se preocupar
com a demanda do Conservatório Carlos Gomes.
O retorno de Meneleu Campos a Belém após o período da licença deu-se entre o
fim de abril39 e o meado de junho de 190440. No segundo semestre desse ano, porém,
apenas um novo título é acrescentado ao conjunto de obras ora em apreço. Trata-se de

37
Andrea Maffei - poeta, tradutor e libretista italiano. Teve textos seus utilizados por
Verdi (I masnadieri, Mactbeth) e por Mascagni (Il Re a Napoli in Cremona, Guglielmo Ratcliff). Fonte:
http://en.wikipedia.org/wiki/Andrea_Maffei (visitado em 17.04.2012).
38
Uma análise destas obras, incluindo considerações sobre o respectivo
contexto de composição, pode ser vista em Barbosa (2008).
39
Em 24 de abril o compositor ainda se encontrava em Milão concluindo a
instrumentação do Finale para o Concerto para piano e orquestra.
40
Uma anotação na partitura da Sinfonia, na versão adaptada para pequena
orquestra surgida no período da licença, constitui-se como registro do retorno das
atividades de Meneleu Campos em sua cidade natal: "[A lápis, no topo da últ. pág. 1º
mov.:] Vista/ Pará 28 Giugno 1904.".

164
“Hino a Deus”, composição sacra sob texto em português. O poeta, Dr. Raymundo
Alvares da Costa, autor de obra diversa41, fez publicar um Catechismo Deísta, em 1907,
ao fim do qual é trazida a composição de Meneleu Campos.
A comemoração do aniversário de morte de Carlos Gomes era um evento que
realmente marcava o calendário anual do Conservatório e da vida musical da capital
paraense. Em 1905 houve a oportunidade da inclusão do Concerto para piano e
orquestra, composto em Milão, durante o período em que o compositor esteve
licenciado, que aguardou mais de um ano para ter sua estreia no Brasil. Importante
aspecto do labor composicional de Meneleu Campos que é reforçado pelo programa
deste concerto conforme informado na imprensa da época é o dos arranjos vocais e/ou
instrumentais que fazia de obras de outros compositores. Perceba-se o espaço que tal
situação ocupa na íntegra do programa:
1ª parte-N. 1-A. Ponchielle-Preludio da opera Gioconda (1º acto)-
instrumentação do maestro Meneleu Campos-pela orchestra; n. 2-G.
Verdi-Ave Maria da opera Othelo-arranjada para 3 vozes e
instrumentada pelo maestro Meneleu Campos pelas alumnas do
canto coral, com acompanhamento de orchestra; n. 3-U.
Giordano-Coro delle Pastorelle (da opera André Chenier)
instrumentação do maestro Meneleu Campos, pelas alumnas do
canto coral, com acompanhamento de orchestra; n. 4-Beethoven-
Sonata op. 26 A. Scherzo B. Finale-pela alumna do 6º anno, senhorita
Anna Ferreira de Andrade (eschola do professor Paulino Chaves); n.
5-G. Malcher-Preludio da opera Idylio-pela orchestra, sob a regencia
do auctor; n. 6-G. Rinaldi-Lungo il viale! - Adagio-instrumentado pelo
maestro Meneleu Campos-pela orchestra; n. 7-Meneleu Campos-
preludio em la maior-pela orchestra./ 2ª Parte-Discurso do dr. Paulino
de Brito, professor da cadeira de historia e esthetica da musica,
allusivo á inauguração do retrato do finado maestro Enrico Bernardi,
como homenagem à memoria do 2º director do instituto, a ser prestada
pelo maestro Meneleu Campos./ 1-Meneleu Campos-Concerto em la
maior para piano com acompanhamento de orchestra-pelo professor
Paulino Chaves; n. 2.-Meneleu Campos-Hora mystica-pelas
alumnas do canto coral, com acompanhamento de orchestra; n. 3-
Meneleu Campos-Canto da Tempestade-pelas alumnas do canto
coral, com acompanhamento de orchestra; n. 4-G. Bizet-Intermezzo
da opera Carmen-instrumentação do maestro Meneleu Campos-pela
orchestra; n. 5-G. Massenet-Meditation (da opera Thais),
instrumentação do maestro Meneleu Campos-para violinos com
acompanhamento de orchestra-pelos alumnos violinistas: senhorita
Ignez Godinho, Rita de Cassia A. Vasconcellos, Cecilia Campos, srs.
Alberto Falcão e Izaias Oliveira da Paz (da eschola do professor L.
Sarti); senhoritas Thereza Cruz, Maria A. Serra Freire, Judith Telles e

41
Entre os títulos de autoria de Alvares da Costa encotram-se “Ensaio de
Crítica”, “Discurso Cívico (Sobre a Dívida Nacional)”, “Dejanira (Novela)”, “La Paix et
l’union (Projecto de Pacto Internacional)”, “Um dia de Liberdade (Romancete)”, “O
Descobrimento do Brazil (encaminhado para publicação na Revista do IHGB), Direto
Constitucional” e “Modulações (poesias)”.

165
Georgina Telles (da eschola do professor Mamede da Costa); n. 6-
Carlos Gomes-Symphonia da opera Il Guarany-pela orchestra. (Folha
do Norte, 16/09/1905, p. 1, grifo nosso)

Dos treze números previstos para o concerto, quatro eram composições originais
de Meneleu Campos, as demais, à exceção da Sonata de Beethoven, da Sinfonia do
Guarany, de Carlos Gomes e do Prelúdio composto por Gama Malcher, eram obras que
passaram por alguma espécie de reelaboração nas mãos de Meneleu Campos. Entre os
comentários críticos42 também alguns exemplos dessa parcela encontram espaço:
O programma teve primorosa execução, cumprindo-nos destacar,
mesmo n'este desalinho de notas rapidas, entre outros trechos
cuidadosamente conduzidos, o Côro Delle Pastorelle, da opera
André Chenier, intelligentemente instrumentada pelo maestro
Meneleu Campos, no qual as alumnas de canto coral do instituto
patentearam a sua disciplinada uniformidade vocal, segura e
firme. [...] Mas antes de encerrarmos estas informações
desalinhavadas, ocorre-nos o n.5 da 3ª parte do programma: Massenet,
Meditation, da opera Thais. E seria verdadeira injustiça esquecer esse
numero, sem contestação um dos mais bellos do concerto. Tomaram
parte n'elle as alumnas Cecilia Campos, Ignez Godinho, Rita
Vasconcellos, Theresa Cruz, Maria Serra Freire, Judith e Georgina
Telles e srs. Isaias Oliveira da Paz e Alberto Falcão - que o
executaram com garbo e geraes applausos da assembleia. (Folha do
Norte, 18/09/1905, p. 1, grifo nosso)

O afastamento do cargo de diretor do principal estabelecimento do ensino de


música da capital paraense se deu em 1906, episódio relacionado a indisposições
políticas entre o maestro-compositor e o governo do Estado.
Ao voltar-se a atenção para o contexto de composição do que Meneleu Campos
produziu especificamente para formações corais entre os anos de 1900 e 1906 constata-
se que tal parcela tinha como destinatário imediato específico a classe de canto coral da
instituição que dirigiu neste período. Se, por um lado, o referido grupo, relativo ao
cultivo da música num ambiente de ensino musical institucional, requereu deste músico
paraense uma atividade composicional intensa no gênero coral, por outro, tais peças são
exemplo claro do domínio do métier por parte de um músico com sólida formação e
capacidade de oferecer um material bem acabado, com valor artístico, carecendo ainda
de uma abordagem atual no campo da edição musicológica para que tais peças,
encontradas em manuscritos autógrafos em sua totalidade, possam ser novamente
executadas.

Referências
BARBOSA, Mário Alexandre Dantas. “Meneleu Campos e a educação musical: as
publicações de caráter didático”. In: Anais do XVIII Congresso da Associação

42
A crítica a esse concerto pode também ser acessada em A Provincia do
Pará, edição de 18/09/190, p. 1, Seção Carlos Gomes.

166
Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música. Salvador: ANPPOM, 2008 (p.
275-279).
CAMPOS, Meneleu. Novo Methodo de Solfejo. Milão: R. Fantuzzi, 1903.
__________. Elementos da música. Milão: R. Fantuzzi 1904.
COSTA, Alvares da. Catechismo Deísta. Bruxelas: J. H. Moreau, 1907.
REGO, Clovis Morais. “O Centenário do Maestro Octavio Meneleu de Campos e as
comemorações do Conselho Estadual de Cultura do Pará: texto-base do
pronunciamento feito em sessão de 5 de dezembro de 1972”. Revista de Cultura do
Pará. Belém: Conselho Estadual de Cultura, 2 (8/9): 239-261, jul./dez., 1972.
SALLES, Vicente. “Centenário de Meneleu Campos”. Revista de Cultura do Pará.
Belém: Conselho Estadual de Cultura, 2 (8/9): 167-202, jul./dez., 1972a.
http://en.wikipedia.org/wiki/Andrea_Maffei (visitado em 17.04.2012)
Periódico: A Província do Pará (janeiro de 1900 a dezembro de 1906)
Manuscritos musicais: coleção da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (Divisão de
Música e Arquivo Sonoro)

167
Prometeu em tempos de romanização
O impacto dos órgãos eletrônicos na música litúrgica Católica
anterior ao Concílio Vaticano II
Fernando Lacerda Simões Duarte1
1
Instituto de Artes – Universidade Estadual Paulista (UNESP)
São Paulo – SP – Brasil
lacerda.lacerda@yahoo.com.br

Resumo. Este trabalho teve como objetivo compreender o impacto dos órgãos eletrônicos na
música litúrgica católica nas décadas de 1940 e 1950 a partir de artigos publicados na revista
Música Sacra (Petrópolis). Partindo do questionamento de até que ponto a aversão aos
instrumentos eletrônicos se limitaria a justificativas musicais, discutiu-se a própria noção de
progresso no catolicismo romanizado. Neste panorama, a história da eletricidade serviu como
um referencial. Os dados foram analisados a partir das noções de pessimismo cultural
(Arthur Herman), memória e identidade (Joël Candau) dentro de uma abordagem sistêmica
(Luhmann). Os resultados apontam para a coexistência entre a tradição e um conceito
eurocentrista de progresso.
Abstract. This paper aimed to understand the impact of eletronic organs in the Catholic
liturgical music in the 1940s and 1950s from articles published in the revue Música Sacra
(Petrópolis). Starting from the question of the extent to which the aversion to electronic
instruments would be limited to musical reasons, the notion of progress in Romanized
Catholicism was discussed. In his panorama, the history of electricity has served as a
reference. Data were analyzed from the notions of cultural pessimism (Arthur Herman),
memory and identity (Joël Candau) within a systemic approach (Luhmann). The results
indicate the coexistence of tradition and a Eurocentric concept of progress.

Introdução
O advento de novas tecnologias e os avanços científicos representaram – e ainda hoje
representam – profundas transformações na sociedade. O progresso científico-
tecnológico não é entendido neste texto como uma sucessão de fatos pré-determinados,
mas como um movimento direcionado apenas e tão somente pela criatividade humana43.
Note-se, contudo, que esta é uma concepção dentre várias existentes: há também quem
considere o progresso em um sentido linear pelo qual devam perpassar todas as
sociedades. Esta posição foi questionada por Lévi-Strauss (1960), que considerava a
diversidade de culturas ao invés de “estágios evolutivos”. Há ainda quem admita que o
progresso acontece em fases ou ondas [De Masi, 1999] ou quem tenha tentado dar ao
progresso características de evolução biológica:
O evolucionismo sociológico, sem dúvida, devia receber um impulso
vigoroso do evolucionismo biológico, mas lhe é anterior nos fatos.
Sem remontar às concepções antigas, retomadas por Pascal, que

43
Registre-se o agradecimento ao Prof. Dr. Gildo Magalhães dos Santos
Filho (FFLCH-USP), cuja disciplina História e teorias da evolução: debates em torno
da ideia de progresso ensejou a redação deste trabalho.

168
comparam a humanidade a um ser vivo [...] no século XVIII é que
floresceram os esquemas fundamentais que, com o tempo, serão
objetos de tantas manifestações: as “espirais” de Vico, suas “três
idades” que anunciam os “três estados” de Comte, a “escada” de
Condorcet. Os dois fundadores do evolucionismo social, Spencer e
Tylor, elaboraram e publicaram sua doutrina antes de A Origem das
Espécies ou sem ter lido esta obra [Lévi-Strauss, 1960, p. 239-240].
As reações individuais e dos sistemas sociais àquilo que é novo tende a ocorrer
em dois sentidos: aceitação e rejeição. Niklas Luhmann (1995) as chamou de abertura
cognitiva e fechamento normativo. Por meio da abertura cognitiva, um sistema social se
permite conhecer as novidades e as incorpora, ao passo que, por meio do fechamento
normativo, rejeita as inovações para preservar sua identidade. Além de Luhmann, outros
autores [Buckley, [1971]; Lévi-Strauss, 1960] já haviam visto na troca com o meio um
caminho para as transformações (morfogênese).
Pessimismo e otimismo em relação ao progresso constituem outro binômio de
reações possíveis ao progresso. Arthur Herman chegou a dividir o pessimismo em duas
categorias: pessimismo histórico e pessimismo cultural.
O pessimista histórico vê as virtudes da civilização sob o ataque de
insuperáveis forças maléficas e destrutivas; o pessimismo cultural
alega que essas forças formam o progresso civilizador desde o
princípio. Ao pessimista histórico preocupa o fato de sua sociedade
estar a ponto de se destruir; já o pessimista cultural conclui que ela
merece ser destruída [Herman, 1999, p.462].
Para Herman (1999, p.465-469), o pessimismo muitas vezes é uma construção
ideológica, para a qual a solução também não estaria no otimismo, na “crença cega no
progresso”, mas no indivíduo livre e autônomo, capaz de decidir seu próprio destino
independentemente de qualquer determinismo, como já defendia John Locke44.
Neste trabalho questionou-se se até que ponto o pessimismo do clero e de
músicos envolvidos com a música litúrgica católica nas décadas de 1940 e 1950 em
relação ao órgão eletrônico – produto da evolução científica e tecnológica – se justifica
somente por razões propriamente musicais. Tal aversão não refletiria o repúdio da
própria Igreja enquanto instituição pela modernidade e pelo progresso científico e
tecnológico, bem como pelas novas correntes de pensamento? Por outro lado, a própria
Igreja não teria se de alguma forma modernizado a partir do século XIX com o advento
de uma autocompreensão chamada de Romanização? Para responder a tais
questionamentos, abordou-se a prática musical litúrgica católica a partir da história
eclesiástica, partindo do pressuposto que ambas estão intrinsecamente ligadas. Por se
tratar de um instrumento musical tributário dos avanços tecnológicos relativos à
eletricidade, o estudo deste “fantasma eletrônico” que assombrou os envolvidos com a
prática musical litúrgica católica não poderia deixar de passar pelo estudo das reações
sociais à própria eletricidade, sobretudo nas duas primeiras décadas do século XIX.

44
Herman (1999, p.469) se refere ao Ensaio sobre o Entendimento
Humano de Locke, que “definiu como uma forma de tirania a posição de ‘estar sob a
determinação de outro que não ele mesmo’ sem o consentimento do indivíduo”.

169
O ápice da discussão sobre a proibição ou permissão do uso de órgãos
eletrônicos se deu no período do pós-guerra, no final da década de 1940 e inícios da
seguinte. Nem mesmo o otimismo que poderia se justificar com o fim da II Guerra
Mundial (1939-1945) parece ter diminuído a desconfiança da Igreja Romana em relação
à modernidade, que já vinha desde metade do século XIX. Os fatos e discussões que
cercam o advento do instrumento eletrônico nos templos – cujo espaço ocupava o órgão
tubular, acústico – foram relatados no principal periódico brasileiro sobre música
litúrgica católica deste período, a revista Música Sacra. Além desta fonte primária, foi
realizada pesquisa bibliográfica sobre órgãos, reações ao progresso e eletricidade.
Para a análise dos dados, utilizou-se a teoria dos sistemas sociais autopoiéticos
de Niklas Luhmann (1995), segundo a qual os sistemas sociais mantêm comunicação
com o meio que os cerca e desta troca de informações resultam as duas operações já
citadas. Além desta teoria, utilizaram-se os conceitos de memória, identidade e tradição
de Jöel Candau (2011), bem como o de tradição inventada, de Hobsbawm (2002),
segundo o qual tradições há muito interrompidas podem ser reinventadas para justificar
comportamentos do presente, como justificativa para tomada de decisões. Neste sentido,
o resgate, no início do século XX, de um modelo de música litúrgica há muito perdido
parece ter sido uma forma coerente de aplicar à música o mesmo fechamento que a
Igreja apresentou em relação ao secular ou que decorria da modernidade [Duarte, 2012].

1. Romanização e Cecilianismo
Segundo João Camilo Oliveira Tôrres (1968, p.110), a “imagem da Igreja Católica, no
quartel derradeiro do século XIX, era o mais melancólico [sic] possível: prestes a
desaparecer, voltava às catacumbas romanas de onde havia saído”. Em contrapartida, a
crença no progresso científico e tecnológico parece ter sido uma característica marcante
do período. Se o Iluminismo já buscava mostrar ao homem uma visão de mundo diversa
da religiosa durante o século XVIII, no XIX, a ciência assumia com destaque o papel
até então ocupado pela Igreja. Como escreveu Stefan Zweig [apud De Masi, 1999,
p.175] em O mundo que eu vi,
O século XIX, com seu idealismo liberal, estava convencido de se
encontrar no caminho direto e infalível para o melhor dos mundos
possíveis. [...] Tal confiança em um progresso ininterrupto e
incoercitível teve para aquela época a força de uma religião; já se
acreditava naquele progresso mais do que na Bíblia, e seu evangelho
parecia estar incontestavelmente demonstrado nos sempre novos
milagres da ciência e da técnica.
Já no século XX, a sociedade brasileira passou a acreditar “de que o progresso
material possibilitaria equacionar tecnicamente todos os problemas da humanidade”
[Follis, 2004, p.15]. Durante este período conhecido como Belle époque, acreditava-se,
entretanto, em um progresso que assumia caráter linear, ou seja, que a sociedade
brasileira deveria galgar os mesmos degraus que as europeias – sobretudo a francesa –
já haviam subido. Neste contexto de negação de uma memória coletiva colonial anterior
com vistas à construção de uma nova identidade de modelo europeu [Candau, 2011], um
catolicismo institucionalizado e centrado no modelo romano parecia adequado. Esta
autocompreensão da Igreja Católica amoldada a esta sociedade ficou conhecida como
Ultramontanismo ou Romanização, mas foi chamada por nós de catolicismo Belle
époque [Duarte, 2013].

170
Ainda segundo Tôrres (1968, p.109), o “espírito da modernidade”
atormentava a Igreja desde a reforma protestante, mas a situação se intensificou no
século XVIII, quando a instituição se viu atacada em todos os pontos de sua doutrina e
organização pelo Iluminismo. O Iluminismo não era anti-religioso, mas avesso à
institucionalização da Igreja. Assim, Deus era o “grande relojoeiro” que criou e botou
em funcionamento o universo, mas ao homem caberia edificar no mundo o paraíso
celeste. Segundo Augustin Wernet (1987, p.28-29) o “pregador ‘iluminista’ seria,
sobretudo, um instrutor”, livre de preceitos dogmáticos em detrimento de ensinamentos
morais. Ainda sob este prisma, afirmou Wernet (1987, p.29) que
Esta interpretação da religião relativiza os limites entre natural e
sobrenatural e minimiza o específico religioso; vê o mundo de
maneira positiva e valoriza a tarefa terrestre, seja ela no setor
econômico, político ou científico; leva a uma laicização da cultura
religiosa e clerical, fazendo que o clero quase não se distinguisse nas
atitudes e na vida de seus concidadãos leigos. Buscou-se uma religião
afirmativa do mundo, reconhecendo o selo do divino nas realidades
terrestres.
Percebe-se, portanto, no catolicismo iluminista – conhecido no Brasil e em
Portugal como catolicismo pombalino – uma valorização do progresso científico e
tecnológico. Os próprios padres contribuíram neste sentido. Na autocompreensão
iluminista atrelavam-se Igreja e Estado: a Igreja legitimava o poder temporal e este lhe
garantia o monopólio na educação, foro clerical e benefícios financeiros. Proclamada a
independência e, sobretudo, após a proclamação da República, o cenário de aliança
política se modificou. Para Tôrres (1968, p.112), “a Igreja e os liberais queriam, cada
qual a seu modo, a mesma coisa”: a Igreja queria se livrar dos compromissos temporais
e assim “proclamar sua transcendência em relação ao mundo”, enquanto os liberais
queriam um Estado laico. Esta separação implicaria mudanças para ambos. O resultado
se fez sentir, sobretudo, no final do século XIX.
Dentre as principais mudanças ocorridas na Igreja a partir da segunda metade do
século XIX – descritas por Bihlmeyer, Tuechle e Camargo (1964, p.513-564) – estão
um discreto crescimento em países de maioria protestante enquanto nos países em que
era religião oficial, foi combatida de diversas formas. No Brasil, a separação ente os
poderes religioso e secular foi marcada pela devolução do padroado:
Por direito de Padroado entende-se o conjunto de privilégios com
certas incumbências que, por concessão da Igreja Romana,
correspondem aos fundadores de uma igreja, capela ou benefícios.
Entre os privilégios, destaca-se o direito à apresentação de arcebispos
e bispos. O padroado não é diretamente uma instituição regalista, mas
através dele introduziram-se facilmente abusos regalistas [Wernet,
1987, p.18].
Apesar da perda de direitos que até então lhe eram inerentes, tanto na Europa
quanto no Novo Mundo – foro eclesiástico, educação, expulsão de ordens religiosas,
permissão do divórcio, cemitérios não-religiosos, proibição de sacerdotes assumirem
cargos públicos, redução das proporções do Estado Pontifício e outros – a Igreja reagiu,
a seu modo, a tais estímulos. Tal reação ficou conhecida como Ultramontanismo.
O Ultramontanismo surgiu ligado “ao período da Santa Aliança (1815),
repudiando a cultura iluminista e a experiência da Revolução Francesa” [Wernet, 1987,

171
p.14] e desaguou na Romanização, que foi a institucionalização da Igreja e a eleição da
Sé Romana como modelo único para o catolicismo praticado ao redor do mundo.
Apesar da diferença temporal, a ligação entre os movimentos levaram os autores a
tomá-los como sinônimos. De acordo com Wernet (1987, p.12), o Ultramontanismo é
uma construção, um “tipo ideal” por meio do qual a Igreja buscou se revelar,
“exagerando elementos específicos da realidade” para “selecionar características dela e
as ligar entre si num quadro mental relativamente homogêneo”:
Engendrado com a mesma concepção medieval unitária do Universo,
esse catolicismo estava marcado pelo centralismo institucional em
Roma, por um fechamento sobre si mesmo e por uma recusa de
contato com o mundo moderno. [...] Com uma rigidez hierárquica,
reproduzida também pelas mais distantes células paroquiais, o
ordenamento ultramontano aspirava a uma univocidade entre a
Europa, Ásia, África e América. [...]
Nesse sonho unitário não se configuravam as incompatibilidades e as
alteridades identitárias. Na busca do uno, diante do múltiplo social,
manifestava-se a intransigência ante o plural, confrontando-se, na
verdade, com o próprio lugar da história que é, por excelência, o lugar
da divisão e dos choques de valores. De maneira análoga à sociedade
das abelhas, afastava-se a diversidade [...] [Gaeta, 1997].
Assim, se percebe, na visão ultramontana, um conceito de progresso que deveria
acontecer do regional para o que se julgava central: das tradições locais – no caso do
Brasil, o catolicismo popular – para o modelo universalizante romano. Por outro lado, a
Igreja modernizou suas relações internas no período, intensificando seu controle social e
passando de relações de autoridade e poder baseadas na tradição para o que Max Weber
chamou de racional-legal. Em outras palavras, no período em que a industrialização
crescia, nem a própria Igreja escapou à sua forma de se organizar. Tal organização
prescindia, entretanto, de uma separação radical em relação ao século. Assim, por meio
do documento Syllabus errorum (1864), a Igreja rompeu com os “vícios da
modernidade”. Apesar de aparentemente dissociada do mundo secular, a Igreja ainda se
alinhava aos interesses das elites econômicas. Dentre as reações estavam: “rejeição à
ciência, à filosofia e às artes modernas, a condenação do capitalismo e da ordem
burguesa, a aversão aos princípios liberais e democráticos, e, sobretudo ao fantasma
destruidor do socialismo” [Gaeta, 1997]. Este fechamento normativo às artes modernas
encontrou nas aspirações do Cecilianismo o modelo “ideal” de música litúrgica.
O movimento cecilianista surgiu com a fundação da Associação de Santa Cecília
da Alemanha, em 1868 e tinha como ideal a pureza da música sacra, ou seja, sua
separação em relação à ópera. Apesar da divergência de opiniões, percebe-se, de modo
geral entre seus partidários o intuito de resgatar o passado ideal, do cantochão e da
polifonia de Palestrina. Em relação à música instrumental, o órgão tinha papel de
destaque. Esta retomada de modelos musicais tão antigos estabelecendo com o passado
mais apropriado uma relação artificial de continuidade com vistas à inculcação de
valores ou justificando as opções de autocompreensão da Igreja pode ser considerada
uma tradição inventada [Hobsbawm, 2002, p.9; Duarte, 2012]. Diz-se artificial, no
Brasil, pois além de não se ligar à música de caráter operístico até então realizada,
desconsiderava a diversidade timbrística até então vigente, nas bandas de música que
acompanhavam os ritos [Duarte, 2014] e tentava limitar ao órgão todo o
acompanhamento da música litúrgica. As aspirações cecilianistas culminaram na

172
redação do motu proprio “Tra le Sollecitudini” de Pio X [Duarte, 2012]. O documento
trazia um novo e radical fechamento normativo em relação aos gêneros sinfônico e
operístico. Ao motu proprio seguiram-se outras normas sobre música sacra, mas que não
alteraram substancialmente seu conteúdo, mas apenas abrandaram sua rigidez:
Constituição apostólica “Divini cultus santictatem” (1928), Carta Encíclica “Musciae
Sacrae Disciplina” (1955) e a Instrução da Sagrada Congregação dos Ritos sobre a
música sacra e a sagrada liturgia (1958).
Pio X permitiu, no motu proprio, o uso do órgão na liturgia. Mais tarde, Pio XII
o declarou instrumento oficial da igreja, na Encíclica “Musicae Sacrae Disciplina”
(1955). Havia no motu proprio, entretanto, uma ressalva de que a música própria da
Igreja era essencialmente vocal. Outros instrumentos poderiam ser admitidos na liturgia,
mas com cautela [Duarte, 2013]. Foram proibidos o piano, os instrumentos de percussão
e o uso de banda de música dentro da igreja. O uso desta última era tolerado apenas em
procissões, preferencialmente acompanhando cantos religiosos populares. O caráter do
acompanhamento do órgão e de outros instrumentos eventualmente admitidos deveria
ser o de simples sustentação do canto, sem extensos prelúdios e sem encobri-lo. No
início do século XX, Pio X ainda não podia supor os impasses que o órgão eletrônico
geraria nas décadas posteriores.

2. Órgão Tubular e Órgão Eletrônico


Se por um lado o órgão eletrônico pode ser considerado uma inovação tecnológica em
relação ao tubular por algumas razões, como a facilidade no transporte, menor preço e
facilidade na manutenção, não se pode negar que o próprio órgão tubular como Pio X
conhecia também foi fruto de um longo progresso tecnológico. De origem incerta,
há quem o relacione à syrinx – flauta de Pan – e ao cheng chinês, instrumento de tubos
de bambu [Sousa, 1948]. Sucedeu tais instrumentos o “órgão de Heron”, que usava, em
220 a.C., um mecanismo hidráulico para a produção de som. Este modelo sobreviveu
até o século XII, quando o órgão puramente pneumático o substituiu. Outras inovações
tecnológicas marcam a história do instrumento:
É do século XIV, o aperfeiçoamento da arte dos organeiros. Fazem-se
registos [sic] de madeira, de cobre e estanho. Diminuem as teclas.
Aumenta-se a extensão do teclado. Com o progresso extraordinário,
aparece a pedaleira, isto é: teclado para os pés. Desconhecemos seu
primeiro fabricante. No início constava só de uma oitava, esta mesma,
fragmentária. [...]
Houve órgãos pequenos e portáteis (os “realejos”, de mesa (médios) e
os de igreja (grandes). Introduzirem-se pouco a pouco os jogos de
registos [sic]. Aperfeiçoam-se os foles. O órgão, pois, é produto da
Idade-Média e dos países cristãos do Ocidente. Nos séculos XVI,
XVII e XVIII continua o progresso [Sousa, 1948, p.195].
Além dos progressos descritos pelo padre Sousa, os registros – conjuntos de
tubos – deixaram de suprimir um todo sonoro para acrescentar timbres. Ainda se
poderia falar na sobreposição de teclados, que unificou diversos órgãos espalhados nas
igrejas em um único instrumento, sendo que não raro cada teclado leva o nome da
função que cada órgão ocupava: positivo, portativo, grande órgão, coro etc. Outra
marca do progresso tecnológico se deu na transmissão entre o teclado e os tubos: de
varetas a canos de ar e destes, à transmissão elétrica. Finalmente, o uso de motor

173
elétrico diminuiu o trabalho humano de acionar foles pedais para que os instrumentos
soassem.
O funcionamento do órgão tubular se dá resumidamente com o preenchimento
de ar nos foles, que é transmitido até os someiros – local onde são encaixados os tubos –
e com o acionamento do teclado – seja por transmissão mecânica, elétrica ou
pneumática – o ar é liberado para os tubos produzindo o som [Lins, 1944]. Além do
órgão tubular, outro instrumento de uso comum – até se poderia dizer, mais recorrente
que o próprio órgão –, sobretudo nas igrejas menores, na primeira metade do século
XX foi o harmônio. No harmônio, semelhante ao órgão tubular, o som era produzido
com a força do ar, mas no lugar de tubos havia palhetas de metal que produziam o ar,
como na gaita ou no acordeom.
Já no órgão eletrônico, descreveu padre Sousa (1948, p.206), o som “é
produzido pela rotação de discos dentados de ferro diante de um núcleo sensível, como
o do telefone. A corrente elétrica produzida no enrolamento desse núcleo é conduzida a
um rádio ampliador ou alto-falante”. Romita (1949, p.162-163), foi ainda mais
detalhista ao descrever a produção de som no principal representante dos eletrônicos no
período:
O órgão “Hammond” cria todas essas freqüências e sons simples
sonusoidais, perfeitos de tom e livres de harmônicos e supertons,
chamados, por outras palavras, de sons fundamentais “puros”. Obtem-
se mediante um gerador composto de uma série de discos de aço
denominados “rodas fônicas”, e de um motor sincrônico de velocidade
constante. Essas rodas, cujo perfil de circunferência é formado por
uma dentadura disposta simetricamente, giram dentro do campo
magnético de um magneto permanente, sobre o qual está enrolada
uma bobina. Nota-se que quando o ponto mais alto de um dente se
aproxima do ponto mais baixo, ao passar diante do magneto
correspondente, o campo magnético sofre uma variação, e é criada na
bobina uma pequena corrente elétrica alternada. [...] Se essas rodas
tiverem na circunferência uma quantidade maior ou menor de dentes,
produzirão freqüências mais ou menos elevadas. […] Efetivamente, o
som do “Hammond” é produzido pela transformação das ondas
elétricas em ondas sonoras exatamente tênues, ampliadas depois pelo
alto-falante.
No Hammond havia quatro grupos de registros ou timbres que poderiam ter sua
intensidade dosada (volume), ao passo que no órgão tubular o registro só poderia ser
ligado ou desligado, sem gradações. Também na construção do órgão eletrônico algum
progresso já era reconhecido nos finais da década de 1940: “Por outra parte, devemos
ressaltar que a técnica de construção do Hammond e do Orgatron, tem progredido
bastante, evitando muitos defeitos de timbre e de percussão” [Sousa, 1848, p.206]. Este
progresso se fez perceber ainda mais ao longo das décadas, com órgãos eletrônicos
litúrgicos – com registros que caracterizam imitações mais próximas dos tubulares. No
final da década de 1940, além da Hammond de Chicago, também fabricavam órgãos
eletrônicos a Wurlitzer e Consonata. No Brasil, posteriormente, surgiram as fábricas
Winner, Audac, Spark, J. C. Rigatto e mais recentemente, Minami e Gambitt, estas
últimas com modelos menores, com teclado menor e pedaleira de uma oitava. Com o
advento da tecnologia sampler, os sons das notas foram gravados em alta definição de
órgãos tubulares. Neste segmento, cita-se as fábricas Johannus e Viscount. No final da

174
década de 1940, entretanto, este progresso ainda era incipiente e esta era uma das
alegações daqueles que defendiam a exclusividade do órgão tubular.

2.1. Uso litúrgico do órgão eletrônico


A discussão em torno da utilização dos órgãos eletrônicos na liturgia católica chegou a
Roma, em 1938, quando a Sagrada Congregação dos Ritos decidiu contrariamente ao
seu uso pela primeira vez. A esta decisão se seguiu outra no mesmo sentido em 1939. A
questão já despertava, entretanto, manifestações de organistas, pelo menos desde 1932.
Em um extenso artigo, Monsenhor Fiorenzo Romita analisou o Hammond a fim
de diferenciá-lo do órgão tubular e justificar a proibição de seu uso nas igrejas. A análise
levou em considerações elementos técnicos, como os harmônicos que cada instrumento
emitia, práticos, como o preço do instrumento e propriamente litúrgicos. Para Romita
(1949, p.183), “o ‘Hammond’ nem sequer pode servir como instrumento de estudo.
Antes de tudo, os seus oscilantes e timbres falsos estragam o ouvido e o gosto do
estudante”. Outros argumentos técnicos diziam respeito ao tamanho das teclas, a
distância entre os teclados, o toque inconsistente das teclas que “pode ser comparado a
um harmônio de quarta ordem”, ao fato de as caixas de som poderem produzir ruídos e
que o custo do instrumento era muito alto. A produção industrial do órgão Hammond
também foi motivo de críticas.
Furio Franceschini (1947) chegou a escrever um artigo no qual tratou da
colocação dos órgãos tubulares em igrejas, levando em consideração a acústica e a
arquitetura destes ambientes. A crítica baseada na formalidade do espaço nas igrejas se
fez sentir inclusive em relação ao harmônio [Sousa, 1948, p.207], à qual o órgão
eletrônico também representava uma afronta. Enquanto o uso industrial da eletricidade
criava o benefício de as máquinas serem posicionadas mais afastadas das fontes de
energia [Landes, 1994, p.291], a portabilidade do órgão eletrônico afrontava a tradição.
A parte da relevância dos argumentos apresentados, aqueles de motivação
litúrgica têm interesse central neste trabalho. O principal e unânime entre os detratores
do instrumento eletrônico dizia respeito à sua sonoridade, associada a práticas musicais
alheias à liturgia católica, como teatros, cinemas e salões de baile [Romita, 1949;
Franceschini, 1947; Sousa, 1948; Oliveira, 1955].
Além disto, o “Hammond” é largamente utilizado no cinema, nos
“halls” de hotéis, nos restaurantes, nos locais de divertimento, para
acompanhar dança, para intermezzos, etc. Em Roma, por ex., foi ele
instalado no Cinema Metropolitano! É, pois, inconveniente que o
mesmo instrumento seja usado também no exercício do culto. Verdade
é que o Mod. E (eclesiástico) difere do Mod. C (civil). Mas o
instrumento é substancialmente igual; e, mesmo no Mod. E, o
executor pode, querendo, combinar todos os timbres (artificiais),
inclusive os de instrumentos tipicamente mundanos e de jazz.
Permitir, pois, mesmo sequer tolerar o “Hammond” na igreja seria
desferir um golpe traiçoeiro na tradição histórica, artística e litúrgica
da Igreja Católica acerca do órgão. [...] Por outra parte, o “Hammond”
nasceu em ambientes e num clima verdadeiramente profanos e
mundanos: que aí fique, pois imperturbado, sem indesejáveis
contaminações de sacro e profano [Romita, 1949, p.185].

175
Outra alegação de Romita (1949, p.164) estava no fato de que se o órgão
eletrônico tivesse seu uso permitido nas igrejas, também outros aparelhos eletrônicos
deveriam sê-lo, quando, na Instrução da Sagrada Congregação dos Ritos sobre a
música sacra e a sagrada liturgia (1958) outros recursos eletrônicos – aparelhos
“automáticos” como pianola, vitrola, rádio, datafone, magnetofone – viriam a ter seu
uso restringido ou proibido no interior das igrejas. Muito antes, porém, já atentava
Romita (1949, p.185) que “é proibido o uso de gramofones (Decr.4247), do Rádio, dos
Sinos tubulares aplicados ao órgão (Decr.4344), das instalações radiofônicas em
substituição aos sinos de bronze nos campanários e cúpulas”. Deste modo, percebe-se
na aversão aos instrumentos e aparelhos eletrônicos nas décadas de 1940, pessimismo
muito semelhante àquele dirigido à eletricidade, quando do início de sua exploração.

3. Iluminismo: A Eletricidade Movendo o Progresso


Não apenas por ser o elemento fundamental na produção do som pelos órgãos
eletrônicos, mas por ilustrar com precisão o otimismo e o pessimismo diante do
progresso científico e tecnológico, a história da eletricidade foi tomada aqui como
parâmetro de comparação. Na indústria, a introdução desta nova forma de energia – e
não uma fonte de energia, como o carvão, gás e petróleo – representou um considerável
avanço. David Landes (1994, p.290) justificou tal avanço a dois de seus atributos.
transmissibilidade e flexibilidade, ou seja, a perda pequena de energia em razão de seu
deslocamento e a facilidade de conversão em outras formas de energia, como luz, calor
e movimento. Enquanto no início do século XIX, era mera curiosidade científica, a
partir dos últimos anos deste século,
a eletricidade tomou conta do campo de transmissão de energia. A
história desse desenvolvimento merece ser acompanhada – como um
exemplo de cooperação científica e técnica, de invenção múltipla, de
progresso através de uma infinidade de pequenos aperfeiçoamentos,
de espírito empresarial criativo, de demanda derivada e de
conseqüências imprevistas (Landes, 1994, p.293).
Se o uso industrial da eletricidade representava um progresso nos modos de
produção, no Século das Luzes ela poderia ser comparada à própria luz da razão. Dentre
as diversas formas de pesquisa para seu uso, merece destaque a finalidade da medicina:
choques terapêuticos e até mesmo tentativas de ressurreição (Fara, 2002), que, no
presente, se contata nos aparelhos desfibriladores. No século XIX, entretanto, este tipo
de pesquisa era visto com pessimismo por alguns e com otimismo por outros e a
mitologia grega não raro foi utilizada para expressar as duas visões: o mito de Prometeu
sempre esteve associado à noção de progresso. Segundo a lenda, o titã que trouxe à
humanidade a civilização e o progresso científico-tecnológico fora condenado pelos
deuses a viver acorrentado e ter seu fígado comido diariamente por uma águia [Ésquilo,
1993]. Em determinadas culturas, o mito de Prometeu fora contado substituindo a
figura do titã por aves, que querendo espalhar o progresso representado pelo fogo
tinham que pagar o preço de terem suas penas chamuscadas [Campbell, 1990]. No
campo de pesquisa da eletricidade,
A pipa de Franklin promove uma versão triunfal da ciência na qual o
progresso se dá através de importantíssimas descobertas individuais.
Recebendo as honras antes reservadas aos militares ou aos líderes
religiosos, os cientistas se tornaram os santos da modernidade.

176
Franklin se tornou a encarnação moderna de Prometeu, o herói grego
que despertou a fúria de Zeus roubando o fogo dos céus – a faísca da
sabedoria divina – para dar à humanidade o poder da razão. Prometeu
também representa a liberdade da opressão política, e o raio que
freqüentemente aparece em imagens de Franklin representa seus ideais
políticos bem como as invenções elétricas. O eletricista inovador
também foi um político revolucionário idolatrado na França por
“roubar a eletricidade do céu e o cetro do tirano” [Fara, 2002, p.75,
tradução nossa].
Esta pode ser considerada uma visão otimista em relação ao progresso científico
e tecnológico, mas não a única. Para outros, a dádiva de Prometeu fatalmente implicaria
o espalhamento das desgraças da caixa de Pandora. Assim, se pode citar Frankenstein –
O Prometeu moderno, de Mary Shelly, de 1816, no qual o título foi uma clara alusão a
Benjamin Franklin. O livro foi escrito mais de meio século após o início das
experiências elétricas em animais e plantas – vivos e mortos [Schiffer; Hollenback;
Bell, 2003, p.107] –, mas há pouco mais de uma década após as experiências em seres
humanos. Deste modo, a obra considerada um clássico do terror, não foi resultado de
devaneios da escritora, mas esteve ligada aos acontecimentos científicos de sua época.
Em janeiro de 1803 o corpo enforcado do assassino George Forster foi levado
para um experimento científico de Giovanni Aldini, que lhe aplicou choques elétricos.
As reações no cadáver foram o movimento das mandíbulas, um olho abrir, o pulso se
mover e as pernas começarem a chutar violentamente, sugerindo a alguns dos presentes
que Forster estava sendo trazido de volta à vida. Os experimentos seguiram com outro
professor que quinze anos depois usou uma bateria de 270 pares de chapas metálicas em
outro criminoso morto. Mary Shelley tinha apenas cinco anos quando Aldini realizava
seus experimentos de “ressuscitação”, ou como o cientista preferia chamar, de animação
suspensa [Fara, 2002, p.166]. O sobrinho de Luigi Galvani – cientista que já havia
realizado experiências com eletricidade, provocando espasmos em pedaços de sapos
mortos – tornara-se colaborador e divulgador dos experimentos de Aldini. Além destas,
também foram realizadas pesquisas biológicas às quais Jon Turney (2000) relacionou a
criação de Frankenstein. Paradoxalmente, o marido de Shelley, o escritor Percy Bysshe
Shelley era um entusiasta do progresso tecnológico representado pela eletricidade: para
ele, a ciência encontraria um caminho “para aquecer as pessoas pobres durante os
invernos mais frios” [Fara, 2002, p.1]. Deste modo, é possível afirmar que o progresso
divide as opiniões em pessimistas e otimistas. Segundo Herman (1999), o século XX foi
marcado por um pessimismo generalizado e nem sempre justificável. Por outro lado, a
“crença cega no progresso” também seria uma saída perigosa.
Na história econômica, David Landes (1994) demonstra claramente a crença no
progresso, o título escolhido foi Prometeu desacorrentado: transformação tecnológica e
desenvolvimento industrial na Europa Ocidental, desde 1750 até a nossa época como
numa referência otimista ao poema Prometeu acorrentado de Ésquilo (1993), quase
como uma contraparte a Mary Shelley [Sherwin, 1981]. Recentemente, Pandora’s Seed:
The unforeseen cost of civilization de Spencer Wells (2010) chama a atenção para os
impactos negativos do progresso, retoma a mitologia grega e alude à consorte de
Prometeu, em cuja caixa estavam guardados os males que se abateriam sobre o mundo.

177
4. O Triunfo de Prometeu
Apesar do rompimento com os “vícios da modernidade” no Syllabus errorum
(1864), a Igreja não se isolou totalmente em relação ao século. Posicionando-se
claramente em relação às questões sociais de seu tempo, dentre as quais o progresso
econômico, o papa Leão XIII apresentou duras críticas ao “temível conflito de classes”
e ao Socialismo [Pierucci, 2007, p.462] em sua Encíclica “Rerum novarum”, de 1891. O
pontífice divide opiniões, tendo sido considerado por muitos um papa “progressista” e
por outros, um aguerrido ultramontano na crítica ao mundo moderno [Soares, 1945].
Ao tempo do Concílio Vaticano II, a encíclica de Leão XIII foi destacada como
um símbolo da “doutrina social dos papas”. Paulo VI, em sua Encíclica “Populorum
progressio” sugeriu a noção de progresso que se instalou na Igreja nas reformas da
década de 1960:
O desenvolvimento dos povos, especialmente daqueles que se
esforçam por afastar a fome, a miséria, as doenças endêmicas, a
ignorância; que procuram uma participação mais ampla nos frutos da
civilização, uma valorização mais ativa das qualidades humanas; que
se orientam com decisão para seu pleno desenvolvimento, é seguido
com atenção pela Igreja. Depois do Concílio Ecumênico Vaticano II,
uma renovada conscientização das exigências da mensagem
evangélica traz à Igreja a obrigação de se por a serviço dos homens,
para nos ajudar a aprofundarem todas as dimensões de tão grave
problema e para os convencer da urgência de uma ação solidária neste
virar decisivo da história da humanidade [Vaticano, 1967].
A relação entre a Igreja e o progresso científico e tecnológico nos tempos de
romanização pode ser bem ilustrada, no Brasil, com o caso do padre engenheiro Roberto
Landell de Moura (1861-1928). Enquanto Wernet (1987) ressaltou o empenho dos
padres iluministas no progresso tecnológico da colônia – dedicados à inovação das
técnicas agrícolas –, Landell de Moura foi considerado o pai brasileiro do rádio e o
pioneiro na transmissão da voz humana sem fio. Além disto, trabalhou com protótipos
da televisão e outras experiências com aparelhos eletrônicos. Apesar de ter tido alguns
diálogos de cunho científico com Dom Pedro II, sua carreira não foi reconhecida ou
incentivada [Almeida, 2006]. Em Campinas, chegou a ser considerado herege pela
população local em razão de seus experimentos, o que reflete a dicotomia entre religião
e progresso científico-tecnológico na Romanização.
Do mesmo modo que o terror provocado pela eletricidade foi gradativamente
superado, o órgão eletrônico que antes era tratado como um “fantasma da modernidade”
foi aceito pela Igreja Católica: apesar das críticas Romita (1949, p.201) já percebia que
a aceitação era inevitável, pois escreveu que “quando efetivamente se admitir dentro do
Vaticano e na Liturgia o Órgão Hammond, e a Sagrada Congregação lhe der a devida
aprovação, há de, então, ruir toda dúvida sobre sua perfeita aptidão para o templo”. A
aprovação viria menos de um ano depois, mas sem o reconhecimento de um
instrumento litúrgico oficial, como era o caso do órgão acústico: em uma Communicatio
da Sagrada Congregação dos Ritos, de 13 de julho de 1949, a Santa Sé declarava sua
preferência pelos órgãos tubulares tradicionais, mas não mais proibia o uso dos órgãos
eletrônicos, competindo ao Ordinário permitir sua introdução nos templos, respeitando a
opinião da Comissão Diocesana de Música Sacra. O critério a ser observado para a
resposta positiva era a impossibilidade de aquisição de um órgão tubular pela igreja que

178
postulasse a aquisição do eletrônico [Diniz, 1950, p.83]. Dizia o documento da
Congregação dos Ritos [apud Valença, 1950, p.81]:
Não é necessário recordar que o órgão desempenha um
importantíssimo papel na sagrada liturgia, e que para sua construção,
apesar de não ser grande no tamanho, se requer um grande dispêndio.
Por esta razão, nos últimos tempos, inventaram as sociedades
construtoras de instrumentos musicais os órgãos eletrônicos, que
embora inferiores aos órgãos tubulares, apresentam, no entanto,
notáveis vantagens na fabricação e no uso. Considerando tudo isto, a
Sagrada Congregação dos Ritos resolve não proibir o uso dos órgãos
eletrônicos, embora se prefira o antigo órgão de tubos por mais
apropriados aos requisitos litúrgicos.
Segundo padre Jaime Diniz (1950, p.83), a aceitação do órgão eletrônico se deu
por “razões de ordem prática, razões estas exaradas no início do documento, como o
estado difícil de coisa que deixou a última guerra, principalmente na Europa”. A
adesão ao órgão eletrônico parece ter sido tão rápida quanto foi massiva. O resultado
disto – como todo resultado econômico das inovações tecnológicas – foi uma
considerável mudança na área da organaria, que, segundo Henrique Lins [apud Kerr,
2006, p.135],
“[...] logo passou a enfrentar também a concorrência do órgão
eletrônico: ‘Vai construir um órgão, mas não se faz em 15 dias.
Conforme o tamanho, leva um ano, dois anos. Um freguês não tem
paciência de esperar tanto. Os brasileiros são imediatistas. Quer na
hora, onde é que tem? Quanto é? Vamos comprar. Se fala precisa
encomendar, mundo [sic] desiste. Mas o Hammond tem na loja’ [...].
Em um levantamento dos órgãos tubulares da cidade do Rio de Janeiro realizado
por Gisele Batista (2009, p.31), dois aspectos ficam claros: a diminuição considerável
de instrumentos tubulares novos em igrejas católicas após 1950 e a quase extinção após
a proclamação do Concílio Vaticano II, que introduziu profundas mudanças na liturgia.
Fenômeno semelhante se observou no Catálogo de Órgãos da cidade de São Paulo
[Kerr, 2001]. Assim, mais uma vez a comparação com a energia elétrica se mostra
válida: “A verdade é que a energia hidráulica e a ar comprimido deveram muito de seu
sucesso a sua prioridade. Elas chegaram primeiro. Mas, depois que a eletricidade entrou
em cena, estavam fadadas a perder terreno” [Landes, 1994, p.292].
Finalmente, em meio ao cenário caótico para os pessimistas, diante da aceitação
do instrumento eletrônico, a crença no progresso demonstrada pelo padre português
Manuel Valença (1950, p.81) revelava otimismo e um forte senso prático:
A técnica moderna é capaz de aperfeiçoamentos que julgaríamos
impossíveis, e ainda nos há-de revelar, quase dia a dia, surpreendentes
descobertas. Aquilo que há 50 anos parecia irrealizável no campo do
rádio e da televisão, é hoje uma esplêndida realidade. Mas é preciso
que a técnica industrial tenha o incentivo econômico, doutra forma,
abandona o campo das pesquisas. Temos de proporcionar-lhe o
incentivo.
Com o Concílio Vaticano II, a possibilidade de adaptação da liturgia à índole de
cada povo representou o questionamento da Igreja à noção de progresso eurocentrista
amoldável somente a um mundo Belle époque [Duarte, 2013], sugerindo, antes, uma

179
adaptação darwiniana das diversas culturas do que a linearidade do progresso constatada
em Lamarck e outros teóricos da evolução [Serra, 2009]. Mais do que uma memória
importada, a Igreja passou a investir em passados protomemorizados [Candau, 2011]
para a construção de identidades regionais.

Considerações Finais
Como resposta à problemática aqui formulada, foi possível constatar que apesar da
existência de uma modernização nas relações de controle da igreja no sentido da
institucionalização ou das relações de poder do tipo weberiano racional-legal [Buckley,
(1971)], o recurso a uma tradição inventada, importada da Europa foi fundamental para
que este processo ocorresse. No pensamento romanizante existia um forte senso de
progresso linear que se deveria acontecer das periferias para o centro, Roma. Neste
panorama, a recusa ao órgão eletrônico em nome da tradição ajudava a reforçar a
identidade vigente e sua aceitação, no início da década de 1950 só refletiu um processo
de aproximação da modernidade – aggiornamento – pelo qual a Igreja já passava e que
viria a se oficializar com o Concílio Vaticano II, na década seguinte.
Como se viu, a reação ao progresso tecnológico que perpassa o tema aqui
abordado não se limita aos objetos em si, mas às ideologias subjacentes, que conduzem
às reações pessimistas ou otimistas. Assim, se existe na aversão ao órgão eletrônico um
componente de frustração do ponto de vista artístico – timbre e princípios acústicos – o
fechamento normativo constatado na revista Música Sacra foi, antes, um coerente
desdobramento do pessimismo da Igreja ultramontana em face do progresso científico-
tecnológico e do “espírito da modernidade”, que garantia a alteridade em relação ao
século, marcante nesta autocompreensão.

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editada por Pedro Sinzig, a.10, n.5, Petrópolis, Vozes. p.81-82.
VATICANO (1967) “Carta Encíclica Populorum Progressio”,
http://www.vatican.va/holy _father/paul_vi/encyclicals/documents/hf_p-
vi_enc_26031967_populorum_po.html, jun. 2012.
WELLS, S. (2010) “Pandora’s Seed: The Unforeseen Cost of Civilization”, New York,
Random House.
WERNET, A. (1987) “A Igreja Paulista no Século XIX: A Reforma de D. Antônio
Joaquim de Melo (1851-1861)”, São Paulo, Ática.

182
Memórias musicais da Amazônia: catalogação e edição de
partituras para banda de música do início do século XX
José Ruy Henderson Filho1

Rodrigo Gabriel Ramos Rodrigues2


1
Universidade do Estado do Pará (UEPA)
Rua do Una, 156, Bairro Telégrafo, CEP: 66050-540, Belém-PA
ruy.edu@gmail.com

2
Universidade do Estado do Pará (UEPA)
Rua do Una, 156, Bairro Telégrafo, CEP: 66050-540, Belém-PA
r_gabrielonline@yahoo.com.br

Resumo. Este artigo apresenta uma pesquisa em andamento que tem como objetivo a
catalogação e edição do acervo de partituras para bandas de música que se encontra no
município de Vigia de Nazaré-PA, visando posterior publicação em mídia impressa e digital. A
pesquisa busca no referido acervo manuscritos de compositores paraenses ou de comprovada
influência no cenário musical do Estado, dando ênfase a dobrados e marchas, gêneros
musicais bastante executados por essa formação instrumental e abundantes no acervo
pesquisado. Até o momento foi iniciado o processo de higienização e identificação que
facilitou a manipulação por parte dos pesquisadores e consequente preservação do material
original; em seguida, o material foi organizado de acordo com o título, autor, entre outros
parâmetros; posteriormente foi realizada a seleção de parte do acervo e iniciado o processo
de análise dos manuscritos para em seguida proceder à transcrição em programa de edição
de partituras. As etapas seguintes serão constituídas de pesquisa biográfica dos compositores
e finalização do processo de edição para criação do catálogo de partituras.

1. Introdução
A presença da banda de música no Brasil é conhecida desde o período do Brasil-Colônia
(BENEDITO, 2005), mas foi a partir de 1808, com a chegada de D. João VI e sua
comitiva ao solo brasileiro, trazendo consigo a banda da brigada Real, já bastante
afamada em toda a Europa, que passou a ser uma instituição de grande relevância para o
cenário musical brasileiro.
No Rio de Janeiro, essa formação musical logo ganhou adeptos, investimentos e
projeção, transformando-se, em pouco tempo, em uma das práticas musicais
instrumentais mais promissoras e duradouras do Brasil monárquico e imperial.
Conforme informações de Schwebel (1987, p.8):
Essas bandas militares, estabelecidas, pois em todo o território
nacional, além de sua utilização natural nos serviços militares e
cerimoniais, participaram ativamente da emergente vida musical dos
quatro cantos do Brasil quer nas escolas ou institutos de música,
conservatórios ou cursos universitários, além de instituições militares
e de iniciativas privadas.
No Estado do Pará não é diferente, uma vez que a presença de bandas de música
marciais e civis, tanto no interior como na Capital, é muito forte. O Estado possui a
banda de música escolar mais antiga do Brasil, a banda de música do Colégio Lauro

183
Sodré, fundada no ano de 1839. Nesse contexto, estudos como o que é apresentado
neste artigo, são importantes para a manutenção e reconhecimento dessas práticas
musicais.
O município de Vigia de Nazaré é um dos municípios do Estado do Pará que se
destaca no cenário musical por manter viva a tradição das bandas de música, possuindo
hoje um total de cinco bandas em atividade. Essa tradição que se manifesta em diversas
regiões do Estado promove uma significativa produção de obras, sendo comum que o
próprio mestre de banda (regente) e alguns integrantes sejam compositores.
O acervo para banda de música presente hoje no município de Vigia de Nazaré
já pertenceu à brigada de polícia do décimo terceiro batalhão, posteriormente foi doado
à Fundação Carlos Gomes e por último ao sargento José Maria Vale, morador da cidade
de Vigia e dirigente do Instituto Musical Art Show Vigia, que detém a atual posse do
referido acervo.
A proposta desta pesquisa visa a catalogação, edição e posterior divulgação das
obras do referido acervo, não apenas junto aos músicos profissionais, alunos e
pesquisadores, mas também à população de modo geral.

2. O processo de catalogação e edição de partituras


O inicio da prática de catalogar e a indexação de materiais literais tem como período
oficial o séc. II a.C. com a organização das tábulas de argila, sendo que o momento de
maior notoriedade e ápice dessa prática aconteceu no século XIX com a maior produção
de artigos científicos e a impressão de livros. A catalogação de materiais pode ser
compreendida como uma organização de informações de um determinado acervo e a
identificação de informações. O processo de catalogação envolve varias etapas que para
Fujita et al (2009) são denominadas de coleta, tratamento e difusão.
• coleta: compreende toda a operação de localização, seleção e aquisição de
documentos convencionais e não convencionais;
• tratamento: executa o processamento dos documentos coletados com relação
tanto ao suporte material quanto ao seu conteúdo;
• difusão: é realizada por meio dos produtos e serviços do sistema de informação
planejados de acordo com a demanda da comunidade usuária: levantamentos
bibliográficos retrospectivos e atualizados, consultas bibliográficas, empréstimo de
documentos, comutação documentária, entre outros. (FUJITA et al , 2009, p. 21)
Na visão de Fusco (2010), considera-se a catalogação, no seu sentido mais
amplo, como um conjunto de normas, procedimentos e tarefas necessárias à aquisição
de uma informação e sua inserção em um catálogo.
Castro (2003) fala sobre esse processo de catalogação e faz uma discriminação
entre catálogo e catalogação. Nessa discriminação o autor mostra que esses dois pólos
se convergem e se complementam no seu sentido mais amplo. Sobre o processo de
catalogação, Mey (1995) define catálogo como:
[...] um canal de comunicação estruturado, que veicula mensagens
contidas nos itens, e sobre os itens, de um ou vários acervos,
apresentando-as sob forma codificada e organizada, agrupadas por

184
semelhanças, aos usuários desse (s) acervo (s) (MEY, 1995 apud
CASTRO, 2003. s/p.)
Sobre catalogação, Mey (1995, apud CASTRO, 2003) a define como:
[...] o estudo, preparação e organização de mensagens codificadas,
com base em itens existentes ou passíveis de inclusão em um ou
vários acervos, de forma a permitir interseção entre as mensagens
contidas nos itens e as mensagens internas dos usuários. (MEY. 1995
apud CASTRO, 2003, s/p.)
Catalogar um acervo pode compreender três fases: descrição, pontos de acesso
e dados de localização (CASTRO 2003). Todas essas fases contribuem para que o
acesso à informações possa ser feito de maneiras mais efetivas e rápidas ao acervo em
que se esteja trabalhando. Na fase de descrição os materiais são caracterizados por todas
as informações que contém no item, seja suas características de materiais ou até mesmo
características especificas, como edição, volume etc. Os pontos de acesso são as vias
pelas quais o usuário pode ter acesso ao material, seja ele físico ou digital. Sobre os
dados de localização, esses são os dados pertinentes aos itens do acervo, pelo quais o
usuario pode ter acesso de uma forma mais rápida e prática.
Para o processo de edição das partituras do acervo em questão, utilizaremos
como referência o trabalho de James Grier (1996), que apresenta os principais conceitos
relacionados ao processo de edição de partituras. O autor foi o primeiro a fornecer uma
introdução à edição de música, incluindo a história do campo, as questões e os
problemas encontrados. A preparação das edições práticas (voltadas para a execução) e
musicológicas (voltadas para o estudo) é uma das mais importantes contribuições do
autor para o estudo da música.
O termo editar pode ser entendido de duas maneiras. A primeira é
sinônimo de publicar, a segunda maneira é expressa pelo Webster Dictionary, que define
editar, entre outras acepções, como “revisar e preparar para uma publicação” (261),
coincidindo com a ideia de Grier (1996, p 36) de que o “produto final de uma edição é
um texto” 3.
Outro autor que fundamenta esta fase da pesquisa é Carlos Alberto Figueiredo
(2000). O autor aborda em seu trabalho obras do compositor José Maurício Nunes
Garcia e sua transmissão por meio de diferentes tipos de fontes: manuscritas ou
impressas, autógrafas (escritas pelo próprio compositor) ou de tradição (com alterações
adicionadas por executantes conforme o passar do tempo).
A partir da constatação dos problemas documentais ocorridos no processo de
transmissão das obras de José Maurício Nunes Garcia, Figueiredo (2000) discute
soluções editoriais para as mesmas, a partir de diferentes teorias e metodologias. O
autor também estabelece sete tipos diferentes de edições (Fac-similar, Diplomática,
Crítica, Urtext, Prática, Genética e Aberta).
A edição Fac-similar é aquela que reproduz uma fonte fielmente, através de
meios fotográficos ou digitais. É uma edição com características musicológicas, baseada
numa única fonte e essencialmente não-crítica, ou seja, não pressupõe qualquer
discussão sobre a intenção de escrita do compositor, já que não há qualquer
possibilidade de intervenção do editor no seu texto final (FIGUEIREDO, 2000).

185
A Edição Diplomática está a um passo adiante da Edição Fac-similar, ao
apresentar um texto fiel o mais possível ao original, porém transcrito pelo editor,
apresentando, pois, um componente interpretativo que a Edição Fac-similar não pode
ter. Tem caráter eminentemente musicológico, sendo baseado em uma única fonte
(FIGUEIREDO, 2000).
A edição Crítica é aquela que investiga e procura registrar, prioritariamente, a
intenção de escrita do compositor, a partir daquilo que está fixado nas várias fontes que
transmitem a obra a ser editada. A Edição Crítica é essencialmente musicológica,
baseando-se, necessariamente, em várias fontes, e adotando uma estrita aderência aos
princípios e métodos da Crítica das Variantes ou da Crítica Textual, para atingir seu
texto, “o mais autêntico possível” (DAHLHAUS, 1995, p. 69 apud FIGUEIREDO,
2000).
A edição Urtext é, segundo Caraci Vela e Grassi (1995) uma “edição diplomática
de uma fonte única, autorizada, com indicações úteis para a prática de execução”. A
autora vai mais longe ao dizer que as intervenções editoriais devem indicar questões de
“execução da época” (CARACI VELA E GRASSI, 1995, p. 385 apud FIGUEIREDO,
2000).
A edição Prática, também chamada de Didática, é destinada exclusivamente a
executantes, sendo baseada em uma única fonte, na verdade qualquer fonte, com
utilização de critérios ecléticos para atingir seu texto. Um dos problemas comuns com
tal tipo de edição é a manutenção de uma série de erros, já que os editores têm a
tendência a utilizar edições anteriores para seu trabalho de revisão (BADURA-SKODA,
1995:184 apud FIGUEIREDO, 2000).
Figueiredo (2000) apresenta a edição Genética como aquela publicação que
contém todas as versões de determinada obra, dadas como definitivas pelo compositor,
em um dado momento.
Walther Dürr (1991) propõe a expressão edição Aberta, a partir do conceito de
obra aberta, de Umberto Eco, para caracterizar um tipo de edição que não só apresente
as variantes e versões paralelas de autor, mas também as transformações trazidas a um
texto pela tradição (DÜRR, 1991, p. 524 apud FIGUEIREDO, 2000). A Edição Aberta
é, assim, baseada em várias fontes, e tem um objetivo musicológico por excelência, ao
permitir o estudo da transmissão de uma obra musical. Nesse tipo de edição, todo o
material de tradição é apresentado de forma organizada e metódica, de maneira a
facilitar tal estudo. Os tipos de edição serão adotados de acordo com as
características dos documentos musicais encontrados no acervo e a finalidade da
pesquisa que é a edição para posterior execução. Os desafios editoriais enfrentados por
Figueiredo poderão ser encontrados também na presente pesquisa, portanto as soluções
tratadas pelo autor poderão auxiliar as tomadas de decisões que se farão necessárias no
decorrer deste estudo.
Figueiredo (2000) discute ainda um conceito importante no processo de edição,
que consiste na “transcrição”. Em música o termo transcrição é empregado com quatro
significados diferentes: como sinônimo de cópia; como cópia de um texto musical em
notação diferente da original; como reelaboração criativa que dá um compositor a uma
obra sua ou de outro (CARACI VELA e GRASSI, 1995:393 Apud FIGUEIREDO,
2000); como registro gráfico de uma execução de uma obra, conforme o uso em
Etnomusicologia.

186
A transcrição, conforme o segundo significado acima, é o que nos interessa, e
ainda sobre este assunto podemos colocar que uma transcrição é sempre inevitável,
mesmo em um processo editorial comprometido com a fidelidade às fontes. Grier
(1996, p 58) aponta dois estágios numa transcrição: a inscrição dos símbolos e sua
interpretação, reconhecendo, entretanto, que os limites entre dois estágios são tênues.
Entendemos, no entanto, que os dois estágios apontados por Grier são na
verdade complementares, pois no que diz respeito à interpretação dos símbolos,
chegamos aqui mais próximo do conceito de edição apresentado também por Grier
(1996) quando afirma que editar consiste em uma série de escolhas fundamentais e
informadas criticamente sendo, em resumo, o ato da interpretação.

3. Etapas da pesquisa
A pesquisa encontra-se em andamento, constituindo-se de quatro etapas. A primeira
etapa consistiu na identificação das partituras do acervo, que teve início em abril de
2012. Após contato com o responsável pelo acervo, parte deste foi disponibilizado aos
pesquisadores que o transportaram para a Capital. Primeiramente, as partituras foram
organizadas e armazenadas em sala climatizada e ao abrigo da luz solar. Essas partituras
já estavam separadas em pacotes numerados.
Para o manuseio e preservação das partituras, que se encontravam em grande
parte deterioradas, foram utilizadas luvas, máscaras, toucas e pincéis especiais para
higienização das mesmas como parte do primeiro contato com o material.
As obras foram organizadas por ordem alfabética dos títulos e posteriormente foi
criado um banco de dados contendo título da obra, compositor, arranjo e categoria
(manuscrita ou editada). Cabe ressaltar que algumas obras não possuíam identificação
de autor e outras não possuíam título. A classificação em manuscrita ou editada serviu
para separar as obras que seriam trabalhadas no projeto, ou seja, apenas manuscritos,
pois esse é um critério de seleção do material da presente pesquisa.
A segunda etapa consiste da seleção de obras que serão utilizadas na
pesquisa. Conforme os critérios previstos pelo projeto, optamos por trabalhar com os
gêneros musicais marcha e dobrado, devido à grande quantidade destes no acervo
pesquisado. Como a pesquisa pretende reintroduzir essas músicas no repertório das
bandas, optamos por priorizar obras “completas”. Entendendo que as partes de cada
instrumento são escritas separadamente, de forma a facilitar a execução da peça, a
possibilidade de perder parte do material tem grande probabilidade de acontecer, o que
justifica o critério de pesquisa. Depois de selecionadas será elaborado um texto auxiliar
contendo informações sobre a obra alem de uma biografia dos compositores do
material.
Na terceira etapa da pesquisa demos início ao processo de transcrição e edição
das partituras do acervo. Estamos tomando como base para nossa pesquisa a ideia de
que uma edição resulta num texto, fruto da pesquisa e da reflexão em torno das fontes
que o transmitem e que seria o exemplar para a possível impressão.
Na quarta etapa será construído o catálogo, onde será apresentado todo o
material editado, além dos textos auxiliares, como a biografia dos compositores e um
apanhado histórico dos gêneros musicais contidos nas partituras.

187
4. Estágio atual da pesquisa
Devido ao volume do acervo e ao tempo necessário para realizar a catalogação das
obras, foi iniciado em 2013 um projeto de iniciação cientifica (PIBIC) com o objetivo
de executar a fase de edição da pesquisa com uma pequena parcela do acervo, para que
pudéssemos ter uma noção dos desafios que encontraremos quando a pesquisa chegar
nessa fase. Assim, foi selecionada uma obra para ser editada, a “Marcha Solene Senador
Lemos” de Cincinato Ferreira de Souza.
Isso possibilitou um entendimento dos desafios que esta pesquisa ainda iria
enfrentar, pois percebemos que transcrever os manuscritos não é simplesmente fazer
uma cópia, exige interpretação e grande poder de análise por parte do pesquisador. Erros
podem ser cometidos pela dificuldade de entendimento da escrita, e por vezes só são
identificados na fase de superposição das partituras, quando instrumentos diferentes
tocando motivos iguais ou semelhantes não fazem sentido musicalmente. Aqui, a
atenção do pesquisador é essencial. Há ainda erros encontrados nos próprios
manuscritos, sejam eles notas erradas ou compassos com tempos a mais ou a menos,
entre outros.
Devido à idade das peças, algumas com mais de cem anos, como é o caso da
“Marcha Solene Senador Lemos”, é comum encontrarmos disparidades na nomenclatura
dos instrumentos utilizados, ou ainda, transposições que não são mais utilizadas nos
dias de hoje. Como exemplo, temos o flautin em mí bemol. Essa transposição não é
mais utilizada, e temos como referência hoje o Picollo (Flautin) em dó, transpondo uma
oitava, ou seja, as notas que o picollo toca, soam uma oitava acima do que está escrito
(ver figuras 1 e 2).

Figura 1. Parte manuscrita do flautin em Mi bemol da “Marcha Solene Senador


Lemos”, de Cincinato Ferreira de Souza.

188
Figura 2. Parte editada do Piccolo (Flautin) da “Marcha Solene Senador
Lemos”, de Cincinato Ferreira de Souza.
O projeto de pesquisa prevê, como já mencionado anteriormente, a
edição de partituras do referido acervo. No entanto, ressaltamos que devemos considerar
as várias formas de edição de uma obra, já tratadas na segunda sessão deste artigo, com
base em Figueiredo (2000). Concomitante à fase de catalogação, realizamos a
digitalização das obras, ou seja, o registro fotográfico, gerando assim um documento
digital, que fará parte de uma edição do tipo Fac-similar. No entanto, também prevemos
a transcrição de algumas obras para a notação mais moderna, para facilitar o estudo das
mesmas. Nesse ponto abre-se um leque de possibilidades de acordo com cada obra.
No caso da “Marcha Solene Senador Lemos” não foi possível realizar uma
edição diplomática como a descrita por Figueiredo, já que temos mais de uma fonte. A
pasta com as partituras da marcha contém fontes autógrafas (figura 1), mas também
cópias assinadas por Epiphanio Favacho, datadas de 25 anos após a composição
original.
Como a edição diplomática prevê o uso de uma única fonte, foi preciso descartá-
la, assumindo assim uma edição crítica. No entanto optamos por continuar o mais
próximo do texto original e só realizar qualquer tipo de adição na versão para execução.
Isso explica, por exemplo, o porque da figura 2 não apresentar nenhum sinal de
dinâmica, pois esses sinais não se encontram no texto original (figura 1).

5. Considerações finais
Acervos musicais, em especial partituras, guardam características das épocas e dos
lugares de sua origem. O trabalho de conservação desses documentos equivale a um
resguardo histórico. Pelo Brasil, há instituições que buscam conservar documentos
musicais que, muitas vezes, trazem ao conhecimento público fatos de determinados
séculos. É o caso, por exemplo, do Museu da Inconfidência, em Ouro Preto (MG), que

189
possui um acervo documental de diversos compositores do século XVIII e XIX. Esses
acervos relatam acontecimentos sobre a história de vida dos compositores, influências
da época, entre outros fatos.
A catalogação também contribui significativamente para a organização de
grandes acervos, como no Museu da Inconfidência ou em arquivos simples, como no
Conservatório Alberto Nepomuceno, em Fortaleza (CE), que mantém seus manuscritos
e partituras organizados em ordem alfabética e dispostos em caixas. (SANTOS, 2010)
Normalmente, os acervos das bandas estão sob os cuidados de seus próprios
músicos. No entanto, muitas vezes os músicos das bandas não têm o cuidado com esse
material e nem a consciência do valor histórico desse patrimônio. Acervos musicais
estão ligados à história de uma sociedade, tornando-se parte essencial dela, assim,
podemos ver como a história reflete e influencia a música.
Segundo Figueiredo (2000), apesar da ênfase ao caráter impresso de uma
edição, esta visão não coincide com a prática acadêmica, na qual muitas pesquisas são
feitas com o objetivo de se editar uma obra musical, sendo levadas, entretanto, até o
ponto onde o material resultante deveria ser entregue a uma gráfica para impressão. No
entanto, não são muitas aquelas que conseguem chegar a esse ponto de publicação, na
maior parte das vezes por falta de recursos financeiros, principalmente em nosso país.
Como alternativa para este problema, optamos por uma publicação digital, que
envolve custos mais baixos e possíveis de serem arcados, e já que o maior objetivo é a
divulgação do material não poderíamos nos deixar estagnar nesta fase aguardando
outros incentivos para fazer o material chegar aos destinatários, as bandas de música.
O presente trabalho, além de visar a preservação e divulgação de um riquíssimo
acervo musical, pretende contribuir também para a história da música na Amazônia,
uma vez que são poucos os registros existentes sobre os compositores e respectivas
obras encontrados no acervo.

Referências
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banda civil brasileira através de uma abordagem histórica, social e musical de seu
papel da comunidade. 2005. Dissertação (Mestrado em Música) – Programa de Pós-
Graduação da Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São
Paulo.
CASTRO. Fabiano Ferreira de. Conversão retrospectiva de registros bibliográficos.
Poster apresentado no XIII ENDOCOM, 03 de setembro de 2003, Belo
Horizonte/MG, 2003.
FERNANDES, José Carlos de F. Administração de material. Rio de Janeiro: Livros
Técnicos e Cientificos S.A, 1981.
FIGUEIREDO, Carlos Alberto. Catálogo de Publicações de Música Sacra e Religiosa
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FIGUEIREDO, Carlos Alberto. Editar José Maurício Nunes Garcia. Tese (doutorado)
Universidade do Rio de Janeiro. Doutorado em Música. Rio de Janeiro: Unirio, 2000.

190
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usuários de bibliotecas universitárias. Um estudo de observação do contexto
sociocognitivo com protocolos verbais [online]. São Paulo: Editora UNESP; São
Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. 149 . Disponivel em Scielo Books
<http://books.scielo.org>.
FUSCO, Elvis. Modelos conceituais de dados como parte no processo de catalogação:
perspectiva de uso dos FRBR no desenvolvimentos de catálogos bibliográficos
digitais. Tese de doutorado em ciência da informação. Faculdade de filosofia e
ciências. Universidade Estadual Paulista. Marília. São Paulo. 2010.
GRIER, James. The Critical Editing of Music: History, Method, and Pratice.
Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
RECINE, Analúcia dos Santos Viviani; MACAMBYRA, Marina. Manual de
catalogação de partituras da Biblioteca da ECA. Ed. rev - São Paulo: Serviço de
Biblioteca e Documentação/ECA/USP, 2010.
SANTOS, Mara R.S. Preservação documental: um breve relato sobre conservação de
acervos musicais. Encontro Nacional de Estudantes de Biblioteconomia,
Documentação, Gestão, e Ciência da Informação, 2010.
SCHWEBEL, Horst Karl. Bandas, filarmônicas e mestres da Bahia. Salvador: Editora
Universidade Federal da Bahia, Centro de Estudos Baianos, 1987.

191
Precipício de Faetonte, do Judeu à Cyrillo Machado: análise
iconográfica para fins paleográficos na reconstrução da parte
de viola e canto da ária “Naquela Deidade Galharda”

Gabriel de Sousa Lima, Márcio Leonel Farias Reis Páscoa


1
Escola Superior de Artes e Turismo - Universidade do Estado do Amazonas (UEA)
Rua Leonardo Malcher 1728 – Manaus-AM

gabriel.violista@gmail.com, marciopascoa@gmail.com

Resumo. Entre 1733 e 1738, Antônio José da Silva estreou, no Bairro Alto em Lisboa, oito
óperas em língua portuguesa, das quais sete contam com provável autoria musical de Antônio
Teixeira. São conhecidos hoje os manuscritos musicais para apenas três delas: Guerras do
Alecrim e Mangerona, As Variedades de Proteu e Precipício de Faetonte. A autoria da música
contida nestes manuscritos requer um exame cuidadoso e aponta para resultados que envolvem
a origem dos documentos, o contexto de seu surgimento e uso, bem como do material musical e
iconográfico que eles oferecem, revelando um universo estético que remete a influências
distintas, mas importantes para a compreensão do teatro musical luso-brasileiro do século
XVIII. Como material iconográfico da pesquisa tem-se o manuscrito musical Pcug-MM876, do
qual alguns aspectos foram analisados e comparados para obtenção e inferência, por exemplo,
do período provável em que foi utilizado (cerca de 1780), fatores de variação estilística entre a
data de estréia da ópera e do manuscrito, dentre outras descobertas. Além disso, são feitas
relações iconográficas com outras obras que se utilizam da temática de Faetonte no século
XVIII, como a pintura do teto da Sala da Guarda do Palácio de Mafra (cerca de 1790),
realizada por Cyrillo Wolkmar Machado, fazendo referência também aos escritos desse autor
acerca da sua pintura e implicações com o que ocorria na política e sociedade da época. Todos
os dados obtidos serviram de base para o trabalho paleográfico de reconstrução das partes de
viola e canto da ária Naquela Deidade Galharda, o que se configurou como parte do meu
trabalho de mestrado.
Abstract: From 1733 up to 1738, Antônio José da Silva, published for the first time, at the
Bairro Alto Theater in Lisbon city, eight operas, all of them in Portugese language, seven
among them having their music probably written by Antônio Teixeira. Nowadays, there are but
three of those operas the musicals manuscripts of which are known: Guerras do Alecrim e
Mangerona, As Variedades de Proteu and Precipício de Faetonte. The authorship of the music
which is contained in these manuscripts requires a careful examination and points to results
surrounding the provenance of the documents, the context of their creation and use, as well as
of the musical material that is contained in it, revealing an aesthetic world which refers to a
sort of different influences, however important to understanding the Luso-Brazilian musical
theater of the eighteenth century. As iconographic material it has the Pcug-MM876, of which
some aspects were analyzed and compared for obtaining and inference, for example, the likely
period in which it was used (about 1780), stylistic variation factors between the date of opening
of the opera and the manuscript, among other findings. Moreover, there are iconographic
relationships with other works that use the theme of Phaeton in the eighteenth century, such as
painting the ceiling of the Guard Room of the Palace of Mafra (about 1790), performed by
Cyrillo Wolkmar Machado (1748-1823), referring also to the writings of this author about his
painting and implications to what occurred in the politics and society of the time. All those data
were the basis for the palaeographical work of rebuilding of the viola and singing parts in the
aria “Naquela Deidade Galharda”, which was configured as part of my master thesis.

192
1. Introdução
Antônio José da Silva, também conhecido pela alcunha de ‘O Judeu’ (1705-1739)
estreou no Bairro Alto em Lisboa, entre 1733 e 1738, oito óperas em Português, das
quais sete contam com provável autoria musical de Antônio Teixeira (1707-1774).
Atualmente, são conhecidos os manuscritos musicais para apenas três delas: Guerras do
Alecrim e Mangerona; As Variedades de Proteu1 e Precipício de Faetonte, sendo que
para a última ainda estão perdidas todas as partes de viola, e com exceção de um
quarteto, todas as partes vocais. A comprovação da autoria musical destes manuscritos
requer um exame cuidadoso e aponta para resultados envolvendo a procedência
documental, o contexto de seu surgimento e utilização, bem como do material musical e
iconográfico nele contido, revelando um universo estético que remete a influências
distintas, mas importantes para a compreensão do teatro musical luso-brasileiro do
século XVIII (PÁSCOA, 2010: 43).

O conjunto manuscrito se constitui como o objeto iconográfico principal desta


pesquisa e encontra-se no acervo da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, sob
a cota Pcug-MM876, em Portugal. Trata-se da reunião de partes cavas de violinos
primeiro e segundo, baixo contínuo, oboés e um quarteto vocal com baixo instrumental,
intitulado Precipício de Faetonte. Todos têm o mesmo ordenamento de árias e
recitativos do tipo obbligato, com seus respectivos títulos coincidindo quase totalmente
com o que está disposto na obra homônima de Antônio José da Silva, publicada no
Theatro Cômico Portuguez (AMENO, 1744:461-605). Estão ausentes todas as demais
partes vocais, bem como as da viola e eventuais trompas.

Este artigo apresenta parte do resultado da pesquisa e análise realizadas para a


conclusão de curso de mestrado, no qual a metodologia utilizada pretendeu estabelecer
procedimentos seguros de reconstrução das partes de viola e canto, aqui aplicados nas
árias que julgou-se serem de autoria de Antônio Teixeira, exemplificadas neste artigo
pela ária Naquela deidade galharda. A reconstrução contribui para o resgate do
patrimônio histórico-cultural, permitindo a conseqüente performance musical do
manuscrito Pcug-MM876.
As únicas seções possíveis de se reconstruir são aquelas cuja autoria possa ser
estabelecida, de modo a obter parâmetro estilístico. Dessa forma, foram analisadas as
partituras das árias do conjunto manuscrito encontrado, sendo selecionada, por
comparação de padrões estilísticos musicais, aquela intitulada Naquela Deidade
Galharda, do personagem Mecenas, pertencente à Cena II do primeiro ato.
Outra fonte iconográfica se constituiu nas demais partituras de diferentes óperas
compostas pela parceria do Judeu com Antônio Teixeira, que através do exame
minucioso de tais obras esperou-se extrair elementos que possibilitassem a reconstrução
da parte de viola e de canto das árias pretendidas. Para isso, fez-se necessária a análise
dos procedimentos composicionais do autor, fazendo uso de outras obras do mesmo, a
fim de reconhecer a maneira da distribuição orquestral de árias e ensembles que
continham parte de viola. Posteriormente, pôde-se discriminar os elementos usados na
maioria das composições, como distribuição de frases, quantidades de vozes, vozes
dobradas com instrumentos, região comumente usada para os instrumentos, escolhas
retóricas para o texto, predileção rítmica, harmônica e melódica.

193
Obtidos esses dados, os mesmos serviram de base para o reconhecimento dos
elementos das árias, resultando numa gama de procedimentos aplicáveis na
reconstrução da parte de viola, nos moldes estéticos composicionais do autor, o que
possibilita que a mesma seja executada tendo a orquestração na sua textura adequada.
Ainda para a reconstrução e a contextualização da obra foi necessário também que se
fizesse um apanhado geral a respeito de fatores sociais da época, do estilo galante e dos
pressupostos litero-visuais concernentes ao tema do mito de Faetonte.1

2. Antônio José da Silva e Antônio Teixeira


Antônio José da Silva foi constantemente perseguido pela Inquisição — dada a sua
origem judaica e de sua família — sendo obrigado a penitenciar-se em autos de fé e de
conversão à Igreja Católica. Por esse motivo, a maioria dos escritos sobre ele relatam
passagens de sua vida de sofrimento e perseguição. Sem pretender subtrair a
importância de tais relatos, é possível também observar a vida do Judeu
contextualizando sua realidade e ressaltando os valores de sua obra literária, sem
necessariamente transformá-lo num mártir da Inquisição, pois assim se incorre no erro
de desviar-se das questões realmente importantes, no que tange à originalidade e riqueza
dos elementos literários e cênicos que ele elabora em suas paródias da Ópera Barroca
(BARATA, 1998: 13-58).
A maioria dos escritos sobre o autor de Guerras do Alecrim e Mangerona,
apresenta-nos, de forma linear, momentos importantes de sua vida, divididas
basicamente em quatro etapas: Sua crença judaica e a idéia tida pela Inquisição de uma
‘falsa conversão’ ao cristianismo; o estudo de cânones (direito), incompleto,
impossibilitando-o de exercer a advocacia, o que pode ter condicionado seu processo
criativo; o conhecimento mitológico-teatral e administrativo como autor de comédias,
bem como suas influências dramáticas espanholas; e por fim, sua sentença à morte pela
Inquisição, “divinizando-o”, o que termina por obscurecer as possíveis intenções do
autor em suas obras (IDEM: 39-76).
As obras do Judeu inspiram-se em episódios da mitologia grega bem conhecidos
e exaustivamente explorados pelos poetas dramáticos. Porém, ele reelaborou o material
dos temas abordados, deixando transparecer sua capacidade inventiva, escrevendo em
forma de comédia uma das mais fortes tragédias, que é o caso de Medeia, de Eurípides
(IDEM: 117).
As comédias (assim eram denominadas todas as peças de teatro da época) do
Judeu, que ele chamou de óperas joco-sérias, correm ao longo de dois planos e de uma
dupla intriga: o fantástico e a realidade, o discurso sério e o gracioso, os poderosos e os
criados, o amor nobre e o amor prosaico, o mundo sobrenatural e o mundo dos
humanos. Assim se desenvolve uma estratégia dramatúrgica que permite um constante
zapping2 entre espaços e situações, contribuindo para o progresso da intriga e para a
comicidade da peça (CARDOSO, 2005).
O Judeu encontrou uma forma de popularizar as comédias, pois ao escrever suas
peças para o teatro de marionetes, apresentava-se com um número ínfimo de atores,
tornando mais econômico e viável as récitas em um bairro popular como o Bairro Alto
(DINES, 2007). Tais peças ou óperas distanciaram-se do modelo italiano, pois eram
constituídas de trechos falados e trechos musicais na forma de aberturas, árias,

194
ensembles, acusando a influência espanhola das zarzuelas e, porventura, o impacte
recente da ballad opera inglesa. Revestiram-se de excelente música composta sobre o
texto em português, constituindo um gênero muito característico, próximo do futuro
Singspiel (CARDOSO, 2010: 61). Ainda que não se tenha comprovação de autoria, os
escritos históricos levam a crer que Antônio Teixeira foi o compositor das músicas para
as sete óperas de marionetes do Judeu. Pois além de Diogo Barbosa Machado, José
MAZZA (1944-5:18) ratifica tanto os talentos de músico, referindo-se a Antônio
Teixeira como “[…]Mestre do Seminário Real de Muzica, excelente Compozitor e
Organista da Patriarcal[…]”, quanto a composição das sete óperas, dentre as quais
apenas duas não são sobre temas mitológicos.
Apesar de sua suposta morte em meados do século XVIII, as obras de Antônio
Teixeira continuaram a ser apresentadas, inclusive no Brasil, na cidade de Pirenópolis-
GO3, onde existe pelo menos dois registros da montagem de Guerras do Alecrim e
Mangerona, encenadas para a celebração da Festa do Divino, em 1842 e 1899 (SOUZA,
2010: 144-145).
Nos anos 40 do século XX, o compositor Luís de Freitas Branco descobriu no
arquivo do Paço Ducal de Vila Viçosa a música original de duas peças de Antônio José
da Silva: Guerras do Alecrim e Mangerona e Variedades de Proteu (PEREIRA, 2005:
135). Afirmava ele que as partituras foram escritas pelo compositor português Antônio
Teixeira e que pertenciam ao período do barroco ornamental (SILVA, 1957-58: XXXII).
Mais tarde, os musicólogos Mário de Sampaio Ribeiro e Filipe de Sousa
aprofundaram essas pesquisas, confirmando a autoria de Antônio Teixeira (SOUSA,
1974: 413-420), viabilizando uma montagem da ópera bufa Variedades de Proteu, em
parceria com o pesquisador José Maria Neves4 e a Orquestra de Câmara do
Conservatório Brasileiro de Música, no Teatro Villa-Lobos, Rio de Janeiro, em outubro
de 1984 (PEREIRA, 2005: 136).
Outro trabalho dedicado à pesquisa em música sobre as óperas do Judeu em
parceria com Antônio Teixeira é desenvolvido, desde 2008, pela Universidade do Estado
do Amazonas (UEA), através do Laboratório de Musicologia e História Cultural, sob
coordenação do professor Márcio Páscoa5. Foi através desse projeto que desenvolvia
pormenorização do conjunto manuscrito em questão, analisando-o sob aspectos
estilísticos composicionais, no intuito de selecionar as árias coincidentes com os
padrões utilizados por Antônio Teixeira, para que fosse possível, a partir daí, reconstruir
as partes faltantes das seções de viola e canto.

3. As fontes litero-visuais do Precipício de Faetonte


O Barroco europeu do século XVIII foi um período marcado pelo reflexo de uma
sociedade e uma nobreza cortesã em mutação, governada por inúmeros regimes
absolutistas, fortemente influenciados pelo poder religioso, o que resultou em conflitos
de crença em que algumas pessoas eram perseguidas e sentenciadas, fato ocorrido com
o dramaturgo luso-brasileiro Antônio José da Silva, morto pela Inquisição.
Tal mutação ocorria também na literatura e nas artes dos fins da centúria
seiscentista, já que na Itália, em 1690, em honra à Rainha Christina da Suécia, viu-se
florescer a Academia Arcadiana, ou Arcádia, como uma tentativa, tal qual a Academia
Romana, de ‘purificar’ a literatura italiana dos excessos do barroco (leia-se barroco na
literatura o período que compreende genericamente o século XVII). Por ser pupila de

195
René Descartes (1596-1650) e correspondente de Pierre Corneille (1606-1684), a
referida rainha tinha uma estreita ligação com a França, e sua influência, aliada ao poder
político e cultural francês, combinou-se no sentido de proporcionar, na Itália, uma
melhor recepção de dramaturgos franceses, como o próprio Corneille, e também de
italianos como Jean Baptiste Racine (1639-1699). Este novo modelo, mais afastado dos
dogmas estritos da religião, com a valorização da ciência e do racionalismo, e associado
aos primeiros ideais libertários de simplicidade e igualdade franceses, fez com que os
literatos adotassem uma escrita mais simples e fossem abandonando gradativamente o
rebuscamento estremo do barroco, especialmente o da escola marinista (HEARTZ,
2003, p. 24).
Assim, esses novos dramaturgos, no intuito de fazer retornar a ópera à sua
pureza “clássica”, expurgaram as cenas cômicas e indecentes, bem como os servos
coniventes e as velhas amas, utilizados na ópera veneziana, e passaram a adotar os
temas da antiguidade, sejam eles pastoris ou heróico-mitológicos, aproveitando-se
desses temas para criar um teatro apólogo, com uma denotação educacional, fator que
diferenciará esse chamado período neoclássico do classicismo antigo, onde as tragédias
seguiam o modelo aristotélico, com um herói falho e um final aterrorizante
(TARUSKIN, 2010, p. 150-151).
Essa mudança de postura temática da tragédia clássica para o modelo
neoclássico, incorporando uma instrução moral, deu-se dentre outros fatores, à adoção
do que ficou conhecido como lieto fine, onde um libreto de ópera tinha que apresentar
um final feliz, mesmo para as tragédias e mesmo contradizendo os fatos históricos, pois,
como observou Marita McClymonds, historiadora especialista nesse período de reforma
da ópera, “os poetas eram esperados para retratar o que, de acordo com um sistema
moral ordenado, deveria ter acontecido e não o que realmente aconteceu”
(McCLYMONDS, 2001, verbete Opera Seria) isto é, em outras palavras, a definição do
que se entendia por “verossimilhança” no século XVIII.

Na sucessão dos fatos, a comédia voltou à cena através dos intermezzi, com
introdução dos personagens cômicos e de cenas inesperadas herdados da commedia
dell’Arte, fazendo uso dos mesmos temas literários correntes na época. Com relação à
função moral, foi influenciada pelo pensamento filosófico do século XVIII no intuito
em que as óperas desse gênero também apresentassem caráter apólogo, misturado a uma
postura de crítica social, porém o principal mérito das comédias são os acontecimentos
inesperados em seu meio, não importando muito como terminará, pois o efeito cômico
se dá simultaneamente na platéia e no palco (DAHLHAUS, 1998, pp. 142-146).
Nesse contexto literário surgem as obras de Antônio José da Silva, que tinham as
mesmas características apólogas e críticas, utilizando-se majoritariamente de temas
mitológicos (influência árcade e postura moralizante), recheadas de personagens
graciosos que perfaziam a teia da trama. A última dessas óperas foi Precipício de
Faetonte, que utiliza-se da fábula clássica de Faetonte para tecer uma história de amor e
de intrigas.
A história de Faetonte, segundo a mitologia grega contada por Públio Ovídio em
As Metamorfoses (séc. I a.C. – 1936, p. 53-77), conta que este era filho de Hélio, deus
Sol, e da oceânide (ninfa dos mares profundos) Clímene. O jovem era belo, porém
arrogante e, um dia, foi desafiado por Épafo, filho de Zeus, que questionou sobre a

196
origem de Faetonte. Este, indignado, e para provar que era filho legítimo de Hélio, foi
ter com seu pai e, suplicando, lhe pediu permissão para conduzir o carro do Sol pelo
menos uma vez. Hélio, assustado, recusou, mas perante as insistências de seu filho,
acabou por ceder, fazendo-lhe, no entanto, todas as recomendações necessárias —
dentre elas que ele se mantivesse no meio, entre o céu e a terra — as quais Faetonte
prometeu cumprir. Porém, assim que o jovem decolou, constrangido talvez pela
presença das figuras do Zodíaco que se encontravam ao longo do percurso traçado, ou
simplesmente traído pelos cavalos que estavam acostumados com a condução de Hélio,
desviou-se da rota fixada e conduziu desordenadamente, ora descendo demais e
arriscando incendiar a terra, ora subindo muito alto e provocando a oscilação dos astros.
Zeus, a fim de evitar uma possível revolução cósmica, viu-se obrigado a fulminar o
imprudente, que se precipitou no rio Erídano, onde hoje, segundo Políbio (1971, p.16)
seria o Rio Pó, no norte da Itália. Nas margens do rio, as suas irmãs, as Héliades,
choraram durante muitos meses e os deuses transformaram-nas em choupos e das suas
lágrimas fizeram grãos de âmbar. Cicno, rei da Ligúria e grande amigo de Faetonte,
chorou também a morte do jovem perdendo-se em melancolia ao longo das margens do
Erídano, até que os deuses o transformaram em cisne. Os Gregos deram o nome de
Faetonte ao planeta que nós conhecemos como Júpiter (HACQUARD, 1996, p. 127).
O mito de Faetonte representa, de maneira geral, a virtude, pois conduzir um
carro pode ser a representação simbólica de usar as habilidades para ter controle sobre
seus impulsos, tanto materiais quanto espirituais. No aspecto material, pode representar
a posse e o controle dos bens materiais; e no espiritual, a busca pelo controle dos
instintos e das paixões. No mito também, Hélio recomenda a Faetonte para que vá pelo
caminho do meio, o que remete ao ditado antigo In medio consistit virtus (PEREIRA,
1655, p. 114), com a conotação de evitar os extremos, agindo com prudência e
moderação, e não com orgulho, vaidade e sentimento de onipotência, sendo Faetonte
“castigado” por não haver controlado seus excessos.
Antônio José da Silva trabalha o mito como um tema geral, já que ele valoriza
especificamente a intriga amorosa, e aproveita-se precisamente apenas do final trágico
de Faetonte — quando Zeus o derruba do carro. Assim, nota-se uma clara mudança de
intenção para com a obra, se comparado à idéia de Ovídio.
Antônio José da Silva tece um final totalmente diverso ao ovidiano dando um
certo ar de lieto fine, já que fica ambíguo o motivo da morte de Faetone, pois além da
história canonizada pela mitologia, onde ele tem que ser castigado por sua teimosia e
vaidade, ainda cai nos braços de Egéria, a quem ama, dizendo-lhe isso ser um castigo
por ele ter faltado ao compromisso assumido com ela — ou ele precipitou-se justamente
por sentir-se culpado. Egéria, por outro lado, sente-se culpada, pois foi ela quem
enganou a ambos, Faetonte e Mecenas, perfazendo um lado da tramóia. Ao fim, retorna
Faetonte, ressuscitado, anunciando que, “do abismo da humildade, em que me
considerei abatido, me acho agora entronizado na glória de Apolo” (SILVA, 1958, p.
202), denotando que, como ele arrependeu-se da vaidade “aprendendo a lição” ao cair
do carro de Hélio, retorna glorioso como semi-deus, filho do Sol.
É importante citar ainda a pintura do teto da Sala da Guarda (figura 1), no
Palácio de Mafra (Convento de Mafra), em Portugal, realizada por Cyrillo Volkmar
Machado (1748-1823) e homônima à obra do Judeu. Salienta-se essa obra por ela ter
sido pintada por autor português de grande renome que, coincidentemente a Antônio

197
Teixeira, autor musical das peças do Judeu, foi aprofundar os seus estudos de pintura e
arquitetura em Roma, retornando a Lisboa e cidades vizinhas para realizar vultosa obra
nos principais palácios e também nos teatros, com destaque para cenários no recém-
inaugurado Teatro de S. Carlos, em 1787, e também no Teatro do Salitre, nessa mesma
época, fazendo cenários para montagens de Zenostres (sic) [Sesostres], rei do Egito e
também para o balé Derrota de Dário. Além disso, Cyrillo Machado pintou inúmeros
coches e carruagens para a Casa Real, realizando trabalhos também no Palácio Nacional
da Ajuda, prédio em que atuou como pintor e arquiteto, profissão última que o fez ser
autor do projeto do Palácio da Relação e Cadeia (MACHADO, 1823, p. 247-248).
Em cada prédio a ser trabalhado ele escolhia um tema, como no Palácio da
Senhora Marquesa de Bellas, onde, pelas suas próprias palavras, pintou o “Valor
Portuguez, a Idade do ouro, o triunfo das Artes, e tantos outros objetos [...]”, ou mesmo
no Paço do Duque de Alafões, onde executou vários pensamentos poéticos; e no Palácio
do Marquez de Loulé, onde “um baile de Deuses figuram no grande salão”
(MACHADO, 1823, p. 247).

Figura 1. Cyrillo Volkmar Machado. O Precipício de Phaetonte. 1796


(palaciomafra.pt, 2013).
O Palácio de Mafra iniciou-se, por vontade do rei D. João V, com o projeto de
um convento para 13 frades, estendendo-se para 40, 80 e posteriormente para 300
frades, além de uma Basílica e um Paço Real. D. João VI, ainda príncipe regente, em
1796, foi o grande responsável pela redecoração do palácio, antes adornado com
tapeçaria flamenga e tapetes orientais, convidando Cyrillo Machado para uma mudança
geral numa campanha de pintura das várias salas do palácio (Palácio de Mafra –
História, 2013).
Em suas memórias, Cyrillo Machado diz ter se mudado para Mafra em 1796, e
lá realizou a pintura do Precipício de Faetonte visto acima, pelo qual relata o seguinte:
“só direi, que quando fiz o Phaetonte, tive em vistas o precipicio que parecia estar
destinado a hum mancebo menos illustre que o filho do Sol; mas tão audaz como elle
até áquelle tempo”. Talvez estivesse se referindo a ele próprio, visto a solidão que
sofreu nos anos passados em Mafra, ou até mesmo a Antônio José da Silva, que foi
sacrificado por autos de fé, ainda sendo precocemente condenado à morte
(MACHADO, 1832, p. 248-249).
Nas anotações feitas por Cyrillo Machado, em 1815, sobre o discurso de João
Pedro Bellori, proferido na Academia Romana de S. Lucas, em 1677, a respeito das

198
honras da pintura, escultura e arquitetura, Machado descreve como encontrou o teto da
Sala da Guarda antes da pintura e faz referência ao tamanho da área que tem disponível,

“O [...] tecto é uma superfície côncava, de 80 palmos de comprimento por 24 de


largura, e consiste em um só painel”. Depois relata o motivo da escolha desse tema,
citando Despréaux, “Quereis ganhar o amor do público? / Varie seu discurso
constantemente / Um estilo muito igual e sempre uniforme / Em vão brilha a nossos
olhos, e faz com que se durma”7 e afirmando que esse preceito dado aos poetas vale
também aos pintores e a todos, assim Machado continua:
Sem variedade ninguém pode contentar os sentidos e o espírito do
homem; e havendo já nas outras peças objectos de votos, alegóricos e
históricos, estava a galeria pedindo alguma coisa mais risonha. E
como S. A. R. (Sua Alteza Real - sic) deixava à minha escolha também
os assuntos, escolhi para ela algumas das Metamorfoses de Ovídio.
[...] (MACHADO & BELLORI, 1815, p. 120-123).
O discurso continua ratificando que o tema do Precipício de Faetonte era
apropriado para essa pintura, pois pede um céu incendiado e luminoso e pode se
representar num quadro estreito e comprido, além de ser um exemplo perfeito dos danos
e precipícios que a Europa estava passando, visto a ascensão ilegítima dos Jacobinos ao
poder, que com seu governo totalitário fez com todos se precipitassem em grandes
abismos. Machado ainda continua a descrever o procedimento da pintura, afirmando ter
acrescentado mais figuras que não despontam em outras obras desse tema, assim como
personificando os planetas, os rios e o mar. E se desprende de outro livro do próprio
Machado, a respeito das obras do Palácio de Mafra, o trecho onde há a descrição
detalhada da pintura:
Vénus e Marte, sempre amantes e sempre inimigos de Apolo, depois
que ele foi chamar os deuses para que os viessem ver embrulhados no
laço com o qual Vulcano os enredara. São agora espectadores
tranquilos da desgraça de seu filho e da muita aflição que lhe causa
um tal incidente. Mercúrio parece tomar mais algum interesse e a
terrível [...?] Diana [...?] que existe no 1.º céu via [...?] do sol que gira
no 2.º muito mais alto que o seu. Mas como Faetonte depois que
abrasado pelo veneno do escorpião soltou as rédeas, os cavalos
desenfreados ora se elevavam até ao firmamento ora desciam muito
vizinhos à Terra e a Lua se admirava de ver o carro de Sol mais abaixo
do seu [...?]. Saturno está em [...?] e pode ser interrompido o giro do
Sol [...?]. O relógio que mede as horas assim como as ninfas que as
representam [...] (MACHADO, 1936-38, p. 210-211).
Em um trecho final das notas sobre o discurso de Bellori, Machado faz uma
análise iconográfica e iconológica de sua obra, além de concluir com um comentário
técnico sobre o aspecto da superfície trabalhada.

No painel do tecto fiz o precipício de Faetonte e, achando um campo


vasto, segui em parte a ideia adoptada por Buonarota [sic], em caso
semelhante. Todos os Planetas são espectadores da catástrofe. Diana se
admira, como diz Naso, de ver o carro de seu irmão abaixo do seu;
Vénus e Marte, lembrados de que o Sol os dera em espectáculo aos
outros deuses, se regozijam com a desgraça de seu filho; e como o seu
carro deixa de fazer o costumado giro, também Saturno, quer dizer, o

199
Tempo está ocioso com as mãos debaixo dos braços; e as Horas estão
ao pé dele pasmadas e imóveis. As Nereidas e o mesmo Neptuno,
quase sufocados pelo excessivo calor, recorrem a Júpiter. Este Deus,
apesar das rogativas de Tétis e de Apolo que, prostrado a seus pés,
intercede pelo filho, o precipita com um raio no Eridano. A Divindade
deste rio abre os braços para o receber no seu seio, enquanto uma das
suas ninfas parece recear que ele a maltrate com a sua queda. O ar
inflamado faz desaparecer o natural sombrio da abóbada e a
superfície, ainda que seja côncava, parece plana (MACHADO &
BELLORI, 1815, 120-124).
4. Reconstrução da parte de viola e canto da ária Naquela deidade galharda
A forma de ária mais corrente no século XVIII era a ária da capo, geralmente com
macro-estrutura tripartida A-B-A (GROUT & PALISCA, 2007: 363), ficando a seção
“A” para a primeira quadra do poema a ser musicado. A seção “B” freqüentemente é
apresentada em uma tonalidade secundária e corresponde à segunda quadra da letra,
sendo em forma mais livre que a primeira (TARUSKIN, 2010: 165).
A orquestração mais usual na época constituía-se do baixo contínuo, juntamente
com a viola e dois violinos, que se distribuíam geralmente a três vozes, ou seja, quando
havia partes de violino I e II independentes, a viola dobrava o baixo contínuo, porém
quando os violinos estavam em uníssono, a viola fazia uma parte independente. Este
estilo de composição também predominou nas árias compostas por Antônio Teixeira.
Este novo estilo tornou-se dominante no século XVIII e, por ter sido desenvolvido
principalmente em Nápoles, ficou conhecido como estilo napolitano e caracterizou o
período galante8 (GROUT & PALISCA, 2007: 362-363).
Com base na análise iconográfica, a partir do nome dos cantores e demais dados
musicais presentes no manuscrito, foi possível determinar a data aproximada em que
este estava sendo utilizado, cerca de 1780, sendo contemporâneo às obras de Cyrillo
Machado. Além do histórico-visual, o manuscrito constitui-se ao mesmo tempo uma
importante fonte de iconografia musical, de onde se pode extrair fatores intrínsecos à
música como a estruturação das frases (antecedente e conseqüente), aspectos formais
(exposição, ritornelos, reexposição, desenvolvimento, contraste e síntese), aspectos
melódicos, rítmicos, harmônicos e de distribuição de vozes, e ainda uma série de
esquemas composicionais atribuídos ao estilo galante, que se baseiam na melodia da
voz principal e na harmonia resultante do encaminhamento das outras vozes. O uso
desses esquemas é forte indício estilístico do período (GJERDINGEN, 2007: 5), o que
permitiu uma triagem das árias pertencentes àquele período, separando-as de outras
intervenções posteriores presentes no manuscrito.
Tomando-se os referidos esquemas e demais estruturas musicais e estilísticas
analisadas no manuscrito, pôde-se realizar a reconstrução da parte de viola, inserindo
também, de acordo com a retórica requerida, o texto da seção A, única presente no
manuscrito encontrado, nos devidos lugares de seus acentos métricos, como observa-se
na figura 2.

200
Figura 2. Comparativo entre a viola e o violino II, dos compassos 1 a 4 com os
compassos 24 a 27. Precipício de Faetonte – Naquela Deidade Galharda

A base inicial da reconstrução se deu analisando a estrutura a três vozes, pois


onde os violinos I e II tinham partes diferentes, a viola apenas dobrava o baixo, sendo
um suporte timbrístico. Já onde os violinos estão em uníssono, a viola pode ter uma
parte independente, construída a partir dos esquemas e de outros trecho semelhante
anteriormente aplicados pelo próprio compositor nas partes de violinos. A parte do canto
segue-se melodicamente guiada pela voz do primeiro violino, como é de costume das
demais composições de Antonio Teixeira, bastando apenas realizar ajustes de acentos
métricos e adaptações idiomáticas características do canto.
A partir da análise rítmica, identificou-se o motivo principal iâmbico9,
permitindo o encaixe melódico do texto (com melodia quase sempre dobrada ao violino
I). Com os esquemas estilísticos utilizados na composição da ária, como Prinner10,
Fonte11, Monte12, dentre outros, tornou-se possível o preenchimento harmônico de
acordo com as leis que regem cada esquema, como mostrado na figura seguinte.

Figura 3. Esquema Prinner - Compassos 8 a 11. Precipício de Faetonte –


Naquela Deidade Galharda

201
5. Conclusão
Tendo em mãos a análise iconográfica e iconológica a respeito do mito de Faetonte,
aliada ao que se pode extrair histórico-musicalmente a partir dos dados presentes no
manuscrito Pcug-MM876, este conjunto de informações fornecem a base para a
reconstrução das partes de viola e canto de quatro árias da ópera Precipício de Faetonte,
que julgou-se serem de autoria de Antônio Teixeira, e podem ser utilizadas na
montagem da referida obra, tendo a orquestração e a concepção artística visual mais
adequadas possível e condizente com o que talvez tenha sido proposto pelo autor na
época de sua feitura, o que constitui uma significativa contribuição para a recuperação
de uma parte do patrimônio histórico-cultural luso-brasileiro, objetivo principal deste
projeto.
Referências:
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Portuguezas que se representarão na Casa do Theatro publico do Bairro Alto de
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202
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TEIXEIRA, Antônio e outros. Precipício de Faetonte. Acervo da Biblioteca Geral da
Universidade de Coimbra, cota MM876.
TEIXEIRA, Antônio. Guerras do Alecrim e Mangerona. Acervo da Biblioteca do Paço
Ducal de Vila Viçosa, cota AMG-07.

203
TEIXEIRA, Antônio. Variedades de Proteu. Acervo da Biblioteca do Paço Ducal de
Vila Viçosa, cota AMG-06.

Notas de Rodapé
1. Os manuscritos das óperas Variedades de Proteu e Guerras do Alecrim e
Mangerona pertencem ao acervo da Biblioteca do Paço Ducal de Vila Viçosa,
sob as cotas AMG-6 e AMG-7, respectivamente.
2. Termo proveniente da língua inglesa, com significado de mudança repentina ou rápida entre
situações, ou mesmo entre canais de televisão. Sua primeira utilização foi em 1942, podendo ser
usado como verbo transitivo ou intransitivo (Merriam-Webster's Collegiate Dictionary, 2011).
3. O termo “texto” é empregado no presente artigo como redução da locução texto
musical.
4. Cabe apontar que algumas obras de Antônio Teixeira (em parceria com o Judeu),
além de obras de Metastásio ainda se encontram em Pirenópolis, no acervo
particular da família Pompeu de Pina.
5. José Maria Neves foi compositor, regente, professor, musicólogo e pesquisador.
Nascido em São João del-Rei, em 1943, e falecido em 2002. Mestre e Doutor em
Musicologia pela Universidade de Paris IV — Sorbonne, foi professor titular e
emérito da Universidade Federal do Estado do Rio de janeiro (UNIRIO). Possui
estudos sobre Caetano de Mello Jesus, Brasílio Itiberê, Glauco Velásquez,
Sigismund Neukomm, Heitor Villa-Lobos e a música sacra mineira.
6. Prof. Dr. Márcio Páscoa é mestre em Música pelo Instituto de Artes da UNESP,
onde também se graduou. Desenvolveu tese de doutorado sobre a Ópera na
Amazônia durante o século XIX, na Universidade de Coimbra, Portugal. Atuou
no ensino de graduação e pós-graduação nas Universidade Federal do Amazonas
e na Universidade do Estado do Amazonas, onde atualmente desenvolve projetos
de formação e interpretação musical segundo uma abordagem historicamente
informada. É autor de livros e vários artigos sobre a música e o teatro no norte
brasileiro durante o século XIX.
7. Minha livre tradução do original “Voulez-vous du Public mériter les amours? /
Sans cesse en écrivant variez vos discours / Un style trop égal et toujours
uniforme, / En vain brille à nos yeux, il faut qu'il nous endorme”
(DESPRÉAUX, 1830, p. 178).
8. Galante foi um termo muito utilizado no século XVIII. Refere-se à uma coleção
de tratos, atitudes e maneiras associadas à uma nobreza cultural. Pode-se
imaginar o homem galante ideal como aquele que reúne uma série de adjetivos
como espirituoso, atencioso com as mulheres, cortês, religioso de forma
modesta, saudável, charmoso, bravo em batalhas e treinado como amador de
música e outras artes (GJERDINGEN, 2007: 5).
9. Modo rítmico antigo que coincide com a métrica da poesia francesa e latina,
utilizado atualmente como uma associação rítmica do poema, auxiliando em sua
composição musical. O iâmbico ou jâmbico define-se por ! " ou variações.
Utiliza-se em peças que iniciam com anacruse de colcheia (GROUT &
PALISCA, 2007: 103-104).

204
10. O esquema Prinner tem melodia encadeando desde o sexto até o terceiro grau,
enquanto o baixo se relaciona descendendo do quarto ao primeiro grau da
cadência em questão (GJERDINGEN, 2007: 45-60).
11. O esquema Fonte, apresentado por Joseph Riepel (1709-1782), ocorre em duas
etapas. A fonte menor consiste no encaminhamento melódico do quarto para o
terceiro grau, enquanto o baixo segue do sétimo ao primeiro, do tempo fraco ao
forte. A fonte maior é geralmente um intervalo mais baixo que a menor (figura
3), surgindo uma cadência inevitável para a relativa maior da tonalidade menor
apresentada (GJERDINGEN, 2007: 61-71).
12. Monte refere-se a um esquema oposto à Fonte. Ocorre também em duas etapas,
porém a segunda é um tom acima da primeira, consistindo um encadeamento
melódico do quarto para o terceiro grau, enquanto o baixo segue do sétimo ao
primeiro, podendo ser continuado a gosto do compositor (GJERDINGEN, 2007:
89-105).

205
Musicologia do Século XX

206
Construindo o templo, música para a catedral de Campinas
como índice para um estudo da recepção
Alexandre José de Abreu

NOMADH - Núcleo de Musicologia e Desenvolvimento Humano – Instituto de Artes -


Unesp
alexandreabreu20@hotmail.com

Resumo. Em 1883, José Pedro de Sant’Anna Gomes (1834-1908) apresenta sua composição
Ave Maris Stella, para a inauguração da catedral de Campinas. A inauguração da catedral
acontece em paralelo com uma profunda repaginação urbana por qual passa a cidade,
seguindo o espírito da belle époque vigente. A contribuição musical de Sant’Anna Gomes
para o evento permite entrever cruzamentos entre práticas musicais diferentes e a importância
da música sacra em um contexto já cosmopolita. Neste sentido, o presente artigo pretende
fazer um estudo da recepção musical no período e da singularidade da produção religiosa de
Sant’Anna Gomes (compositor mais dedicado à música de salão e de câmera) e destacar os
pontos de cruzamento neste repertório, entre o sacro e o secular, que ajudam a entender a
recepção musical na Campinas do período.
Abstract. In 1883, José Pedro de Sant'Anna Gomes (1834-1908) presents Ave Maris Stella
composition, for the inauguration of the Cathedral of Campinas. The inauguration of the
cathedral happens in parallel with a deep urban repagination which passes by the town,
following the spirit of the belle époque. The musical contribution of Sant'Anna Gomes for the
event can discern crosses between different musical practices and the importance of the sacred
music in a cosmopolitan context. In this sense, this article aims to make a study of musical
reception and the uniqueness of religious production of Sant'Anna Gomes (composer most
dedicated to music room and camera) and highlight the points of intersection in this
repertoire, between the sacred and the secular, which help to understand the musical reception
in Campinas period.

1. Entre a Igreja e o salão


A segunda metade do século XIX foi um período de intensas transformações para a
cidade de Campinas, ao sucesso da cultura cafeeira se somavam o estabelecimento das
primeiras indústrias (1870) e a repaginação urbana que iria, aos poucos, inaugurar
espaços e remodelar os já existentes.
O projeto de reurbanização da cidade se inspirava no que já acontecia em boa
parte dos grandes centros das nações ao redor do mundo: a convicção nos rumos da
economia industrial representada na organização e grandiosidade de seus centros
urbanos. A cidade de Campinas, muito embora fosse majoritariamente dependente da
lavoura e do trabalho escravo, almejava participar deste movimento que defina, entre
outras coisas, o traçado racional do espaço urbano na época.
Mais do que um projeto puramente estético, o plano de reurbanização da cidade,
característico da belle époque, tinha como objetivo a racionalização dos espaços. Sob
uma perspectiva moralizante, a cidade não deveria servir apenas como espaço de vida
para o cidadão, mas conduzi-lo, formar condutas e, em alguns momentos, separar
indivíduos. Neste sentido, ganham destaque os espaços culturais, tais como: o teatro São

207
Carlos, o rink campineiro, os salões literário-musicais e o passeio público, que atuaram
na difusão reiterada de um gosto específico e alinhavado ao espírito da época45.
Dentre os personagens que atuaram na vida cultural da cidade podemos destacar
a figura de José Pedro de Sant’Anna Gomes (1834-1908). Músico, violinista,
compositor e maestro, Sant’Anna Gomes foi, igualmente, figura importante na vida
cultural e política da cidade e soma-se a isto o fato de ser irmão do principal operísta
nacional: Antonio Carlos Gomes (1836-1896).
O trabalho constante de Sant’Anna Gomes, frente a orquestras e conjuntos
musicais variados, ajudou a afirmar um gosto musical específico na sociedade
campineira do período, seja através de referências estilísticas, como na música de ópera
e de salão, seja como no estabelecimento de personagens-modelos para estas
referências, como Meyerbeer, Verdi e o próprio Carlos Gomes.
Em paralelo, Sant’Anna Gomes contribui, por vezes, diretamente com o plano
de reurbanização pelo qual passava a cidade. Em 1870, toma partido na instalação de
postes de luz a querosene nas ruas que levam ao teatro São Carlos46 e, em 1866,
segundo consta em documento do Tribunal e Justiça de Campinas, recebe nomeação
para tutela da reforma do antigo cemitério da cidade, onde, segundo o documento:
estariam “os restos de muita gente das principais famílias”. Abaixo, vemos o documento
original.
Contudo, em 8 de dezembro de 1883 o maestro participa de outra inauguração
importante para a cidade, compõe, rege e toca a música para a inauguração da Catedral
de Campinas, chamada à época de Matriz Nova. A música composta foi Ave Maris
Stella, para mezzo-soprano, viola d’amore (cuja execução coube ao próprio Sant’Anna)
e orquestra (NOGUEIRA, 2001). A construção da Matriz Nova fora iniciada em 1806 e
sua inauguração representava a resposta a um desejo antigo de boa parte da população
campineira e de sua elite, um passo importante na afirmação de sua posição enquanto
cidade moderna e civilizada.
Anos antes, em 5 de junho de 1870, Francisco Quirino dos Santos comentava
com pesar a morosidade das obras da Matriz. E em um discurso firmemente afinado
com o espírito da belle époque vigente reclama o término da construção em nome da
arte que em:

45
Um gosto múltiplo que passaria pela recepção de gêneros e estilos musicais variados
tais como a ópera, operetas e revistas, as zarzuelas e a música de salão entre outros.
46
Em documento do Centro de Memória da Unicamp, o cronista Castro Mendes fala
sobre a iniciativa de Sant’Anna Gomes: “Como se há de comprehender que umas das mais opulentas
cidades da provincia até hoje não tenha illuminação e possa ser callcoada (colocada) de paralello ate com
a mais insignificante adeia? Os particulares começam a dar passos emquanto a camara adia a solução do
problema. Há tempos já levantaram-se dois lampiões a rua das Campinas Velhas mtandiso a custa do ver.
Vigário Souza e Oliveira e do sr. J. P. Sant’Anna Gomes. A rua de baixo plantou em seguida alguns
postes, sendo inaugurado (o último) defronte ao dr. Curvillon; apareceu outro em frente ao sr. Zimbres,
outros maix na rua Direita, e agora o largo da Matriz velha vae ter nada menos do que os seus bicos de
kerozene, tudo por promocao do bolsinho privado dos munícipes” (CMU).

208
sua variada e multipla manifestação, não representa simplesmente o
luxo e a molleza para a delicia e repasto dos sentidos. Embebida no
sentimento do bello, esta brecha aberta à materia, atravez da qual se
patenteiam à terra e ao tempo todas as perspectivas do céu e da
eternidade, esta segunda luz, emfim, que nos revela Deus, na phrase
elegante de um distincto escriptor, embebida no sentimento do bello,
dizemos, a arte desinvolve todas as sublimes proporções da alma em
suas faculdades (Gazeta de Campinas, 5 de junho de 1870).
E, ainda confiante nos ideais positivistas de seu relato, vaticina:
Quando os annos rolarem sobre a actual geração e os vindouros
quizerem inquirir da nossa existencia intima para aquilatarem com
firmeza o quadro de nossos custumes, insculpidos nos memoriaes do
progresso e da civilisação, talvez, abrindo o livro da chronicas, não
deparem outra melhor pagina do que a das pedras alli ajustadas n’um
monumento eloquente pelo plano caracteristico de seus traços (Gazeta
de Campinas, 5 de junho de 1870).
A construção da Nova Matriz aparece aqui, nas palavras de Quirino dos Santos,
como parte ativa para o mito de fundação de uma nova sociedade. A arte e a beleza se
unem aqui em prol do progresso e da civilização, inscrevendo em pedra uma memória
inabalável e duradoura que deveria moldar, inclusive, as gerações futuras. Uma obra que
se iniciava no presente encerrando as decepções do passado e prevendo os sucessos
futuros.

Figura 1: Foto da Catedral, (1940). Fonte: pro-memoria-campinas.


Já em 1883, a inauguração da nova Matriz movimentava toda a sociedade
campineira e teria entre os avanços do projeto, inclusive, a instalação de luz a gás, uma
novidade para a época. A música para inauguração, Ave Maris Stella de Sant’Anna
Gomes tinha um caráter estritamente religioso que pode por vezes esconder o panorama
muito mais melífluo existente no período. Na realidade, como aponta Nogueira, era
comum a execução de trechos operísticos dentro das igrejas e as condutas verificadas
nestas não diferiam muito das adotadas no teatro São Carlos. O gosto pela ópera, já

209
disseminado pela sociedade campineira, ignorava as barreiras impostas pelo decoro
litúrgico e a atividade musical dentro da igreja parecia caminhar, par a par com outros
ambientes, para a afirmação de um gosto específico e inequívoco.
Chama a atenção nestas festas a apresentação de um trecho operístico
(I puritani) dentro da igreja, ainda mais executada por uma banda. Era
comum a adaptação de trechos de ópera para a música religiosa.
Nessas ocasiões, em geral se apresentava uma pequena orquestra, um
coro e solistas vocais que já eram comuns à música eclesiástica.
Nunca houve registro de uma banda completa em cerimônias
religiosas e, muito menos, executando óperas (NOGUEIRA, 2001,
p.311).
Da mesma forma em que instituía um panteão determinado para a orientação da
vida espiritual de seus devotos a Igreja parecia abrir espaço para a afirmação de um
panteão cultural para a orientação da recepção de estilos e compositores específicos.
Sant’Anna Gomes apareceria aqui como um profeta possível, portador da ‘boa nova’, a
redenção através da recepção de um gosto determinado e sempre reiterado nos espaços
disponíveis. Para a belle époque, as referências oferecidas pelos compositores
consagrados e seu repertório são a base deste culto civil, para uma religião da civilidade,
útil tanto para organizar a sociedade como para controlá-la.
Em sua análise da atividade religiosa, Max Weber, apresenta a estrutura tríplice,
representada pelo profeta, sacerdotes e leigos e que formaria a base do pensamento
religioso. Para Weber, o profeta seria o portador da nova Lei, figura de referência para o
conceito ao passo que os sacerdotes seriam encarregados da manutenção do credo,
atuando diretamente sob rituais específicos. Seriam os responsáveis diretos de conduzir
o credo aos leigos. Para Weber:
Profetas e sacerdotes são os dois agentes da sistematização e da
racionalização da ética religiosa. Mas também intervém neste
processo um terceiro fator de grande importância: trata-se da
influência daqueles sobre os quais o profeta e o clero procuram agir
eticamente, ou seja, os leigos (WEBER, 2009).
A estrutura proposta por Weber sobre a atividade religiosa teve desdobramentos
mais amplos, sendo utilizada por Bourdieu na elaboração de sua economia das trocas
simbólicas, por exemplo, (BOURDIEU, 2011). E esta se mostra significativa para a
relação que propomos entre a elaboração reiterada do culto religioso e a recepção
musical. A importância do estabelecimento de personagens centrais para o culto,
explícito na figura dos profetas, se relaciona com a afirmação de compositores centrais
para a recepção, ideal característico da belle époque.

210
Figura 2: Gravura da Matriz Nova à época de sua inauguração (1883). Fonte:
Correio Paulistano, 7 de dezembro 1883.
Fechando a lógica do esquema proposto por Weber, os leigos seriam aqueles que
incapazes de contado direto com a Lei do profeta senão pela mediação praticada pelos
sacerdotes e ao mesmo tempo esperam por sua revelação última, são ao mesmo tempo,
ignorantes e conhecedores da verdade que os libertará.
Do ponto de vista musical, a audiência seria composta por aqueles cujo gosto
musical desenvolve-se somente mediante a atividade de músicos treinados em estilos e
compositores específicos, teria a mesma estranha condição de
conhecimento/desconhecimento da prática religiosa, o desconhecimento do gosto aliado
a sua expectativa a priori.
Tomando a música para a inauguração da catedral de Campinas como pretexto
para uma reflexão sobre a recepção na sociedade da época podemos concluir que seu
caráter estritamente religioso não permite entrever o necessário paralelo entre a música
feita na Igreja da música feita para ambientes profanos. Contudo, salvo estes momentos
especiais, o que vemos é a inserção cada vez maior da prática operística em ambiente
litúrgico. Sant’Anna Gomes foi certamente, um agente importante neste sentindo,
ignorando as barreiras que poderíamos supor e atuando na forma como Weber atribui
aos sacerdotes: se encarregando de consolidar o culto.
2. Construindo o templo
Sant’Anna Gomes foi para a cidade de Campinas algo mais do que a sua atuação como
maestro e músico pode supor. Na posição de irmão do principal compositor brasileiro da
época, coube à Sant’Anna um papel de referência para as práticas musicais e culturais
na cidade. Neste sentido, a contribuição do maestro para a construção da catedral se
desdobra em significado.

211
Sua atividade como músico ajudou a afirmar um gosto por compositores e
estilos específicos47, que foram tão significativos para a cidade como um todo que
transbordaram por barreiras rigorosas como as impostas pela Igreja, e fizeram com que
o paralelo religioso se tornasse válido.
A análise de Weber sobre a religião está na base do ascetismo que aponta como
fundamental para o espírito capitalista, como uma forma de economia das moralidades.
Da mesma forma, podemos antever o consumo e recepção de música sob as mesmas
bases, apontando para a direção do consumo de massa incipiente.
Trazer a análise de Weber para atividade de Sant’Anna Gomes é um esforço no
sentido de vislumbrar sua contribuição social. Diferente de reduzir sua atuação na
cidade, o estudo pretende relacioná-la ao panorama mais amplo dado pela belle époque.
Uma parte da complexidade que a cidade de Campinas já apresentava (contrapondo o
comércio e a industrialização incipiente com a lavoura cafeeira escravista) pode ser
antevista pelos dilemas sugeridos pelo cruzamento dos repertórios (sacro e secular) de
sua vida musical
A aproximação da prática religiosa ao fazer artístico-musical nos permite, por
fim, entrever seu impacto social e mobilizador. O mesmo pensamento positivista que
dividia a crença na racionalização do espaço urbano e no papel moralizante da religião
confiava a atividade musical importante função na afirmação dos símbolos nacionais e
seus personagens, assim como, na reverência à uma arte culta e elevada. À sua maneira,
Sant’Anna Gomes estava, igualmente, construindo um templo.
Referências
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2011.
EDITORIAL. Historia, a Matriz Nova. In: Gazeta de Campinas, Campinas, 7 de
dezembro de 1883.
HOBSBAWM, Eric J. A Era do Capital, 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
JUNIOR, Geraldo Sesso. Retalhos da Velha Campinas. Campinas: Empresa Gráfica e
Editora Palmeiras Ltda, 1970.
NOGUEIRA, Lenita Waldige Mendes. Música em Campinas nos últimos anos do
Império. Campinas: Editora da Unicamp, CMU, 2001.
PATEO, Maria Luisa Freitas Duarte do. Bandas de Música e Cotidiano Urbano.
Dissertação (Mestrado em Antropologia), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas -
Unicamp, 1997.
SANTOS, Francisco Quirino dos. Obras Municipaes, a Matriz Nova. In: Gazeta de
Campinas, Campinas, 5 de junho de 1870.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Centauro,
2001.
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva.
Brasília: Universidade de Brasília, 2009.

47
Dentre os quais a ópera, as zarzuelas e a música de salão para citar apenas alguns.

212
O centenário musical do Boi Caprichoso (1913-2013)
Neil Armstrong, Q. Natividad, Lucyanne de M. Afonso, João G. Kienen
Curso de Música – Universidade Federal do Amazonas (UFAM) Manaus, AM –
Brasil
neilarmstrong11@hotmail.com, lucyanneafonso@hotmail.com,
gustavo_gustavo1@hotmail.com

Resumo. Este trabalho relata sobre o centenário musical do Boi Caprichoso, enfatizando o
ritmo e suas modificações e os instrumentos que se inseriram no decorrer deste centenário de
1913 a 2013.
Abstract. This paper report on the centennial musical Capricious Ox, emphasizing the rhythm
and its modifications and instruments that were inserted during centenary 1913-2013.

1. Introdução
Pode-se dizer que cultura é todo produto de atividade do homem, isso seria aceitar o
próprio homem como cultura, pois tudo o que é modificado da natureza pelo homem
torna-se cultura. No entanto ao se referir ao termo, pode-se compreender que
existem conceitos distintos de cultura. De acordo com Santos (1949) a cultura é
proveniente do estudo, da formação acadêmica e não somente as manifestações
artísticas.
A cultura está muito associada a estudo, educação, formação escolar.
Por vezes se fala de cultura para se referir unicamente às
manifestações artísticas, como o teatro, a música, a pintura, a
escultura. Outras vezes, ao se falar na cultura da nossa época ela é
quase identificada com os meios de comunicação de massa, tais como
o rádio, o cinema a televisão. Ou então cultura diz respeito às festas e
cerimônias tradicionais, às lendas e crenças de um povo, ou a seu
modo de se vestir, à sua comida a seu idioma. A lista pode ser
ampliada. (SANTOS, 1949, p. 21)
Já Clifford Geertz (2012) defende a cultura como uma ciência que
podemos interpretar onde o homem constrói sua própria teia interpretando-a de acordo
com a sua vivência e suas experiências, conforme a citação a seguir.
Cultura como essencialmente semiótico, e não como uma ciência
experimental em busca de leis, mas sim como uma ciência
interpretativa,
onde o homem é um animal amarrado que tece sua própria teia,
interpretando de acordo com o significado que o mesmo percebe.
(GEERTZ, 2012, p.10)
A construção de uma cultura está diretamente ligada a formação étnica e ao
ambiente em que estão localizados os povos. Na Amazônia não é diferente tendo em
vista sua grande densidade demográfica e divisão entre estados e territórios. Segundo
Batista, (2006) “a concepção da cultura na Amazônia tem estado profundamente ligada
a colonização e a economia” (p.68). De fato aos poucos foi descobrindo que a
Amazônia não era apenas florestas e índios, mas também outras fontes de riquezas

213
como o minério, (século XIX) a terra fértil, e outros produtos que poderiam ser tirados
da floresta. Com tanta fartura vieram imigrantes de toda parte, sertanejos, negros,
intelectuais para prestarem serviços administrativos para as províncias. No entanto,
outro fato que contribuiu foi a Cabanagem (1835-1840) uma revolução que causou uma
chacina na província do grão-pará mostrando que os nativos e negros estavam
descontentes como a política imposta. Portanto, completando o pensamento de que tudo
o que se refere à atividade do homem independente da etnia é cultura, esses fatos
sociais e principalmente econômicos foram cruciais para o desenvolvimento cultural da
Amazônia.Seguindo esse raciocínio Batista (2006) comenta que a época áurea da
borracha contribuiu para a vinda de muitas pessoas para a Amazônia ou para o Vazio
Demográfico (termo dado por Eidorfe Moreira) citado por Afonso (2012, p.56).
Ora com todo esse desenvolvimento econômico as atenções se voltaram para a
Amazônia, e com achegada dessas massas, cada uma com seus ideais e objetivos
iniciaram um processo para a história, a miscigenação, fator primordial para tal
formação cultural. Essa mistura de raças é sem dúvida a grande característica da cultura
amazônica, a escrita e o intelecto dos brancos, as crenças, danças e batuques dos negros,
as lendas, rituais e costumes dos índios.
2. Material e Método
Este referido trabalho teve como objetivo mostrar o centenário do Boi Bumbá
Caprichoso desde a sua criação até os dias atuais, assim como seu desenvolvimento e o
processo de inserção de instrumentos musicais. Todo processo da pesquisa para a
construção da pesquisa teve como base documentos orais do sr. Raimundo Dutra, um
dos pioneiros do Boi Caprichoso, José Carlos Portilho compositor e por muito tempo
organizador das toadas e das gravações das mesmas, e Odinéa Andrade historiadora e
coordenadora do boi caprichoso nas décadas de 70 e 80.
Haja vista a dificuldade de se encontrar registros escritos da brincadeira de boi
desde quando se brincava nas ruas de Parintins até a criação do festival folclórico em
1965. A pesquisa tem caráter exploratório, com o levantamento de dados em entrevistas
e na catalogação de periódicos da década de 1960. A experiência dentro no Boi
Caprichoso, o círculo de amizades e a história musical pessoal possibilitaram no maior
envolvimento para a realização desta pesquisa: deixar registrado um centenário musical
do Boi Caprichoso, coincidindo com a finalização da graduação, oportunizando uma
contribuição musical e histórica para o Boi Caprichoso e para a história da música no
Amazonas.
3. Brincando de Boi – o Boi Caprichoso
Em Parintins o folclore segundo Raimundo Dutra48 tem início em 1906 com o
pássaro tucano criado por Marçal Mendes de Assunção. Em 1910 surge o primeiro
Bumba Meu Boi do Amazonas Turuna que tinha como brincantes crianças também
criado por Marçal Mendes. A palavra boi bumbá foi usada pela primeira vez no

48
Primeiro compositor do Boi caprichoso nas décadas de 30, 40 3
50. Foi amo do Boi Caprichoso por 17 anos, de 1947 a 1964, além de ser o principal
compositor nesse período de versos, toadas, e desafios.

214
Amazonas em 1911 por Cipriano Sepitiba quando ele criou o boi Mina de ouro do
Boulevard Amazonas em Manaus, que segundo ele na época terminava no Boulevard.
Raimundo Dutra (2013) afirma que antes não havia quase nada de ritmo apenas
palminhas e danças, pontua que um dos primeiros instrumentos de percussão foram as
palminhas de madeira e logo, em seguida, o tamborinho.
Nessa época só eram palminhas e danças, balanços de pássaros, recitar
versos. Em 1911, haviam muitos trocadilhos: versos e canções
pequenas. Em 1910, 1911 e 1912 só era divertimento entre a turma de
cima e a de baixa. E o primeiro instrumento de couro inserido foi o
tamborinho. Eu sou de neto Maçal Mendes, do criador do folclore
parintinense. (DUTRA, 2013)
O boi era brincadeira muito simples onde nos primeiros anos os brincantes
eram na maioria homens, a participação das mulheres era pouca devido a algumas
exceções de personagens como: mãe Maria oriunda dos pássaros, brincadeira antiga.
3.1 Origem do Boi Caprichoso
Quanto ao surgimento do Caprichoso existem várias histórias, mas conforme
relato do sr. Raimundo Dutra, o Caprichoso que tem 100 anos é o da praça 14 de
Manaus, o de Parintins surgiu em 1925 e foi denominado Caprichoso numa reunião
entre uns amigos de Parintins:
Joaquim Jose Furtado Belém juiz de direito da cidade, coronel Lino
promotor de justiça, Luis Belém, Emidio Viera, João do Roque,
Mundico Cidy, a reunião foi curiosa alguns queriam pai do campo,
outros galante um boi que existiu em 1922, Joaquim José furtado
Belém sugeriu Caprichoso boi de Manaus que ele admirava, coronel
Lino sugeriu Mina de Ouro, no final predominou Caprichoso só que
com o couro preto já que o de Manaus tinha couro branco. (DUTRA,
2013)
A brincadeira era simples e primária, todos os bois tiravam a língua com a
mesma toada: Mestre Chico tira a língua que é da sua obrigação, leva o dono da casa e
receba seu patacão (provavelmente dos bois de Manaus), como mostra a toada a seguir:

215
Figura 1: Canção Mestre Chico
Raimundo Dutra (2013) em 1944 faz a primeira toada para tirar a língua do Boi
Caprichoso: Balanceou, balanceou, quero ver balancear, nego Chico tira a língua pra
amanha nós almoçar.

Figura 2: Canção Balanceou

216
Esta foi a sua primeira toada composta, antes já existiam outras toadas e outros
compositores, lembra que os Amos do Boi tinham mais facilidades pois tinham que tirar
na hora os versos. Para José Carlos Portilho, o Caprichoso foi fundado pelos irmãos Cid
e Emídio Vieira em 1913 com o nome de Boi Galante, neste mesmo ano o criador do
Garantido Lindolfo Monteverde tinha apenas 13 anos de idade.
Em 1917, Lindolfo ao completar 17 anos foi chamado para servir à Pátria em
Manaus e possivelmente convocado para lutar na 1ª guerra mundial o que não chegou a
acontecer, ainda assim, fez uma promessa com São Joao Batista se caso não fosse
convocado para a guerra ao chegar em Parintins fundaria um boi como promessa. Logo,
em 1918, encerrada a guerra, também deu baixa no exército.
Em 1919, retornou a Parintins e logo fez cumprir sua promessa: fundou o Boi
Garantido. A partir de então Parintins passou a ter dois bois O Galante, criado pelos
irmãos Cid e Emídio em 1913, e o Garantido criado pelo Lindolfo Monteverde em
1919. De acordo com o Carlos Portilho (2013), as famílias Cid e Emídio são os
precursores do Boi Galante, o que originou o Boi Caprichoso. As famílias Cid e Emídio
continuaram sendo de fato e de direito os criadores e detentores dos nomes Galante e
Caprichoso.(PORTILHO, 2013)

Figura 3. Fundadores e brincantes. Fonte: site do Boi Caprichoso

A Sra. Odinéa Andrade (2013), destaca que a história oral é contada de uma
forma deturpada. Cada história é outra adiante, acrescida de mais alguma coisa e vai
sofrendo modificação ao longo do tempo, se referindo a origem do Boi Caprichoso.
Chamou sua atenção para a história do Boi Caprichoso porque até então era só

217
folclorear. Todo mundo vivia de dança de dois pra lá dois pra cá no curral, mas não se
importavam com a história do Caprichoso, e foi ai que começou sua trajetória em ir
buscar a história do Boi Caprichoso.
Muitos contribuíram, lembra-se de Raimunda Dionísia que já faleceu: chegou
em Parintins com 8 anos de idade e lhe falou que Lindolfo Monte Verde fundador do
Garantido brincava no boi de Roque Cid e isso foi ficando e foi anotando e nunca
discutiu com ninguém, foi construindo a história a partir dos festivais e conversando
com os mais idosos. Como a mesma relata “o novo não conta história quem conta são os
mais antigos.” (ANDRADE, 2013). Começou a andar atrás dessa história e de repente
vê a sua história traçada há muitos anos, e conhece pessoas que viveram no tempo de
Roque Cid e se depara com pessoas que estiveram no terreiro do mesmo. Segundo a
história Roque Cid teve duas famílias: uma com dona Antônia e outra com dona Luiza,
e o Caprichoso teve a herança dos Cid, teve pai do Thomas Pedro Cid, teve nascimento
Cid, teve Boboí que é parente dos Cid, então é uma herança Cid, portanto esses
documentos orais vão aparecer em seu livro. A estrela mudou, mas sempre teve o ferro
de padrinho49, a estrela na testa vem de longas décadas. Odinea Andrade guardou sua
história até que esse ano, de 2013, a diretoria do Boi pediu seu material e o pessoal do
PIM (Polo Industrial de Manaus) está ajudando a organizar para culminar a história.
Odinéa Andrade, Carlos Portilho e Raimundo Dutra são fontes vivas que
contam a história do Boi Caprichoso, embora cada um tenha uma versão dos fatos, mas
contribuem para a construção da história do Boi que não se sabe, ao certo, como foi o
início da brincadeira, conhecemos através da memória e das lembranças dos dois.
4. O centenário musical do Boi Caprichoso – 1913 a 2013
A sra. Odinea Andrade relata que um dia a mesma apelidou o ritmo do boi, de
Parileiafro. O sr. Raimundinho Dutra (2013) explica em termos musicais, a partir da
história da música brasileira, este parileiafro que conceituou a sra. Odinea Andrade
sobre o ritmo do boi Caprichoso, como cita o mesmo relatando sobre vários outros
ritmos praticados na época sofrendo influências da “mazurca, xote, xaxado praticado
pelas danças anteriores ao boi, o lundu” (DUTRA, 2013).

49

Cada padrinho que assumia o Boi deixava suas marcas iniciais do seu nome na traseira do Boi. É uma
figura ilustre e de respeito, é ele que guarda o Boi.

218
Figura 4: Raimundo Dutra (1ºcompositor do Boi Caprichoso, 1991,Parintins)

O ritmo do boi sempre foi alvo de rotulações, de cópias do boi do Maranhão,


influências existem, por questões socioculturais e históricas de fatos passados, aonde
muitos nordestinos vieram trabalhar no período da borracha e fazer sua família nas
terras amazônicas e no período da cabanagem, sendo a maior parte formada por negros
trazendo suas características culturais, musicais, linguísticas, realizando suas práticas
culturais e religiosas.
De acordo com Raimundo Dutra (2013) a batida rítmica foi propagada por
anônimos e a raiz musical criada para a batida do boi tem parentesco com as raízes
africanas. O Boi Bumbá de Parintins sofreu influências do Bumba meu Boi do
maranhão, trazidas pelos negros, brancos, nordestinos que adentraram a Amazônia e
aqui foram deixando suas raízes musicais que se misturam e foram formando outras
raízes musicais. A seguir, apresentamos as células rítmicas dos instrumentos do Bumbá
meu Boi que são diferentes do Boi Bumbá de Parintins.

219
Figura 5: Células rítmicas dos instrumentos do Bumba meu Boi - Maranhão

No Amazonas, principalmente na região de Parintins, a presença dos negros era


muito forte, tendo em vista sua chegada, possivelmente no período da borracha e da
cabanagem assim como com a presença da Marinha nesta região. Vemos estas
influencias da Marinha, por exemplo, em canções e brincadeiras de roda antigas nesta
região como as canções com temáticas de marinheiro, como esta encontrada em
Barreirinha, município próximo a Parintins: Embarca, embarca, embarca, embarca
marinheiro, embarca lá pra bordo pra receber o teu dinheiro. Outro exemplo da raiz
musical africana é o chamado London que até hoje ainda se dança nesta região do baixo
Amazonas. Toda esta mistura cultural proporcionou a influencia das raízes africanas na
raiz musical do boi.
4.1. Décadas de 30 E 40
Nos anos 30 quando tudo iniciou o ritmo musical ainda era uma marcação mais
simples, com a marcação das palminhas. No Boi Bumbá as palminhas substituíram as
matracas do Bumba meu Boi, mas com variação rítmica diferente. As células rítmicas
das palminhas foi o primeiro instrumento e era o que se tinha de ritmo, conforme mostra
o quadro a seguir:

220
Figura 6: Células rítmicas - palminhas

Até o final dos anos 40 o ritmo das toadas mantinha-se, tradicionalmente, a


percussão, acompanhadas com músicas de sopro muito semelhante às execuções
originárias do Bumba-meu-Boi do Maranhão. Muitos instrumentos foram introduzidos
na percussão da Marujada de Guerra, pelo fato de outros grupos se incluírem na
Marujada, com isso trouxeram outros instrumentos como surdos, maracás, tamborinho,
tambor de onça, entre outros.

4.2 Décadas de 50 e 60
Os efeitos rítmicos a partir da década de 1950, os bumbás de Parintins se
depararam com um ritmo novo, se utilizando apenas dos instrumentos de percussão, um
ritmo mais cadenciado, de fácil assimilação rítmica na dança – eis que surge o dois pra
lá e dois pra cá, que é o ritmo das palminhas. Os entendidos na época vibraram com o
novo ritmo genuinamente parintinense.
Na década de 60 surgem as caixinhas para incrementar mais o ritmo da
Marujada de Guerra.

Figura 7: Células rítmicas - caixinhas

As caixinhas entraram na Marujada de Guerra a partir do começo da disputa do


festival folclórico em 1965, mas os bois já se encontravam para brincar desde 1950.
Desta forma, a inclusão de instrumentos mais modernos foi proporcionando, no decorrer
dos tempos, uma sonoridade e um ritmo mais consistente, até mesmo pelo fato do
crescimento do número de ritmistas na marujada de guerra.

4.3 Década de 80
A década de 80 marcou uma nova forma de fazer o Boi, novos compositores
surgiram, novos instrumentos foram inseridos como o violão e o charango e com isso
trouxe novas cadências rítmicas. Uma década marcada pelo violão e o charango dando
mais versatilidade aos ritmos da Marujada de Guerra. Em 1983 o compositor J. Carlos
Portilho ao iniciar-se como compositor de toadas teve a idéia de colocar o violão e o
cavaquinho nas primeiras 04 músicas. Muitos o criticavam como deturpador da cultura

221
parintinense, ou seja, deturpador da raiz musical do boi. Em 1987, descobriu um
instrumento chamado de Charango, trazido por Fred Goes e tocado pelo Silvio
Camaleão que foi e ainda é responsável pela formação de charanguistas em Manaus e
em Parintins.

Figura 8. 1º vinil do Boi Caprichoso (capa e contracapa). Fonte: Acervo do


projeto Mapa Cultural (Curso de Música UFAM) doado por Carlos Portilho

4.3.1 Grupo Sangue Azul


Grupo Sangue Azul marcou o início de uma nova estrutura rítmica do Boi caprichoso:
foi o primeiro grupo musical que acompanhava a Marujada e gravava a fita oficial com
as toadas do Caprichoso anualmente. O ritmo percussivo da toada era bem semelhante
com a célula de samba. O ritmo das composições dos anos 80 era bem mais lento do
que da década seguinte. Os instrumentos usados na Marujada de Guerra neste período
eram: surdos de diversos tamanhos para obter diversos sons, para cortes os menores e
mais agudos, para marcação os maiores treme terras e maracanã, caixinhas com várias
afinações, palminhas, repiques para um contraponto entre surdos e caixas e rocar. O
ritmo e o andamento eram bem cadenciados e sem convenções. Com relação aos surdos,
a marcação significa segurar o ritmo, levar direto sem nenhuma modulação. Surdo de
corte é o swing do ritmo, virada contratempo da marcação. O surdo era tocado e até hoje
praticamente com a mesma cadência binária.

222
Figura 9: Células rítmicas: surdo 1 (marcação) e Surdo 2 (corte)

A década de 80 trouxe inovação rítmica e instrumental, tanto instrumentos


percussivos quanto instrumentos harmônicos, algo bastante inovador para o período e
para a organização rítmica da época da Marujada de Guerra.

4.4 Década de 90
Em 1990, o grupo Sangue Azul passou a ser chamado de Azul e Branco e a fita
oficial contendo as toadas do Boi Caprichoso continuaram a ser gravada pelo grupo só
que com um ritmo mais acelerado e com a presença de outro instrumento de harmonia:
o violão que se juntou ao charango.

Figura 10: Grupo Azul e Branco, 1992, Clube Ilha Verde, Parintins

223
Figura11: Grupo Canto da Mata, 1994, Clube Ilha Verde, Parintins
O violão era tocado com dedilhado e valorizando os baixos, para dar uma
intenção de contrabaixo ou até mesmo violão de sete cordas marcando bem as
mudanças de acordes. As toadas de Carlos Pato, Portilho, Raimundinho Dutra, Carlos
Paulain e Chico da Silva, com temáticas bem folclóricas e tradicionais permitiram a um
casamento quase que perfeito entre harmonia e percussão. A década de 90 apresentou
um diferencial: a inclusão da temática indígena incluindo novo ritmo e a nova banda do
Boi Caprichoso: o Canto da Mata acelerando o ritmo e a dança.
De acordo com Odinea Andrade (2013) esta mudança rítmica não foi muito
adequada, pois saiu de um ritmo tradicional a partir da toada Ritmo Quente. Na década
de 90 houve a inclusão do teclado pelo Grupo Canto da Mata, fazendo um ritmo mais
dançante e rápido. E também o surgimento da temática indígena, no que se refere ao
item Ritual.

4.4.1 Temática Indígena: Um Novo Ritmo


A temática indígena não era tão forte anteriormente, nesta década, em 1991,
ganhou destaque pelo fato de inserir o Ritual, por Ronaldo Barbosa, compositor do
Caprichoso, onde o personagem Pajé ganhou mais evidência dando ênfase à cultura
indígena e pelo fato da lenda do pai Francisco e Catirina ter o personagem Pajé para
ressuscitar o boi: Índios rústicos enfeitados com folha de bananeira desfiada,
brincavam apenas como figurinistas, naquela época, sem nenhuma importância para a
brincadeira. (PORTILHO, 2013). Em 1990 a temática indígena ganhou mais força,
principalmente com o advento dos rituais indígenas, que se tornaram o ponto alto do
Festival. Com o sucesso de tais toadas indígenas, o público da capital, Manaus, adotou a
toada como símbolo da cultura amazonense. Consequentemente há a mudança na
rítmica dos surdos e das caixinhas.

224
Figura 12: Células rítmicas – Surdo Ritual 1 Figura 13: Células Rítmicas-Surdo
Martelato

Figura 14: Células rítmicas – Caixinhas ritual 1

Figura 15: Células rítmicas – caixinha ritual Martelato

Porém, tal mudança só foi concretizada com outro marco importante: a criação
do grupo Canto da Mata que a partir de 1994 assumiu a gravação da fita oficial
contendo as primeiras músicas de Ronaldo Barbosa com os primeiros toques de rituais
nos surdos e nas caixas as toadas: Unankie50 e Herekei51. Mudança de ritmo tanto na
gravação, como no coração do ritmo que é a Marujada de Guerra.

4.4.2 – Grupo Canto da Mata – A Inclusão do Teclado


O grupo Canto da Mata foi formado por alguns membros do grupo Azul e
Branco, e alguns músicos que tocavam outros estilos musicais. Enquanto o grupo Azul e
Branco tinha formação com instrumentos tradicionais: surdos, caixinhas, xeque xeque,
violão, charango um cantor e um couro uníssono, o grupo Canto da Mata surgiu com

50
Lamento em Yanomami
51
Iniciação da menina Carajá

225
outra formação introduzindo o teclado para reproduzir as flautas andinas para arranjar as
músicas de temáticas indígenas. Os cantores principais do Boi Caprichoso são Arlindo
Junior e Davi Assayag, sendo que cada um permaneceu um determinado período no
Boi. Davi Assayag foi um dos fundadores do Canto da Mata, no ano de 1994 quando
saiu para ser o levantador de toadas do Garantido, e o Arlindo Junior era o levantador de
toadas do Caprichoso no período de 1995 a 1997.

Figura 16 e 17: Grupo Canto da Mata com Davi Assayag, em 1994; com Arlindo Junior,
em 1995; Clube da Ilha Verde, Parintins.

Em consequência destas mudanças no instrumental, o ritmo ficou mais


acelerado. David Assayag participou da gravação de 1994; Arlindo Junior junto o grupo
Canto da Mata gravaram os Cd’s de 1995 a 1997 e, em 1996, foi introduzido o
contrabaixo tanto no Cd quanto na Marujada de Guerra e na arena no Festival do
referido ano. A partir de 1998, Arlindo Junior dita o ritmo das toadas e da Marujada de
Guerra, agora bem mais acelerada. A produção musical de 1998 tem outras mudanças a
introdução da bateria e a saída do grupo Canto da Mata das gravações. Com a saída do
grupo Canta da Mata, possibilitou que Arlindo Junior comandasse as músicas do Boi
Caprichoso com ritmo mais acelerado e comercial, como a música Ritmo Quente dos
compositores Alex Pontes Mailzon Mendes, em 1997. O ritmo voltou como era no
início da década de 1990, só que com mais instrumentos, tornando-se mais imponente,
robusto e original aproximando bem do timbre de som da Marujada de Guerra.

4.5 A Partir do Século XXI


Com a saída de Arlindo Junior do musical do Boi , retornou a tradição do ritmo
da Marujada de Guerra: mais cadenciado, voltando às tradições rítmicas como defende
David Assayag. Os dois levantadores de toada do Boi Caprichoso divergem sobre o
tema ritmo: o ritmo de acordo com suas tradições e o ritmo mais rápido. Arlindo Junior,
levantador de toadas, defendia que sempre numa disputa tinha que ter algo novo no
ritmo da Marujada de guerra para poder conquistar os jurados e mostrar uma novidade.

Na década de 90 foi a década de transformações, com a criação do


grupo canto da mata e as toadas de Ronaldo Barbosa através do ritmo
da marujada, com os sons do teclado, possibilitou uma interação entre
eu, galera, marujada de guerra, e banda, só o caprichoso fazia isso. A

226
marujada levantava os tambores, fazia as paradinhas, o contrário
falava muito mal dizendo que isso não era boi, mas hoje é eles que
fazem tudo isso. ( Arlindo Jr 2013).

Entretanto David Assayag defendia e defende, até hoje, que se permaneça o


mesmo andamento e ritmo, pois a tradição que é importante e é isso que os jurados vêm
julgar e conhecer.

Sempre fui um cara muito tradicionalista, mas nunca criticava as


bandas que usavam em shows um ritmo mais acelerado e instrumentos
como teclados, contra baixo e bateria, eu próprio usava em meus
shows, mas dentro do festival e ensaios, sempre fui muito
tradicionalista. E criticava aquele ritmo trazido dos palcos para a
arena pelo Caprichoso com muitas convenções e paradinhas, nunca fui
muito adepto a esse tipo de ritmo. Na minha volta ao caprichoso tive
até alguns embates com alguns mestres da marujada até discutimos,
tive que mostrar o primeiro vinil, para demonstrar como era o ritmo e
como devia ser na arena ( David Assayag, 2013).

Para o sr. Raimundo Dutra (2013) o ritmo sofreu influências do ritmo baiano,
onde muitas vezes não dá para entender e acompanhar a dança. Podemos elencar as
mudanças que ocorreram entre 2001 e 2002: o retorno da bateria, os efeitos percussivos
e algumas batidas aplicadas na Marujada de Guerra nos instrumentos caixinhas, surdos
e repiques, representado pela música O meu amor é Caprichoso, de Chico da Silva, em
2002. Em 2003 e 2004 o ritmo continuou basicamente com a mesma ideia, podemos
exemplificar com a música Remos e Tauás, de Ronaldo Barbosa, em 2004. Em 2005 e
2006 voltou a ser gravada a ideia da Marujada de Guerra com um som bem mais forte
de surdos e caixinhas, exemplificando com a música Boi de Santo, de Simon Assayag,
em 2005. Nas produções de 2007, 2008, e 2009 o ritmo vem com uma batida bem pop,
a bateria mais explícita, muitos instrumentos de metal nas músicas como sax, trompete.
Este período pode ser representado pela música Cristal de Lua, de Hugo Levy, Silvio
camaleão e Neil Armstrong, de 2007. A partir de 2010, o levantador de toadas David
Assayag retornou ao boi Caprichoso, o mesmo colocou em prática sua ideia para que se
preservem as raízes do ritmo da Marujada, fazendo com que as produções mais atuais
de 2010 e 2011, voltassem novamente à cadência tanto no cd e no ritmo mais próximo
da Marujada de Guerra, contudo apresentando mais metal nas músicas. Este período
pode ser representado pela música Eu te amo Caprichoso, de Cesar Moraes, de 2010.
Em 2012 e 2013 sob o comando de David Assayag na voz e na produção, o ritmo parece
ter reencontrado sua cadência, hoje bem mais definida através do estilo de cada
composição, uma composição mais tradicional requer uma batida mais lenta, uma
composição ritualística requer batidas mais fortes e com convenções, composição
genérica ou para animar a galera, um ritmo mais acelerado. Essas diferenças hoje estão
bem assimiladas pela Marujada de Guerra.
5. Conclusão
Com um olhar crítico, de quem participou desse processo, me posiciono de
maneira contrária a esses excessos, pois além de tirar a magia que é a cadência direta

227
sem interrupções, na disputa dentro da arena causa um risco enorme e propicia ao erro
na hora de executar por parte da Marujada de Guerra, pois apesar de ensaiada e bem
comandada pelos maestros, a maioria dos instrumentistas estão preparados apenas para
tocar o ritmo tradicional.
Classifico o ritmo do Caprichoso a partir dessa década como inconstante, hora
mais rápido, hora mais lento, causado principalmente pelas mudanças de produtores
musicais, levantadores de toadas e mestres de Marujadas, tais mudanças acabaram por
retardar, um processo dinâmico natural, e mesmo com toadas essas experiências,
vivemos um momento de análise e de busca daquilo que foi perdido, ou seja, mesmo
aceitando que a cultura é dinâmica, precisa-se entender que preservar as raízes ainda é o
melhor caminho.Enfatizando que não está esgotado o grande leque de objetos
relacionados a essa pesquisa, sugerindo assim, que haja outros trabalhos voltados para o
festival folclórico de Parintins, para que sejam aprofundadas outras áreas musicais dois
bois de Parintins como: as toadas tradicionais e versos, toadas de rituais e lendas, os
grupos musicais, as gravações desde as primeiras fitas cassetes até os DVDs, os
levantadores de toadas, processos de composição e outros.

Referências
AFONSO, Lucyanne de Melo. As inter-relações socioculturais na vida musical em
Manaus na década de 1960. Dissertação de Mestrado do Curso de Pós-Graduação
Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amaazonas: Manaus,
2012.
BATISTA, Djalma. Amazônia: Cultura e Sociedade. 3ª ed. Organização de Tenório
Telles. Manaus: Editora Valer, 2006.
BRAGA, Sérgio Ivan Gil. Os Bois-Bumbás de Parintins. Rio de janeiro:
FUNARTE/Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2002.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. 1ª ed. Rio de janeiro: LTC, 2012.
SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura?. São Paulo: Brasiliense, 2006. (Coleção
Primeiros Passos)
TINHORÃO, José Ramos. Os sons dos negros no Brasil- cantos, danças,
folguedos:origens. São Paulo: Art Editora, 1988.
___________________. História Social da Música popular Brasileira. São Paulo: Ed.
34, 1998.

ENTREVISTAS
ANDRADE, Odinea. História do Boi caprichoso. Manaus, 09 mar. 2013. Registro
sobre a história do boi: as origens e os ritmos. Entrevista concedida a Neil
Armstrong.
ASSAYAG, Davi. Ritmos e tradições. Manaus, 17 ago. 2013. Registro sobre a história
do boi: os ritmos, as tradições e a modernidade. Entrevista concedida a Neil
Armstrong.

228
CARLOS, Portilho. História do Boi caprichoso. Manaus, 27 fev. 2013. Registro sobre a
história do boi: as origens e os ritmos. Entrevista concedida a Neil Armstrong.
DUTRA, Raimundo. História do Boi caprichoso. Manaus, 08 fev. 2013. Registro sobre
a história do boi: as origens e os ritmos. Entrevista concedida a Neil Armstrong.
JUNIOR, Arlindo. Ritmos e tradições. Manaus, 24 ago. 2013. Registro sobre a história
do boi: os ritmos, as tradições e a modernidade. Entrevista concedida a Neil
Armstrong.
MATOS, Flavio Lima. Marujada de Guerra. Manaus, 10 mar. 2013. Registro sobre a
Marujada de Guerra: naipes e instrumentos. Entrevista concedida a Neil Armstrong.

229
Guilherme de Mello e A música no Brasil: uma análise
sobre a publicação reeditada por Luiz Heitor (1947)
Gustavo F. Benetti1
1
Centro de Comunicação, Letras e Artes – Universidade Federal de Roraima (UFRR)
69.310-000 – Boa Vista, RR – Brazil
Bolsista da CAPES – Processo nº 2237/14-8
gustavo.benetti@ufrr.br

Resumo. Este artigo investiga as razões que levaram Luiz Heitor a não publicar a sua
projetada edição crítica do livro de Guilherme de Mello, ‘A musica no Brasil’, no lugar da
reedição da versão de 1908. Foram analisados os argumentos de Luiz Heitor obtidos a partir
de novas evidências encontradas na Library of Congress, e também os seus livros publicados
sobre a música brasileira entre os anos de 1948 e 1956.
Abstract. This paper investigates the reasons behind Luiz Heitor’s abandonment of a critical
edition of Guilherme de Mello’s book, ‘A musica no Brasil’, in favor of a re-edition of the
1908 version. This paper also analyzes the arguments of Luiz Heitor through new evidence
uncovered at the Library of Congress, as well as Heitor’s published books about Brazilian
music between the years 1948-1956.

O livro A musica no Brasil desde os tempos coloniaes até o primeiro decenio da


Republica (MELLO, 1908) é considerado entre os pesquisadores da musicologia
brasileira a primeira obra do gênero historiográfico musical no país. Guilherme
Theodoro Pereira de Mello, o autor, nasceu em Salvador no ano de 1867 e faleceu no
Rio de Janeiro em 1932, tendo atuado profissionalmente nas duas cidades. Há ainda
duas outras edições, uma de 1922, na qual o texto de Mello está inserido como capítulo
do Diccionario historico, geographico e ethnographico do Brasil, e outra póstuma, de
1947. Neste artigo discutiremos as intenções de Luiz Heitor Corrêa de Azevedo
relativas ao processo de reedição em 1947 da versão de 1908, bem como os motivos
pelos quais uma pretendida edição crítica não se concretizou.
A terceira edição, de 1947, foi integralmente baseada na edição princeps,
acrescida de um prefácio escrito por Luiz Heitor. Este afirmou que pretendia publicar o
livro “revisto, comentado, ampliado e atualizado” (AZEVEDO, 1947, p. V). A referida
edição acabou não se concretizando da forma como Luiz Heitor havia planejado,
segundo ele, devido às suas frequentes viagens e aos outros compromissos editoriais
que havia assumido, o deixando sem tempo para dedicar-se à obra de Mello. Além deste
fator alegado, pode-se inferir que também contribuíram para isso o seu progressivo
desinteresse pelo livro e pela figura de Mello, associado ao fato de estar trabalhando em
suas próprias obras sobre o mesmo tema durante a década de 1940.

1. A atual proposta de edição


A pesquisa de doutorado intitulada Guilherme de Mello revisitado: uma análise da obra
‘A musica no Brasil’, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Música da
Universidade Federal da Bahia, tem como objetivo a publicação de uma edição crítico-
genética do livro de Guilherme de Mello. Trata-se de um estudo musicológico de caráter

230
qualitativo, auxiliado principalmente por métodos da arquivologia, da história e da
crítica textual.
Luiz Heitor Corrêa de Azevedo (1947, p. V), planejava uma edição crítica da
obra de Mello que em 1940 esteve próximo de se concretizar, conforme ele próprio
afirmou: “já tinha editor, os manuscritos de Pereira de Melo, referentes a uma 2ª edição
em que ele também havia pensado, achavam-se em meu poder, gentilmente cedidos pela
família, e o arcabouço geral do volume havia sido planejado em detalhe”. Apesar de ter
conhecimento da edição de 1922, Luiz Heitor desconsiderava-a, referindo-se sempre à
edição de 1947 como a segunda, e não a terceira.
Luiz Heitor teve uma relação profissional com Mello, substituindo-o após seu
falecimento como bibliotecário do Instituto Nacional de Música – atual Biblioteca
Alberto Nepomuceno, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Segundo informações
da bibliotecária atual, Dolores Brandão, após a morte de Mello parte de seu acervo teria
ficado com Luiz Heitor. Este faleceu em 1992 e seu acervo foi adquirido pela Library of
Congress, um dos depositórios centrais do Governo dos Estados Unidos.
Os subsídios documentais para este artigo são provenientes da pesquisa
arquivística na Luiz Heitor Correa de Azevedo Collection, acervo localizado na Music
Division da Library of Congress. A pesquisa foi realizada entre os meses de abril e julho
de 2014.

2. A pesquisa na Library of Congress: suporte documental para a análise


A Luiz Heitor Correa de Azevedo Collection consiste em um acervo documental não
inventariado, sem descrição, pertencente à Music Division mas armazenado fora desta e
sem qualquer tratamento arquivológico até então. Constituem o acervo um total de 22
caixas, de dimensões e materiais diversos.
Nenhum manuscrito ou documento de Guilherme de Mello foi encontrado
durante a pesquisa arquivística. O suposto acervo de Mello que teria ficado em posse de
Luiz Heitor não se encontra na Library of Congress. No entanto, encontramos diversos
escritos de Luiz Heitor com referências a Mello e à sua obra A musica no Brasil.
Baseando-se nesses escritos é possível perceber como a opinião de Luiz Heitor a
respeito de Mello mudou com o passar dos anos. A seguir (Tabela 1) é possível
visualizar cronologicamente as unidades documentais relevantes para esta análise:

Caixa Conjunto Descrição do conjunto Unidade documental Ano


#10 Pasta rosa Dados biográficos L. Heitor Currículo 1934
#01 Pasta parda Escritos anteriores a 1943 Discurso em Curitiba 1935
#10 Pasta rosa Dados biográficos L. Heitor Currículo 1939
#10 Pasta rosa Dados biográficos L. Heitor Currículo 1940
#01 Pasta parda Escritos anteriores a 1943 Discurso em Minneapolis 1941
#08 Pasta amarela Escritos 1954 La musique en Amérique Latine 1954
#08 Pasta vermelha Escritos 1957 1958 1959 Notas sobre José Amat 1959

231
#08 Pasta vermelha Escritos 1967 1968 1969 The Present State and Potential of 1969
Music Research in Latin America
Tabela 1. Documentos
Um dos primeiros documentos data-se de 1934. É um texto biográfico, espécie
de currículo. Luiz Heitor, ao falar sobre a sua nomeação como bibliotecário do Instituto
Nacional de Música em 1932 para ocupar o lugar vago pela morte de Mello, refere-se a
este como o “primeiro e erudito historiador de nossa música” [grifo nosso].
No ano seguinte, 1935, Luiz Heitor proferiu um discurso num evento em que foi
homenageado em Curitiba. Em uma referência a Mello manteve o mesmo tom,
considerando-o como “o primeiro e ilustre historiador de nossa música” [grifo nosso].
Em um outro currículo de 1939, Luiz Heitor fala sobre o cargo que ocupou
como “Bibliotecário da Escola Nacional de Música da Universidade do Brasil,
sucedendo ao ilustre historiador de nossa música, Sr. Guilherme Pereira de Melo” [grifo
nosso].
Ainda em uma outra versão do currículo, datada de 1940, Luiz Heitor fala sobre
um de seus projetos, ressaltando a importância do livro de Mello: “No momento prepara
uma edição revista e aumentada da obra de G. T. Pereira de Mello: ‘A Música no Brasil’,
de grande interesse folclórico” [grifo nosso].
Durante uma de suas viagens pelos Estados Unidos, em um discurso proferido
em Minneapolis no ano de 1941, Luiz Heitor citou argumentos de Mello publicados no
livro para ilustrar seu discurso, ao final concordando inteiramente com o autor:
Pereira de Mello, na introdução de sua A música no Brasil, observa
que a evolução da nossa Arte está conectada com o modo da
Liberdade; e somente quando a consciência livre começa a ser aceita
como o mais vital de todos os princípios sociais, a música entra em
sua fase de rápido progresso e desenvolvimento avançado. A mais
recente de todas as artes, em seu desenvolvimento, devido ao seu
modo de Liberdade, tem sido a mais dura e longa no processo de
aperfeiçoamento da humanidade. [...]
Pereira de Mello, na mesma página que eu citei antes, diz que somente
com a queda dos tiranos a livre consciência humana pode ser
empregada no desenvolvimento da Música. Ele escreveu isso no
começo do nosso século [XX]. Nós sabemos que ele estava certo52.

52
Tradução nossa. Segue o original, conforme a fonte: “Pereira de Mello,
in the Introduction of his History of Music in Brazil, observes that the evolution of our
Art is connected with the way of Liberty; and only when the free conscience begins to be
accepted as the most vital of all the social principles, music enters in its phase of quick
progress and advanced accomplishment. The latest of all the arts, in its development,
because this way of Liberty has been the hardest and the longest in the process of
mankind’s perfectionment. [...] Pereira de Mello, in the same page that I refered [sic]
before, says that only with the fall of the tyrants can the free human conscience be
employed in the development of Music. He wrote this in the begining [sic] of our
century. We know that he was right”.

232
Depois de alguns anos sem nenhuma referência encontrada no acervo sobre
Mello ou a sua obra, em 1954 Luiz Heitor voltou a escrever sobre o autor, desta vez em
tom mais desprezível. Em um manuscrito intitulado La musique en Amérique Latine,
texto apresentado ao Institut des hautes études de l’Amérique Latine da Université de
Paris naquele ano, Luiz Heitor considerou Guilherme de Mello “um modesto músico de
província”, que “fez a obra de um verdadeiro pioneiro”, mas “seu livro tem méritos e
defeitos”53 [grifo nosso].
Subsequentemente, Luiz Heitor faz novas críticas ao dizer no texto Notas sobre
José Amat, de 1959, que Mello “omite qualquer referência à figura de José Amat ou à
aventura da Ópera Lírica Nacional”, considerando isso uma grande falha.
Em 1969, ao apresentar o texto The present State and Potential of Music
Research in Latin America na City University de Nova York, Luiz Heitor novamente se
referiu a Mello como “um modesto músico provinciano”54 [grifo nosso], além de criticar
seus métodos e seus argumentos:
Ele utilizou as referências que tinha disponíveis, sem ter feito
pessoalmente nenhuma pesquisa arquivística, e reuniu a informação
que forma a segunda e histórica parte do seu livro. O menos
interessante, devo dizer, e demonstrando completa falta de
academicismo; o autor se detém desnecessariamente em discussões a
respeito da vida musical contemporânea da Bahia, que não tem
significado para nós hoje55.
Percebem-se duas tendências opostas no discurso de Luiz Heitor. Até 1941
considera Mello e a sua obra relevantes, inclusive projetando uma nova edição revista e
aumentada de A musica no Brasil. Depois de alguns anos sem citar Mello, período que
coincide com a publicação da terceira edição, Luiz Heitor passa a considerá-lo menos
importante, por vezes cometendo anacronismos nos seus julgamentos. Uma possível
explicação para essa mudança consiste no fato de que a década de 1940 marca um
período no qual Luiz Heitor passou a conhecer novas tendências musicológicas

53
Tradução nossa. Segue o original, conforme a fonte: “un modeste
musicien de province”, [que] “a du faire oeuvre de vrai pionnier”, [mas] “son livre en a
la mérite et les défauts”.
54
Tradução nossa. Segue o original, conforme a fonte: “a modest
provincial musician”.
55
Tradução nossa. Segue o original, conforme a fonte: “He went through
these references available to him, without doing any first hand archival research, and
assembled the information that forms the second and historical part of his book. The
less interesting, I must say, and demonstrating a complete lack of scholarship; the
author indulges in discussions concerning the contemporary musical life of Bahia that
have no meaning for us, to-day”.

233
internacionais, como pode ser percebido no conteúdo dos seus livros comentados a
seguir. Tais elementos podem explicar esse redirecionamento ideológico.

3. Os livros de Luiz Heitor em processo na década de 1940


Desde o final dos anos 1920, Luiz Heitor Corrêa de Azevedo publicou inúmeros textos
sobre a atividade musical no Brasil em anais, periódicos e jornais. No final da década de
1930 iniciou seu projeto de edição crítica de A musica no Brasil, de Guilherme de
Mello. Nos anos seguintes, Luiz Heitor também passou a planejar livros seus sobre a
música brasileira, publicados entre 1948 e 1956.
O primeiro deles, A música brasileira e seus fundamentos; Brief History f Music
in Brazil (AZEVEDO, 1948), edição bilíngue publicada pela Pan American Union em
Washington D. C., foi escrito três anos antes de sua publicação, em 1945. O livro traz
referencial bibliográfico atualizado, predominantemente das décadas 1930-40, e apesar
de utilizar uma estrutura de tópicos baseada em Mello o conteúdo difere bastante deste.
O segundo, Música e músicos do Brasil (AZEVEDO, 1950), foi concebido a
partir de textos diversos de Luiz Heitor, escritos entre as décadas de 1920 e 1940. Foi
organizado em quatro capítulos: “Introdução”, “Passado e presente”, “Compositores e
suas obras” e “Vida musical”. O primeiro capítulo foi baseado na sua obra de 1948,
reiterando a estruturação de Mello. Além disso, quando escreve sobre os compositores
dos períodos colonial e imperial, restringe-se aos mesmos citados por Mello.
No terceiro, 150 anos de música no Brasil (1800-1950) (AZEVEDO, 1956), o
autor busca ampliar a gama de compositores, principalmente a do período mais recente
não discutido na obra de Mello. A obra se estrutura a partir dos compositores
considerados relevantes pelo autor, dividida em duas grandes partes – séculos XIX e
XX.
Pode-se assumir que as estruturas das três publicações de Luiz Heitor coincidem
com a sua ideia de edição crítica de A musica no Brasil, de Mello. Inicialmente as etnias
formadoras do que ele considerou a música brasileira, estruturada nos períodos colonial,
imperial e republicano, acrescida dos novos compositores e eventos musicais do século
XX. Mas apesar de seguirem uma estrutura similar, trazem um olhar diferente. O olhar
de um pesquisador já em contato com as teorias musicológicas de seu tempo.

4. Considerações
Luiz Heitor, no seu prefácio da terceira edição de A música no Brasil, informou que
pretendia corrigir, modificar e ordenar a matéria do livro, pois “constatações posteriores
obrigavam a rever”. Também havia pensado em “redigir completamente um grande
capítulo novo, dedicado aos fastos de nossa música posterior a 1908, data da 1a edição;
isto é, o período mais opulento e mais complexo da produção musical nacional”
(AZEVEDO, 1947, p. VI). Mas acabou não fazendo nada disso, e a terceira edição
acabou sendo praticamente igual a primeira, alterada apenas por atualização ortográfica
e pelo acréscimo de pequenos erros editoriais.
O argumento de que não tinha tempo para realizar tal edição pode até ser
considerado, mas, evidentemente há outras razões mais convincentes, apresentadas no
decorrer deste artigo. Inicialmente, observou-se nos argumentos citados escritos entre
1934 e 1941 que Luiz Heitor considerava Mello um “erudito” e “ilustre” historiador da

234
música brasileira, além de concordar com os argumentos de Mello e usá-los em seus
textos. Essa visão otimista foi se transformando em crítica com o passar dos anos, e
Luiz Heitor passou a considerá-lo “modesto”, “provinciano”, e alguém que demonstrava
completa falta de academicismo.
Associado a essa visão crítica sobre Mello e A musica no Brasil, percebe-se
também, durante a década de 1940, a intenção de Luiz Heitor em publicar os seus
próprios trabalhos sobre o tema. Em vez de investir seu tempo em obra alheia, cuja
visão poderia ser bem diferente da sua, é bastante provável que Luiz Heitor tenha
preferido publicar as suas próprias e mais atualizadas obras sobre o assunto, conforme
demonstrado a partir dos três livros publicados por Luiz Heitor citados anteriormente.

Referências
AZEVEDO, Luiz Heitor Corrêa de. “Prefácio à 2ª edição”. In: MELLO, Guilherme T.
P., A música no Brasil desde os tempos coloniais até o primeiro decênio da
república. [3. ed.]. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1947.
______. A música brasileira e seus fundamentos; Brief history of music in Brazil.
Washington D. C.: Pan American Union, 1948.
______. Música e músicos do Brasil. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1950.
______. 150 anos de música no Brasil (1800-1950). Rio de Janeiro: José Olympio,
1956.
LIBRARY OF CONGRESS. Luiz Heitor Correa de Azevedo Collection. (Acervo
documental). Washington D. C.: Music Division, 2014.
MELLO, Guilherme Theodoro Pereira de. A musica no Brasil desde os tempos
coloniaes até o primeiro decenio da Republica. Bahia: Typographia de S. Joaquim,
1908.
______. “A musica no Brasil”. [2. ed.] In: Diccionario historico, geographico e
ethnographico do Brasil. v. 1. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1922.
______. A música no Brasil desde os tempos coloniais até o primeiro decênio da
república. [3. ed.] Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1947.
* Agradeço à Dra. Silvia Lazo, da University of Montana, que orientou a pesquisa
durante o doutorado sanduíche (CAPES – Processo nº 2237/14-8).

235
A trajetória artística de Teixeira de Manaus
Grazeane de B. Froz, Lucyanne de M. Afonso
Curso de Música – Universidade Federal do Amazonas (UFAM) Manaus, AM –
Brasil
froz-grazesax@hotmail.com, lucyanneafonso@hotmail.com

Resumo. Este trabalho relata sobre a trajetória artística de Rudeimar Soares Teixeira, mas
conhecido como Teixeira de Manaus, artista este, que ficou marcado no cenário musical
amazonense através das misturas de ritmos caribenhos, criando assim uma identidade
própria, marca registrada de sua carreira.
Abstract. This paper reports on the artistic career of Rudeimar Soares Teixeira, but Teixeira
known as Manaus, this artist, which was marked in the music scene through Amazon blends
Caribbean rhythms, thus creating an identity, a hallmark of his career.

1. Introdução
Esta pesquisa abordará a trajetória artística de Teixeira de Manaus, um dos músicos
mais significativos no cenário cultural amazonense. Tem como fonte principal a
pesquisa em fontes orais e documentos musicais. O principal entrevistado foi o Sr.
Teixeira de Manaus acompanhado por sua esposa a Sra. Darci Silva Teixeira devido seu
estado de saúde. Tem como principal objetivo. A finalidade maior dessa pesquisa é
mostrar a trajetória artística de Teixeira de Manaus, como iniciou sua vida musical e se
destacou com o seu saxofone conseguindo criar uma identidade musical própria,
destacando-se não só no Amazonas mais em todo Brasil.
O artigo abordará a sua trajetória artística: desde sua vinda para Manaus, o início
de sua vida musical, os instrumentos que aprendeu a tocar e a grande amizade com o rei
do Carimbó Pinduca. Vamos conhecer sua discografia, dando destaque aos seus setes
primeiros LPs de sua carreira, destacando suas principais músicas que fazem sucesso até
hoje e a homenagem recebida no Teatro Amazonas onde realizou o último show de sua
carreira. Teixeira de Manaus tornou-se um grande nome da cultura amazonense, criou
uma identidade própria ou um estilo próprio e é referência entre saxofonistas da cidade.

2. A Formação musical de Teixeira de Manaus


Rudeimar Soares Teixeira nasceu em 08 de dezembro de 1944 na comunidade Costa do
Catalão no município do Careiro da Várzea interior de Manaus. Vindo de uma família
de agricultores, Teixeira tinha muito amor pelo trabalho que sua família realizava na
agricultura, mas sua mãe, segundo Teixeira de Manaus (2013) ele não iria cavar terra,
pois era o filho caçula e teria que estudar em Manaus. Teixeira não aceitava estas
condições de mudança, tentou relutar com sua mãe, mas veio para Manaus com a idade
de nove anos e foi estudar na escola Progresso que ficava na Avenida Joaquim Nabuco
esquina com Lauro Cavalcante, centro de Manaus e funcionava no regime de internato.
Como não tinha dinheiro para pagar a escola, sua mãe propôs pagar as mensalidades
com farinha, macaxeira, verduras e legumes e Teixeira de Manaus iria trabalhar na

236
escola para ajudar também, desta forma, a senhora diretora concordou. Teixeira de
Manaus começava então sua vida estudantil: iniciar sua rotina de estudos e trabalhos
Cinco e trinta da manha passava a empregada da escola chamando,
trabalhar, tomar banho se vestir ai rapaz eu ia tomar banho me
tremendo com aquela água fria, ai eu ia pro meu trabalho, era leve
claro, O que era o meu trabalho. Arrumar as salas de aulas passa uma
vassourinha, limpa a Llosa, colocar giz, apagadores, mas a minha
primeira tarefa era abrir as janelas porque o meu serviço era o fraco
porque tinha outros internos lá que era cruel, era limpar coco de
cachorro de gato limpar a escola. (Teixeira De Manaus 2013)
O contato com a música Teixeira de Manaus teve na escola, ganhou seu
primeiro instrumento musical de sua mãe que foi uma grande incentivadora para que o
filho tirasse boas notas. O instrumento foi um cavaquinho, tocava o instrumento nas
suas horas de folga, pois Teixeira estudava no regime de internato. Comprou métodos de
música para aprender a tocar o cavaquinho e observou que ele gostava de solar as
melodias das músicas, conforme relata.
Minha mãe me deu um cavaquinho por boas notas no colégio ai dona
Julita permitiu que eu fizesse um barulhinho a noite, ai eu fui comprei
aqueles métodos ai comecei a solar por que o meu negocio muito era
solar executar a musica. (Teixeira de Manaus, 2013)
O cavaquinho foi essencial para aprender outros instrumentos musicais,
principalmente os instrumentos harmônicos. Depois de um tempo sua mãe lhe deu um
sax velho com muitos defeitos, mas Teixeira começou a estudar o sax assim mesmo,
neste momento não estudando mais em internato, o que possibilitou dedicara mais
tempo ao instrumento e foi morar em casa de amigos do pai que era trompetista, desta
forma, obteve mais conhecimento em música com a convivência dos amigos.
Teixeira de Manaus, depois de seu aprendizado autodidata, procurou outros
profissionais que tocavam em bandas de música militar para aperfeiçoar sua técnica no
instrumento, sendo até convidado a fazer parte da Banda de Música da Polícia Militar.
Eu fiz um curso com senhor Pedro Sueiro que era o mestre da banda
da policia militar do Amazonas na época, ele gostava muito de mim e
ele queria me levar pra policia ai ele disse tu faz um curso aqui
rapidinho ai tu já entra como sargento, ai eu já acostumado a viajar
tocar as minhas musicas não aceitei apesar de muitos músicos da
banda gostarem de mim não era o que eu queria. (Teixeira de Manaus
2013)
Aos 19 anos ele começou a tocar nas festas no interior de Manaus e torneios de
futebol, daí veio o convite para tocar bregas de Manaus precisamente num bar situado
na Avenida Torquato Tapajós, onde originou seu primeiro nome Teixeirinha.
Quando começou a tocar nos bregas, observou que o sax não tinha mais aquela
grande importância, percebeu que o teclado era a melhor opção para banda e mais
possibilidades sonoras para explorar.
Ai eu comecei a tocar nos bregas da noite, tocava toda noite ai eu
pegava um dinheiro legal, ai o sax não ficou tão importante por que na
banda não tinha teclado, porque o conjunto que tinha teclado na época
era bacana ai eu na hora peguei as notas do cavaquinho e passei

237
facilmente pra guitarra ai em seguida passei pro teclado, esse é o dó
esse é o ré o fá o sol e etc. (Teixeira de Manaus, 2013)
Após o investimento no teclado, Teixeira formou a sua primeira banda a RT4,
que significava Rudeimar Teixeira e 4 era o número de componentes: cantor, baixista,
guitarrista e Teixeira que tocava teclado e sax. No teclado ele tinha um campo musical
mais variado para explorar como ritmos diferentes, a harmonia, mas também em alguns
momentos ele tocava sax, ensinava algum músico da sua banda a fazer uns acordes no
teclado enquanto solava no sax. Sua banda RT4 ficou bem destacada no cenário musical
da época, pois eles tocavam todos os dias nas casas mais destacadas e onde tocavam
outros grupos como os Embaixadores, Blue Birds, dentre outros.
Neste momento, em meados da década de 60, no ápice da carreira musical,
passou a ser chamado de Maestro Teixeira, pois comandava a banda, era o arranjador, o
solista e o próprio empresário. Passou a ser convidado para tocar em vários
estabelecimentos da cidade, depois sendo visto por artistas nacionais como o Pinduca
que se tornou velho amigo. Devido essa grande amizade que se firmou entre os dois
veio o convite lançado por Pinduca para Teixeira gravar um disco.
Teixeira tu não quer gravar um disco? Ai eu pensei que era
acompanhando ele ai eu perguntei como é isso ai é pra acompanha
você? Não é teu disco, tu preparas umas musicas tuas faz assim coloca
umas letrinhas uns refrões faz teus solos bem popular por que é o que
vende ai você me coloca numa fita cassete e me manda pelo correio.
(Teixeira de Manaus 2013)
Teixeira resolveu gravar e mandou para Pinduca a produção feita e a qualquer
momento Teixeira iria ser chamado para gravar seu primeiro disco em São Paulo, na
gravadora Copacabana onde Pinduca gravava suas músicas.
3. As influências musicais
Teixeira de Manaus relata que tocava muito a música feita para dançar, era o
seu principal gosto musical: tocava muito forró e xôte, mas com o tempo começou a
ouvir outras músicas como: Salsa, merengue, rumba e todos os outros tipos de música
caribenhas. Então Teixeira em suas noites tocando, começou a incluir em seu repertório
um pouco das influencias que ouvia e o público gostava.
Eu sempre fui forrozeiro, xôte, essas músicas de bregas, mais eu era
louco por musica caribenha louco, ai eu ia misturando as coisas ai
onde davam na música eu ia fazendo umas coisinhas, muita salsa,
merengue eu tenho nos meus discos ai eu fazia só um harmonia e ia
improvisando em cima.(Teixeira de Manaus 2013)
Desse modo Teixeira estava começando a construir uma linguagem musical
própria ou um estilo musical: uma música de misturas de ritmos variados e com
pequenas frases cantadas, algumas citando o seu instrumento o Sax ou seu nome
Teixeira de Manaus.
Quem lançou o estilo assim, por exemplo, antigamente existia música
só tocada ou só cantada, quem lançou esse estilo tocado e com quatro
frases cantadas no meio fui eu, esse estilo ai que ficou, veio pra ficar.
(Teixeira de Manaus 2013)

238
Com todas essas influencias, Teixeira de Manaus conseguiu construir um estilo
próprio que é algo difícil falando como músico, pois muitos tentam imitar outros e
acabam esquecendo-se de construir sua própria linguagem musical, e assim Teixeira de
Manaus consolidou seu nome como influencia para muitos saxofonistas da cidade.
4. A Produção Musical de Teixeira de Manaus
Teixeira de Manaus teve seus sucessos tocados em todo o Brasil, começando
por São Paulo onde era situada a gravadora Copacabana, indo para o nordeste onde fez
grande sucesso e teve seu nome citado em várias cidades do nordeste, daí sua música
ganhou o mundo. Estados Unidos, Portugal, França, Bélgica, foram os locais por onde
percorreu a música amazonense de Teixeira de Manaus, Já que a gravadora Copacabana
a distribuía para o exterior.
Nos anos de 1980 a 1986, gravou sete discos pela Gravadora Copacabana,
ainda LPs. Por volta de 1990 gravou dois discos, “SALSA CÚMBIA E MERENGUE”
VOL. 1 e 2 onde já foi em forma CD. Em 1995 gravou em Manaus na gravadora RH na
Amazon Record. Em 1998 foi contratado pela gravadora RGE, com distribuição da Som
Livre da rede Globo, gravando assim mais dois CDs:, “FESTA do POVO” VOL. 1 e 2.
Em 2002 foi contratado pela Disco Lazer, loja e gravadora, gravando três CDs. Em
2007, finalizou sua carreira de gravações preparando mais dois CDs diferentes. A seguir,
os setes primeiros LPs que fizeram grande sucesso na carreira de Teixeira de Manaus,
fazendo assim a catalogação e destacando em cada LP a música de sucesso e a partitura.

LP 1 - Título do LP – SOLISTA DE SAX, Ano – 1981 Som Ind. e Com. S/A – COELP
41545, Gravadora – COPACABANA

239
.

Figura 1: LP 1 – Solista de Sax Fonte: Leonardo Pimentel

A música de grande sucesso deste disco foi LAMBADA PARA DANÇAR,


citada por Teixeira de Manaus como a música que repercutiu muito rápido nas rádios da
época, em Manaus pela rádio Difusora FM a qual divulgou muito seu trabalho, essa
música traz um ritmo dançante e com algumas frases no meio como Quero bailar, quero
levantar pra dançar, chamando quem estar ouvindo para dançar.

240
241
LP 2 - Título do LP – SOLISTA DE SAX vol. 2, Ano – 1982 Som Ind. e Com. S/A –
COELP 41797, Gravadora – COPACABANA

Figura 2: LP 2 – Solista de Sax, vol. 2 Fonte: Leonardo Pimentel

Neste segundo LP a grande musica para muitos até hoje citada é “DEIXA MEU
SAX ENTRAR”, nesse momento Teixeira de Manaus pede para que o povo abra as suas
portas para sua música, onde o refrão bem popular fala, abra sua porta deixa meu sax entrar,
algo que seu amigo Pinduca havia lhe falado frases populares e simples.

242
243
LP 3 - Título do LP – SOLISTA DE SAX vol. 3, Ano – 1983 Som Ind. e Com. S/A –
COELP 41861, Gravadora – COPACABANA.

Figura 3: LP 3 – Solista de Sax, vol.3 Fonte: Leonardo Pimentel

Já neste LP teve alguns sucessos, mais o que marcou sem duvida esse disco foi uma
musica totalmente instrumental, que é a música FORRÓ AMAZONENSE, que como o nome
já diz, é um forró bem gostoso de ouvir e principalmente como Teixeira de Manaus falou,
dava vontade de dançar na hora que se ouvia.

244
245
LP 4 - Título do LP – SOLISTA DE SAX vol. 4, Ano – 1984 Som Ind. e Com. S/A –
COELP 41956, Gravadora – COPACABANA

Figura 4: LP 4 – Solista de Sax, vol.4 Fonte: Leonardo Pimentel

246
Neste PL, Teixeira de Manaus não teve uma música com grande destaque, mas
quero mostrar a influencia da música brasileira nas suas composições. Analisando suas
músicas podemos observar que ele gostava também do chorinho, por ser uma música de
execução rápida Teixeira se identificou muito, e ao longo de sua trajetória produziu alguns
chorinhos.

247
LP 5 - Título do LP – SOLISTA DE SAX vol. 5, Ano – 1985 Som Ind. e Com. S/A – MLP-
42108, Gravadora – COPACABANA

Figura 5: LP 5 – Solista de Sax, vol.5. Fonte: Leonardo Pimentel


LP 6 - Título do LP – SOLISTA DE SAX vol. 6, Ano – 1987 Som Ind. e Com. S/A –
25.203, Gravadora – COPACABANA, Equipe de produção.

Figura 6: LP 6 – Solista de Sax, vol.6. Fonte: Leonardo Pimentel

Neste LP, Teixeira de Manaus mais uma vez coloca em prática os ritmos caribenhos
que o influenciou ao longo de sua trajetória, e a música destaque desse álbum é a “VAMOS
CUMBIAR” que vem da mistura de ritmos, onde ele mistura os ataques da salsa, e o ritmo
dançante do merengue com a cumbia.
Neste LP, a música destaque foi “BALANÇO DO NORTE”, para Teixeira de Manaus
foi muito bom, pois a sua popularidade caiu um pouco, e nesse disco essa música, fez com
que Teixeira de Manaus voltasse ao cenário musical da época, mais uma vez ele conseguiu
misturar ritmos, e sem dúvida ele pensou em ver seu público dançando com sua música.
252
LP 7 - Título do LP – SAX, BALANÇO E LAMBADA, Ano – 1989 Som Ind. e Com.
S/A - 625, 261, Gravadora – COPACABANA.

Figura 7: LP 7 – Sax, Balanço e lambada. Fonte: Leonardo Pimentel


Sua música percorreu o Brasil e até outros países, recebendo convite para viajar
por todo o Brasil fazendo um grande sucesso no nordeste brasileiro.
Eu gravei em 1980 em 1981 começou o sucesso, eu fiz quatro anos de
sucesso estourado mesmo, ai no quarto disco eu senti uma queda,
como tudo cai não tem jeito, fazer sucesso é fácil manter o sucesso
que é quase impossível, ai eu fiquei naquele ponto não tão estourado
mais tocando todo tempo, viajei por todo esse nordeste fiquei muito
conhecido em fortaleza. (Teixeira de Manaus 2013)

Não posso deixar de falar que ele levou Manaus a ser destacada, com seu nome
artístico, Manaus ficou sendo vista através do grande Teixeira de Manaus. Teixeira de

253
Manaus teve seu último show realizado em julho de 2012, no Teatro Amazonas, quando
recebeu o convite que seria homenageado pelo 7° FESTIVAL AMAZONAS JAZZ, após
quatro anos sem tocar, relatou que já estava aposentado, Teixeira de Manaus sofreu
sérios problemas de saúde e via que não dava mais para tocar.
Através dessa grande homenagem e show, Teixeira de Manaus viu uma forma
de finalmente encerrar sua carreira em grande estilo, apesar de receber outro convite da
secretaria de cultura a fazer uma temporada de shows no Teatro Amazonas, mas Teixeira
de Manaus não aceitou e encerrou sua carreira artística ali no magnífico Teatro
Amazonas, com grandes emoções e certo que o seu nome será falado na historia da
cultura Amazonense.

Figura 8: Premiação no Teatro Amazonas. Fonte: Jornal do Commercio

Considerações finais
Através dessa pesquisa, podemos observar quem é de fato Teixeira de Manaus,
perceber que um artista local, também pode e deve ser alvo de pesquisas, pois quando
queremos saber um pouco mais da cultura ou artista local, a muita carência de
documentos, apenas alguns registros feito por jornais podem ser encontrados.
Para minha felicidade, todas as informações desse trabalho foram concedidas
pelo desconhecido Sr. Rudeimar Soares Teixeira, que é conhecido por muitos como
Teixeira de Manaus, que declarou a sua alegria por eu estar desenvolvendo esse trabalho
sobre sua vida, Teixeira de Manaus que por muitos é taxado como um cara fechado,
abril suas portas para mim e disse que nunca tinha falado abertamente de sua vida para
outras pessoas só sua família.
Essa pesquisa é de grande importância para mim, pois eu também pude
conhecer um pouco mais desse talentoso músico, que um dia foi influenciado por vários
ritmos e músicos, mais hoje ele é influencia para muitos em nossa cultura local e
nacional, despertando a criação de grupos, bandas e até orquestras, para a pratica dessa

254
música com ritmo forte, desenvolvida e destacada por Teixeira de Manaus que é o
Beiradão.
Espero que esta pesquisa venha ajudar outras pessoas na busca a desenvolver
outros trabalhos sobre artistas locais, cultura local ou ate sobre Teixeira de Manaus e
que, esse possa ser o início de muitos.

Referências
AGUIAR, José Vicente de Souza (2000). “Manaus: praça, café colégio e cinema nos
anos 50 e 60”. Manaus: Universidade do Amazonas.
CABRAL, Sérgio (2011). “MPB na era do Rádio”. São Paulo: Lazuli Editora.
ALBERTO. Carlos. Escola e Memória J. B. L disponível:
http://jblabre.blogspot.com.br/2010/07/escola-municipal-julia-barjona-
labre_1811.html. Acesso: 10 de jan. 2014
TEXEIRA. Soares Rudeimar. Entrevista dada a Grazeane de Brito Froz. Dia 02 de
fevereiro de 2013. Manaus – Am.
CRISTINA. Cintia. Como Surgiram os diferentes ritmos Latinos. Revista abril
disponível em: http://mundoestranho.abril.com.br/materia/como-surgiram-os-
diferentes-ritmos-latinos. Acesso em: 02 de março de 2014.

255
Claudio Santoro e o nacionalismo na perspectiva do Realismo
Socialista. Uma análise do uso da escala pentatônica na
Sonata nº 3 (1955) para Piano
Ernesto Hartmann
Universidade Federal do Espírito Santo
ernesto.hartmann@ufes.br

Resumo. Claudio Santoro, compositor amazonense nascido em 1919 dedicou-se a estética


Realista Socialista na década de 1950. Entre suas obras produzidas para piano destacam-se
as Sonatas nº 3 (1955), nº 4 (1957) e a Paulistana nº 7 (1952), todas as três com movimentos
dentro do esquema formal da Sonata na perspectiva neoclássica. Através da análise do
tratamento da escala pentatônica no primeiro movimento da Sonata nº 3 e na comparação
deste com trechos da Paulistana nº 7 buscaremos, amparados pelos conceitos sobre escala e
coleção pentatônica expressos na literatura, elucidar o processo de amadurecimento do
compositor nesta estética relacionando-o com o grau de complexidade e sofisticação
empregados pelo compositor na manipulação do material de origem folclórica. Os resultados
indicam para uma utilização progressivamente apolar da escala, superando a mera cópia do
folclore e de seus elementos mais simples, almejando a universalidade da linguagem nacional,
conforme preconizava a doutrina estético-ideológica do compositor naquele momento.
Abstract. Claudio Santoro, a composer born in Amazonas, Brazil in 1919 dedicated his 1950
decade to his personal project of pursuing a Social Realism aesthetic. In his Piano works of
that decade, we must point out the third and fourth Piano Sonatas and the Paulistana n. 7, all
three written in the neoclassic perspective of sonata form. From an analysis of the treatment of
the pentatonic scale given by the composer in the first movement of the third Sonata, and in a
comparison with excerpts of the Paulistana n. 7 we will, supported by current the literature
about pentatonic scale, seek to enlighten the process and technique of the composer in
manipulating the material of folkloric origin. The results point to a progressive maturation of
the skills translated in an increasingly use of the scale in a non-tonal/polar context surpassing
the mere reproduction or appropriation of the folkloric material, as expected by the
ideological-aesthetic ideals of the composer at that time.

Introdução
Como bem afirma a pesquisadora Ermelinda Paz, em seu trabalho O Modalismo na
Música Brasileira,
muitos autores explicam certas características modais em nossa
música como sendo de origem ibérico-gregoriana, já alguns justificam
este aparecimento através da influência ibérico-mourisca, outros ainda
dizem ser autóctones e há, todavia, indicação de origem africana ou
acústica, sendo também através da série harmônica, esclarecida a
origem das alterações que geram a escala modal (PAZ, 2002, p.27).
Seja qual for a origem do modalismo na música nacional, levando-se em
consideração que a autora define a escala pentatônica em sua forma mais comumente
conhecida que será discutida a frente como uma forma de modalismo, é fato que essa
escala, a pentatônica, foi um material de simples manipulação e disponível para o
compositor que estivesse interessado em uma estética de perfil nacionalista e ou
folclorista em meados do século XX.
Ainda, segundo a autora, “nos países latino-americanos encontramos também
farto material modal, especialmente com base na escala pentatônica” (PAZ, 2002, p.
23).

256
Dentre os compositores mencionados no parágrafo anterior, podemos
confortavelmente posicionar Claudio Santoro, compositor amazonense nascido em 1919
que, bem cedo, se radicou no Rio de Janeiro e, posteriormente, na Alemanha e em
Brasília até seu falecimento em 1989. Durante a década de 1950, Santoro buscou uma
experiência estética vinculada ao Nacionalismo, fortemente orientada e alinhada às
diretrizes do II Congresso Internacional de Compositores Progressistas de Praga,
realizado em 1948 (Zhdanovismo e Realismo Socialista) (HARTMANN 2010), que
teve-o como único representante do Brasil e, mais especificamente do Partido
Comunista Brasileiro, partido ao qual era filiado e efetivo militante naquela ocasião.
A participação de Santoro neste congresso foi muito ativa, visto que ele
concordava inteiramente com as propostas políticas. Estava inclusive disposto a alterar
sua postura estética e a abarcar integralmente sua concepção para se alinhar com as
resoluções ali tomadas. O estudo de música brasileira que nunca o interessou seriamente
estava entre suas prioridades quando da ocasião de seu retorno ao Brasil em Setembro
de 1948.
... um deles é ver se fico uns dois anos no norte, isto é, Recife, por exemplo, a
fim de estudar seriamente o nosso folclore e formar uma série de estudos
profundos sobre a origem modal da nossa música, quais as leis que
inconscientemente a regem, colher tudo o que puder para ver se organizo um
livro sobre as bases da construção da nossa música, como formação melódica
e daí partir para um possível livro sobre contraponto e harmonia
(SANTORO, Correspondência a Curt Lange, 13 de Setembro de 1948,
Acervo Curt Lange, UFMG, Belo Horizonte).
Este projeto está em plena consonância com as resoluções do Congresso de
Praga: educação musical fundamentada nas bases populares e folclóricas de cada região,
e estudo destas mesmas manifestações musicais para subsidiar o material utilizado na
composição, de forma a construir uma música com identidade nacional e “positiva”
capaz de penetrar nas camadas mais populares da sociedade, porém sem ser banal.
Na verdade, o projeto de Santoro de pesquisar a música brasileira nunca se
realizou, entretanto, em suas obras desta década (1950-1960) percebemos um
aprofundamento da técnica de manipulação dos elementos folclóricos que de longe
ultrapassam a reprodução de ritmos característicos ou a apropriação de melodias
populares. Santoro reelabora o material de forma dialética, permitindo que ele se
transforme em uma música com elementos nacionais, mas sem que esta seja ou soe
superficial. Suas transformações do material são sofisticadas, complexas e profundas,
almejando a intensidade e superação preconizadas pelo Zhdanovismo.
Para ilustrar estes procedimentos escolhemos a Sonata para Piano nº 3, obra de
1955, metade da década e que através da análise de sua manipulação da escala
pentatônica, um dos elementos mais simples atribuídos ao folclore brasileiro, nos
permite perceber a técnica e o grau de sofisticação empregado pelo compositor.
1. Claudio Santoro e a Sonata 3 para Piano, a superação da reprodução do
material folclórico
A Sonata para Piano nº 3 de Claudio Santoro data de 1955 e foi dedicada a Heitor
Alimonda, que a estreou em Salvador no mesmo ano. Sua estrutura em três movimentos
traduz a essência da forma Sonata clássica, revista à luz do Neoclassicismo: dois
movimentos rápidos que se alternam com um lento. Procedimentos composicionais já
observados em obras anteriores como as Dansas Brasileiras (1951) e as Paulistanas
(1952-53) estão presentes na 3ª Sonata solidificando o estilo nacionalista de Santoro e
se aproximando do Nacionalismo presente na linguagem de outros compositores de
relevância contemporâneos como César Guerra-Peixe e Camargo Guarnieri. Um desses

257
procedimentos mais marcantes é a utilização de um gesto inicial em uma textura
monofônica exposto por uníssonos e ou notas oitavadas, geralmente com alguma célula
rítmica tipicamente brasileira como motivo base.
Se nas Paulistanas e nas Dansas Brasileiras os polos tonais (ou modais)
apresentam-se de forma clara, nesta Sonata inicia-se um processo de obscurecimento
destes polos, seja pela utilização de uma harmonia menos diatônica, mais cromática e
dissonante, seja pela rápida oscilação destes polos criando áreas de instabilidade e
ambiguidade ou pela utilização de coleções pentatônicas que oscilam de polo ou mesmo
sobrepõem-se. Este processo será aprofundado em obras posteriores do compositor e
pode ser observado pela interessante discordância de opiniões sobre o centro tonal em
outros trabalhos sobre ela (KUBOTA, 1996 e NASCIMENTO, 1998). Contudo, esta é
uma característica mais marcante nos movimentos externos, pois o segundo movimento
estabelece e fixa de forma clara o centro em Réb.
Em virtude destas características, além de se tratar de uma obra do meio da
década “nacionalista” de Santoro, elegemos a exposição do 1º movimento da Sonata nº
3 para piano de Claudio Santoro como obra a ser analisada no aspecto do tratamento
das coleções pentatônicas, de forma a ilustrar como este procedimento está relacionado
à manipulação mais sofisticada do material folclórico pelo compositor. Ao final da
análise do extrato em questão estabelecerei uma comparação com extratos de outra
obra, anterior da fase nacionalista, a Paulistana nº 7 – Sonata em um movimento, donde
extrairei um pequeno trecho ilustrativo. Esta segunda obra é uma das primeiras
tentativas do compositor no então ainda desconhecido para ele terreno nacionalista e
utiliza elementos, procedimentos, processos e técnicas muito simples no tratamento do
material folclórico.
Prosseguiremos com uma revisão da literatura sobre o termo pentatônica e escala
pentatônica.
2. A escala pentatônica na literatura
De acordo com o Grove Dictionary of Music and Musicians, pentatônica é
um termo aplicado a uma escala, ou por consequência a um estilo
musical ou sistema caracterizado pelo uso de cinco alturas. O termo é
usado mais especificamente para descrever a chamada a coleção
pentatônica Anhemitônica composta da coleção Dó, Ré, Mi, Sol e Lá.
Dos cinco modos gerados desta coleção o maior (com a tônica em Dó)
é geralmente considerado a escala pentatônica comum, apesar da
iniciada em Lá (eólia) também ser relevante56 (SADIE, 1980, p. 989).
Ainda,
no século XX, graças em grande parte a Debussy e Bartók a escala
pentatônica ganhou seu espaço dentre os materiais da música de
concerto ocidental e consequentemente se tornou menos pitoresca
apesar de sua forte e permanente associação com a música folclórica e
tradicional ... Os teóricos, ao gerarem a escala pentatônica a partir de
um círculo de quintas justas observaram uma quantidade de

56
A term applied to a scale, or, by implication, a musical style or system characterized by
the use of five pitches or pitch-classes. The term is used more strictly to describe the so-called
anhemitonic pentatonic collection, typified by the set C–D–E–G–A; of the five modes arising from the
collection, the major (i.e. with tonic C) is generally regarded as ‘the (common) pentatonic scale’,
although the Aeolian mode is also important.
258
propriedades da escala que podem ser acústica e psicologicamente
interessantes. Por exemplo, a coleção desfruta de uma singular
multiplicidade de classes intervalares (<032140>) e portanto a
optimum consonace (Huron) ... até que ponto estas peculiaridades
contribuem para a universalidade do pentatonismo inda é uma
hipótese especulativa57 (SADIE, 1980, p.990).
A colocação de O’Connell neste artigo atribuindo um valor universalista e
simbolicamente representativo da música folclórica e tradicional está em consonância
com a sua utilização pelos compositores nacionalistas de diversas origens, entre elas a
brasileira.
Para Persichetti,
Existem dois tipos de escalas básicas de cinco sons ou pentatônicas.
Algumas das mais conhecidas são a Diatônica (Dó, Ré, Mi, Sol, Lá), a
Pelog (Dó, Réb, Mib, Sol, Láb), a Hirajoshi (Dó, Ré, Mib, Sol, Láb) e a
Kumoi (Dó, Ré, Mib, Sol, Lá). A construção técnica modal que produz
os sete modos diatônicos produz os cinco modos década escala
pentatônica. As cinco formas modais da escala pentatônica são as
seguintes: 1º Modo (Dó, Ré, Mi, Sol, Lá), 2º Modo (Ré, Mi, Sol, Lá,
Dó), 3º Modo (Mi, Sol, Lá, Dó, Ré), 4º Modo (Sol, Lá, Dó, Ré, Mi) e
5º Modo (Lá, Dó, Ré, Mi, Sol), todos passíveis de transposição. As
escalas diatônicas de cinco sons estão limitadas harmonicamente por
sua carência de semitons (quando os cinco sons de uma escala
pentatônica soam simultaneamente formam uma espécie de acorde
estático). Por tanto é extremamente difícil conseguir uma direção
harmônica e melódica de uma forma puramente pentatônica. Quando a
melodia e harmonia são pentatônicas pode-se prevenir a monotonia
variando as versões modais da escala movimentando-se de uma a
outra. (PERSICHETTI, 2000, p.48)
De grande riqueza em informações e detalhando as questões referentes às
limitações do uso da escala, o autor ainda nos recomenda que,
Um uso consistente de notas melódicas, pedais e frequentes
intercambios modais a outras pentatônicas também auxiliarão a
prevenir a monotonia harmonica, porém a música puramente
pentatônica (não polimodal, etc.) é mais eficiente se utilizaa por curtos
espaços de tempo. Os materiais pentatônicos funciomnam bem
melodica ou harmonicamente, porém raramente as duas coisas. As
melodias pentatônicas são, de um modo geral, harmonizadas com
acordes estranhos a escala. Um modo pentatônico combina bem com
outro modo sobre o mesmo ou diferente centro tonal. Acordes de três,
quatro e cinco sons por quartas tem um sabor pentatônico. A forma
com cinco sons contém todos os graus da escala pentatônica no modo
diatônico (PERSICHETTI,2000, p.96).
Podemos entender, que para Persichetti, o uso da escala por si só não representa
grande avanço nas técnicas composicionais do século XX, questão central em seu livro

57
In the 20th century, thanks in large part to Debussy and Bartók, the pentatonic scale
earned its place among the materials of Western art-music and, consequently, became somewhat less
‘marked’ despite its enduring association with various folk and traditional musics. .. theorists, generating
the pentatonic scale from a cycle of perfect 5ths, have observed a host of scalar properties that may be
acoustically or psychologically desirable. For instance, the set enjoys unique multiplicity of interval
classes (<032140>) and so-called ‘optimum consonance’ (Huron) ... The extent to which these features
account for the apparent universality of pentatonicism, however, remains speculative..
259
de onde retiramos a precedente citação. Ainda, é relevante notar que, assim como
O’Connell, ele reconhece a possibilidade de construção da escala pela superposição de
intervalos de quintas justas e também de suas viabilidade de aplicação em um sistema
que inclua notas não presentes na escala original, mas que possam ter justificativa nas
ornamentações ou mesmo em um sistema polimodal, análogo ao politonalismo.
Leon Dallin tipifica o uso de escalas pentatônicas em seu capítulo Recursos
escalares adicionais. Para ele,
As escalas consideradas até então estavam limitadas às que consistiam
de sete sons compreendendo cinco notas e dois semitons. Apesar
destes padrões escalares terem dominado a música europeia por
muitos séculos, não há justificativa para restringir os recursos
melódicos exclusivamente à elas. Outros padrões escalares sempre
estiveram presentes em culturas não europeias, e recentemente a
prática na música ocidental tende a tomar elas de empréstimo e
mesmo inventar novas escalas. Traçar as origens e a distribuição
geográfica das varias escalas é uma tarefa fascinante, mas a principal
preocupação dos compositores e intérpretes é a sua utilização na
música viva. Escalas pentatônicas estão dentre as mais antigas e
universais. A mais comum tem um padrão similar a escala maior com
o terceiro e sétimo graus omitidos tal qual as teclas pretas do piano ...
qualquer nota na escala pentatônica pode servir como centro ou tônica,
e as notas onde ocorrem cadências ou realçadas tendem a ser
percebidas como tal. De qualquer forma, pessoas acostumadas a fortes
relações funcionais no modo maior e menor tem um sentido de
comparação com estas devido principalmente a falta de sensível
(DALLIN, 1964, p.33,34)
Novamente, vemos um autor apontar para o sentido de ancestralidade e,
literalmente universalidade destas coleções.
Em Kostka temos a definição do termo pentatônica como,
pentatônica é um termo generico para qualquer escala de cinco sons,
mas quando referimos a escala pentatônica a escala é geralmente a sua
forma mais comum. Observe que apenas contém segundas maiores e
terças menores. Em virtude de não conter intervalos de semitom essa
escala pentatônica é, eventualmente, denominada anhemitonica. A
escala pentatônica é normalemente utilizada para dar um sabor
oriental a uma determinada passagem, mas certamente ela ocorre mui
frequentemente em outras regiões que não o oriente, particularmente
em melodias folclóricas e canções infantis. Qualquer membro da
escala pentatônica pode ser uma tônica, portanto, cinco modos ou
rotações são possíveis. A escala pentatônica é obviamente uma fonte
limitada de recursos melódicos e harmônicos terciais. Os únicos
acordes terciais possíveis podem ser construídos a partir de Dó e Lá,
destarte os acompanhamentos de suas melodias serão provavelmente
ou não terciais ou não-pentatônicos ou mesmo os dois
simultaneamente. Outras versões da escala pentatônica são possíveis,
versões empregando segundas menores e terças maiores, mas elas
ocorrem menos frequentemente na música ocidental58 (KOSTKA,
2006, p.23).

58
Pentatonic" is a generic term for all five-note scales, but when one refers to the
pentatonic scale, the scale in Example 2-1 is usually the one that is meant. Notice that it uses only major
seconds and minor thirds. Because this version of the pentatonic scale contains no half steps, it is
260
Para Allen Forte e Joseph Straus, qualquer conjunto de cinco sons pode ser
organizado como uma escala pentatônica. Não obstante, já há uma diferenciação em
Straus quando, na ocasião de um exercício em seu livro texto Introdução à Teoria Pós-
tonal, este autor solicita ao leitor que identifique a “coleção pentatônica” (STRAUS,
2000, p.16). De acordo com a nomenclatura de Allen Forte exposta em The Structure of
Atonal Music (FORTE, 1973) e discutida na obra mencionada de Strauss (STRAUS,
2000) a coleção pentatônica mais frequente na música folclórica brasileira é
representada pelo nome de 5-35. Trata-se da superposição de quatro quintas justas,
intervalo mais consonante da série harmônica após a oitava justa sobre uma dada
fundamental (fig.01).

Figura 1. Gênese da escala pentatônica a partir da superposição de 5ªs justas.


Em uma última definição, citamos Wilkins que afirma que
existem cinco tipos de formas da escala pentatônica (cinco sons),
muito usadas na música do oriente. Estas dependem da nota inicial.
Uma escala pentatônica é formada por três intervalos de segunda
maior e dois intervalos de terça maior. Algumas canções folclóricas
escocesas usam a escala pentatônica. Auld lang Sine pode ser tocada
exclusivamente nas teclas negras do piano (que representam uma
escala penatatônica) inciando com Dó# e Fá#, toas as escalas podem
ser transpostas para qualquer altura59 (WILKINS, 2006, p.61).
Como uma síntese das definições dos autores referidos sobre o termo
pentatônica, podemos elencar as seguintes características:
a) A universalidade da escala pentatônica mais comum sublinhada pela maior
parte dos autores.
b) A forte presença, como consequência da universalidade, na música folclórica
de diversas nações.
c) A existência de um modo mais comum, este visto como universal, apesar da
existência mesmo no folclore de outros modos.
d) A sua limitação em virtude de seu conteúdo intervalar, desprovido de
semitons, não obstante suas interessantes particularidades.
e) A necessidade técnica da combinação de sua estrutura com outras de polos e
ou modos diferentes, ou até mesmo com outras técnicas de forma a propiciar

sometimes called the anhemitonic pentatonic scale. The pentatonic scale is often used to give an oriental
flavor to a passage, but it certainly occurs often enough outside of the Orient, particularly in folk
melodies and children's songs. EXEMPLE = C,D,E,G,A, Any member of the pentatonic scale can serve as
tonic; thus, five "modes," or rotations, are available. The pentatonic scale is obviously a limited source of
melodic pitch material, and it is also limited in its tertian harmonies. The only tertian chords that could
be constructed from Example 2- 1 are triads on C and A and a minor 7th chord on A. This means that the
accompaniment to a pentatonic melody will probably be either non tertian or nonpentatonic or both.
Other versions of the pentatonic scale are possible- versions employing minor 2nds and major 3rds-but
they occur less often in Western music.
59
There are five forms of the Pentatonic (5-note) scale, much used in music of the Far
East. These depend on the starting note. A Pentatonic scale is made up of three intervals of a M2 and 2
intervals of a m3.Some Scottish folk songs also use the Pentatonic scale. Auld Lang Sine can be played on
the black notes of a keyboard (which represent one form of the Pentatonic scale), beginning C#, F#. All of
the scales and modes may be transposed to any starting note.
261
diversidade e variedade no discurso harmônico, superando assim a natural e
possível monotonia causada pelo seu uso exclusivo.
f) A sua paradoxal flexibilidade permitindo-a ser tratada polarmente (alguns
autores como Persichetti chegam até a denominar 1º, 2º modo),
multipolarmente ou apolarmente (Straus e Forte), sendo neste último caso
referida por 5-35 na nomenclatura da Teoria dos Conjuntos.
3. Análise da Sonata nº 3 para Piano de Claudio Santoro no aspecto
Pentatônico
A 3ª Sonata para Piano de Santoro apresenta em linhas gerais a forma tradicional da
Sonata: três movimentos, o primeiro em forma Sonata, o segundo lento em forma
ternária e o terceiro ao estilo de uma Tocatta. O tratamento da tonalidade por Santoro
admite a utilização da nomenclatura de Forte para conjuntos e coleções, visto que
diversos destes conjuntos e coleções não se apresentam funcionalizados, ou seja, dentro
do contexto de uma função tonal. Ainda existe a utilização pelo compositor de recursos
politonais e até mesmo polimodais o que sugere uma frequente alternância entre
diversas ferramentas analíticas e conceitos.
A seguinte tabela ilustra um panorama geral do esquema do primeiro
movimento:
Exposiçã Desenvo Reexpos Desenvo Coda
o lvimento ição lvimento
ou Terminal
Elaboraç
ão
1-10 11-17 18-32 33-45 46-89 90-106 107-119 120-129 130-182 183-194
Estrutura Transiçã Estrutura S1 S2 S3 Retransi Estrutur
expositiv o expositiv ção a
aA aB expositi
va B

Do primeiro movimento selecionamos a Estrutura expositiva A, que contém a


maior parte do material a ser trabalhado no movimento. Esta se inicia com um tema
enunciado em uníssono onde a transformação intervalar da quarta para a terça aparenta
ser de grande relevância (fig. 02). O arpejo inicial é feito sobre um acorde de quartas
(Mib, Láb, Réb, todas teclas pretas). Conforme já observamos, a escrita em quartas tem
uma sonoridade pentatônica, pois trata-se de um subconjunto relevante da escala
pentatônica. Imediatamente o enunciado é respondido por uma sequência de duas terças,
uma menor e outra maior respectivamente. Ambas utilizam somente as teclas brancas
criando uma polarização interna do motivo.

Figura 2. Célula rítmica do tema principal.

Este mesmo motivo é repetido literalmente no segundo compasso, porém, a


dinâmica indicada é piano, o que possibilita uma nova oposição em outro parâmetro.
Apesar de seus dez compassos de duração (com alternância de fórmula) a construção
desta estrutura expositiva pode ser reduzida a um período de duas frases que
originalmente teriam quatro compassos cada uma. A primeira inicia no compasso 3 com
uma cadência suspensiva sobre o acorde de Ré com 7ª, 9ª menor e 6º (compasso 6) e a
segunda sobre um tetracorde de quartas com nota adicionada, cuja construção é uma

262
síntese da elaboração intervalar apresentada no motivo inicial. Os dois primeiros
compassos são uma antecipação do motivo incompleto, que, considerado o jogo entre
teclas brancas e pretas oferecido, delineiam uma escala pentatônica (Figuras 03 e 04):

Figura 3. Motivo principal completo, Claudio Santoro, Sonata para Piano nº 3, 1º


Mov. compasso 3.

Figura 4. Estrutura expositiva A, compassos 1-10.

Praticamente todos os intervalos derivam da oposição intervalar quarta x terça


apresentada no gesto inicial. Em detalhe, o compasso 4 é um excelente exemplo: após
dois arpejos ascendentes de acordes em quartas distantes por uma quinta justa (Mib, Láb,
Réb e Sib, Mib, Láb), ambos sobre as teclas pretas, um conjunto de três notas dá início a
uma nova figuração que se estenderá até a primeira cadência (compasso 6). Si, Dó e Sol
formam tanto intervalos de terças quanto de quintas (inversão da quarta), quando
observados através de sua permutação. O compasso seguinte (5) dá sequência a esta
ordem intervalar, alternando os mesmos tipos de intervalo (Figura 05).

263
Figura 5. Elaboração motívica intervalar na estrutura expositiva A, Claudio
Santoro, Sonata nº 3 para Piano, 1º Mov. compassos 4 e 5.
A segunda frase aprofunda a oposição entre as coleções constituídas pelas teclas
brancas e teclas pretas. Concluindo na tétrade Do#, Fá#, Si e Lá (escala pentatônica
incompleta) pressupõe uma cadência suspensiva, o que é reforçado pelo súbito
decrescendo e dinâmica piano. É notável a oposição entre a coleção pentatônica Láb,
Réb, Solb, Mib, Fá (compasso 7) e a passagem que inclui a coleção diatônica Dó, Ré, Mi,
Fá, Sol, Lá Si (compasso 9). Apesar de não trabalhar serialmente nesta sonata, Santoro
ainda utiliza uma técnica que é remanescente de sua fase serial. A apresentação da
escala cromática incompleta, geralmente com grupos de dez ou doze sons. No caso
presente a frase inicial utiliza até o compasso cinco nove sons da escala cromática,
excluindo apenas o Ré, Mi e o Fá. Não à toa, estes três sons aparecem decisivamente no
compasso seguinte (o da cadência). Este recurso será observado mais uma vez, porém
de forma menos evidente na estrutura expositiva B (compasso 29).

Figura 6. Coleções diatônicas e pentatônicas na Estrutura expositiva A, Claudio


Santoro, Sonata para Piano nº 3, 1º mov. C. 7-10.

264
A Transição que se segue estabelece uma continuação do processo de alternância
entre coleções pentatônicas iniciado na exposição. Entretanto, se estabiliza na coleção
Pentatônica Mi, Láb, Réb, Solb, Si após três compassos de suspensão do Mi grave pela
sua apojatura superior Fá (Aqui nota-se um recurso comum na linguagem pianística de
Santoro, a utilização de acordes de quarta arpejados organizados em grupos de três
progredindo em movimento contrário à tríades sobre as teclas brancas – compassos 11,
12 e 13) – figura 07. Esta passagem serve como uma ligação entre a primeira coleção
pentatônica Mib, Sib, Láb, Réb, Solb (compasso 10/11) e a segunda – Mi, Láb, Réb, Solb,
Si (compasso 17). A transição liquida os elementos secundários do tema fazendo restar
apenas o motivo básico (arpejo de quartas ascendentes). Este arpejo será utilizado como
contraponto à primeira frase da estrutura expositiva B onde a coleção diatônica centrada
em Réb será o foco da polarização.

Figura 7. Transição, Claudio Santoro, Sonata para Piano nº 3, 1º mov, compassos 11-17.

A figura 08 ilustra as progressões do baixo da estrutura expositiva A e da


transição além de realçar a alternância entre as coleções pentatônicas:

Figura 8. Coleções pentatônicas da estrutura expositiva A e da transição,


Claudio Santoro, Sonata para Piano nº 3, 1º mov, compassos 1-17.

Através da análise deste extrato podemos visualizar a relevância do sentido


harmonico-temático da sonoridade pentatônica neste movimento. Essencialmente,

265
podemos resumir o percurso a uma variação entre diversos polos da coleção pentatônica
5-35, ora (c.6) oposta a sua coleção complementar (7-35, coleção diatônica), ora oposta
a outros polos (c.10 e c.17). Vale mencionar que o gesto final do movimento é
exatamente a coleção 5-35 com as teclas pretas, ou seja, a mesma coleção inicial e
referencial da estrutura expositiva A (figura 09).

Figura 9. Coleção pentatônica referencial do movimento – teclas pretas,


Claudio Santoro, Sonata para Piano nº 3, 1º mov, compassos 192-194.
Uma comparação com o tratamento dado à escala pentatônica na Paulistana nº7
– Sonata em um Movimento serve para demonstrar a maior sofisticação empregada pelo
compositor na Sonata, obra cronologicamente posterior a Paulistana. Três momentos
são representativos pelo tratamento simples e direto da coleção pentatônica:
a) Exposição, c. 9-12 – Estrutura Expositiva (fig. 10) aqui a escala pentatônica
é harmonizada inicialmente com terças contendo notas estranhas à ela e no
compasso final do exemplo com acordes. Não obstante é clara a utilização na
linha melódica da forma mais comum da pentatônica, centrada no Dó (Dó,
Ré, Mi, Sol, Lá)

Figura 10. Coleção pentatônica, Claudio Santoro, Paulistana nº 7, c.9-12.


b) Transição, c. 40-44 (Fig. 11) – Transição entre as estruturas expositivas A e
B. Neste exemplo, pelo posicionamento dos acordes, podemos afirmar que a
coleção pentatônica centra-se agora no Mib, o que representaria além de uma
transposição uma mudança para o 3º Modo de Persichetti. Novamente o
tratamento é direto e simples, explorando apenas as notas da escala e a
sonoridade do acorde de quartas.

266
Figura 11. Coleção pentatônica nas teclas pretas, Claudio Santoro, Paulistana
nº 7, c.9-12.
c) Desenvolvimento, c. 90-92 (fig. 12) – Outro exemplo de tratamento simples
na seção de Desenvolvimento. A coleção pentatônica novamente é
transposta, afora sendo composta das notas Mi, Sol, Lá, Si e Ré. Neste caso
ela encontra-se novamente no 3º modo de Persichetti, assim como no
exemplo anterior. Ela esta dobrada em terças em suas três últimas notas da
linha melódica, impondo a nota Dó como nota não pertencente a esta coleção
e oposta um ostinato em oitavas de Dó, Ré e Mi, que em conjunto com esta
escala formam uma coleção de seis sons quase diatônica.

Figura 12. Coleção pentatônica no Desenvolvimento,Claudio Santoro,


Paulistana nº 7, c.90-92.
d) Desenvolvimento, c.102-106 (fig. 13) – ainda nessa seção
(Desenvolvimento), uma coleção pentatônica distinta se faz presente, mesmo
que incompleta. Novamente o recurso de acompanhamento é um ostinato em
terças, porém é notável que neste acompanhamento, a nota ausente na linha
melódica para completar a escala pentatônica, o Fá esteja presente de forma
efetiva. É plausível considerar o Láb como polo da linha melódica, hipótese
que se confirmada implica em um retorno ao 1º modo de Persichetti.
Novamente, as notas estranhas geradas pelo acompanhamento servem para
construir a coleção diatônica (7-35). Desta forma temos a linha melódica (se
considerada como coleção 5-35) como complementar do conjunto e da
sonoridade geral da passagem (7-35), conforme denotam Forte e Straus.

Figura 13. Coleção pentatônica no Desenvolvimento,Claudio Santoro,


Paulistana nº 7, c.90-92.

267
4. Considerações Finais
Através dos exemplos comparados podemos concluir que o tratamento dado á coleção
pentatônica nas duas obras reflete o grau de aprofundamento do compositor no projeto
nacionalista. Na perspectiva do Realismo Socialista, a utilização do folclore deveria
elevá-lo a condição de universal. Pensamento não muito distante desse conta com
paralelos no Brasil, especificamente na figura de Mario de Andrade.
Em duas obras de características e propostas similares (forma Sonata) notamos
que a manipulação da escala pentatônica ocorre com inserção de notas estranhas ao
acorde, oscilação de polos e modos em curto espaço de tempo, oposição à coleções
complementares e utilização sistemática de acordes não terciais para sua sustentação
harmônica ocorrem com maior frequência e complexidade na Sonata nº 3. Isso
corrobora para a comprovação da nossa hipótese de que a superação da simples
manipulação do material folclórico ou referente ao folclore nacional foi alcançada por
Santoro já em meados da década de 1950, permitindo que o compositor dispusesse de
técnicas e procedimentos que viessem a contemplar seu projeto ideológico-estético
alinhado com o Realismo Socialista.

Referências
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FORTE, Allen. The structure of atonal music. Yale University Press, 1973.
GANDELMAN, Salomea. 36 Compositores Brasileiros; Obras para Piano (1950/1988).
Rio de Janeiro: Funarte, Relume Dumará, 1997.
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nacionalistas para piano de Claudio Santoro: janelas hermenêuticas. Tese de
Doutorado, UNIRIO - PPGM, Rio de Janeiro, 2010.
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Pearson Education Inc: New Jersey, 2006.
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Mestrado, Porto Alegre, UFRGS, 1996.
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de um novo Nacionalismo. Dissertação de Mestrado. UNIVERSIDADE FEDERAL
DO RIO DE JANEIRO - MÚSICA. Programa de pós-graduação em música , Rio de
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2002.
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STRAUS, Joseph. Introdução à Teoria Pós-tonal. Segunda edição. Tradução de Ricardo
Mazzini Bordini. Prentice Hall, Upper Saddle River: New Jersey, 2000.

268
WILKINS, Margaret Lucy. Creative music composition: the young composer’s voice.
Routledge: New York, NY, 2006.

PARTITURAS
SANTORO, Claudio. Paulistana nº 7 para Piano. São Paulo: Casas Editoriais Musicais
Brasileiras Reunidas CEMBRA, 1955.
_______________. Sonata nº 3 para Piano. São Paulo: Ricordi, 1953.

269
Campo, cotidiano e não-cotidiano na construção da música
nacionalista
João Gustavo Kienen
Universidade Federal do Amazonas
Resumo. O artigo pretende compreender como o cotidiano historicamente influenciou o
campo musical e alterou a condição de não-cotidiano para cotidiano das obras do Século XIX
e XX, a partir das perspectivas de Agnes Heller e Pierre Bourdieu. Esta reflexão se detem na
incorporação do repertório e características estilísticas da música espontânea para a música
de concerto e de salão.
Abstract. The article aims to understand how the everyday historically influenced the musical
field and changed the non-everyday condition for everyday of the works of the nineteenth and
twentieth century, from the perspectives of Agnes Heller and Pierre Bourdieu. This reflection
holds the incorporation of the repertoire and stylistic characteristics of spontaneous music for
the concert hall and music.

Introdução
Música e Cotidiano é questão atual na pauta das discussões do campo musical desde a
área de educação musical com seus processos a partir da escuta do cotidiano até a
composição contemporânea que flagra o finito/infinito e plástico momento do
instantâneo. Como temática e referencial no processo composicional o Cotidiano
emerge intencionalmente em obras produzidas em variados períodos da História da
Música, podemos citar a música programática e mais recente a música acusmática que
tem no cotidiano e em sua fluidez a base das paisagens sonoras geradoras de releituras
estéticas. É importante também revelar a importância do conteúdo verbal da grande
quantidade de letras e títulos de canções que a Cotidianidade figura como elemento
gerador e central.
A maneira que percebemos hoje o Cotidiano representado na música e como esta
música altera o Cotidiano. Criação, sensorialidade da recepção, alteração dos
parâmetros da percepção temporal, emocional, afetiva são elementos da suspensão do
cotidiano pela música rumo ao não-cotidiano.
Por outro temos a produção espontânea que é registrada há séculos que se mescla com
as experiências do não-cotidiano. Pretendemos demonstrar nos Séculos XIX e XX como
a experiência do Cotidiano influenciou esteticamente as produções do não-cotidiano
culminando no início do Século XX com a música nacionalista brasileira agregadora de
elementos da música de tradição europeia com as experiências espontâneas traço
marcante do cotidiano visto através da leitura de Campo de Bourdieu.
Cotidiano, Campo e Música
Agnes Heller compreende duas esferas de vida distintas: a esfera do cotidiano; a esfera
do não-cotidiano. Ela nos mostra que a música, as artes, a ciência, a filosofia, a ética, a
política participam da esfera da vida não-cotidiana e porque possui formas especificas
de pensamento e de objetivações. (HELLER, 2008).
Compreendemos que a vida cotidiana é comum à todos e os momentos críticos
de criação artística, concepção filosófica, e outras esferas do não-cotidiano são
diferenciados das esferas do cotidiano pela redução das probabilidades e das
possibilidades. Além deste aspecto se considera que “Não há vida cotidiana sem

270
espontaneidade, pragmatismo, economicismo, andologia, precedentes, juízo provisório,
ultrageneralização, mimese e entonação” (HELLER, 2008, p. 56)
Para Heller a espontaneidade é característica dominante da vida cotidiana e se
antagoniza as formas de elevação da vida cotidiana.
As formas de elevação acima da vida cotidiana que produzem
objetivações duradouras são a arte e a ciência[...]A arte realiza tal
processo [romper com a tendência espontânea do pensamento] porque,
graças à sua essência, é autoconsciência e memória da humanidade; a
ciência da sociedade, na medida em que desantropocentriza (ou seja,
deixa de lado a teologia referida ao homem singular); e a ciência da
natureza, graças a seu caráter desantropomorfizador.(HELLER, 2008,
p. 42-43)
No seio desta reflexão no aspecto do não-cotidiano evocamos Bourdieu, e sua
sistematização teórico-metodológica ao tratar de arte e campo.
(...) a arte está ligada a receptores que, independentemente da ocasião
em que as obras de arte são apresentadas, formam um grupo
fortemente integrado. O lugar e a função que a obra de arte tem para
um grupo derivam de ocasiões determinadas em que este se reúne
(...). Portanto, uma das funções importante da obra de arte é ser uma
maneira de a sociedade se exibir, como um grupo e como uma série
de indivíduos dentro de um grupo. O instrumento decisivo com o
qual a obra ressoa não são tanto os indivíduos em si mesmos, cada
qual sozinho com seus sentimentos, mas, muitos indivíduos
integrados num grupo, pessoas cujos sentimentos são, em grande
parte, mobilizados e orientados para o fato de estarem juntas.
(BOURDIEU, 1996, P. 244-252)

Bourdieu descreve os três sub-campos artísticos indicados em sua obra, a relação


entre os produtores com o campo de poder, as relações internas do campo artístico e
suas subdivisões. A percepção desta estrutura é dada pelas posições ocupadas pelos
artistas no campo, suas obras e os objetivos das mesmas. Assim podemos afirmar que
não há ingenuidade nesta ação do cotidiano mediada pelas obras do não-cotidiano e suas
formas de julgamento. Mostraremos a seguir aspectos da arte burguesa, arte pela arte e
arte engajada.
A arte burguesa é assumidamente dominada obtêm suas rendas do mercado
calcado nos anseios e desejos burgueses, reproduzindo este imaginário em suas obras, a
arte social é fundamentada na solidariedade, excluída e hostilizada pelos dominantes.
Em sua produção emergem conflitos sociais, assim, sua posição é herege. A arte pela
arte ocupa uma posição estruturalmente ambígua, pois os agentes precisam pensar na
sua posição estética e política e rejeitam a burguesia à medida que são rejeitados.
Esta divisão exibe a oposição ideológica, estética, temática e técnica, com
implicações e resultados esperados e obtidos, diversos e variados, por vezes,
diametralmente opostos. A relação dos artistas com o público receptor condiz com suas
opções dentro do sub-campo. As obras de arte resultantes exibem as concordâncias,
oposições e trânsitos de seus produtores. Os artistas da arte burguesa optam por
representar os feitos, as belezas, as relações e toda a cosmogonia do universo burguês.
O burguês prefere estar afastado dos conflitos, das lutas, da visão explorada dos
operários subordinados e invisíveis aos detentores dos meios de produção. Este artista
em função da burguesia assume papel social estereotipado e caricatural. “Quanto mais

271
se estereotipam as funções “papel”, tanto menos pode “crescer” o homem até a altura de
sua missão histórica, tanto mais infantil permanece”. (HELLER, 2008. P. 124).
O artista engajado a priori denuncia a exploração do operário pelo seu algoz. A
arte engajada cumpre o papel de revelar a condição que vive o homem que tem seu
trabalho e sua vida tomados por forças hegemônicas. Os artistas da arte pela arte
refutam, negam, hostilizam, com o objetivo de desenvolver uma forma de isolamento
estético, uma espécie de associação, de confraria, onde os iniciados participam seus
méritos artísticos, fecundam, nutrem e reproduzem seus ideais artísticos, a fim de
perenizar sua posição na sociedade geral e sua posição no campo.
As obras produtos destas posições artísticas, políticas, sociais, não podem ser
compreendidas descoladas das relações de força que a produziram, para entendê-las
Bourdieu sugere que
A ciência das obras culturais supõe três operações tão necessárias e
necessariamente ligadas quanto os três planos das realidades sociais
que apreendem: primeiramente, a análise da posição do campo [...] no
seio do campo de poder, e de sua evolução no decorrer do tempo; em
segundo lugar, a análise da estrutura interna do campo literário [...],
universo que obedece as suas próprias leis de funcionamento e de
transformação, isto é, a estrutura das relações objetivas entre as
posições que aí ocupam indivíduos ou grupos colocados em situação
de concorrência pela legitimidade; enfim a análise da gênese dos
habitus dos ocupantes de uma trajetória social e de uma posição
interior no campo literário [...], encontra nessa posição uma
oportunidade mais ou menos favorável de atualizar-se (a construção
do campo é a condição lógica prévia para a construção da trajetória
social como série das posições ocupadas sucessivamente nesse
campo) (BOURDIEU, 1996, p.243)
Seria ingênuo afirmar que não existem relações e interesses comerciais na forma
de validação que o campo de poder atribuiu às obras de arte, mesmo que denegada, nos
sub-campos há a dependência da estrutura sócio-econômica geral. Assim, percebemos
que a forma de valorar objetos pela sua raridade, pelo poder intrínseco e a exclusividade
de possuí-lo, é reproduzida no campo artístico, convertendo o capital simbólico em
capital econômico. A posição dominante age construindo modismos e estes valorizam
bens artísticos construídos sob as referências da exclusividade. A posse destes objetos é
transformada numa estratégia de diferenciação legítima no campo de poder, a posse dos
bens exclusivos e monopolizados estigmatiza a força destes agentes de poder. “É
possível verificar as possibilidades praticamente inesgotáveis que o universo desses
universos proporciona à busca da distinção”.(BOURDIEU, 2008, p. 212)
E a música do não-cotidiano sobrevive no cotidiano do outro.
Criado o campo musical, seus agentes precisaram desenvolver instâncias de
consagração, maneiras de ordenar, classificar a hierarquia interna do campo e exibir as
posições ocupadas. As sociedades musicais foram mecanismos usados no Brasil do
século XIX e XX como instância de consagração do valor musical no interior do campo
e exibir este valor para a elite, mantendo uma comunicação constante com o campo
econômico e de poder. A hierarquia do musical delineia-se na formação em instituições
oficiais, ou com os grandes professores, com períodos de estudos na Europa, com a
presença nos círculos de concertos. Alguns são destacados pela estada alongada na
Europa como estudantes promovidos a profissionais, como foram os casos de Carlos
Gomes e Henrique Oswald, valorizados no Brasil por seus padrões composicionais
italiano e francês, respectivamente.

272
A relação da elite com a cultura popular é de repúdio. A referência européia
marca o ‘gosto musical’ da elite brasileira. Há um retrocesso importante na relação entre
arte ‘erudita’ e ‘arte popular’. Parte desta relação da burguesia com a cultura erudita está
ligada à ampliação de repertório que as sociedades musicais deram aos concertos. A
burguesia exposta às composições do romantismo alemão, trazidos pelos concertistas
em tournées promovidas pelas sociedades musicais, diminuiu o interesse pelo
melodismo das óperas italianas.
Os procedimentos composicionais valorizados nas audições diminuem o
interesse nos temas operísticos, que além das próprias óperas incluíam, paráfrases,
fantasias e variações sobre temas conhecidos. Por desenvolvimentos temáticos mais
elaborados, por harmonias mais complexas e por exibições de grande técnica
instrumental. Na música vocal há um crescente interesse pelas chansons e pelos lieder,
que culminam com a apresentação de Tannhäuser, em 1883.
Sendo (a cultura popular) cada vez mais, considerada um sinal de
atraso, ignorância e barbárie. Esse fenômeno foi o resultado de
tendências internacionais do séc. XIX, cujo centro de irradiação foi a
França, mais especificamente no governo de Napoleão III (1851-
1870), marcado por um intenso processo de industrialização e
reurbanização. O povo, ou a população “proletária”, necessário porque
trabalhava nas fábricas, passou a se aglomerar em guetos e ruelas
medievais, sobretudo em Paris. Considerado “perigoso”, pelo perigo
das rebeliões e revoltas populares, sua cultura e seus costumes
passaram a ser odiados pela elite (...)O fenômeno era complexo. A
pressão contra a música popular não somente estimulava sua
multiplicação nas periferias, quanto seu contato cada vez maior com
as elites: a música popular, a partir de fins do séc. XIX, começava,
agora, exercer uma pressão cada vez maior sobre a cultura da elite,
exigindo sua “disciplina” nos centros urbanos. (CASTAGNA, S/D p.
1-4)
Mesmo com os contrastes no tratamento dos materiais musicais na divisão das
práticas músicais entre as classes, existe um processo de troca cultural. A etiqueta, a
cultura européia eram símbolos de poder, progresso, e as classes populares não
dispunham do acesso a esses bens culturais importados, preferencialmente, da França e
da Alemanha. As classes populares ficavam à margem neste processo recebendo os
“restos” da cultura hegemônica o que lhes coube foi introduzir a popular nos centros
urbanos. Com esta introdução se dispôs materiais para que os hegemônicos,
gradualmente, incluíssem-na nas suas práticas, e influenciados pelos moldes europeus,
criassem práticas de gosto híbrido entre o popular e o erudito. Nesta linha, a música de
salão cultivada ao sabor romântico, que incluía exotismos, incorporações populares ao
erudito, a princípio velados e discretos.
Nesta altura será preciso frisar que música de salão não pressupõe
sistematicamente produção de segunda ordem, visto obras de mestres do Romantismo
incluírem-se nessa categoria. Mas que se difundiu mais no Brasil desse tempo
representou um distorção do romântico, tal sobrecarga de artifícios que o caracterizou.
Virtuosismo fácil derivado da valorização justa ou exagerado do intérprete, às vezes
artista de possibilidades invulgares, como um Liszt, um Thalberg. Mas essa valorização,
plenamente justificada em certos casos, impressionou demais os menos categorizados e
o amador, sempre ansiosos pelo sucesso imediato. Daí a abundância de música de nível
duvidoso de permeio com a boa produção (CAMEU, 1970, p. 26).
Técnica e esteticamente, a produção musical erudita do Século XIX, foi muito
variada, compreendendo limites que rompem com a tradição romântica nos dois

273
extremos temporais. A princípio a coexistência com a tradição Clássica e,
posteriormente, com as grandes alterações estruturais na melodia, na expansão da
harmonia tonal e, inclusive, utilização do idioma modal.
Para Hobsbawm, a segunda parte do século XIX foi, em todo o mundo, um
período revolucionário nas artes populares, atingindo seu ápice entre as décadas de 1880
e 1890, quando também aconteceu a ascensão de outro fenômeno da cultura da camada
trabalhadora: o futebol profissional. A França produziu o chansonnier das camadas
operárias e, depois de 1884, seu produto culturalmente mais ambicioso e boêmio, o
cabaré de Montmartre. Na Espanha, uma evolução semelhante à norte-americana
produziu o cante bondo, o flamenco andaluz, que como o blues dos EUA, surgiu como
canção folclórica trabalhada profissionalmente nos cafés musicais de Sevilha, Málaga e
Cartagena, entre 1860 a 1900.(HOBSBAWN, 1990)
E se convém autorizar o retorno do recalcado, uma vez produzida a
verdade do gosto contra a qual se construiu, por um imenso
recalcamento, toda a estética legítima, não é somente para submeter as
verdade adquiridas a um derradeiro teste (que não corresponde, de
modo algum, a um enfrentamento contra teorias rivais), mas também
e, sobretudo, para evitar que, por um efeito bastante comum de
desdobramentos, a ausência de confronto direto permita a coexistência
pacífica de dois discursos, em dois universos de pensamento e
discurso cuidadosamente separados.(BOURDIEU, 2008, p. 448)
Com a distinção bem definida, todos esses fenômenos têm dois aspectos em
comum: surgiram do entretenimento profissional dos trabalhadores pobres nas grandes
cidades e são, portanto, produtos da urbanização. E também passou a ser interessante,
economicamente, investir uma boa quantidade de dinheiro nesse tipo negócio, porque as
camadas mais baixas da cidade precisavam de entretenimento.
A música popular brasileira urbana foi intensamente desenvolvida a partir do
princípio do século XIX, principalmente, como uma atividade da camada alta
envolvendo gêneros teatrais semipopulares e a música de salão, paralelamente às
tradições da música erudita. Neste sentido, essa música popular urbana refletiu
expressivamente a diversidade cultural, étnica e sócio-econômica das cidades.
As danças européias em voga na época e outras formas de música popular
estrangeira estavam sempre presentes nas grandes cidades, influenciando vários
segmentos da sociedade. As principais danças de salão do século XIX como a valsa, a
mazurca, a polca, o schottisch e outras, foram adotadas em vários países, nas grandes e
pequenas cidades. Com o tempo, essas danças passaram pelo processo de “criolização”
ou “mestiçagem”, ou seja, foram transformadas em gêneros nacionais.(BÉHAGUE,
1992)
Os salões onde esta música floresceu, firmou tanto na aristocracia quanto na
burguesia, era um espaço para a prática musical do pianista e crucial para a história da
música, uma vez que abrigava tanto aspectos da história social quanto da história da
música. Os concertos privados foram, durante muito tempo, pouco considerados pela
bibliografia geral da música, uma vez que eles não eram alvo da crítica especializada,
aquela publicada nos periódicos pelos cronistas que, não raras vezes, eram também
compositores.
Os saraus e suas variantes costumavam ocupar as colunas dedicadas à sociedade,
mais como registro da participação de diletantes do que propriamente como crítica sobre
suas apresentações. Como expõe Cameu, “as condições do meio encareciam a
composição de conteúdo brilhante, assim como as de caráter langoroso, piegas e as

274
peças de bravura, mais feitas para o sucesso fácil do que para se imporem; ainda
encareciam a temática de origem operística e popular.” (CAMEU, 1970, p. 26)
Unir referência a lugares exóticos, temas conhecidos com sessões de
exibicionismo técnico, à distância do olhar dos críticos, deu aos compositores pianistas
o ambiente ideal para produções musicais de qualidade inclusive duvidosa. Povoavam
os salões composições de níveis de qualidade variados. Entretanto, os pianistas
estabeleciam avaliações na construção dos repertórios que iriam executar nos salões,
cedendo ao apelo popular, sem abandonar seu referencial de qualidade.
Não foi, portanto, o repertório popular, mas o de tipo intermediário
que tanto agradava ao profissional, como lisonjeava o amador. Esse
modelo não desapareceria logo (se é que chegou a desaparecer), mas
foi continuado, ainda figurando nos princípios do século, em obras
assinadas por nomes ilustres. O meio, o nível de cultura musical
estava condicionado a aceitarem esses tipos característicos de
momentos de transformações, criados mais pela personalidade do
intérprete do que pela do compositor.(CAMEU, 1970, p. 27)
Esta vertente da música romântica foi a que transitou do gosto popular da
música de salão com exibicionismo fácil, de forma geralmente livre, ancorado nas
lembranças dos temas de árias e aberturas de óperas em voga para as referências
folclóricas e a música erudita validada pelo campo musical. Os limites e as fronteiras
destas estratificações e suas produções culturais devem ser pensadas em relação aos
vários fatores que constroem sua identidade coeva, justificada pela participação no
jogo de forças que ocorre no interior do campo musical.
A música produzida pelo povo, para atender as suas necessidades de
canto e dança, já tinham características nacionais, e eram os
compositores eruditos que buscavam das às suas obras fisionomia
distinta e particular. Esta tentativa de nacionalização, que ocorreria
simultaneamente por toda a América latina, deveria manifestar-se
inicialmente na chamada música de salão, através do repertório que
trazia todas as características composicionais do romantismo europeu
(e, sobretudo, o gosto pela virtuosidade técnica), realizada através de
temática de cunho folclórico ou popular.(NEVES, 1996, p. 61)
A migração desta nacionalização para a música erudita ocorre quando os temas
populares e ritmos se impõem. Foi necessária gerações para que estas transformações
acontecessem, “a presença do colono, a permanência do negro escravo no seio da
família (...) a tradição oral, se por um lado, deu oportunidade à divulgação e à
continuação, nem sempre contribuiu para a fixação.” (CAMEU, 1970, p. 30) A criação
de uma identidade híbrida permitiu possibilidades composicionais impostas pela
sociedade e adotadas no campo musical erudito. As primeiras experiências musicais
neste sentido foram diluídas em poucas obras, algumas historicamente iniciais sem,
contudo, caracterizar intenção nacionalizadora da música. O movimento de busca do
perfil local encontrava respaldo nos ouvintes, reforçando seu relacionamento com o
compositor que, ao recuperar na memória do ouvinte o tema e ritmo folclóricos,
estabelece uma aparentemente ingênua e nova relação afetiva com esta música que
representa sua terra.
Conclusão
Com esta discussão pretendi mostrar como histórica e estéticamente os paradigmas
hegemônicos da Música de Concerto são alterados em especial até a primeira metade do
Século XX e como as permissões do campo musical condicionaram certos caminhos.
Aquilo que foi exposto na visão de Agnes Heller da arte estar na instância do não-

275
cotidiano se transmuta para a cotidianidade enquanto referencial paradigmático de uma
nova produção amparada em primeira instância no movimento muito anterior de
formação dos estados nacionais e da necessidade da construção do homem nacional que
transbordou no Brasil na literatura de José de Alencar e Machado de Assis. Chegado é o
tempo de se construir quem é o homem brasileiro e que música este homem faz. A
música deste homem nacionalista brasileiro é cheia de sutilezas e traços distintivos
daquilo que se entendeu ser Brasil ou brasilidade sem abandonar os antropofagizados
elementos centrais da cultural musical de origem europeia. Assim coexistem criações e
criadores que representam metaforicamente desde a Tarde no Igarapé 60 até as mais
ousadas experiências da Floresta do Amazonas61, o folclórico, o popular, o concerto
todos coexistindo no cotidiano do não-cotidiano.

Referências
BÉHAGUE, Gerard. Recursos para o estudo da música popular latino-americana.
In: Revista Brasileira de Música. 1992. Rio de Janeiro, Vol. 20.
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. Trad. Daniela Kern;
Guilherme J. F. Teixeira. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk. 2008.
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. Trad.
Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
CAMEU, Helza. “Importância histórica de Brasílio Itiberê da Cunha e da
sua Fantasia Característica ‘A Sertaneja’”. Revista Brasileira de Cultura,
III/1970.
CASTAGNA, Paulo. Apostila do curso História da Música Brasileira. Instituto de
Artes da UNESP – O movimento musical romântico no Brasil. s/d.p.1;4.
ELIAS, Norbert. Mozart: sociologia de um gênio. Tradução de Sérgio Góes de Paula.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
HOBSBAWM, Eric J. A História Social do Jazz. 2 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1990
NEVES, José Maria. Brasílio Itiberê: vida e obra. Curitiba: Fundação Cultural 1996.
HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. São Paulo: Paz e Terra, 2008.

60
Valsa do compositor amazonense Arnaldo Rebelo.
61
Obra tardia de Villa-Lobos de cunho nacionalista com referências explícitas a vanguarda
artística europeia.

276
O Dodecafonismo e o Papel do Solista no Choro para Viola e
Orquestra de Camargo Guarnieri
Ricardo Lobo Kubala1, Bárbara de Souza1
1
Deparatmento de Música- Instituto de Artes - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(UNESP)
rlkubala@yahoo.com.br, basouza30@gmail.com
Resumo: Mozart Camargo Guarnieri (1907-1993) contribuiu significativamente para o
desenvolvimento da viola no Brasil. No Choro para Viola e Orquestra (1975), objeto de
estudo deste trabalho, encontra-se escrita que demanda domínio técnico, trata o instrumento
de modo a evidenciá-lo e ressalta seus aspectos idiomáticos. Trata-se de obra que apresenta
características composicionais típicas de Guarnieri juntamente com traços estilísticos menos
usuais em sua produção, como o emprego do dodecafonismo. Por meio de investigação
estilística, objetiva-se responder a questões relacionadas ao emprego da técnica dodecafônica
no Choro e sua conexão com aspectos interpretativos da parte da viola solista.
Abstract. Mozart Camargo Guarnieri (1907-1993) contributed significantly to the
development of composition for the viola in Brazil. In works such as the Choro for Viola and
Orchestra (1975), the object of study of this article, one observes compositional features that
demand great technical skills, bring out the innate qualities of the instrument and highlight its
idiomatic aspects. While the work is representative of Guarnieri’s typical compositional
features, it also reveals some less common traits, such as the use of dodecaphonism. Through
stylistic research, this article answers questions related to the use of the twelve-tone technique
in the Choro and connects it to the interpretative aspects of the solo viola.

Introdução
Mozart Camargo Guarnieri (1907-93) escreveu, em 1950, a Carta Aberta aos Músicos
do Brasil. Nessa carta, Guarnieri colocou-se de forma veemente contra o
dodecafonismo, técnica que, segundo o compositor, procurava “realizar a destruição das
características especificamente nacionais de nossa música”, orientando jovens
compositores em “sentido contrário aos dos verdadeiros interesses da música brasileira”
(GUARNIERI, 1950).
A Carta Aberta despertou ampla polêmica. Durante meses foram publicadas
entrevistas, cartas e declarações, que discutiam várias questões estéticas e ideológicas.
Esse episódio ajudou a construir em torno de Guarnieri a imagem de compositor
extremamente conservador, avesso a transformações em direção a posturas estéticas
mais modernas. No entanto, suas obras passaram por diversas transformações. Dentre as
fases composicionais de Guarnieri nomeadas por Rodrigues (2001a, p. 53), a "fase do
nacionalismo essencial", que compreendeu obras compostas entre 1965 e 1982,
caracterizou-se, entre outros, pelo uso cada vez mais impreciso da tonalidade. Apesar de
não ter sido uma fase homogênea, predominaram obras mais concisas, com o uso
contínuo de dissonâncias e acordes mais complexos. Nessa época, escreveu, entre
outras, a Seresta para Piano e Orquestra (1965), a Sonatina nº 6 (1965), para piano
solo, Sequência, Coral e Ricercare (1966), para orquestra de câmara, O Caso do Vestido
(1970), cantata para soprano e orquestra, Sonata (1972), para piano solo, a Sinfonia nº 5
(1977), além de obras em que utilizou procedimentos seriais, como os Concertos para
Piano e Orquestra nº 4 (1968) e nº 5 (1970) e o Choro para Viola e Orquestra (1975).
Guarnieri foi um dos compositores que mais contribuiu para o desenvolvimento
da escrita para viola na música brasileira. Escreveu, além de obras para música de

277
câmara que colocam a viola em evidência,62 um concerto para viola e orquestra, o citado
Choro para Viola e Orquestra (1975), o qual é objeto de pesquisa deste trabalho. Afora
o uso do dodecafonismo, chama a atenção nessa obra a riqueza com que são tratadas as
possibilidades idiomáticas da viola.
A motivação para esta investigação surgiu da busca por entendimento da função
da parte da viola solista na obra, ou, por assim dizer, de seu papel nesse concerto para
viola e orquestra. É uma pesquisa que partiu da visão do intérprete, cujas observações e
impressões durante fase de preparação da obra para apresentação em concerto
contribuíram com informações para uma investigação estilística, 63 utilizada como
instrumento para responder às seguintes perguntas:
- Quais os elementos da técnica dodecafônica presentes no Choro para viola e
orquestra e como são utilizados?
- Qual a relação de seu uso com o papel da viola solista?

1. O Choro para Viola e Orquestra: aspectos gerais


O Choro para Viola e Orquestra, composto em 1975, foi dedicado ao violista norte-
americano Raphael Hillyer, que o estreou no mesmo ano à frente da Brooklyn
Philarmonic Orchestra. Acerca do termo “choro”, é interessante notar que, segundo
Guarnieri (1975a), “a palavra Choro não foi usada em sua acepção popular [...]. Choro
está substituindo concerto. O compositor preferiu Choro porque a mensagem ou melhor
a linguagem musical é nacional, própria do autor, e com raízes na terra”.
O Choro foi escrito para orquestra de grandes dimensões - oito primeiros
violinos, oito segundos violinos, seis violas, quatro violoncelos, quatro contrabaixos,
duas flautas, dois oboés, dois clarinetes, dois fagotes, dois trompetes, flautim, corne
inglês, três trompas, três trombones, tuba, tímpanos, harpa, xilofone, vibrafone e outros
instrumentos de percussão.
Constituído de três movimentos, Enérgico, Tristemente e Bem Ritmado, o Choro
apresenta características consideradas típicas de Guarnieri,64 como:
(a) opção por estruturação formal clara, com o predomínio de formas ternárias,
presentes nos três movimentos;
(b) emprego de material derivado da cultura popular brasileira, no segundo e
terceiro movimentos;

62
Sonata para Viola e Piano (1950), Trio para Violino, Viola e Violoncelo (1931),
Quartetos de Cordas no 1 (1932), no 2 (1944) e no 3 (1962), além de Angústia (1976), para quarteto de
cordas.
63
A referida investigação estilística baseou-se em Style and Music: theory, history and
ideology, de Leonard B. Meyer (1996), mais especificamente nos capítulos Toward a Theory of Style e
Style Analysis. Meyer, além de fornecer ampla fundamentação teórica, propõe modelo de análise
estilística em que se busca, a partir de traços estilísticos de uma determinada obra, estabelecer conexões
entre esses traços por meio de elaboração e verificação de hipóteses. Foram empregados como fonte de
dados, além da partitura (GUARNIERI, 1975a), que possui breve explanação do próprio compositor a
respeito da obra, registros sonoros de apresentações do Choro (GUARNIERI, 1975b, 2012).
64
Cf. RODRIGUES, 2001a, p. 22-54.
278
(c) presença de intenso pensamento contrapontístico, que se manifesta em
elaborados desenvolvimentos temáticos;
(d) uso de ostinati;
(e) uso de sonoridades ricas em dissonâncias, em escrita que, apesar de
apresentar referências tonais, resiste a abordagens de análises harmônicas tradicionais.
Desde o primeiro contato com a obra, chamaram a atenção, porém, itens menos
frequentes na produção de Guarnieri, como:
(a) emprego de técnica serial;
(b) riqueza de saltos de sétimas na parte da viola solista, em vez de linha
caracterizada por predomínio de intervalos menos amplos, como os de segundas e
terças, que predominam em escrita para viola de obras como o trio e o duo para viola e
piano.
Também despertou interesse o emprego de escrita contrastante na cadência.
É quase somente no primeiro movimento, Enérgico, que se encontra material
dodecafônico,65 e, por esse fato, este trabalho irá deter-se nesse movimento.

2. Estruturação formal do primeiro movimento


Pode-se afirmar que a estruturação formal do primeiro movimento do Choro para Viola
e Orquestra seja característica de Guarnieri, por sua clareza e opção por forma ternária
ABA’- coda.
Segue-se esquema da estruturação formal do primeiro movimento (Fig. 1,
próxima página).

S P C
EÇÕES ARTES OMPASSOS
i 1
ntrodução -14
P 1
RIMEIRA PARTE 5-37
t 3
ransição 8-41
S 4
A
EGUNDA PARTE 2-54
t 5
ransição 5-61
T 6
ERCEIRA PARTE 2-77
c 7
odeta 8-81

65
Encontra-se o emprego de material dodecafônico na coda do terceiro
movimento.
279
( 8
B
CADÊNCIA) 2-98
i 9
ntrodução 9-104
A P 1
’ RIMEIRA PARTE 05-116
S 1
EGUNDA PARTE 17-128
C 1
oda 29-137
Figura 1. Esquema da estruturação formal do primeiro movimento do Choro
para Viola e Orquestra.
A seção A é dividida em três partes. Inicia-se com uma introdução de 14
compassos executados pela orquestra, que expõe material que será utilizado no decorrer
do movimento. Nos quatro primeiros compassos, é apresentado o que será denominado,
nesta investigação, “motivo principal”, que é reapresentado do compasso 7 ao 10. Nos
compassos 3 e 4, assim como do compasso 8 ao 10, observam-se, na parte das cordas,
respostas em caráter marcato. Como coloca Rodrigues (2001b, p. 497), são eventos
cujas notas guardam entre si relações tonais ou politonais, maneira de trabalhar, nas
seções A e A’, material composicional de natureza não temática, como certos ostinati,
ou outras ocorrências com função rítmica e/ou harmônica (Fig. 2).

280
Figura 2. Primeiro movimento, compassos 1 a 10. Apresentações do motivo
principal e repostas das cordas.

281
O motivo principal é originado de uma série dodecafônica, que, para fins de
entendimento da estruturação formal do primeiro movimento, será denominada “tema”
(Fig. 3).

Figura 3. Motivo principal e tema do primeiro movimento.

Nas partes das madeiras, o tema é apresentado na introdução, porém interpolado


pela citada reapresentação, nos compassos 7 a 10, do motivo principal meio tom abaixo
(Fig. 4).

Figura 4. Primeiro movimento, compassos 1 a 11, partes das madeiras.

282
O tema é apresentado pela primeira vez integralmente e sem interrupção a partir
do compasso 15, na entrada da viola solista (Fig. 5).

Figura 5. Primeiro movimento, compassos 15 a 20. Entrada da viola solista.

Após transição de quatro compassos, nos quais o motivo principal é trabalhado


em cânone por trompetes e trombones, inicia-se, no compasso 42, a segunda parte da
seção A. O tema, transposto quinta acima, é reapresentado e, novamente, desenvolvido
pela viola solista. As linhas dos instrumentos de madeira são elaboradas por meio de
pensamento contrapontístico (Fig. 6).

Figura 6. Primeiro movimento, compassos 42 a 50. Início da segunda parte da


primeira seção.
Na terceira parte, iniciada no compasso 62, após curta transição (compassos 55 a
61) em que clarinetes e oboés desenvolvem material temático alterado ritmicamente,
uma linha melódica derivada do tema é apresentada juntamente com elaborado processo

283
imitativo. A seção A é terminada por trecho de 4 compassos, uma codeta, trabalhado a
partir do motivo principal.
A seção B (compassos 82 a 98) corresponde à cadência do concerto, que é
tratada de modo que pode ser considerado típico do gênero concerto para solista e
orquestra, já que o solista executa parte caracterizada por escrita que busca oferecer
desafios técnicos para o instrumentista. Encontram-se na seção B: (a) atributos
comumente associados à tradição da viola consolidada durante o Romantismo musical,
como referências tonais claras, que favorecem execução caracterizada pelo uso do
aspecto dinâmica e agógica, visando à elaboração de linhas melódicas em caráter
cantábile e a imprimir atmosfera de lirismo; (b) escrita rica em elementos idiomáticos
da viola, como o uso abundante de cordas soltas e dos registros médios e graves do
instrumento, 66 além de predomínio dos golpes de arco legato e detaché.
A seção A’ (compassos 99 a 128) é iniciada por seis compassos de caráter
introdutório (novamente com emprego do motivo principal), após o que, ocorrem duas
entradas do tema, com respectivos desenvolvimentos, configurando trechos que podem
ser entendidos como primeira e segunda parte dessa seção. A primeira entrada do tema
ocorre na parte da viola solista (compasso 105); a segunda entrada, em transposição
uma quinta acima, nas partes do flautim, clarinetes, trompetes e primeiros violinos no
compasso 117, com acréscimo das flautas e oboés no compasso 125. A partir do
compasso 117, a linha da viola solista é elaborada por meio de contraponto em tercinas,
passagem que oferece extrema dificuldade para o solista no que concerne ao aspecto
projeção sonora. É importante observar que a instrumentação densa da peça não
favorece o equilíbrio entre a orquestra e a viola solista, o que, não somente nessa
passagem, impõe ao solista constantemente a necessidade de explorar os limites da
capacidade de obtenção de intensidade de som. Associado a esse aspecto, nas seções A e
A’, a escrita da linha da viola solista caracteriza-se pelo emprego de dinâmica forte e
fortíssimo em registro agudo e sobreagudo do instrumento, acentos e indicações de
caráter como “enérgico” e “marcato”, além de riqueza de uso de dissonâncias, o que
resulta em sonoridade que marcou o desenvolvimento da viola no século passado e
contribuiu para consolidar identidade própria do instrumento. 67
A coda, iniciada no compasso 129, expõe pela última vez elementos temáticos e
termina em uníssono orquestral, em que se executa a nota "Mi", primeira nota da série
principal empregada para formar o tema, após sucessão de acordes elaborado com por
meio de ciclo de quintas. Pode-se dizer, assim, que o movimento tem Mi como foco
tonal.
É interessante notar a alternância entre trechos com função de introdução,
transição ou arremate, em que se apresenta o motivo principal, e trechos mais longos,
denominados “partes” nesta investigação, em que se apresenta e se desenvolve o tema.
O motivo principal é empregado como uma espécie de refrão 68, que pontua o
movimento, sendo, assim, elemento essencial na estruturação formal.

66
Neste estudo os registros são entendidos como segue: (a) grave: dó3 – si3; (b) médio:
dó4 (dó central) – si4; (c) agudo: dó5 – si5; e (d) sobreagudo: de dó6 em diante.
67
Trata-se de sonoridade que pode ser descrita como áspera, que difere marcantemente de
sonoridades associadas a técnicas instrumentais consolidadas durante o Romantismo musical, as quais se
relacionam diretamente ao conceito de beleza de som (cf. KUBALA e BIAGGI, 2012).
68
284
3. A manipulação da série no decorrer do primeiro movimento
No primeiro movimento do Choro, uma única série dodecafônica (série principal, ou
“P0”) é empregada. A série principal forma, com suas derivações (inversões e
retrogradações e transposições), a seguinte matriz:

Figura 7. Matriz dodecafônica empregada no primeiro movimento do Choro


para Viola e Orquestra.

Seguindo padrão de estruturação formal das seções A e A’ (explanado acima), o


compositor, em trechos com função de introdução, transição ou arremate, emprega
material originado da série principal, que é apresentada e desenvolvida somente nos
trechos restantes. Um desses trechos, encontra-se no exemplo que se segue (Fig. 8),
passagem que pode ser entendida como a primeira frase da linha da viola solista. Nela, o
compositor emprega de modo quase estrito material originado da série principal e suas
derivações. Observa-se o emprego da série principal, seguida de sua retrogradação com
pequena alteração, da série principal com duas notas alteradas e, novamente, da
retrogradação, dessa vez com maior número de alterações.

Cf. GUARNIERI, 1975a.


285
Figura 8. Primeiro movimento, compassos 15-25. Tema apresentado e
desenvolvido pela viola solista, com indicação das séries. Notas alteradas da
série são indicadas por “X”.

A frase acima inicia-se com sequência de intervalos ascendentes de sétimas


maiores e trítonos, cuja manipulação, ao criar linhas melódicas de contornos
acentuadamente angulosos, contribui para a criação de sonoridade peculiar. O uso
preponderante, que pode ser observado na mesma passagem, de sétimas maiores, se
comparado com o uso de segundas menores, evidencia preferência por essa sonoridade,
que permeia o movimento. Em trechos da linha viola derivadas da série principal, o uso
das sétimas impõe dificuldade maior ao instrumentista, devido ao maior número de
mudanças de posição que esse tipo de intervalo determina.
Após os 11 compassos, durante os quais o tema é desenvolvido pela viola solista
em sua primeira frase, essa linha, agora mediante uso livre da série, continua a ser
elaborada, enquanto a série principal é apresentada pelas flautas e clarinetes, transposta
uma quinta acima (P7).
Verifica-se, então, no decorrer das seções A e A’ padrão em que, de modo geral,
a série e suas derivações, usadas estritamente ou com alterações69, integralmente ou
truncadas, são apresentadas em sequência e separadamente, isto é, em uma determinada
linha de cada vez. Esse padrão é modificado somente em momentos em que ocorre uso
de processo imitativo, como nos compassos 38 a 41 (transição), 42 a 49 (ver Fig. 6,
acima) e 78 a 80 (codeta). Na tabela abaixo encontram-se os usos da série na seção A.

69
Alterações que incluem a inversão da sequência 7 – 8 – 9 por 9 – 8 – 7,
por exemplo, nos compassos 21-23, 32-34, 48-50, 68-70 e 76-77 (ver Tabela 1).
286
Tabela 1. Emprego da série dodecafônica na seção A do 1º movimento do
Choro para Viola e Orquestra. Alterações nas séries são indicadas por “X”;
notas com função de elisão entre uma série e outra estão entre parênteses.

Na seção B, a cadência, não se utiliza a série dodecafônica. No entanto, é utilizado


material derivado dela, como as sétimas maiores e trítonos. Isso pode ser observado
logo nos primeiros quatro compassos (Fig. 9):

Figura 9. Primeiro movimento, início da cadência, compassos 82 a 85.

4. Considerações finais
A técnica dodecafônica é utilizada quase que exclusivamente no primeiro movimento do
Choro para Viola e Orquestra. É utilizada uma única série e suas derivações
(transposições e retrogradações e inversões) a partir das quais origina-se material
estruturador de elementos temáticos.
A série principal e suas derivações são encadeadas, de maneira que constituem
uma espécie de linha elaborada que flui continuamente, permeando o primeiro

287
movimento em suas partes A, A’ e coda. Essa forma de lidar com o material
dodecafônico colabora, assim, para imprimir unidade à estruturação do material
composicional. Esse fluxo é interrompido pela cadência, que, apesar de não ser
elaborada por meio de técnica dodecafônica, apresenta material intervalar que faz
referência à série principal.
A técnica dodecafônica não é utilizada de forma rigorosa; suas notas são
alteradas na construção melódica (notas da série trocadas entre si, notas ocultas ou notas
diferentes da série original) e, várias vezes, apenas trechos da série são utilizados. Essa
liberdade na manipulação das normas do dodecafonismo seria típica de composições
brasileiras que fazem o uso dessa técnica.70
A viola solista participa ativamente do movimento contínuo de material
dodecafônico nas seções A e A’, desempenhando, assim, papel fundamental na
estruturação formal da obra. A escrita encontrada nas seções A e A’ conduz o intérprete
a realizar sonoridade que difere marcantemente daquela, a que, por meio de escrita que
remete à tradição romântica dos instrumentos de cordas, o solista pode realizar durante a
seção B (cadência). Assim, na seção B, caracterizada entre outras pela liberdade
inerente à cadência em um concerto para solista em orquestra, a viola tem a
oportunidade de elaborar atmosfera que contraste com o restante do movimento, opondo
sonoridades que remetam o ouvinte à tradição romântica àquelas associadas a
linguagens desenvolvidas no século XX.

Referências
GUARNIERI, M. C. “Carta Aberta aos músicos e críticos do Brasil”. O Estado de São
Paulo, São Paulo, 17 nov. 1950. Disponível em: <http://www.acervo.estado.com.br>
Acesso em: 30 jun. 2014.
______. “Chôro” para viola e orquestra. São Paulo: cópia heliográfica a partir de
manuscrito, 1975 (a). 1 partitura (54 p.) e parte de viola solo (12 p.).
______. Choro para viola e orquestra. New York, 1975 (b). Fita magnética.
______. Choro para viola e orquestra. In: Brazilan Concert Music: Camargo Guarnieri
- 4 Choros e Abertura Festiva. Disponível em:
<http://musicabrconcerto.blogspot.com.br/2012/05/camarago-guarnieri-4-choros-e-
abertura.html> Acesso em: 01 mar. 2013.
KUBALA, R. L. ; BIAGGI, E. L. de. “A viola e seus sons: exploração de aspectos
expressivos no Concerto para viola e orquestra de Antônio Borges-Cunha”. Opus:
Revista da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música –
ANNPOM, Porto Alegre, v. 18, n. 2, p. 89-110, 2012.
MEYER, Leonard B. Style and Music: theory, history and ideology. Chicago:
University of Chicago, 1996. 376 p.
NEVES, J. M. Música contemporânea brasileira. 1 ed. São Paulo: Ricordi Brasileira,
1981, 200 p.
RODRIGUES, L. As características da linguagem musical de Camargo Guarnieri em
suas sinfonias. 2001. 148 f. Dissertação (Mestrado em Música) - Instituto de Artes,
Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2001 (a).

70
Cf. NEVES, 1981, p. 93.
288
______. “Outros concertos”. In: SILVA, Flávio (Org.). Camargo Guarnieri: o tempo e a
música. Rio de Janeiro: FUNARTE; São Paulo: Imprensa Oficial de São Paulo, 2001
(b), p. 479-500.

289
Domingos Lima: uma historiografia do Mago do violão
João de Deus V. de Oliveira1
1
Curso de Música – Universidade Federal do Amazonas (UFAM) Manaus, AM – Brasil
joaodesantocristo10@gmail.com

Resumo. Este trabalho retrata a trajetória artística de um grande nome da cultura


amazonense: o violonista Domingos Lima (1926 - 1995) que exerceu concomitante as funções
de compositor, violonista e professor de violão. Este trabalho tem como principal objetivo
proporcionar um maior conhecimento da obra de Domingos como também de sua trajetória
artística musical. Domingos Lima teve atuação significativa no cenário musical manauense
com maior destaque na década de 60, com seu conjunto que levava seu nome.
Abstract. This work portrays the artistic career of a great name of Amazonian culture: the
guitarist Dominic Lima (1926 - 1995) who served concurrent functions songwriter, guitarist
and guitar teacher. This work aims to provide a greater understanding of the work of
Domingos Lima but also his artistic musical career. Domingos Lima had a significant role in
manauense music scene with more prominence in the 60s, with his whole bearing his name.

1. Introdução
A pesquisa documental em música sistemática teve início no século XIX e, no Brasil,
inicia com Curt Lange que nas primeiras décadas do século XX realizou trabalhos
importantes na área da pesquisa documental, sobretudo, em Minas Gerais.
De acordo com Belloto (Apud Cotta, 1991) documento pode ser qualquer
espécie de elemento, seja gráfico ou plástico e produzido por diversas razões.
Documento é qualquer elemento gráfico, iconográfico, plástico ou
fônico pelo qual o homem se expressa [...], enfim tudo o que seja
produzido por razões funcionais, jurídicas, científicas, técnicas,
culturas ou artísticas pela atividade humana (BELLOTTO apud Cotta,
2006,pág. 19).
Desta forma, os documentos musicais também são de qualquer espécie: seja
iconográfico como as iconografias musicais no Teatro Amazonas, seja um vinil, um
papel com assinatura de músico ou uma partitura velha encontrada numa caixa, entre
outros, pois existem vária formas como o artista pode se expressar.
Cotta (2006) questiona como é tratada a Arquivologia Musical. Primeiramente,
como conceitos e técnicas que relacionados à arquivologia tradicional associam
documentos musicais que podem ser manuscritos, impressos, discos e até cartas. Sotuyo
(2006) classifica como documentos musicais os seguintes:
Gênero documental integrado por documentos que se caracterizam por
conter informação codificada através de notação musical,
independentemente do processo de produção, de registro ou fixação, e
de reprodução ou realização. Exemplos de documentos musicais:
partituras, partes (vocais e/ou instrumentais), livros de coro, cartinas,
etc. (SUTOYO)
Cotta (2006) acrescenta que em determinado contexto o próprio instrumento
musical pode ser considerado uma espécie de documento. Diante de tais definições e
tendo como bases, documentos que provam ou informam sobre a carreira de Domingos
Lima, descreveremos a seguir sua trajetória.
2. Domingos Lima - Violonista

290
Domingos Lima começou a tocar violão muito cedo, com doze anos. Apesar de no
início não ser muito incentivado por sua mãe, que assim como outras pessoas na época,
achava que ser violonista era coisa de boêmio.
Domingos Lima aprendeu seus primeiros acordes com sua irmã Enésia de Lima
Dias que era professora deste instrumento na época. Daí em diante não parou mais.
Aprendeu tocar também cavaquinho e foi tocando esse instrumento que organizou
juntamente com Enésia, no violão, e outra irmã, América Dias Cardoso, na voz, um trio
denominado Irmãos Lima.Em 1939 trio começou a tocar na primeira estação de Rádio
de Manaus, a Voz da Baricéia.
No dia 24 de Novembro de 1948 participou da inauguração da Rádio Difusora
do Amazonas, fundada pelo o jornalista José Cláudio de Souza onde tocou no programa
Sua manhã de domingo e na Crônica do Dia.
Enquanto no Rio de Janeiro, atuavam os conjuntos como Demônios da Garoa,
Namorado das Estrelas, Domingos Lima funda o primeiro conjunto de Manaus,
denominado Bando Azul, no final da década de 50, composto por seis rapazes que
fizeram muito sucesso nas rádios da capital baré. Na década de 60, Domingos Lima fez
parte do Regional Mariauá, onde tocou durante dezenove anos nos castings das rádios
de Manaus. Na década de 60 criou a Orquestra Domingos Lima e tocavam repertório
que incluía as músicas daquela época, que segundo Adelson Santos (1983) era o
seguinte: “O tempo era de boleros, mambos, chá-chá-chás, samba canção,
fox,tango,etc” (Jornal A Notícia de 1983). Tocava também Bossa Nova, e assim como
os demais músicos de Manaus, aprendeu esse novo ritmo por intermédio do rádio, como
aponta Afonso:
Em Manaus, a Bossa Nova começa a ser escutada pela Rádio Nacional
e os cantores começam a aprender as músicas para cantar nos
programas de Rádio em Manaus, enquanto isso os jovens estavam
aprendendo a tocar Bossa Nova em seu violão comprado no comércio
da Zona Franca de Manaus. (AFONSO, 2012)
Em entrevista ao Jornal A Notícia, Domingos Lima, fala deste contato com a
Bossa Nova. Como mostra figura 2.

Figura 1: Domingos Lima e seu conjunto (Domingos Lima, último à direita).


Fonte: Acervo pessoal de Jorge Cardoso

291
Figura 2: Entrevista de Domingos Lima no Jornal A Notícia. Fonte: Jornal A
Notícia, 6 nov. 1983.

Com esta Orquestra, Domingos Lima (Fig. 1) se apresentava em vários eventos


pela cidade: no Clube Rio Negro, Clube Olimpo, Sheik Clube, Riama. Tocou 12 anos no
Shangri-la Na figura a seguir mostra uma da Orquestra Domingos Lima.
Era também conhecido como o Mago do violão. Título este que uns atribuem a
sua qualidade de extrair um bom som do violão: Como reforça Afonso Toscano (2014):
Ah, isso aí é a questão da técnica. Ele era muito bom! Sabia
harmonizar muito bem. E era uma coisas diferentes. Me surpreendia,
cada vez ele tocava de um jeito. Então ele tinha uma coisa interessante
que era o ouvido absoluto. Então era aquele negócio, ele nunca tinha
ouvido a música. Nunca ouviu a música. Às vezes o cara dizia: “Toca
aí um Dó maior”. Ele ia acompanhando, prestando atenção na
harmonia. Rapaz, quando voltava a música pra primeira parte, ele já
sabia, saía trabalhando em cima da música. Interessante isso aí. E a
técnica dele. Ele tocava com o polegar, fazia a pestana inversa, por
trás do cabo, por cima do cabo. Ele tinha a mão grande. O dedão dele
prensava e não tinha negócio. Muito bom! Não trasteava a corda.
Tirava o som puro, limpo. Muito bom! O cara nasceu praquilo mesmo
(Entrevista: Afonso Toscano)
E também pela sua notoriedade de como era requisitado para tocar na capital
amazonense, além de ser o precursor a tocar violão elétrico em Manaus.
Domingos Lima e seu conjunto eram tão importantes para a cidade
que uma vez o Ideal Clube suspendeu uma festa porque Domingos não
podia tocar por estar doente.
A primeira guitarra elétrica a chegar em Manaus pertenceu a
Domingos. Marca Gianinni modelo tipo GIBSON que sua irmã
mandara do Rio de janeiro. (SANTOS, Jornal A Notícia, 1983)

292
Sua renomada carreira como violonista lhe proporcionou que tocasse também no
Teatro Amazonas, uma vez com seu conjunto, na “Semana da Juta”, evento que reuniu
empresários de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo e outra situação acompanhou
Joaquim Marinho. Em 1969 tocou com sua irmã Enésia . Em 1985 ele volta ao
principal cartão postal fundado durante Belle Époque, o Teatro Amazonas, desta vez
para fazer o show com Guto Rodrigues, intitulado O Preto e o Vermelho. Na Tv
Educativa, atual Fundação Rádio e Televisão Domingos Lima tocou desde 1982 até
1994.
2.1. Domingos Lima - Compositor
Fã de Nelson Gonçalves, Jamelão, Cartola e tantos nomes de cantores de sucesso e
também influenciado pelo o rádio, Domingos Lima certamente levaria tal carga que
estariam presente em suas composições.
Descobriu o gosto pela composição ainda criança, quando escrevia alguns versos
na escola e percebeu sua tendência para compor. Parece que Domingos Lima era um
daqueles compositores que tinha coesão no que diz respeito à vida e obra. Era um
compositor que compunha com sentimentos, segundo ele mesmo afirmava:
Sou aquele compositor que escreve o que sente. Dificilmente eu me
sento para fazer uma música. Mas se eu sinto alguma coisa, como um
caso amoroso, um problema qualquer. Aquilo me flui com facilidade.
E assim eu tenho feito muitas músicas. (vídeo Domingos Lima na
intimidade. Manaus, 1990, parte 1, 3min.)
Suas músicas foram compostas sempre com uma espontaneidade sentimental
que lhe vinha no momento. A seguir vamos mostrar as canções catalogadas e como
foram compostas, ou seja, o que inspirou Domingos Lima a fazer as composições.
Coração indeciso foi sem dúvida a música mais conhecida e até hoje é ouvida e
reconhecida por quem conheceu o trabalho de Domingos Lima. Gravada primeiramente
pelo Seresteiro da Rádio, Gonçalves e posteriormente Abílio Farias, sendo na voz de
Abílio Farias que a canção rompeu as fronteiras do estado do Amazonas e ficou
conhecida no norte e nordeste do país. A canção, não foge aos sentimentos do
compositor e retrata um dilema de sua vida amorosa: uma paixão por duas mulheres.
Como confessa o próprio compositor:
Eu tinha realmente duas criaturas que eu gostava. Um dia, uma quis
resolver a questão. Não queria ser mais a outra. Então, me prensou na
parede e disse: “olha Domingos, você tem que se decidir, ou eu ou a
outra porque não dar pra ser as duas.” Eu fiquei pra dar uma resposta.
Vim pra casa. Numa noite, naquelas noites que a gente passa com a
cabeça no travesseiro e não dorme, aí eu fui e deitei numa rede.
Naquele tempo eu também fumava e entre uma baforada e outra
nasceu coração indeciso. (Vídeo Domingos Lima na Intimidade 1
parte 6;00 min.)
Além de Coração indeciso, outras três canções (Aviso prévio, Engano e Amor
impossível) de Domingos Lima foram gravadas por Abílio Farias. Outras duas canções
(Volta e Bebo por amor) foram gravadas por Kátia Maria e Aquino, respectivamente.
Domingos Lima compôs mais de 150 canções.
2.2. Domingos Lima – Professor de violão
O ensino do violão em Manaus na década de 1960 não era tão comum, cabendo mais
espaço ao ensino de instrumentos como piano. A trajetória de Domingos Lima como
professor de violão começa bem cedo. Irlanda Dias mesmo sem precisar data, estima:
Eu não sei te dizer exatamente. Mas meu pai começou a tocar com
doze anos de idade e desde que eu me entendi como gente, ele já era
professor de violão e até em ele falecer em 1995, ele ainda atuava
293
como professor de violão. (Entrevista: Irlandia Dias da Costa Bento da
Silva)
O cantor e compositor Afonso Toscano relembra o período que conheceu
Domingos Lima como professor:
Eu lembro que desde que entendo por gente que ele já lecionava. Eu
como frequentava a casa dele diariamente. Sempre acompanhei isso.
Acho que na década de 60, início de 60 ele já lecionava. Lecionava em
casa e lecionava na casa do cliente. O cara pagava um pouquinho
mais, que era a condução dele. E ele além de ter o trabalho dele, o
trabalho principal que era telegrafista dos Correios. (Entrevista:
Afonso Toscano)
Na coluna Ta qui pra ti, de autoria do professor José Ribamar Bessa Freire,
intitulada Betão e os pássaros azuis publicada em 2 de setembro de 2007 no jornal
Diário do Amazonas, Bessa informa sobre a escola de violão que o pai do violonista
Roberto Gomes de Sá, conhecido como Betão o matriculou: “Seu Antônio decidiu,
então, matriculá-lo na escola da violão de Domingos Lima, lá no beco do Macedo.
Estava definida ali sua vocação.”. Ainda na coluna, o depoimento de Betão descreve o
que obteve como aluno de violão com Domingos Lima: “Com meu mestre, Domingos
Lima aprendi ser um harmonizador o que serviu para o resto de minha vida de músico.”
Além ensinar em sua casa localizada no Beco do Macedo, quando mais jovem o
Mago do violão também ia ministrar suas aula na casa do interessado em aprender o
instrumento. Raimundo Nonato da Silva Pinheiro comenta que estudou com Domingos
Lima:
[...]ele ia na minha casa, ele morava perto do cemitério e eu morava no
D. Pedro, ele ia de ônibus pra lá, me dava aula, hoje eu olhando é
fantástico, não vejo isso mais, o aluno tem que se deslocar, tem que ter
carro, ele não, era batalhador. (Entrevista; Raimundo Nonato da Silva
Pinheiro)
Segundo o professor de Música da Universidade Federal do Amazonas, Renato
Brandão que foi aluno de Domingos Lima, a metodologia de Domingos Lima era a
seguinte:
As aulas ocorriam no pátio da sua casa. As cadeiras eram distribuídas
em círculos e cada uma delas já ficava disposta um violão, para cada
cadeira, um violão. E todos já estavam afinados na mesma altura.
Utilizava o sistema de tablatura e cifras (explicação em anexo). Sua
metodologia ocorria por imitação onde ele tocava e depois o aluno e
não era rigoroso, buscava mais sentimento na música. (Entrevista:
Renato Brandão)
As aulas eram feitas na sua própria casa ou na casa do aluno, era um ensino
coletivo de violão a sua maneira de ensinar como explicou Brandão acima.
O professor de violão Domingos Lima adotava o uso também de um carimbo
onde carimbava o desenho do braço do violão e fazia os acordes que o aluno não sabia
ou apresentava maior dificuldade. Pinheiro (2013) que estudou com ele no ano de 1978
a 1982 tem a seguinte percepção de como era a metodologia de Domingos Lima:
[...]as músicas que eu queria aprender ele colocava as cifras pra mim
com a letra dele, assinava, e tinha um lance que ele usava um carimbo
pra facilitar, ele colocava o carimbo com a nota predominante naquela
música, e o braço do violão qual a era a posição do dedo, isso
facilitava a compreensão quando ele não tava perto, era só olhar.
(Entrevista: Raimundo Nonato da Silva Pinheiro)

294
A metodologia de Domingos Lima ajudava o aluno a compreender mais rápido
os acordes do violão, utilizando-se de um carimbo com uma imagem do braço do
violão, assim facilitava o estudo do aluno individualmente dentro de suas limitações e
permitia que o aluno pudesse aprender em casa.
A figura a seguir, mostra o recurso (o carimbo) (Fig. 3) que era utilizado pelo
professor Domingos Lima que estava no caderno de música de Raimundo Nonato da
Silva Pinheiro, ex aluno de Domingos Lima.

Figura 3: Carimbo do braço do violão (utilizado para desenhar acordes) Fonte:


Acervo pessoal de Raimundo Nonato da Silva Pinheiro.

Fazia parte da sua metodologia também as cifragens das letras de músicas e


algumas dessas músicas eram passadas para os alunos por Domingos Lima e outras por
solicitação dos próprios alunos. O sistema de tablatura também era adotado por ele. A
música Adelita do violonista Tárrega fazia parte do repertório de ensino de Domingos
Lima.
3. Considerações finais
Com sua vida dedicada à música, Domingos Lima foi uma figura conhecida no
cenário musical de Manaus, e contribuindo como muitos músicos que puderam usufruir
de seu conhecimento musical, conhecimento este que se deu por imitação e por meio de
sua percepção auditiva, por meio de rádios, altos falante de cinema e aos LP’s. No meio
musical atuou desde cedo, tendo as rádios como primeiros lugar de atuação musical e lá
tocou por mais de vinte anos. Este trabalho, descreve um pouco da história de um
músico completo, pois compunha canções, tocava violão e teve muitos aprendizes que
foi seus alunos e hoje atual no meio musical da cidade Manaus, para isto, recorremos à
arquivologia geral e a arquivologia musical que nos proporcionou uma noção de
reconhecimento de como lidar com documentos, arquivos, principalmente os com
valores relacionados à música

295
Para melhor, descrever trajetória do Mago do violão buscamos informações por
meio de entrevistas com pessoas que conviveram com ele, onde foi possível saber
muitas informações, além de permitir um acesso a documentos (fotos, cadernos, vídeos)
que reforçaram e ajudaram no contexto da trajetória. Tivemos também acesso ás notas
de jornais, que também reforçam com informações e comprovações a atuação deste
artista.
Com base nestas informações foi possível observar vários aspectos do
compositor, violonista e professor.
Domingos Lima sempre se identificou com a composição e assim seguiu
compondo durante toda sua vida, como podemos constatar neste trabalho, onde aponta
para sua primeira composição (Linda Alzira) e para a última (pelo menos em termo de
registro) que foi Retrato colorido em 1984. Constata-se que o compositor sempre
compôs inspirado em suas vivências amorosas como, resultando em canções
relacionadas a temática do amor. Teve o privilégio de ainda em vida ver seis de suas
canções serem gravada por cantores de sucesso no estado, dentre eles Abílio Farias e
Kátia Maria.
Foi possível compreender sua carreira como violonista que teve seu auge na
década de 1960, sendo o primeiro a tocar guitarra elétrica na capital do Amazonas. Com
Domingos Lima e seu conjunto atuava na noite manauara tocando em festas de
casamento, aniversários, clubes, e até no Teatro Amazonas, com repertório versátil,
típico de quem toca na noite, nesta mesma época chegou a acompanhar cantores
nacionais que vinha cantar em Manaus. Ao mesmo tempo preenchia uma lacuna no
ensino de violão em Manaus, visto que naquela época não era tão comum o ensino deste
instrumento. Na década de 1980 tocava uma vez por semana no Carrossel da Saudada
da Tv Educativa, e já aposentado da função de radiotelegrafista se dedicou quase que
exclusivamente ao ensino de violão, até o ano de sua morte, em 1995, onde tinha um
grande número alunos.
O acervo musical de Domingos Lima, reduzido aqui neste artigo, serve portanto,
para novas e futuras investigações, seja ela nos aspectos composicional das letras de
suas canções, seja na análise de sua harmonia ou sua atuação como professor entre os
fatores.
Portanto, o trabalho aqui exposto vem para preencher algumas lacunas histórico-
musicais na cidade de Manaus e contribuir com a arquivologia musical.

Referências
AFONSO, Lucyanne de Melo. “A Bossa Nova em Manaus na década de 1960”. In:
XXII Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música,
(22), 2012, João Pessoas. Anais. João Pessoa: Anppom, 2012. 23-30.
__________, Lucyanne de Melo. “O mago do violão”, Jornal do Commércio, p. 7,
2014
__________, Lucyanne de Melo (2012). “As inter-relações socioculturais na vida
musical em Manaus na década de 1960”. Dissertação de mestrado do Curso de Pós-
Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas:
Manaus.
__________, Lucyanne de Melo. Manaus, 2014 Disponível em:
http://lucyanneafonso.blogspot.com.br/2014/01/o-mago-do-violao-domingos-
lima.html Quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

296
BELLOTTO, Heloísa Liberalli (1991). “Arquivos permanentes: tratamento
documental”. São Paulo: T.A. Queiroz.
Carrossel da Saudade. Manaus . Tv Educativa. 1984. Programa de TV.
COTTA, André Guerra; BLANCO, Pablo Sotuyo (2006). “Arquivologia e Patrimônio
Musical”. Salvador: Edufba.
Domingos Lima na intimidade. Manaus, Produção independente da família de
Domingos, 1990.
O VIOLONISTA QUE QUANTO MAIS VELHO FICA, MAIS APURA SUA ARTE.
Jornal A Notícia, 06 nov. 1983.

Entrevistas
BRANDÃO, Renato. Sobre Domingos Lima. Manaus, 11 de Outubro de 2013.
Entrevista concedida a João de Deus Vieira de Oliveira
CARDOSO, Jorge. Sobre Domingos Lima. Rio de Janeiro, 20 de Janeiro de 2014.
Entrevista concedida via email a João de Deus Vieira de Oliveira.
MELO, Afonso Toscano de. Sobre Domingos Lima. Manaus, 02 de Janeiro de 2014.
Entrevista concedida a João de Deus Vieira de Oliveira.
SILVA, Irlanda da Costa Dias Bento da. Sobre Domingos Lima. Manaus, 14 de
dezembro de 2013. Entrevista concedida a João de Deus Vieira de Oliveira
PINHEIRO, Raimundo Nonato da Silva. Sobre Domingos Lima. Manaus, 30 de
novembro de 2013. Registro sobre Domingos Lima. Entrevista concedida a João de
Deus Vieira de Oliveira.

297
Interação texto e música na canção A Chácara do Chico
Bolacha de Ernst Mahle
Eliana Asano Ramos, Maria José Dias Carrasqueira de Moraes
1
Departamento de Música – Programa de Pós-graduação em Música – Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP) – Campinas, SP – Brasil
eliana_asano@hotmail.com, regiamusica@ig.com.br

Resumo. O principal objetivo desta comunicação é apresentar resultados parciais de uma


pesquisa de doutorado em andamento através de uma análise da canção A Chácara do Chico
Bolacha do compositor brasileiro Ernst Mahle (1929) com poema de Cecília Meireles (1901-
1964). O processo de análise é baseado em Stein e Spillman (1996). A análise musical é
baseada em Kostka (2006), Straus (1990) e Persichetti (1961). O foco está na interação texto,
música e aspectos interpretativos. Resultados finais mostram maneiras de interação entre
música e texto e também oferecem subsídios para uma performance da canção.
Financiamento FAPESP.
Abstract. The main objective of this paper is to present partial results of an ongoing doctoral
research through an analysis of the song A Chácara do Chico Bolacha by Brazilian composer
Ernst Mahle (1929) with poem by Cecília Meireles (1901-1964). The analysis process is based
on Stein and Spillman (1996). The music analysis is based on Kostka (2006), Straus (1990),
and Persichetti (1961). It focuses on the interaction of text, music, and interpretative aspects.
Final results show ways of interaction between music and text and also offer subsidies for a
performance of the song. Supported by FAPESP.

1. Introdução
Esta comunicação é parte de uma pesquisa de doutorado em andamento, em práticas
interpretativas, cujo objetivo principal é uma investigação da escrita pianística nas
canções do compositor brasileiro Ernst Mahle. O objetivo principal desta é apresentar
resultados parciais através de uma análise da canção A Chácara do Chico Bolacha,
escrita para voz aguda e piano sobre texto de Cecília Meireles (1901-1964), datada de
2009.
Naturalizado brasileiro desde 1962, Ernst Mahle nasceu em Stuttgart, na
Alemanha, em 1929, e está no Brasil desde 1951. Na Alemanha, estudou harmonia e
contraponto com Johann Nepomuk David (1895-1987); no Brasil, foi aluno e assistente
de Hans-Joachim Koellreutter (1915-2005), com quem tomou contato com o
atonalismo, o dodecafonismo, o concretismo e a música eletrônica. Retornou à Europa
por algumas vezes, tendo aulas de composição com Ernst Krenek (1900-1991), Olivier
Messiaen (1908-1992) e Wolfgang Fortner (1907-1987). Ao longo dos anos, foi
utilizando com menos freqüência as técnicas de vanguarda e incorporando elementos do
folclore, especialmente o brasileiro. Sua vasta obra abrange mais de duas mil
composições para vários instrumentos e formações, incluindo peças originais e arranjos
sobre melodias e temas folclóricos de diferentes países, sobretudo brasileiros. As
canções ocupam um lugar de destaque dentro do conjunto da obra do compositor: são
vinte e seis composições para voz solista e piano sobre texto profano, distribuídas ao
longo de todo o seu período composicional (a primeira canção é datada de 1961 e a
última é de 2014). Os textos são em português e quase todos os autores são brasileiros,
incluindo Cecília Meireles (1901-1964), Mário Quintana (1906-1994), Carlos
Drummond de Andrade (1902-1987), Manuel Bandeira (1886-1968), Vinicius de
Moraes (1913-1980), Ribeiro Couto (1898-1963) e Guilherme de Almeida (1890-1969).
Apenas duas canções compõem texto do português Fernando Pessoa (1888-1935).

298
O processo de análise da canção tem fundamento em Stein e Spillman (1996),
cujo modelo proposto para a análise dos Lieder tem o foco na interação texto, música e
aspectos interpretativos. A análise musical tem base em Kostka (2006), Straus (1990) e
Persichetti (1961). Visto que o objetivo final da pesquisa de doutorado é a performance
das canções, as quais serão registrados em CD anexo à tese, o processo de análise
consiste no stágio preparatório à performance das canções e tem o enfoque em
elementos que influenciam diretamente na performance final da obra.

2. A canção
A canção compõe texto homônimo de Cecília Meireles (1901-1964). No Catálogo de
Obras (2011), constam as seguintes versões da canção: para voz aguda e piano, datada
de 2009; para quinteto de soprano/tenor, flauta, violino, violoncelo e piano, datada de
1992; para três vozes e piano, datada de 1982; para três vozes iguais sem
acompanhamento, datada de 1981; para trio de soprano, flauta e violão, datada de 1974
(parte de "Duas Peças"); e para trio de canto, violino e piano, sem data de composição.
A versão utilizada para esta análise é a mais atual, escrita para voz aguda e piano e
datada de 2009, a qual é composta de três partes principais, articuladas, principalmente,
por um refrão na linha vocal. A música é cêntrica, mas não há funcionalidade ou
condução de vozes tradicional. São apresentadas escalas pentatônicas, modais,
octatônicas e cromática. A melodia é apresentada pela linha vocal e a parte do piano tem
uma textura semi-contrapontística, incluindo fragmentos melódicos de implicação
motívica e alguns discretos dobramentos da linha vocal. O poema em sua versão
original é apresentado a seguir.

A chácara do Chico Bolacha

Na chácara do Chico Bolacha,


o que se procura
nunca se acha!

Quando chove muito,


o Chico brinca de barco,
porque a chácara vira charco.

Quando não chove nada,


Chico trabalha com a enxada
e logo de machuca
e fica de mão inchada.

Por isso, com o Chico Bolacha,


o que se procura
nunca se acha.

Dizem que a chácara do Chico


só tem mesmo chuchu
e um cachorrinho coxo
que se chama Caxambu.

Outras coisas, ninguém procure,


porque não acha.
Coitado do Chico Bolacha!

299
No poema, há uma persona (o narrador, o qual pode representar a voz do próprio
poeta) e um modo de endereçamento (o leitor ou próprio poeta, em um momento
introspectivo). O narrador fala sobre o solitário e distraído Chico Bolacha, que vive em
uma chácara com seu cãozinho, e porque ele não trabalha muito, só tem chuchu naquele
lugar. O texto sugere que o Chico Bolacha, na verdade, gosta de brincar e não de
trabalhar, por isso, na fazenda dele, nada se pode achar. Alguns aspectos da poesia do
Romantismo descritos por Stein e Spillman (1996) podem ser reconhecidos no texto,
como retrato poético da vida diária de pessoas comuns (um chacareiro), solidão (vive
com um cãozinho), desejo por alguma coisa (não acha o que procura), condição da
existência diária (as dificuldades e monotonia do cotidiano), conflito (indecisão, não
sabe o que faz) e ironia (um chacareiro que não tem o que comer). Em uma análise mais
profunda, pode-se deduzir que os sentimentos descritos como sendo do Chico Bolacha
podem, na verdade, indicar sentimentos íntimos da persona, que por sua vez, podem
representar os conflitos íntimos do próprio poeta.
A canção pode ser dividida em três seções: seção I (compassos 1-49), seção II
(compassos 49-66) e seção III (compassos 66-78). As seções são articuladas,
principalmente, pelo retorno de um refrão na linha vocal, cuja primeira ocorrência é
mostrada nos compassos 10-14 do exemplo 1. A divisão realça a progressão poética,
cujo ponto culminante está no compasso 47 (o qual pode ser conferido no exemplo 6).

Exemplo 1: compassos 9-16.


Dois motivos recorrentes e importantes ao longo da música são apresentados na
introdução do piano: o tricorde (016), motivo 1, que aparece no compasso 1, e o
tetracorde (0247), motivo 2, que aparece nos compassos 7-8. O motivo 1 é marcado por
uma sonoridade mais ríspida devido aos intervalos de trítono e semitom, enquanto o
motivo 2 possui uma sonoridade mais flutuante e imprecisa, devido à ausência dos
mesmos intervalos. O motivo 1 é parte de uma coleção octatônica, enquanto o motivo 2
é parte de uma coleção pentatônica. De acordo com Kostka (2006), a coleção octatônica
sugere conflito de centros, enquanto a coleção pentatônica sugere ambiguidade e
flutuação devido à ausência de semitons e trítonos. Os dois motivos aparecem em ambas
as partes; entretanto o motivo 1 é mais comum na parte do piano, enquanto o motivo 2
aparece com mais frequência na linha vocal. O exemplo 2 mostra a saturação do motivo

300
2 na parte do piano, o que pode indicar os conflitos íntimos do chacareiro, os quais são
intensificados nas partes solo do piano.

Exemplo 2: compassos 1-8.

Outro elemento recorrente aparece pela primeira vez na linha vocal dos
compassos 12-13: o tetracorde (01369), formado pelas notas Dó-Ré-Mib-Fá#-Lá, as
quais podem ser parte de uma coleção diatônica e ou octatônica, cuja ênfase pode ser
Ré, Lá ou Sol. A primeira ocorrência pode ser vista no exemplo 1 e indica transição
entre as coleções.
A música tem o Dó como centro referencial, embora outros centros sejam
sugeridos ao longo da música. Em geral, os centros são sugeridos por asserção:
reiteração, localização formal, pontos pedais, arpejos e, principalmente, por saltos de
quintas lembrando o movimento tonal dominante-tônica, como mostra o exemplo 3, no
qual é possível ver Lá como centro referencial.

Exemplo 3: compassos 22-25.

Coleções octatônica, cromática e diatônica (incluindo coleções pentatônicas e


modais) podem ser reconhecidas na música. As coleções octatônicas são as mais
recorrentes ao longo da música, principalmente onde há concentração de motivo 1, ou
seja, nas partes solo do piano. No exemplo 1, os três primeiros compassos
correspondem à octatônica Dó-Dó#.
As diatônicas sugerem ambiguidade: na linha vocal dos compassos 52-53,
exemplo 4, o Fá# aparece formando um trítono com o Dó, enfatizando Sol, o qual não
aparece. A impressão é a linha vocal tenta alcançar algo, mas não consegue. A
impressão no ouvinte é de flutuação ou ausência de foco, sentimentos que podem ser
relacionados aos conflitos íntimos da persona.

301
Exemplo 4: compassos 50-54.

Outra coleção recorrente é a pentatônica, a qual sugere momentos de flutuação e


imprecisão. A pentatônica em Sol aparece na linha vocal dos compassos 35-37 e 55-57
(exemplo 5). Straus (1990) considera a coleção pentatônica parte de uma diatônica;
entretanto, optou-se aqui por abordar a coleção individualmente, considerando a sua
recorrência e ênfase. Segundo Kostka (2006) e Straus (1990), devido à ausência de
semitons e trítonos em uma coleção pentatônica, o estabelecimento de um centro
referencial é impreciso. Em geral, os centros são sugeridos por asserção, mas a
impressão é de ambiguidade e imprecisão.

Exemplo 5: compassos 55-58.

Nos compassos 42-48, todas as doze notas da escala cromática aparecem


delineando subconjuntos octatônicos. Os compassos 42-45 (somente o primeiro tempo)
são octatônica Dó-Ré, enquanto os compassos 45 (somente segundo tempo) ao 48 são
octatônica Dó#-Ré (exemplo 6). Este é ponto clímax da canção, onde a tensão
harmônica é aumentada consideravelmente, enfatizada ainda por expansão do registro e
das dinâmicas. Um Dó em uníssono interrompe drasticamente a tensão e anuncia o
início de uma nota seção.

302
Exemplo 6: compassos 42-49.

Os registros são amplos e variados. A linha vocal é predominantemente disjunta


e vai do Ré5 ao Fá#6. A nota mais aguda, Fá#, aparece como um trítono almejando Sol
nas três ocorrências do refrão (mas o Sol não aparece em nenhuma delas). Como dito
anteriormente, a impressão é de frustração, decepção e falta de foco. Em alguns
momentos, a parte do piano ultrapassa o registro da linha vocal, como pode ser visto no
exemplo 2, e a impressão é de que a parte do piano tenta alcançar algo ou está em outro
lugar.
Nas partes solo do piano, a textura mais densa e as dinâmicas mais intensas
sugerem conflitos íntimos da persona, como pode ser visto no exemplo 6. As coleção
octatônicas são mais visíveis na parte do piano que na linha vocal, cuja sonoridade é,
em alguns momentos, quase tonal. A impressão é que a parte do piano sugere
sentimentos e emoções que a persona parece disfarçar ou esconder.
Na parte do piano, a sonoridade é predominantemente acordal nos trechos
diatônicos (com predomínio do motivo 2), enquanto suporte da linha vocal, e não
acordal nos trechos octatônicos (com predomínio do motivo 1), ou seja, nas partes solo.
A exceção ocorre no final da música, exemplo 7, onde a parte do piano suporta a linha
vocal (motivo 2) com uma sonoridade não acordal (motivo 1, semitons, trítonos e
fragmentos cromáticos), lembrando as partes do piano solo, o que pode indicar uma
ênfase nos sentimentos de conflito da persona. Ostinatos na mão esquerda e repetição
de movimentos lembrando dominante-tônica contribuem para a progressão harmônica.

303
Exemplo 7: compassos 73-78.

Pontos pedais na parte do piano são mais recorrentes enquanto o piano suporta a
linha vocal, e a impressão é de um ritmo mais calmo e lento, sentimento que poder ser
relacionado à dúvida e flutuação da persona. Os ostinatos são mais frequentes nas partes
solo do piano e a impressão é de um ritmo harmônico mais agitado e rápido,
sentimentos que podem ser relacionado aos conflitos internos da persona. E na
finalização da canção, a impressão é de que o conflito permanece, visto que dois centros
aparecem competindo no final: o Dó enfatizado pelo arpejo Sol-Dó-Mib (mão esquerda)
e o Sol reforçado no tricorde Dó-Fá#-Sol (mão direita), enfatizados ainda por uma
expansão de registro e dinâmica mais intensa, conforme mostrado no exemplo 7.

3. Conclusão

Os dados resultantes revelam uma profunda preocupação do compositor em conjugar


texto e música e permitem a verificação de características peculiares na escrita do
compositor, as quais também foram constatadas em análises de outras canções do
compositor: processo generativo a partir de transformações de elementos motívicos,
combinação de harmonia tonal, modal e cromatismo, predomínio do tratamento semi-
contrapontístico na condução das vozes, em diversos momentos combinado a processos
de imitação livre. As dissonâncias são, em geral, empregadas em trechos onde a
instabilidade harmônica é desejada em favor da ênfase poética. Os gestos musicais na
parte do piano ajudam a caracterizar a linha vocal, no realce de palavras e rimas, na
ilustração de pensamentos e sentimentos do eu-lírico ou na ilustração de cenas e
situações. Sentimentos de anseio, indecisão, solidão e melancolia são sugeridos por
coleções octatônicas, diatônicas e pentatônicas, enfatizadas por elementos de duração,
registro, alturas e dinâmicas. Mudanças de métrica e centros referenciais imprecisos
produzem momentos de ambiguidade que podem ser diretamente relacionados aos
requisitos poéticos, como indecisão, imprecisão e flutuação. Isso também contribui para
a impressão de desorientação do ouvinte, sentimento que pode ser diretamente
relacionado aos conflitos íntimos da persona, sugeridos no poema. Além disso, a parte
do piano tem uma função importante na música. Além de suportar a linha vocal e
promover a progressão harmônica, ela também ajuda a sugerir emoções e sentimentos
da persona. A linha vocal assume a voz da persona, a qual, por sua vez, pode

304
representar a voz do próprio poeta. Já a parte do piano pode representar conflitos
íntimos da persona, desde sentimentos de melancolia e solidão até dúvida e indecisão.
Em vista dos aspectos observados, é-se levado a acreditar que tanto a forma quanto o
conteúdo do poema são levados em consideração pelo compositor no processo de
criação, podendo-se concluir de imediato que os elementos musicais derivam dos textos,
e não o contrário. Assim sendo, uma vez que o texto é o objeto de preocupação central
do compositor na escrita da canção, a análise das suas canções jamais poderá ignorar
este aspecto.

Referências
KOSTKA, S. (2006) Materials and techniques of twentieth-century music. 3rd ed.
Upper Saddle River: Prentice-Hall.
MAHLE, E. (2011) Catálogo de Obras. Piracicaba: Associação Amigos Mahle.
MAHLE, E. (2009) A Chácara do Chico Bolacha. Piracicaba: Associação Amigos
Mahle. Partitura manuscrita.
MEIRELES, C. (2001) Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, pp. 1489-
1490.
PERSICHETTI, V. (1961) Harmony: Creative Aspects and Practice. New York: W. W.
Norton.
STEIN, D., e SPILLMAN, R. (1996) Poetry into Song: Performance and Analysis of
Song. New York: Oxford University Press.
STRAUS, J. N. (1990) Introduction to post-tonal theory. New Jersey: Prentice-Hall.

305
Os trombones de Sant’Anna Gomes: um estudo sobre a
utilização dos trombones nas composições Valsa Club
Campineiro, Polka sem Fim e Polka Filuta.
Rodrigo A. S. Santos, Helena Jank, Paulo Ronqui
Instituto de Artes – Universidade de Campinas (Unicamp)
Campinas – SP – Brasil
rsbone@gmail.com, helenajank@gmail.com, pauloronqui@uol.com.br
Resumo. A cidade de Campinas viveu na segunda metade do século XIX grandes
transformações culturais, e as bandas civis foram um importante indicador desse cenário. A
ascensão destes grupos alavancou também o uso do trombone, que, nesta época, já utilizava
da tecnologia dos pistões. A proliferação desses instrumentos contribuiu também para
transformações na escrita musical, que foram anotadas por diferentes autores da época. Deste
modo, a observação das composições de Sant’Anna Gomes, um importante ator cultural de
Campinas, apresenta-se como uma importante ferramenta para se estudar a prática do
trombone nessa cidade.
Abstract. The city of Campinas lived great cultural transformations in the second half of the
nineteenth century. The civilian wind bands were an important indicator of this scenario. The
rise of these groups also fostered the use of the trombone which, at this time, already used the
piston technology. The proliferation of these instruments has also contributed to changes in
musical notation, which were noted by different authors of that time. Therefore, the
observation of Sant'Anna Gomes compositions, an important cultural actor from Campinas,
presents itself as an important tool for studying the practice of the trombone in the city of
Campinas.

Introdução

O texto, a seguir, se concentrará na observação do uso dos trombones nas composições


digitalizadas na dissertação José Pedro de Sant’Anna Gomes e a atividade das bandas
de música na Campinas do século XIX de Alexandre José de Abreu (2010). Tal
observação se torna significativa, pois Sant’Anna Gomes foi um dos principais
compositores da cidade de Campinas e, portanto, o seu tratamento do naipe de
trombones se mostra como referencial.
Sant’Anna Gomes exerceu a atividade de composição já em sua maturidade,
porém não foi possível identificar os pormenores sobre o estudo do maestro nessa área.
Embora não haja registros do contato do maestro com os autores dos manuais
selecionados, devemos considerar que sua experiência musical, além do próprio contato
com o irmão, Carlos Gomes e seu pai, Manuel José Gomes, moldaram seus hábitos de
composição.
A composição para banda parece não ter sido o foco do maestro, isso porque,
segundo Abreu (2010), encontramos apenas quatro composições para esta formação no
acervo do museu Carlos Gomes. Os quatro títulos contemplam os gêneros populares:
polcas, valsas e quadrilhas. Entre as quatro peças destacadas por Abreu (2010), apenas
três possuem linhas de trombone e se tornaram alvo desse texto.
A observação realizada pelos autores tem como base teorias de orquestração para
banda, construídas em finais do século XIX e início do século XX pelos autores:
Mandel (1860), Parès (1898) e Gallo (1921). A combinação desses permitirá criar uma
sólida base sobre orquestração e nos ajudará na argumentação sobre o objeto do texto.
Além da utilização dos manuais de orquestração, devemos considerar para a
observação do repertório, também as particularidades da prática do trombone em
Campinas. Deste modo, destacamos que os trombonistas de Campinas eram amadores e
306
alguns, multi-instrumentistas, o que aumenta a possibilidade de que a habilidade com o
instrumento seja restrita. Além disso, devemos lembrar que provavelmente, a grande
maioria dos trombones disponíveis para as bandas da cidade eram os modelos com
pistões, o que incentiva modificações na orquestração, como veremos nos tratados
selecionados.
O trombone de pistões foi uma invenção do século XIX, que se tornou possível
graças à criação do parisiense E. François Perinet (s/d). Os pistões de Perinet
propiciaram ao trombone maior portabilidade e conforto, tanto no manuseio, quanto na
execução. Por isso, os trombones de pistões se tornaram uma constante, inicialmente
nos corpos musicais militares e depois em outros agrupamentos musicais.
1. O Maestro Sant’Anna Gomes
Nascido em 11 de agosto de 1834, filho de Manoel José Gomes, então mestre de capela
da vila de São Carlos (atual Campinas), e Fabiana Maria Jaguary Cardoso (1816/18-
1844), Sant’Anna Gomes se tornou, ao lado de seu irmão, o ilustre compositor
campineiro Antônio Carlos Gomes (1836-1896), uma figura importante no cenário
musical desta pujante cidade que possuía 7.680 habitantes (CAMARGO, 1936 apud
ABREU, 2010).
A música fez parte da vida de Sant’Anna Gomes desde cedo. Segundo Odécio
Camargo, um cronista da época, durante a infância, o futuro maestro se apresentava com
a Banda dirigida por seu pai, tocando clarinete. Suas primeiras lições musicais foram
obtidas em casa, em sessões permeadas com a severidade característica das aulas de
Manoel José Gomes (NOGUEIRA, 1997 apud ABREU, 2010).
Sant’Anna Gomes teve tanto uma variada atuação como compositor, criando
óperas, música instrumental, orquestral, vocal e músicas para banda, como também uma
significativa atuação como regente à frente da orquestra do Teatro São Carlos, composta
por músicos da cidade, que acompanhava as companhias líricas estrangeiras que
visitavam Campinas.
Sant’Anna Gomes era uma pessoa ligada às transformações de sua época e seu
viés empreendedor o incentivou a fundar, em 1873, a loja e oficina de música
Harpeolina, que negociava partituras e instrumentos musicais. Além da loja, Sant’Anna
Gomes foi fundador, em consórcio com o tenor Manuel Diez, da Companhia de
Zarzuelas71, um gênero musical que se apresentou como alternativa à hegemonia da
ópera italiana. Tal empreendimento perdurou entre os anos 1878 e 1880 (NOGUEIRA,
2001).
A herança cultural familiar, deixada por Manoel José Gomes, “Maneco”,
propiciou a João Pedro de Sant’Anna Gomes, seu quinto filho, uma posição de destaque
como um importante produtor e articulador musical na cidade de Campinas, atuando à
frente de orquestras e bandas. Seu viés pedagógico foi se desenvolvendo aos poucos e
atingiu o ápice com a maturidade, coincidindo com a maior parte de suas composições.
Sant’Anna Gomes não obteve o reconhecimento como o do irmão Carlos Gomes, porém
“não eram poucos os que acreditavam que Sant’Anna Gomes fosse até mais talentoso
que Carlos Gomes” (NOGUEIRA, 2001, p. 324).

71
Zarzuela é basicamente um gênero lírico-dramático espanhol que alterna cenas
cantadas e faladas podendo incluir canções e dança. Segundo seu tamanho, a Zarzuela pode ser de dois
tipos a grande, que possui de três a quatro atos, e a chica de menor duração.
307
Sant’Anna Gomes faleceu em 19 de abril de 1908, vitimado de pneumonia
dupla. Seu corpo foi sepultado no cemitério da Saudade e, em seu túmulo, esculpido
pelo artista Marcelino Vélez, foram gravados trechos da melodia Saudade! obra que
escrevera em conjunto com seu irmão Carlos Gomes.

2. Sobre os Manuais de Orquestração e o Trombone


A inclusão dos pistões no trombone foi uma aplicação tecnológica óbvia para a época. A
facilidade de manuseio do sistema de válvulas e a portabilidade do instrumento se
apresentaram como grandes vantagens do novo instrumento, porém a dificuldade de
correção da afinação da série harmônica apareceu como uma desvantagem. A
comparação sonora com o trombone telescópico não tardou a aparecer e as descrições
da época diziam que o trombone telescópico tinha uma sonoridade mais solene e até
mais pura que a do modelo de pistões (EVERETH, 2005). Independentemente das
diferenças, o trombone de pistões ocupou seu espaço no cenário musical, isso também
graças a sua presença nas bandas.
Na cidade de Campinas temos um exemplo do potencial de disseminação da
prática do trombone, pois essa foi palco da formação e dissolução de 27 bandas civis ao
longo da segunda metade do século XIX (NOGUEIRA, 2001). Embora não obrigatória,
a presença do trombone era recorrente, ainda que a dinâmica de constituição desses
grupos não seguisse aos padrões militares.
A composição para esses grupos não era alvo de intensos estudos, porém havia
uma grande produção, principalmente de arranjos. Deste modo, é possível observar
algumas características de composição retratadas nos manuais de orquestração
selecionados.
Guion (2010), descrevendo o tratado de Gabriel Parès (1898), mostrou que a
ideia sobre orquestração de banda presente no texto estava muito ligada às regras
tradicionais aplicadas nas orquestras. Parès dividiu o grupo orquestral em três
possibilidades: orquestra sinfônica, harmonie ou banda de sopros de infantaria, fanfarra
ou banda de metais de cavalaria. Do ponto de vista da instrumentação, o autor ainda
disse que a orquestra é a mais ampla e variada, enquanto a harmonie é “menos perfeita”,
mas leva vantagem (em relação à orquestra) no poder sonoro. A fanfarra é o grupo que
possui maior unidade timbrística entre os citados.
A necessidade de se utilizar um trombone para as linhas de baixo fez Parès
descrever seus grupos com quatro trombones (como um coral masculino). Ele dizia que
a escrita para esse naipe devia seguir as regras da música coral (harmonia completa e
sem a utilização de dissonâncias não preparadas). O autor ainda forneceu observações
acerca da dinâmica, quando apontou que o cuidado com o poder excessivo do naipe de
trombones pode ser menor nas bandas, pois, em geral, as melodias são delegadas aos
saxhorns, possibilitando um agradável equilíbrio (GUION, 2010).
Outro autor utilizado neste texto, Stanislao Gallo (s/d), especificou que os
trombones tenores de pistões são afinados em sib e são instrumentos transpositores de
oitava, cujas partituras são escritas em clave de sol; os trombones baixo são afinados em
fá e utilizam a escrita na clave de fá. Gallo ainda descreveu o trombone de pistões
contrabaixo, afinados em sib, afirmando ser o trombone baixo de Verdi (utilizado em
Otelo e Falstaff).
Gallo dividiu a banda em duas formações básicas: a Banda Sinfônica e a Banda
Militar. Subdividindo as formações, o autor acrescentou ainda mais três divisões:
308
pequeno, médio e grande, baseadas na quantidade de integrantes. A Banda Sinfônica
pode contar com 25, 50 e 75 instrumentistas; a Banda Militar, com 22, 35 e 50
instrumentistas.
Ao descrever o uso dos trombones, o autor sugeriu que a formação básica do
naipe seja com quatro trombones, isso porque o quarto deve realizar as linhas de baixo.
As instruções técnicas sobre o trombone de pistões, fornecidas por Gallo, estão
associadas ao trompete. Nessas, o autor, expôs os problemas que o sistema com três
pistões traz para a execução, já que não se consegue corrigir de maneira adequada os
desvios naturais de afinação da série harmônica.
Charles Mandel (1800-1899) descreveu, em seu tratado de 1859, o trombone de
pistões de forma semelhante aos outros autores citados. No entanto, segundo o autor, a
estreita tessitura utilizada pelos compositores (entre as notas mi 1 e fá 3) é a principal
responsável pela dominação dos trombone tenores. Aparentemente essa não é uma
situação de seu agrado, pois, em seguida, o autor disse que isso prejudica o caráter do
naipe, pois se perde em colorido sonoro.
Diferentemente de Gallo, esse tratado traz apenas informações do que ele
chamou de Military Reed Band (que é semelhante à Banda Sinfônica). Nessa formação,
o autor disse que, para ser efetivo, o naipe de trombones deve utilizar as três vozes (alto,
tenor e baixo). Para buscar novos timbres, Mandel afirmou que alguns músicos utilizam,
na voz de alto, um trombone tenor de menor calibre, para tornar a voz aguda mais clara.
No entanto, o autor destacou sua preferência por utilizar trombones tenores com
diferentes afinações, utilizando um trombone 1 em dó ou réb; um trombone 2 em Bb e
um trombone 3, um tenor-baixo dobrado por um trombone baixo. Desse modo, Mandel
tratou o naipe de modo semelhante ao feito nas orquestras, podendo utilizar o trombone
tenor como solista em substituição ao baryton ou baixo.
De posse das informações apresentadas, podemos extrapolar os conceitos dos
autores citados e observar diferentes repertórios pautados por esses parâmetros. Embora
não haja indicios de que Sant’Anna Gomes tenha estudado esses autores, é possível
notar técnicas de orquestração pertinentes aos conceitos apresentados anteriormente.
3. As três composições do maestro Sant’Anna Gomes
As três composições que este texto se dedica a observar foram digitalizadas e estão
disponíveis na dissertação de Abreu (2010). Tais digitalizações foram baseadas nos
manuscritos presentes no arquivo do Museu Carlos Gomes em Campinas. As obras são
de um período de maturidade do compositor, assim como boa parte de seu opus, onde
também encontramos peças com características pedagógicas, provavelmente pela
intensa atividade, nesse campo, exercida por Sant’Anna Gomes (ABREU, 2010).
A escolha pelos títulos a seguir, foi baseada no acesso às peças, na variedade da
constituição do naipe de trombones e também na instrumentação do grupo. As
composições analisadas são: a Valsa Club Campineiro, que possui uma instrumentação
composta por: requinta, 2 clarinetos, 2 sax, 2 piston, 2 trombones, bombardino, bombo e
baixo; a Polka sem Fim que conta com uma instrumentação semelhante à Valsa Club
Campineiro tendo requinta, clarineto, 3 sax, piston, 3 trombones, bombardon e bombo;
e a Polka Filuta que apresenta maior instrumentação, contando com, ottavino (flautim
em italiano), requinta, 3 clarineto, 3 sax, 2 piston, 3 trombones, bombardon, baixo e
bombo.
Em uma breve observação na instrumentação, notamos primeiramente que essas
formações se diferenciam das formações militares encontradas nos decretos brasileiros
do século XIX, não incluindo trompa, mas sim, os saxes. Assim como Abreu (2010),

309
optamos, neste texto, por manter a nomenclatura original contida nos manuscritos para
não cometer injustiças históricas.
Valsa Club Campineiro
A valsa foi a dança de salão mais popular do século XIX, atingindo toda a Europa, a
partir de 1830. Sob o vulto de músicos como Joseph Lanner (1801-1843) e Johann
Strauss I (1804 -1849), fica indissociavelmente ligada a Viena. Foi também em Viena
que os filhos de Johann Strauss I, (Johann Strauss II [1825-1899] e Josef [1827-1870])
aprimoraram o estilo, levando a valsa, por volta de 1860, ao seu auge como forma de
dança.
O aparecimento dessa forma entre as composições para banda de Sant’Anna
Gomes não é uma surpresa, pois além da forte presença do estilo musical na sociedade
brasileira, a adaptação do repertório orquestral para os grupos de sopro era uma prática
comum, para que o repertório fosse ouvido também fora das salas dos teatros.
A Valsa Club Campineiro foi composta em 1900, em homenagem ao clube que
funcionava como sociedade musical abrigando bailes, recitais, festas e, até mesmo,
eventos de cunho abolicionista tais como, concertos beneficentes para alforria de
escravos.
O manuscrito original da Valsa Club Campineiro consiste de uma partitura com
28 páginas (grade de orquestra) e partes individuais de: requinta, primeiros e segundos
saxes, segundo clarinete, primeiros e segundos piston, primeiros e segundos trombones,
bombardino, baixo (provavelmente tuba), bombo (apenas assinalado na grade). Além
disso, há uma versão da obra feita pelo próprio compositor para trio de cordas e piano
(violinos, cello e piano) em tonalidade diferente da original, com as partes individuais
dos instrumentos (ABREU, 2010).
Os trombones seguem um padrão diferenciado quando comparado aos
observados nos naipes observados, pois existem apenas duas vozes. Nessa composição,
notamos que até o compasso 16 o trombone 1 faz intervenções esparsas dobrando a
linha de bombardino, que é responsável pelo contracanto. O trombone 2,
diferentemente, faz suas intervenções associado ao baixo, quebrando a ideia de naipe de
trombones fechado em si e delegando ao trombone 1 um papel de associação com o solo
e ao trombone 2 as linhas de baixo (Figura 2), enquanto a melodia se desenvolve nos
clarinetos e piston.

310
Figura 2: Trecho de Valsa Club Campineiro, exemplificando a diferença das
linhas de trombone (ABREU, 2010).

A partir do compasso 17 (figura 3) até o compasso 128, os dois trombones se


unem em um bloco com os saxes, realizando uma resposta rítmica nos tempos 2 e 3 da
valsa, em contraposição aos tempos fortes estabelecidos pelo baixo.

Figura 3: Trecho de Valsa Club Campineiro, exemplificando a diferença das


linhas de trombone (ABREU, 2010).

Em um pequeno interlúdio, entre os compassos 129 e 145, em que o tom passa


de fá maior para dó maior, e o trombone 1 (associado ao bombardino e ao baixo) lidera
a melodia, conduzindo com as colcheias um trecho movido (Figura 4). O trombone 2
novamente aparece associado ao naipe de sax, realizando uma linha de suporte da
melodia.

311
Figura 4: Trecho de Valsa Club Campineiro, exemplificando a diferença das
linhas de trombone (ABREU, 2010).
O trecho que segue volta ao tom inicial e constrói um diálogo protagonizado
pela requinta, clarineto 1 e piston 1; e apoiado pelo trombone 1, usando notas longas
(Figura 5). O trombone 2 exerce, neste trecho, uma função rítmica, construindo
novamente um bloco com os saxes, clarineto 2 e piston 2.

Figura 5: Trecho de Valsa Club Campineiro, exemplificando a diferença


das linhas de trombone (ABREU, 2010).
Polca sem Fim

312
A polca, dança de origem polonesa é “talvez a mais popular de todas, tem ritmo binário
e andamento moderado, é composta de uma introdução que prepara a entrada do tema e,
uma coda que serve de conclusão a toda a peça” (ABREU, 2010).
A polca de Sant’Anna Gomes não parece ser autógrafo do maestro, pois uma
nota nas partes indica o copista, Francisco Braz da Silva, e a data da cópia como
outubro de 1899 (ABREU, 2010).
A partitura da peça apresenta 11 páginas de partes individuais dos instrumentos
(não havendo a partitura do regente), e está composta dos seguintes instrumentos:
requinta, clarineto, sax (um, dois e três), piston, trombone (um, dois e três) bombardon
e bombo. A peça é estruturada em si bemol maior, e é dividida em quatro partes
distintas: uma introdução, duas seções e uma coda.

Figura 6: Introdução Polka sem Fim (ABREU, 2010).

A introdução (Figura 6) mostra um agrupamento dos trombones em forma de


naipe, atuando ritmicamente de forma semelhante até o compasso 8 e proporcionando
um sólido apoio para a melodia. A partir daí, o naipe de trombones, juntamente com os
saxes, limita-se a realizar o papel de acompanhamento rítmico (Figura 7), contrapondo
as marcações do bombardon, enquanto a textura de melodia se desenvolve com a
requinta e o piston.

Figura 7: Ritmo característico da Polka sem Fim (ABREU, 2010)

Polka Filuta

313
O manuscrito original dessa obra consta de uma partitura de orquestra de 13 páginas
(não foram encontradas as partes individuais de cada instrumento), e, das obras
abordadas neste trabalho, é a única que se encontra danificada, contudo, o dano não
chega a prejudicar totalmente a edição, pois deixa entrever as partes perdidas que muitas
vezes são dobramentos de vozes (ABREU, 2010).
A instrumentação utilizada não difere muito das outras peças, podendo ser visto
os instrumentos: ottavino72, requinta, clarineto (um, dois e três), sax (um dois e três),
piston (um e dois), trombone (um, dois e três), bombardon, baixo e bombo.
A polca, que se segue, divide-se em quatro seções distintas. A primeira seção
mantém a tonalidade principal (si bemol maior), e se estende do compasso oito ao vinte
e três. O material temático é exposto pelo ottavino, requinta e clarineto com algumas
passagens do piston e bombardon (ABREU, 2010).

Figura 8: Trecho do acompanhamento predominante da peça


(ABREU, 2010).

Os trombones, de modo semelhante ao tratamento recebido na Polca sem Fim,


realizam um papel rítmico associado ao naipe de saxes (Figura 8). Ainda que o naipe
seja trabalhado nos moldes sugeridos pelos teóricos selecionados, essa é uma função
não retratada por estes. A exceção aparece na introdução (Figura 9), em que todos
realizam uma figura homofônica, criando uma orquestração mais volumosa para o inicio
da peça.

72
Palavra em italiano para o Flautim. O maestro se vale do italiano como em clarineto a
seguir (clarinete); assim como outras designações estrangeiras como em piston e bombardon para
trompete e eufônio.
314
Figura 9: Introdução Polka Filuta (ABREU, 2010)
4. Conclusão
O presente texto observa o uso dos trombones nas composições de Sant’Anna Gomes
para banda. Tomamos como base para a observação três autores representantes da
literatura sobre a orquestração para bandas, a saber: Mandel (1860), Parès (1898) e
Gallo (1921). Destes extraímos que há uma preferência por um naipe com três vozes,
para que os trombones auxiliem na sustentação da harmonia.
Contrariando as expectativas, a primeira composição observada, a Valsa Club
Campineiro, apresentou apenas dois trombones em sua instrumentação. Fato curioso,
pois a sugestão comum é que o naipe contenha três vozes. Após nossa observação,
podemos dizer que tal característica se deve ao fato de que os trombones não são
tratados como um naipe, mas sim como parte de outros naipes, sendo associados
primeiramente ao bombardino e ao baixo, e posteriormente, aos saxes.
Essa diferenciação é, provavelmente, a principal causa do estreitamento da
tessitura que ocorre a partir do compasso 17, onde as linhas não passam de um ré 3.
Essa característica vai ao encontro dos apontamentos de Mandel (1860) ao relatar o uso
do trombone.
As Polka sem Fim e Polka Filuta apresentam três trombones em sua
instrumentação, que são utilizados basicamente para marcação rítmica. Em ambas as
composições, no entanto, notamos o uso do trombone em bloco, com tessitura que varia
entre o fá1 e o fá 3.
Após observarmos as três composições para banda de Sant’Anna Gomes,
podemos dizer que houve uma preferência pela utilização rítmica do naipe de
trombones, fato não assinalado nos tratados da época. Explicações possíveis para isso
podem residir na habilidade dos instrumentistas, na qualidade dos instrumentos ou ainda
no próprio gosto do compositor. O fato é que o naipe de trombones possui um papel
secundário nessas composições do maestro Sant’Anna Gomes e isso pode ser um
indicador para futuras pesquisas sobre prática do trombone na cidade de Campinas e
também nestes agrupamentos musicais.

315
Referências
ABREU, Alexandre José de (2010). José Pedro de Sant’Anna Gomes e a atividade das
bandas de música na Campinas do século XIX. 252f. Dissertação de mestrado em
Música pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas, Campinas-SP.
EVERETT, Micah Paul (2005). The return to the Slide from the Valve Trombone by late
Nineteenth and Early twentieth-century Trombonists including Arthur pryor (1870-
1942). 114f. Dissertation for the degree Doctor of Musical Arts (University of North
Carolina). Greensboro.
GALLO, Stanislao (1921). Gallo’s Band Book: a treatise on wind instruments,
symphony band and military band – part 1. Boston: The Boston Music Company.
GUION, David M. (2010). A History of the Trombone. Scarecrow Press, Inc.
HERBERT, Trevor (2006). The Trombone. Yale: Yale University Press.
MANDEL, Charles (1860). Treatise on the Instrumentation of Military Bands:
describing the character and proper employment of every musical instrument used in
reed bands. Londres: Boosey and Sons (s/d).
National Music Museum. Elements of Brass Instrument Construction. Disponível em:
<http://orgs.usd.edu/nmm/UtleyPages/Utleyfaq/EarlyStoelzel.jpg>. Acesso em: 14
abr. 2014.
NOGUEIRA, Lenita Waldige Mendes (2001). Música em Campinas nos últimos anos
do Império. Campinas: Editora da Unicamp, CMU.
PATEO, Maria Luiza de Freitas Duarte do (1997). Música e Cotidiano Urbano.
Dissertação de mestrado pela Universidade Estadual de Campinas, Campinas.

316
Performance Musical

317
A Educação Musical como forma de Intervenção com alunos
com dificuldade de aprendizagem do Projeto Violino e Viola
em Grupo
Áureo Déo DeFreitas Júnior, Letícia Silva e Silva, João Paulo dos Santos Nobre,
Danihellen Prince Siqueira, Ana Beatriz Malheiros, Jonatas Araujo
Programa de Pós-Graduação em Artes – Universidade Federal do Pará (UFPA)
Av. Magalhães Barata, 611 - 66.060-281 – Belém – PA – Brasil

defreitasaureo@gmail.com, lethitiasilva@gmail.com,
joaopaulonobre@gmail.com, danihellensiqueira@yahoo.com.br,
beamalheiros@gmail.com, jonatasbuck@hotmail.com

Resumo. O Programa Cordas da Amazônia (PCA) da Escola de Música da Universidade


Federal do Pará (EMUFPA) e suas subdivisões, Divisão de Inclusão Social (DIS) e Núcleo de
Atendimento a Pessoas com Necessidades Específicas (NAPNE) promove uma inovação de
linguagem por intermédio do aprendizado musical visando: (a) a inclusão social de alunos
interessados no aprendizado por intermédio do violino e viola e (b) a iniciação científica de
estudantes dos cursos de graduação e pós-graduação de Instituições de Ensino Superior. O
PCA consiste em um trabalho de natureza acadêmica, multidisciplinar, desenvolvido nos
bairros do Benguí, na cidade de Belém do Pará. Pelo fato de promover uma inovação de
linguagem por intermédio do aprendizado musical, o programa vem ganhando
reconhecimento ao utilizar a música como forma de inclusão social de crianças, adolescentes
e adultos interessados no aprendizado do violino e viola. Foram selecionados estudantes de
diversas origens sociais, étnicas, e culturais, acima de cinco anos de idade e por ordem de
chegada interessados no ensino musical. Participaram do programa crianças e adolescentes
típicas com dificuldades de aprendizagem. Foram inscritos, obrigatoriamente, 109 alunos
provenientes da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Cidade de Emaús (EEEFM-
CE), localizada no Bairro do Bengui, e com baixo Índice de Desenvolvimento da Educação
Básica (IDEB). Participaram do programa dois Grupos de Pesquisa: (a) Transtornos do
Desenvolvimento e Dificuldades de Aprendizagem e (b) Programa Cordas da Amazônia:
Cordas Friccionadas. As intervenções musicais aconteceram na EEEFM-CE. Como resultado
prático, os coordenadores do PCA coordenaram 109 estudantes de violino e viola, 02
professores da EEEFM-CE, 22 pesquisadores e alunos de iniciação científica, 07 palestras e
uma mini-especialização.
Abstract. The Amazon String Program (ASP) at the School of Music of University Federal of
Pará (SMUFPA) and its subdivisions, Division of Social Inclusion (DSI) and the Center for
Assistance to People with Special Needs (CAPSN) promote an innovation of language through
musical learning in order to: (a) social inclusion of students interested in learning the violin
and viola, and (b) the scientific initiation of undergraduate students coming from higher
education institutions. The ASP consists of a work of scholarly, multidisciplinary nature,
developed in the Bengui neighborhoods in the city of Belém of Pará. Because it is promoting
innovation through the musical language learning, the program has gained recognition due to
the using of music as a way to social inclusion of children, adolescents and adults interested in
learning the violin and viola. Students from diverse social, ethnic, and cultural backgrounds,
above five years of age and in order of arrival interested in learning music were selected.
There were 109 children and adolescents with typical learning difficulties participating in the
study. Students enrolled were mandatorily from State Elementary and Middle School - City of
Emaus (S.E.M.S-EC), located in the neighborhood of Bengui, and with a low Index
Development of Basic Education (IDBE). Participated in the program two research groups:
(a) Developmental Disorders and Learning Disabilities and (b) Amazon String Program:
stringed instrument. The musical performances took place at S.E.M.S-E.C. As a practical
result, the coordinators coordinated at ASP 109 violin and viola students, 02 teachers from
EEEFM-EC, 22 researchers and undergraduate students, 07 lectures and a mini-expertise.

318
1. Introdução
O termo inclusão social de pessoas com/sem necessidades específicas vem sendo
amplamente discutido na última década. Ações pedagógicas, psicopedagógicas,
psicológicas e musicais inclusivas predominantemente no âmbito da Escola de Música
da UFPA vêm sendo implementadas com vistas a atender as exigências sociais
(ALBUQUERQUE, T. 2013; DEFREITAS e Col. 2014; NOBRE & DEFREITAS 2009;
PAIVA, A. 2013; CASTRO, J. 2014).
Ferreira (2005) afirma que existe um consenso entre estudiosos de que inclusão
não faz referência apenas a alunos com deficiências, mas a todos aqueles que sofrem
alguma forma de exclusão educacional, dentro ou fora das salas de aula. Ferreira (2005)
afirma que inclusão implica em celebrar a diversidade humana, respeitando as
diferenças individuais. Incluem-se aí tanto pessoas que apresentam algum tipo de
transtornos do desenvolvimento (problemas crônicos) e que apresentam dificuldade de
aprendizagem (problemas culturais e econômicos).
Nesse sentido, o processo de inclusão educacional deve atender a três pilares: (a)
alunos que estão à margem das instituições educacionais por diferenças culturais ou
econômicos, (b) alunos que apresentem algum tipo de transtorno do desenvolvimento ou
dificuldades de aprendizagem, e (c) professores e alunos pesquisadores envolvidos em
cursos técnicos, tecnológicos, graduação e pós-graduação que precisam desenvolver
novas estratégias de ensino para atender pessoas com os transtornos do
desenvolvimento e dificuldades de aprendizagem.
A obrigatoriedade da inclusão de disciplinas com cunhos musicais na educação
básica é prevista na Lei n°. 11.769. Sendo assim, o debate sobre inclusão educacional de
pessoas com os transtornos do desenvolvimento e dificuldades de aprendizagem deve
ser levado também para as instituições de educação musical; visto que, a capacitação
docente e discente acontece nestas instituições. Nestas instituições musicais, cito, cursos
técnicos, tecnológicos, graduação e pós-graduação, profissionais de educação musical
são formados por intermédio da teoria e prática.
As escolas públicas e privadas de forma geral, possivelmente, ignoram muitas
questões relativas ao ensino da música. A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) prevê o
ensino das artes como componente curricular obrigatório em todos os níveis da
educação básica (Brasil, 1996, art. 26). Mesmo assim, esta resolução não tem sido
suficiente para a promoção de mudanças efetivas da educação musical no Brasil.
A Escola de Música da UFPA, por intermédio do Programa Cordas da Amazônia
(PCA), da Divisão de Inclusão Social (DIS) e do Núcleo de Atendimento a Pessoas com
Necessidades Específicas (NAPNE) promove ações para manter o equilíbrio entre a
formação musical e as propostas pedagógicas, psicopedagógicas e psicológicas, para
minimizar a complexa tarefa da inclusão social de pessoas com os transtornos do
desenvolvimento e pessoas com dificuldades de aprendizagem. A inclusão musical
educacional, por intermédio da Lei n°. 11.769, colocou músicos, pedagogos,
psicopedagogos e psicólogos diante de uma gama de realidades. De acordo com
DeFreitas e Col. (2014), Paiva (2013), Albuquerque, T. (2013), e Castro, J. (2014), não
se tem mais turmas homogêneas e sim turmas heterogêneas onde alunos com
diagnósticos de alguma necessidade específica interagem com alunos sem necessidades
específicas.
2. Justificativa
Os pesquisadores da presente pesquisa justificam a execução do projeto por acreditar
que ações de inclusão educacional, precisam ter um viés de atendimento à estudantes e

319
seus familiares, como forma de evitar práticas assistencialistas, construindo uma cultura
de formação profissional, e garantindo o apoio da família a formação do aluno. A
execução deste projeto, também justifica-se pelo fato de poder contribuir com a
qualificação docente e discente de uma escola pública que tem um dos Índices de
Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) mais baixo do Brasil. O projeto
celebrado entre o Programa Novos Talentos da CAPES, Programa Cordas da Amazônia
da UFPA, e a Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Cidade de Emaús pauta-
se no atendimento em educação musical com ênfase no estudo do violino e da viola à
crianças e adolescentes em situação de risco social, promovendo uma educação musical
de qualidade, com o principal propósito de estimular a formação continuada a estes
alunos, traçando o caminho entre o projeto de extensão e a universidade.
3. 1. Objetivo geral
O objetivo dos pesquisadores do Programa Cordas da Amazônia é promover a melhoria
do ensino de ciências da música na Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio
Cidade de Emaús (EEEFM-CE), aproximando (a) os alunos do curso de Licenciatura
Plena em Música da Escola de Música da UFPA, (b) os alunos do Programa de Pós-
Graduação em Artes da UFPA, e (c) os alunos do Programa de Pós-Graduação em
Teoria e Pesquisa do Comportamento da UFPA, para contribuírem e enriquecerem na
formação dos professores e alunos de educação básica.

3. 2. Objetivos específicos
1. Descrever as características dos estudantes de violino e viola da Escola de Ensino
Fundamental e Médio Cidade de Emaús e as práticas instrumental das oficinas musicais.
2. Promover práticas pedagógicas para os técnicos, professores de ensino básico e
familiares das crianças inseridas nas turmas a respeito dos Transtornos do
Desenvolvimento e Dificuldades de Aprendizagem e os benefícios da Educação
Musical.
4. Método
A coordenação do Programa Cordas da Amazônia (PCA) propôs 40 horas para a
execução de cada ação indicada abaixo. O PCA é um trabalho multidisciplinar que
envolve um grupo de 22 pesquisadores provenientes das áreas de música, psicologia,
letras, e pedagogia.
Atividades Extracurriculares
Projeto Violino e Viola em Grupo: criança com Dificuldades de Aprendizagem teve
duas atividades extracurriculares:
1. Palestras destinadas a professores da educação básica: As palestras foram
ministradas por profissionais da área. Os temas abordados foram os Transtornos
do Desenvolvimento e Dificuldades de Aprendizagem.
2. Prática Instrumental das Oficinas Musicais.
Participantes do Programa Novos Talentos Violino e Viola em Grupo
Os estudantes inscritos foram entrevistados e observados por um psicólogo do
Programa Cordas da Amazônia para identificar aqueles que possuíam suspeitas de
Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), Dislexia, Autismo ou
Síndrome de Down. Os estudantes, obrigatoriamente, deveriam está inscritos na Escola
Estadual de Ensino Fundamental e Médio Cidade de Emaús (E.E.E.F.M. - C.E), no
Bairro do Bengui, região metropolitana de Belém.

320
Sala de Aula
Laboratório de Educação Musical da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio
Cidade de Emaús (E.E.E.F.M. - C.E).

5. Resultados
Objetivos Específicos
1. Descrever as características dos estudantes de violino e viola da Escola de Ensino
Fundamental e Médio Cidade de Emaús e as práticas instrumental das oficinas musicais.
Dados sócio-demográficos
Foram inscritos 122 estudantes sem características de risco de algum Transtorno do
Desenvolvimento, sendo que 109 estudantes frequentaram as aulas de música. Todos os
estudantes vieram de diversas origens sociais, étnicas, culturais, e foram inscritos no
programa por ordem de chegada. Cinquenta e sete estudantes na faixa etária de 07 a 10
anos de idade foram inscritos na classe de violino, sendo dois alunos adultos, de 18 anos
de idade, identificados com suspeita de algum transtorno do desenvolvimento.
Cinquenta e dois estudantes na faixa etária 10 a 18 anos de idade foram inscritos na
classe de viola. Foram formadas 3 turmas de Violino em Grupo, cada turma composta
por 23 estudantes, 21 estudantes e 13 estudantes. Foram formadas 3 turmas de Viola em
Grupo, cada turma composta por 17 estudantes, 21 estudantes e 14 estudantes. Dentre os
109 alunos, 56,88% (N=62) eram do gênero masculino e 43,11% (N=47), do gênero
feminino. Quanto à faixa etária desses alunos, 49,54% (N=54) eram crianças e 50,45%
(N=55) eram adolescentes (Tabela 1 e 2).

Variáveis Fa %

Masculino 40 70,17

Gênero Feminino 17 29,82

Total 57 100

Criança 39 68,42

Faixa Etária Adolescente 18 31,57

Total 57 100

Tabela 1. Comparação das características sócio-demográficas dos alunos de


intervenção Musical de violino em grupo

321
Variáveis Fa %

Masculino 22 42,30

Gênero Feminino 30 57,69

Total 52 100

Criança 15 28,84

Faixa Etária Adolescente 37 71,15

Total 52 100

Tabela 2. Comparação das características sócio-demográficas dos alunos de


intervenção Musical de viola em grupo
O PCA é um trabalho multidisciplinar que envolve um grupo de 22
pesquisadores provenientes das áreas de música, psicologia, letras, e pedagogia. Após
varias tentativas de intervenções pedagógicas visando motivar os alunos e orientar
técnicos e professores da E.E.E.F.M. - C.E, a coordenação do PCA estabeleceu uma data
final para dar inicio as aulas de violino e viola. Ocorreram 07 palestras nas
dependências da escola. As duas palestras que deveriam acontecer durante a semana
pedagógica da escola foram canceladas por falta de professores. Como consequência, o
inicio das aulas de violino e viola em grupo, previstas para o dia 31 de março de 2014,
também foram canceladas. Justifica-se o cancelamento do inicio das aulas pelo fato da
coordenação do PCA não ter tido recursos humanos na E.E.E.F.M. - C.E para colaborar
com o inicio das aulas práticas.
Para que houvesse um comprometimento e motivação de professores da
E.E.E.F.M. - C.E com referência ao inicia das aulas de música, a coordenação do PCA
idealizou um Mini Curso de Especialização no Programa de Pós-Graduação em Artes da
UFPA (PPGARTES), com duração de dois meses. No que se refere às intervenções
musicais programadas para alunos com dificuldades de aprendizagem, a semana
inaugural aconteceu finalmente no período de 19 a 22 de Maio de 2014. As aulas
ocorreram no período de 26 de maio a 27 Junho de 2014. Dois monitores sob a
coordenação de um Ph.D. em Educação Musical ministraram aulas quatro vezes na
semana. A duração de cada aula foi de 50 minutos, havendo, portanto, a carga horária
semanal de 200 minutos.
Os estudantes foram musicalizados por meio da vivência lúdica, onde ao mesmo
tempo em que o estudante aprendia a conhecer as notas, figuras musicais, pausas,
ritmos, iniciou-se o ensino do Violino e Viola sem os rigores técnicos importantes. A
técnica instrumental será cobrada posteriormente, respeitando o tempo de aprendizado
de cada estudante. Dois monitores, com matrícula no Curso de Licenciatura Plena em
Música da UFPA foram treinados para ministrarem as aulas práticas em grupo.
2. Promover práticas pedagógicas para os técnicos, professores de ensino básico e
familiares das crianças inseridas nas turmas a respeito dos Transtornos do
Desenvolvimento e Dificuldades de Aprendizagem e os benefícios da Educação
Musical.

322
No que se referem as palestras programadas para os professores da educação
básica, ocorreram no 1º semestre de 2014 quatro palestras. Um Ph.D. em Educação
Musical e 01 doutorando em psicologia comportamental ministraram e coordenaram as
palestras. Uma doutoranda em psicologia, 03 mestrandas em música e 01 professora de
música ministraram as palestras. Uma doutoranda em educação, 10 alunos de graduação
em música, 01 aluno de graduação em letras e dois professores de música, participaram
das palestras. A coordenação da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio
Cidade de Emaús (E.E.E.F.M-C.E) não tem um número exato de técnicos e professores
cadastrados na instituição, mesmo assim, registrou-se a participação de 7 técnicos e
professores nas palestras. A seguir, o cronograma de palestras realizadas na E.E.E.F.M-
C.E:
21.01. Palestra inaugural para professores e técnicos :Apresentação do
projeto (manhã e tarde)
29.01. Palestra para professores e técnicos: TDAH
11.02. Palestra para professores e técnicos: Autismo
18.02. Palestra para professores e técnicos: Dislexia
Houve 02 palestras para os pais dos alunos da Escola Estadual de Ensino
Fundamental e Média Cidade de Emaús (E.E.E.F.M-C.E). Antes do início das palestras
ocorreram apresentações musicais interpretadas pelos estudantes de Licenciatura Plena
em Música e coordenadas por um Ph.D. em Educação Musical. A coordenação do
programa e da escola agendaram a data das inscrições dos alunos da E.E.E.F.M-C.E
interessados no aprendizado do violino ou viola. Durante os três dias de inscrições
aconteceram, novamente, apresentações musicais e palestras.
29.01. Palestra para os Pais - manhã: Resumo dos transtornos
06.06. Apresentação da OVA durante a reunião de pais. Palestra para os pais,
alunos e professores sobre o Projeto Novos Talentos e Projeto Cordas da
Amazônia.
Pelo fato do baixo índice de envolvimento dos professores da E.E.E.F.M-C.E
nas palestras, a coordenação do Programa Cordas da Amazônia, juntamente com a
direção da escola, decidiram agendar duas palestras durante a semana pedagógica da
escola nos dias 25 e 26 do mês de março. Entretanto, as palestras foram canceladas por
falta de comprometimento dos professores da escola beneficiada.
25.03. Semana Pedagógica: Palestras (NÃO HOUVE PRESENTES)
26.03. Semana Pedagógica: Palestras (NÃO HOUVE PRESENTES)
Diante desta falta de comprometimento por parte dos professores da E.E.E.F.M-
C.E, a coordenação do Programa Cordas da Amazônia articulou um Mini Curso de
Especialização, intitulado “Necessidades Especiais: música e inclusão escolar”. O mini
curso aconteceu no Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do
Pará (Tabela 03). Na condição de ministrantes, participaram do mini curso 02
professores doutores do Programa de Pós-graduação em Artes da UFPA (PPGARTES),
03 professores mestres e 01 professor especialista. Na condição discente, participaram
09 alunos da graduação, 03 professores/pesquisadores e 08 professores do bairro do
Bengui, sendo 02 da E.E.E.F.M-C.E. e 06 da República de EMAÚS

323
Dia/Período Tema Palestrante
05/04 - Manhã Áureo DeFreitas
Conhecimento, Ensino e
Aprendizagem em Educação Musical

05/04 - Tarde Áureo DeFreitas/Paulyane


Nascimento
12/04 – Manhã Inglês e Espanhol Instrumental Fabrícia
12/04 - Tarde Fabrícia
19/04 - Semana Santa
26/04 - Manhã Seminários Metodológicos e Sônia Chada
Bibliográficos
26/04 - Tarde Sônia Chada
10/05 - Manhã Dislexia: desafio diagnóstico e estratégias Júlia Radharani

10/05 - Tarde pedagógicas


Júlia Radharani

17/05 – Manhã Transtornos do Espectro do Autismo: Lady Anny Espírito Santo


Conceito, diagnóstico e tratamento -
Lady Ann Espírito Santo / João Paulo Nobre

17/05 – Tarde Lady Anny Espírito Santo

/ João Paulo Nobre

24/05 - Manhã Transtorno de Déficit de Atenção e João Paulo Nobre


Hiperatividade: Conceito, diagnóstico,
24/05 - Tarde epidemiologia, prognóstico e João Paulo Nobre
intervenção pedagógica

Tabela 3. Mini Especialização – Necessidades Especiais: música e inclusão escolar.

6. Conclusão
Na classe de violino, os meninos são maioria em relação as meninas. Quanto à classe de
viola, a diferença entre o número de meninos e meninas não é tão grande. Em relação à
classe de violino, um número relevante de crianças participam da classe. Mesmo assim,
31% são adolescentes, fato bastante intrigante, visto que o violino foi o instrumento
destinado às crianças, apontando desta forma, um possível problema de crescimento
destes estudantes ou atraso escolar. Em uma das turmas de violino, foram identificados
dois adultos com suspeita de algum transtorno do desenvolvimento, indicando a
existência de adultos com atraso escolar inseridos no contexto infantil. Na classe de
viola, 31% dos estudantes inscritos são crianças, sendo que neste caso, a viola foi o
instrumento destinado aos adolescentes, indicando que estas crianças estejam,
possivelmente, em pleno desenvolvimento de crescimento.
No que se referem palestras programadas para os técnicos, professores da
educação básica e familiares dos alunos de violino e viola. A coordenação de ensino da
E.E.E.F.M.-C.E. não tem documentos atualizados que fazem referências à quantidade de

324
professores atuantes na instituição. Sendo assim, possivelmente os técnicos e
professores não foram comunicados a respeito das atividades programadas pela
coordenação do Programa Cordas da Amazônia – Novos Talentos. De acordo com os
relatos dos servidores da secretaria acadêmica, acredita-se que muitos professores
aposentaram-se ou foram remanejados para outras escolas devido ao termino do horário
integral. Existem relatos orais de professores que fazem referências ao alto índice de
assaltos que ocorrem frequentemente na instituição, fazendo com que os professores
optem a não lecionar na escola. O comportamento oral dos técnicos e professores da
E.E.E.F.M.-C.E. pode explicar o baixo Índices de Desenvolvimento da Educação Básica
(IDEB) na escola investigado.
Após análise dos resultados, pesquisadores da presente pesquisa sugerem que
crianças e adolescentes com dificuldades de aprendizagem poderiam melhorar o
processo do aprendizado, e consequentemente, melhorar o IDEB da instituição se
tivessem um quadro docente fixo que pudessem oferecer um ensino contínuo em sala de
aula. Destacamos a importância da participação dos professores durante a Semana
Pedagógica da instituição, visto que esta ação visa o planejamento acadêmico
institucional. Percebeu-se a falta de conhecimento dos professores com referencia aos
transtornos do desenvolvimento e dificuldades de aprendizagem. Isso sugere que
crianças e adolescentes com algum transtorno podem está inseridos no contexto escolar
da E.E.E.F.M.-C.E. corroborando para que os estudantes não aprendam de forma eficaz,
influenciando desta forma, o IDEB da instituição.
Finalizando, devemos investigar e identificar quais os possíveis benefícios da
educação musical e suas influências no IDEB da instituição. DeFreitas e col. (2014)
acreditam que o “aprendizado musical pode ser um caminho eficiente, não somente
como meio de solidificar o papel da música como ferramenta para o desenvolvimento
cognitivo, mas solidificar também o papel do educador musical como um pesquisador,
cujos objetivos vão além do ensinar uma criança a tocar um instrumento ou cantar, mas
sim, tornar o aprendizado musical uma estratégia para o desenvolvimento cognitivo e
também um meio de inclusão social” (pp.169).
Referências
PAIVA, A. C. DE C. (2013) Educação Musical no Programa Cordas da Amazônia:
descrição analítica dos procedimentos metodológicos das turmas de violoncelo.
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes da
Universidade Federal do Pará. Belém.
ALBUQUERQUE, T. C. F. (2013) Educação Musical e Inclusão: a experiência do
Programa Cordas da Amazônia. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Pará. Belém.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Marcos-políticos
Legais da Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva /Secretaria de
Educação Especial. Brasília, 2010.
BRASIL. Lei No. 11.769 de 11 de agosto de 2008. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/lei/L11769.htm
DEFREITAS, Á. NOBRE, J. P. S. SILVA, L. (2014) “A educação musical como forma
de intervenção com alunos com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade ou
dislexia”. Trânsito entre fronteiras na música. PP. 145-172.
FERREIRA, V. J. (2014) “Assêncio” in Hiperatividade como causa do insucesso na
aprendizagem. Jornada Internacional de Educação no Maranhão, São Luis – MA,
palestra proferida em 26/05/05.

325
JESSIKA, R. C. (2014) Caminhos da formação em música de estudantes com
transtorno do espectro do autismo em uma escola técnica em música. Dissertação de
Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade
Federal do Pará. Belém.
NOBRE, J. P. S. & DEFREITAS, Á. (2009) “Programa Cordas da Amazônia”. 1º
Simpósio do Laboratório de Ecologia do Desenvolvimento. Universidade Federal do
Pará. Belém.

326
A Pesquisa do Canto Gregoriano no Séc. XX: Implicações
em sua prática interpretativa
André A. Gaby
Instituto de Ciências da Arte – Escola de Música – Universidade Federal do Pará
andregaby@ymail.com
Resumo. Este artigo tem o intuito de propor para a academia brasileira um debate
científico-musical muito importante para musicologia mundial: o estudo da interpretação
gregoriana através da Paleografia e Semiologia Gregoriana. Desde as iniciativas de Dom
Guéranger em 1822 que a Abadia de Solesmes na França tem sido responsável pela
renovação e retorno às origens desta tradição monódica básica para a compreensão da
música ocidental. Lançar um exemplo de proposta interpretativa segundo a semiologia
gregoriana nos insere neste processo de renovação, que resgata as origens desta tradição,
principalmente em nosso país, que vem sofrendo influência da cultura europeia desde a sua
fundação.
Abstract. This paper aims to propose to the Brazilian universities a scientific-cultural
debate, very important to the musicology in the world: the study of a gregorian musical
performance through the gregorian palaeography and semiology. Since the iniciatives of
Dom Guéranger, a Solesmes monk, in 1822, the abbey has been responsible of a renewal and
return to the origins of this monodical tradition, basilar to understanding the Western Music.
Launching an example of an interpretative proposal, based on gregorian semiology studies,
insert us in this process of renew, specially in Brazil, that has suffered a very strong influence
from the European culture.

1. Introdução
O estudo e pesquisa sobre o canto gregoriano, em relação ao tempo de sua existência na
cultura ocidental, é demasiadamente recente. De fato, os primeiros relatos de uma
prática gregoriana homogênea difundida em toda Europa remontam ao século VIII e os
primeiros registros são datados do fim do século IX (RAMPI, 2006, p. 26).
Foram necessários dez séculos de prática musical litúrgica, mudanças,
concílios, a decadência e renascimento de uma ordem monástica, a ordem beneditina,
especificamente na abadia de Solesmes, para que o resgate da antiga tradição
gregoriana fosse realizada.
No ano de 1822, um monge de Solesmes, Dom Prosper Guéranger, foi
responsável pelo início de movimento de restauração da liturgia romana. O seu desafio
começa da restauração dos textos, mesmo que estivesse consciente da necessidade de
uma restituição melódica, baseada nos manuscritos mais antigos das diversas regiões
da Europa. A sua iniciativa deu origem a diversas outras iniciativas, entre as quais a
descoberta de manuscritos antigos, chegando ao ponto de um outro monge solesmense,
Dom Pothier, publicar em 1883 o Liber Gradualis, uma proposta de restituição melódica
(baseada nos primeiros códigos pesquisados após o trabalho de Guéranger) dos cânticos da
missa da Editio Ratisbonensis, até então a edição adotada pelo Vaticano.
Em 1889, Dom Mocquereau, outro monge solesmense, deu início a uma serie
de publicações cientificas intituladas Paléographie Musicale, até então em curso e que
hoje conta com 23 volumes, cada um dedicado a um manuscrito, reforçando a
veracidade do trabalho de Pothier.
Os trabalhos de Solesmes foram tão relevantes que o Papa Pio X, na ocasião da
publicação do Motu Proprio de 1903 “Tra le sollecitudini” (onde reafirma a prioridade
absoluta do canto gregoriano na liturgia romana), incentivou a publicação de um novo
Graduale Romanum (1908) e de um novo Antiphonale Romanum (1912), baseados no Liber
Usualis de Pothier.

327
Era o prelúdio da história do renascimento do canto gregoriano no séc. XX, que
atingirá o ápice com os estudos sobre a rítmica gregoriana (coluna ausente até então do
tripé texto-melodia-ritmo), de Dom Eugene Cardine. Ele, baseando-se no trabalho de Dom
Mocquereau, fundou a disciplina denominada Semiologia Gregoriana, a pesquisa do
significado musical dos neumas em campo aberto (sem linhas). Ou seja, o significado
rítmico, já que pouquíssimo se podia afirmar da melodia, com a ausência das linhas.
De fato, a melodia, para os primeiros monges copistas, era um fenômeno sabido,
desnecessário de ser lembrado, muito conhecido e exercitado pelos coristas na idade media
e que precisavam de indicações em relação à retórica, expressividade e pronúncia dos
textos em questão (Rampi 2006, p. 40-41). A publicação de Dom Cardine, O Graduel
Neumé (1966), estimulou a fundação da associação internacional de Estudos do Canto
Gregoriano e publicação do Graduale Triplex e Graduale Romanum com acréscimo de
duas notações adiastématicas: notação metense (Laon 239) e notação sangalese (Saint
Gallen 359, 376 e Einsiedeln 121).
Este artigo irá apresentar uma proposta de prática interpretativa para o canto Ad
te levavi (Introitus do primeiro domingo do Advento), extraído do Graduale Triplex,
seguindo os estudos da Paléographie Musicale de Dom Mocquereau, com proposta de
restituição melódica deste canto, e seguindo os estudos da Semiologia Gregoriana de
Dom Eugene Cardine, com proposta rítmica baseada no ritmo silábico.
2. Proposta de restituição melódica
O processo de restituição melódica de um canto gregoriano foi e ainda é um debate
acalorado no meio científico e eclesial. “O Graduale Romanum de 1908 e o
Antiphonale Romanum de 1912 permanecem ainda hoje como as duas fontes
fundamentais que devem atingir as melodias gregorianas para os cantos da missa e do
ofício divino” (RAMPI; LATTANZI, 1998, pp. 575). Estas edições expressam a
preocupação da Santa Sé em torno da praticabilidade pastoral (posicionamento de Dom
Pothier dentro do embate) em detrimento à batalha de Dom Mocquereau pelo retorno às
“melhores fontes manuscritas” (RAMPI; LATTANZI, 1998, p. 575).
Porém, Dom Mocquereau defendia tal retorno por compreender que somente a
restauração em cada um dos aspectos fundamentais do gregoriano (melodia, modo e
ritmo) poderia contribuir para o refinamento da técnica interpretativa. As edições do
Paléographie Musicale dirigidas por ele (cujo 23º volume foi publicado este ano),
juntamente com as diversas edições críticas solesmenses contribuíram para a
conscientização da necessidade de revisão das Edições Vaticanas de 1908 e 1912.
Além disso, ampliou-se a consciência semiológica de que os neumas traziam a síntese
do tripé melodia, modalidade e ritmo. Algumas edições posteriores muito importantes
como, por exemplo, o Antiphonale Monasticum (1934), o Graduale Simplex (Editio
Vaticana 1967 e Editio altera 1975), Graduale Romanum (edição de Solesmes, 1974) e
Psalterium Monasticum (1981) trouxeram atualizações importantes dos estudos da
paleografia e Semiologia Gregoriana.
Os manuscritos de Saint Gallen e Laon, por critérios de antiguidade e
confiabilidade, acabaram se tornando o foco dos estudos semiológicos (tanto que estão
presentes no Graduale Triplex), porém são dotados de neumas em campo aberto. Para
propostas de restauração melódica segura, os estudos paleográficos indicaram,
juntamente com outros, principalmente os manuscritos com pauta das famílias
beneventana (Itália) e Aquitânia (França), “nos quais se confirmam em muitos casos as
indicações de ordem melódica das fontes em campo aberto” (RAMPI; LATTANZI,
1998, p. 577).
Para tanto, apresenta-se o canto Ad te levavi, extraído de várias edições ou
manuscritos para que se proceda análise mais direta:
328
Figura 1: Versão do Graduale Romanum de 1896 (edição Pustet);
Figura 2: Versão do Graduale Romanum de 1908 (editio
vaticana);
Figura 3: Versão do Graduale Romanum de 1974 (editio
vaticana);
Figura 4: Versão do Graduale Triplex de 1973 com notação de Saint Gallen
abaixo (siglas SG ou Ein) e Laon acima (L);
Figura 5: Versão do Codex H. 159 (século XI);
Figura 6: Versão do Manuscrito de Benevento, Codex VI. 34 (séculos XI – XII,
sigla Bv34);
Figura 7: Versão do Manuscrito Gaillac 776 (“Albi”, século XI, sigla Alb)
Figura 8: Versão do Manuscrito St.-Yrieix 903, parte 1 (século XI, sigla
Y);
Figura 9: Versão do Manuscrito St.- Yrieix 903, parte 2.

329
330
331
1. É notório que o registro do canto Ad te levavi pelo Graduale Romanum (1896) é
anterior ao início da influência das pesquisas paleográficas na práxis executiva e
pastoral. Tanto o Graduale Romanum de 1908, estimulado pelo pontificado de Pio X,
quanto os testemunhos antigos divergem profundamente dele. Até o pontificado de Pio
X, a Editio Ratisbonensis, uma réplica da Editio Medicea (1614), era mais confiável
simplesmente pela defesa de que esta teria sido organizada pelo próprio, grande
compositor do período da contra-reforma. Porém, os estudos comprovaram que esta
edição tinha alterações gravíssimas, que descontruíam a beleza do canto monódico em
nome de sua utilização como cantus firmus (planus), na polifonia. Ficou comprovado
também que a manipulação desta edição não tinha sido organizada por Palestrina

332
(RAMPI, 2006, pp. 21). Tentar extrair a beleza de um canto retórico, como o
gregoriano, com uma melodia gravemente alterada não se sustenta, por agredir o tripé
melodia, modo, ritmo.

2. A partir do Graduale Romanum de 1908 percebe-se que houve um empenho por


parte dos pesquisadores de Solesmes, e também do Papa Pio X, em resgatar a história
do canto gregoriano. A melodia deste Graduale se aproxima bastante da melodia
registrada por H. 159. Ainda assim existem divergências entre H.159 e os registros
adiastemáticos (sem linha) de L e SG, os registros mais antigos, particularmente no
início do canto, na sílaba Ad e te, na sílaba que de neque, e na sílaba tant de
exspectant. Essas divergências, assim como outras de vários outros cantos, ainda
causavam insatisfação em Dom Mocquereau. Houve um debate intenso entre ele e
Dom Pothier, autor da pequena restauração de 1908. Pothier invocava a
“pastoralidade” do canto, contra a “cientificidade” de Dom Mocquereau. O olhar da
Santa Sé se manteve pela “pastoralidade”, até a edição típica válida atualmente, de
1974.

3. Mais pesquisas se desenvolveram e a coleção da Paléographie Musicale se


ampliava. Em 1925, a equipe de Dom Mocquereau publicou o volume número 13, que
continha os estudos sobre o Graduale de Saint-Yirieix. Por se tratar de um manuscrito
da região da Aquitânia, como já citado acima, é um manuscrito de alta confiabilidade.
As figuras 8 e 9 nos mostram o canto proposto, extraído de lá. Tal exemplo já nos
sugere uma melodia muito mais próxima àquela testemunhada pelos neumas em
campo aberto (adiástematicos), apresentando inclusive uma solução mais viável para a
sílaba Ad e para a sílaba tant da palavra exspectant.

4. A figura 6, extraída de Bv34 (da região beneventana), manuscrito sobre o qual os


monges solesmenses se debruçaram no volume número 15 da Paléographie Musicale
(lançado em 1937), apresenta novas soluções para a restituição melódica do canto cada
vez mais próxima dos códigos mais antigos. A sílaba que, de neque, registra uma nota
realmente mais adequada, segundo registro antigo de L e SG. Infelizmente, tanto este
excerto como o da figura número 7 não estão completos, porque o pergaminho original
está danificado, impedindo assim um esclarecimento para as sílabas iniciais do canto.
Porém, Bv34 confirma as notas de tant, em exspectant, sendo essas notas iguais a
versão do Graduale Romanum de 1908.

5. A única sílaba que não apresenta uma solução de restituição melódica consistente
em nossos exemplos é a sílaba te, de Ad te levavi. No Graduale Triplex, esta sílaba é
idenficada com um neuma de duas notas ascendentes (pes ou podatus) por SG. Porém,
L indica que tal sílaba possui somente uma nota. Esta única nota é confirmada por H.
159 e Y como nota fá. Alguns exemplos da discografia (Cantori Gregoriani, CD
Adventus Domini), contudo, obedecem a SG, inserindo a nota dó antes da fá,
executando assim o pes testemunhado por SG.
Portanto, após todas as conclusões extraídas, a restituição melódica baseada
nos manuscritos antigos sugere poucas mudanças na melodia do Graduale Romanum
de 1908:
 Sílaba inicial Ad somente com uma nota ré, e não com sol e ré
liquescente (nota registrada como uma espécie de apojatura);
 Para quem pretende seguir o manuscrito SG, deve-se acrescentar
a nota dó mais grave que o fá já existente na segunda sílaba (te),
333
constituindo assim um pes;
 A sílaba que, de neque, que possui a nota dó, deve ser
substituída pela nota si;
 A sílaba tant de exspectant deve ser executada assim como está
registrada pelo Graduale Romanum de 1908.

3. A questão rítmica no canto gregoriano


Os esforços para um resgate melódico, desenvolvido por Dom Mocquereau e sua equipe
de monges foi e tem sido louvável. Quanto a este ponto devemos nos interrogar: pode
somente um resgate melódico-textual refletir toda a riqueza de um canto nascido da
declamação prosódica da palavra? Registros neumáticos diastemáticos (com linhas), em
nome do salvamento da melodia, acabaram por enfraquecer toda a riqueza semiológica
contida nos neumas em campo aberto, que traziam em sua essência a rítmica, a retórica,
o significado, a exegese do texto gregoriano. O som da palavra. “A questão do
significado textual é, em essencia, a questão do ‘ritmo’, que deve ser compreendido […]
como movimento do texto, seu modo de comunicar-se segundo um significado preciso”
(RAMPI, 2006, pp. 28). As novas versões melódicas gregorianas são realmente belas,
mas sem ritmo, um canto sem sentido. “É para explicar o senso das palavras que as
melodias gregorianas foram compostas” (Papa Leão XIII).
As primeiras tentativas de “dar rítmica” a um registro musical melódico-textual
enfraquecido pela ausência dos manuscritos mais antigos foi o método rítmico de
solesmes. Este método possui três sinais principais, já presentes no novo Graduale
Romanum de 1974 (figura 3):
1 – episema horizontal (transversum episema): é um pequeño traço que é
inserido horizontalmente sobre ou sob uma nota, ou de um grupo de notas, para
significar o “rallentamento” do ritmo;
2 – punto (punctum-mora): aumenta o valor da nota ao lado da qual é posto;
3 – episema vertical (rectum episema): é um pequeño traço vertical posto via de
regra sob a nota, que marca o ictus, ou seja, o apoio sobre uma nota para indicar o
chamado “ritmo elementar”. (RAMPI; LATTANZI, 1998, p. 44).
Além desses, outros dois sinais foram inseridos na edição de 1974, sendo
resultado dos estudos das fontes manuscritas:
- A ligadura: é basicamente um sinal para corrigir o um quarto de pauta,
presente nas partituras quadratas gregorianas, que foram inseridos de maneira
equivocada. Por se tratar de uma editio typica, a edição de 1908 não pode ser corrigida,
e nada pode ser retirado dela. Portanto, para esclarecer que alguns quartos de barra não
são válidos, foram inseridas ligaduras nos mesmos pontos. Esta ligadura aparece no
canto analisado neste artigo, porém não com função da correção de um quarto de barra
e sim para indicar a fusão entre as duas vogais e, das palavras te exspectant.

Figura 10. Trecho do canto Ad te levavi, Graduale Romanum de 1974.

334
- “A virgula: indica um fraseado mínimo ou também, as vezes um “respiro”.
Solesmes a acrescentou também na edição vaticana de 1974, ao todo 56 destes
símbolos, que assumem basicamente a função de suprir a falta de quartos de barra ou
de corrigir um sinal proximo, deslocando a articulação ao momento mais oportuno”
(RAMPI; LATTANZI, 1998, p. 45).
À exceção dos últimos dois símbolos apresentados, que foram inseridos
baseados nos estudos paleográficos e semiológicos, os símbolos do sistema Rítmico de
Solesmes já são cientificamente comprovados como inadequados. O método de
Solesmes supriu uma enorme lacuna no estudo rítmico do canto gregoriano,
aprofundando o estudo da rítmica e acentuação do texto latino, e permitindo que, com
sua proposta simples de ritmo a dois ou três tempos, um elevado número pessoas
pudessem cantar “a ritmo”. Porém, após os estudos semiológicos de Dom Eugene
Cardine, este método se tornou defasado. Apesar disso, ainda hoje é o método rítmico
mais difundido pastoralmente, devido a sua simplicidade, o que facilita o aprendizado.
No entanto, este artigo tem como intuito atualizar a práxis executiva do canto
gregoriano, vinculando-a às pesquisas mais recentes sobre o assunto. Os sinais rítmicos
do Graduale Romanum de 1974 ainda não são adequados à riqueza e profundidade da
expressão retórica contida nos neumas antigos. É preciso que o ritmo reflita o sentido
da palavra para que aconteça uma melhor ruminatio de quem a ouve, para que este
canto seja uma resposta à altura da Palavra, do Verbo, do Logos.
Portanto, com os estudos de Dom Eugene Cardine, a partir de seu Graduel
Neumé de 1966 e de seu livro de Semiologia Gregoriana, inaugurou-se simplesmente
uma nova e fecunda estação de pesquisa, que era totalmente compatível com tudo que
vinha sendo estudado por quase um século, mas com elementos novos ao ponto de dar
um sentido completo ao tripé melodia-modo-ritmo. Nasce com Cardine a Semiologia
Gregoriana.

4. Semiologia gregoriana e praxis executiva


Para melhor afrontar a analise semiológica do canto Ad te levavi é necessário apresentar
de maneira breve os signos neumáticos que serão utilizados. Este artigo se concentrará
na escola de notação sangalese. Observe-se os quadros abaixo:

335
Figura 11. Tabela de neumas de Saint Gallen (SG).

O canto em questão é um introitus (entrada). De modo geral, introitus não são


cantos excessivamente melismáticos. São cantos processionais, e tais cantos são
geralmente mais simples. O funcionamento básico do rítmico semiológico une dois
conceitos bem claros: ritmo da palavra e rítmica binária.
O ritmo da palavra significa pronunciar a palavra de modo mais articulado e
claro possível, respeitando as acentuações que lhes são características. Significa o que
logicamente precedeu a prática gregoriana: a declamação de textos sacros. Quanto
melhor articulada e mais clara a declamação, melhor ela será compreendida e
ruminada.

336
A rítmica binária parte do principio básico de que o canto gregoriano possui
somente duas maneiras de serem cantadas: leggera, isto é, ágil, com desenvoltura, e
allargata, ou seja, alargada, desacelerada. A não utilizaçao das palavras “rápida” e
lenta” é proposital. Ambas nos remetem a uma concepção de música moderna, de
métrica fixa. Quanto mais fora dessa concepção de interpretação métrica nossa
imaginação estiver, melhor será a interpretação gregoriana.
O sistema neumático consiste basicamente na concepção binária de ritmo. Ele
possui neumas simples (leggeri) e neumas allargati. Essas duas premissas são
norteadas pelo ritmo da palavra. A “velocidade” (outra palavra inadequada à atmosfera
da interpretação gregoriana) é regida pela “ambiência” do local. As igrejas possuem
uma acústica própria. Se canta em uma “velocidade” que deixe o texto
“suficientemente” claro. Portanto, apesar de existirem somente dois “andamentos”
esses andamentos são relativos à métrica de cada palavra.
Existem 4 maneiras do neuma “se tornar” allargato: pela adição de um
episema, de uma letra (figura 11, letras t e x), pela mudança do traçado ou por re-
agrupamento. Na figura 12 podemos notar 3 grandes colunas de modificação de neuma
que fazem referência a isso.
Fora os neumas leggeri e allargati, maneira mais simples de manusear a
rítmica, existem neumas especiais, cada um com uma função bem particular:
 Neumas de repetição de notas (figura 12, dos números 13 a 17). O único
completamente allargato é a bivirga/trivirga;
 Neumas de condução (figura 12, dos números 18 a 24). Tem a responsabilidade
de conduzir a interpretação para a próxima sílaba;
 Neumas liquescentes (figura 12, colunas à direita). Todos os neumas que
apresentam na tabela a forma liquescente podem sofrer essa alteração. Consiste
na manipulação da pronúncia de encontros consonantais e vocálicos. Explora-
se melhor esse fenômeno através desse tipo de alteração neumática, que irá dar
um destaque especial a articulações silábicas que possuem encontros
consonantais e vocálicos;.
 E os torculi especiais. São de três tipos: de entonação, de articulação, e de
passagem.
Após esta breve exposição passemos à analise e proposta de interpretação
semiológica do Introitus Ad te levavi.

7. Interpretação semiológica do Introitus Ad te levavi


As premissas para se cantar bem o canto gregoriano são poucas, mas muito importantes:
pronunciar bem o texto latino, cantar excessivamente legato, articular bem as
consonantes, sem martelá-las, dar maior importância à última nota dos neumas ou
elementos neumáticos, pois é essa a notação de articulação que torna o texto
compreensível, e respirar nos pontos exatos, com a duração mais adequada ao fraseado.
Após tais premissas, passemos à interpretação semiológica específica dos
neumas antigos.
Inicialmente, é interessante identificar e propor a interpretação dos neumas
especiais, se estiverem presentes. No canto em questão, localizamos os seguintes
neumas ou grupo de neumas especiais:
1. Neumas de repetição de notas: pes com bivirga na silaba a da palavra anima;
bivirga na silaba us da palavra Deus; distropha na silaba me da palavra meus; tristopha

337
na palavra non do treho non erubescam; tristopha episemata na silaba que da palavra
neque, tristopha liquescente na silaba ant da palavra irrideant.
Propostas de interpretação: bivirgas são cantadas com destaque (allargate).
Distropha e tristopha simples, são cantadas de maneira normal, utilizando-se de uma
tecnica chamada repercussão. Na repercussão, o som não deve ser cortado pelo
fechamento da laringe, mas sim articulado entre as notas usando o diafragma. O método
de solesmes recomendava fazer uma nota única com a duração equivalente à quantidade
de notas (se distropha, 2 tempos; se tristopha, 3 tempos), o que é equivocado. Todas as
notas precisam ser ouvidas de maneira articulada.
2. Neumas de condução: pes quassus na sílaba us da palavra Deus; e quilisma
na nota si da sílaba imi da palavra inimici.
Proposta de interpretação: o pes quassus precisa simplesmente conduzir a nota
dó para a nota ré da sílaba em questão, dando importância especial à segunda nota, que
possui também um episema. O quilisma será bem interpretado se o coro apoiar-se
sobre as notas que ficam entre a nota quilismata, nota la e dó. As notas quilismatas são
geralmente a nota debole do grupo de notas, e para se criar o contraste do ritmo
binário, se allarga as notas que a rodeiam.
3. Neumas liquescentes: cefalicus sobre as sílabas Ad, e mam da palavra
animam; epiphonus sobre a sílaba in no trecho in te confido, e na palavra non do trecho
non confundentur; ao fim da tristopha da silaba ant da palavra irrideant, na forma de
tristopha liquescente;
Proposta de interpretação: um neuma liquescente possui duplicidade de forma.
Ou ele possui uma ou duas notas, nos casos que envolvem cefalicus e epiphonus. Nos
casos que ele possuir duas notas, deve-se entoar o fonema da segunda letra sobre esta
nota, para criar uma sensação de articulação destacada na passagem para a próxima
sílaba. Caso possua somente uma, esta articulação sobre a segunda letra deve acontecer
do mesmo jeito, porém utilizando -se de uma nota. No caso da tristopha liquescente, as
letras de articulação, neste caso o encontro consonantal nt deve ser pronunciado sobre
a última nota da tritopha.
4. Torculi speciali: torculus de articulação na sílaba ctant da palavra exspectant.
Proposta de interpretação: Este neuma especial tem uma interpretação bastante
particular. Ele deve ser allargato e articulado sobre as consonantes nt em direção a
consoante da próxima palavra, n de non.
Terminada a análise dos neumas especiais, tudo se torna mais simples. Basta
allargare as notas que possuem episemas, ou letras indicativas de allargamento (x e t)
ou ainda os neumas com modificação de traçado. Dou destaque especial a três: pes,
clivis e torculus completamente allargati. Caso esses neumas especiais sejam
precedidos de neumas ou parte de neumas con episema, o allargamento é extendido ao
grupo de notas inteiro. Neumas marcados com c de celeriter não necessariamente
devem ser ainda mais rápidos. Lembrem-se que o gregoriano possui ritmo binário.
Certamente foram marcados com celeriter para recordar os cantores de não “puxarem
o tempo da música para trás”. O canto trabalhado não possui nenhum caso de re-
agrupamento, também chamado de stacco neumatico (corte neumático).
O manejo da respiração deve ser cauteloso. O grupo inteiro jamais deve
respirar em conjunto em pontos sem indicação de vírgulas, meia barra ou barra inteira.
Deve-se evitar respirações em pontos de um quarto de barra. É necessário diferenciar
claramente o tempo de respiração de uma meia barra para uma barra inteira. A barra
inteira separa de maneira clara as frases, a meia barra propõe uma continuação com
338
uma breve respiração. Os melhores pontos de respiração no canto Ad te levavi são:
após a palavra meam, após a palavra erubescam, prestando atenção nesta frase: “Deus
meus in te confido, non erubescam” que, por ser longa, solicitará uma respiração
individual dos coristas, após o trecho inimici mei, e após a palavra exspectant.
Atentando a todos os detalhes aqui explicitados, uma melhor exegese da
palavra se dará com a execução atenta a todos os detalhes semiológicos. O canto
gregoriano, nascido há mais de dez séculos, vive um novo processo embrionário,
buscando suas raízes mais profundas de declamação, exegese e retórica. Assim, pouco
a pouco, como declara o documento do Concilio Vaticano II, ele é recolocado de volta
ao lugar principal da liturgia, pois se trata da mais bela expressão cultural de uma
liturgia em constante mudança, mas baseada em alicerces eternos, que foram esteio
para todo desenvolvimento expressivo, técnico e científico que a música do ocidente
proporcionou à civilização humana. Vivemos um processo de desconstrução dos
pilares de expressão artística ocidental, em busca de novos horizontes estéticos. Neste
mar novo, agitado e revolto, navega um pequeno barco em direção contrária, a
pesquisa sobre o canto gregoriano.

Referências
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1998.
CARDINE, Eugene. Semiologia Gregoriana. Roma: PIMS, 1979.
CHIARAMIDA, Michele. Opus Alienum: Funzioni e Significati del Canto Gregoriano.
Padova: Armelin Musica, 2010.
GABY, André. Comparazione paleografica della notazione sangallese. Torino:
Conservatorio Giuseppe Verdi – Torino, 2012. 129 p. Tese (Bienio Superior) – Bienio
Acadêmico de Prepolifonia, Conservatorio Giuseppe Verdi - Torino, 2012.
GRADUALE St.-Michel de Gaillac (Século XI). Lat. Gaillac 776. Disponível em:
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b84546727 . (Página consultada em 13-07-2014).
GRADUALE Romanum. Roma: Typis Ratisbonensis,
1896.
GRADUALE Romanum. Roma: Typis Vaticanis, 1908.
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GRADUALE Triplex. Solesmes: Solesmis, 1979.
MOCQUEREAU, André. Paléographie Musicale, 1ª ed., vol. XIII. Tournay: Desclée &
Cie, 1925.
______. Paléographie Musicale, 1ª ed., vol. XV. Tournay: Desclée & Cie, 1937.
______. Paléographie Musicale, 1ª ed., vol. VIII. Berna y Frankfurt: Editions Herbert
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RAINOLDI, Felice. Il Graduale Romanum da Dom Prosper Guéranger al 1974. Studi
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RAMPI, Fulvio. Del Canto Gregoriano: Dialoghi sul canto próprio della Chiesa.
Milano: Rugginenti, 2006.
RAMPI, Fulvio; LATTANZI, Massimo. Manuale di Canto Gregoriano. Cremona:
Turris, 1998.

339
TURCO, Alberto. La Scrittura Musicale del Canto Gregoriano. Verona: Edizioni
Melosantiqua, 2006.

340
A Orquestra Sinfônica Enquanto Campo de Trabalho:
Considerações Sobre a Gestão Estatal
César A. Diniz Silva

Escola de Música – Universidade Federal da Bahia (UFBA)


Campus Universitário do Canela, 40160-060 – Salvador – BA – Brasil
cesaraudiniz@yahoo.com.br

Resumo: O presente trabalho se propõe a enxergar música sob uma ótica voltada aos aspectos
profissionais do campo e tem por objetivo apresentar e discutir alguns elementos do campo de
trabalho em música. Para isso é realizada uma primeira pesquisa a fim de se delinear o campo
de atuação do músico profissional abordado: as orquestras sinfônicas brasileiras.
Posteriormente, são revistos e contextualizados alguns conceitos básicos referentes ao músico
enquanto profissional e à orquestra enquanto corpo artístico gerido por órgãos/entidades do
aparelho estatal. Este trabalho é parte da pesquisa de mestrado do autor.
Abstract: This study aims to visualize music from an optical geared to professional aspects of
the field and aims to present and discuss some elements of music working field. For this, firstly
a survey was conducted in order to delineate the field for professional musician approached:
Brazilian Symphony Orchestras. Some basic concepts are subsequently reviewed and
contextualized related to the musician as professional and artistic body while the orchestra
managed by organs/entities of the state apparatus. This work is part of the author’s master
thesis research.

1. Introdução
Pesquisas que abordam música enquanto objeto artístico é a grande maioria da produção
da área; não obstante, algumas se destinam a visualizar música sob outras óticas, sendo
uma delas enquanto profissão. O que nota-se, entretanto, é que existe, por muitas vezes,
certa negligência por parte dos músicos sobre aspectos da profissão de músico, fato
compreensível dado o cunho artístico da atividade musical. Entretanto acredita-se que
tais aspectos podem trazer contribuições significativas para o campo da música, seja de
caráter pragmático ou teorético. Este artigo aborda as orquestras sinfônicas como um
campo de atuação profissional dos músicos e apresenta conceitos norteadores para o
entendimento dessa abordagem. Inevitavelmente, aspectos jurídicos indispensáveis para
um entendimento substancial do assunto são apresentados, brevemente discutidos e,
principalmente, contextualizados e aplicados a situações pragmáticas do campo
artístico/orquestral. Devido ao tratamento do objeto e à extensão do assunto, este artigo
deter-se-á somente nas orquestras sinfônicas geridas pelo Estado, conforme explicitado
e justificado no decorrer do artigo.

2. O Objeto: As Orquestras Sinfônicas Brasileiras


Como é parte do objetivo do presente trabalho traçar, mesmo que tenuemente, o
possível campo de atuação para músicos profissionais em orquestras sinfônicas, foi
levantado corpos artísticos em todo o território nacional que apresentassem as seguintes
características:

341
(a) Sejam orquestras sinfônicas (excluindo bandas, bandas sinfônicas,
orquestras de sopros e grupos de câmara, orquestras de cordas, orquestras de câmara
etc., simplesmente por delimitação do foco da pesquisa);
(b) Cujos músicos possuam vínculo profissional (excluindo orquestras em
que os músicos atuem voluntariamente, orquestras estudantis, orquestras cujos músicos
são bolsistas, orquestras sem corpo artístico fixo, etc.);
(c) Cuja admissão de seus integrantes se dê por seleção aberta ao público
(não necessariamente Concurso Público, que é regulamentado por lei).
Por não haver um cadastro ou levantamento sistemático de orquestras no Brasil,
não há garantia de que todas as orquestras que se enquadram no perfil buscado pela
pesquisa constem no presente trabalho, bem como novos corpos artísticos podem surgir
a qualquer momento e outros podem deixar de existir ou mudar de perfil, deixando de se
enquadrar nos critérios da pesquisa. Entretanto, tais fatos não invalidam a contribuição
dessas informações no sentido de apresentar um panorama de atuação profissional para
músicos em orquestras nacionais, além de registrar, com certo ineditismo, nesses anos
de 2013-2014 as principais orquestras brasileiras, sua natureza jurídica, entre outras
informações, que podem ser utilizadas posteriormente.
Pois bem, para obter-se uma primeira visão das orquestras nacionais
potencialmente interessantes ao trabalho foram observadas as seguintes fontes:
(a) O Anuário VivaMúsica! (FISCHER, 2013) faz há quinze anos um
cadastro de várias orquestras do país, e a edição de 2013 (a última do anuário) foi
utilizada; apesar de ser uma referência importante, o catálogo do Anuário VivaMúsica!
não é sistemático o suficiente (uma vez que tal rigor não é objetivo do periódico) para
ser usado como fonte, mas apenas como referência;
(b) A lista de orquestras habilitadas e inabilitadas participantes do Prêmio
Funarte de Apoio a Orquestras nos anos de 2013 e 2014;
(c) Consultas individuais (sítios eletrônicos públicos, jornais, portais de
notícias, etc.).
Esta etapa inicial do trabalho revela que, apesar de ser um importante campo de
atuação de músicos profissionais, as orquestras brasileiras não são um assunto
comumente contemplado em trabalhos científicos e não existe um mecanismo que
agregue sistematicamente esses corpos artísticos. Uma vez construído este banco de
dados, foi realizada uma consulta individual a cada um dos corpos artísticos
potencialmente interessantes à pesquisa através de seus próprios sítios eletrônicos ou
pelos sítios eletrônicos de suas entidades mantenedoras (públicas ou privadas) ou ainda
através de notícias publicadas em jornais e revistas, diários oficiais, diplomas legais
vigentes ou revogados etc. a fim de se obter dados mais específicos, verificando seu
enquadramento nos critérios da pesquisa.
De um número inicial de pouco mais de 200 corpos artísticos, chegou-se a um
conjunto de 51 orquestras cujo perfil interessa à pesquisa. Destas, levantou-se a (a)
entidade responsável pela orquestra; sua (b) natureza jurídica, regime, quadro pessoal,
quadro funcional e plano de carreira; e sua (c) localização (unidade federativa);
contudo, o presente artigo ater-se-á apenas às orquestras geridas pelo Estado e
apresentará apenas informações relativas à entidade responsável pela gestão de cada
orquestra.

3. Contribuições do Conhecimento Jurídico para o Objeto de Discussão

342
As informações que serão apresentadas neste tópico dizem respeito à conceituação
jurídica dos organismos que gerem as orquestras. Muitos destes conceitos são
amplamente discutidos e debatidos na doutrina jurídica, principalmente no que tange o
Direito Privado e o Direito Público, suas definições, responsabilidades e limites. As
orquestras sinfônicas no Brasil encontram-se totalmente submergidas neste debate,
contudo, não é interessante para o presente trabalho apresentar tais reflexões
conceituais, visto que o objetivo aqui é contextualizar as orquestras nesse meio jurídico,
suscitando informações relevantes para o entendimento da orquestra enquanto campo de
trabalho. Para isso, serão apresentados os conceitos mais tradicionais e/ou aceitos na
doutrina brasileira e reflexões sobre tais conceitos serão levantadas apenas se
apresentarem contribuições significativas para esta abordagem.
Portanto, os órgãos/entidades gestores podem ser divididos, conforme sua
natureza jurídica, na doutrina jurídica brasileira, baseado nos conhecimentos
apresentados por TARTUCE (2011), em pessoas jurídicas de direito público e pessoas
jurídicas de direito privado. Já aqui se encontra um ponto forte, se não central, de
debates acerca do Direito Positivo73: a dicotomia Direito Público – Direito Privado.
Uma das principais acepções na doutrina brasileira que diferencia o Direito Público do
Direito Privado tem como base a teoria do interesse preponderante74, segundo a qual o
Direito Público visa, predominantemente, a proteção do interesse coletivo e o Direito
Privado, dos interesses particulares (BACELLAR FILHO, 2008).
Um ponto que merece, no mínimo, ser citado é que as tendências mais atuais do
estudo do Direito enquanto ciência vislumbram um momento de transição na doutrina
brasileira, no qual os conceitos clássicos de direito público e direito privado, bem como
a dicotomia existente entre essas duas esferas, tendem a ser superados. Os movimentos
de privatização do direito público e de publicização do direito privado frequentes no
ambiente das orquestras brasileiras apontam nessa direção. Apesar de ser um assunto
atual e pulsante, não será aqui discutido por não ser o foco do trabalho; PALADINO
(2008) e CARMO (2010) apresentam um panorama bastante elucidativo da situação.
De maneira genérica e simplista, mas existem casos em que isso não mais se
comporta assim, órgãos e entidades públicas (personalizadas no Estado) seriam regidas
pelo Direito Público (tendo o Direito Administrativo como principal expoente) ao passo
que as entidades privadas seriam regidas pelo Direito Privado (sendo o Direito Civil
principal expoente). Contudo, é dado ao Estado a possibilidade de criar uma
personalidade jurídica, que será pública por ter sido instituída pelo Estado, cujo

73
FERREIRA (2012) apresenta de maneira excepcional importantes conceitos do Direito,
sendo seu texto um interessante instrumento de introdução. Em relação ao Direito Positivo, define como
“sistema de normas que atribuem determinados efeitos abstratos a certos atos e fatos – os atos e fatos
jurídicos –, efeitos esses que são direitos, poderes, faculdades, deveres e obrigações, que as pessoas
envolvidas em tais atos e fatos passam a ter, e que devem traduzir na sua conduta social, pelo correto
exercício ou cumprimento” (p. 1).
74
Derivação da teoria do interesse, mas uma vez aceito que todas as relações possuem
interesses públicos e privados, busca-se como critério identificar a tendência predominante (BACELLAR
FILHO, 2008). CRISTÓVAM (2013) apresenta ainda outros problemas na teoria do interesse, como a
dificuldade ou mesmo em alguns casos, a impossibilidade de estabelecer o interesse predominante;
normas que, mesmo destinadas à tutela de interesses públicos, são classificadas como Direito Privado, por
tradição; dificuldade em conceituar o que é interesse público, etc. (para ver mais sobre o assunto ver:
CRISTÓVAM, 2013). Contudo, este é o critério ainda usado na doutrina jurídica brasileira, apesar de
haver muitos esforços no sentido de sua superação, e, portanto, será utilizado no trabalho.
343
interesse conceitualmente exprime o interesse público (MELLO, 2009), mas de direito
privado (enquanto regime jurídico), regulamentada assim, além da lei que a institui e
dos decretos que regulamentam a lei instituidora, pelo Código Civil (art. 41, parágrafo
único). Este é o caso, por exemplo, de várias fundações públicas (estatais) de direito
privado (que diferem das fundações privadas – não-estatais) responsáveis por gerir
vários corpos artísticos presentes no país.

3.1. As Orquestras e o Aparelho Estatal

Gráfico 1. Orquestras sob responsabilidade do Estado x particular


A grande maioria dos corpos artísticos pesquisados são geridos por órgãos ou
entidades estatais; ou seja, o Estado é o grande mantenedor das orquestras sinfônicas
profissionais no país. Este fato, todavia, não é apenas coincidência.
Constitucionalmente, é dever de Ordem Social (CF75, art. 215) do Estado garantir,
apoiar, valorizar e incentivar a difusão cultural, o que não impede que personalidades
privadas também trabalhem neste sentido. Contudo, devido aos critérios estabelecidos
pela pesquisa (principalmente o sistema de admissão dos músicos), grande parte das
orquestras cujo perfil interessa à pesquisa são vinculadas de alguma maneira ao Estado,
devido às normas do Direito Administrativo (que exprime, por exemplo, a necessidade
de provimento de vagas, mesmo quando por contrato, através de concurso público); uma
vez que as entidades civis não possuem tal obrigação, por estarem reguladas pelo
Direito Civil, muitas delas selecionam seus músicos por outros meios diferentes dos
critérios estabelecidos pela pesquisa. Fato é que, ainda que não-estatais, algumas
orquestras presentes na pesquisa acabam por sofrer o chamado processo de publicização
por estarem desenvolvendo atividades de interesse público (sendo promovidas a OSCIP
e OS, e estabelecendo Contratos de Gestão com o Poder Público, deixando de ser
totalmente privadas); e mesmo aquelas que permanecem como entidades “puramente”
privadas, são abastecidas por provimentos e orçamentos governamentais, através de leis
de Incentivo à Cultura e de Incentivo Fiscal, ou mesmo através de empresas estatais de
Ordem Econômica, como a Petrobrás e o Banco do Brasil. O Gráfico 1 (acima)
demonstra a proporção de orquestras sob responsabilidade de entidades/órgãos estatais
em relação às de responsabilidade não-estatal.
Em suma, pode-se colocar que o campo de atuação profissional que este trabalho
visa abarcar – as orquestras sinfônicas brasileiras – é mantido praticamente em sua
totalidade pelo Estado; entender, portanto, sobre a organização administrativa estatal

75
Constituição Federal - Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.
344
fornece informações relevantes no sentido da compreensão da gestão e funcionamento
das orquestras. MELLO (2009, p. 137), de maneira sucinta, descreve o aparelho estatal
administrativo:
O aparelho estatal exercente de atividades administrativas é composto
pela própria pessoa do Estado, atuando por meio de suas unidades
interiores – os órgãos – e por pessoas jurídicas que cria para auxiliá-lo
em seus misteres – as autarquias, as empresas públicas, as sociedades
de economia mista e as fundações governamentais, que na linguagem
legal brasileira, compõem a administração indireta. (...) ao lado das
entidades da administração indireta tratamos, também, de certas
figuras que não integram o aparelho estatal, mas que foram previstas
como eventuais colaboradoras do Poder Público em empreendimentos
administrativos sobre os quais o Estado não detém titularidade
exclusiva (as Organizações Sociais – e o instrumento jurídico
concebido como habilitante de tal colaboração: o Contrato de Gestão –
assim como as Organizações Privadas de Interesse Público).

Figura 1. O Aparelho Estatal


Quanto à natureza jurídica das entidades do aparelho administrativo estatal, “a
autarquia é pessoa jurídica de direito público; fundação e o consórcio público podem ser
de direito público ou privado, dependendo do regime que lhes for atribuído pela lei
instituidora; as demais são pessoas jurídicas de direito privado” (DI PIETRO, 2012, p.
478). A Figura 1 (acima) sintetiza o modelo administrativo estatal.
Os Gráficos 2 e 3 (abaixo) apresentam a dados referentes às orquestras
administradas pelo Estado; a proporção de orquestras geridas pela Administração Direta
e Indireta (Gráfico 2) e, das geridas pela Administração Indireta, a proporção
administrativa em relação aos entes (Gráfico 3).

3.1.1. Orquestras geridas pela Administração Direta do Estado


Conforme apresentado anteriormente nas palavras de MELLO (2009), o Estado, no que
diz respeito às atividades administrativas que lhes são encarregadas, pode desenvolvê-
las por si mesmo ou prestá-las através de outros sujeitos. Assim, quando o Estado delega
a outras entidades a função de desempenhar essas atividades, cria-se uma situação
administrativa descentralizada, denominada Administração Indireta. Pelo contrário,
quando o próprio Estado as desempenha, por intermédio de seus órgãos e agentes
administrativos, mantendo tais atividades centralizadas, configura-se a Administração
Direta (CARVALHO FILHO, 2012; MELLO, 2009). A fim de proporcionar uma melhor
345
estrutura organizacional, o Estado, enquanto titular e administrador das atividades que
exerce, divide-se internamente em unidades menores, denominadas os órgãos, às quais
são atribuídas competências.

v
Gráfico 2. Orquestras geridas por
entidades/órgãos estatais Gráfico 3 – Orquestras geridas pela
Administração Indireta do Estado

Dentre as diversas divisões orgânicas existentes na Administração Direta, os


Órgãos do Poder Executivo nas esferas municipais e estaduais são os que mais nos
interessam, em especial as Secretarias de Estado de Cultura e as Secretarias Municipais
de Cultura, responsáveis pela administração de corpos artísticos em todo o território
nacional. São corpos artísticos geridos pela Administração Direta, por meio das
Secretarias Estaduais e Municipais:

346
Orquestras geridas pela Administração Direta do Estado
Esfera Estadual/Distrital Esfera Municipal
Corpo Artístico Órgão Responsável Corpo Artístico Órgão Responsável
Secretaria Municipal de
Orquestra Filarmônica Secretaria de Estado da Orquestra Filarmônica
Cultura de São Caetano
do Estado de Goiás Casa Civil de Goiás de São Caetano do Sul
do Sul
Orquestra Sinfônica de Secretaria de Estado da Orquestra Sinfônica de Secretaria Municipal de
Sergipe Cultura de Sergipe Goiânia Cultura de Goiânia
Orquestra Sinfônica do Secretaria de Estado da Secretaria Municipal de
Orquestra Sinfônica de
Estado do Espírito Cultura do Espírito Cultura, Esporte e Lazer
Santo André
Santo Santo de Santo André
Orquestra Sinfônica do Secretaria de Estado da Orquestra Sinfônica do Secretaria Municipal de
Theatro da Paz Cultura do Pará Recife Cultura do Recife
Orquestra Sinfônica do Secretaria de Estado de Orquestra Sinfônica Secretaria Municipal de
Teatro Nacional Cláudio Cultura do Distrito Municipal de Administração de
Santoro Federal Americana Americana
Orquestra Sinfônica do Secretaria Estadual de
Orquestra Sinfônica Secretaria Municipal de
Rio Grande do Norte Educação e Cultura do
Municipal de Botucatu Cultura de Botucatu
Rio Grande do Norte
Orquestra Sinfônica da
Polícia Militar do Orquestra Sinfônica Secretaria Municipal de
Polícia Militar do
Estado de Minas Gerais Municipal de Campinas Cultura de Campinas
Estado de Minas Gerais
Orquestra Sinfônica Secretaria Municipal de
Municipal de Santos Cultura de Santos
Tabela 1 – Orquestras geridas por órgãos do Poder Executivo nas esferas
estadual, distrital e municipal

3.1.2. Orquestras geridas pela Administração Indireta do Estado


A Administração Indireta está ligada ao conceito de descentralização, situação na qual o
Estado ao invés de desempenhar por si as atividades públicas que lhes são competentes,
cria pessoas jurídicas para desempenhá-las ou ainda, através contrato ou ato
administrativo unilateral, delega a personalidades jurídicas privadas já existentes o
desempenho dessas atividades, sendo ainda o Poder Público titular do serviço (DI
PIETRO, 2012).
No primeiro caso supracitado da Administração Indireta, quando o estado cria
personalidades jurídicas para o desempenho de serviços, o Poder Público deve observar
três princípios básicos: da Reserva Legal, da Especialidade e do Controle76 e, em
relação ao regime jurídico, podem ser pessoas jurídicas de direito público (autarquias e
fundações de direito público) ou de direito privado (das que nos são interessantes,
fundação de direito privado).
Contudo, quando o Estado cria uma pessoa privada, ela possui as mesmas
características das pessoas públicas, levando alguns autores a considerar que todas as
pessoas jurídicas instituídas pelo Poder Público são, na verdade, de direito público

76
Resumidamente e a título de completude, visto que tais informações não contribuem
diretamente para o presente trabalho, o princípio da Reserva Legal indica que entidades integrantes da
Administração Indireta só podem ser criadas por lei; o princípio da Especialidade aponta que essas devem
ser criadas com finalidades específicas; e o princípio do Controle dita que tais entidades são fiscalizadas
politica, institucional, administrativa e financeiramente diretamente pelo Estado (CARVALHO FILHO,
2012).
347
(MELLO, 2009). Uma visão mais ponderada, entretanto, revela algumas diferenças que,
primordialmente, estão presentes nas prerrogativas e restrições da personalidade
jurídica, de modo que as pessoas privadas possuem mais liberdade e autonomia que as
públicas. Isso, todavia, não será tratado no presente trabalho. Neste momento, vamos
deter-nos às duas principais entidades da Administração Indireta gestoras de orquestras
no país: as autarquias e as fundações. As orquestras geridas por entidades privadas
(Organizações Sociais) por meio de Contrato de Gestão, apesar de didaticamente serem
classificadas como pertencentes à Administração Indireta do Estado, não serão
abordadas no presente trabalho pois, para um entendimento fundamentado do assunto,
necessitar-se-ia de um trabalho específico sobre a temática. Para um panorama
preliminar do assunto, ver CONTIN (2005) e COUTINHO (2006).

3.1.2.1. As Autarquias
O Decreto-lei nº 200/1967, que dispõe sobre a organização da Administração Federal,
define autarquia, em seu art. 5º, inciso I, como:
serviço autônomo, criado por lei, com personalidade jurídica,
patrimônio e receita próprios, para executar atividades típicas da
Administração Pública, que requeiram, para seu melhor
funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada.
Apesar de vários autores entenderem essa definição como defectiva, por não
dispor sobre itens jurídicos específicos, considerando-se outros diplomas do Direito
Positivo Brasileiro que dispõem sobre a organização administrativa do Estado (Decreto-
lei nº 6016/43 e CF, art. 37), fica claro e é de consenso que a autarquia detém as
seguintes características: ser criada por lei; possuir personalidade jurídica de direito
público; ter capacidade autoadministrativa; seguir ao princípio de especialização das
atividades e dos fins e estar sujeita ao controle e tutela do Estado. Portanto, pode-se
conceituar autarquia como “pessoa jurídica de direito público, criada por lei, com
capacidade de autoadministração, para o desempenho de serviço público
descentralizado, mediante controle administrativo exercido nos limites da lei” (DI
PIETRO, 2012, p. 486).

Orquestras geridas por Autarquias


Esfera Federal Esfera Estadual
Corpo Artístico Ente Responsável Corpo Artístico Ente Responsável
Orquestra Sinfônica da Universidade Federal Orquestra Sinfônica da Universidade Estadual
UFBA da Bahia UEL de Londrina
Orquestra Sinfônica da Universidade Federal Orquestra Sinfônica da Universidade de São
UFMT do Mato Grosso USP Paulo
Fundação Orquestra
Orquestra Sinfônica da Universidade Federal Orquestra Sinfônica de
Sinfônica de Porto
UFPB da Paraíba Porto Alegre
Alegre
Orquestra Sinfônica Universidade Federal Orquestra Sinfônica do Centro Cultural Teatro
Nacional Fluminense Paraná Guaíra
Orquestra Sinfônica da Universidade Federal
UFMG de Minas Gerais
Orquestra Sinfônica da Universidade Federal
UFRJ do Rio de Janeiro
Tabela 2. Orquestras geridas por entidades da Administração Indireta (autarquias)

348
Por serem pessoas jurídicas de direito público, as autarquias são também
reguladas pelo Direito Administrativo e, em relação ao quadro pessoal, é formada, assim
como na Administração Direta, por servidores públicos, que podem ocupar cargos ou
empregos.

3.1.2.2. As Fundações Estatais


A fundação é uma pessoa jurídica oriunda do direito privado, conforme o Código Civil
(atual Lei nº 10.406/2002) em seus art. 40 e 44. Diferentemente das demais pessoas
jurídicas de direito privado, nas quais atribui-se personalidade jurídica à união de
pessoas com ou sem fins lucrativos (sociedades e associações, respectivamente), na
fundação atribui-se personalidade jurídica a um patrimônio, “que é destinado à
realização de certos fins que ultrapassam o âmbito da própria entidade, indo beneficiar
terceiros estranhos a ela, não havendo sócios a se beneficiarem com a fundação”
(KNOPLOCK, 2012). Portanto, nas fundações privadas o instituidor destina uma parte
de seu patrimônio a finalidades sociais, perdurando mesmo após o falecimento do
instituidor, ficando sob a supervisão do Ministério Público.
O Estado, fazendo uso da mesma concepção, institui as fundações públicas,
fundações governamentais ou como serão chamadas neste trabalho, as fundações
estatais, nas quais o Poder Público destina um patrimônio para a realização de
atividades de Ordem Social, dotado de personalidade jurídica, com capacidade
autoadministrativa e subordinado ao controle e tutela da Administração Direta,
dispensando a supervisão do Ministério Público (DI PIETRO, 2012). É interessante
notar que a fundação, diferentemente da autarquia, não é um serviço, mas, como dito,
um patrimônio e pode ser instituída em qualquer nível federativo (pela União, pelos
Estados ou Distrito Federal e pelos Municípios).

Orquestras geridas por Fundações Estatais


Esfera Estadual Esfera Municipal
Corpo Artístico Ente Responsável Corpo Artístico Ente Responsável
Orquestra Sinfônica Fundação Municipal de
Orquestra Sinfônica da Fundação Cultural do
Municipal de Campo Cultura de Campo
Bahia Estado da Bahia
Grande Grande
Orquestra Sinfônica
Orquestra Sinfônica de Fundação Clóvis Fundação Cultural de
Municipal de João
Minas Gerais Salgado João Pessoa
Pessoa
Orquestra Sinfônica do Fundação Teatro
Orquestra Sinfônica de Fundação Cultural
Theatro Municipal do Municipal do Rio de
Teresina Monsenhor Chaves
Rio de Janeiro Janeiro
Orquestra Sinfônica da Fundação Espaço Orquestra Sinfônica de Fundação de Cultura de
Paraíba Cultural da Paraíba Barra Mansa Barra Mansa
Orquestra Sinfônica de
Fundação Cultural de Criciúma
Criciúma
Orquestra Sinfônica
Fundação Theatro Municipal de São Paulo
Municipal de São Paulo
Tabela 3 – Orquestras geridas por entidades da Administração Indireta
(fundações)

349
Dentre todas as entidades compreendidas na Administração Indireta, a fundação
é a que gera maior divergência entre os autores em relação a sua natureza jurídica e,
consequentemente, maior discussão a respeito, seja no campo científico, jurídico ou
legislativo. Tais discussões não serão aqui levantadas, mas cabe saber que há três linhas
de pensamento sobre o assunto: há autores que consideram que todas as fundações
estatais são de direito privado, já que tal posição é inerente ao conceito de fundação e é
explicitado na conceituação apresentada pelo Decreto-lei nº 200/6777; outros ,
entretanto, assumem que todas as fundações estatais são de direito público, visto que
foram instituídas pelo Estado e são personalidades jurídicas públicas,
independentemente de seu regime; e há quem aceite a posição dualista, em que o Estado
pode instituir fundações de direito público e privado (MODESTO, 2008). Vale notar que
cada perspectiva parte de pontos diferentes e se justificam em diplomas vigentes; muitas
dessas divergências são de cunho mais conceitual que pragmático, visto que o Supremo
Tribunal Federal já divulgou parecer sobre o assunto. Contudo, o Governo Federal em
sua página oficial, no que diz respeito às autarquias, insere as fundações públicas como
autarquias (PORTAL Brasil, 2012), contribuindo para a problemática das fundações,
visto que se são autarquias, não são fundações, suscitando a ideia de que todas as
fundações estatais são de direito privado, pois se forem de direito público, serão
autarquias.
Fato é, que FERREIRA (2008) ao tratar do assunto, aponta com a precisão que
lhe é característica, a origem de toda problemática: “posso dizer que o que existe é o
seguinte: com o tempo, começou a haver uma promiscuidade terminológica, que levou à
perplexidade” (p. 3) e mais adiante, finaliza: “sabemos, nós que lidamos com Direito, a
importância das palavras” (p. 9), daí margeia-se várias interpretações do mesmo
fenômeno, dita a incoerência terminológica. Um exemplo é o próprio termo público; por
vezes se refere a personalidade jurídica pública, ou seja ente do setor público (em
oposição ao setor privado, i.e. particular); por vezes se refere à natureza jurídica, diga-se
direito público, regulada pelo Direito Administrativo; em outros momentos, às duas
simultaneamente. Outro motivo de perplexidade é a própria designação da fundação
estatal, que no Direito Positivo brasileiro aparece como:
a) “fundação” (art . 37, XVI I , XIX; 39, §7º; art . 40, caput ; 163, I I,
167, VI I I ; 202, §§3º e 4º, da CF e art . 8º e 61, do ADCT);
b) “fundação pública” (art. 39, caput, original, reprist inado por
recente decisão do STF; art 19, do ADCT);
c) “fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público” (art. 71, II e
III; 150, §2º; 157, I; 158, I; 165, §5º, II e III; 169, §1º, da CF e art. 18;
35, §1º, V, e 61 do ADCT);
d) “fundações sob controle estatal” (art. 163, II , da CF e art. 8º, §5º,
da ADCT) (MODESTO, 2008, p. 3).
É possível que situações como essa desencadeiem problemáticas enormes no
decorrer do tempo, de impacto direto e indireto sobre as possibilidades e restrições das
atividades desempenhadas pelas fundações(gestão cultural, neste caso), gerando
diversas situações indesejáveis.

77
Entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, sem fins lucrativos,
criada em virtude de autorização legislativa, para o desenvolvimento de atividades que não exijam
execução por órgãos ou entidades de direito público, com autonomia administrativa, patrimônio próprio
gerido pelos respectivos órgãos de direção, e funcionamento custeado por recursos da União e de outras
fontes (Decreto-lei nº 200/67, art. 5º, inciso IV).
350
4. Considerações finais
Conforme demonstrado no presente trabalho, a manutenção e administração das
orquestras sinfônicas no Brasil é de responsabilidade majoritária do Estado e,
consequentemente, este campo está totalmente vulnerável às posturas e políticas
adotadas pelo Poder Público em cada gestão. O que se nota, no entanto, é que nas
últimas décadas, a situação das orquestras brasileiras enquanto campo de trabalho e dos
músicos enquanto profissionais tem mudado bastante e não necessariamente para
melhor. O que acontece é que em muitos momentos o Estado, por diversos motivos, se
vê incapaz de gerir esses corpos artísticos de maneira ideal, mesmo através de entidades
da Administração Indireta criadas especificamente para esse fim, gerando diversas
situações contraproducentes; uma situação recorrente que comumente engessa as
atividades culturais é que, como vimos no decorrer do artigo, muitos corpos artísticos
são de direito público (geridos diretamente pelo Estado, por autarquias e fundações de
direito público) e, portanto, submetidos à rigidez das prerrogativas e restrições previstas
pelo Direito Administrativo; na tentativa de dinamizar o processo gestor desses corpos
artísticos, o Estado em algum momento passou a dar personalidade jurídica de direito
privado a essas entidades, mas que na prática, por se tratar de entidades estatais, pouco
ou quase nada muda; a possibilidade atualmente mais discutida e por vezes aceita para
essa problemática é a delegação da administração desses corpos artísticos a
personalidades jurídicas não-estatais com status de Organização Social (as OS), através
do instrumento conhecido como Contrato de Gestão. Contudo a gestão das orquestras
por OS tem pontos positivos e negativos e é um assunto que merece um trabalho
específico, a ser apresentado em outra oportunidade.
Vale salientar que o presente trabalho é apenas uma etapa inicial de uma
pesquisa que se faz muito pertinente nos dias atuais sobre as orquestras sinfônicas
brasileiras; o objetivo aqui não é ainda trazer reflexões definitivas sobre o assunto, mas,
através da agregação das informações, dados e conhecimentos necessários, prover
subsídios para alavancar novas discussões sobre o assunto, dada a promiscuidade
generalizada acerca do funcionamento e gestão destes corpos artísticos, tão importantes
no cenário cultural nacional.

Referências
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BRASIL. Decreto-lei nº 9.155, de 8 de abril de 1946. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/1937-1946/Del9155.htm>. Acesso em: 04 jul.
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Sítios eletrônicos
PORTAL Brasil. Governo Federal, 2012. “Dispõe sobre a Administração Indireta,
principalmente sobre as autarquias”. Disponível em:
<http://www.brasil.gov.br/governo/ 2012/04/autarquias>. Acesso em: 04 jul. 2014.

353
Aspectos técnico-interpretativos da Sonata nº 2 de Guerra-
Peixe: a importância das obras brasileiras pós-1950 para
violino
Israel Victor L. Silva1, Rucker Bezerra de Queiroz2
1
Mestrando em Música – Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
2
Escola de Música – Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN) Natal – RN – Brasil
israel_victor_@hotmail.com, ruckerb@terra.com.br

Resumo. Com base nos trabalhos de PRESGRAVE, SALLES, DELL’ORTO e TOKESHI,


procuraremos defender a utilização da música brasileira pós-1950 no ensino do violino.
Utilizaremos a Sonata Nº 2 de Guerra-Peixe para exemplificar problemas técnico-
interpretativos que podem ser utilizados em sala de aula, tanto para o ensino da técnica
tradicional (juntamente com a metodologia habitual) como para o contato do aluno com a
escrita moderna e as dificuldades inerentes à performance da música contemporânea
brasileira para violino.
Abstract. Based on Presgrave, Salles, Dell’Orto and Tokeshi's work, we want to defend the use
of brazilian music post-1950 for the violin's teach. We will use the Guerra-Peixe’s Sonata No.
2 to exemplify technical and interpretative problems that can be used in the classroom, for to
teach traditional technique (and the traditional methodology), also about the student's contact
with modern write and the difficulties inherent in execution of contemporary brazilian music
for violin.

1. Introdução
A música brasileira vem ganhando mais visibilidade nos últimos anos, e vários fatores
tem contribuído para isso, tais como: o surgimento de mais programas de pós-graduação
pelo país; o aumento da pesquisa sobre a música nacional; os musicólogos estão
descobrindo e divulgando mais obras; o repertório está cada dia mais acessível,
principalmente pela facilidade de se encontrar obras na internet disponíveis para
execução em sites como SESC Partituras e Música Brasilis; e os intérpretes estão mais
interessados em executar obras nacionais, causando também um maior interesse nos
compositores em escrever para esses instrumentos.
Apesar desses fatores, alguns outros contribuem desfavoravelmente à execução
da música brasileira, e principalmente à música contemporânea brasileira. A técnica
para interpretar a música contemporânea brasileira, mesmo para músicos já
profissionais, é algo novo e desafiador na maioria das vezes. O violino é um
instrumento tradicional, baseado nas técnicas consolidadas até o final do século XIX
aproximadamente (TOKESHI, 2003: p.53). A nova técnica exigida para execução do
repertório contemporâneo é chamada de “técnica expandida”. Pode ser chamada de
técnica expandida tudo aquilo que não está presente na técnica tradicional do
instrumento, desde pizzicatos percussivos78, à execução com o arco em uma região do
espelho próximo aos dedos da mão esquerda.
Para que o aluno comece a se familiarizar com a música brasileira
contemporânea, aproveitamos o ano de centenário de César Guerra-Peixe (1914-1993),

78
“Pizzicato Percussivo” - forma de pizzicato realizada pinçando-se a corda
simultaneamente com dois dedos, gerando um efeito percussivo.
354
e tomamos como exemplo sua Sonata Nº 2 para Violino e Piano (1978). Procuraremos
apresentar aspectos técnico-interpretativos e argumentaremos sobre a inclusão da
música contemporânea brasileira desde o inicio dos estudos no instrumento, para uma
familiarização desde a base com a escrita moderna e com as dificuldades técnicas. Uma
das principais dificuldades para a execução da música contemporânea está no ritmo.
Stravinsky foi um dos primeiros compositores a utilizar de compassos irregulares como
parte integrante de sua música. Sua música continua a criar sérios problemas para a
maioria dos músicos porque eles não tiveram praticamente nenhum estudo para lidar
com os compassos irregulares (WEISBERG, 1993: p. 3).
Ao fazermos uma observação nos currículos de instrumento das graduações em
música pelo Brasil, com algumas exceções como a UnB, que coloca peças brasileiras
desde o primeiro semestre e a UDESC que põe no sétimo semestre, observamos que não
há muitas referências à música brasileira no estudo do instrumento, e é mais raro ainda
saírem alunos da graduação executando ao menos uma peça brasileira pós-1950. Sobre
as vantagens de se estudar peças brasileiras pós-1950 desde a base, Presgrave comenta:
As vantagens de se estudar peças provenientes desse tipo de repertório
seriam muitas, citamos algumas: 1 – O músico que sabe tocar e ouvir
quartos de tom, tem sua sensibilidade aguçada para a afinação; 2 –
Aquele que lê e executa bem ritmos complexos, dificilmente cometerá
falhas básicas de leitura, constatadas em todo meio profissional
brasileiro como: confundir ritmos pontuados com tercinas; 3 –
Observar os pedidos mais específicos dos compositores quanto à
forma de tocar (ex: sul tasto, sul ponticello, pizzicato Bartók), amplia
a exigência auditiva em todo tipo de repertório; 4 – O simples contato
com peças excelentes que vêm sido escritas, que muitas vezes são
desconhecidas pela maior parte dos intérpretes, fazendo assim com
que o aluno trabalhe em fase com o tempo atual. (PRESGRAVE,
2008, p. 2)
Em uma pesquisa dentre os alunos de violoncelo ingressantes no Curso de
Especialização em Performance da Música dos Séculos XX e XXI da UFRN, foi
verificado que os alunos egressos da própria UFRN, e de instituições como: UFPB,
UFPA, UFSM e USP tinham tido pouco ou nenhum contato com obras escritas no
últimos setenta e cinco anos para o instrumento, principalmente as que se utilizam de
técnicas expandidas. Como a pesquisa teve uma amostragem de diversas regiões do
país, podemos concluir que de forma geral o repertório atual é pouco ou nunca abordado
nos cursos de graduação (PRESGRAVE, 2012, p. 1697).

Segundo pesquisa de Cavazzotti (SILVA, 2001) ainda em 2001, existiam


catalogados no seu trabalho 26 sonatas brasileiras para violino e piano compostas entre
1950 e 1999, e acreditamos que o número atual esteja bem maior, visto que nessa
pesquisa ainda não constavam peças como a Sonatina para Violino e Piano (1995) de
Danilo Guanais; a Sonata n.º 3 para violino e piano (1999) de Liduíno Pitombeira e a
Música para violino e piano n° 3 (2000) de Estércio Marquez, sem mencionar a
produção após o ano 2000.

2. A Sonata nº 2 de Guerra-Peixe e suas características técnico-


interpretativas
A Sonata nº 2 para violino e piano de Guerra-Peixe foi composta no ano de 1978.
Apesar de ter sido composta um ano após a “Variações Opcionais” (1977) para a mesma

355
formação, a Sonata nº 2 não vai muito além da técnica tradicional, apesar de apresentar
vários elementos da música moderna que serão visualizados mais adiante. A “Variações
Opcionais” foi composta especialmente para a II Bienal de Música Contemporânea (RJ).
Esta já contém vários elementos de técnica expandida, como executar o pizzicato com o
arco encostado na corda, e segurar o tampo do instrumento próximo ao espelho,
soltando e segurando alternadamente para oscilar no timbre do som da corda solta
executada, por exemplo. A Sonata nº 2 é composta em três movimentos (Allegro
comodo, Recitativo e Scherzoso) e foi uma encomenda do Instituto Nacional de Música,
feita a primeira audição no mesmo ano, tendo como interpretes o violinista Stanislaw
Smilgin e a pianista Sônia Maria Vieira. Tem uma duração total aproximada de 10
minutos.
O Primeiro movimento (Allegro comodo) foi escrito na forma A B A, com o
tema sendo apresentado logo no inicio da obra pelo violino e pela mão direita do piano,
em um uníssono oitavado. Logo de cara se apresenta o caráter camerístico da obra,
tendo os dois instrumentos grande importância (Dell’Orto, 1998). No tema A, alem da
dificuldade do equilíbrio sonoro, aparecem alguns compassos com semicolcheias com
certo grau de dificuldade, como no compasso 28 (Ex. 01), que tem uma acentuação fora
do tempo forte, com acentos rítmicos independentes. O Acento cria uma articulação a
cada três notas, descaracterizando a quadratura, dando uma impressão de compasso 5/4
no violino, com o piano com a o compasso 4/4 em semínimas. Executá-los com clareza
pelo violinista é uma essencial.

Exemplo 1: Sonata Nº 2 (violino e piano), I Movimento, compassos 27 e 28.

No segundo tema (tema B), que inicia no compasso 37, é apenas o piano que
apresenta o tema, que será reapresentado pelo violino. O timbre que essa obra exige é
bem característico, levando o interprete muitas vezes a procurar soluções que não estão
especificadas pelo autor, como utilizar sul ponticello ou um dedilhado em posições mais
elevadas em certas ocasiões por escolhas interpretativas. No exemplo a seguir (ex. 2),
decidimos executar com esse dedilhado descrito para acentuar o caráter expressivo e
interno que o trecho contém.

356
Exemplo 2: Sonata Nº 2, I Mov., compassos 60 – 72. Dedilhado sugerido para o violinista.

O segundo movimento é um movimento bastante peculiar. Trata-se de um


Recitativo, com a indicação para ser executado completamente na quarta corda. Pode
ser executado apenas com o solo de violino, sem os acordes do piano (que duram apenas
quatro compassos) e também separadamente da Sonata (segundo nota do próprio
Guerra-Peixe, nos acervos de Jane Guerra-Peixe sobre a obra). A escrita é quase toda
sem barra de compasso, constando apenas quatro compassos separados com barra, no
trecho em que o piano toca, e a interrupção entre as frases no restante do movimento se
dá com indicações de respirações. Lembra uma cantoria nordestina. É especialmente
nesse movimento onde mais se consegue visualizar a influencia da rabeca nordestina na
obra, com um caráter de improviso que é obtido através de uma ornamentação continua
sobre o motivo inicial (Dell’Orto, 1998).

Exemplo 3: Inicio do segundo movimento (recitativo).

Guerra-Peixe viveu intensamente o folclore para poder escrever música


tipicamente nacional de forma espontânea, sem uma preocupação nesse sentido. Guerra-
Peixe diz, no Cap. V de seu Memorial:
Vale chamar a atenção de que não se trata de fotografia como o
retratinho 3x4 destinado a documento pessoal, mas fotografia artística
no sentido em que a fonte do material sonoro (isto é, aquilo que é
focalizado) seja em termos de arte suficientemente reconhecível ou
pressentido pelo ouvinte leigo em tais problemas. E isto é diferente de
“copiar o folclore” como as vezes ocorre dizerem por aí. (GUERRA-
PEIXE, 1970 v,7 in FARIA, 2007, p. 39).
O estilo da rabeca ainda pode ser sentido no terceiro movimento. A técnica de
arco é fundamental para extrair a sonoridade exigida na obra, visto que o arco é o
grande responsável pela sonoridade do violino (GALAMIAN, 1998, p. 88). No terceiro
movimento da sonata, Guerra-Peixe escreve grande parte do inicio do movimento em
um golpe de arco, segundo classificado por SALLES (2004, p. 88), denominado
Sautillé, que difere do Spiccato por não possuir impulsos individuais para cada nota.
Mas a notação pelo compositor dos dois golpes de arco não difere na sonata. No
exemplo quatro temos o trecho em Sautillé, e no exemplo cinco consta no mesmo
movimento um Spiccato.

357
Exemplo 4: Sonata Nº 2, III Mov., compassos 15 – 16. Trecho em Sautillé.

Exemplo 5: Sonata Nº 2, III Mov., compassos 21 – 24. Trecho em Spiccato.

No exemplo quatro, temos uma intervenção do toque Jêje79, e já notamos uma


dificuldade rítmica já um pouco mais avançada. Escrita em compasso 4/4, o trecho em
quiálteras contém acentos que se repetem na música, dando um maior caráter regional
na obra. O terceiro exemplo está escrito em compasso não convencional 5/4, muda por
apenas um compasso para 4/4 e logo após para 3/4. A acentuação rítmica também é
muito importante para não perder o caráter da obra. Em alguns trechos, Guerra-Peixe
sobrepõe o ritmo do toque Jejê com o Macaratu (os dois principais ritmos do
movimento), causando uma sensação de poliritimia de complicada execução, como
veremos no exemplo seis:

79
Ritmo folclórico brasileiro, grandemente estudado e pesquisado pelo compositor,
utilizando esse ritmo em várias outras obras.
358
Exemplo 6: Sonata 2, terceiro movimento, compassos 15 e 16. Maracatu na mão
esquerda do piano e toque Jejê no violino.

No compasso 46, ainda no terceiro movimento, o compositor decide escrever


duas notas Mi da mesma altura, mas em cordas diferentes, na primeira corda solta e na
segunda corda presa. O que se procura é exatamente o timbre diferenciado entre as
duas, e o efeito em tocá-las alternadamente. A corda Mi solta produz um timbre mais
aberto, estridente, enquanto a mesma nota presa produz uma sonoridade de mais escura
e menos intensa na dinâmica (TOKESHI, 2003, p. 54). Além disso, o compositor põe
um ritardando escrito, reduzindo o valor das figuras gradualmente no compasso 48, e
ainda enfatiza escrevendo um poco ritardando nos dois últimos tempos do compasso.
Também faz um diminuendo de dinâmica. O golpe de arco a ser utilizado se denomina
Bariolage80. Esse é o mesmo golpe de arco encontrado na Partita III para violino solo,
BWV 1006, de J. S. Bach. Observe a comparação dos dois exemplos abaixo:

Exemplo 7: Sonata Nº 2, III Mov., compassos 46 – 48. Trecho da bariolage


variando em torno do timbre da nota Mi presa e da corda Mi solta.

80
Bariolage é um termo francês que significa uma "estranha mistura de cores”. É um efeito
especial em tocar violino, obtido através de uma rápida mudança entre duas ou mais cordas, sendo as
cordas mais baixas usadas para produzir sons relativamente mais elevados. O Dedilhado é muitas vezes
usado para indicar a bariolage.

359
Exemplo 8: Partita III de J. S. Bach para Violino Solo, BWV 1006, I - Prelúdio.
Comp. 14 – 16. Bariolage entre as cordas Lá e Mi.
Mais adiante, no compasso 60, Guerra-Peixe trabalha com cordas duplas,
alternando com as mesmas cordas soltas em pedal, sempre utilizando quintas justas.
Essa escrita que se faz em duas claves serve para facilitar a leitura, reduzindo para uma
pauta só no compasso 64 (ex. 09), onde se percebe mais claramente a presença do
ritmo maracatu na escrita, com uma progressão cromática (Dell’Orto, 1998). Apenas
com a consciência de que o elemento ritmo (que não se percebe claramente a primeira
vista) se trata de um maracatu o interprete poderá executar o trecho evidenciando esse
ritmo. Essa mesma escrita é utilizada por compositores em outras obras, como Marlos
Nobre no seu Desafio para Violoncelo. Guerra-Peixe utiliza o mesmo recurso em outras
obras, como em Bilhete de Um Jogral para Viola “Sozinha”. Novamente o foco do
compositor é a sonoridade que vai ser extraída desse movimento no violino. Também é
salutar observar que nesse trecho de dois compassos o compositor especifica em cada
nota a acentuação desejada. Na pauta inferior todas as notas estão com ponto de
staccato. Na superior, a primeira nota tem um acento, e as demais escritas com uma
tenuta em cima. O efeito dá um colorido ainda maior ao trecho, que se prolonga por
mais sete compassos.

Exemplo 9: 3º Movimento, compassos 64 e 65. Trecho de cordas duplas em uma pauta


só, com uma melhor visualização do ritmo maracatu.

No final da obra, Guerra-Peixe retorna ao tema inicial e o fragmenta. O


compositor é muito claro e enfatiza bem a maneira, o timbre e a sonoridade que ele
visualizava. Guerra-Peixe escreve um staccato secco em todas as colcheias utilizando o
arco para cima. Ainda segundo SALLES (2004, p. 94), o golpe de arco a ser usado se
trata de Spiccato volante. O intérprete deve sempre voltar ao mesmo lugar do arco para
conseguir extrair um som seco (conforme desejo do compositor) e uniformidade em
todas as notas. Não se trata de um staccato volante, pois o arco precisa voltar ao mesmo
local, e no caso do primeiro, o arco consiste basicamente no movimento de pronação81,
sem sair da corda.

81
A pronação é o movimento de pressionar o dedo indicador no arco (rodar o antebraço para o
lado esquerdo gerando pressão no dedo indicador), aliviando a pressão exercida pelo dedo mínimo
(mindinho).

360
Exemplo 10: Sonata nº2, III Movimento, compassos 86 - 93. Tema fragmentado,
em staccato secco.
Segundo classificação de Cavazzoti (Silva, 2001, p. 53), na Sonata Nº 2 de
Guerra-Peixe existe cerca de 104 elementos técnico-violinísticos. Em uma classificação
do pesquisador baseada em dificuldades técnicas nas sonatas brasileiras, e levando em
conta oito semestres de um curso superior, esta sonata deveria ser estudada já no
terceiro semestre.

361
3. Considerações Finais
Ao se estudar essa obra, o aluno terá contato com os aspectos da técnica de arco
anteriormente citados e vários outros. Apenas nesse artigo citamos o Sautillé, o
Spiccato, o Spiccato volante, a Bariolage e o Dechaté.
É interessante notar como Guerra-Peixe trabalha bastante com cordas duplas.
Apenas nessa obra ele utiliza intervalos de uníssono, segunda menor, quarta aumentada
e diminuta, quinta justa, sétima maior e menor e oitava justa, sendo os intervalos de
quintas e oitavas justas as mais comuns. A obra de Guerra-Peixe desse período tinha um
caráter extremamente nacional, evitando o que ele chamava de “sotaque estrangeiro”.
Nessa obra, Guerra-Peixe se utiliza das cordas duplas fazendo claramente
referência à rabeca nordestina, que teve verdadeira influência para a composição não
apenas dessa sonata, como de muitas outras obras dele, como Bilhete de Jogral para
Violino Solo (1983) e Quarteto de Cordas No. 2 (1958). O intérprete deve buscar
escutar ao menos uma vez esse instrumento para ter noção da imagem sonora
visualizada pelo compositor.
O ritmo dessa obra já inicia o aluno no âmbito da música contemporânea. Nela,
a forma de compasso varia o tempo inteiro, mas mantém sempre o mesmo denominador,
a semínima como unidade de tempo. Ele utiliza os compassos 2/4, 3/4, 5/4 e 6/4. No
segundo movimento, apesar de se tratar de um recitativo, Guerra é muito claro nos
ritmos que ele visualizava sendo proporcional entre eles. A roupagem que Guerra-Peixe
dá a esse movimento soa regional e contemporâneo ao mesmo tempo. Os aspectos que
ele utiliza e como se conseguiu esse caráter duplo é objeto de outro estudo em
andamento.
As vantagens de se estudar esse tipo de repertorio já foi abordado na introdução
e são enormes. Não faltam motivos para se estudar a música brasileira moderna. Apenas
nessa Sonata, abordamos aspectos da técnica de arco, golpes de arco, cordas duplas,
ritmo e aspectos timbrísticos. As obras são muito bem escritas, e há muitas obras
recheadas com dificuldades de técnicas tradicionais e contemporâneas esperando por
interpretes. As obras brasileiras estão à disposição, e a responsabilidade não é exclusiva
do professor; o aluno também tem a possibilidade de encontrar essas obras e apresentar
ao professor o desejo de estudá-las.
É importante enfatizar que a metodologia tradicional não deve ser esquecida na
formação do músico. O aluno deve continuar a estudar os concertos de Mozart, Brahms,
Mendelssohn, sonatas de Beethoven, escalas, Kreutzer, Dont, Dounis, Bach, etc. O que
está sendo proposto é que, além das obras tradicionais, devem ser adicionadas ao
repertório obras brasileiras alinhadas com a música atual, para o aluno se situar no que
está sendo realizado nos dias de hoje utilizando obras nacionais. A técnica
contemporânea vai sendo introduzida progressivamente, podendo ser iniciada pelo que
expomos, até a técnica propriamente chamada de expandida, que inclui quartos de tom,
pizzicato percussivo, harmônicos, timbres característicos, e, ao final do curso, o aluno
ser capaz de ver partituras gráficas com notação totalmente moderna e conseguir
compreender o que está escrito. O importante é o aluno ter a oportunidade de conhecer e
reconhecer as características da música contemporânea, superar as dificuldades
interpretativas inerentes a ela e alinhar-se a tendência mundial.

362
Referências
DELL’ORTO, Angelo. Aspectos interpretativos da Sonata nº 2 de César Guerra-Peixe.
1998. 178f. Dissertação (Mestrado em música – Violino) – Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Escola de Música, 1998.
FARIA, Antonio Guerreiro de et al (Orgs). Guerra-Peixe: Um Músico Brasileiro.
Editora Lumiar, 2007.
GALAMIAN, Ivan. Interpretación y Enseñanza Del Violín. Madrid: Ediciones
Pirámide, 1998.
PRESGRAVE, Fábio Soren. Aspectos da Música Brasileira Atual: Violoncelo.
Campinas/SP, 2008. 182f. Tese (Doutorado em Música). Instituto de Artes,
UNICAMP, Campinas/SP, 2008.
_________. “Os benefícios da inclusão da música contemporânea no currículo dos
cursos superiores de violoncello”. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO
NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA (22), 2012, João
Pessoa/PB. Anais... João Pessoa/PB: 2012. página 1696 - 1702.
SALLES, Mariana Isdesbski. Arcadas e golpes de arco. 2ª Ed. – Brasília: Editora
Thesaurus, 2004.
SILVA, André Cavazotti. “As Sonatas brasileiras para violino e piano: classificação dos
elementos técnico-violinisticos”. In: Encontro Nacional da Associação Nacional de
Pesquisa e Pós-Graduação em Música, 13. Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2001. p.
50-55.
TOKESHI, Eliane. “Técnica expandida para violino e as Variações Opcionais de Guerra
Peixe: reflexão sobre parâmetros para interpretação musical”. Música Hodie,
Goiânia, v. 3, n. 1/2, p. 52 a 58, 2003.
WEISBERG, Arthur. Performing twentieth-century music: a handbook for conductors
and instrumentalists. New Haven: Yale University Press, 1993.

363
Práticas Criativas

364
Produção brasileira no contexto da música eletroacústica na
América Latina: ontem e hoje
Anselmo Guerra
Escola de Música e Artes Cênicas – Universidade Federal de Goiás (UFG)
Caixa Postal 131 – CEP 74001-970 – Goiânia – GO – Brasil
guerra.anselmo@gmail.com

Resumo. Nosso ponto de partida é o “Repertoire International des Musiques


Electroacoustiques”, um dos primeiros registros catalográficos em que encontramos
referências à produção da música eletroacústica da América Latina. Nesse artigo fazemos este
recorte latino-americano e comparamos com um catálogo mais recente publicado pela Daniel
Langlois Foundation for Art, Science, and Technology. Verificamos a falta de mecanismos de
documentação e difusão no âmbito nacional, que minimiza nossa visibilidade no cenário
internacional.
Abstract. Our starting point is the "Repertoire International des Musiques
Electroacoustiques", one of the first catalog records we find references to the production of
electroacoustic music in Latin America. In this article we make this clipping and compared
with a more recent catalog published by the Daniel Langlois Foundation for Art, Science, and
Technology. We note the lack of documentation and diffusion mechanisms, which minimizes
Brazilian visibility on the international scene.

1. Introdução – RIME como ponto de partida


Em 1962, o Groupe de Recherches Musicales (GRM) publicou uma pesquisa de música
eletroacústica sob o título "Repertoire International des Musiques Expérimentales" – RIME
(ORTF 1962). O catálogo aqui analisado foi idealizado como uma nova edição deste estudo,
em busca de uma documentação mais abrangente, apresentando uma metodologia diferente
de apresentação e conteúdo. O RIME foi principalmente uma coleção de informações
enviadas pelos estúdios de música eletroacústica consideradas mais importantes em
existência em 1961. Ela consistia de uma lista das composições produzidas em cada estúdio,
as listas de equipamentos de estúdio, uma bibliografia, discografia e os endereços dos
estúdios. As informações recebidas dos vários estúdios foi arranjado para o formato
escolhido de apresentação com um mínimo de alterações.
Na nova versão de 1967 (que aqui é o nosso objeto de estudo) a abordagem foi
diferente, apesar de ser basicamente uma extensão lógica das diretrizes da RIME. A falta
de padronização e a incompletude comparativa de muitas das entradas no RIME foram
reparadas em relação à edição anterior, confiando a compilação e edição da informação a
uma pessoa, Hugh Davies. Estes ajustes no âmbito do catálogo também se refletem no título
musique expérimentale (referente à "música concreta") que descrevia uma abordagem
específica para um tipo de composição em vez de todo o meio da música eletroacústica que,
a rigor, não poderia ser aplicada a várias das composições que foram listadas no RIME.
Musique Électroacoustique, o termo com o sentido mais amplo em francês, foi substituído,
e Electronic Music escolhido como o seu equivalente Inglês. Na maioria dos outros países,
uma tradução direta de um destes dois termos é usado.
O objetivo desse catálogo era documentar toda a música eletroacústica composta
nos quase 20 anos desde seus primórdios. Naturalmente, seria impossível total abrangência:
muitas composições eletrônicas foram produzidos em uma quantidade mínima de
equipamentos, música de fundo, principalmente para filmes, rádio, TV e comerciais, muito
de forma anônima. A única restrição tem sido a decisão de não incluir efeitos sonoros, tais

365
como montagens feitas em salas de aula da escola, para competições amadoras de gravação
de fita, música ambiente, efeitos para cinema, rádio e TV, e outras aplicações semelhantes
que realmente não se enquadrem o título de composição musical.
Um aspecto inovador no RIME foi a inclusão de "live electronics", em que o
equipamento a partir de um estúdio de música eletrônica é operado ou executada em um
concerto, ou para produzir o som ou para transformar música executada instrumentalmente.
Da mesma forma, incorpora a aproximação com outras artes: poesia, pintura e escultura,
assim como os outros ramos da música, jazz e música popular, cada um tem um apêndice no
presente catálogo, e muitos dos compositores ali listados também são ativos na outra arte.
Alguns são responsáveis por ambos os aspectos de uma determinada composição, tais como
música e coreografia de um balé, ou texto e música para uma peça de rádio. Isto é indicado
de uma forma particular, como descrito na Explicação do Catálogo.

2. Metodologia de catalogação
Para atender a diversidade e tentar atingir os objetivos de uma maneira pragmática, os
editores desenvolveram uma série de códigos para situar cada produção. Inicialmente,
os países são listados em ordem alfabética, grafados em suas línguas oficiais, assim
como os estúdios, separados pelas cidades- sede. As composições são associadas ao
estúdio usado em sua produção, os quais são classificados em quatro categorias:
PO = permanent official (institucional);
PP = permanent private (particular);
io = improvisate official (institucional eventual) e
ip = improvisate private (eventual privado). As categorias improvisate referem-se aos
estúdios usados eventualmente pelos compositores, cujos equipamentos são utilizados
regularmente para outras atividades, como estúdios de gravação e estúdio de rádios.
Assim, arranjados em colunas, são catalogados: nome do compositor (pelo
sobrenome); título das composições listadas cronologicamente; função; data; duração e;
número de canais. Função consiste em três seções: no lado esquerdo estão agrupadas as
obras concebidas como música de concerto; as outras duas indicam diferentes tipos de
música funcional – ao centro, música para eventos “ao vivo”, e à direita, eventos
gravados, como mostra o quadro abaixo:
C = concerto (tape) C* = concerto (live eletronics)O = ópera F = filme
C* = concerto (live eletronics)O = ópera F = filme
C + = concerto (tape +
instrumentos e/ou vozes) B = ballet R = rádio

Th = teatro TV = televisão

MT = teatro musical D = disco

Sn = sonorização In = interval signal

366
S = estudo
t

Tabela 1. Codificação que categoriza as composições

A maioria destas classificações nos é familiar, outras, precisam de especificação.


Para eles, sonorização (Sn) compreende toda a música eletroacústica composta como
background de uma exibição (exposição de quadros, esculturas, poética, ou mesmo
comercial). Interval Signal (In) compreende os sons de assinatura que identificam
estações de rádio e Tv, ou pequenos interlúdios e comerciais.

3. Um recorte focalizando a produção eletroacústica latino-americana


Assim, encontramos a produção eletroacústica latino-americana em seus primeiros anos
transcrita abaixo, recortando a versão de DAVIES (1967):

367
368
369
370
371
372
Tabela 2. Produção eletroacústica latino-americana

Provavelmente há um equívoco no registro da minutagem de “nascemorre” pois na


versão gravada do Madrigal ARS VIVA (1999) o tempo é de 11`22”.

4. Um estudo comparativo de passado e presente


Mais recentemente, encontramos um catálogo organizado pelo pesquisador/compositor
argentino Ricardo Dal Farra. É um trabalho de anos de dedicação, que foi acolhido pela
Fundação Daniel Langlois e disponibilizado na internet82. Daniel Langlois Foundation for
Art, Science, and Technology é uma instituição privada com sede em Montreal (Canadá) que
disponibiliza o exaustivo projeto de Dal Farra intitulado Latin American Electroacoustic
Music Collection na forma de catálogo de compositores, biografias, entrevistas e obras
disponibilizadas na forma de arquivo sonoro, sonogramas e partituras. Nele, Dal Farra
propõe-se a listar compositores latino-americanos cuja produção eletroacústica se encontra
entre os anos 1957 e 2007. Dado o fácil acesso à este conteúdo, e para os propósitos deste
artigo, nos limitamos a reproduzir a relação de compositores por país:
Argentina: 191
Bolívia: 14
Brasil: 90
Chile: 39

82
Disponível em http://www.fondation-langlois.org/html/e/page.php?NumPage=556
373
Colômbia: 39
Costa Rica: 5
Cuba: 44
República Dominicana: 3
Equador: 11
El Salvador: 5
Guatemala: 6
México: 73
Panamá: 3
Paraguai: 4
Perú: 15
Porto Rico: 12
Uruguai: 27
Venezuela: 35
Tabela 3. Extrato quantitativo de compositores por Ricardo Dal Farra

Sobre este acervo, encontramos uma crítica publicada por João Marcos Coelho
(2008). No capítulo Faltou Brasil nesta Panorâmica sobre Música da América Latina
do livro “No Calor da Hora – Música & cultura nos anos de chumbo”, Coelho descreve
o site da Fundação Langlois...

... que armazena um trabalho inestimável do compositor argentino


Ricardo Dal Farra. Ouvi 30 peças eletroacústicas de um acervo de
1722 obras escritas de 1957 a 2004, com direito a acompanhar
sonogramas, ler a biografia do compositor e um comentário sobre cada
peça; […] Mas ao contrário do futebol, onde temos vencido quase
sempre, aqui, os argentinos nos aplicam uma sonora goleada. Em
cerca de 106 páginas, 64 são escritas por ou dedicadas a argentinos. E
as 28 restantes distribuem-se entre México, Cuba e Venezuela.

Com boa dose de ironia, Marcos Coelho levanta a suspeita de uma “sonegação”
de informações sobre a música eletroacústica produzida no Brasil, como se a América
hispânica ignorasse o lado lusófono do subcontinente. Nos parecem precipitadas e
injustas tais afirmações, que mais servem para reforçar os esteriótipos de rivalidade,
atingindo particularmente Dal Farra, que não mediu esforços para colher informações
sobre os vizinhos brasileiros. Contrapondo Marcos Coelho, encontramos uma afirmação
de Dal Farra sobre a dificuldade de colher material para seu catálogo:

Tendo começado a trabalhar no campo da música eletroacústica


durante meados dos anos 70 no meu país natal, a Argentina, eu achei
muito difícil a obtenção de informações sobre as atividades
relacionadas nos países vizinhos e até mesmo na minha própria
cidade. Embora desafiador, no entanto era possível encontrar

374
gravações de compositores que vivem na Europa ou na América do
Norte, mas foi muito difícil localizar qualquer de compositores locais
ou regionais. O que apareceu durante os meus primeiros anos de
pesquisa ser um paradoxo mais tarde tornou-se quase uma constante.
Pode -se encontrar nomes dos compositores e os títulos de suas obras,
mas não a sua música. Levei muito tempo para obter algumas
gravações de música eletroacústica por compositores que vivem ou
trabalham em países da América Latina e para descobrir um mundo
sonoro que havia sido parcialmente escondido, se não completamente
perdido83 (DAL FARRA 2004).

Portanto, é compreensível que existam falhas no retrato que se faz da produção


brasileira, porém, por falta de articulação dentro do próprio Brasil. Como vemos no
catálogo RIME, a proporção entre obras produzidas na Argentina e no Brasil é
praticamente a mesma, demonstrando a isenção dos métodos adotados. Dados
quantitativo de compositores cadastrados, insistindo na comparação entre os dois países,
no RIME temos 21 compositores argentinos para apenas 3 brasileiros, enquanto no
catálogo da Fundação Daniel Langlois temos a relação 191/90.
Um passo importante na solução de nossa deficiência na área de documentação e
difusão foi a criação da Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica, fundada em
setembro de 1994 em Brasília (SBME 1994). Nesse espaço de 20 anos foram realizados
3 encontros internacionais, uma coleção de CDs intitulada Música Eletroacústica
Brasileira (3 volumes) e uma Coletânea de Música Eletroacústica Brasileira com 5 CDs
e um encarte com dados biográficos dos autores e suas obras, organizada pelo
compositor Jorge Antunes. Seria fundamental a intensificação das atividades do SBME
na retomada de eventos nacionais e internacionais, investindo também num formato
bilíngue para seu site, enriquecido com informações dos compositores, seus grupos,
laboratórios, instituições e suas obras, estabelecendo relacionamento com sociedades
similares em outros países.
Para continuidade desta pesquisa podemos propor a avaliação do método do
RIME na atualidade, uma vez que a música eletroacústica parece ter adotado contornos
mais específicos embora tenha aumentado a diversidade de manifestação e função.

Referências
DAL FARRA, Ricardo. El archivo de música electroacústica de compositores
latinoamericanos. Fondation Daniel Langois. (2004) Disponível em
http://www.colegiocompositoresla.org/articulos/archivos/Electroac_LatAm_Dal_Farr
a_e.pdf. Acessado em 27.01.2009.

83
tradução livre: “Having started to work in the electroacoustic music field during the mid '70s in my
native country of Argentina, I found it very difficult to obtain information on related activities in
surrounding countries and even in my own city. Although challenging, it was nevertheless possible to
find recordings by composers living in Europe or North America, but it was very difficult to locate any
by local or regional composers. What appeared during my initial years of research to be a paradox
later became almost a constant. One could find composers’ names and the titles of their works, but not
their music. It took me a very long time to obtain a few electroacoustic music recordings by composers
living or working in Latin American countries and to discover a world of sound that had been
partially hidden, if not completely lost”
375
DAL FARRA, Ricardo. The Electronic Music in Latin America. Portal Unesco. (2003)
Disponível em: http://portal.unesco.org/culture/fr/ev.php-
URL_ID=15341&URL_DO=DO_PRINTPAGE&URL_SECTION=201.html.
Acessado em 16.08.2014.
COELHO, João Marcos. (2008) No Calor da Hora – Música & cultura nos anos de
chumbo. São Paulo: Algol Editora.
DAVIES, Hugh (org). (1967) Repertoire International des Musiques Electroacoustiques
– International Electronic Music Catalog. Electronic Music Review N. 2/3, April/July
1967. Massachusets: MIT Press.
ORTF: Office de radiodiffusion-télévision française. (1962) Répertoire international des
musiques expérimentales: studios, œuvres, équipements, bibliographie. [Paris]:
Publié par le Service de la recherche de la Radiodiffusion-Telévision francaise.
http://catalog.hathitrust.org/api/volumes/oclc/2697105.html.
SBME - Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica. (1994) Disponível em
http://www.sbme.com.br . Acessado em 3.09.2014.

376
Prácticas Creativas Cognitivo-Ecológicas
Damián Keller1, Ariadna Capasso2, Patricia Tinajero3
1
Núcleo Amazônico de Pesquisa Musical (NAP), Universidade Federal do Acre, Rio
Branco, AC, Brasil
2
Investigadora Independiente, Nueva York, EE.UU.
3
Investigadora Independiente, Quito, Ecuador

Grupo de Música Ubíqua


dkeller@ccrma.stanford.edu
Sinopsis. Este artículo constituye una primera aproximación a la discusión teórica en
castellano abordando las prácticas creativas musicales desde la perspectiva de la cognición
situada-corporizada (embedded-embodied cognition). Trazamos un panorama de las
propuestas que tuvieron impacto en las prácticas creativas en eco-composición sónica, eco-
acústica y en análisis musical basado en psicología ecológica, colocando en relieve los
conceptos fundacionales comunes. Indicamos las limitaciones del enfoque musical semiótico
y de las propuestas composicionales prescriptivas que precedieron a los enfoques situados-
corporizados. Sugerimos un conjunto de conceptos teóricos y metodológicos para dar soporte
a las prácticas creativas artísticas sustentadas en cognición ecológica, proponiendo el
término prácticas creativas cognitivo-ecológicas como forma de unificar un campo de
investigación artística diverso y emergente.
Resumo. O presente artigo constitui uma primeira abordagem para a discussão teórica em
castelhano, abordando práticas musicais criativas a partir da perspectiva da cognição
situada-corporificada (embedded-embodied cognition). Traçamos um panorama das
propostas que tiveram impacto na ecocomposição sônica, nas práticas ecoacústicas e na
análise musical com base na psicologia ecológica, colocando em relevo os fundamentos
comuns. Indicamos as limitações da abordagem musical semiótica e das propostas normativas
em composição que antecederam às abordagens situadas-corporizadas. Sugerimos um
conjunto de conceitos teóricos e metodológicos para apoiar as práticas artísticas criativas
baseadas em cognição ecológica, propondo a prática criativa cognitivo-ecológica como
forma de unificar um campo diverso e emergente da pesquisa artística.

1. Introducción: brechas en la investigación sobre el proceso de creación


musical
La tarea de investigar el proceso de creación musical no es fácil. Por un lado, los
fenómenos creativos son por definición únicos. La vivencia de la música afecta
múltiples sentidos y provoca fuertes reacciones emocionales y fisiológicas [Fukui 2001;
Herbert 2011]. Además, la experiencia musical incentiva dinámicas sociales que
dependen de la cultura local y del entorno en el que la obra fue creada o recreada
[Morrison y Demorest 2009]. Por lo tanto, cualquier intento serio de fundamentar
teóricamente la creación musical enfrenta dos dificultades: 1) lograr evaluar
adecuadamente el impacto de los efectos producidos por la combinación de factores
personales y ambientales sobre el proceso creativo; y 2) fundamentar la teoría en un
diagnóstico detallado de los procesos y productos creativos.

377
Para estudiar los fenómenos musicales, debemos hacer un muestreo de aspectos
específicos de la creatividad musical a través del tiempo y del espacio. Esta disección
artificial de las experiencias musicales en unidades manejables puede tener un costo alto:
mientras nos concentrarnos en un factor particular, perdemos de vista otros factores tan o
más relevantes. Por lo tanto, las contribuciones y debilidades de la teoría musical se
miden por su nivel de validez ecológica para el análisis de ejemplos reales. En lo que se
refiere a la creación musical, una de las limitaciones de los enfoques prescriptivos
[Boulez 1986; Schaeffer 1977] es su intento de explicar los procesos creativos
exclusivamente a través del análisis de los productos musicales. Las teorías que
prescriben procedimientos fundamentados en productos musicales existentes pueden
proporcionar información acerca del momento y del contexto en que el objeto analítico
fue realizado. Sin embargo, no contribuyen informaciones sobre las condiciones reales de
los procesos creativos que eventualmente condujeron a resultados originales y relevantes.
Aparentemente, lo que se necesitan son herramientas de predicción, en lugar de recetas
de procedimientos creativos.
Uno de los criterios de validación de las teorías de creación musical es que sea
posible evaluar el impacto de los factores personales y ambientales sobre las obras
creativas [Dillon 2007]. De hecho, recién durante la última década las teorías de creación
musical comienzan a dar pautas acerca de cómo medir y evaluar las acciones que
conducen a la creatividad [Collins 2005; Eaglestone et al. 2008]. Pero antes de abordar la
discusión de las prácticas creativas del siglo XXI, intentaremos establecer un panorama
de las propuestas composicionales anteriores para contextualizar el surgimiento de las
tendencias actuales.
En la década de 1920, Edgard Varèse escribía que el quehacer musical necesita de
sistemas sónicos "abiertos, en lugar de cerrados84" [Wen-Chung 1966]. Su definición de
la música como sonido organizado exigía nuevas herramientas para sustentar la labor
creativa. Más de medio siglo de avances tecnológicos fueron necesarios para ponerse al
día con la visión de Varèse. Para él, el sonido es material orgánico, en perpetua evolución.
Por lo tanto no es posible controlarlo arbitrariamente por la "mano del compositor85”
[Feldman 2000]. Compositores como Herbert Brün, James Tenney, Gerard Grisey y Otto
Laske, a través de manipulaciones sónicas digitales, exploraron nuevos fenómenos
perceptivos en su música [Brün y Chandra 2004; Laske 1989]. Sus contribuciones, al
igual que la mayoría de los avances significativos en el campo de la creación musical
durante la segunda mitad del siglo XX, fueron posibles gracias al desarrollo de las
técnicas computacionales.
Hasta mediados de la década de 1980, el acceso a la tecnología de la información
se circunscribía a los centros de investigación con mayor cantidad de recursos
financieros. Las limitaciones de espacio e infraestructura computacional requerían una

84
Open, rather than bounded.
85
The composerly hand.

378
planificación cuidadosa de los procesos creativos, dejando pocas oportunidades para la
experimentación libre. La restricción del acceso y las limitaciones de las interfaces
basadas en texto fomentaron un aura de 'eminencia' en torno de la composición asistida
por computadora (CAC). Al mismo tiempo, en lo técnico este enfoque ofreció el contexto
idóneo para la institucionalización de la visión formalista de la música [Born 1995]: la
creación musical se equiparó a la manipulación abstracta de símbolos. Las propuestas de
Boulez (1986) y Xenakis (1971/1992) ilustran esta tendencia. Aunque no están
fundamentadas en el cognitivismo clásico [Neisser 1967; Newell y Simon 1972], la
concepción de la creación musical como un proceso puramente formal es consistente con
las teorías del funcionamiento del cerebro como una máquina de procesamiento de
información. Hoy por hoy, los métodos formalistas siguen presentes en el ámbito de la
performance musical algorítmica, aunque es posible que sean reemplazados
eventualmente por enfoques emergentes basados en cognición situada-corporizada86.
A partir de mediados de los ‘80, el arte sonoro (según el modelo de Varèse) llegó
al alcance de compositores marginados de los grandes centros de investigación. A pesar
de los avances en las herramientas para manipulación sincrónica87 del sonido, los
procesos musicales creativos aún mantenían una estricta separación entre la experiencia
creativa cotidiana y la toma de decisiones creativas. Los procedimientos formalistas
fueron reemplazados por la manipulación de objetos sonoros88. Las técnicas de
sampling89 permitieron manipular sonidos concretos con el fin de exponer su esencia
"musical" y minimizar sus vínculos con la experiencia mundana. Dentro del campo de la
música acusmática, la audición repetida de objetos sonoros dentro del ambiente del
estudio, permitió a compositores como Denis Smalley (1997:111) evitar “distraerse” con
referencias externas y concentrarse en los aspectos puramente sonoros del proceso
compositivo.
En oposición a esa corriente y sobre la base de los conceptos inicialmente
formulados por el compositor R. M. Schafer (1977), un grupo de artistas sonoros destacó
los aspectos ambientales de la creación musical [Truax 2002]. La composición de
paisajes sonoros90 en su forma tradicional equiparó al compositor con un fotógrafo del

86
Embedded-embodied cognition.
87
En tiempo real.
88
Objeto sonoro: concepto vinculado a la tradición acusmática
iniciada por Pierre Schaeffer (1977).
89
Gravación y manipulacíón de eventos sonoros.
90
Soundscape composition.

379
ambiente sonoro [Westerkamp 1989]. El lugar – uno de los seis factores creativos
identificados por Kozbelt et al. (2010) – tomó un papel central en la práctica creativa.
Pero a pesar de la importancia dada por la composición de paisajes sonoros al material
sónico del medio ambiente, la relación entre el lugar y el proceso creativo siguió siendo
la misma: los sonidos se grababan en el ambiente externo pero, de forma igual a lo que se
hacía en la música acusmática, se procesaban en el estudio. El objetivo era conectar el
lugar con la práctica musical, pero las herramientas disponibles todavía no eran propicias
para ello.
A finales de '90 el campo de la investigación creativa musical evidenciaba varios
problemas metodológicos y conceptuales que indicaban un fundamento teórico-
metodológico débil: (1) Hubo un cambio de énfasis: de productos creativos a procesos
creativos. Este cambio no fue acompañado por el desarrollo de herramientas teóricas y
metodológicas que permitiesen abarcar la complejidad de los productos creativos
dinámicos. Este tipo de experiencias musicales requieren nuevos enfoques analíticos y
epistemológicos [Keller y Ferneyhough 2004; Marsden 2009]; (2) Hubo un aumento en la
demanda de infraestructura tecnológica. Aunque al principio esta tendencia se limitaba a
unos pocos centros de investigación, tres factores contribuyeron para el incremento
exponencial de la música basada en soporte digital: (a) la amplia disponibilidad de
hardware para consumo doméstico (los dispositivos fijos91 primero y luego los
dispositivos portátiles con soporte básico para producción sonora); (b) el desarrollo de
software de código abierto y su distribución a través de la red 92; y (c) las redes de
conocimiento (como ejemplo, las comunidades de práctica y las comunidades de
interés93) [Pimenta et al. 2012]; (3) Se enfatizó la importancia del lugar en la creación
musical. Esta tendencia surgió originalmente en el arte para sitios específicos, o arte
situacional [Friedman et al. 2002] y en la composición de paisajes sonoros. Sin embargo,
hasta recientemente, las prácticas artísticas vinculadas a lugares específicos no fueron
abordadas desde la perspectiva de la creatividad [Keller 2012]. Por lo tanto, aún son raros
los métodos de creación que incorporan el lugar en el proceso creativo [Keller et al.
2011a]; (4) Los modelos prescriptivos fueron progresivamente substituídos por modelos
descriptivos y predictivos. A medida que las teorías musicales puramente formalistas
fueron perdiendo vigencia, las herramientas teóricas empezaron a exhibir sus
limitaciones. La metáfora de Feldman (2000) de la "mano composicional94” resume una
tendencia general a utilizar factores y herramientas extra-musicales (software para

91
Herramientas que limitan la mobilidad (desktop computers y
similares).
92
World Wide Web.

93
Communities of practice, communities of interest.
94
The composerly hand.

380
manipulación sonora, sonidos ambientales, referencias extra-musicales y participación de
la audiencia), erosionando la imagen del compositor-genio que crea música “en su
cabeza”. El concepto de cognición situada-corporizada95 [Gibson 1979; Varela et al.
1974] puede proporcionar herramientas teóricas para sustentar los fenómenos musicales
que van más allá de los procesos mentales del genio en su claustro [Weisberg 1993].

2. El enfoque cognitivo-ecológico
Hasta fines de los años noventa, el enfoque cognitivo situado-corporizado no logró
constituirse en un enfoque multidisciplinario unificado [Clark 1999]. El campo de la
cognición enactiva96 introdujo la idea de que la cognición emerge del ecosistema [Varela
et al. 1974; Di Paolo et al. 2010]. A través de la enacción, los organismos y el medio
ambiente interactúan en respuesta a las presiones evolutivas. Dentro de este proceso de
adaptación mutua - llamado acoplamiento estructural97 – la cognición es una extensión
del cuerpo (Varela 1991). Otra propuesta teórica complementaria propone el concepto de
cognición distribuida98. Según Hutchins (1995), las actividades humanas complejas son
posibles gracias a la utilización del medio ambiente como andamiaje cognitivo. La
cognición no tiene lugar sólo "en la cabeza", sino que resulta de la relación estrecha entre
medio ambiente y organismo. Una tercera teoría, con mayor sustento experimental, es la
psicología ecológica. Arraigada en la tradición pragmatista de William James, J. J.
Gibson (1979) propone que la percepción y la acción forman una unidad funcional. La
cognición es el resultado de la acción. Por lo tanto, la psicología experimental estudiaría
seres humanos actuando en entornos reales. Gibson (1977; 1979) propone dos conceptos
experimentales que prescinden de los paradigmas teóricos dualistas que separan la mente
del mundo exterior: las potencialidades o canales de interacción99 y los eventos. Las
interacciones entre agentes y objetos producen unidades temporales finitas de
observación llamadas “eventos”. Estas interacciones se producen a través de
potencialidades, es decir, como oportunidades de acción de los agentes sobre el entorno y
determinadas por la percepción de las características del entorno durante la actividad del
agente.

95
Embedded-embodied cognition.
96
Enactive cognition.
97
Structural coupling.
98
Distributed cognition.
99
Affordances: opportunities for action.

381
Partiendo del enfoque cognitivo situado-corporizado, la psicóloga Margaret
Wilson (2002) propuso una distinción entre los procesos cognitivos sincrónicos y
asincrónicos100. Entre los mecanismos sincrónicos figuran los recursos cognitivos
integrados al contexto donde se desarrollan las actividades. Estos tienen un rol
preponderante en situaciones donde el tiempo es una variable crítica y cuando se debe
externalizar información al medio ambiente. En estos casos, el cerebro opera en base a las
necesidades corporales. Por otro lado, los procesos asincrónicos son aquellas actividades
cognitivas en que los recursos sensoriales y motrices influyen sobre los procesos
mentales disociados de la actividad, o cuando la actividad es imaginaria. Estos incluyen
intercambios simbólicos y usos internos de información sensorial y motriz en forma de
simulaciones mentales. En estos casos, en lugar de la mente servir al cuerpo, el cuerpo
sirve a la mente. El uso de mecanismos cognitivos asincrónicos tiene claras implicaciones
para la creación musical. Como afirma Wilson (2010:182), "Ser músico es mucho más
que tener la habilidad física para tocar un instrumento. [. . .] La reorganización cognitiva
es particularmente importante para los compositores, que deben ser capaces de simular
con la imaginación, simultáneamente, las actividades y las relaciones entre distintos
instrumentos y líneas musicales." De este modo, las actividades creativas que antes se
proponían como producto del procesamiento simbólico abstracto pueden hacer uso de las
interacciones corporales del agente con el medio ambiente.
Partiendo de las propuestas iniciales que veían la cognición situada-corporizada
como un proceso individual, los enfoques recientes sugieren que las interacciones
sociales actúan como mecanismos de estabilización de conceptos y comportamientos.
Como dice Hutchins (2008), "la actividad en el sistema nervioso vincula los procesos
cognitivos de alto nivel con el entorno organizado cultural y socialmente a través de la
interacción corporizada". Barsalou (2008) sugiere que el enfoque corporizado puede
unificar la percepción, la acción y la cognición. La cognición social a menudo asume que
el cuerpo proporciona un mecanismo de estabilización de conceptos, fundamentando el
concepto de "corporización". Otra línea de investigación toma el entorno material y social
como parte central del andamiaje cognitivo. Estos enfoques se agrupan bajo los rubros de
cognición corporizada y cognición situada101. Por un lado, Barsalou propone la adopción
del término "situado" para abarcar todos los enfoques sociales [Costall 1995]. Por el otro,
Hutchins (2010) introduce la noción de "ecología cognitiva" como un concepto que
engloba la relación entre los procesos cognitivos y los elementos del ambiente. Teniendo
en cuenta que estas perspectivas son complementarias, en la práctica creativa los
enfoques situados-corporizados – que proponen que agentes y objetos interactúan dentro
de nichos ecológicos [Odling-Smee et al. 2003] – pueden congregarse como conceptos
cognitivo-ecológicos o como cognición basada en ecología102.

100
On-line, off-line.
101
Grounded cognition.
102

382
3. Prácticas creativas cognitivo-ecológicas
Las prácticas creativas cognitivo-ecológicas fueron introducidas en el campo de la
música por dos iniciativas: 1) una como aplicación en análisis musical y 2) otra como
aplicación en creación musical. En un ensayo crítico y agudo, Windsor (1995) introdujo
varios conceptos de cognición situada-corporizada en el ámbito del análisis musical. Su
propuesta – aunque dirigida a las exigencias de la práctica electroacústica de estudio –
puso de relieve la estrecha afinidad entre las prácticas de arte sonoro y los esfuerzos
teóricos de orientación cognitivo-ecológica. Windsor intentó vincular el concepto de
potencialidad103 con el modelo de representación triádica de Peirce (1991), argumentando
a favor de la re-interpretación simbólica de las potencialidades. De forma independiente y
desde una perspectiva complementaria, Keller y Truax (1998) propusieron un enfoque
Gibsoneano para la creación musical; este modelo planteaba el empleo de técnicas de
síntesis basadas en psicología ecológica para probar la aplicabilidad del enfoque
cognitivo-ecológico en la práctica creativa musical. Soretes de Punta [Keller 1998; ver
Basanta 2010 para un análisis exhaustivo de esta pieza] y touch'n'go [Keller 1999b;
documentada en Keller 1999a] son dos obras hechas desde la perspectiva Gibsoneana que
ofrecen claros ejemplos de texturas sintéticas y eventos sintéticos fundamentados en el
mundo real. Windsor (1995) y Keller (1999a; 2000) fueron los primeros en hacer una
revisión de literatura interdisciplinaria, incluyendo los campos de psicoacústica, biología,
robótica, interacción humano-computadora y ciencias cognitivas. Estos esfuerzos de
consolidación de conceptos fomentaron el crecimiento de iniciativas artísticas y de
propuestas teóricas con enfoques cognitivo-ecológicos durante la década siguiente.
Los trabajos de Windsor (1995) y Keller (1999a; 2000) tenían objetivos
diferentes. El de Windsor era producir herramientas de análisis basadas en la percepción
que proporcionasen un terreno fértil para las teorías descriptivas de los fenómenos
musicales. El objetivo de Keller era desarrollar prácticas creativas con el apoyo de
métodos y teorías basadas en la percepción. Mientras uno se interesó en el estudio de los
resultados composicionales excluidos de las teorías musicales existentes, el otro buscó
técnicas creativas que incorporasen eventos musicales basados en experiencias sonoras
reales. Los resultados fueron convergentes. Ambos llegaron a la conclusión de que el
enfoque situado-corporizado en música tendría que tomar en cuenta: (1) las experiencias
sónicas cotidianas, para formar la base de las experiencias musicales; (2) los fenómenos
musicales contextualizados socialmente, contrastando con los objetos sonoros autónomos
y auto-referenciales adoptados por las vertientes acusmáticas; (3) los eventos sonoros,
como unidades resultantes de la interacción entre agentes y objetos; (4) las
potencialidades104, o las oportunidades y las limitaciones resultantes de los procesos de
adaptación mutua entre agentes y objetos.

Ecologically grounded.
103
Affordance.
104
Affordances.

383
A pesar de sus conclusiones convergentes, las teorías de Keller y de Windsor se
enfrentaron con los mismos obstáculos que tuvo la aplicación del enfoque situado-
corporizado en el campo más amplio de las ciencias cognitivas. Estaba claro que los
fenómenos musicales estaban basados en lo social, pero la psicología ecológica no
proporcionaba herramientas conceptuales para manejar los procesos cognitivos
asincrónicos, ni para fundamentar la base social de los procesos creativos. Keller (2000)
recurrió al concepto de referencialidad, propuesto por el enfoque de paisajes sonoros
[Truax 2002]. Pero pronto migró hacia una versión más específica de la experiencia
individual, al adoptar la noción de entorno personal o sentido personal105 [Keller y
Capasso 2000]. Windsor (1995) empleó la propuesta semiótica de Eco (1979) y de
Barthes (1978).
La semiótica, proveniente de la tradición lingüística desvinculada de la cognición
corporizada, sugiere que las experiencias pueden ser reducidas a relaciones abstractas
sintácticas aisladas de la experiencia cotidiana. Como Windsor comentó en su momento,
en oposición a la decodificación del mensaje o de experiencias reales en el mundo, la
semiótica sostiene que el significado está determinado por un sistema de relaciones
duales que abarcan significantes y significados. Siendo que el significado exige un
proceso constante de traducción entre las experiencias y los códigos culturales, los
objetos materiales y los eventos ambientales se convierten en signos que representan
otras cosas. Esta visión representacionalista y mentalista fue ampliamente criticada desde
las propuestas de la cognición situada-corporizada [Cisek 1999; Chemero y Turvey 2007;
Varela 1991; Warren 2005]. Usando las palabras del propio Gibson (1979:253), "el
conocimiento del mundo no puede explicarse suponiendo que el conocimiento del mundo
ya existe". Si las potencialidades naturales106 son el resultado de adaptaciones mutuas
entre los agentes y los objetos, la proposición de que existen signos que actúan como
intermediarios entre los agentes y los objetos es difícil de sustentar. Esta es la diferencia
fundamental entre los marcos teóricos de la eco-composición y de la semiótica musical.
En el primer caso, las interacciones entre el agente y el objeto sustentan el potencial
sonoro. En contraste, en las teorías basadas en la semiótica se recurre a los signos como
el mecanismo básico para la formación de los significados sonoros.
Después de las propuestas iniciales de Windsor y Keller, varios artistas acogieron
la cognición situada-corporizada como base conceptual y metodológica para su práctica
creativa. Matthew Burtner (2005; 2011) desarrolló una serie de experiencias compositivas
incluyendo grabaciones de campo y técnicas musicales interactivas. En referencia a los
inicios de la investigación en el campo perceptivo [Vanderveer 1979], las denominó ‘eco-
acústicas’. Agostino Di Scipio (2002) amplió la gama de técnicas de síntesis mediante la
aplicación de funciones iterativas para producir texturas sonoras naturales. Su
composición Audible Ecosystemics [Di Scipio 2008] empleó el espacio como un
parámetro clave para las prácticas creativas musicales en tiempo real. Natasha Barrett

105
Personal sense or personal environment.
106
Natural affordances.

384
(2000) y Tim Opie desarrollaron técnicas de recopilación de datos acústicos producidos
por animales y agentes físicos [Opie y Brown 2006]. Las obras de Barrett incluyeron el
uso y la aplicación de técnicas de espacialización basadas en ambisonics. Miller (2005),
Davis (2008) y Basanta (2010) utilizaron procedimientos fundamentados en cognición
ecológica para aumentar la participación del público en sus instalaciones sonoras.
Finalmente, Nance (2007) y Lockhart aplicaron conceptos cognitivo-ecológicos en la
elaboración de sus composiciones instrumentales [Lockhart y Keller 2006].
Un denominador común de las prácticas creativas cognitivo-ecológicas es el
vínculo estrecho entre los sonidos que reproducen fenómenos naturales y los factores
perceptivos y/o sociales generados por la experiencia cotidiana. El paradigma de la eco-
composición sonora107 que ha surgido de los múltiples proyectos creativos realizados
desde 1997 consta de dos estrategias principales: (1) la construcción de un marco teórico
para las prácticas creativas cognitivo-ecológicas [Barreiro y Keller 2010; Keller 1999a;
Keller 2000; Keller y Capasso 2000; Keller y Capasso 2006; Keller 2012]; y (2) el
desarrollo simultáneo de técnicas creativas coherentes con estos fundamentos teóricos,
incluyendo la participación de la audiencia y el uso de propiedades emergentes108 como
las fuerzas creativas centrales [Flores et al 2010; Keller et al 2010; Keller et al 2011a;
Miletto et al. 2011; Lima et al 2012; Pimenta et al 2012].

4. Conclusiones
En síntesis, como dijo Windsor en 1995, las teorías musicales prescriptivas –
ejemplificadas en las propuestas de Schaeffer (1977) y de Boulez (1986) – eventualmente
dejarán espacio para teorías descriptivas y predictivas. El análisis musical basado en
psicología ecológica entra en la primera categoría y las prácticas creativas cognitivo-
ecológicas109 en la segunda. Sin necesidad de imposiciones estéticas o de prescripciones
creativas, estos métodos pueden caracterizarse en términos simples. Según lo sugerido
por Keller (1999a) desde una óptica cognitivo-ecológica, el sonido es un subproducto de
la actividad social situada: su validez ecológica se puede definir mediante la observación
y la realización de interacciones en situaciones cotidianas. La acción del individuo en el
medio ambiente y la influencia del medio ambiente sobre el individuo determinan un
proceso de adaptación mutua, circunscribiendo las potencialidades entre los agentes y los
objetos. Este proceso puede ser modelado algorítmicamente, produciendo resultados
sonoros consistentes con las posibilidades del entorno local.

107
Ecocomposition, eco-composition, sonic ecocomposition,
ecologically grounded creative practice.
108
Emergent properties.
109
Ecologically grounded creative practice.

385
5. Agradecimientos
Esta investigación fue financiada en parte por el Consejo Nacional de Desarrollo
Científico y Tecnológico (CNPq 455376/2012-3, 407147/2012-8), por el Decanato de
Investigación y Posgrado – Universidad Federal de Acre (Edital 6.2013 PROPEG -
UFAC) en Brasil, y por el Lower Manhattan Community Council, Nueva York, EE.UU.
(subvenciones artísticas 2012).

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391
Primeira leitura: o comentário composicional de uma canção
apócrifa
Max Packer

ECA - Escola de Comunicações e Artes - Universidade de São Paulo (USP) – São Paulo –
SP – Brasil

mxpacker@gmail.com

Resumo. O presente trabalho apresenta um relato composicional da obra primeira leitura de


uma canção apócrifa (2013), para quinteto de clarinetes. A peça foi escrita a partir de Lied
(1983), para clarinete solo, de Luciano Berio e se posiciona em diálogo com a poética beriana
do comentário musical. Tal processo é caracterizado por partir de uma outra peça já existente
e expandir sua instrumentação, buscando sempre explorar e desdobrar aspectos estruturais da
peça original. A partir da experiência de composição da peça em questão, abordo aqui tanto
as questões técnicas envolvidas na prática do comentário, como as questões conceituais
implicadas em tal prática.
Abstract. This paper presents a compositional report on the piece primeira leitura de uma
canção apócrifa (2013), for clarinet quintet. This piece was written after Luciano Berio’s solo
clarinet piece Lied (1983) and dialogues with the berian poetic of musical commentary. Such a
process is characterized for stemming from an existent preceding piece and expanding its
instrumentation through deploying structural aspects of the original piece. Through relating
such compositional experience, I approach in this paper both technical and conceptual matters
implied in the commentary practice.

A realidade do mundo se apresenta a nossos olhos múltipla, espinhosa,


com estratos densamente sobrepostos. Como uma alcachofra. O que
conta para nós [...] é a possibilidade de continuar a desfolhá-la como
uma alcachofra infinita, descobrindo dimensões de leitura sempre
novas. (CALVINO, 1991. “o mundo é uma alcachofra”)

O presente artigo aborda questões composicionais que envolveram a escrita da obra


primeira leitura de uma canção apócrifa (2013), para quinteto de clarinetes. Parte
integrante da pesquisa de Mestrado110, esta peça se posiciona em meio ao estudo sobre o
pensamento composicional de Luciano Berio, com enfoque sobre sua prática de
reescrever as próprias obras e de outros autores. Buscando estender ao âmbito prático-
composicional um conjunto de questões que foram também abordadas conceitual e
analiticamente, primeira leitura... se configura como um capítulo musical do estudo
sobre Berio, no qual a abordagem sobre composição é, ela mesma, composicional.

110
Tal pesquisa, intitulada “Latência, ressonância, abertura: um estudo sobre o pensamento
composicional de Luciano Berio” foi concluída e defendida na UNICAMP (2012-2013), sob orientação de
Silvio Ferraz e financiada pela FAPESP.

392
Se, por um lado, estuda-se uma obra (ou um conjunto de obras) a fim de produzir
uma análise e deduzir problemas composicionais, por outro, a aproximação a uma peça
musical pode ser realizada através do processo criativo de uma nova peça. Trata-se, numa
tal proposta, de explicitar uma modalidade de análise – certamente a mais antiga - na qual
a própria curiosidade sobre uma obra é motivada pela composição de uma outra: ao invés
de um texto sobre uma música, uma música sobre uma música. Deste modo, a análise
musical propriamente dita – compreensão do funcionamento das partes num todo –
configura-se como uma etapa intermediária de um processo que visa atingir um estado
em que o próprio aprofundamento sobre o material investigado – cuja composição do
conjunto tende, através da análise, a se fragmentar – impõe a tarefa de reorganizar
musicalmente suas partes em vista a novas relações.

Um tal experimento filia-se ao pensamento de Luciano Berio de maneira tanto


mais geral quanto mais específica: com o intuito de exercitar uma modalidade particular
de reescrita, que se encontra amplamente explorado na obra de Berio, o material
escolhido como ponto de partida para este trabalho foi uma peça deste mesmo
compositor: Lied, para clarinete solo (1983).

Esta modalidade particular de reescrita posiciona-se, no contexto do pensamento


de Berio, sob o princípio mais geral do comentário composicional e manifesta-se
emblematicamente na série Chemins111. Em linhas gerais, trata-se do engendramento de
um novo processo a partir da exploração significativa de um enunciado musical pré-
existente, e que, numa primeira etapa, conserva quase intacto este mesmo enunciado – “o
objeto e o assunto” sobre o qual o próprio comentário incide –, resultando numa
coexistência interativa entre material original e material derivado. Na série Chemins
(1965-98), Berio retoma integralmente algumas de suas Sequenzas (1958-2003) em meio
a um novo contexto instrumental que permite tanto amplificar certos aspectos estruturais
quanto derivar discursos paralelos que se proliferam no novo corpo instrumental,
chegando mesmo a rivalizar com o discurso original112. Como observa o próprio
compositor:

111
A amplitude das questões em torno a noção de comentário composicional, na qual se
insere este conjunto de obras de Berio, é o assunto central de minhas pesquisas já há alguns anos. Vale
citar: a Iniciação Científica “Análise das obras Sequenza VII e Chemins IV de Luciano Berio” (2010-11); o
Mestrado “Latência, ressonância, abertura: um estudo sobre o pensamento composicional de Luciano
Berio” (UNICAMP, 2012-13); o Doutorado em andamento “O comentário enquanto problema
composicional a partir da obra de Luciano Berio” (USP, 2014-17). Até a presente etapa, foram elaborados
quatro artigos, dos quais um foi publicado na Revista Opus – “A ressonância enquanto recurso polifônico –
análise de Erdenklavier, de Luciano Berio” –, e ou outros três foram apresentados em Congressos da
ANPPOM: 1) “A escritura do espaço sonoro nas obras Sequenza VII e Chemins IV de Luciano Berio”
(Uberlândia, 2011); 2) “A polifonia latente nas obras Leaf e Erdenklavier de Luciano Berio” (João Pessoa,
2012); 3) “A noção de abertura na poética beriana do comentário composicional (Natal, 2013). Para um
maior esclarecimento sobre questões conceituais que envolvem os processos descritos no presente artigo,
recomendo o último artigo referido, dedicado à peculiaridade da noção de abertura no pensamento de
Berio.
112

393
O conjunto instrumental traz para a superfície e desenvolve processos
musicais que estão escondidos e comprimidos na parte solista,
amplificando todos os aspectos, inclusive os temporais: em alguns
momentos os papéis se invertem de modo que a parte solista parece ter
sido gerada pelo próprio comentário (BERIO, 2006).

Como se vê, a estratégia de reescrita em questão não se constrange em, numa


primeira etapa, explicitar integralmente ‘objeto’ sobre o qual pretende atuar. Esta
peculiaridade impulsiona um processo em cadeia: a obra tomada como ponto de partida
tenderá a se dissolver progressivamente em etapas composicionais sucessivas que
resultam em uma série de obras estruturalmente conectadas.113 Assim, a natureza
processual desta modalidade se expande do seio do engendramento formal de uma
mesma obra à disposição de um plano mais amplo no qual se encadeiam uma sequência
de obras, que se comentam e se reconfiguram na passagem de uma à outra. O processo
interno de cada etapa (cada obra tomada individualmente) é espelhado pelo processo
global da série virtual de obras singulares, cuja atualização está sempre por vir.

O título de peça em questão – primeira leitura de uma canção apócrifa – indica


esta condição: trata-se da primeira etapa de um sequência de obras que se encadearão
como momentos de um processo, potencialmente infinito, de retomada e ressignificação
dos elementos de um contexto composicional a outro.114 Além de enfatizar o caráter
temporário das soluções criativas115, tal processo

Em seu estudo sobre a série Chemins, de Berio, Edward Venn vai além da definição do
próprio Berio – segundo a qual os Chemins seriam “análises” das suas Sequenzas – e propõe que sejam
entendidos como verdadeiras “performances composicionais”, que tornam explícitas algumas
potencialidades latentes nas obras originais, mas não deixam de suprimir outras – exatamente como um
performer instrumentista, que escolhe e privilegia certos aspectos da obra que executará, em detrimento de
outros. “O que as recomposições de Berio nos oferecem é a chance de ver como um compositor renegocia a
significância de seus materiais de uma ‘performance’ [composicional] a outra, de ver como os significados
são feitos proliferar ou colocados em cheque. Em suma, elas nos oferecem a oportunidade de observar a
abertura em prática” (VENN, 2007, p. 179, tradução nossa). Cf. também PACKER, 2013a e 2013b.
113
Tomando como ponto de partida a obra Sequenza VI (1968), para viola solo, Berio
desencadeou uma série de obras-comentário sucessivas (Chemins II, para viola e nove instrumentos,
Chemins III, para viola e orquestra; Chemins IIb, para orquestra; e Chemins IIc, para clarone e orquestra)
que levam – através da absorção de seus aspectos estruturais – a uma progressiva a dissolução da viola
solista original. O processos de depuração da obra original é tal que, na quinta obra da série, Chemins IIc,
surge um clarone solista acompanhado pelo conjunto orquestral dentro do qual o discurso da viola original
encontra-se totalmente (e audivelmente) absorvida. Cito Berio: “Esses três Chemins estão relacionados
entre si assim como as camadas de uma cebola: distintas, separadas, ainda que intimamente moldadas entre
si; cada nova camada cria uma outra, porém relacionada, superfície, e cada camada anterior assume uma
nova função assim que é coberta (BERIO, 1972 apud ROBERTS in HALFYARD, 2007, p. 125).
114
A próxima obra desta série já foi composta e será comentada na respectiva comunicação
que se realizará no SIMA 2014: ela consiste justamente numa segunda leitura, porém, não mais a partir de
Lied, mas a partir dos elementos que proliferaram em primeira leitura..., de forma que a linha original de
Berio já não aparece na posição de solista, estando já dissolvida no interior de um conjunto instrumental

394
[...] implica na possibilidade de transformar e até mesmo de abusar da
integridade do texto, de modo a realizar um ato de demolição
construtiva. A transcrição parece ser atraída para o próprio núcleo do
processo formativo, tomando conjuntamente a responsabilidade pela
definição estrutural da obra. Não é, portanto, o som que está sendo
transcrito, mas a ideia. (BERIO, 2006, p. 45; tradução nossa)

Diante da amplitude das questões suscitadas por tal processo, o presente artigo
pretende comentar alguns aspectos do processo composicional de primeira leitura de
uma canção apócrifa, enfocando sobre as estratégias de desdobramento de elementos da
peça de base – Lied, de Berio – no interior de nossa composição-comentário. Juntamente
a isso, esperamos introduzir alguns pontos acerca do alcance conceitual de tal proposta e
algumas das direções vislumbradas até a presente etapa da pesquisa.116
1. Estratégias formais de primeira leitura...: janelas-comentário e reflexões
melódicas
Como já foi dito, a linha de Berio mantém-se, nesta primeira leitura..., praticamente
intacta, salvo algumas pequenas alteração e interrupções conforme veremos adiante. O
novo processo composicional se manifesta, então, na escrita dos quatro clarinetes
acrescentados, cuja matéria-prima é tudo que puder ser absorvido a partir do universo
“fechado” de Lied, executado inteiramente pelo clarinete 1.

Ao mesmo tempo em que a forma já é delineada pela presença integral de Lied e


que, portanto, há uma distribuição prévia de lugares formais cujas feições particulares
refletirão na nova composição, tal disposição fixa permite a inserção de “janelas”
formais, nas quais a linha principal é interrompida e o conjunto acrescentado ganha
tempo para refletir os elementos absorvidos sem deturpar a coerência diacrônica da forma
original.

Em meio a este procedimento formal básico – as ‘janelas-comentário’ – surgem


outros jogos, inicialmente bastante simples, que caracterizam o comportamento dos

heterogêneo, formado por nove instrumentos de sopro (três clarinetes, fagote, oboé, flauta, trombone,
trompa e trompete).
115
Cf. OSMOND-SMITH, 1983, p. 88.
116
Tendo em vista que o presente artigo centra questão sobre procedimentos
composicionais ligados a uma prática específica, não pretende-se, nesta ocasião, buscar um posicionamento
definitivo em relação aos amplos desdobramentos suscitados pelas questões aqui introduzidas. Por tomar
Berio como referência central para as questões composicionais aqui discutidas, não é do escopo deste artigo
aprofundar-se na amplitude disciplinar do debate acerca da reescrita, que relaciona diferentes áreas, tais
como a filosofia da linguagem (por exemplo, o debate entre F. Sausurre e M. Bakhtin), literatura, música
computacional, semiótica e sociologia da arte.

395
quatro clarinetes acrescentados. Em primeiro lugar, o prolongamento de notas capturadas
do solista, um recurso que estabelece, no início da peça, o próprio mecanismo de
subordinação entre o solista e os demais clarinetes: figura e fundo. Na primeira vez em
que o solista é interrompido sua ressonância, tendo escapado, adquire mobilidade no
interior do âmbito de registro já delimitado pela linha principal (Ex. 1).

Exemplo 1. Breve interrupção do solista e fundo começa a ganhar mobilidade


(dentro do espaço de ressonância já traçado pela linha).
Um pouco adiante, a absorção, pelo fundo do elemento que se seguiria
originalmente no solista (a apojatura no cl. 3), resulta numa nova interrupção da linha
principal117. Nesta janela, os quatro clarinetes acrescentados ganham tempo para trazer à
tona aspectos implícitos na harmonia da linha principal, ainda numa textura homorrítmica
– mais de tipo caleidoscópico que de tipo polifônico –, com se fosse um único clarinete,
mas expandido, capaz de executar várias vozes.

Exemplo 2. Comp. 27-31; Ressonância realiza ‘efeito vitral’ a quatro vozes refletindo
perfis apresentados pela linha principal.
O ‘fundo’, inicialmente constituído por ressonâncias do solista – e, portanto,
‘colado’ ao mesmo –, começa a ganhar mobilidade, absorvendo não somente alturas, mas
também células melódicas da linha principal. Ainda no Ex. 2, pode-se observar que a
figura das semicolcheias contém sincronicamente uma permutação das mesmas quatro

117
Este é um exemplo dentre as poucos distúrbios sofridos pelo clarinete 1 na execução da
linha original de Lied, conforme havíamos dito: um elemento da linha principal é capturados pelo ‘fundo’,
marcando a interrupção do solista e a entrada na janela-comentário.

396
notas: as notas que formam o perfil da célula melódica principal de Lied, porém, um tom
abaixo. Este entrelaçamento de linhas homorrítmicas também vai caracterizar o
comportamento dos clarinetes ‘comentaristas’ ao longo da peça. Trata-se da
discriminação melódica interna de um acorde fixo. No Ex. 3, a seguir, observa-se um
trecho em que este mesmo recurso é utilizado como uma reflexão sincrônica ao solista: o
‘fundo’ prolifera e amplifica um elemento que, no solista (cl.1), é melodicamente
estático. Aquilo que no original possuía apenas a função de um decrescendo de duração e
dinâmica sobre uma única nota (cf. Ex. 3, Cl. 1), é refletido como uma textura
homorrítmica crescendo cuja concentração de material melódico aponta, por sua vez,
para um novo desdobramento – que poderá ocorrer na mesma peça ou numa segunda
leitura... .

Exemplo 3. Vitral melódico em sincronia com o solista: ressignificação das


quintinas.
Pouco a pouco, os quatro clarinetes acrescentados deixam de se contentar com o
papel de fundo, e o jogo da ressonância conduz à proliferação de linhas secundárias, que
não apenas prolongam harmonias mas comentam as células melódicas da linha principal:
reflexo advém reflexão.

397
Exemplo 4: Proliferação de uma outras linhas que contraponteiam com o solista.
O processo de individualização das linhas secundárias vai se intensificando
gradualmente, em direção a uma considerável autonomia em relação ao solista, a qual
culmina, ao final da peça, numa textura a cinco vozes (Ex. 5). A densidade polifônica dos
clarinetes-comentaristas atinge seu ápice justamente num trecho de relativa estaticidade
do solista, gerando uma inversão dos papéis: agora é a linha original que parece uma
ressonância do quarteto (Ex. 5).

Exemplo 5: Trecho final; ápice da proliferação do conjunto acrescentado e


inversão de papéis: o solista torna-se ressonância.

398
2. Sobre a estratégia harmônica

Conforme observado anteriormente, o prolongamento de notas capturadas da


linha solista se constitui como um dos procedimentos básicos que caracterizam o
comportamento dos quatro clarinetes acrescentados. Tal recurso, ainda que notavelmente
simples, já implica em re-harmonização: fazendo escorregar e acumulando as
informações harmônicas (as quais no solista são, muitas vezes, articuladas de maneira
breve) umas sobre as outras encontra-se todo um jogo composicional. Como controlar e
reorganizar essas harmonias que escapam da linha principal?

Para responder tal questão e abordar o processo harmônico de primeira leitura...


convém esclarecer alguns pontos sobre o recurso técnico empregado em tal processo e
explicar seu funcionamento básico. Já há algum tempo, venho empregando em minhas
composições um recurso de estruturação harmônica concebido pelo compositor e
pesquisador brasileiro Francisco de Oliveira118, do qual me tornei um colaborador na
exploração dos potenciais e da diversificada gama de empregos possíveis de tal recurso.
Mais do que uma ferramenta harmônica de manifestação direta e local, trata-se de um
procedimento de estruturação que coordena as escolhas harmônicas ao longo do
processo composicional. É, portanto, um recurso que não impõe um resultado musical
específico, mas que distribui, ao longo de uma peça, possibilidades harmônicas cuja
efetivação dependerá da escolha do compositor.

No artigo “Lacuna entre técnica e superfície harmônicas na composição de três


canções em São Francisco”, Oliveira explica emprego particular deste recurso numa obra
de sua autoria, onde há a intenção de criar um discurso harmônico alusivo à linguagem
tonal. Neste contexto, o emprego de um tal recurso permite que relações tonais seja
articuladas através de um procedimento – um raciocínio compositivo, propriamente
falando – totalmente diverso daquele próprio à tradição tonal (cf. OLIVEIRA, 2013).
Conforme descrito por Oliveira, o processo de estruturação harmônica começa num
estágio preliminar, pré-composicional: 1) ao longo de todo os compassos (ainda vazios)
da peça são encadeados ‘bicordes’ (segundas maiores, terças, ou quartas justas); 2) sobre
cada ‘bicorde’ é projetado um módulo intervalar (por exemplo, terça maior e quarta justa)
que amplia tais bicordes, de modo que cada um gere um conjunto de notas, um modo.
Assim, através do encadeamento de bicordes, gera-se um encadeamento de modos
sucessivos. Cada modo funciona como o reservatório de notas que podem ser usadas a
cada momento, e, como se encadeiam por toda a peça (como uma grade subjacente), o
que se tem é um grande contínuo de possibilidades harmônicas que atravessa a obra,
organizando um plano virtual cuja atualização dependerá das escolhas do compositor.
Estas possibilidades são amplas (um determinado campo pode oferecer, ao mesmo tempo,
um cluster ou um acorde de dominante com sétima, ou ainda uma sequência de tons

118
Francisco de Oliveira é também meu colega no Doutorado do PPGMUS-ECA e o
principal parceiro na pesquisa composicional, com o qual tenho realizado trabalhos de composição
colaborativa (cf. OLIVEIRA, 2014). Atualmente, Oliveira é professor do departamento de música da
UNIR-Universidade Federal de Rondônia.

399
inteiros) mas não infinitas, pois a passagem de um campo a outro transforma
continuamente as possibilidades e exige um controle ativo do compositor sobre o
processo (uma nota sai, outras entram; uma nota atravessa dez campos, outra fica sete
campos sem aparecer, etc).

Na composição de primeira leitura..., o estabelecimento deste plano harmônico


também ocorreu como uma etapa preliminar. No entanto, ao invés de encadear os
bicordes de maneira relativamente automatizada (cf. OLIVEIRA, 2013), os modos
(conjuntos de notas possíveis) foram projetados a partir do próprio Lied, deduzindo os
modos que contivessem as notas presentes (juntamente a outras notas), trecho por trecho
da linha de Berio. Assim, gerou-se um plano harmônico suplementar à linha de Berio, de
modo que esta passasse a se constituir, retroativamente, como uma atualização de
escolhas possíveis (entre outras) dentro dos modos projetados119. Partindo da disposição
harmônica de uma peça já acabada, projetou-se um hipotético plano harmônico que
poderia tê-la gerado. O fato de que o processo pelo qual a obra de Berio foi originalmente
construída permanece inacessível não configura um empecilho, pelo contrário:
transferimos a obra já acabada para o interior um novo plano a fim de interrogar que
possibilidades ela ofereceria se fosse composta de outra maneira.

Independentemente das particularidades metodológicas do emprego da tal


mecanismo, a importância do recurso utilizado se deve à sua capacidade de responder aos
sentidos harmônicos de um enunciado já organizado musicalmente e ainda acrescentar
novas possibilidades. Um exemplo disto é o fato de que, com a trocas incessantes entres
as ‘notas possíveis’, o jogo da ressonância (o prolongamento de notas da linha
principal) passa a ser coordenado pela ritmicidade interna deste plano: até que ponto uma
nota será prolongada, e qual nota será prolongada, vai depender do encadeamento dos
campos. Isto não significa que sejam decisões automatizadas, pois há sempre margem
para escolha e, portanto, para interpretação dos potenciais implícitos no enunciado
original.

Em suma, se, por um lado, este plano harmônico subjacente constitui-se como um
arsenal de possibilidades a priori, por outro lado, seu potencial depende (no presente
caso) inteiramente de uma atualização a posteriori sobre um universo específico que já
delimita relações, ou seja: é por atuar sobre uma material já organizado formalmente –
dotado de sentidos locais que se correlacionam no interior de um todo – que uma tal
distribuição harmônica virtual se revela tão fértil. De fato, é como se os sentidos
oferecidos pelas notas dos campos – e, sobretudo, nas passagens de uma campo a outro –

119
Dentre a variedade de estratégias adotadas na projeção, sobre Lied, deste plano
harmônico virtual, vale citar a importância de escolher os modos (sempre coordenados pela lógica dos
bicordes) que melhor intensificassem as trocas harmônicas da própria peça de Berio. De modo geral: 1) ao
aparecer uma nota inédita num determinado trecho, buscou-se trocar de um campo que não contivesse esta
nota, para um outro em que ela aparecesse; 2) em trechos de nota longa, buscou-se trocar o máximo de
vezes de campos, de modo que a permanência desta nota fosse intensificada pela rápida variação da outras
notas, o que implica num ressignificação harmônica desta nota.

400
fossem uma resposta desta organização suplementar aos sentidos já presentes no objeto
sobre o qual eles operam (no caso, a peça de Berio). Qualquer que seja o sentido inicial,
por mais mínima que seja a relação harmônica em questão, os campos a responderão de
alguma maneira – nem sempre da maneira primeiramente desejada, é verdade, mas o
importante é que, de um jeito ou de outro, o sentido sempre retorna reconfigurado e,
portanto, com uma direção.

3. Considerações Finais
Através da observação de aspectos do processo composicional de primeira leitura de uma
canção apócrifa pode-se entender que as diversas estratégias que atuam sobre Lied
convergem para o cumprimento de uma intenção mais geral – a qual considera-se
necessária, ou ao menos fértil, na condição de ‘primeira leitura’: deslocar a linha solista
de seu processo harmônico originário e fixar um espaço de ressonância dentro do qual
torna-se possível capturar e proliferar elementos escolhidos entre os seus diversos
aspectos. Isso justifica a escolha dos quatro clarinetes: a importância de ampliar o corpo
instrumental e sonoro da linha original para abrir o acesso a mecanismos estruturais, que,
não raro, estão latentes120 na versão solista do enunciado. Em suma, num primeiro
momento, o quarteto acrescentado funciona simultaneamente como uma ‘caixa-de-
ressonância’, que captura e prolonga elementos concretos da linha, e como uma ‘lupa’,
que procura e traz para à tona relações estruturais “comprimidas” (BERIO, 2006), cujos
sentidos podem ser retrabalhados no novo contexto.

Exemplo 6: O conjunto acrescentado funcionando como um ‘lupa’ que amplifica


o corpo instrumental e harmônico da linha original.
Há, portanto, a interação recíproca entre a possibilidade, incialmente simples, de
prolongar os elementos do solista num corpo instrumental amplificado (ressonância) e a
recombinação e transformação dos elementos, uma vez capturados do solista
(proliferação): convergência x divergência em relação ao solista / harmonização x
ressignificação dos elementos originais. Como vimos, o próprio percurso formal da obra
incorpora um processo em direção a uma proliferação cada vez mais intensa (e,
consequentemente, mais autônoma em relação ao solista) dos elementos: é a própria

120
cf. PACKER, 2013a.

401
possibilidade de refletir que acaba por permitir uma progressiva autonomização do
conjunto acrescentado, ganhando pouco a pouco feições próprias que chegam rivalizar
com a linha principal.

No âmbito de nossas conclusões parciais, gostaríamos, ainda, de retomar alguns


aspectos que caracterizam a modalidade de reescrita posta em questão neste trabalho.
Como foi dito, a conservação do discurso integral sobre a qual se pretende atuar é uma
particularidade notável da proposta de Berio em seus Chemins. Através da retomada
explícita de uma peça pré-existente em meio a um novo processo, estabelece-se uma
correlação sincrônica entre dois estágios composicionais em si ‘fechados’ e, a princípio,
independentes. Se cada nova composição reatualiza potenciais deduzidos da versão
anterior, os aspectos particulares do material a cada etapa funcionam como um universo
limitado que nutrirá a próxima composição. Sendo assim, ao deslocar uma obra de seu
processo de engendramento originário e considerá-la como um conjunto orgânico de
relações específicas mas abertas – isto é, capazes de impulsionar outros sentidos –, tudo
aquilo que era da ordem do enunciado (as feições singulares de uma obra: conteúdos
melódico-harmônicos, sonoridades, proporções, etc), passa a ser considerado como
estrutura. Neste sentido, o processo de formação de cada obra não se fundamenta numa
forma abstrata (um ABA, um Rondó, etc) mas na própria obra anterior, considerando-a
como um arsenal de relações já existentes e interrogando-a sobre seus potenciais
desdobramentos.

Uma tal concepção acaba por atingir em cheio o dimensão formal da composição.
A depuração gradual das relações estruturais se confunde com o processo formal em dois
eixos perpendiculares simultâneos: na sincronia entre as várias versões que são
inteiramente retomadas a cada novo processo composicional, sendo que, a passagem de
uma a outra imprime filtros interpretativos que vão transformando seus sentidos
originais; e na diacronia representada pelo processo formal particular de cada uma das
obras, cujo delineamento temporal é imbuído da mesma tarefa: desdobrar continuamente
as relações, impregnando-as de sentido musical no interior do sistema global no qual se
insere cada um dos momentos particulares – formalmente fechados, composicionalmente
abertos.
Vale notar, por fim, que esta modalidade de composição não visa propriamente o
uso de um texto previamente escolhido com o qual se pretenda criar um encontro ou
simplesmente realizar uma visita, nutrindo-se de suas virtudes. O fundamento operatório
de uma tal proposta direciona-se muito mais ao campo da interpretação. Não é do escopo
deste trabalho aprofundar o exame sobre a divergência entre potencialidades estéticas de
cada uma destas vias. No entanto, seguir a distinção proposta por Umberto Eco, em Os
limites da interpretação (1990), entre as operações de uso e de interpretação de um texto
parece fértil no contexto em que este estudo se coloca. De fato, o uso não precisa passar
pela interpretação, pelo contrário, não raro necessita abdicar-lhe lugar. Interpretação, por
sua vez, implica em cooperação com o texto, no sentido de uma atenção à sua coerência
interna. O uso, visando expandir o universo do discurso, tende ao maior desprendimento
possível, centrando méritos sempre naquele que o lê. O fato é que, se o universo de um
texto (uma obra musical singular) é materialmente restrito, aquele que o usa quer
justamente restituir-lhe o ilimitado, enquanto aquele que o interpreta pretende

402
aprofundar-se na intenção incessante da obra de conduzi-lo ela própria em sua trama.
Esta trama é, em princípio, também infinita, mas constitui-se como um filtro que não
cessa de descartar outras tantas direções. O fato de que um texto emita múltiplos sentidos
não quer dizer que tal multiplicidade seja indefinidamente oferecida por ele. É nas
lacunas deixadas pela seleção interpretativa de sentidos encontrados na obra que torna-se
possível elaborar operações composicionais capazes de reconfigurar a relação entre os
elementos, reafirmando, a cada momento, a natureza provisória das soluções criativas e
de própria condição de obra.
Referências
BERIO, Luciano. Remembering the Future. Cambridge, Massachusetts / London,
England: Harvard University Press, 2006.

CALVINO, I. “O mundo é uma alcachofra”. In: Por que ler os clássicos. São Paulo.
Companhia Das Letras, 1993.
ECO, U. Os limites da interpretação. São Paulo, SP: Perspectiva, 2004.
OLIVEIRA, F. Z. N. “Lacuna entre técnica e superfície harmônicas na composição de
três canções em São Francisco” in: XXIII Congresso da ANPPOM. Natal, 2013b.
Disponívelem:http://anppom.com.br/congressos/index.php/ANPPOM2013/Escritos20
13/paper/view/2416/319 (acessado em 06/10/2013).
________________. “Sétima Variação: Diálogos Composicionais”. In.: Encontro
Nacional de Composição Musical de Londrina - EnCom2014. Anais do Evento.
Londrina: UEL/FML, 2014.
OSMOND-SMITH, D. Berio. Oxford: Oxford University Press, 1991.

PACKER, M. Latência, Ressonância, Abertura – um estudo sobre o pensamento


composicional de Luciano Berio. Dissertação (Mestrado em Música) IA-UNICAMP,
Campinas, 2013a.

__________. “A noção de abertura na poética beriana do comentário composicional”. In:


Anais do XXIII Congresso da ANPPOM, 2013b, Natal.

__________. “A ressonância enquanto recurso polifônico: análise de Erdenklavier, de


Luciano
Berio”. Opus, Porto Alegre, v. 18, n. 2, p. 33-50, dez. 2012

__________. “A polifonia latente nas obras para piano Leaf e Erdenklavier de Luciano
Berio”. In: Anais do XXII Congresso da ANPPOM, 2012, João Pessoa.

__________. “A escritura do espaço sonoro nas obras Sequenza VII e Chemins IV de


Luciano Berio”. In: Anais do XXI Congresso da ANPPOM, 2011, Uberlândia.
VENN, Edward. “Proliferations and Limitations: Berio’s Reworking of the Sequenzas”.
In: HALFYARD, Janet (org.). Berio’s Sequenzas. Nova York:Ashgate Pub Co, 2007.

403
Feira de São Joaquim: um campo do compor
Alex Pochat1
1
Escola de Música – Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Rua Basílio da Gama, S/N 
 Salvador – 40160-060 – Salvador – BA – Brasil
alexpochat@gmail.com
Resumo. O presente artigo descreve um processo de diálogo entre estratégias de campo e de
elaboração composicional, tomando a famosa Feira de São Joaquim (Salvador - Bahia) como
objeto de referência e, de forma mais específica, seus falares e sonoridades. Sob o olhar do
compositor-pesquisador, o campo em questão e a metodologia empregada para aquisição de
material composicional mostram-se como mecanismos possíveis de uma criação processual e
formal de obra musical que lida com o binômio 'fala e música'.
Abstract. This paper describes a dialogue process between field strategies and compositional
elaboration, taking the famous 'Feira de São Joaquim' (San Joachim's Market, Salvador–BA)
as its object of study and, in a more specific way, its speeches and sonorities. From the
composer–researcher's viewpoint, the field of study and the methodology used show
themselves as possible mechanisms towards a formal and processual creation of a musical
piece that deals with the 'speech and music' binomial.

Guardadas as devidas proporções e mudando-se os personagens, São Joaquim reedita os


antigos mercados persas, mui bem figurado nos roteiros cinematográficos onde se vê
desde o flautista das cobras, à venda de escravos, ouro, alimentos, especiarias, artes
mágicas etc; São Joaquim é assim: tem de tudo. O que está exposto é facilmente
negociável: hortifrutigranjeiros, animais vivos, carnes e pescados, secos e molhados,
industrializados e semi-industrializados, objetos de umbanda, cerâmicas, palhas, flores.
Além de serviços de bares e restaurantes, casas lotéricas, pequenas oficinas de reparos
gerais etc. O que não está exposto, possui suas próprias formas de comercialização. O
visível em São Joaquim já é um mundo instigante à compreensão dos cientistas sociais,
dos planejadores do espaço físico ou quaisquer outros interessados [Lobo et al. 1992].

1. A Feira
A Feira de São Joaquim, em Salvador (Bahia-Brasil), é muito mais do que uma feira.
Pensá-la como um local que apenas comercializa comida, artesanato, artigos religiosos –
todos dos mais variados –, é reduzir a riqueza que emana da relação entre seus produtos,
fregueses, comerciantes ou simples visitantes. Uma relação que produz cultura viva e
imediata. Sob o olhar, ou pelos ouvidos, de um músico, tal universo se expande em
possibilidades, de acordo com o gosto do freguês: musicológico ou etnomusicológico,
composicional e – por que não? – educativo ou interpretativo. Os materiais musicais
encontram-se à disposição tanto para pesquisa quanto para aplicação e,
independentemente do prisma pelo qual são observados, estão todos amparados pelo
mesmo campo – abordagens distintas, por parte do pesquisador, provirão de estilos
próprios de trabalho e de resultados almejados, sejam eles teóricos ou práticos, textuais
ou musicais, não necessariamente excludentes.

404
São Joaquim, situada às margens da Baía de Todos os Santos, já nasce das cinzas:
é construída após um incêndio ter devastado a feira de Água de Meninos, que a precedeu,
e a partir de então torna-se um marco patrimonial histórico-cultural da cidade de
Salvador. Desde a década de 60, famosa pelos preços atrativamente mais baixos, abastece
a população da cidade em geral, seja ela rica ou pobre.
A diversidade de seus produtos e o modo como são expostos são um deslumbre
para os olhos. A singularidade de seus personagens vivos e reais é um convite aos
sentidos, do soteropolitano e do turista. Nem a carência de saneamento, problema tão
antigo quanto a própria feira e tema de reivindicação contínua dos feirantes, é suficiente
para diminuir seu brilho.
A feira livre de São Joaquim ocupa uma área de 60 mil metros quadrados e foi
doada pela Prefeitura e o Estado aos feirantes da extinta Água de Meninos, devido ao
fogo que a destruiu totalmente há quatorze anos. Desde sua instalação e ainda hoje a feira
de São Joaquim é o maior mercado livre de Salvador e o mais carente de saneamento.
Comprar nessa feira é comprar mais barato, dizem as donas-de-casa. Para os poéticos, ir
até essa feira é sentir os tipos humanos que fazem parte dela, é apreciar o pitoresco
[Vieira 1978].
A feira, que nunca dorme (o trabalho começa desde muito cedo, com entregas de
mercadorias e preparação das tendas e tabuleiros), sempre pulsa sonoridades. Às vezes
serenas, às vezes inquietas. E sempre emanando sons surpreendentes:
Prestando atenção de espaço a espaço, você pode ouvir, através do serviço de
auto-falante (sic), "Pinguim Publicidades", algum pedido musical que alguma mocinha
apaixonada que trabalha na feira oferece ao seu "bem-amado", mais ou menos nesses
termos: Atenção, muita atenção. José Birro, ouça essa gravação que alguém com muita
consideração dedica. Agnaldo Timóteo. "Perdidos na Noite" [Vieira 1978].
Aquele que percorre suas entranhas depara-se com uma sobreposição de camadas
sócio-culturais tão contrastantes quanto são as cores das sobreposições de suas frutas,
legumes, artesanatos e manufaturas. Várias “Salvador” dentro de uma feira – uma feira
que, com todos os seus cheiros, cores e sons, ajuda a compor a cidade que a circunda.

2. O Pesquisador-Compositor
Quando concepções antropológicas de 'centros' e 'periferias' são constantemente
colocadas em confronto, e ainda que tal confronto seja “extremamente fértil para o
desenvolvimento da antropologia”, segundo Cardoso de Oliveira (2006); quando não
apenas se questiona de onde parte o olhar do pesquisador em direção a seu objeto de
pesquisa, mas, sim – em tempos de desmoronamentos de barreiras –, quem é que
pesquisa quem, chamam a atenção casos em que microcosmos se confundem com a
totalidade que os abarca. Poderia a Feira de São Joaquim, que indubitavelmente colabora
com a composição da cidade de Salvador – e que por ela é circundada – assumir
características de periferia? Centros e periferias podem ser transportados a uma feira e à
cidade que a comporta? E na visão do feirante, quantas camadas de periferias e centros
existem?
Desejo enfatizar – como tenho feito repetidas vezes – que os conceitos
de periferia e centro não possuem mais do que um significado

405
geométrico, certamente em n dimensões, em que espaço e tempo são
igualmente levados em conta, sem, porém, implicarem um quadro
valorativo, isto é de “boa” ou “má” antropologia... [Cardoso de Oliveira
2006].
E se o pesquisador é parte integrante do contexto e 'freguês' do campo de pesquisa
em questão? As quatro frentes de variações, no que diz respeito ao binômio pesquisador-
objeto pesquisado (centro pesquisando periferia; periferia, centro; centro, centro; e
periferia, periferia), há muito não são novidade, assim como não o é a diversidade de
interesses do pesquisador frente à infinidade de possibilidades centrais-periféricas. Os
'selvagens' ou os 'outros', aqueles sobre quem a visão investigativa recai, ultrapassaram
quaisquer limites físicos ou imaginários, redefinindo o conceito de campo – como
exemplifica, pontualmente, Nettl –, “contemplando [os etnomusicólogos] sua própria
comunidade local e sua cultura musical pessoal, trazendo o 'outro' ao seu habitat (...)”
(2005: 185). Distinções claras ainda existem entre a diversidade das culturas musicais
das cidades e das sociedades indígenas, por exemplo, mas é de se supor que o ponto de
interseção continua sendo o próprio pesquisador que, seja qual for o campo de pesquisa
em que atue ou quão próximo ou distante esteja o 'outro' de si, mantém o mesmo
objetivo, como brilhantemente afirmou Malinowski:
Deter-se por um momento diante de um fato singular e estranho;
deleitar-se com ele e ver sua singularidade aparente; olhá-lo como uma
curiosidade e colecioná-lo no museu da própria memória ou num
anedotário – essa atitude sempre me foi estranha ou repugnante. (…)
Há, porém, um ponto de vista mais profundo e ainda mais importante
do que o desejo de experimentar uma variedade de modos humanos
de vida: o desejo de transformar tal conhecimento em sabedoria.
Embora possamos por um momento entrar na alma de um selvagem e
através de seus olhos ver o mundo exterior e sentir como ele deve
sentir-se ao sentir-se ele mesmo. Nosso objetivo final ainda é enriquecer
e aprofundar nossa própria visão de mundo, compreender nossa própria
natureza e refiná-la intelectual e artisticamente [apud Da Matta1981].
Do ponto de vista do 'outro', o intruso ou forasteiro sugere sentimentos dos mais
variados, como desconfiança, curiosidade, repulsa – até mesmo em uma feira pública,
onde, em princípio, se espera acolhimento àquele que chega –, bastando que esse último
tenha um gravador empunhado e uma intenção velada (qualquer que seja ela).
Atualmente, não mais existe o alarde de um caminhão carregado de equipamentos de
gravação. Entretanto, ainda assim, graças ao crescente desenvolvimento tecnológico,
pode-se ter um alto grau de profissionalismo, garantindo a meta de “facilitar transcrição e
análises, e preservar a versão mais fiel da música para a posteridade. (…) Mas o conceito
e os fundamentos do local de gravação permanecem constantes”, como diria Myers
(1992).
Dois exemplos de recepções, ambas espontâneas, manifestadas pelos personagens
da feira, ao perceberem a existência de um forasteiro, por mais discreto que seja o
equipamento de captação por ele utilizado: “Aqui! eu comendo macaxeira...” (feirante 1,
pedindo para dar depoimento); “Vem cá, é dinhêro (sic)? eu vou passar onde? Pra quê eu
vou gravar isso aí, não vou ganhar p... de nada. Se fosse passar na televisão e eu ver.... Eu
não vou ganhar nada pra sair aí... Tem um real aí?” (feirante 2, idem, mas com um misto

406
de desconfiança, curiosidade e interesse). Tais atitudes, aparentemente pré-descritivas,
não seriam dignas de atenção por constituírem uma manifestação de uma forma de olhar
o outro como o outro nos olha? Ao longo de toda a linha do tempo da pesquisa de campo,
essas relações interpessoais evidenciam inclusive as questões éticas que perpassam todo o
processo. Claro que elas ainda existem mesmo antes e depois desse último, nas intenções
e no emprego dos resultados, mas não são privilégio apenas de uma das partes – afinal,
cada uma delas sabe, cada vez mais, os proveitos que podem ser adquiridos (um 'real'
para um, um 'feito científico' para outro, p. ex.).
E do ponto de vista do pesquisador, quando este não é antropólogo ou
etnomusicólogo, mas um compositor em busca de material a favor da criação? Deixando
de lado o fato de que a etnomusicologia e a composição musical possuem, sim,
diferenças, sendo como metades caolhas, como diz Paulo Costa Lima,
(…) quando se somam essas duas metades caolhas, composição e
etnomusicologia – uma fincada no processo do compor e incapaz de
enxergar a diversidade plantada no mundo, e às vezes embaixo do seu
nariz, a outra condenada a ver tudo de fora, sem conseguir uma vivência
êmica do próprio processo que almeja captar, a criação – o resultado
pode ser tragicômico [Lima 2005].
volta-se ao ponto que parece ser comum ao pesquisador-etnomusicólogo e ao
pesquisador-compositor (intenções etnográficas de preservação e análise 'contra'
intenções criativas, entre outras), sendo ambos pesquisadores em campo: a metodologia,
dividida entre coleta de dados e a fase de laboratório (descrição e transcrição).

3. Materiais de Campo e de Composição


É inegável o fato de que a própria intenção perante o campo interfere
metodologicamente. Contudo, ainda assim, pode-se notar uma unidade que, mesmo em
um contexto geral da história da antropologia, não é unânime. A seguir, um exemplo de
método/processo de pesquisa de campo utilizado por compositor-pesquisador, com o
propósito de levantar material referente à musicalidade da fala daqueles que fazem a
Feira de São Joaquim, visando à composição musical:

Feira de São Joaquim – pesquisa de campo


equipamento de gravação – Zoom (H4n);
formato – .wav
coleta de material em 03 (três) sessões de aprox. 25min cada:
30.04.11 (sábado), 10h
06.05.11 (sexta-feira), 9h30
06.05.11 (sexta-feira), 10h
03 (três) diferentes tipos de metodologia e consequente abordagem frente ao conteúdo
musical natural da feira, no que se refere à captação de áudio e à busca de material
falado, são propostos nessa pesquisa de campo: 'paisagem sonora direcionada', 'freguês-
pesquisador' e o 'feirante-pensador':
 'paisagem sonora direcionada'

407
A Feira de São Joaquim é percorrida com o aparelho de gravação, captando não apenas a
ambiência natural da feira (sons gerados pelos carrinhos de mão, animais, pregões dos
vendedores, entre outros), mas também as conversas entre feirantes e fregueses, com suas
possibilidades de interlocução derivadas: feirante-freguês, freguês-freguês, feirante-
feirante. À medida que se trafega pelos labirintos da feira, e que conversas vão
espontaneamente surgindo, as mesmas são registradas em áudio, com ou sem a percepção
daqueles que fazem parte do universo em questão;
 'freguês-pesquisador'
O método utilizado é o de captar direcionalmente conversas/diálogos entre o freguês e o
feirante, sendo que, neste caso, o pesquisador assume o papel de freguês. Novamente, o
feirante pode ou não estar ciente da gravação, mesmo essa não sendo encoberta ou
dissimulada pelo freguês-pesquisador;
 'feirante-pensador'
Feirantes são estimulados a pensar e discorrer sobre o universo da feira – suas
percepções, críticas e anseios –, havendo uma expansão para além da fala: o significado.
Ao contrário dos métodos anteriores, os entrevistados têm nessa ocasião total ciência da
gravação do depoimento dado.
Em todos os três métodos, o foco principal é sempre o próprio objeto de pesquisa:
o falar do soteropolitano – ou daquele que vive em Salvador – em um ambiente
caracteristicamente popular e que retrata com propriedade esse mesmo falar. A esse
material de 'falatório musical', são somados todos os já citados anteriormente, ou seja, a
'ambiência sonora' e o próprio 'pensar' dos personagens que compõem a Feira de São
Joaquim, e que servirão à composição de uma obra musical.
Materiais composicionais, por suas características qualitativas, podem ser tanto
um fator decisivo, mesmo para a escolha de formas e métodos composicionais, quanto
um fator problema, pelo quantitativo de possibilidades deles advindos – e dependendo da
inabilidade por parte daquele que os manipula –, mas incontestável é a sua riqueza tanto
para a composição quanto para a etnomusicologia. Assim se manifesta Reynolds, sobre
'material' e sua relação intrínseca com o ato de compor:
Nenhum gênero, popular e utilitário ou esotérico e obscuro é
necessariamente rejeitado. Até agora não se pensa que há restrições
intransponíveis como combinar músicas de diferentes épocas ou
culturas ou convicções teóricas. E em cada uma dessas instâncias de
comportamento musical, alguém pode apoderar-se de fragmentos
característicos com os quais começar, ou optar por examinar o que
Xenakis chamaria de seus antecedentes "out of time": os agrupamentos
hierárquicos privilegiados ou padrões de relacionamento que precedem
instâncias específicas. Qualquer som, seja pelo hábito do pensamento,
musical ou não, é entretenimento. Bem como a geração inteiramente
algorítmica de elementos musicais ou texturas não mediados pelo
ouvido do compositor... [Reynolds 2002].
Dados coletados em campo captando o som natural de um dia de feira (método de
'paisagem sonora direcionada', citado acima), como os transcritos a seguir, possuem tanto
a identidade quanto a relevância que, por si só, compõem todo um universo musical:

408
[você é cara ômi, rapá... tá retado] [eu num compro nada, nem de um
nem de outro aí] [nunca mais cês leva mercadoria daqui, eu digo na
hora] [se você vai levá de um eu vou levá de outro] [cê faz dois frete]
[se você vê ele diga que eu quero falá com ele] [dez pinha é dois real] [é
mermo, rapá?] [vinte limão um real, quinze um real] [ispim cheiroso,
espinheira e boldo] [e aí, patrão] [diga, pai] [essa aqui é vinte e dois, faz
vinte cinco nesse aí pra senhora... faz vinte e dois eu levo... vinte e dois
é o de cá] [aí é um e oitenta... um e oitenta? bote dois quilo desse aqui
pra mim] [você é meu broder... sabe quanto deu?... você eu não faço
conta não, você que faz] [pegue do amarelo aí, não, cá, aí mermo] [bota
quatro por doze aí... quatro por doze não dá pra descer... não dá o que,
aí rende] [sua conta em ver de baixá vai pra cima... ôxen, nada] [fecha a
cara... que agonia] [ói, eu tava aqui, o espírito é o mermo ó, eu tava
relembrando aqui, aqueles passado, rapaz aquele cara era hahahaha]
[cara pá sua cara dá o preço e vira logo a cara] [não se faça de arrogado]
[são quantas, meu pai, palha?] [aí alí ele lá correu aqui e pegou, quinze
conto] [eu falei com você ontem... falou ontem... eu lhe falei, e que dia
bom que eu num trabalhei? ontem... ontem, mas eu lhe disse] [pimentão
ripa na chulipa, eu tenho pimentão ripa na chulipa] [tá me chamando?...
foi eu que chamei... ah sinhá maluca... tudo bom? já vai?... eu já... eu
também já to indo também, vou pegar um tomate aqui, e um pimentão,
quanto é que tá aqui freguês?] [comprar de vez, botá pá madurecer, é o
jeito] (sic)
Não seria raro, na música contemporânea, ver o excerto acima constituir uma obra
composicional, carecendo talvez apenas de alguma autoria e indicações de execução,
sobretudo se a ele for acrescentada toda a musicalidade da linguagem falada, ocultada
aqui pelo fato de ser “somente” um texto.
A esse material de áudio com as sonoridades das falas daqueles que vivem a Feira
de São Joaquim, somam-se os entornos sonoros dessas falas, para futura constituição da
composição musical: sons de bichos, de carrinhos, de rádios, de buzinas, enfim, todos os
sons que, juntamente com falas dos faladores, terminam por fazer de uma feira, feira.
O que é feito do material bruto de um campo pesquisado – análise, composição,
arquivamento – é assunto que interessa não somente ao pesquisador (etnomusicólogo ou
compositor), sobretudo se forem levadas em consideração as questões éticas que
envolvem todo o processo. Entretanto, o quanto de equilíbrio deve haver entre as
capacidades aparentemente opostas mas – por que não? – complementares de
distanciamento e pertencimento? Diante do exposto, tal equilíbrio poderia ser buscado
não apenas entre pesquisador e o sujeito/objeto pesquisado, mas também entre o
compositor e o etnomusicólogo.

409
Figura. Captura de trecho inicial da obra etnex, o falatório, composta a partir da
metodologia exposta no presente artigo (sonograma).

4. Considerações Finais
Este trabalho, de cunho investigativo, não tem a pretensão de ser exaustivo, menos ainda
conclusivo. Ao contrário, abre novas perspectivas de pesquisa e aplicação dos conceitos
nele expostos. A partir da análise de contribuições filosóficas e composicionais
contemporâneas, e principalmente pela efetivação prática desses aportes e de seus
desdobramentos, reafirma-se quão vasta e rica pode ser a interação dos campos singulares
da fala e da música.
O recorte apresentado tem como finalidade traduzir um conceito atual de
hibridação não apenas do objeto composto, mas da atitude e do ato composicionais. Essa
hibridação ocorre, logo no primeiro momento, em uma macro escala, justamente entre a
pesquisa de campo com objetivo precípuo de coleta de material para fins composicionais
e a manipulação – em caráter processual e formal – áudio digital desse mesmo material.
A proposta do autor, por ter como escopo a fala dos que vivem a Feira de São
Joaquim, prioriza especialmente um estudo embasado na literatura musical baiana
referente ao tema da utilização da música falada, tentando, contudo, ampliar ainda mais o
tratamento dado ao 'falar' do povo em seu próprio habitat. Tudo isso conectado com
conceitos atuais concernentes a gestos e representações, em um contexto ainda mais
amplo da relação música e linguagem.
Novos rumos de pesquisa apresentam-se oriundos de questões provocativas, por
exemplo, de como dar-se-iam diálogos entre falares de diferentes naturezas e/ou origens,
ou interações entre falares e formações instrumentais diversas, populares e/ou eruditas.
Ou ainda, de como poderia ser problematizada uma composição que conjugasse, ademais,

410
elementos midiáticos (de vídeo, inclusive), e prezasse pela intervenção composicional
direta daqueles que são objeto de pesquisa – os próprios faladores.

Referências
CARDOSO DE OLIVEIRA, R. (2006). O trabalho do antropólogo. Paralelo 15 e
UNESP.
DA MATTA, R. (1981). Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rocco.
LIMA, P. C. (2005) “Baião de Dois: Composição e Etnomusicologia no forró da pós-
modernidade (em 6 passos)”. In Invenção & memória: navegação de palavras em
crônicas e ensaios sobre música e adjacências, p. 290-302. EDUFBA.
LOBO, A.; MOURA, J.; MELLO, M. (1992). “Um Mercado Persa Afro-Brasileiro”. In
Revista VeraCidade, n. 4, p. 25-28.
MYERS, H. (1992) Ethnomusicology - an introduction. The MacMillan Press.
NETTL, B. (2005) The study of ethnomusicology: thirty-one issues and concepts.
University of Illinois Press.
REYNOLDS, R. (2002) Form and Method: Composing Muisc: The Rothschild Essays.
Routledge.
VIEIRA, H. (1978) “Na feira de São Joaquim há de tudo pra se ver”. In Jornal Tribuna
da Bahia, 08 de jun. p. 9.

411
Criatividade musical cotidiana: engajamento, esforço cognitivo
e personalidade
Edemilson Ferreira da Silva1, Damián Keller1, Flávio Miranda de Farias1, Floriano
Pinheiro da Silva1, Victor Lazzarini2, Marcelo Soares Pimenta3, Maria Helena de
Lima, Leandro L. Costalonga4, Marcelo Johann3
1
NAP, Universidade Federal do Acre e Instituto Federal do Acre, Rio Branco, Brasil
2
National University of Ireland, Maynooth
3
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
4
Universidade Federal do Espírito Santo
Grupo de Música Ubíqua
dkeller@ccrma.stanford.edu
Resumo. Aplicamos a metáfora de suporte à criatividade marcação temporal em um estudo
comparativo de atividades musicais em ambientes domésticos e comerciais. Doze sujeitos
participaram em 108 ensaios de interação utilizando a ferramenta mixDroid Primeira
Geração com o objetivo de aferir: 1. os resultados de atividades de mixagem e, 2. o suporte
fornecido pela conjunção de fatores ambientais, computacionais e pessoais. Os resultados
confirmam o impacto do local de realização das atividades criativas: ambientes familiares –
no caso deste estudo o lar do sujeito participante – reduzem o esforço cognitivo e aumentam o
engajamento, a diversão e o potencial de colaboração na atividade. No entanto, o ambiente
doméstico tem impacto negativo no nível de originalidade dos produtos criativos.
Abstract.We apply the metaphor to support creativity temporal mark in a comparative study of
musical activities in domestic and commercial environments. Twelve subjects participated in
108 interaction assays using mixDroid First Generation tool in order to assess: 1. the results
of mixing activity, and 2. the support provided by the combination of environmental factors
and personal computer. The results confirm the impact of the venue of creative activities:
family environments - in the case of this study the home of fellow participant - reduce the
cognitive effort and increase engagement, the fun and the potential for collaboration in the
activity. However, the home environment has a negative impact on the level of uniqueness of
the inventive products.

1. Suporte a atividades musicais criativas em contexto ubíquo


Nos últimos dez anos, o problema do suporte à criatividade vem recebendo atenção
dentro das comunidades ligadas à educação [Burnard 2012; Lima et al. 2012; Odena
2012], interação humano-computador [Mitchell et al. 2003; Shneiderman 2007] e arte
[Keller & Budasz 2010; Keller et al. 2013b; McCormack & d'Inverno 2012]. Com os
avanços recentes na pesquisa básica em criatividade [Kozbelt et al. 2010; Runco 2004]
surgem novas abordagens dos fenômenos criativos, antes considerados irrelevantes. Com
base nessa visão, a música ubíqua [Keller et al. 2011a; Pimenta et al. 2012] fornece um
espaço de troca de conceitos abrangendo três perspectivas inter-relacionadas: a cognição
criativa [Beghetto & Kaufman 2007; Kaufman & Beghetto 2009; Richards 2007;
Richards et al. 1988], a estética do design de interação [Löwgren 2009; Stolterman 2008],
e a prática criativa embasada em cognição ecológica [Aliel & Fornari 2013; Barreiro &
Keller 2010; Basanta 2010; Burtner 2005; Keller 1999, 2000; Keller et al. 2013a]. Neste
trabalho focamos a criatividade musical cotidiana tomando como exemplo o processo de
design de uma metáfora de interação, buscando esclarecer aspectos da relação entre

412
ambiente, atividade e tipos de amostras sonoras, que não foram abordados em estudos
anteriores.
Na perspectiva da pesquisa em interação humano-computador, metáforas de
interação são analogias ou similaridades para se representar ou modelar atividades e/ou
projetos do mundo real dentro do ambiente computacional [Pimenta et al. 2012].
Podemos citar a conhecida metáfora da 'área de trabalho' que leva para o mundo
virtual a ideia da mesa de trabalho, onde podem existir diversos documentos ou objetos
dispersos. Fora do campo da computação, um exemplo de metáfora são os balões de
conversas existentes em revistas em quadrinhos que podem representar tanto falas
quantos pensamentos dos protagonistas. O conceito de metáfora surge no campo da
cognição situada-corporizada (embedded-embodied cognition) [Lakoff & Johnson 1980]
e vem sendo incorporado na prática criativa cognitivo-ecológica [Keller et al. 2010].
Nas aplicações musicais, a metáfora visual de representação em trilhas utilizadas
pela maioria dos editores para dispositivos estacionários não é facilmente transposta aos
sistemas portáteis. Essa metáfora de interação demanda o uso intensivo de recursos
computacionais para dar suporte aos elementos gráficos da interface. Ela não fornece
controles intuitivos para atividades síncronas – o tempo fica desvinculado das ações do
usuário – portanto, não é facilmente escalável. Como as mixagens com pistas múltiplas
demandam a redução do tamanho dos elementos da interface, a visualização e a
manipulação em dispositivos de tamanho reduzido. Como alternativa, Keller et al. (2010)
propõem a metáfora de marcação temporal. Nesta metáfora de interação, o som fornece
as pistas perceptuais que o usuário utiliza para colocar as amostras sonoras no eixo
temporal. Como a interação se baseia nos sons sendo executados, o referencial visual
pode ser simplificado a um número mínimo de elementos.
A marcação temporal vem mostrando bons resultados em diversas atividades
criativas realizadas tanto por sujeitos leigos quanto por músicos. Pinheiro da Silva et al.
(2014) relatam um experimento com seis sujeitos – leigos e músicos – abrangendo 47
mixagens com amostras de sons urbanos e de sons biofônicos121 em duas condições
experimentais: dentro do estúdio e nos locais de coleta dos sons. Os autores obtiveram
dados sobre o suporte às atividades criativas, incluindo mixagens livres (criação),
mixagens seguindo um modelo (imitação), e uso livre da ferramenta sem o objetivo de
produzir um resultado sonoro (exploração). Desde a perspectiva do suporte à criatividade,
os resultados apontaram para efeitos relacionados ao local onde é realizada a atividade
nos fatores explorabilidade e produtividade. O aumento na avaliação da produtividade
estaria relacionado tanto ao local (para atividades fora do estúdio) quanto ao tipo de
atividade (com leve superioridade para criação). Maior explorabilidade foi
consistentemente vinculada a atividades fora do âmbito do estúdio, com preferência leve
para as atividades de imitação, independentemente do tipo de amostra utilizada. Essas
tendências, em conjunto, mostraram que houve um maior engajamento criativo dos
sujeitos nas atividades em ambientes externos.

121
Biofônicos: sons produzidos por animais. O termo é empregado na área de ecologia da
paisagem sonora [Pijanowski et al. 2011].

413
Keller e coautores (2013b) realizaram um estudo com dez indivíduos, envolvendo
40 ensaios de interação utilizando a mesma ferramenta que a adotada no estudo de
Pinheiro da Silva et al. (2014). Os sujeitos fizeram mixagens com amostras sonoras
vocais percussivas e avaliaram a experiência criativa e o suporte da metáfora de interação
para os diversos fatores de criatividade. O estudo incluiu três condições: lugar (ambientes
domésticos e comerciais); tipo de atividade (imitação de mixagens e criações originais) e
postura corporal (com os sujeitos em pé ou sentados). Os músicos que participaram na
experiência avaliaram todos os fatores com escores próximos ao máximo da escala. As
avaliações dos sujeitos leigos foram inferiores e tiveram maior variabilidade, no entanto,
também foram positivas. Em relação ao gênero, o grupo das mulheres teve desempenho
muito similar ao grupo dos músicos (porém os autores frisam que as diferenças
observadas entre homens e mulheres necessitam de estudos mais amplos). Os resultados
mostraram um aumento da pontuação nos fatores explorabilidade e colaboração para as
atividades realizadas em ambientes domésticos. Keller et al. (2013b) explicam a leve
superioridade nos fatores explorabilidade e colaboração pela menor demanda cognitiva
para a realização de atividades nesse tipo de ambiente. O estudo indicou a existência de
uma relação entre o perfil dos sujeitos, o local onde foram realizadas as atividades e os
resultados das avaliações.
No presente trabalho propomos um novo desenho experimental – e o refinamento
dos fatores de aferição – com o objetivo de desvendar a relação entre as amostras sonoras
colhidas em ambientes domésticos e as atividades criativas realizadas na moradia dos
participantes e no âmbito comercial. Pela revisão de literatura realizada, nenhum trabalho
na área de estudos da criatividade propôs o tipo de comparação discutido neste estudo.

2. Preparação das sessões experimentais

2.1. Ferramentas e dispositivos


Como prova de conceito da marcação temporal foi desenvolvida a primeira geração de
protótipos mixDroid (ou mixDroid 1G) [Radanovitsck et al. 2011] no sistema operacional
aberto Android para dispositivos portáteis. Os protótipos mixDroid 1G permitem
combinar sons em tempo real através de um teclado virtual com nove botões acionados
pelo toque na tela sensível. As amostras sonoras são selecionadas empregando o utilitário
AndExplorer. As mixagens são mantidas na memória do dispositivo para posterior
arquivamento em formato PCM. Para realizar o presente estudo, instalamos mixDroid 1G
em três dispositivos portáteis rodando o sistema operacional Android versões 2.2 e 2.3.6:
um telefone celular Samsung Galaxy 15500B, um tablet Samsung Galaxy Pocket, e um
tablet Koby.

2.2. Características das amostras sonoras


O material sonoro foi gravado em formato estéreo com taxa de amostragem de 44.1 kHz
e resolução de 16 bits, utilizando um gravador digital portátil profissional e um microfone
direcional cardioide de tipo condensador. A edição e segmentação foi feita no editor
Audacity [Audacity 2014].
Do material coletado, escolhemos dezoito amostras sonoras de sons domésticos
(N = 18), gravadas nos ambientes domésticos banheiro e cozinha (tabelas 1 e 2). As
amostras consistiram em eventos isolados ou combinando os eventos em sequências

414
curtas – com durações entre 6,879 e 46,418 segundos (média = 14,893 e desvio padrão =
6,831) (tabela 3).

Amostra banheiro Descrição Duração (milissegundos)


2 Pia do banheiro 7190
3 Lavando as mãos 6879
4 Trocando saco de lixo 21191
5 Máquina de lavar 16122
6 Guardando máquina de lavar 10028
7 Esfregando o chão 7470
8 Esfregando o chão 2 7310
9 Ligando torneira do chuveiro 13167

Tabela 1. Descrição das amostras sonoras utilizadas: banheiro.

Amostra cozinha Descrição Duração (milissegundos)


2 Amassando papel 9830
3 Amassando papel alumínio 9908
4 Ventilador estéreo 19888
5 Ventilador estéreo 2 46418
6 Ventilador simples 7607
7 Lavando as mãos 21148
8 Arrumando armário 17705
9 Afiando a faca 16433

Tabela 2. Descrição das amostras sonoras utilizadas: cozinha.

Desvio padrão
Média duração
Tipo de amostra Processamento N duração
(milissegundos)
(milissegundos)
Sons domésticos de 14893,38 6831,42
Segmentação 18
banheiro e cozinha

Tabela 3. Características das amostras sonoras utilizadas no experimento.

2.3. Perfil dos sujeitos


Devido à demanda de uso de ambientes cotidianos, foi necessário que houvesse um
acordo prévio entre os pesquisadores e os sujeitos em relação à disponibilidade de
horários. As sessões foram agendadas em grupos de dois a quatro sujeitos. Cada
participante disponibilizou aproximadamente duas horas – o tempo máximo para cada
sessão.
Participaram 12 voluntários, 6 homens e 6 mulheres (tabela 4). Todos os sujeitos
tiveram alguma experiência prévia com tecnologia. É interessante observar que todos os
participantes possuem telefone celular, porém somente 9 participantes declararam ter

415
experiência com uso de computadores. Seis sujeitos utilizam ferramentas multimídias
(YouTube, Media Player) e 3 sujeitos conhecem e usam tecnologias desenvolvidas para
fins musicais, incluindo Audacity, Musescore e editores comerciais. Um sujeito teve
experiência prévia com a ferramenta mixDroid 1G. Em relação ao conhecimento musical,
cinco sujeitos disseram ter alguma experiência em música e quatro sujeitos declararam
participar em cursos formais de música por dois anos ou mais. Portanto, para fins de
análise consideramos que 8 sujeitos são leigos e 4 são músicos ou estudantes de música.
O grupo de participantes que realizam atividades musicais regularmente está formado por
3 homens e uma mulher. Isso significa que o grupo de homens tem 50% músicos e 50%
leigos. Já no grupo das mulheres, 83% dos participantes não têm conhecimento musical.
Esse aspecto do perfil dos sujeitos é importante ao considerar o impacto do sexo e do
treino musical nos resultados obtidos.
N homens mulheres leigos músicos
12 6 6 8 4
Tabela 4. Perfil dos participantes no experimento.

3. Procedimentos
3.1. Matriz de condições experimentais
Apresentamos a matriz de condições experimentais utilizadas nos ensaios de interação
com sons domésticos. Uma sessão de experimentos abrange o conjunto de atividades
realizadas no local, multiplicado pelo número de sujeitos determinados na matriz (tabela
5). As variáveis estudadas são: local de realização da atividade, número de sujeitos, tipo
de amostras sonoras, tipo de dispositivo, postura do sujeito, tipo de atividade, tempo de
adaptação à interface e ao material sonoro (porém, neste artigo somente comparamos
locais, tipos de amostras sonoras e número de participantes na atividade). O número
mínimo de sujeitos é 2 por sessão e o número de dispositivos necessários é 4 (2 telefones
e 2 tablets).
Antes de iniciar a sessão os sujeitos preenchem o formulário de identificação (ISE
– Questionário de Identificação e Perfil Sócio-Econômico). Uma iteração abrange um
ensaio de interação com o dispositivo, tendo como produto: (1) a aferição da experiência
criativa (CSI-NAP – Questionário de Desempenho Criativo); (2) fotografias ou vídeos do
local, do dispositivo, dos sujeitos e da atividade; e (3) o produto criativo: um arquivo
sonoro tipo WAVE resultado da mixagem.
Foram realizadas 108 atividades criativas (iterações) com diversas combinações
de condições experimentais (tabela 5). 54 iterações foram feitas por dois sujeitos e 54
foram individuais, 43 corresponderam a homens e 65 a mulheres. Metade das iterações
utilizaram os sons sampleados no banheiro e a outra metade os sons da cozinha. 61
mixagens foram feitas no ambiente doméstico e as restantes no ambiente comercial (47).
Durante 27 iterações realizadas no ambiente comercial, os sujeitos ficaram em pé, e nas
outras 20 os sujeitos permaneceram sentados.

Variável Condição Número de iterações


Número de sujeitos Solo 54

416
Duo 54

Sexo dos sujeitos Homens 43


Mulheres 65

Tipo de ambiente Lar 61


Loja 47

Tipo de amostra sonora Sons banheiro 54

Sons cozinha 54

Postura corporal Em pé 27
Sentado 20

Tabela 5. Quadro de iterações por condição experimental.

3.2. Atividades criativas


As sessões incluíram três tipos de atividades: exploração, criação e imitação. Após uma
demonstração sucinta de uso por parte do pesquisador, o participante era convidado a
utilizar a ferramenta sem limitação em relação ao tempo de uso e sem indicar qual era o
objetivo da atividade (condição exploração). Seguidamente, era solicitado que os sujeitos
realizassem uma mixagem dentro do tempo limite de 30 segundos, utilizando até nove
amostras sonoras (condição criação). A terceira atividade consistia em imitar um modelo
de mixagem já existente (imitação).

3.3. Tipo de ambiente: doméstico e comercial.


A primeira sessão do experimento foi realizada no ambiente doméstico. Dentro do lar, o
sujeito escolheu o local priorizando o ambiente confortável para as atividades criativas.
No entanto, não foi feita nenhuma modificação intencional nas atividades cotidianas –
mantendo barulhos intrusivos e outros distratores – de forma de não afetar a validade
ecológica do experimento.
A casa utilizada na condição de ambiente doméstico está localizada na Rua da
Zeli, Bairro Vila Nova, próximo ao horto Florestal de Rio Branco, Acre (figuras 1 e 2). A
casa tem um espaço construído de 6 metros de largura por 9 de comprimento dividido em
dois quartos, uma sala, um banheiro e uma cozinha. Parte das iterações foram realizadas
nos locais de captação das amostras sonoras - cozinha e banheiro - e a outra parte foi feita
na sala.
O local da segunda sessão foi o Shopping Via Verde, em Rio Branco, Acre: um
espaço comercial altamente reverberante com pé direito alto e estrutura de metal e vidro.
Para indicar esse ambiente utilizamos alternadamente a denominação shopping, loja e
centro comercial (figura 3). O ambiente usado para as sessões fica localizado no centro
do shopping, numa área de passagem com grande fluxo de pessoas. O espaço dispõe de
assentos que são frequentemente utilizados pelos fregueses para descansar.

417
Figura 1. Sujeitos fazendo mixagens em ambiente doméstico (casa).

Figura 2. Localização do ambiente doméstico (condição casa), indicada com a letra A.

3.4. Número de participantes na atividade criativa: solo e duo


Na atividade de imitação na condição solo, o sujeito repetia um modelo de mixagem já
existente. Já na condição duo, ele tinha que reproduzir a mixagem realizada por outro
participante. Tanto a criação quanto a exploração eram feitas simultaneamente pelos dois
sujeitos. Em alguns casos não foi possível realizar a condição sentado em duplas por falta
de espaço físico (quando o sujeito estava no banheiro do espaço doméstico).

418
Figura 3. Localização do ambiente comercial (condição loja), indicada com a letra A.

3.5. Ferramentas de aferição


Para aferir o nível de suporte a criatividade foi utilizada a ferramenta CSI-NAP versão
0,03 [Keller et al. 2011b]. O CSI-NAP consiste em um formulário eletrônico com os itens
apresentados na tabela 5, incluindo um campo para observações por parte dos sujeitos. Os
fatores de avaliação visam determinar o tipo de suporte necessário para realizar
atividades criativas. Nesta versão, a escala de aferição é de -2 a +2 (tabela 6), com os
correspondentes descritores semânticos (tabela 7). Para fins de aplicação, as perguntas
foram impressas em folhas de papel e o questionário foi apresentado a cada sujeito
imediatamente após a conclusão da atividade.

Construto (fator) Avaliação (no formulário) Escala


Relevância O resultado foi bom -2 a +2
Originalidade O resultado foi original

Esforço cognitivo (inverso de facilidade) A atividade foi fácil

Engajamento Fiquei atento na atividade

Diversão A atividade foi divertida

Colaboração Foi fácil colaborar


Tabela 6. CSI-NAP v. 0,03: avaliação de fatores de suporte a criatividade.

Valor numérico Equivalente semântico


-2 Discordo totalmente
-1 Discordo parcialmente
0 Não sei
1 Concordo parcialmente
2 Concordo totalmente

Tabela 7. CSI-NAP v. 0,03: Escala Likert e descritores semânticos.

419
Para fins de análise, os itens relevância e originalidade são indicadores do nível de
criatividade atingido no resultado. Já o fator facilidade pode ser interpretado como o
inverso do esforço cognitivo investido na atividade. Por um lado, níveis altos de
engajamento (atenção) podem indicar dificuldade na execução da atividade apontando
para limitações na infraestrutura de suporte. Nesse caso, os escores no fator facilidade são
baixos. Por outro lado, engajamento intenso junto com avaliações positivas no item
diversão indicam um bom suporte para a atividade criativa. Por último, o fator
colaboração visa aferir o potencial de apoio fornecido para atividades realizadas em
grupo.

4. Resultados
Tendo estabelecido os mecanismos de aferição utilizados, nesta seção apresentamos os
resultados obtidos a partir das respostas fornecidas pelos doze sujeitos nas 108 atividades
criativas realizadas no ambiente doméstico e no ambiente comercial. Primeiro
apresentamos os resultados gerais e depois mostramos comparações entre duplas de
variáveis, incluindo: tipos de amostras, número de participantes, local e postura corporal.
Apesar de que todas as médias são positivas, mantemos a escala completa de forma que a
visualização dos gráficos forneça uma imagem real dos resultados obtidos. Utilizamos a
nomenclatura (Média ± Desvio Padrão) para simplificar a leitura dos resultados.

Gráfico 1. Resultados de todas as condições experimentais.

420
Gráfico 2. Sons de banheiro e cozinha, comparação do impacto do tipo de
amostras sonoras.
No gráfico 1 temos os resultados gerais combinando todas as condições
experimentais. Os fatores colaboração (1,65 ± 0,69), engajamento (1,51 ± 0,81) e
diversão (1,50 ± 0,91) tiveram médias altas. O esforço cognitivo foi relativamente baixo
tendo em vista que o fator facilidade teve avaliações positivas (1,26 ± 0,99). Já o produto
criativo não teve avaliações claramente positivas: relevância (1,01 ± 0,91) e originalidade
(0,64 ± 1,21). Para determinar se o nível de criatividade do produto é neutro em todas as
condições e se a tendência positiva nos itens colaboração, engajamento e diversão se
mantém, é necessário analisar os resultados para cada variável de forma independente.

Gráfico 3. Solo e duo, itens estudados


A comparação entre os dois tipos de amostras – sons de banheiro e sons de
cozinha – não apresentou diferenças significativas (gráfico 2). Todos os fatores seguem a
mesma tendência que a média geral. Tem destaque a falta de definição dos sujeitos em
relação ao fator originalidade do produto.

421
Na comparação das atividades individuais e por pares, todos os fatores estão
equilibrados (gráfico 3). No entanto, observamos um aumento nas aferições do fator
originalidade para os produtos criativos feitos em duplas (condição solo 0,46 ± 0,65;
condição duo 0,84 ± 0,53). Essa tendência não chega a ser significativa pela alta
dispersão das respostas.

Gráfico 4. Ambiente doméstico e ambiente comercial, o impacto ortogonal no


produto e na atividade.

. Em relação ao ambiente de realização da atividade, observamos uma clara


tendência positiva para a condição casa. Os quatro fatores avaliados – facilidade,
engajamento, diversão e colaboração – apresentaram médias altas (de 1,46 a 1,92) e
pouca divergência entre as respostas (0,14 a 0,25), em contraste com as médias inferiores
da condição loja (de 1,02 a 1,33) e uma maior variabilidade nos quatro fatores (de 0,44 a
0,67). Já na avaliação do produto criativo, o fator originalidade mostrou a tendência
oposta, tendo um resultado três vezes superior para a condição loja (1,04 ± 0,57) do que
para a condição casa (0,33 ± 0,58). O fator relevância ficou no mesmo patamar nas duas
condições (loja 0,98 ± 0,55; casa 1,03 ± 0,36).
Em relação ao ambiente de realização da atividade, observamos uma clara
tendência positiva para a condição casa. Os quatro fatores avaliados – facilidade,
engajamento, diversão e colaboração – apresentaram médias altas (de 1,46 a 1,92) e
pouca divergência entre as respostas (0,14 a 0,25), em contraste com as médias inferiores
da condição loja (de 1,02 a 1,33) e uma maior variabilidade nos quatro fatores (de 0,44 a
0,67). Já na avaliação do produto criativo, o fator originalidade mostrou a tendência
oposta, tendo um resultado três vezes superior para a condição loja (1,04 ± 0,57) do que
para a condição casa (0,33 ± 0,58). O fator relevância ficou no mesmo patamar nas duas
condições (loja 0,98 ± 0,55; casa 1,03 ± 0,36).

5. Discussão geral dos resultados


O principal resultado deste estudo é a indicação do ambiente doméstico como âmbito
ideal para a realização de atividades criativas. A maioria dos sujeitos preferiram fazer as
atividades no ambiente doméstico em comparação com o ambiente comercial – como

422
mostram as diferenças de 44 centésimos no fator facilidade, de 45 centésimos no
engajamento, de 59 centésimos para colaboração e de 63 centésimos para diversão.
Paradoxalmente, os produtos mais originais foram obtidos no ambiente público,
apontando uma diferença de 69 centésimos a favor da condição loja. Observamos
também um aumento leve no fator originalidade para os produtos decorrentes das
atividades realizadas em duplas, em comparação com a condição solo (diferença de 38
centésimos). Porém, esse resultado ainda precisa ser verificado em outros estudos devido
à variação entre as respostas dos sujeitos.
Colocando o presente estudo no contexto dos estudos experimentais realizados
aplicando a metáfora da marcação temporal [Keller et al. 2013b, 2013c; Pinheiro et al.
2013, 2014; Radanovitsck et al. 2011], confirmamos o impacto do local de realização das
atividades criativas. Mais especificamente, ambientes familiares – no caso deste estudo o
lar do sujeito participante – reduzem o esforço cognitivo e aumentam o engajamento, a
diversão e o potencial de colaboração na atividade. Esses resultados são consistentes com
o impacto positivo dos ambientes domésticos nos fatores explorabilidade e colaboração
observado por Keller e coautores (2013c). Paradoxalmente, o ambiente doméstico tem
impacto negativo no nível de originalidade dos produtos criativos. Essa foi a tendência
observada por Keller et alli (2013c) e é consistente com os resultados obtidos por Vohs et
al. (2013) em relação ao aumento do potencial criativo em ambientes desordenados ou
imprevisíveis. Resumindo, “1. ambientes domésticos ajudam no desempenho criativo,
reduzindo o esforço cognitivo e fomentando o engajamento, a diversão e a colaboração;
2. ambientes públicos reforçam o fator originalidade dos produtos criativos porém não
têm impacto na relevância dos produtos” [Keller et al. 2013c: 11]. Concluímos que as
estratégias de desenvolvimento de suporte para atividades criativas precisam adotar o
aproveitamento dos recursos locais como forma de superar as limitações dos enfoques
centrados nos aspectos utilitaristas, e precisam focar as relações entre ambiente e
atividade.

6. Agradecimentos
O presente estudo foi parcialmente financiado pelo CNPq (projetos 500585/2014-8,
409500/2013-5, 407147/2012-8) e pela Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da
Universidade Federal do Acre (Programa de Iniciação Científica e Edital 6.2013).

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426
Obras artísticas
Comitê artístico

427
Índice das Obras Artísticas

Bastien e Bastienne – Mozart (Adaptação Davy Chaves, Patrícia Botelho e Kalinka


Daiani)……………………………………………………………………..……………429

Bonsai – Tadeu Moraes Taffarello………………………….…………..………………430

Canções da Amazônia – Flávio Ventura…………...…………………………………...431

Cantando Poetas Ibero-Americanos – Adroaldo Cauduro……………...........................431

Composição com objetos sonorous – Lucyanne de Melo Afonso et al………………...432

EX-PI-CO-LÉ – Alex Pochat…………………………………………………………...433

Funk do Manuel – Márcio Aguiar………………………….…………………………...433

Imperatriz da Canastra ao Guaporé – Francisco Zemekhol Nascimento de


Oliveira…………………………………………………………………………………434

Pororoca – Samuel Cavalcanti……………………………………………………….…434

Saudade do meu bem saudade – Márco Aguiar………………………….......................435

Um desgaste a contrações – Rafaele Andrade………………………………………….435

Variações de São Francisco - Francisco Zemekhol Nascimento de


Oliveira…………………………………………………………………………………436

428
Bastien e Bastienne
Mozart
(Adaptação Davy Chaves, Kalinka Damiani e Patrícia Botelho)

Elenco:

Bastien (tenor): Ramon Carneiro Rodrigues, alunos do curso de Licenciatura em Música


da UFAM e Tenor no Coral Universitário da UFAM.

Bastienne (soprano): Lúcia Tabita Marques de Lima, Soprano no Coral Universitário da


UFAM.

Colas (baixo): Davy Márcio Câmara Chaves, aluno do curso de Licenciatura em M´suica
da UFAM e preparador vocal do Coral Universitário da UFAM.

Patrícia Maia Botelho Chaves (narradora): aluna do curso de Licenciatura em Música da


UFAM e preparadora vocal do Coral Universitário da UFAM.

pati_botelho@yahoo.com.br

João Gustavo Kienen – pianista correpetidor e professor do curso de Licenciatura em


Música da UFAM.

Kalinka Damiani – Direção cênica e musical

Bastien e Bastienne foi composta por Mozart aos doze anos de idade. A história se passa
no campo e narra as desventuras amorosas de dois jovens amantes. Bastienne, uma jovem
pastorinha, está inconsolavelmente triste após ter sido abandonada por Bastien por causa
de uma mulher muito rica e dona de um enorme castelo. Certo dia surge o grande mágico
Colas que, comovido por tão sincera paixão, não mede esforços para dar um final feliz ao
casal. Nossa proposta é fazer uma montagem adaptada para o público infantil, com as
músicas cantadas no idioma original ( o alemão) e as narrações feitas em português por
uma contadora de histórias. Sendo assim, nosso objetivo final é despertar o interesse
precoce pela ópera.

429
Bonsai Tadeu Moraes Taffarello
Universidade Estadual de Londrina
tadeutaffarello@gmail.com/tadeutaffarello@uel.com

Bonsai, para clarinete, fagote e piano.


 I. Fukinagashi (trio)
 II. Nejikan (fagote e piano)
 III. Moyogi (clariente e piano)
 IV. Bunjingi (trio)
 V. Han-Kengai (clarinete solo)
 VI. Hokidachi (trio)

Bonsai é formada por seis miniaturas para clarinete, fagote e piano. Ada miniatura foi
pensada em combinações variadas de instrumentação e tem um título que indica um
formato particular de Bonsai. Dessa maneira, a primeira peça, Fukinagashi (trio), é uma
abertura ritmada em dinãmica forte para trio. A segunda, Nejikan (fagote e piano),
entrelaça um solo de fagote a sonoridades do piano que imitam sonoramente o tronco
retorcido característico desse tipo de Bonsai. Moyogi é um solo de piano sobre a
sonoridade de um multifônico de clarinete. Bujinji, novamnete um trio, contrapõe
sonoridades longas, notas curtas em staccato e intervenções em arpejo no piano. Han-
Kengai é um solo de clarinete com o uso de quartos de tons. E, por fim, Hokidachi é um
trio que se transforma em duo de clarinete e fagote. A peça é dedicada a Maurício Dottori.

430
Canções da Amazônia
Flávio Ventura – UEA pianoventure@gmail.com
Caroline Caregnato – UEA –UNICAMP –carecarol@gmail.com
As Lendas Amazônica (1933- a 1936), do paraense Waldemar Henrique, são canções que
apresentam lendas e figuras míticas da cultura amazônica como o Boto e o Curupira.
Além das nove canções que serão apresentadas, Waldemar Henrique ainda escreveu
outras duas lendas amazônicas: “PahyTuna e Uiara”, que nunca foram publicadas e
encontram-se perdidas.
A Floresta Amazônica (1958), de Heitor Vila Lobos, foi escrita a pedido do estúdio Metro
Goldwuin Mayer para a trilha sonora do filme “Green Mansions”. Além das quatro
canções que serão apresentadas, ainda fazem parte da obra trechos instrumentais e
trechos acompanhados por coro masculino. Dentre as canções, a mais conhecida pelo
grande público é a “Melodia Sentimental”.

Cantando Poetas Ibero-Americanos


Adroaldo Cauduro
Professor do Curso de Música da Universidade do Estado do Amazonas
adroaldocauduro@hotmail.com

O espetáculo “Cantando Poetas Ibero-Americanos” traz à cena um conjunto de 21


poemas de Thiago de Mello, Tenório telles, Elson farias, Luiz Bacellar, carlos Nejar,
Mario Quintana, Fernando Pessoa e Frederico Garcia Lorca – todos musicados para
Madrigal, Orquestra de Câmara (cordas, carrilhão e flauta) e para cantores solistas. Trata-
se de uma homenagem à poesia íbero-americana e aos povos íbero-americanos.

Musicar poemas de importantes autores do Amazonas e do Rio Grande do Sul, é, ante


mais nada, uma grande oportunidade de compreender melhor o espírito, a alma, o jeito
dos amazonenses e dos gaúchos. Cantar Fernando Pessoa e Frederico Lorca é navegar
Além_mar; é deparar-se com o cotidiano, as angústias, os amores do povo espanhol.

Os músicos que integram a Orquestra de Câmara e o Madrigal são alunos e professores


da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Fazem parte, ainda, desses grupos
artísticos, músicos e cantores que atuam profissionalmente na região Norte.

431
Sob a regência do Maestro Adroaldo Cauduro, responsável também por musicar os
poemas e pela direção artística, o concerto terá a duração de aproximadamente uma hora.

Ouçam, apreciem e compartilhem desse encontro mágico das vozes dos poetas com a
música.

Composição com objetos sonoros, instrumentos e voz


Lucyanne de Melo Afonso, Emerson Souza da Costa, Erica Priscila Castro de
Oliveira, Nancy Pires da Fonseca Soares, Warllison de Souza Barbosa, Vanessa dos
Santos Rocha, Madson Teixeira Cunha, Suzana Vieira, Lucas Roberto, Rosangela
Silva, Eliane Rocha e demais alunos da disciplina Oficinas Pedagógicas aplicadas.
ao ensino da Música II.
lucyanneafonso@hotmail.com
UFAM – Universidade Federal do Amazonas

A atividade com objetos sonoros parte do princípio da utlização de diversos materiais que
produzem som para criar, improvisar e compor música. Esta proposta foi realizada na sala
de aula, durante a programação da Disciplina Oficinas Pedagógicas aplicadas ao ensino
da Música II que integra a grade curricular do Curso de Música da UFAM, ofertada em
2014/1. A metodologia proposta foi baseada no método Orff de educação musical que
integra linguagem, música, movimento e improvisação, tendo como base a música
elementar e no método de Murray Schaffer sobre paisagem sonora. No método Orff pela
utilização de instrumentos, de objetos sonoros, a improvisção e pela música elementar, a
música criada, composta; e em Schaffer pela criação de uma paisagem sonora que se
estabeleceu durante as apresentações.

432
EX-PI-CO-LE - Alex Pochat
Universidade Federal da Bahia
alexpochat@gmail.com

Miniatura para 03 Clarinetes inspirada em um vendedor de picolé. Ou, em seu grito para
vender seus picolés. Ou ainda, na tentaiva do compositor de expurgar esse grito. Peça que
se enquadra na sequência de composições de Alex Pochat que lidam com o binômio fala-
música, com algumas das suas consequentes possibilidades de interação, direta ou
indiretamente. A partir de um único e motívico de rua, o compositor desenvolve
entrelaçamentos rítmicos e melódicos que expõem variedade textural, no desafio da
escrita para um único instrumento e tres instrumentos.

Funk do Manuel - Márcio Aguiar


Professor do Curso de Licenciatura em Música da UFAM
marcio_guitar9@hotmail.com

Composição foi desenvolvida como fruto de minha Dissertação de Mestrado intitulada


“paisagens sonoras: a experiência composicional nas redes de sons do entorno do
Sambòdromo de Manaus”. Foi usado como material sonoro um relato recolhido no local
da pesquisa, onde a própria fala de nosso informante, seu “Manuel”, apresenta um
conjunto de elementos musicais com predominâncias rítmicas que serviram para a
criação de um funk dentro das características presentges nas composições de cantores
como James Brown. O uso de um acompanhamento rítmico de batidas eletrônicas
retratam a aceleração e o uso das máquinas como reflexo da urbanidade na cidade de
Manaus.

433
Imperatriz da Canastra ao Guaporé
Francisco Zemekhol Nascimento de Oliveira
Universidade Federal de Rondônia
deoliveira.chico@hotmail.com
Da solidez do tronco aos espacinhos entre as folhas lá do alto, onde os limites do que é
árvore e o que é céu se diluem; da serra ao mundo (o mar?), livre na medida em que
reconhece os vales e morros. Em Imperatriz, desejei compor a carta da fertilidade.
Homenageio essa divindade e celebro minha vinda da Canastra para o Guaporé.

Pororoca
Samuel Cavalcanti – sccpianoviola@yahoo.com.br
UFPB - Laboratório de Composição Musical - COMPOMUS
Rucker Bezerra de Queiroz- ruckerbq@gmail.com
Professor do Curso de Música da UFRN
Pororoca faz parte de uma organização concepcional de narratividade mimetizada no
fenômeno natural, bem como em sua alusão à palavra que dá nome ao fenômeno. O
“estrondo” que para os indígenas flui-se em energia aquática em direçãao ao mae e a
perplexidade humana da observação. A narratividade musical é um dos recursos
contemporâneos bastante usados, seja de modo direto ou abstrato com subterfúgios
esotéricos, escondidos, que cada compositor decide embutir em sua arte. Concebida para
violino e piano, a peça possui uma pretensa linearidade no violino que constantemente é
interrompida pelos intercursos pianísticos diametralmente opostos ao caráter
preestabelecido trazendo a selvageria innatura da força pujante da pororoca.
A peça ainda carrega-se de uma desafiadora carga dramático-plástica na medida em que
se exige um despêndio considerável de enregia física do violinista como se a própria onda
pororoca fosse como que “surfada” pelo intérprete que se esforça em manter a
regularidade e a presteza dos gestos musicais e despeito das dificuldades técnicas de
execução e das intervenções do piano. A peça é dedicada ao violinista Rucker Bezerra de
Queiroz.

434
Saudade meu bem saudade - Márcio Aguiar
Professor do Curso de Licenciatura em Música - UFAM
marcio_guitar9@hotmail.com
A música “saudade meu bem saudade” está dividida em dois movimentos: a fala de seu
Bzantino com o forró tocando ao fundo e “Saudade meu bem saudade – 2ºMovimento
(para violão e orquestra de sons naturais)”. O primeiro movimento, por se caracterizar
pela própria gravação do relato, tendo as músicas tocadas ao fundo caracterizando a
paisagem sonora daquele momento, nao possui a necessidade de ser retratado através de
visualizações, pois o próprio ato da escuta presente na gravação se encarrega dessa
função. Para o segundo movimento, por possuir a inserção de diversas camadas sonoras,
associadas ao som do violão, necessita ser apresentado para que se tenha um melhor
entendimento do processo de construção dessa composição. Essa composição foi
desenvolvida tendo oito elementos sonoros presentes em sua construção. Esses elementos
estão representados por linhas gráficas apresentadas por figuras que representam a
inserção dos sons captados.

Um desgaste a contrações
Rafaele Andrade
EMBAP (Escola de música e beas artes do Paraná, UFPR (Universidade federal do
Paraná) e Núcleo de composição Sesi Paraná
rafaelemandrade@hotmail.com
Um desgate a contrações procura descrever o afeto histérico. Atráves de um fluxo de
variáveis proporções rítmicas, as acentuações e dinâmicas súbitas determinam explosões,
surtos inusitados que conforme o tempo, tornam-se previsíveis. A idéia de contrações
inserida ao título, enquanto primeiro reconhecimento da obra pelo ouvinte, é deparar-se e
associar os eventos sonoros à um dos primeiros significados que vêm a mente: a idéia do
desgaste do corpo materno, da natureza ambígua, sólida e leve que o corpo feminino
apresenta diante tais incoerências dentro de si. Densidades e caráteres ambíguos são
sobrepostos a partir do método serial dodecafônico. Composta em março deste ano por
Rafaele Maria Andrade, a obra é escrita para quarteto de cordas de cunho artístico e
experimental. Sua duração aproximada de 6 minutos.

435
Variações de São Francisco
Francisco Zemekhol Nascimento de Oliceira
Universidade Federal de Rondônia
deoliveira.chico@hotmail.com
As Variações de São Francisco foram escritas em 2013, para orquestra, em forma de
tema e variações. O tema a ser trabalhado foi elaborado a partir dos diversos motivos com
os quais eu havia composto, no ano anterior, as três canções em São Francisco, para
trompete solista e orquestra.
Nas variações de São Francisco (semelhantemente à Imperatriz (2014), também
apresentada neste evento) busco conjugar caminhos harmônicos de cunho total a um
procedimento de estruturação harmônica automatizado e de lógica não-tonal, a partir do
qual defino os conjuntos de alturas que posso utilizar a cada momento (chamo esses
conjuntos de alturas de “modos subjacentes”). Da negociação composicional entre duas
lógicas harmônicas, surgem algumas peculiaridades exploradas na peça.
Primeiramente, como os caminhos harmônicos estão sempre subordinados aos limites
impostos pelos modos subjacentes, é frequente que estes proponham desvios com relação
ao que seriam as conduções mais prováveis: num momento em que seria esperada uma
resolução em lá, por exemplo, é possível que essa classe de alturas não esteja disponível,
obrigando-me a encontrar outra solução harmônica.
Posto que o tema e a maior parte das variações apresentam-se em forma ternária,
implicando na repetição de algumas de suas frases, é também comum que uma dada
frase, ao retornar, inicia sobre modos subjacentes distintos àqueles de sua primeira
ocorrência. Esses casos, frequentes na peça, resultam necessariamente em re-
harmonizações das frases em questão.
Por um lado, o jogo de diferenças (as re-harmonizações, os desvios com relação às
cadências esperadas) faz com que a lógica não-tonal e específica aos modos subjacentes
manifeste-se ao logo da peça. Por outro, é frequente que tais manifestações sejam
absorvidas pelo contexto tonal, que tais manifestações ganhem um significado tonal: um
desvio harmônico, por exemplo, pode ganhar a forma de uma cadência de engano; um
cromatismo imposto pelas trocas entre os modos subjacentes pode tornar-se o pilar de

436
uma condução harmônica tipicamente tonal( isto é particularmente explorado na 3ª
variação).
No cromatismo – justamente um traço comum à lógica tonal e à lógica dos modos
subjacentes – encontra-se a principal direcionalidade da peça: ele é progressivamente
intensificado da exposição do tema à sexta variação e atua como ornamentação melódica
(sobretudo na 6ª variação), ora, como condutor de progressões harmônicas tonais
(sobretudo na 3ª variação), ora como manifestação da lógica dos modos subjacentes (ao
longo de toda a pela, mas explicitamente a 4[variação).

437
Textos/Resumos das
Palestras

438
Profa. Dra. Adina Izarra
Universidad Simón Bolivar – Caracas –Venezuela
Palestra
Utilización del canto de pájaros em la Musica Eletroacústica

Resumo
Desde tiempos inmemorables se ha utilizado el canto de pájaros en la música.

Se dividen las tendencias en dos grandes áreas: Metafórica y mimética y se estudia en


esta conferencia las miméticas.

Este estudio se concentra en las obras electrónicas que han utilizado materiales de cantos
de pájaros como elementos constructivos.

Palabras clave: Cantos de pájaros, electroacústica.

Prof. Dr. Damian Keller


Universidade Federal do Acre
Palestra
Música Ubiqua

Resumo
A presente palestra constitui uma primeira abordagem para a discussão teórica em
castellano, abordando práticas musicais criativas a partir da perspectiva da cognição
situada-corporificada (embedded-embodied cognition). Traçamos um panorama das
propostas que tiveram impacto na ecocomposição sônica, nas práticas ecoacústicas e na
análise musical com base na psicologia ecológica, colocando em relevo os fundamentos
comuns. Indicamos as limitações da abordagem musical semiótica e das propostas
normativas em composição que antecederam às abordagens situadas-corporizadas.
Sugerimos um conjunto de conceitos teóricos e metodológicos para apoiar as práticas
artísticas criativas baseadas em cognição ecológica, propondo a prática criativa
cognitivo-ecológica como forma de unificar um campo diverso e emergente da pesquisa
artística.

439
Nerine Lúcia Alves de Carvalho
PROTEC – Pró-Reitoria de Inovação Tecnológica
OBEC/AM – Observatório da Economia Criativa/Amazonas

Palestra
Economia Criativa e Música

Resumo
A Pró-Reitoria de Inovação Tecnológica (PROTEC), é um órgão vinculado a Reitoria da
UFAM que tem como missão gerir os instrumentos da política de inovação tecnológica
da UFAM, apoiando, promovendo e acompanhando as ações que tenham por finalidade a
inovação tecnológica, proteção e valorização dos saberes dos povos tradicionais e de
tecnologias sociais, transferência e comercialização dos ativos intelectuais produzidos
para o setor produtivo, fornecendo subsídios qualificados para o desenvolvimento social,
cultural e tecnológico da região. A economia criativa é um novo conceito do século XXI,
refere-se a atividades na quais resultam em indivíduos exercitando a sua imaginação e
explorando seu valor econômico. Pode ser definida como processos que envolvam
criação, produção e distribuição de produtos e serviços, usando o conhecimento, a
criatividade e o capital intelectual como principais recursos produtivos.

440
Mesa Redonda
Música e Cérebro: desafios e contribuições da temática para o ensino superior

Mediadora: Profa. Dra. Rosemara Staub de Barros Zago – Curso de Música UFAM

Profa. Dra. Luciane Cuervo


Departamento de Música e Programa de Pós-Graduação em Informática na Educação,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brazil.
Prof. Dr. Felipe Kirst Adami
Departamento de Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
RS, Brazil.
Profa. Dra. Anelise Sonza
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde, Universidade Federal de Ciências da
Saúde, Porto Alegre, Brazil.

Texto
O grupo de pesquisadores propõe-se a discutir as principais contribuições das
neurociências para a compreensão dos benefícios gerados pelas práticas musicais no
âmbito do Ensino Superior, considerando também os desafios de propostas de
implementação do conteúdo no currículo.
Destacam-se dois importantes elementos norteadores da proposta: a natureza
multidisciplinar dos estudos de neurociências aplicadas à música e à educação, bem como
a consideração dos diversos fatores que estão imbricados no complexo processo global de
desenvolvimento humano, numa abordagem multifatorial (Cuervo, 2011; Cuervo, Sonza,
& Zaro, 2013).
A linha de pensamento baseia-se na musicalidade humana sob o ponto de vista
evolucionista. Serão apresentados alguns indícios os quais sugerem manifestações da
musicalidade em todos os povos da espécie humana e em todas as regiões conhecidas
(Cross, 2003; Levitin, 2006; Alossa & Castelli, 2009). Essa teoria mostra a importância
da música e da sua relação com os mecanismos de recompensa do cérebro e motivação
(Blood &Zatorre, 2001; Levitin, 2006; Menon &Levitin, 2005), circuitos similares
àqueles envolvidos na mediação de respostas de recompensa biológicas como comida ou

441
estímulo sexual (Zatorre, 2005), coesão social e interação entre pessoas (Dalla Bella &
Peretz, 1999). Nesse sentido, ressalta-se a importância do estudo sobre o Sistema de
Recompensa do Cérebro, o qual pode explicar parte do fascínio que o ser humano possui
com a música em busca de uma atividade prazerosa.
Estudos realizados nas últimas décadas têm demonstrado evidências do
significativo impacto das práticas musicais na plasticidade neuronal (Herholz & Zatorre,
2012; Wan & Schlaug, 2010), nas funções cognitivas (Särkämö et al., 2008; Stratton &
Zalanowski, 1991), nos processos criativos e mecanismos de recompensa do cérebro e
motivação (Blood & Zatorre, 2001; Levitin, 2006; Menon & Levitin, 2005). Há um
crescente interesse em entender como o cérebro processa a música, devido à constatação
de que a música engaja diferentes regiões e evoca uma enorme gama de emoções e
habilidades (Blood & Zatorre, 2001; Menon & Levitin, 2005; Peretz & Zatorre, 2003;
Zatorre, 2005).
A partir da constatação de uma lacuna na formação de professores de música no
que diz respeito aos estudos neurocientíficos sobre o processamento musical, procura-se,
a partir do projeto “Articulações entre Música, Educação e Neurociências” (Pró-Reitoria
de Pesquisa/UFRGS), discutir a importância da implementação de uma disciplina nos
cursos de graduação em música que venham abranger a temática em questão.
Para suprir a ausência de uma disciplina curricular, o curso de extensão “Música
e Cérebro”, desenvolvido na UFRGS com duas edições concluídas (Cuervo, Sonza, &
Zaro, 2013), foi criado como uma alternativa de inserção da temática para os alunos do
curso de música, com grande aceitação e procura nas duas edições. Para o seu
desenvolvimento, foram concebidos objetos virtuais de aprendizagem manipulados na
plataforma Moodle Institucional UFRGS, considerando que o curso ocorreu na
modalidade semipresencial.
Os cursos de graduação em música, de modo geral, possuem uma grade
curricular baseada em temáticas tradicionais como história (ocidental) da música,
aspectos técnicos da formação básica, como teoria e percepção musical, harmonia e
contraponto, práticas musicais sob diferentes enfoques, gêneros e estilos, além temáticas
da esfera pedagógica, no caso das licenciaturas. Raramente abrangem o conhecimento
biológico do processamento musical e suas potencialidades e, quando esse assunto está

442
presente, é de maneira informal e como parte adicional de disciplinas como Psicologia da
Música. A pedagogia da performance musical, por outro lado, raramente aborda aspectos
neurocientíficos, cujo teor poderia corroborar no aperfeiçoamento do processo de
construção da performance. Além do desempenho artístico e didático individual, o
professor de música, com base em tais conhecimentos, poderia contribuir de maneira
extraordinária na elaboração de diferentes estratégias educacionais tanto para alunos
normais quanto com disfunções.
A formação interdisciplinar ainda é um grande desafio da educação no Brasil,
em todos os níveis de ensino. Na formação básica de graduação é uma estratégia que
encontra obstáculos como o pobre diálogo interdepartamental, as limitações da
infraestrutura, os conflitos de interesses políticos, bem como a carga horária e as grades
curriculares conservadoras, dentre outros. Parece haver uma falta de conscientização da
importância acerca de uma formação que abarque o diálogo entre biologia e cultura, o
que acaba gerando um fechamento de cada área em suas salas, em seus departamentos,
em suas unidades.
Infelizmente, um dos principais desafios muitas vezes se encontra no próprio
corpo docente institucional com bases tradicionais arraigadas, que não se abrem a novos
conhecimentos e à modernização do conteúdo curricular num enfoque interdisciplinar.
No campo da música, ainda é muito comum a postura de supervalorizar a prática de
exercícios técnicos, sem abordar aspectos psicossociais e biológicos da pedagogia da
performance, por exemplo.
O contexto de formação acadêmica também carece de reflexões e práticas sobre
o processo criativo, assunto primordial no que concerne às práticas musicais, sejam elas
tocar ou cantar e criar música, seja compondo ou improvisando. O processo criativo em
música envolve diferentes aspectos, ligados à área da composição musical, psicologia e
neurologia. A psicologia é uma área pioneira na pesquisa dos processos criativos,
existindo diferentes teorias, normalmente vendo o processo criativo como um processo de
resolução de problemas. Duas teorias clássicas que vêm sendo bastante utilizadas na área
da música são a teoria dos Estágios (Wallas, 1926), que divide o processo criativo em
etapas, e a teoria da Gestalt, em que um problema é analisado como uma lacuna a ser
preenchida relação à estrutura do todo (Gestalt) do qual faz parte (cf. Wechsler, 1998)

443
Entre os compositores existem visões mais idiossincráticas do processo criativo
(cf. McCutchan, 1999), as quais podem, no entanto, ser vistas dentro das teorias da
psicologia. Em geral a visão dos compositores engloba aspectos referentes à sua visão de
mundo e a seus elementos estéticos, incluindo elementos motivacionais. Esses aspectos
tem grande relação com as vivências do compositor e dependem de sua interação com o
meio no qual vive. Uma abordagem que permite entender esse ponto de vista deve ter um
entendimento sistêmico, e o processamento de informações e armazenamento de
memórias pelo cérebro, bem como a transformação do conhecimento e entendimento de
mundo são elementos importantes para explicar o processo criativo como um todo. As
redes neurais, a partir da ativação de pontos de intersecção com neurônios de outras
redes, criam associações entre diferentes memórias e com o momento presente da
criação, criando elos com as composições já existentes do compositor ou do repertório
conhecido por ele, além das associações afetivas ou até gestuais com vivências do
momento ou do passado do compositor. Os neurobiólogos Maturana e Varela (1997 e
2001) apresentam uma visão sistêmica da interação do indivíduo com o meio, nas quais
existem transformações mútuas, num processo de acoplamento estrutural, mas na qual o
indivíduo reage às transformações do meio a partir das informações de seu próprio
sistema cognitivo. Uma visão sistêmica do processo criativo tem sido estudada
recentemente no meio da composição (Adami, 2010a e 2010b, Manzolli, 1997 e Traldi &
Manzolli, 2008), e ajuda a entender as inter-relações entre os diferentes aspectos
envolvidos.
Entende-se que as pesquisas na área da neurologia ampliam consideravelmente o
entendimento global do processo criativo e podem, juntamente com os conhecimentos da
área da psicologia e da música, auxiliar na concepção de estratégias para ampliar a busca
de soluções criativas nas áreas da composição, improvisação e educação musical.
O conteúdo desenvolvido nesse projeto sugere, portanto, introduzir
conhecimentos básicos de neuroanatomia, do desenvolvimento do sistema
neuropsicomotor, da neurobiologia do aprendizado, também chamada de neuroeducação
e funções básicas do sistema nervoso central, especialmente no que diz respeito ao
processamento neuronal da música. O engajamento que o Sistema de Recompensa do
cérebro possui através do fazer musical e as recentes discussões acerca do impacto da

444
música na plasticidade neuronal assumem importante papel nesse contexto. Dentre os
cinco sentidos, a audição recebe atenção especial, sobre a qual se discute o processo
psicoacústico e neurofisiológico da escuta. Ambiciona-se partir da discussão sobre a
musicalidade humana sob o ponto de vista evolutivo, linha de pensamento que permeia
toda a estrutura da produção, buscando defender implicações educativo musicais dos
conhecimentos neurocientíficos sobre o cérebro musical.
Busca-se desta forma, ampliar e atualizar os conceitos tradicionalmente firmados
na estrutura curricular do ensino superior, com base em evidências neurocientíficas, no
aprimoramento do fazer musical.

Referências
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Mesa Redonda
Desafios da Pesquisa em Etnomusicologia na Amazônia

Mediadora: Profa. Dra. Deise Lucy Montardo – Antropologia UFAM

Profa. Dra. Líliam Barros (EMUFPA/PPPGARTES/ICA/UFPA)


Universidade Federal do Pará

Tema da apresentação: Desafios da pesquisa etnomusicológica na Amazônia

Este artigo tem como objetivo pontuar algumas questões que emergem no cenário
da pesquisa etnomusicológica na região amazônica a partir de algumas experiências
ocorridas na região através das ações das Universidades Federal do Pará - UFPA e
Universidade do Estado do Pará – UEPA. A disciplina etnomusicologia foi
institucionalizada como componente curricular do Curso de Licenciatura Plena em
Música da Universidade Federal do Pará (UFPA) em 2008 e, como área de atuação na
linha de pesquisa “Interfaces em arte, cultura e sociedade” no Programa de Pós-
Graduação em Artes (PPGARTES) da UFPA, criado em 2009. No âmbito da
Licenciatura Plena em Música, trabalhos de conclusões de curso, projetos de pesquisa e
diálogos com a área de Educação Musical têm colaborado no processo de formação de
professores em música, oportunizando uma visão abrangente e plural das práticas
musicais. Já no PPGARTES, a produção de dissertações de mestrado e o
desenvolvimento de projetos de pesquisa em parceria com outras instituições no país
(Universidade Federal do Amazonas/UFAM e Universidade de Brasília/UnB) e no
exterior (Universidade da Flórida) tem contribuído para o fortalecimento da área na
região. A etnomusicologia também é oferecida no currículo do curso de Licenciatura
Plena em Música da Universidade do Estado do Pará (UEPA), sendo que como conteúdo

447
da disciplina “Música e Sociedade”. Para além destas ações, os Grupos de Pesquisa
Música e Identidade na Amazônia (GPMIA) e Grupo de Estudos sobre Música no Pará
(GEMPA), ambos sediados na UFPA, e o Grupo de Estudos Musicais na Amazônia
(GEMAM), da UEPA, somam esforços na promoção de eventos, reuniões de estudos e
ações de ensino, pesquisa e extensão na área de etnomusicologia. Parcerias
interinstitucionais com a Federação das Organizações Indígenas do Alto Rio Negro –
FOIRN e com representantes de sociedades tradicionais e mestres da cultura popular
oportunizaram diálogos entre saberes em espaços e contextos distintos. Os projetos de
pesquisa cadastrados no período 2014 – 2017 estão voltados para as áreas de cartografia
das práticas musicais paraenses, música e sociedade indígena, arqueomusicologia,
inclusão de saberes tradicionais e propriedade intelectual. Tais projetos incluem
pesquisadores docentes internos e externos à UFPA e UEPA, alunos e bolsistas e contam
com recursos do CNPq, CAPES, UFPA e UEPA. A produção científica na área teve um
crescente a partir do processo de qualificação docente iniciado em 2003 e finalizado em
2012 a partir de mestrados e doutorados interinstitucionais em parceria com a USP e
UFBA. As dissertações de mestrado e teses de doutorado tiveram como tema práticas
musicais paraenses, inaugurando um processo de retomada de pesquisas com esta
temática (que teve como maior representante fora Vicente Salles, cuja produção foi base
para os referidos estudos) (BARROS, 2011122).

Etnomusicologia colaborativa – a estreita relação com os protagonistas culturais.

O compartilhamento de saberes, o estabelecimento de parcerias entre grupos


diversos, uma visão abrangente da permeabilidade da prática musical e a abertura da
academia para o diálogo com o conhecimento tradicional parecem compor um caminho
importante para a etnomusicologia na Amazõnia. A experiência da Universidade Federal
do Pará com o clã Desana Guahari Diputiro Porã, Iauaretê, Amazonas, no Alto Rio
Negro oportunizou a realização dos projetos de pesquisa “Música e Sociedade Indígena
na Amazõnia”, “Mito e Música entre o clã Guahari Diputiro Porã” e “Música e mito no
Alto Rio Negro: criação e transformação da humanidade”, dos quais foram produzidos 13

122
BARROS, Líliam. “Pontos sobre a Pesquisa em Música no Pará” In Revista Música e
Cultura da Associação Brasileira de Etnomusicologia. 2011.

448
subprojetos de iniciação científica, 3 trabalhos de conclusão de curso, 1 dissertação de
mestrado e 1 projeto de pós-doutorado, além de 2 livros sobre os projetos, 1 DVD e
diversos artigos. Tal colaboração com os Desana teve a duração de 13 anos, tendo sido
finalizada em 2013. Ao longo desse período, as lideranças indígenas estiveram 3 vezes na
UFPA na qualidade de pesquisadores e professores, expondo sua música e apresentando
seu esforço em promover a transmissão dos conhecimentos tradicionais para as próximas
gerações. O desenrolar desta parceria ocorreu no sentido de empoderamento das
lideranças enquanto protagonistas de sua história, implementando outras maneiras de
produção de conhecimento e promovendo o diálogo com os estudantes do curso de
música da UFPA.

A necessidade de se pensar em outras epistemologias a partir da sabedoria milenar


dos povos originários e tradicionais amazônidas.

Em 2014 foi realizado o projeto “Encontro de Saberes” na Escola de Música da


UFPA e no programa de Pós-Gtraduação em Artes da UFPA nas disciplinas “Sociologia
da Música” e “Seminários Avançados III – Encontro de Saberes”, respectivamente, a
partir de uma parceria com a Universidade de Brasília através do Instituto Nacional de
Ciência, Tecnologia e Inovação de Inclusão na Pesquisa e no Ensino Superior. Este
projeto oportunizou a participação dos mestres Beto, amo do Boi-Bumbá Estrela Dalva;
da mestra Iracema Oliveira, Guardiã do Cordão de Pássaro Tucano; do mestre de carimbo
Lucas Bragança e do mestre indígena Tixnair Tembé, como ministrantes das referidas
disciplinas, implementando sua maneira de conceber música e sua metodologia de ensino
de música. Esta inovação metodológica permitiu novas formas de viver/sentir e fazer
música bem como oportunizou a reflexão sobre diversas questões relacionadas a
etnomusicologia.

Cartografia Musical do Pará – conhecer e valorizar a diversidade musical

Vinculado aos Grupos de Pesquisa Música e Identidade na Amazõnia – GPMIA


e Estudos Musicais do Pará – GEMPA, este projeto é coordenado pela professora Sonia
Chada e eu atuo como parceira. O desenvolvimento do projeto se dá, inicialmente,
através da busca de inventários já realizados pelas instituições do estado; através de
projetos de pesquisa associados ao desenvolvimento das disciplinas Introdução a

449
Etnomusicologia e Sociologia da Música, pelas quais somos responsáveis; de sub-
projetos realizados no âmbito dos referidos grupos de pesquisa; e pelos trabalhos de
conclusão de curso realizados no âmbito dos cursos regulares de música da UFPA e
dentro do Programa PARFOR e das dissertações de mestrado.

A etnomusicologia na Pan-Amazônia.

Observa-se atualmente a necessidade e um esforço de expansão de ações e


reflexões na área para uma perspectiva amazônica e latinoamericana a partir de
estabelecimentos de redes de discussão em países que compõe a pan-Amazônia123 e com
as próprias sociedades tradicionais amazônicas. Talvez um dos desafios que se coloca
neste momento seja o de observar paradigmas próprios a partir das demandas oriundas
das populações amazônidas. A literatura sobre música indígena na Amazônia apresenta a
música como central na vida destas populações. Estudos na área de arqueomusicologia
sobre a prática musical tapajônica demonstram a relevância da música para aquela
sociedade, seja relacionada com as práticas xamânicas ou à manutenção da estabilidade
social. A música também pode estar associada à resistência e luta, como é o caso dos
povos indígenas do Alto Rio Negro.

Profa. Dra. Deise Lucy Montardo

UFAM, INCT BRASIL PLURAL (Cnpq/Fapeam/Fapesc)

Tema da Apresentação: Uma pesquisa colaborativa em Etnomusicologia, o projeto


Podáali e a música baniwa

Trago para a reflexão nesta mesa redonda, um trabalho que venho


desenvolvendo junto com os Baniwa da comunidade Itacoatiara Mirim, em São Gabriel
da Cachoeira, no Alto Rio Negro. Este projeto ilustra bem a demanda que o pesquisador
na área tem, neste caso, na região amazônica. Estas famílias residentes há cerca de 30
anos na cidade, tem desenvolvido uma pesquisa relacionadas a alguns dos pilares de sua
cultura tradicional, a maloca, a música e o caxiri. Nesta comunicação, pretendo tecer

123
Os referidos grupos de pesquisa estão investindo nestas redes e buscando parcerias,
processo este ainda em fase de consolidação.

450
algumas considerações acerca da atuação que é solicitada, atualmente, a(o)
pesquisador(a) que tem como objeto de estudo a música indígena no Brasil. As reflexões
que aqui se apresentam estão centradas em um estudo de caso do Alto Rio Negro,
noroeste da Amazônia brasileira, mais especificamente no “Projeto Podáali – valorização
da música Baniwa”, do qual participo como consultora de Antropologia. Minha
participação no projeto não foi um convite isolado: ele acorreu no contexto da instalação
do Programa de Pós-Graduação em Antropologia em Manaus, no Norte do Brasil, região
eminentemente indígena. Considerando a região e o interesse, por parte das instituições
públicas, de pesquisar a cultura indígena, a demanda que o(a) pesquisador(a) recebe é
associada diretamente à atuação política, o que remete ao exercício de uma pesquisa
compartilhada. O projeto que analiso tratava da situação de uma comunidade peri-urbana
de São Gabriel da Cachoeira, Itacoatiara-mirim, criada por famílias baniwa vindas há
duas décadas de sua comunidade de origem, Camarão, no rio Ayari. O projeto
apresentava como objetivo geral “criar oportunidades para a valorização e transmissão de
conhecimentos de músicas e danças tradicionais aos Baniwa residentes em São Gabriel
da Cachoeira” e como objetivos específicos “1. construir e equipar uma maloca que sirva
[servisse] de espaço de transmissão de conhecimento de músicas e danças tradicionais
aos jovens Baniwa na cidade de São Gabriel da Cachoeira e 2. realizar um documentário
cinematográfico sobre a trajetória da música e da dança tradicional Baniwa dos últimos
séculos a partir da experiência de uma comunidade que vê na valorização desses
elementos uma oportunidade de enfrentar os atuais desafios para sua autodeterminação
no ambiente do maior núcleo urbano do noroeste amazônico”. Estes objetivos foram
plenamente atingidos e hoje o Sr. Luiz Laureano, mestre da maloca, e sua família,
continuam envolvidos em dar continuidade a este projeto.

Prof. Dr. Bernardo Mesquita

Universidade do Estado do Amazonas

Tema da Apresentação: A repressão sobre as manifestações populares na Amazônia

451
Este trabalho pretende discutir a posição subalterna das manifestações populares na
Amazônia através de alguns episódios de perseguição, discriminação ao longo de sua
história. Discutiremos a posição da Igreja e sua ofensiva contra tradições populares, num
processo em que os padres hostilizavam as práticas religiosas populares e as práticas
musicais e danças associadas a estas tais como o carimbo, lundu, desfeiteira Pretinhas
D’angola. Discutiremos a repressão dentro da história do Carimbó em Belém, assim
como a negação da diferença cultural refletida nas instituições de ensino de música em
Belém e Manaus.

Profa. Dra. Valéria Cristina Marques


Universidade Federal do Pará
Palestra
(DES)problematizando a leitura musical: contribuições da psicolinguística

Resumo
Vivemos numa sociedade letrada na qual a leitura tem papel primordial. Ela não
é somente uma questão linguística ou pedagógica, mas também um fato social
determinado e regulado por um conjunto de forças imbrincadas. A leitura musical
também participa desse universo cultural representacional e, nessa perspectiva, ocupa
papel central na formação musical escolar.
Podemos problematizar essa centralidade na educação musical formal/escolar a
partir de alguns pressupostos: 1) como instrumento de controle e poder, a leitura musical
representa e dá acesso ao saber socialmente dominante e regulador (e por isso
extremamente valorizado) em oposição a um conhecimento “facilitado”, “rebaixado” que
não está mediado por ela (tocar de ouvido, por exemplo); 2) a aquisição da leitura
musical nos currículos escolares pressupõe um aluno em grau zero, cujo conhecimento
musical prévio é suposto, mas recusado; 3) consequentemente, observa-se a adoção de
estratégias pedagógicas imediatistas, primordialmente visiomotoras, que desconsideram
aspectos fundamentais da construção da competência musical incluindo-se aí não só o

452
desenvolvimento auditivo como também o domínio específico de estratégias de leitura de
partituras.
A linguística aplicada, mais especialmente a psicolinguística, há muito, vem se
dedicando, dentre outros temas, ao estudo da leitura na linguagem verbal e tem oferecido
subsídios teóricos e metodológicos para a investigação da leitura musical.
Nessa perspectiva, muitos pesquisadores já constataram que a leitura musical
compartilha processos cognitivos e metacognitivos característicos da leitura verbal,
mesmo considerando-se as variáveis específicas da execução musical. Pesquisas revelam
que a utilização de informações visuais e não-visuais, o acionamento do conhecimento
prévio, a construção das estratégias cognitivas e metacognitivas de leitura, o trabalho da
memória, os processos de representação apresentam similaridades. Essas similaridades
são, por si mesmas, suficientes para recomendar a psicolinguística como base conceitual
apropriada e válida para a investigação e compreensão desse complexo fenômeno
denominado leitura musical.
A apresentação e discussão de alguns desses pressupostos teóricos e métodos de
investigação, bem como de resultados de pesquisas nessa área a partir de fundamentação
teórica construída no âmbito da psicolinguística, tem como objetivo contribuir para a
(des)problematização da leitura musical, amplificando a reflexão sobre as estratégias
cognitivas e metacognitivas envolvidas na aquisição, no desenvolvimento, no
processamento e na realização da leitura musical de partituras em notação ortocrônica.

453
Mesa Redonda
As Universidades federais brasileiras e os seus grupos musicais

Mediador: Prof. Dr. Jackson Colares – Curso de Música UFAM

Prof. Dr. Eduardo Nóbrega

Universidade Federal da Paraíba

Prof. Dr. Rucker Bezerra de Queiroz

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Texto da apresentação
Entendemos que as Universidades Federais têm um papel preponderante no
movimento cultural brasileiro. Desde a criação, essas instituições são reconhecidas como
veículos de cultura com missão de atuar nos diversos níveis do conhecimento.
Percebemos, também, que essas entidades de ensino superior não são só organismos de
cultura, mas instituições preocupadas com a formação profissional dos estudantes.
Porém, até hoje as federais brasileiras têm privilegiado a formação profissional em
detrimento a formação humana, pois a falta de apoio aos cursos de artes e humanidades
são de fácil percepção.
Nossa participação na mesa redonda no SIMA terá como objetivo fomentar a
discussão quanto a formação de grupos musicais, principalmente os de maior porte, como
orquestras, bandas e corais, levando para plenária o debate sobre as políticas culturais
direcionadas para esses equipamentos culturais.
Os movimentos musicais nas instituições de ensino superior são diversificados.
Existem universidades que possuem departamento ou escolas de música expressivas e,
consequentemente, um movimento musical qualitativo, a exemplo da Universidade
Federal da Paraíba; Universidade Federal de Minas Gerais; Universidade Federal do Rio
Grande do Sul; e a Universidade Federal da Goiás, consideradas como as que possuem
respectivamente os quatro melhores cursos de música no Brasil, segundo o GUIA DO

454
ESTUDANTE PROFISSÕES VESTIBULARES. Outras universidades possuem escolas
de música não tão expressivas, e em outras tantas sequer existem. Acreditamos que os
cursos superiores de música são determinantes no desenvolvimento e na criação destes
grupos musicais.
Essa diversificação musical nas instituições superiores de ensino podem estar
diretamente relacionadas com a criação dos grupos nas universidades. No entanto,
observamos que na maioria das Universidades, as escolas e departamentos de música
direcionam a formação do estudante, principalmente, para a música instrumental erudita,
privilegiando, assim, a formação de grupos de câmera e de orquestras, sejam infantis,
jovens ou profissionais, deixando outros grupos renegados a segundo plano, como são os
casos das bandas de música que tem origem nas cidades do interior e estão bem mais
próximas da comunidade.
Outro segmento cultural que acreditamos ser importante para comunidade
universitária é o canto coral, o único equipamento musical que abre as portas para a
comunidade acadêmica de uma maneira geral, visto que inclui professores, estudantes de
diversos cursos e funcionários que não necessitam de qualquer formação musical, dando
oportunidade de participação a toda a comunidade universitária que, consequentemente,
passam a navegar pelo universo da música. Não entendemos o porquê destes
equipamentos culturais na sua grande maioria serem tão desprestigiados se comparados
com os grupos instrumentais e orquestras universitárias.

Maestro Adroaldo Cauduro


Universidade do Estado do Amazonas – UEA
adroaldocauduro@hotmail.com

Texto da apresentação: ORQUESTRA, CORAL, COMUNIDADE E INSTITUIÇÃO

Uma Orquestra, um coral universitário são atividades artísticas que


atendem em plenitude o princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão
preconizados na Constituição Federal de 1988 no caput 207 do artigo 207 determina: “As
Universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa, de gestão

455
financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino,
pesquisa e extensão” (BRASIL, 2007).
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) afirma no art. 46,
inciso 7, que uma das finalidades da educação superior é: “Promover a extensão, aberta à
participação da população, visando à difusão das conquistas e benefícios exultantes da
criação cultural e da pesquisa científica e tecnológica geradas nas instituições” (BRASIL,
1996).
Outro importante elemento norteador da práxis educacional, que deve balizar as
atividades de ensino, pesquisa e extensão, são os chamados quatro pilares da educação
propostos pela Unesco: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e
aprender a ser ( DELORS, 2006).
O processo de Ensino e Aprendizagem em atividades artísticas que envolvem o
fazer em grupo, como, por exemplo, um coral e uma orquestra universitária acontece
tanto a nível pessoal como grupal. Isto é, cada componente da orquestra/coral necessita
desenvolver habilidades específicas do seu instrumento/voz e, para tanto, o mesmo
necessita participar de oficinas/aulas individuais e grupais que o capacite a interpretar,
tanto individualmente como em grupo, obras musicais dos mais variados estilos musicais
com desenvoltura técnica e apurado senso estético. Ou seja: Nível Individual: aprender a
técnica do seu instrumento/voz; Nível grupal: aprender a compartilhar, ou seja aprender a
“tocar com e não contra”, respeitando os colegas, o espaço de cada um, primando pela
performance coletiva – estar a serviço do grupo.
Além dos aspectos técnicos inerentes a performance artística, cada componente
da orquestra/coral aprende a conviver em comunidade, respeitando e valorizando as
diferenças – novamente a ideia de estar a serviço do grupo. Palavras com “empenho”,
“esmero”, “dedicação”, “solidariedade” fazem parte do dia-a-dia dos participantes de
uma orquestra/coral. Trata-se, portanto de um importante processo civilizatório, de
humanização da sociedade. A medida em que o projeto se desenvolve, cada participante
se transforma em um ser humano melhor, passando a atuar como agente transformador
da sua comunidade. Na verdade, uma orquestra, um coral ajuda a consolidar o processo
de ensino e aprendizagem dos seus componentes.

456
No livro “Universidade, Aprendizagem e Avaliação” Pedro Demo(2008) refere-
se a pesquisa: “com ela o aluno põe em marcha a capacidade de manejar conhecimento
próprio, questionar, argumentar, fundamentar, duvidar; [...] pesquisa é “ambiente de
aprendizagem”, não somente disciplina ao longo dos cursos, ou oportunidade esporádica;
quem não pesquisa não aprende, pois continua copiando, reproduzindo, imitando”.
O processo de pesquisa acontece de forma constante durante as atividades de
uma orquestra, ou de um coral. Esta também ocorre individualmente e em grupo quando
da busca por diferentes sonoridades, possibilidades e intencionalidades interpretativas
individuais e coletivas – por naipes e da orquestra como um todo. O maestro lidera o
processo, rege o concerto. Os músicos/monitores se responsabilizam pelos naipes,
buscando sempre aprimorar técnicas de ensino de tal forma a possibilitar uma melhor
performance de cada componente, e, consequentemente, do grupo.
Exemplo de projeto musical que envolveu um significativo processo de pesquisa
foi o espetáculo “Cantando Poetas Ibero-Americanos” que estreou no dia 12 de março no
Teatro Amazonas. Trata-se de uma homenagem a poesia ibero-americana, aos povos
ibero-americanos. O espetáculo consiste em poemas de importantes poetas do
Amazonas – Elson Farias, Luiz Bacellar, Tenório Telles e Thiago de Mello –, do Rio
Grande do Sul – Carlos Nejar e Mario Quintana –, de Portugal – Fernando Pessoa – e da
Espanha – Federico Garcia Lorca – musicados para orquestra, coro, cantores e músicos
solistas pelo maestro Adroaldo Cauduro. Foram protagonistas do espetáculo a Orquestra
Sinfônica e Madrigal Amazonas da Escola Superior de Artes e Turismo – ESAT da
Universidade do Estado do Amazonas – UEA, bem como contou com a participação
especial do grupo Dabukuri Cia de Dança. O apresentador do espetáculo foi um aluno do
curso de Teatro da Escola Superior de Artes e Turismo – ESAT. Todos os grupos artísticos
que participaram deste espetáculo eram formados eminentemente por alunos e
professores dos cursos de Música e Dança da Universidade do estado do Amazonas –
UEA. Além disso, a estrutura de logística no que se refere ao protocolo coordenado setor
de Protocolo da Universidade do estado do Amazonas – UEA que também conta com a
participação de alunos do curso de Turismo da Escola Superior de Artes e Turismo –
ESAT da Universidade do Estado d Amazonas – UEA.

457
A construção do espetáculo possibilitou todo um processo interdisciplinar de
pesquisa, seja na escolha dos poemas, do estilo musical, sonoridade, escopo musical –
dos grupos, cantores e músicos que participariam do espetáculo – por parte do maestro
compositor, como também durante os ensaios em que o Madrigal pode participar da
elaboração final das composições – busca de ambientes sonoros, efeitos e posicionamento
cênico do grupo. As coreografias das danças foram criadas especialmente para os
poemas musicados.
Em relação a extensão universitária, Calderón (2008) destaca que esta articula o
ensino e a pesquisa, estabelecendo vínculos com a sociedade, democratizando o
conhecimento produzido na universidade; estabelece a troca de saberes acadêmico e
popular; viabiliza a construção e o aprimoramento do conhecimento acadêmico; propicia
a relação transformadora entre a universidade e a sociedade, abrindo espaço para uma
participação da comunidade na universidade de forma mais efetiva.
João Clemente de Souza Neto (2005) afirma que: “ A extensão contribui para
que o sujeito possa se apropriar do conhecimento, manter ou modificar o cotidiano e
melhorar a qualidade de vida”.
Retomando o espetáculo “Cantando Poetas Ibero-Americanos” citado
anteriormente, o seu caráter interdisciplinar proporcionou importante integração entre
diferentes cursos da Escola de Artes e Turismo – ESAT e destes com as demais Escolas
Superiores da Universidade do Estado do Amazonas – UEA, bem como com a
comunidade em geral, visto que o mesmo foi apresentado no Teatro Amazonas de forma
gratuita à comunidade em geral.
O espetáculo possibilitou intensa troca, aprimoramento e construção de saberes
acadêmicos, acessando à comunidade, democratizando o conhecimento produzido na
universidade, abrindo espaço para uma participação, uma integração mais efetiva entre
comunidade e universidade, e consequente propiciando melhora na qualidade de vida dos
indivíduos.
Portanto, a Orquestra e Coro são atividades artísticas coletivas que ajudam os
sujeitos a se apropriarem do conhecimento musical, a consolidar o processo de ensino e
aprendizagem das diferentes habilitações do curso de música da Universidade,
constituindo-se de importantes laboratórios de pesquisa e de significativos instrumentos

458
de extensão, agentes de transformação, de democratização das artes, em especial da
música, à comunidade. A prática da atividade em grupo, seja instrumental e/ou vocal, é
fundamental para propiciar ao aluno uma vivencia musical única, diferenciada tão
importante no processo de sua formação acadêmica. Sem dúvida, a Orquestra e o Coro
são atividades complexas, interdisciplinares, que envolvem na sua essência ensino,
pesquisa e extensão, repercutindo, interagindo, com a comunidade através da música.

Bibliografia:

BRASIL. Constituição da Republica Federativa do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2007.


(Coleção Saraiva de legislação).

_________. Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da


Educação nacional. Brasília, 1996. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm. Acesso em 10 abr. 2014.

CALDERÓN, Adolfo Ignacio (Org.). Educação Superior: construindo a extensão


universitária nas IES particulares. São Paulo: Xamã, 2007.

DELORS, Jacques et al. Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para a Unesco da


Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI. 10. Ed. São Paulo:
Cortez; Brasília, DF: MEC: Unesco, 2006.

DEMO, Pedro. Universidade, Aprendizagem e Avaliação: horizontes reconstrutivos.


Porto Alegre: Mediação, 2004.

NETO, João Clemente de Souza. Centro de Cultura e Extensão, um território de


construção do conhecimento e da solidariedade. NETO, João Clemente de Souza;
ATIK, Maria Luiza Guarnieri (Org.). Extensão Universitária: uma construção de
solidariedade. São Paulo: Expressão e Arte, 2005.

459
Robério Braga

Secretário de Estado de Cultura

CONFERÊNCIA MAGNA
Conversa acústica124
Robério Braga125
A vida, esse indecifrável enigma, é povoada de sonhos. Há pessoas que
anteveem logo nas suas primeiras manhãs os tempos de sol e luz com que desejam
caminhar, desconhecendo espinhos e agruras que mesmo assim surgirão em suas trilhas.
Outras, varando pequena entrefresta que permite conhecer poucos raios de manhãs
radiantes, nem sempre postos diretamente sob seus olhos, acenam com o coração,
manifestando desejo ardente de futuro iluminado. As que não podem ver a luz com os
olhos da carne também sonham e também se desdobram em esperanças, mesmo batendo-
se pelas paredes do mundo que se lhes apresenta acanhado e de pouco horizonte.
Todos tivemos sonhos. Todos temos sonhos. E dentre guardados preciosos
vamos desfolhando essas esperanças no correr da vida. Alguns se fazem realidade, outros
continuam acarinhados no berço de nosso aconchego eterno, confiando que dia virá em
que deverão se concretizar. Quantos sonhos sonhei!...
E por que falar de sonhos em um encontro de cientistas e artistas, de músicos e
professores, em plena floresta amazônica na qual os puros sons das águas compõem
sinfonias que há milênios a natureza preserva, apesar de mãos desatinadas que nem
sempre compreendem a razão de ser da majestosa harmonia entre o homem e a natureza
viva, harmonia que permite o equilíbrio do planeta.
E por que falar de sonhos com os que estudam etnomusicologia, o canto dos
pássaros, a economia criativa na música, a leitura musical e o canto coral, senão para
renovar a certeza de que ao ser humano, e somente ao ser humano, é permitido construir
de forma consciente o seu destino, realizar suas aspirações, aprimorar seus talentos. E por

124
Conferência proferida no III Simpósio Internacional de Música na Amazônia (SIMA- 2014), realizado pela Universidade Federal
do Amazonas, em Manaus, no dia 5 de novembro de 2014, na qualidade de Secretário de Estado de Cultura.
125
Robério dos Santos Pereira Braga, 63, professor e advogado, mestre em Direito pela Universidade do Estado do Amazonas e
doutorando pela Universidade Illas Baleares, Espanha, é escritor e membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas e da
Academia Amazonense de Letras.

460
isso, também por isso, os pensadores e cientistas buscam contribuir para o aprimoramento
de valores de arte que os homens exprimem por meio da música.
Vejo descortinar diante de mim, na memória que os anos ainda me conferem,
muitas histórias que falam de sonhos e esperanças, e dentre tantas recolho algumas para
lhes contar. Permitam-me reter no silêncio mais contrito outras muitas que um dia hão de
brotar como se um jardim de vidas novas se tivesse plantado.
Como muitas outras, havia uma menina pequena, nascida nas praias
pernambucanas, que pelos seus quatro anos veio com a família para Manaus. Sobrinha de
jurista, músico e maestro, cresceu a ouvir e ver muitas pessoas, inclusive as primas,
postas de forma elegante e feliz, executando peças clássicas ao piano. Aqueles acordes
ficaram com ela para todo o sempre, tal qual guardou o sonho de também sentar-se e
tocar. Órfã de pai, os poucos meios materiais da família não lhe permitiram, e recolheu o
desejo entre os seus guardados mais preciosos. Aos filhos, estimulou às artes e em
particular à música, entre valores morais e éticos que também plantou como mãe e mestra
de muitas gerações.
Lampejos de outras histórias me veem à lembrança, e a cada uma delas restou
traçada uma trilha. O jovem rapaz já apaixonado pela música porque teve iniciação
instrumental em banda colegial, que estava a caminho do exterior em busca de realizar o
desejo de ser músico profissional, de repente se vê aprovado em concurso para compor a
orquestra da terra natal, também destinada a servir a um dos principais teatros do mundo.
E retorna, coração em flor e lábios afiados, para viver do seu talento e da sua flauta.
A menina – outra menina pequena – certa feita, ao passar pelas ruas de sua
cidade se depara com um espetáculo para os olhos e o mais profundo da alma sensível de
criança: a orquestra em praça pública reverbera as composições de clássicos da mais pura
erudição, ressoando Bethoven. Ela para, roga à mãe que espere um pouco para viver com
ela aquele encantamento mágico, e desperta, em fração de segundos, para o sonho que
passou a animar seu futuro. Aberta a oportunidade de regência da orquestra, em uma
daquelas atitudes proativas que alguns maestros costumam fazer em concertos didáticos,
eis que ela sobe ao palco e se depara com a imensa responsabilidade de conduzir os
músicos (e que momento de luz deve ter povoado seu pensamento e sua emoção...).

461
Conquista ali mesmo uma bolsa de estudos. Dias depois recebe o instrumento de presente
e começa a conhecer a felicidade de ser violinista.
Cabelos encaracolados, soltos ao vento, sorriso permanentemente aberto e
franco, escancarado pela alegria de quem é feliz, a jovem senta-se diante da autoridade e
conta-lhe fatos recentes dos quais foi protagonista: aprovada em seleção para curso de
mestrado em música na Europa ali estava para despedir-se e agradecer, nada mais do que
isso, pretendendo apenas manter o emprego que conquistara por concurso na orquestra de
sua cidade. Ouve como resposta uma série de perguntas: como assim? dois anos de
estudos no Velho Mundo? e como vai manter-se? quem custeará?
No meio da conversa outro jovem entra na sala e acomoda o violão com todo o
zelo. Fala da mesma coisa. Afinal, reunidos pelos laços do amor conquistaram a seleção
para mestrado na mesma terra lusitana. E do mesmo modo pretende somente preservar o
emprego conquistado, viajando sem ônus para vencer novos desafios. As perguntas foram
as mesmas: como vão se sustentar? Como pagar os cursos, os livros, a manutenção dos
instrumentos... como viver em um País com moeda de valor três vezes maior que a
nossa?
Parece que nada os impedirá. Firmes, humildes, emocionados, olham pela janela
da sala a ver o sol que está a pino, e respondem a uma só voz: vamos, esse era nosso novo
sonho e nós vamos realizá-lo.
Verdade. Seguiram viagem. E pensar que foram apresentados à música
adentrando a escola pública especializada ainda aos dez anos de idade!
O garoto de vida simples, nascido e criado em bairro distante do centro da
cidade grande, acostumado a batucar com as mãos sobre o peito e arrancar os sons da
esperança de se tornar artista, o batuqueiro, como a família o chamava, agora está no
palco do principal teatro de sua terra e faz questão de contar por onde passa como tudo se
deu para que ele e sua mãe pudessem realizar o sonho que carregava no peito, o mesmo
que lhe servia de instrumento tal qual as latas, pneus, panelas e tudo o que visse pela
frente, no tempo em que ainda não havia tido a oportunidade de estudar música e, mais
que isso, de ver diante de si a trajetória que o esperava, a depender, unicamente, de sua
dedicação aos estudos e firmeza de propósitos.

462
Jovem empresário que teve a oportunidade de frequentar escola de artes
dedicando-se ao saxofone soube aproveitar a experiência de integrar orquestra de
estudantes como prática pedagógica, e, mesmo tendo buscado realizar sua vida em
atividade que não mais comporta a prática musical, fez da disciplina que a partitura lhe
impôs, da rotina de estudos para concertos escolares, do trabalho em grupo bem
sintonizado, da consciência de que o espetáculo dependia de todos e de cada um dos que
integravam a orquestra e de que essa precisava ser bem conduzida pelo maestro e
professor, enfim, fez dessas lições a base para a sua caminhada profissional no mundo
empresarial a que se dedica. E teve êxito. E nas horas feriadas é na música e com seu
instrumento preferido que completa a sua realização pessoal.
E o jovem casal de amigos recém-aprovados para uma orquestra experimental
adentra ao gabinete oficial para deixar uma lembrança. Fala do que viveram nos últimos
dias retornando da Europa e trazendo na bagagem a aprovação para curso de
especialização em música. Decidiram voltar, mas precisam de bolsa de estudos. Os meios
de que dispõem não permitem ir além. Querem aproveitar os poucos dias que lhes restam
na cidade e trabalhar intensamente para obter condições de se manterem na nova
empreitada. Prometem retornar. Confirmam o compromisso de aprender mais e voltar
para ensinar a novas crianças e jovens. Acenam com a esperança que os anima. E pensar
que mesmo tendo sonhado um dia com essa possibilidade ela parecia impossível de se
realizar. E os amigos, familiares e vizinhos que os viam como meninos comuns, agora os
veem com orgulho, e são exemplos a serem seguidos.
Não é possível olvidar o quase menino que aos 11 anos como spala de uma
orquestra infantil liderou os colegas em defesa de pontos de vista e ameaçou paralisar os
ensaios até ser ouvido. E se fez violinista, ingressou no mundo profissional, cursou
faculdade, fez mestrado na Bulgária e exerce o magistério com maestria.
E quantas histórias poderia contar... Outras tantas escondidas na solidão dos
desejos juvenis, que não conhecemos. Muitas, esmagadas pelo desencanto para os que
não conseguiram realizá-las como aspiravam. E quantas poderiam surgir...
E por que lhes falei dessas pessoas? Existem de verdade ou foram construção
retórica preparada para homenagear os que se dedicam às artes e em particular à música e

463
se reúnem em importante conclave? Qual a síntese que se pode extrair dessas lições de
vida?
Digo-lhes: são histórias de vida verdadeira, sim. Não há nessas palavras
construção retórica, embora possam estar vestidas da emoção de quem viveu e vive a
suprema graça de acompanhar essas trajetórias o que permite proclamar ainda uma vez,
mesmo sabendo que não há nenhuma novidade nessa proclamação, que a arte liberta, e ao
libertar realiza sonhos, e ao fazê-lo consagra uma das razões mais eloquentes para que as
políticas públicas de cultura se façam com uma vertente fortemente fincada na formação
artística, na educação pela arte, que será sempre um caminho seguro para a transformação
social.
E essa tem sido a principal vertente fincada pela Secretaria de Cultura do
Amazonas a quase 18 anos, de forma crescente e profunda. Ao longo do período iniciado
em 1997 mais de 290 mil crianças, jovens e adultos estiveram conosco em aulas de
teatro, dança, fotografia, artes visuais e música, e, mais do que isso, em uma convivência
transformadora. Do pouco que possuíamos - quase tudo resumido à memória do período
áureo da borracha -, ao que temos e o que está frutificando, os indicadores sociais,
econômicos e culturais demonstram uma quase explosão. Se assim tem sido em relação a
todas as manifestações artísticas com maior expressão tem sucedido na música, em todas
as suas vertentes.
Revisitando o nosso Liceu de Artes e Ofícios Claudio Santoro, e estendendo o
olhar por sobre os grupos profissionais que o governo mantém e a Universidade do
Estado do Amazonas, em particular sobre seus cursos de arte que nasceram dessa mesma
semente, com auxílio do mesmo jardineiro, e revendo a Universidade Federal é possível
constatar a realização de muitos sonhos e a concretização de muitas esperanças. São sete
orquestras, vários corais, grupos profissionais e experimentais, orquestras de estudantes,
festivais de música popular, ópera, jazz, rock, mostra de cultura com maculelê, samba de
roda, hip hop e todas as suas variações, e em cada um deles uma farta programação
acadêmica para aprimorar conhecimento, trocar experiências, permitir relações de
trabalho e convivência artística. São centros culturais, museu e biblioteca especializada,
teatros e salas de espetáculo nos quais se realizam continuamente apresentações musicais.
E quanto já contribuímos na formação artística, e influímos na organização de grupos

464
musicais, no impulso à economia da cultura, nos serviços de luteria, de estúdios de
gravação, de prestadores de serviço em áreas especializadas para atender às artes, na
construção do amanhã?
É tocante ouvir o grupo de percussão de surdos, assistir o coral de libras,
acompanhar as aulas de violão e teclado para cegos, ver o espetáculo do balé de cegos e
perceber a consecução de iguais direitos à cultura prestados a qualquer cidadão, porém,
ainda mais profundo é constatar que participamos da realização de sonhos e reafirmação
de esperanças.
Pouco mais de 20 mil alunos de música frequentam nossas aulas este ano em
Manaus, Parintins, Envira e Borba, crescendo para mais 14 municípios polos nos
próximos anos. E quantos teremos a partir de 2015 que se avizinha com o Curso de
Educação Artística a Distância iniciado há poucos dias em ousado projeto que estamos
realizando ao unirmos decisão política, experiências pedagógicas amazonenses e
estrutura tecnológica de Espanha, agora também com a possibilidade de adesão e
universidade norte-americana.
Pareço ouvir ainda agora o som tradicional do Gambá, aquele que aos poucos foi
cedendo seu lugar cativo para outras músicas e ritmos modernos, do mesmo modo que
ressurge em mim a magia dos sons que alagam o beiradão, tão característicos da vida dos
amazonenses, tão próprios para as festas do interior e tão urbanos e clássicos para o nosso
Teatro Amazonas. Também elas, a música do Gambá e do Beiradão, ressoam novamente
com o incentivo que é obrigação do Estado conceder, tal como se fez com a música
erudita, o canto lírico e a ópera, sem falar no tic-tic-tac das toadas de boi bumbá que
marcam o ritmo do folclore regional.
Extraio a palavra da expressão fria dos números e gráficos estatísticos para
retomar as histórias de que lhes falei. Deixemos que alguns dos protagonistas se
manifestem com o sabor de sua emoção e a pureza da alma de artista. Ouçamos alguns
professores e instrumentistas amazonenses, búlgaros, russos, venezuelano, bielo-russos
que constroem conosco esta nova aurora. Vamos dar voz a cada um.
(ouvem-se os depoimentos de artistas e professores brasileiros e estrangeiros
contando as suas experiências)

465
O que vos revelo sobre o jovem rapaz é que se tornou um flautista e maestro,
professor e músico; da menina pequena que regeu a orquestra no meio da rua é que se fez
violinista profissional, é professora e está ao lado de seus mestres na Orquestra Amazonas
Filarmônica; da jovem de cabelos em cachos encaracolados é que resistiu a todas as
tentações de buscar outras profissões, formou-se em música, vive da sua arte, leciona
violino, e acha-se em Portugal com salário e bolsa de estudos; e do violonista que a
acompanha nos sonhos de mulher e de artista, ele também está fazendo mestrado na
Europa com salários e bolsa de estudos, tendo prometido voltar para formar novas
gerações; e do garoto simples que fazia do peito o instrumento de percussão é que se
tornou percussionista profissional, fez curso superior e olha adiante para aprimorar o
conhecimento; do empresário que aproveitou muito bem as lições na escola de artes para
prosperar na vida é que não se esquece do quanto a música foi importante em sua vida.
O líder de 11 anos, depois do nosso Liceu e orquestras jovens, da Amazonas
Filarmônica e do curso superior da Universidade do Estado do Amazonas, fez pós-
graduação na Bulgária e integra os quadros profissionais da Secretaria, com seu violino
sempre à mão.
Da pequena menina pernambucana que desejava tocar piano ao modo de seu tio
que era maestro e magistrado e de suas primas enricadas pelo poder do tio, digo-lhes, a
ela também foi permitido realizar o sonho. Guardado por muitos anos, compreendendo
que a vida se esvaía embora a saúde de ferro estimulasse a convicção de que o desencanto
tardaria a chegar, ela resolveu revelar o segredo que trazia entre as lembranças mais puras
de sua meninice, e contou aos filhos às vésperas de completar 80 anos de existência,
sobre o desejo de tocar piano.
E isso bastou para que o presente daquele dia chegasse às escondidas enquanto
todos estávamos no congraçamento da fé. Ao retornar a casa, deparando-se com o piano
negro posto na sala principal da modesta residência, entre encantada e atônita, feliz e
surpresa minha mãe sentou-se ao piano com elegância para os primeiros dedilhados e
proclamou com lágrimas a emoção da hora que tardara, mas que se fizera, enfim. E deu-
se aos estudos de piano com a professora que escolheu como se tivesse retornado aos
primeiros quatro anos de vida, relembrando as antigas aulas de teoria musical que
aprendera na Escola Normal. E realizou seu sonho, debruçando-se sobre o teclado com

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leveza e elegância desde as primeiras notas até peças completas que passaram a ressoar
pela rua todas as manhãs, tardes e ao cair do sol pelas mãos caridosas que renasceram
felizes para uma nova vida, depois de tantas preces silenciosas clamando pela realização
do desejo infantil.
E que verdade nos deixou a menina pernambucana em agradecimento pela
dádiva que lhe foi proporcionada ao realizar seu sonho aos 80 anos de idade, cultivado
com exímia dedicação até o seu encantamento, dezoito anos depois? Mais do que
quaisquer palavras – e ela sabia proclamá-las com poesia ainda que na prosa – deixou
uma verdade que nos anima a todos: o amor pela vida e o dar a vida em amor, o que
traduz, em si, a mais harmoniosa canção de esperança da humanidade inteira.

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